Você está na página 1de 18

Capítulo 9

Explorando o Sentido
de Número Irracional
no Ensino Fundamental1

Thais de Oliveira
Dario Fiorentini

O objetivo deste trabalho é relatar e


analisar uma prática de sala de aula que foi
desenvolvida no âmbito de uma pesquisa de
Iniciação Científica (IC) cuja questão
investigativa era: a prática exploratório-
investigativa, envolvendo números Reais e
especialmente os Irracionais, pode constituir um
contexto favorável à produção de sentido para
estes números nos dois últimos anos do ensino
fundamental? Para conhecer e compreender essa
possibilidade, planejamos, com a ajuda do Grupo
de Sábado (GdS), duas tarefas exploratório-
investigativas, sendo que neste texto relatamos
uma delas – a que foi aplicada a duas classes de 8º
ano de uma escola pública de Campinas.
Thais frequentava as reuniões do grupo e
vale ressaltar que participar do GdS era uma

1. Este trabalho é parte de uma pesquisa financiada


pela FAPESP (Processo: 04/14859-4), a qual
contou com bolsa de Iniciação Científica da
primeira autora deste texto, tendo o segundo autor
como orientador.
134 Thais de Oliveira e Dario Fiorentini

oportunidade ímpar de conhecer, a partir da análise e da reflexão dos


próprios professores sobre suas aulas e sobre o trabalho docente, um
pouco da complexidade da prática de ensinar e aprender matemática
nas escolas. Além disso, como pretendia desenvolver e pesquisar sobre
uma experiência exploratória e investigativa de ensino da matemática,
pôde contar com a interlocução de professores experientes neste tipo
de abordagem.
Outro aspecto a esclarecer é que este era um projeto de IC que
foi desenvolvido junto às disciplinas de “Prática de Ensino de
Matemática e Estágio Supervisionado”. Thais era aluna dessas
disciplinas e o Prof. Dario, o docente responsável. Essas disciplinas
têm contado com a colaboração do GdS, uma vez que os integrantes
do grupo costumam disponibilizar suas classes para estagiários,
colaborando, assim, para a formação de futuros professores. Dessa
forma, contamos com a colaboração do Prof. Adilson Roveran, à
época um dos integrantes do GdS, que colocou suas classes à
disposição dos estagiários Denis Aparecido Silva (estagiário) e
Thais (pesquisadora e estagiária) e dispôs-se a supervisionar essa
iniciação à docência na escola. Cabe destacar que, no primeiro
semestre, os estagiários fizeram estágio de observação e
colaboração nas aulas do professor Adilson e, desta forma, já
conheciam os alunos que seriam os protagonistas da atividade do
segundo semestre. Portanto, no segundo semestre, o Prof. Adilson,
Denis e Thais tinham o compromisso de planejar e desenvolver
conjuntamente uma unidade de ensino, definida como sendo
referente à introdução ao estudo dos números irracionais. O Prof.
Adilson, além de disponibilizar suas classes, esteve presente em
todas as aulas, participando colaborativamente do trabalho.
As tarefas de natureza exploratório-investigativas plane-
jadas que comporiam a proposta de trabalho do projeto de IC foram
levadas para discussão do grupo. Os integrantes do GdS, para
melhor analisá-las, tentavam simular ou prever as possíveis reações
dos alunos diante das tarefas, levantando explorações e conjecturas
que os alunos poderiam fazer e outras situações que poderiam
surgir em sala de aula. Dessa forma, depois de analisarem as tarefas,
Explorando o Sentido de Número Irracional no Ensino Fundamental 135

os participantes fizeram sugestões de mudança com o intuito de


torná-las potencialmente mais abertas e exploratórias, facilitando a
emergência de uma prática investigativa. Outra contribuição do
grupo foi a discussão sobre a organização e preparação da sala de
aula para transformá-la em um ambiente exploratório e investiga-
tivo, tais como: formação de grupos de alunos, atribuindo responsa-
bilidades a cada membro; a interação e a postura recomendável aos
professores durante o trabalho exploratório e investigativo dos
alunos; as orientações para os registros escritos dos alunos e para a
documentação das atividades realizadas em classe. Isso trouxe mais
segurança aos responsáveis para desenvolver suas aulas e coletar ou
documentar informações e acontecimentos para posterior análise.
Neste texto, descrevemos e analisamos os resultados obtidos a
partir da atividade desenvolvida, destacando as produções e
significações matemáticas produzidas pelos alunos, sobretudo aquelas
relativas aos números reais. Antes disso, porém, tecemos algumas
considerações sobre o problema do ensino e aprendizagem do conceito
de número irracional, e sobre o planejamento de tarefas e atividades
exploratório-investigativas em aulas de matemática.

