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CONSELHO EDITORIAL:

Alexandre Cadilhe [UFJF]


Ana Cristina Ostermann [Unisinos/CNPq]
Ana Elisa Ribeiro [CEFET-MG]
Carlos Alberto Faraco [UFPR]
Cleber Ataíde [UFRPE]
Clécio Bunzen [UFPE]
Francisco Eduardo Vieira [UFPB]
Irandé Antunes [UFPE]
José Ribamar Lopes Batista Júnior [LPT-CTF/UFPI]
Luiz Gonzaga Godoi Trigo [EACH-USP]
Márcia Mendonça [IEL-UNICAMP]
Marcos Marcionilo [editor]
Vera Menezes [UFMG]
Ro a
be
rta ezerr
Cai oB
ado,
Isabela d Benedit
o Rêgo Barros,
[organização]

linguagem e
interdisciplinaridade
diferentes gestos de interpretação
Produção Ebook: Telma Custódio
Revisão: Thiago Zilio Passerini
Imagem da capa: br.freepik.com

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

L727
Linguagem e interdisciplinaridade [recurso eletrônico] : diferentes gestos
de interpretação / organização Roberta Caiado , Benedito Bezerra , Isabela do
Rêgo Barros. - 1. ed. - São Paulo : Pá de Palavra, 2019.
recurso digital

Formato: eletrônico
Requisitos do sistema:
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-68326-31-2 (recurso eletrônico)

1. Linguística aplicada. 2. Aquisição de linguagem. 3. Abordagem


interdisciplinar do conhecimento. 4. Livros eletrônicos. I. Caiado, Roberta. II.
Bezerra, Benedito. III. Barros, Isabela do Rêgo.

19-55194 CDD: 418


CDU: 81’33

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439

Direitos reservados a
ROBERTA CAIADO, ISABELA DO RÊGO BARROS, BENEDITO BEZERRA
PÁ DE PALAVRA
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fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão por escrito da editora.

ISBN: 978-85-68326-31-2
© do texto: Roberta Caiado, Isabela do Rêgo, Benedito Bezerra, 2019.
© da edição: Pá de Palavra, São Paulo, março de 2019.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
Marígia Aguiar

CAPÍTULO 1
ESPELHAMENTO E FUNÇÃO POÉTICA : O lugar ocupado pela noção
de eco em aquisição de linguagem
Glória Maria Monteiro de Carvalho

CAPÍTULO 2
A COESÃO E A COERÊNCIA EM TECNOLOGIA DIGITAL MÓVEL:
Produção textual de fábula imagética
Renata Fonseca Lima da Fonte, Isabela Barbosa do Rêgo Barros e
Roberta Varginha Ramos Caiado

CAPÍTULO 3
FONORIMA: Um aplicativo para estimular habilidades fonológicas em crianças
disléxicas voltado para atividades com rima
Luciana Cidrim, João Gabriel Sodré da Mota, Antonio Roazzi, Maíra Roazzi e
Francisco Madeiro

CAPÍTULO 4
O PROCESSO DE MUDANÇA DE POSIÇÃO DE SUJEITO GAGO PARA
SUJEITO FLUENTE: Uma análise discursiva em grupo de apoio no Recife
Claudemir dos Santos Silva e Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo

CAPÍTULO 5
FALA, ESCRITA E ENSINO NA PERCEPÇÃO DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS
Rossana Ramos Henz e Benedito Gomes Bezerra

CAPÍTULO 6
LEGITIMAÇÃO, COGNIÇÃO SOCIAL E COGNIÇÃO POLÍTICA:
Análise crítico-discursiva de uma entrevista de Michel Temer
Karl Heinz Efken e Alexcina Oliveira Cirne
CAPÍTULO 7
NOVINHA : Efeitos de um já-dito na música brasileira
José Reginaldo Gomes de Santana e Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo

CAPÍTULO 8
ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE IDEOLOGIAS MÉDICAS
Transdisciplinaridade, biomedicina e homeopatia
Moab Duarte Acioli

CAPÍTULO 9
REDIGIR ENEM : Aplicativo para aprendizagem de textos argumentativos em
dispositivos móveis de comunicação
Antônio Carlos Xavier e Roberta Caiado

CAPÍTULO 10
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL EM CIÊNCIAS DA LINGUAGEM : Mineração
e sumarização de textos, análise semântica e ferramentas úteis
Matheus Barreto Lins Marinho, Eric Rocha de Souza, Anthony José da Cunha
Carneiro Lins, Fernando José Araújo Wanderley e Francisco Madeiro

CAPÍTULO 11
O SER DA LINGUAGEM: Aproximações entre a Linguística e a Literatura
André Luís de Araújo e Melissa Marques Gonçalves Boëchat

CAPÍTULO 12
ESCRITA EM LÍNGUA PORTUGUESA COMO SEGUNDA LÍNGUA POR SURDOS
USUÁRIOS DE LÍNGUA DE SINAIS: Algumas reflexões, possíveis soluções
Jurandir F. Dias Jr. e Wanilda Mª A. Cavalcanti

CAPÍTULO 13
CORPO E IDENTIDADES DE GÊNERO: A escrita feminina em espaços digitais
Denise Lima Gomes da Silva e Dóris de Arruda C. da Cunha

CAPÍTULO 14
O DRAMA TRÁGICO DE OSMAN LINS: Alegoria e História na peça
Guerra do Cansa-Cavalo
Gilberto Figueiredo Martins

CAPÍTULO 15
EFEITOS DO DISCURSO SOBRE O PALCO: Dramaturgia e representação
alegórica – Uma homenagem a Dias Gomes
Robson Teles Gomes
SOBRE OS AUTORES
APRESENTAÇÃO