Algumas considerações
sobre números irracionais
O número irracional gerava medo no passado, medo do
inexprimível ou daquilo que não tem forma. A descoberta da
incomensurabilidade foi muito perturbadora e provocou a primeira
crise nos fundamentos da matemática da Escola Pitagórica
(Miguel, 1993). A descoberta de que a diagonal de um quadrado
não é comensurável com seu lado (ou que a diagonal e o lado de um
quadrado não admitem uma unidade de medida comum) derrubou
um dos pressupostos dessa escola – que todas as grandezas
geométricas de mesma espécie eram comensuráveis (Eves, 2007).
136 Thais de Oliveira e Dario Fiorentini

Esse problema somente seria solucionado teoricamente no


século XIX por Cantor e Weierstrass, quando definiram número
irracional como ponto de convergência – ou aproximação sucessiva
? de uma sequência de racionais, e por Dedekind, em 1872, quando
escreveu seu ensaio denominado “Continuidade e Números
Irracionais”, no qual apresentou uma proposta que pode, de modo
simplificado, ser assim expressa:
1. existem mais pontos na reta do que apenas os racionais;
2. para explicar a continuidade da reta precisamos, além dos
racionais, também dos irracionais.
O conceito de número irracional é bastante abstrato até
mesmo para aqueles que estudam matemática no ensino superior
(Moreira, 2004). Isso reforçou a nossa curiosidade em saber até que
ponto o número irracional é passível de significação por alunos do
8º e 9º anos.
Os PCN (Brasil, 1998) recomendam que o estudante, ao concluir
o ensino fundamental, seja capaz de identificar um número irracional como
um número de representação decimal infinita, e não-periódica, e a localização
de alguns deles na reta numérica (p. 87). É comum encontrar nos livros
didáticos brasileiros o número Irracional da seguinte forma: “um
número que não pode ser escrito como razão de números inteiros”; “um
número que tem forma decimal não periódica infinita”; “números que
completam a reta”. Entretanto, ainda predominam nesses textos uma
abordagem que consiste em um amontoado de regras de operação com
radicais para as quais não se apresentam justificativas convincentes.
Assim apresentados, os números irracionais ou reais representam, para
os estudantes, um tema com pouca proximidade com seu cotidiano e
aparentemente sem sentido e sem relação com os demais temas
escolares. Ou seja, esse conceito representa ao professor um grande
desafio didático-pedagógico.
Visando promover, em sala de aula, um contexto favorável à
identificação e significação, por parte dos alunos de 8º ano, para os
números irracionais, planejamos e aplicamos uma tarefa potencialmente
desencadeadora de uma aula exploratório-investigativa.
Explorando o Sentido de Número Irracional no Ensino Fundamental 137

A tarefa exploratório-investigativa
Fiorentini (2006) tem conceituado uma aula exploratório-
investigativa como aquela que mobiliza atividades abertas,
exploratórias e não diretivas do pensamento do aluno e que
apresentam múltiplas possibilidades de alternativa de tratamento e
significação. Essas aulas servem, geralmente, para introduzir um novo
tema de estudo ou para problematizar e produzir significados a um
conceito matemático. O desenvolvimento da atividade
exploratório-investigativa pode favorecer o surgimento de um cenário
de investigação (Skovmose, 2000) no qual os estudantes podem
desenvolver uma investigação matemática (IM) (Ponte; Brocado;
Oliveira, 2003), especialmente se formularem questões ou conjecturas
em torno das quais realizam testes e tentam produzir justificativas ou
provas de validação.
A seguir, narramos e analisamos a atividade desenvolvida
pelos alunos do 8º ano que teve a seguinte tarefa desencadeadora
(Ficha 1):

Figura 1. A tarefa exploratório-investigativa.


138 Thais de Oliveira e Dario Fiorentini

O objetivo da nossa pesquisa ao aplicar essa tarefa era:


identificar e analisar as diferentes significações e produções
matemáticas apresentadas pelos alunos num contexto de atividade
exploratório-investigativa. Em face desse objetivo, procuramos,
então, registrar nossas observações em classe em um diário de campo e
realizamos, também, gravações em áudio, as quais foram transcritas.
Além disso, aplicamos também um questionário aos alunos, com o
intuito de captar seu ponto de vista sobre as atividades desenvolvidas, a
metodologia de ensino empregada e os aprendizados obtidos. Um
outro material importante foi a produção escrita dos alunos, seja a
partir de registros em papel, seja na produção final de pôsteres.

Planejamento da atividade
exploratório-investigativa em sala de aula
Foi negociado com o Prof. Adilson um conjunto de cinco
aulas de 50 minutos, em cada turma, para desenvolver a atividade
exploratório-investigativa. Mas havia dois problemas: um era o
número relativamente grande de alunos (quarenta em cada turma); o
outro problema é que esses alunos nunca tinham trabalhado com
tarefas exploratório-investigativas. Portanto, tínhamos de incluir em
nossa proposta um outro objetivo didático-pedagógico: familiarizar
os alunos à dinâmica exploratório-investigativa, descrevendo e
orientando o processo de trabalho cooperativo em grupo e as fases de
uma atividade exploratório-investigativa em sala de aula.
A primeira fase seria a de conhecer a dinâmica de uma atividade
investigativa e constituir um grupo de trabalho especificando a função
de cada componente. No nosso caso, cada grupo seria formado por
quatro integrantes: um coordenador, um redator (responsável pelos
registros das discussões e resoluções e pela elaboração de um pôster) e
dois seriam os relatores (que iriam socializar aos colegas seus
achados). A segunda fase seria a da exploração livre da tarefa, tentando
compreendê-la e identificar relações, regularidades e formular
possíveis conjecturas. A terceira fase seria a de construção de
Explorando o Sentido de Número Irracional no Ensino Fundamental 139

justificativas ou tentativas de validação das conjecturas. A quarta fase


seria relativa à produção do relatório de trabalho do grupo, incluindo a
elaboração de um pôster. A quinta fase seria a da socialização dos
resultados produzidos por cada grupo, incluindo discussão e
negociação de significados, tendo em vista a validação ou refutação
dos resultados apresentados por cada grupo.
Tendo isso em mente, planejamos as cinco aulas a partir de
objetivos previstos para cada aula de 50 minutos.
1a Aula: Conhecer o que são aulas investigativas e sua dinâmica
de trabalho em classe; formar grupos de quatro integrantes; tomar
conhecimento da atividade e da tarefa exploratório-investigativa a ser
desenvolvida, bem como a dinâmica de trabalho; definir as funções de
cada integrante do grupo.
2a Aula: Explorar matematicamente a tarefa proposta.
Proporcionar condições ou meios para a compreensão e exploração
livre da tarefa e a organização das primeiras ideias, tendo em vista a
identificação de relações, regularidades e possíveis conjecturas.
3a Aula: Selecionar conjecturas ou hipóteses e tentar
testá-las, justificá-las e validá-las.
4a Aula: Produzir pôsteres, destacando as ideias, relações e
conjecturas discutidas e testadas e as argumentações ou justificações
de validação delas.
5a Aula: Socializar, a partir dos pôsteres, os trabalhos
produzidos por cada grupo, seguindo-se discussão e negociação dos
resultados e uma sistematização final.