A
presentar este livro vai além de simplesmente fa-
miliarizar o leitor com o conteúdo temático que ele
oferece. Na realidade, é trazer para estudiosos da
linguagem o resultado do trabalho de pesquisado-
res alinhados na orientação do Programa de Pós-graduação em
Ciências da Linguagem, da UNICAP, cujo caráter multidiscipli-
nar justificou sua proposta de implantação em 2002. O Livro
interessa, particularmente, a profissionais de Linguística, Fono-
audiologia, Psicologia, Educação, Filosofia, Comunicação Social,
Computação, enfim, de áreas que trabalham na interface com a
Linguagem, além de proporcionar, no geral, uma visão panorâ-
mica do estado da arte das Ciências da Linguagem.
Desde sua implantação, a concepção do Programa é abrir
espaço para discussões acerca das várias tendências da Lingua-
gem na interface com outras Ciências que, de uma forma pecu-
liar, com ela mantêm contato. Estudos que envolvam o homem
em sua complexidade não se fazem sem recorrer às várias áreas
do conhecimento. Não se pode pensar em segmentar um co-
nhecimento de um todo complexo para explicar uma parte des-
se todo desvinculada das outras partes. A construção do texto
discursivo se dá no contexto das relações humanas, em even-
tos interindividuais, de ações presentes e passadas, construídas
com base em experiências partilhadas. Para isso, recorrem-se às
informações prévias e de mundo, dados dos falantes, do mundo
social e do grau de conhecimento de cada um deles, dentre ou-
tras coisas. Para melhor conhecer como se dá o complexo fenô-
meno discursivo, buscam-se noções da Linguística, Psicologia,
Sociologia, Etnografia, Psicanálise, Antropologia, Antropologia
Social, Ciência da Computação, a depender da perspectiva a
ser explorada. Tal estudo, consequentemente, requer o conheci-
mento de outras ciências, e o estudo da Linguagem constitui-se,
assim, naturalmente multidisciplinar.
Em seus quinze capítulos, com textos de docentes da UNI-
CAP e de convidados de instituições com as quais o Programa
em Ciências da Linguagem interage, o livro confirma essa con-
cepção multidisciplinar, deixando visível a preocupação de seus
autores em seguir a perspectiva que constitui o diferencial que
justificou e justifica a concepção, implantação e funcionamento
do Programa.
Logo no capítulo 1, Espelhamento e função poética: o lugar
ocupado pela noção de eco em aquisição de linguagem (de Glória
Carvalho), a interdisciplinaridade está na relação da Linguística
com a Psicologia, quando a autora coloca em discussão a dife-
rença específica que leis genéricas de funcionamento da língua (leis
de funcionamento estrutural sintagmáticas e associativas, de
Saussure, e metonímicas e metafóricas, de Jakobson) estariam
assumindo no espelhamento (como proposto por Lemos), dado o
caráter singular das produções verbais infantis. Na explicação do
funcionamento dessas noções, a autora traça um paralelo com
a noção de Jacques Lacan que, no seu retorno a Freud, retoma
alguns linguistas, como Saussure (relações estruturais no funcio-
namento da linguagem), e Jakobson (a noção de função poética,
que enfoca a própria mensagem, a mensagem como tal, ou melhor,
trata-se do enfoque da mensagem por ela própria) ao afirmar que a
função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção
sobre o eixo de combinação. Ao se contrapor a Jakobson, Lacan
assinala a relação da linguagem com o sujeito do inconsciente…
(lalangue). A abordagem dada pela autora, enfocando paralelos
e semelhanças no tratamento dado pelos teóricos citados, é bas-
tante elucidativa para a compreensão do processo linguístico no
desenvolvimento da linguagem, e o faz recorrendo a princípios
da Linguística, da Psicologia, da Psicanálise e da Poética.
O capítulo 2, A coesão e a coerência em tecnologia digital
móvel: a produção textual de uma fábula imagética (Renata da Fon-
te, Isabela do Rêgo Barros e Roberta Caiado), segue a orienta-
ção da Linguística Textual e o uso pedagógico das Tecnologias
Digitais Móveis (TDM) em questões relacionadas à Semiótica.
Há, portanto um entrelaçamento entre Linguística, Semiótica e
Tecnologia Digital, na abordagem da aprendizagem móvel a par-
tir das práticas sociais, culturais, acadêmicas e digitais dos sujei-
tos, ao mesmo tempo em que considera aspectos semióticos, bem
como […] critérios da coesão e da coerência, em produções textuais
imagéticas, trazendo exemplos ilustrativos recolhidos das produções
realizadas pelos discentes. Por aprendizagem móvel, as autoras
definem a aprendizagem que acontece a partir das práticas sociais,
em smartphones, tablets, notebooks, dentre outros, com base nos
princípios de interatividade, mobilidade, portabilidade, multimoda-
lidade propiciados pela integração multimídia presente e acessível,
em tecnologia móvel. O texto explora o uso pedagógico das TDM
e […] a natureza semiótica da linguagem, instigando os discentes a
produzirem e refletirem sobre textos imagéticos coesos e coerentes,
construídos a partir das imagens do teclado do aplicativo WhatsA-
pp, no smartphone. Para a realização do trabalho, a Linguística
Textual fornece as bases teórico-metodológicas, ao mesmo tem-
po em que se exploram dados imagéticos, proporcionando um
trabalho dinâmico em sala de aula, o que constitui uma contri-
buição relevante para o ensino-aprendizagem em um contexto
atual e familiar aos discentes.
O tema do capítulo 3, Fonorima: um aplicativo para estimular
habilidades fonológicas por crianças disléxicas, voltado para ativi-
dades com rima (Luciana Cidrim, João Gabriel Sodré da Mota,
Antonio Roazzi, Maíra Roazzi e Francisco Madeiro), denota já a
perspectiva multidisciplinar do trabalho, que aborda o proces-
so de aquisição da escrita e explora dados fonético-fonêmicos,
desenvolvidos na produção infantil, bem como outras habilida-
des, a exemplo da consciência fonológica (reflexão sobre as carac-
terísticas da linguagem, […] um dos pré-requisitos mais importantes
para aprender a ler e escrever) e memória de curto prazo fonológica,
como uma instrução formal sobre as relações entre fonemas e gra-
femas. Crianças disléxicas tendem a demonstrar dificuldade no
desenvolvimento dessas noções. Segundo os autores, a criança
disléxica exibe um transtorno específico de aprendizagem, caracte-
rizado pela dificuldade em fazer uma leitura precisa e/ou fluente. A
importância deste trabalho, além de trazer uma discussão teó-
rica relevante para os estudos fonético-fonológicos e um apro-
fundamento nas discussões sobre consciência fonológica, está
em desenvolver um aplicativo, para dispositivos Android, a ser
utilizado tanto em atividades clínicas como educacionais, para
apoio à aprendizagem da escrita por crianças disléxicas, voltado
para atividades com rima.
O capítulo 4, O processo de mudança de posição de sujeito-ga-
go para sujeito-fluente: uma análise discursiva em grupo de apoio no
Recife (Claudemir Silva e Nadia Azevedo), também circunscrito
na área de distúrbios da linguagem, traz, por sua vez, uma dis-
cussão sobre Gagueira, histórico fantasma excludente na vida
social, particularmente nos ambientes escolares. Segundo os au-
tores, sujeitos com gagueira, além de se cobrarem muito, formam
uma imagem estigmatizada de falante, porque estão circunscritos
em uma ideologia do bem falar. Seus autores desenvolvem o estu-
do aprofundado da gagueira sob a ótica discursiva, em grupo de
apoio, com atenção à saúde e à educação. Realizado em encontros
semanais, o trabalho tem levado o grupo à reflexão sobre a ideia
equivocada acerca da suposta fluência absoluta, e que “fluência e
disfluência não se opõem”. Neste capítulo, o estudo da gagueira […]
é visto sob a perspectiva linguístico-discursiva, […] e a gagueira,
um lugar de subjetivação discursiva, numa perspectiva também
multidisciplinar.
No capítulo 5, Fala, escrita e ensino na percepção de profes-
soras alfabetizadoras (Rossana Ramos Henz e Benedito Gomes
Bezerra), os autores se voltam para a questão que despertou e
vem despertando a atenção de pesquisadores e que mudou a
concepção do ensino da leitura e da escrita como duas ativida-
des opostas e diferentes no ensino-aprendizagem da linguagem.
Discutem-se ali questões teóricas relativas ao continuum fala-
-escrita, dialogando com os estudos dos letramentos e com as abor-
dagens de base antropológica, sociológica e psicológica sobre fala e
escrita e oralidade e letramento. A discussão chama atenção para
a necessidade de um olhar adequado ao tratamento do meio so-
cial e da importância em se considerar manifestações individu-
ais e próprias ao ambiente linguístico do aluno. A contribuição
maior do trabalho está em buscar informações quanto ao conhe-
cimento de alfabetizadoras e a relação entre a teoria e a prática
em suas atividades com os gêneros orais e escritos no ensino.
O estudo multidisciplinar se evidencia, mais uma vez, no
capítulo 6, Legitimação, cognição social e cognição política: uma
análise crítica discursiva de uma entrevista de Michel Temer (Karl
Heinz Efken e Alexcina Oliveira Cirne), que utiliza a teoria so-
ciocognitiva de Van Dijk, sobretudo os conceitos de legitimação,
ideologia, cognição social e cognição política com a base epistemo-
lógica fornecida pela Teoria dos Estudos Críticos do Discurso,
com destaque para o sociocognitivismo. O trabalho está ancora-
do em uma entrevista do Presidente Michel Temer ao jornal Fo-
lha de S.Paulo, de 08 de abril de 2017. O trabalho chama atenção
para a importância da triangulação texto-cognição-estrutura so-
cial em uma análise textual do discurso e de como esses atos
estão relacionados nos níveis micro e macro de análise.