Desenvolvimento e análise da atividade


desenvolvida em classe
1o Momento: explorações e significações iniciais
sobre número irracional
Iniciamos a movimentação dentro da sala de aula indo de
grupo em grupo com a seguinte questão: Que número vocês
escolheram para ser a área do seu quadrado? As resoluções iniciais
140 Thais de Oliveira e Dario Fiorentini

foram divididas em duas categorias diferentes: uma voltada para os


quadrados perfeitos e outra voltada para as aproximações sucessivas
para os quadrados não-perfeitos, como mostraremos mais adiante.
No planejamento, uma das preocupações discutidas no GdS era a
respeito do uso, pelos alunos, da tecla “raiz quadrada” da calculadora.
Temia-se que os alunos, ao escolherem um número quadrado
não-perfeito para a área, pudessem fazer o cálculo diretamente na
calculadora, encontrando imediatamente o número aproximado do lado,
acreditando que esse valor representava exatamente sua medida.
Entretanto, na prática, isso não aconteceu. No 8º B, por
exemplo, os alunos não associaram, de imediato, a medida do lado
do quadrado com a raiz quadrada, embora tivessem utilizado a
calculadora para obter, por aproximações sucessivas, o valor da
medida do lado do quadrado. No 8º A, apenas um grupo da sala
percebeu a associação da medida do lado a ser obtida com a raiz
quadrada da medida da área, utilizando, assim, a tecla da raiz
quadrada da calculadora para obter a medida solicitada.
A maioria dos alunos fizeram os cálculos, tentando,
iterativamente, por aproximações sucessivas (Figuras 1 e 2), obter
um número mais próximo possível para o lado de um quadrado de
área 5. Os alunos ficaram tão envolvidos nos cálculos a ponto de
fazerem as contas à mão.

Tabela 1. Tentativas para o cálculo da medida do lado de um quadrado de área 5,


utilizando calculadora.
Lado Área Lado Área
1,5 2,25 2,234 4,990756
2,25 5,0625 2,236 4,999696
2,20 4,84 2,2363 5,0010376
2,22 4,9284 2,2362 5,0005904
2,23 4,9729 2,2361 5,0001432
2,24 5,0176 2,23607 5,000009
Explorando o Sentido de Número Irracional no Ensino Fundamental 141

Figura 2. Tentativas de outro grupo, sem utilizar calculadora, para obter a medida
aproximada do lado de um quadrado de área 5.

Depois de os alunos tentarem, sem muito sucesso, encontrar


o lado de um quadrado, cuja área não era um quadrado perfeito,
surgiram os primeiros questionamentos: “A gente já está cansada
de tanto fazer conta, nunca a gente acha o número. Será que isso tem
fim?” (aluna do 8º B). Consideramos que esse era o momento
oportuno para introduzir a noção de raiz quadrada. Chamamos
primeiramente a atenção para a relação com a seguinte proposição:
se a área do quadrado é [Área = L x L = L2], então, L = área
(radiciação como operação inversa da potenciação). Entretanto,
deixamos em aberto a exploração se esse processo de encontrar a
medida do lado teria um fim ou não...

2o Momento: produzindo significados


para os números irracionais com a calculadora
Na primeira etapa da atividade, ficou claro o quanto seria
difícil trabalhar a ideia de um número ter infinitas casas decimais
não-periódicas. Era preciso justificativas (mesmo que intuitivas)
para esses fatos. Não estávamos desenvolvendo uma aula expositiva,
logo não bastava afirmar isso. Os alunos precisavam de questões
instigadoras que os levassem a construir, por si próprios ou a partir de
algumas mediações, esses significados.
A alternativa encontrada surgiu quando um dos alunos –
Lucas (nome fictício) – nos entregou um papel com a representação
142 Thais de Oliveira e Dario Fiorentini

de um número decimal com várias casas decimais, como mostra a


Figura 3, a seguir.

Figura 3. Notas do trabalho com o número encontrado para 17 no computador.

Ao perguntarmos que número era este, ele respondeu que era o


máximo de aproximação que ele havia conseguido, no computador de
sua casa, para a raiz quadrada de 17. Pedimos, então, para ele fazer o
processo inverso para verificar se realmente aquele número
multiplicado por ele mesmo (isto é, elevado ao quadrado) resultava no
desejado 17. Infelizmente, na aula seguinte, esse aluno faltou, mas seu
grupo continuou tentando, com auxílio de calculadoras simples e
científica, sem perder de foco o modo como o computador poderia
ajudar a fornecer uma aproximação mais precisa para a raiz quadrada
de um número. Então, um dos alunos, valendo-se da autoridade de
uma calculadora comum e utilizando a propriedade fundamental que
define a raiz quadrada de um número, julgou que havia encontrado o
valor da raiz quadrada de 17 : “Olha professora, eu fiz 4.1231057 vezes
4.1231057 e deu 17 exato!”. Por um momento, eu (Thais) fiquei
paralisada, sem saber o que fazer. Foi então que meu colega de estágio
(Denis) cedeu sua calculadora científica. Pedimos, então, para que ele
fizesse a mesma operação com uma calculadora científica e, para seu
desapontamento, encontrou como resultado 17,00000061.
Deflagrou-se então uma discussão:
Profa: Por que na calculadora simples dá um valor e na
científica ou computador dá outro?
Aluno: A calculadora mente, professora? Eu aumentei um
número que tinha dado no computador e se eu fizesse aquele dava
16,999999... e eu acho que esse número não acaba.
Explorando o Sentido de Número Irracional no Ensino Fundamental 143

Pedimos então para verificarem o número de casas decimais


que cada calculadora tinha com intuito de validar a não confiabili-
dade dessas ferramentas. Contamos juntos e, a partir da diferença
no número de casas de decimais de cada calculadora, discutimos a
aproximação das ferramentas utilizadas e os possíveis arredonda-
mentos. Ou seja, perceberam que uma calculadora só é precisa até
uma certa casa decimal.
A análise das interações e produções dos alunos nos permitiu
verificar que os alunos podiam compreender o fato de que podiam
aproximar-se muito do valor de número procurado, mas nunca
precisamente... Os alunos do 8º ano, intuitivamente, estavam
trabalhando com a noção de limite de uma sequência de racionais de
modo não muito diferente daquele tratado teoricamente por Cantor
e Weierstrass no século XIX. Quanto mais aumentavam o número
das casas decimais, mais se aproximavam do número procurado, o
qual, na verdade, seria um número com infinitas casas decimais,
mas não-periódicas. Ou seja, não conseguiam encontrar uma ordem
que garantisse saber qual seria a próxima casa decimal, como
acontece no caso de 1/3. Ao dividirem, à mão, 1 por 3, percebiam
facilmente que sempre sobrava o mesmo resto, garantindo a
repetição periódica do cálculo: 0,3333... (número com infinitas
casas decimais mas com repetição periódica).

3º Momento: uma tentativa de representar


geometricamente os números irracionais
Depois de todas essas explorações realizadas a partir das
questões 1 e 2 da tarefa (Ficha 1), a maioria dos grupos concluiu que
aquele número procurado não podia ser escrito na forma decimal exata
ou periódica. O uso de radicais foi uma forma utilizada para
representá-los, mas era preciso, também, encontrar outras maneiras de
representá-lo, pois, segundo Duval (1993), a compreensão efetiva de
um conceito matemático repousa sobre a coordenação de pelo menos
dois registros diferentes de representação desse conceito. Assim, o
propósito da 3ª questão da tarefa era a representação geométrica dos
144 Thais de Oliveira e Dario Fiorentini

irracionais, inclusive na reta numérica. Esse propósito, porém, não


pôde ser atingido efetivamente. Uma das razões disso foi o fato de os
alunos não saberem aplicar o Teorema de Pitágoras, embora já
tivessem tido contato anteriormente com esse conteúdo.
Diante desse problema e do pouco tempo disponível,
entendemos que não podíamos deixar essa exploração apenas sob
responsabilidade deles, de modo que descobrissem por si próprios
como fazer isso. Logo, partimos para algumas dicas e explicações
mais diretivas, as quais permitiram que os alunos desenhassem
algumas figuras geométricas tendo pelo menos um lado ou
segmento cuja medida era um número irracional (Figuras 4 e 5).

Figura 4 e 5. Aplicação do Teorema de Pitágoras para representar 5 como


medida da diagonal de um retângulo de lados 1 e 2 (Fig. 4) ou como medida do lado
de um quadrado de área 5 (Fig 5).