O capítulo 7, Novinha: efeitos de um já-dito na música brasi-
leira (José Reginaldo de Santana e Nadia Azevedo), tem como
temática principal a memória discursiva e traços de memória
no discurso, em músicas do brega-funk pernambucano, numa
orientação teórica e metodológica da Análise de Discurso pe-
cheutiana e nos seus desdobramentos a partir de estudos de Eni
Orlandi. Os autores fazem uma retomada de produções musi-
cais antigas, passando por alguns cantores da música popular
brasileira, enveredando pelo brega, o funk carioca e batidas de
música eletrônica, nas músicas de Mc Sheldom e Boco, Celmar
de Moraes (Moraezinho) e Sérgio Reis e Zé Ramalho, num pro-
cesso de intertextualidade com um mote do repentista Otacílio
Batista, e o Xote das meninas, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, além
do cancioneiro da música sertaneja. O corpus deste trabalho foi
constituído por recortes mobilizados a partir dessas músicas e
de notícias sobre o Brega-funk em blogs.
O capítulo, Análise crítica do discurso de ideologias médicas:
transdisciplinaridade, biomedicina e homeopatia, assinado por Moab
Acioli, que constitui o capítulo 8, também numa perspectiva da
Análise Crítica do Discurso, traz um enfoque transdisciplinar.
Utiliza o conceito de discurso de Fairclough que percebe a lingua-
gem como um elemento da vida social intrinsecamente conectada com
outros elementos da respectiva prática discursiva, (no caso da intertex-
tualidade) ou prática discursiva (no caso, os aspectos ideológicos), ana-
lisando os aspectos dialógicos e monológicos em uma entrevista
médica padrão e uma entrevista médica alternativa. O autor faz
um percurso por trabalhos em Análise de Discurso, Ideologia e
Sociologia do Conhecimento, recorrendo a nomes como Bakhtin,
Foucault e Fairclough, sustentáculos de seu aparato teórico.
O capítulo 9, Redigir ENEM: um aplicativo para aprendiza-
gem de textos argumentativos em dispositivos móveis de comunica-
ção (de Antonio Carlos Xavier e Roberta Caiado), enfoca o desen-
volvimento da competência da produção de texto e a necessidade da
aquisição da habilidade argumentativa dos estudantes, objetivando
[…], principalmente, desenvolver atividades pedagógicas com poten-
cial de se transformar em conteúdo conversível em linguagem de
computação, para constituir um aplicativo educacional, visando a
[…] auxiliar os estudantes do ensino fundamental e médio a desen-
volver sua competência escrita de textos dissertativos. O aparato
teórico utilizado na elaboração do trabalho tem suas bases na
Linguística de Texto, na Semântica argumentativa e na Pragmá-
tica Linguística, além da Teoria Sociointeracionista aplicada ao
ensino-aprendizagem de língua, dos conceitos de Multimodali-
dade, de Hipertextualidade e de Semiótica digital.
No capítulo 10, Inteligência Artificial em Ciências da Lingua-
gem: mineração e sumarização de textos, análise semântica e ferra-
mentas úteis (de Matheus Marinho, Eric de Souza, Anthony José
Lins, Fernando Jose Wanderley e Francisco Madeiro), uma área
mais recente nos estudos multidisciplinares, a da Inteligência Ar-
tificial, é abordada na interface com as Ciências da Linguagem,
num processo emergente de investigação conhecido como minera-
ção e sumarização de texto através de interações em mídias sociais,
e de análise semântica. De acordo com seus autores, a técnica é
composta por campos multidisciplinares, como recuperação de infor-
mação, análise de texto, processamento de linguagem natural junta-
mente com linguística computacional. Nesse processo, são utilizadas
ferramentas de fácil uso de Inteligência Artificial (IA), da Google
Cloud Platform e da Amazon Web Services, com funcionalidades que
permitem aplicações de interesse da área de Ciências da Linguagem.
O texto proporciona uma familiarização do leitor com conceitos e
aplicações da IA no estudo da linguagem, e uma de suas grandes
contribuições está, nas palavras de seus autores, na viabilização
da análise do comportamento de usuários por meio dos comentários
sobre um determinado produto em postagens nas redes sociais.
O capítulo 11, O ser da linguagem: Aproximações entre a Lin-
guística e a Literatura (André Luís de Araújo e Melissa Marques
Gonçalves Boëchat), revisita a antiga celeuma da polarização
linguística e literatura, defendendo uma mediação com a proposi-
ção do Ser da linguagem na aproximação das duas abordagens de
interação linguística. Aqui também são evocados nomes como
Jakobson, Bakhtin, Roland Barthes e os filósofos da diferença, no-
tadamente, Michel Foucault, Maurice Blanchot, Gilles Deleuze, Fé-
lix Guattari e Jacques Derrida, alguns já mencionados em outros
trabalhos deste livro. Nas palavras dos autores deste capítulo,
[…] Não se trata simplesmente de fazer comunicar esses domínios.
Trata-se de alterar, de deslocar a imagem que temos da Linguística
e da Literatura, criando, portanto, um espaço de trânsito pendular
entre uma e outra, em favor do enriquecimento da essência que há
na interlocução destes dois saberes.
Mais um capítulo, Escrita em língua portuguesa como segun-
da língua por surdos usuários de língua dos sinais: algumas refle-
xões, possíveis soluções, o capítulo 12 (de Jurandir Dias e Wanil-
da Cavalcanti), vem confirmar a necessidade de se recorrer à
variedade de inter-relações da Linguística com outras Ciências
para explicar os usos, estrutura e funcionamento da Língua de
sinais, na investigação do processo de aprendizagem da escrita
da Língua portuguesa por falantes da Língua de sinais. Ao con-
trário de crianças ouvintes, na criança surda a intermediação
fala-escrita se dá pela língua de sinais, caracterizada por uma
gramática própria, à semelhança do processo em crianças ou-
vintes falantes da língua portuguesa. Para o estudo, os pesqui-
sadores se apoiam em conhecimentos de ciências como a Neu-
rologia, a Psicologia e a Linguística, bem como em contribuições
da Educação. A relevância deste capítulo está em proporcionar
uma reflexão sobre o processo de aprendizagem da escrita por
surdos e da necessidade de se formar docentes, tanto em ter-
mos de conhecimento teórico quanto de sua aplicabilidade, para
que sejam capazes de identificar as dificuldades desses sujeitos,
capacitando-os para o processo de ensino-aprendizagem.
O capítulo 13, Corpo e identidade de gênero: a escrita femini-
na em espaços digitais (de Denise Lima e Dóris de Arruda C. da
Cunha), tem como suporte teórico a Teoria Dialógica do Discur-
so e as teorias de identidade de gênero para abordar questões
relacionadas à construção das identidades de gênero a partir da
representação do corpo na escrita de mulheres em espaços digitais.
Aqui, o trabalho de Bakhtin, nas discussões sobre dialogismo,
e Siblot e Moirand, nas discussões sobre o ato de nomear, e
Haraway, Scott e Butler que fundamentam a noção de identi-
dade de gênero, constituem os aportes teóricos da pesquisa. O
trabalho é baseado em postagens no Blogueiras Feministas, que
se caracteriza como um blog coletivo e político, cujo objetivo é
buscar uma sociedade mais justa e igualitária. O aporte teórico é
detalhadamente discutido, proporcionando ao leitor um apro-
fundamento nos princípios dialógicos de Bakhtin, que vê a lín-
gua como dialógica por natureza, realizada no discurso, sendo
impossível polarizá-los por serem ambos de caráter social. O
processo de nomeação como visto por Siblot vai nessa mesma
direção ao romper com a discussão sobre objeto e representação,
entendendo que entre o sujeito e a realidade nomeada existe uma
multiplicidade de interações, representações e sentidos que são rea-
justados a cada atualização discursiva, de modo que a palavra traz
uma memória e revela um ponto de vista do enunciador. A noção
de gênero está alinhada a este processo de nomeação, pois só é
possível apreender a materialidade do corpo através do discur-
so. E é também nessa linha que se dá o tratamento de gênero,
sexo e corpo. A análise do corpus mostra que os movimentos
discursivos e as nomeações utilizadas promovem uma produção
de sentidos que não apenas reconfiguram as formas de pensar
o feminino, como também, a maneira de pensar o conceito de
gênero e sua relação com o corpo. A perspectiva teórica que nor-
teia este trabalho, também na linha multidisciplinar, corrobora
a afirmação de que não se pode estudar a linguagem (intrinse-
camente social) de forma isolada.
O caminhar temático nos capítulos deste livro levou, na-
turalmente, a uma abordagem literária da Linguagem em sua
função poética. O capítulo 14, O drama trágico de Osman Lins
— Alegoria e História na peça Guerra do Cansa-Cavalo, de Gil-
berto Figueiredo Martins, e o Décimo Quinto, Efeitos do discur-
so sobre o palco: dramaturgia e representação alegórica — Uma
homenagem a Dias Gomes, de Robson Teles Gomes, em cujas
análises está presente a intertextualidade na evocação de textos
clássicos, com a linguagem cuidadosamente pinçada para uma
evocação imagética. As análises situam-se na função poética da
linguagem e oferecem uma análise à luz da teoria literária, en-
riquecendo as diversas formas de abordagem da linguagem em
seus diferentes usos e funções.
Por fim, os estudos e experiências vivenciadas com a lin-
guagem em ação aqui apresentados não apenas contribuem para
entender suas variadas interfaces com outras ciências, mas tam-
bém para conhecer melhor esse todo complexo que o homem
utiliza para sua comunicação diária. Acima de tudo, proporcio-
nam uma reflexão sobre sua aquisição e ensino-aprendizagem
em diferentes níveis, áreas e usos.
Para concluir, tomo emprestadas as palavras de Lakoff:

A assertiva básica de uma linguística experiencial seria essa: uma am-


pla variedade de fatores experienciais — percepção, raciocínio, natureza
do corpo humano, emoções, memória, estrutura social, desenvolvimen-
to sensório-motor e cognitivo etc. — determinam em larga medida, se
não totalmente, as características estruturais universais da linguagem
(George­Lakoff. 1977. Linguistic Gestalts. In: C.L.S., 1977: 236).

Marígia Aguiar
CAPÍTULO 1 ESPELHAMENTO E
FUNÇÃO POÉTICA:
O lugar ocupado pela noção de eco
em aquisição de linguagem1
Glória Maria Monteiro de Carvalho (UNICAP)

1. Introdução

O
objetivo deste capítulo consiste em aproximar as no-
ções de espelhamento (Lemos, 2002), função poética
(Jakobson, ([1963]2008) e eco (Porge, 2014) na abor-
dagem da fala da criança em um momento inicial de
sua trajetória linguística.
Ao propor a noção de espelhamento — entre mãe e criança –,
Lemos (2002) deixa claro o lugar fundamental ocupado tanto
pelo outro, quanto pela teoria linguística, na explicação das mu-
danças que ocorrem na fala da criança, durante sua constitui-
ção como falante. O espelhamento é concebido por essa autora (a
partir da leitura de Saussure, Jakobson e Lacan) como o movi-
mento pelo qual fragmentos da fala da mãe retornam na fala da
criança, reaparecendo na fala da mãe ao interpretar esses frag-
mentos. Podemos dizer que se trata de fragmentos sonoros ou de

1
Este trabalho faz parte de Projeto de Pesquisa financiado pelo CNPq, tendo sido
apresentado no IX ENAL/III EIAL – realizado em outubro de 2013 na UFPB, João
Pessoa-PB – e, posteriormente publicado, como artigo, em Carvalho (2015). Esse
artigo, com modificações, resultou no presente capítulo.
ecos da fala materna, de acordo com Porge (2014) que concebe
um estádio do eco na constituição do falante. Seriam, portanto,
deslocamentos metonímicos que são dominantes, nas produções
infantis, no início da aquisição de linguagem, implicando, já
nesse momento, o funcionamento linguístico-estrutural.
Desse modo, as leis de funcionamento estrutural (sintagmá-
ticas e associativas, segundo Saussure ([1916]1989) e metoními-
cas e metafóricas, para Jakobson ([1963]2008) possuem o mérito
de explicar, de forma genérica, tanto as produções verbais do
falante, como as produções erráticas da criança em seu momento
de mudança. Pretendemos, então, colocar em discussão a diferen-
ça específica que essas leis genéricas de funcionamento da língua
estariam assumindo no espelhamento, considerando o caráter
singular das produções verbais infantis. A expressão “differentia
specifica” é usada por Jakobson ([1963]2008, p. 119), provavel-
mente, a partir de Aristóteles ([384-322 A.C.]1987). Ao examinar,
minuciosamente, o problema da definição, particularmente, da
definição científica, esse filósofo coloca a necessidade de relacio-
nar o gênero próximo à diferença específica. Assim, ao se definir a
espécie (homem), deve-se inclui-la na classe geral, mais próxima,
que a engloba, isto é, o gênero (animal), ligando-o ao predicado
essencial (racional) que diferencia essa espécie, o que constitui
sua diferença específica, na medida em que a situa em relação às
outras subclasses do gênero.
Para uma abordagem da diferença específica que o funcio-
namento da língua assume quando se trata do espelhamento na
fala da criança, recorremos, portanto, a Jakobson (1963/2008)
que afirma: “Existe uma unidade de língua, mas esse código
global representa um sistema de subcódigos relacionados entre
si; toda língua encerra diversos tipos simultâneos, cada um dos
quais é caracterizado por uma função diferente”. (p. 122). Nesse
sentido, todas as manifestações da língua estão submetidas às
mesmas leis linguístico-estruturais; no entanto, em cada subcó-
digo ou em cada subestrutura, essas leis trazem uma marca que
a especifica.
2. Roman Jakobson e a função poética
Jakobson ([1963]2008) realça a denominada função poética,
procurando caracterizá-la a partir da posição que ela ocupa no
esquema clássico de comunicação que se constitui de seis fatores:
remetente, mensagem, destinatário, contexto, contato e código. Des-
tacando que, em cada um desses lugares, a língua assume uma
função diferente, adverte, contudo, que não se trata de uma fun-
ção exclusiva e sim, de uma função dominante, em relação às
outras que, embora se coloquem em posições secundárias, não
devem ser negligenciadas pelo linguista. A esse respeito, afirma:
“A função poética não é a única função da arte verbal, mas tão-so-
mente a função dominante, determinante, ao passo que, em todas
as outras atividades verbais, ela funciona como um constituinte
acessório, subsidiário” (p. 128). Mais adiante, coloca o linguista:
“Conforme dissemos, o estudo linguístico da função poética deve
ultrapassar os limites da poesia, e, por outro lado, o escrutínio lin-
guístico da poesia não se pode limitar à função poética”. (p. 129)
Nessa perspectiva, a função poética enfoca a própria men-
sagem, a mensagem como tal, ou melhor, trata-se do “enfoque
da mensagem por ela própria” (JAKOBSON, [1963] 2008, p. 127-
128). Já que se trata de uma volta/um retorno da mensagem
sobre ela mesma, o autor dá destaque ao eixo da semelhança,
propondo, como diferença específica, que: “A função poética
projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o
eixo de combinação. A equivalência é promovida à condição de
recurso constitutivo da sequência”. (p. 130). O linguista assinala
que as sílabas se convertem em unidade de medida, o mesmo
acontecendo com as moras e acentos. Por exemplo, em poesia,
uma sílaba é igualada a todas as outras sílabas da mesma pala-
vra, cada acento de palavra é igualado a qualquer outro acento
de palavra e fronteira de palavra iguala fronteira de palavra.
Propõe, partindo de Hopkins, que o verso é fundamentalmente,
mas não unicamente, uma figura de som recorrente, assumindo,
em seguida, a concepção de Valéry, segundo a qual a poesia
consiste na hesitação entre som e sentido. Afirma, então:
Sem dúvida alguma, o verso é uma ‘figura de som’ recorrente. Funda-
mentalmente, sempre, mas nunca unicamente. Todas as tentativas
de confinar convenções poéticas como metro, aliteração ou rima,
ao plano sonoro são meros raciocínios especulativos. Sem nenhuma
comprovação empírica. A projeção do princípio de equivalência na
sequência tem significação muito mais vasta e profunda. […] Con-
quanto a rima, por definição, se baseie na recorrência regular de fo-
nemas ou grupos de fonemas equivalentes, seria uma simplificação
abusiva tratar a rima meramente do ponto de vista do som. A rima
implica necessariamente uma relação semântica entre unidades rít-
micas […] (JAKOBSON, [1963]2008, p. 144)

Nessa perspectiva, em qualquer que seja o tipo de rima, a


relação entre som e sentido está sempre presente. Enfim, Jakob-
son ([1963]2008) formula a seguinte definição de Poética:

Em resumo, a análise do verso é inteiramente da competência da


Poética e esta pode ser definida como aquela parte da Linguística
que trata a função poética em sua relação com as demais partes da
linguagem. A Poética, no sentido mais lato da palavra, se ocupa da
função poética, não apenas na poesia, onde tal função se sobrepõe
às outras funções da linguagem, mas também, fora da poesia quan-
do alguma outra função se sobreponha à função poética. (p.132)

Nesse aspecto, não parece demais repetir, levando em con-


ta nosso objetivo, que, na proposta jakobsoniana, essa diferença
específica da poesia (a projeção do eixo da semelhança sobre o
eixo da contiguidade) se submete às leis estruturais gerais da
língua, na medida em que qualquer que seja a natureza espe-
cífica de uma atividade linguística, por se tratar de uma mani-
festação da língua, deve ser analisada de acordo com suas leis.
Convocamos, então, Jacques Lacan que, no seu retorno a
Freud, retoma alguns linguistas, como Saussure, Jakobson, Ben-
veniste. Especificamente em relação a Jakobson, Lacan lembra
o que ouvira, juntamente com sua plateia, da boca desse autor:
“[…] tudo que é da linguagem dependeria da linguística, quer
dizer, em último termo, do linguista” (LACAN, [1972-1973]1985,
p. 25). Ao se contrapor a Jakobson, Lacan assinala a relação da
linguagem com o sujeito do inconsciente e, para assegurar o que
Freud disse sobre o inconsciente, afirma: “[…] então será preci-
so, para deixar a Jakobson seu domínio reservado, forjar alguma
outra palavra. Chamarei a isto de Linguisteria”. (p. 54)
A linguisteria diz respeito, então, ao estudo, não da língua,
mas da lalangue que estrutura o inconsciente, ou melhor, a re-
lação da linguagem com o sujeito do inconsciente, pondo em
destaque a noção de equívoco.
Segundo Milner (2012), esse termo (lalíngua) denomina o
lugar dos equívocos, isto é, a existência, em toda língua, de um
registro que a condena ao equívoco. Nessa perspectiva, o equí-
voco seria condição de qualquer língua, podendo ser apreendido
no momento em que a palavra é arrancada “do círculo de refe-
rência ordinária” (p. 40); essa palavra adquire, simultaneamen-
te, vários sentidos, sendo impossível atribuir-lhe, com seguran-
ça, um ou mais sentidos predeterminados.
Assim, se pudermos falar numa função inconsciente da lín-
gua, diríamos que se trata de lalangue, cujas leis regem o apa-
recimento do equívoco por meio das formações do inconsciente
(lapso, ato falho, sintoma, chiste, sonho…), ultrapassando os li-
mites da linguística, ou mesmo transgredindo esses limites.
Conforme destaca Milner (2012), o equívoco, ao aparecer
através dos estratos que formam a totalidade imaginária da gra-
mática, desfaz esses estratos, dando visibilidade à língua em sua
condição inarredável de equívoco, de incompletude. O autor de-
nomina esse ponto de equívoco que desestrutura a língua, com
a expressão ponto de poesia, na medida em que o equívoco se faz
presente, de forma magistral, nessa manifestação artística que
é, por ele, destacada como um incessante retorno do equívoco.
Pêcheux (1998), no âmbito da análise do discurso, destaca
o equívoco como fato estrutural que desestabiliza os discursos
constituídos. Nessa direção, diz esse autor:
É necessário reconhecer que qualquer língua natural é também, e
antes de mais nada, a condição de existência de universos discursi-
vos não estabilizados logicamente, próprios ao espaço sócio-históri-
co dos rituais ideológicos, dos discursos filosóficos, dos enunciados
políticos, da expressão cultural e estética. Nesta segunda categoria
de universos discursivos, a ambiguidade e o equívoco constituem um
fato estrutural incontornável. (PÊCHEUX, 1998, p. 24)