4° Momento: elaboração dos relatórios e pôsteres


e socialização dos resultados
Cada um dos dez grupos colou na lousa seus pôsteres para, a
seguir, cada dupla de relatores comunicarem aos colegas seus
achados e significados sobre a experiência realizada sobre os
números irracionais (Figura 6).
Explorando o Sentido de Número Irracional no Ensino Fundamental 145

Figura 6. Pôsteres colados na lousa com os registros dos alunos e a Profa. Thais
conduzindo a socialização (Foto de Denis Aparecido Silva – 05/07/2007).

A Figura 7, por exemplo, mostra parte do relatório de um


grupo sobre o uso da calculadora para produzir significados sobre
números irracionais.

Figura 7. Relatório apresentado pelo grupo que discutiu o problema da


calculadora.

Apresentamos, a seguir, a transcrição de parte desse momento


de socialização final no 8º B. Neste momento cada grupo deveria
explicitar suas produções e negociar os significados, reafirmando e
justificando suas conjecturas levantadas durante a tarefa, ou não.
Aluno: Quando a gente escolheu o quadrado de área 9, o lado
do quadrado deu 3, que é exato.
Profa: E quais outros números vocês encontraram? 5
vocês..., 2.
146 Thais de Oliveira e Dario Fiorentini

Aluno: dá 1,41421356
Profa: Ponto, ponto, ponto... [Os alunos, rindo, confirmam a
necessidade dos três pontos].
Profa: Que significa estes “...”? Se eu não faço isso eu não
garanto que esse número tem infinitas casas decimais e é irracional.
Esse número existe, mas por que não serve à nossa resposta?
Aluna: Porque se você fizer “ele vezes ele” dá 1,9999999....
O momento da socialização foi fundamental, pois, além de dar
a conhecer a todos o que cada grupo produziu, representou também
um momento de síntese e sistematização do trabalho desenvolvido,
clarificando, assim, os conceitos e significados de número irracional
para a maioria dos alunos. Isso mostra que o trabalho exploratório-
investigativo com números irracionais representa uma alternativa
rica, envolvente e estimulante, conquistando a participação efetiva e
produtiva de alunos que, em geral, são pouco interessados no estudo
da matemática.

Concluindo...
Ao iniciar este estudo, tínhamos como hipótese de trabalho
que as práticas exploratório-investigativas, acerca dos números
irracionais, poderiam constituir um contexto favorável à produção
de significados de alunos do 8º ano do ensino fundamental em
relação à existência e à natureza desses números.
Os resultados obtidos, de um lado, confirmam essa hipótese e,
de outro, que esse processo, quando bem planejado, tendo o apoio de
um grupo de professores com experiência nesse campo, como foi o
GdS, representa uma alternativa didático-pedagógica altamente
instigante e mobilizadora do pensamento matemático dos alunos e de
sua atitude exploratória, questionadora e investigativa em relação às
ideias matemáticas. Cabe destacar, além disso, que as experiências
didático-pedagógicas foram desenvolvidas em uma escola pública
do estado de São Paulo e envolveram questões típicas da matemática
Explorando o Sentido de Número Irracional no Ensino Fundamental 147

pura, isto é, sem que as atividades estivessem vinculadas às


aplicações práticas no mundo cotidiano dos alunos.
Cabe destacar, também, que o apoio de toda a direção da
escola e, em especial, do professor Adilson e de um colega da
licenciatura em matemática (Denis), foi fundamental e permitiu que
o trabalho fluísse de forma organizada, tendo influenciado
diretamente nos resultados obtidos.
Algumas dificuldades, entretanto, puderam ser percebidas
durante o processo de trabalho de campo. A primeira delas diz respeito
ao grande número de alunos por classe, em torno de quarenta alunos.
Um professor sozinho, mesmo organizando grupos de quatro alunos,
como foi o caso deste projeto, dificilmente poderia atender e orientar
de maneira efetiva as atividades de cada grupo. Essa presença e
orientação são importantes em trabalhos de natureza exploratório-
investigativas, pois, a todo o momento, o professor pode atender às
dúvidas, ajudar a promover o levantamento e formulação de hipóteses
e conjecturas.
Uma segunda dificuldade percebida por nós e reconhecida
pelo próprio professor Adilson, como manifestou em sua entrevista,
foi o pequeno número de aulas destinadas a essa experiência. As
aulas investigativas, em classe, não poderiam, a princípio, ter um
número fixo de tempo ou de aulas para serem realizadas, pois as
investigações matemáticas podem ser comparadas a uma viagem na
qual sabemos o ponto de partida, mas não o ponto e o momento da
chegada. Segundo Larrosa (1999, p. 52-3), uma experiência
autenticamente formativa é como uma viagem aberta em que
pode acontecer qualquer coisa, e na qual não se sabe onde
se vai chegar, nem mesmo se vai chegar a algum lugar. [...] E
a experiência formativa seria, então, o que acontece numa
viagem e que tem a suficiente força como para que alguém
se volte para si mesmo, para que a viagem seja uma viagem
interior.

Ainda segundo esse autor, no processo de formação, o mais


importante não é o que se aprende. O que importa é a relação
148 Thais de Oliveira e Dario Fiorentini

interior que o aluno estabelece com a matéria de estudo. Trata-se de


uma experiência com a matéria de estudo, na qual o aprender forma ou
transforma o sujeito (p. 52).
Alguns indícios de mudança, sobretudo de atitude perante o
saber matemático, puderam ser percebidos em alguns alunos a
partir dessa experiência. Algumas delas foram percebidas pelo
próprio Prof Adilson quando diz que “vários alunos ao longo do
ano sofreram um processo, tiveram um desenvolvimento, que eu
percebi, de interesse... Inclusive houve uma participação de alguns
grupos que eu não contava, não esperava... Um grupo de três
meninas que não tinham muito interesse nas minhas aulas e nessas
aulas elas se empenharam mais; elas faziam, participavam....”
Em relação aos aspectos cognitivos ou intelectuais auferidos
com a experiência, cabe destacar que os alunos do ensino fundamental,
quando bem orientados e instigados, podem surpreender-nos com suas
interpretações, hipóteses e raciocínios acerca de assuntos complexos
que são difíceis até mesmo para alunos do ensino superior. De fato,
nossos alunos, embora não tenham alcançado todos os objetivos
previstos – sobretudo a representação de um número irracional na reta
numérica –, conseguiram produzir significados e representar os
números irracionais: aritmeticamente, uma expressão decimal infinita
e não-periódica; algebricamente, como radicais; e geometricamente.
No que se refere à representação geométrica, em nosso estudo, foram
registrados números reais como: comprimento do lado de um
quadrado cuja área não é um número quadrado perfeito; comprimento
da hipotenusa de um triângulo retângulo isósceles; razão entre a
medida do comprimento da circunferência e a medida do comprimento
de seu diâmetro, pois são incomensuráveis entre si.
Outras pesquisas e experiências, entretanto, fazem-se ainda
necessárias nos dois últimos anos do ensino fundamental, princi-
palmente no que tange às questões relativas à incomensurabilidade,
à localização de um número irracional na reta real e à densidade da
reta real.
Explorando o Sentido de Número Irracional no Ensino Fundamental 149

Referências
BRASIL. Ministério de Educação. Parâmetros curriculares nacionais.
matemática. Terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental. MEC: Brasília,
1998.
DUVAL, R. Registres de représentation sémiotique e fonctionnement cognitif de
la pensée. Annales de didactique et le sciences cognitives, v. 5, 1993.
EVES, H. Introdução à história da matemática. Campinas: Editora da Unicamp,
2007.
FIORENTINI, D. Uma história de reflexão e escrita sobre a prática escolar em
matemática. In: FIORENTINI, D.; CRISTOVÃO, E. M. (Org.). Histórias e
investigações de/em aulas de matemática. Campinas: Alínea, 2006. p. 13-36.
LARROSA, J. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.
MIGUEL, A. Três estudos sobre história e educação matemática. 1993. Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Unicamp, Campinas.
MOREIRA, P. C. O conhecimento matemático do professor: formação na
licenciatura e prática docente na escola básica. 2004. Tese (Doutorado em
Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte.
PONTE, J. P.; BROCADO, J.; OLIVEIRA, H. Investigações matemáticas na sala
de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, 149 p.
SKOVSMOSE, O. Cenários para Investigação. Bolema – Boletim de Educação
Matemática, Rio Claro, n. 14, p. 66-91, 2000.

Você também pode gostar