Convém realçar que, ao analisar as técnicas de elaboração


poética, Jakobson ([1963]2008) se refere à ambiguidade. Em ou-
tras palavras, ele se refere ao duplo sentido que é abarcado pela
linguística, não possuindo, portanto, a condição do equívoco de
transgredir os limites da linguística. Dentre as técnicas de ela-
boração poética analisadas pelo autor, citamos o paralelismo no
qual temos uma reiteração de versos (ou de estrofes), com subs-
tituições em alguns lugares desses versos.
Ao investigar o paralelismo na fala infantil, em seus estudos
dos chamados monólogos no berço, Lier-De Vitto (2004) destaca:

Nesta perspectiva e frente aos monólogos, podemos dizer que a


materialidade fônica revolve-se sobre si mesma, criando um tempo
relacional (lógico), que suspende a direção metonímica do sentido.
Equivalências sonoras montam/desmontam articulações signifi-
cantes (no meu nome, no teu nome, midanoni, mianomi, midanomi) —
montagens que não são aleatórias, mas restringidas pela substância
fônica. (p. 7-8)

Essa autora procurou dar relevo “à jogada sonora que se


impõe à fala da criança”, distinguindo “o jogo de composição/
decomposição/recomposição da substância sonora” (LIER-DE
VITTO, 2006), em que diferenças sonoras aparecem como parte
do mesmo som.
Nessa perspectiva, Lemos (2006) aborda o paralelismo,
destacando sua extensão e disparidade de efeitos, ao colocar
que o recurso paralelístico é encontrado tanto na elaboração po-
ética (de qualquer época), quanto nos mitos, na fala da criança,
nos dizeres psicóticos e na fala de afásicos. Afirma, então:

O paralelismo na fala da criança aproxima-se em muitos aspectos


do paralelismo da poesia. Nele podemos mostrar uma suspensão da
comunicação, em que tanto o outro como o falante está deslocado,
assim como uma redução de referencialidade e até mesmo de sen-
tido. (p.106)

No entanto, o que ocorre na elaboração poética é o efeito


retroativo do inesperado sobre o esperado ou “o efeito retroativo
do som — ou da alternância fônica — sobre o sentido” (LEMOS,
2006, p. 104). Para mostrar esse efeito retroativo que, na poesia,
produz efeito de sentido (poético), recorta o poema “Parolagem
da vida” de Carlos Drummond de Andrade:

Como a vida muda.


Como a vida é muda.
Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.
Tudo que se perde
mesmo sem ter ganho.
(apud LEMOS, 2006, p.104)

Conforme se pode notar, esse poema deixa visíveis tanto


o princípio constitutivo da poesia, ou seja, o princípio segundo
o qual, numa sequência, a similaridade se superpõe à contigui-
dade, como a condição implicada por esse princípio, isto é, a do
nexo interno entre som e sentido, na medida em que a relação
sonora suscita uma relação de sentido, no verso.
Para Jakobson ([1963]2008), o paralelismo na poesia consis-
te em uma projeção do eixo metafórico sobre o eixo metonímico,
afirmando que “Em suma, a equivalência de som, projetada na
sequência como seu princípio constitutivo, implica inevitavel-
mente equivalência semântica […]”. (p. 146-147)
Nessa direção, embora o paralelismo, tanto na poesia como
na fala da criança, afete aspectos como a comunicação e a refe-
rência, os efeitos de sentido produzidos no primeiro caso mar-
cam sua diferença em relação ao segundo caso.

3. Espelhamento, função poética e eco: jogos sonoros na


fala infantil
Trazendo essa discussão para o campo da aquisição de
linguagem, propomos que, em momentos iniciais da trajetó-
ria linguística da criança, em seu diálogo com o outro (a mãe),
sobressai-se a função poética nas produções verbais infantis.
Assumimos, entretanto, que essa função, na criança, transgri-
de, desestabiliza a concepção de função poética elaborada por
Jakobson ([1963] 2008), ultrapassando, assim, os limites da lin-
guística, o que se pretende indicar mais adiante.
Perguntamos, então: por que destacarmos a função poética,
na atividade verbal da criança em seu percurso de aquisição de
linguagem, na perspectiva aqui adotada?
A esse respeito, lembramos que Freud (1980) aproxima os
jogos infantis à criação poética. Convocamos também autores,
como Figueira (2005), Lier-De Vitto (1998) e Lemos (2002, 2006)
que, focalizando a dimensão poética da criança, quando inves-
tigam os erros e as produções insólitas (no caso de Figueira) e
os paralelismos (no caso de Lier-De Vitto e de Lemos), realçam
a condição de equívoco na fala de crianças em seu momento de
mudança. Lembremos a proposta de Lemos (2006, p. 106) — co-
locada no item anterior — sobre uma aproximação, em muitos
aspectos, entre o paralelismo na fala da criança e o paralelismo
na poesia.
Nessa perspectiva, com fundamento no que foi discutido
antes, assumimos a noção de eco como uma diferença específica
do funcionamento estrutural da língua, no espelhamento, num
momento inicial da trajetória linguística da criança.
Essa noção foi formulada por Porge (2014) que parte de
uma discussão do mito de Eco e Narciso, da fala delirante do
presidente Schreber e da noção freudiana de superego.
Ao conceber o estádio de Eco como um momento estrutu-
ral no percurso de constituição do sujeito, Porge (2014) afirma
que, nesse momento, a voz se separa do eco sonoro. Assim, o eco
consiste na representação sonora da voz, ou, como diz esse au-
tor: “a sonorização é uma imaginarização, mais ou menos satis-
fatória da voz” (p. 109). Por sua vez, a voz deve ser cercada pelo
silêncio, para que se constituam suas representações sonoras,
como por exemplo, aquelas que são cantadas. “Entre a voz e seu
eco desliza o silêncio. Se não houvesse silêncio não se ouviria o
eco”. (p. 108). Mais adiante, coloca:

O estádio de eco estaria ligado a esse momento de passagem do


grito ao apelo e à fala com a voz como objeto resto, um momento
constitutivo da distinção exterior interior correlativa de qualquer
identificação e, portanto, correlativa também de uma reversão em
que há um exterior do interior. (PORGE, 2014, p. 122)

Desse modo, a língua se faria, inicialmente, presente nas


verbalizações infantis, por meio do reflexo, ou do eco da sonori-
dade da voz materna, na escuta da criança, tanto constituindo
fragmentos sonoros, como aproximando ou associando, entre si,
esses fragmentos. Com base na noção de espelhamento (Lemos,
2002), a presença de ecos na fala da criança, seria a presença,
na escuta da criança, de fragmentos sonoros da fala do outro.
Para dar maior visibilidade a essa noção de eco dos sons da
voz materna, nas verbalizações infantis, faremos referência, a
título de ilustração, a episódios extraídos de um corpus que faz
parte do Banco de Dados do Projeto de Aquisição de Linguagem
do IEL-UNICAMP. Trata-se de um conjunto de registros — já
transcritos — obtidos por meio de gravações em áudio — de
“diálogos” espontâneos entre mãe e criança — com duração mé-
dia de vinte minutos, estando a menina com 1 ano e dois meses
no início das gravações.

M=mãe C= criança V=avó P=pai

Episódio 1: C — 1 ano, 2 meses e 1 dia — conversa com sua mãe (M):


(M pega uma revista)
M: Vamo achar uma coisa bonita aqui.
C: Uauau
[…]
V: (para M) Quem é esse aqui? Que que o nenê tá fazendo? Olha.
C: Mamá
M: Mamá? Tá mamando? Cadê o au au da C?
C: Uáuá (apontando)
[…]
M: Essa aí é a moça
C: Uá nenê
M: Au au nenê?
C: Naná
M: Este aqui que você quer?
C: É não
M: Não? (ri)
V: Num é esse não, bem?
M: Qual que é? É este aqui que tá mamando?
C: Mamá mamá/uauá
M: Au au.
C: Uaúa Tetê papa

Episódio 2: C — 1 ano, 3 meses e 26 dias


C: Au au au
M: O au au está aqui na frente.
C: É dei ié
M: E esse. O pato está conversando com o au au. E aqui, com que que
o pato está conversando?
C: Au / iau
Episódio 3: C — 1 ano, 6 meses e14 dias
M: Juju é o au au, é C?
C: Auí auí auí au au/ au/ au/ au au

Episódio 4: C — 1 ano, 2 meses e1dia


C: Ana/é/da
M: O que, filhinha?
C: Ada Ada
Z: Água? Você quer água?
M: Ada
Z: Quer?
M: Aua aua

Episódio 5 (C — 1 ano e 7 meses)


M: Como a vovó reza? Mostra pra T Como a vovó reza?
C: Aí
M: Aí em cima da mesa? Não é assim que a vovó reza. Como é que
ela reza? O que que a vovó fala?
C: Méim
M: Amém.
C: Méim/abó/abói/abói
M: A bola?
C: Bóia/bóia
M: Como é que a vovó faz: nome do pai
C: Pai boboia aboia
M: A bola?
C: Boia
M: O que a vovó come na Igreja?
C: Bó

Nesses episódios, pudemos apreender a insistência de C


no que diz respeito à produção de vogais, com a dominância do
segmento auau, nos episódios 1, 2 e 3. No entanto, na insistên-
cia dessa sonoridade vocálica, ocorrem modificações como, por
exemplo: troca de posição entre as vogais, acréscimo ou supres-
são de vogais, aproximação/associação e separação/dissociação
de segmentos vocálicos. Por exemplo: auí, uáuá, au/au, au/iau.
Em alguns momentos, esses jogos ocorreram com a intro-
dução de sons consonantais, como nos episódios 4 e 5: Ana, ada;
abó/aboi, tornando visível um movimento entre sons vocálicos
e consonantais.
Pelo que foi posto, nos jogos transcritos, destaca-se, de for-
ma visível, que a criança, em suas produções de segmentos so-
noros, privilegia a semelhança sonora entre eles — auau, iau,
auí; ana, ada, aua; boia, boboia, aboia, bó, mamá,uáuá, uá naná.
Como se pode indicar, nesses fragmentos de diálogo, os jo-
gos sonoros de C estão articulados a fragmentos da fala do outro,
ou melhor, consistem em ecos dessa fala; no entanto, podemos
escutar ressonâncias entre segmentos sonoros, constituindo se-
melhanças e diferenças entre eles, na fala infantil. Desse modo,
o auau dito pela criança, no episódio 1, retorna modificado em
vários lugares, por exemplo, em uáuá, por ela, produzido, prova-
velmente ecoando o mamá produzido antes.
No entanto, embora a semelhança sonora predomine, ela
deixa ver sua outra face: a diferença, isto é, ela deixa ver dife-
renças em segmentos sonoros semelhantes. Trata-se de uma ten-
são entre semelhanças e diferenças, tensão que, nesse momento,
aponta para uma primazia da semelhança entre sons, nos jogos
infantis. Diríamos que se trata de um eco ou de um espelhamento
sonoro marcado pela circularidade na relação mãe-criança, isto
é, a criança reflete, da fala da mãe, semelhanças e diferenças
entre sons as quais são refletidas nas cadeias de significantes
que constituem a interpretação materna.
Ao que tudo indica, esse reflexo na fala infantil não po-
deria ser explicado por meio do conhecimento ou da intenção
da criança. O termo utilizado — eco — condensa a ideia de que
a reverberação produzida escapa ao controle das intenções ou
dos conhecimentos do sujeito. Por sua vez, esse eco ocorre no
ambiente sociocultural da criança, carregando, por isso mesmo,
marcas desse ambiente, ou melhor, das relações entre o outro e
o infans, imprimindo, portanto, singularidade em sua trajetória
linguística.
Poderíamos falar, assim, num domínio da semelhança sono-
ra, na fala inicial da criança, ou melhor, numa promoção da seme-
lhança “à condição de recurso constitutivo”, evocando as palavras
de Jakobson ([1963] 2008, p. 30).
No caso de produções verbais nos episódios recortados,
como foi visto, teriam sido igualados, além do som, o acento, o
ritmo e a fronteira dos segmentos sonoros, indicando o domínio
da semelhança nessas produções infantis. No entanto, nessas
aproximações sonoras, não se trataria de uma relação com o
sentido, ou melhor, deveria ser colocada em questão a relação
entre som e sentido que, segundo Jakobson ([1963] 2008), é con-
dição constitutiva do verso.

4. Considerações finais
Supomos que, na fala infantil inicial, podemos indicar uma
dominância da função poética, conforme concebida por Jakob-
son ([1963] 2008), na medida em que a equivalência, ou melhor,
a semelhança sonora “é promovida à condição de recurso cons-
titutivo da sequência” (p. 130), como já foi destacado. Assim,
fragmentos sonoros de enunciados do outro (mãe) compõem a
fala infantil. Esses fragmentos, contudo, movimentam-se, isto
é, sofrem modificações, sendo essas modificações guiadas, so-
bretudo, pela semelhança de som (mas também, de ritmo ou de
acento). Em outras palavras, ao migrarem da fala do outro para
a fala da criança, os fragmentos sonoros se igualam, ou se apro-
ximam, em virtude de alguma semelhança sonora com outros
fragmentos, na escuta da criança. Por sua vez, esse movimento
de aproximação, entre fragmentos sonoros, guiado por uma se-
melhança sonora, continuaria a ocorrer no interior da fala da
criança, produzindo também modificações nesses fragmentos.
Nesse momento, os jogos sonoros infantis a que nos referimos
estariam indicando a abertura de uma via para a entrada do
significante, ou melhor, um movimento de passagem para o sig-
nificante, nas produções infantis.
Nessa perspectiva, autores que assumem a posição psica-
nalítica (por exemplo, DIDIER-WEILL, 1999, POMMIER, 2007)
propõem que, para se tornar falante, a criança precisa deixar
escapar — deixar perder/esquecer/recalcar — a dimensão sonora
da voz e conservar o sentido, o que, entretanto, somente ocorre
se o objeto voz se mantém, no sujeito, como inscrição significan-
te. A fala, portanto, exige que o som seja esquecido/recalcado.
Segundo Pommier (2004, p. 124), “O diferencial esquece o som,
recalca o som do objeto quando ele se torna uma letra que par-
ticipa da formação de um significante”.
Nesta discussão, propusemos, anteriormente, que o con-
ceito jakobsoniano de função poética ocupa um importante
lugar na investigação da aquisição de linguagem, consideran-
do a supremacia da equivalência, da similaridade. No caso da
criança, pudemos indicar uma dominância da similaridade so-
nora, provocando uma recorrência do mesmo segmento sono-
ro — ou de segmentos sonoros semelhantes — na fala infantil.
Tal dominância tornou, especialmente, visível, uma dificuldade
(impossibilidade?) de traçar um limite nítido entre similarida-
de e contiguidade. No que toca a função poética, diz Jakobson
(1963/2008, p. 140): “Em poesia, onde a similaridade se super-
põe à contiguidade, toda metonímia é ligeiramente metáfora e
toda metáfora tem um matiz metonímico”.
Destaca ainda esse autor, como uma marca inalienável do
retorno da mensagem sobre ela mesma, não somente a ambigui-
dade da referência, na poesia, mas também a ambiguidade do
destinatário e de seu remetente, afirmando:

A supremacia da função poética sobre a função referencial não obli-


tera a referência, mas torna-a ambígua. A mensagem de duplo sen-
tido encontra correspondência num remetente cindido, num desti-
natário cindido e, além disso, numa referência cindida, conforme o
expõem convincentemente os preâmbulos dos contos de fada dos
diversos povos […]. (p. 150)
Relembremos que tanto a referência, como a comunicação
e mesmo o sentido são particularmente afetados, na poesia e
na fala da criança (LEMOS, 2006). Nessa perspectiva, conside-
rando a supremacia da similaridade, na função poética, uma
suspensão do sentido seria marca de diferença nas produções
infantis iniciais, em relação à poesia. Assim, uma posição privi-
legiada se coloca pela escuta do investigador para a resistência2
que as produções infantis opõem a uma suposta aplicação (ou
tentativa de aplicação) da noção jakobsoniana de função poé-
tica. Dizendo de outro modo, tal escuta desestabiliza a função
poética concebida por esse autor, colocando em questão a rela-
ção entre som e sentido. Assim, a noção de eco, com seu caráter
de reverberação, talvez seja a maneira mais próxima de nomear
essa desarticulação entre som e sentido, ou melhor, essa sus-
pensão do sentido. Em outros termos, a função poética, na fala
infantil inicial, ao colocar em questão a relação som-sentido,
estaria apontando para a noção de eco (PORGE, 2014) a qual se
poderia supor como sendo a diferença específica dessa fala que,
por sua vez, está submetida à estrutura geral da língua.
Notemos, contudo, que Jakobson ([1963] 2008) não trata a
supremacia da equivalência, na função poética, como um atri-
buto essencial no sentido aristotélico, cuja presença marcaria a
diferença em relação às outras funções. Para o linguista, como
foi visto, não seria a presença vs. ausência de um fator que dife-
renciaria uma função linguística das outras. Seria, antes, a po-
sição privilegiada que um determinado fator ocupa, em relação
a outros, que marcaria a diferença dessa função. Realçamos, de
acordo com a posição aqui assumida, que o eco não seria, pro-
priamente, uma diferença específica, na fala inicial da criança,
na medida em que ele estaria submetido a um movimento que
não nos permitira usar essa expressão, nem mesmo no sentido
jakobsoniano. Em outras palavras, o eco seria um efeito do fun-
cionamento da língua que captura (termo de LEMOS, 2002) a

Sobre a resistência que a fala da criança opõe à teoria linguística, ver Lier-De
2

Vitto; Carvalho (2008).


criança e deve ser esquecido/recalcado por ela, para que se tor-
ne falante, mas que reaparece/retorna de forma diferente, não
apenas nos vários tipos de homofonia que as línguas compor-
tam, como também, de maneira privilegiada, em alguns lugares,
como é o caso da poesia.
Indagamos se não deveríamos estar mais atentos — em nos-
sa escuta para a fala da criança, na relação com a fala do outro
— aos jogos sonoros concebidos como matriz de constituição
do significante. Formulando com outros termos, perguntamos
se essa dimensão de eco das produções infantis não deveria ser
mais investigada, para que se pudesse dar mais um passo no
estudo do diálogo concebido como matriz das mudanças que
ocorrem no vir-a-ser-falante.
Para finalizar, indicamos que a teoria linguística ocupa
um lugar importante, ou mesmo necessário, na investigação da
aquisição de linguagem; destacamos que ela é imprescindível ao
investigador, para que ele possa escutar a fala infantil em seu
caráter errático, insólito. Não se trataria, contudo, de aplicar
os conceitos de determinada teoria às manifestações verbais da
criança as quais seriam, assim, transformadas em empiria, no
sentido de servir como teste para esses conceitos. Diferentemen-
te, a presença da teoria, na investigação da aquisição de lingua-
gem, consistiria em escutar a resistência que a fala da criança
opõe a tal aplicação.

Referências
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SAUSSURE, F.  Curso de linguística Geral, São Paulo: Cultrix, [1916] 1989.
CAPÍTULO 2 A COESÃO E A
COERÊNCIA EM TECNOLOGIA
DIGITAL MÓVEL:
Produção textual de fábula imagética
Renata Fonseca Lima da Fonte (UNICAP)
Isabela Barbosa do Rêgo Barros (UNICAP)
Roberta Varginha Ramos Caiado (UNICAP)

O
objetivo deste capítulo é discutir a coesão e a coerên-
cia na fábula imagética, “O Leão e o Ratinho”, produ-
zida por alunos do oitavo período do curso de Letras
de uma universidade particular do Recife, a partir
do uso de imagens do teclado do aplicativo WhatsApp (WA).
Nossa discussão será norteada pela Linguística Textual;
pelo uso pedagógico das Tecnologias Digitais Móveis (TDM) e
pelas questões relacionadas à Semiótica.
O uso das tecnologias digitais no contexto educacional tem
favorecido novas práticas de escrita no meio digital, que deman-
dam mudanças na cultura do letramento, exigindo novas habi-
lidades, dentre elas, a capacidade de produção de textos imagé-
ticos e a reflexão sobre o uso de múltiplas semioses em favor da
produção de sentidos.
Neste capítulo destacaremos o conceito de Tecnologias
Digitais Móveis — abordando a aprendizagem móvel1 a partir

1
Autores internacionais fazem referência à aprendizagem móvel utilizando o
termo m-learning.
das práticas sociais, culturais, acadêmicas e digitais dos sujeitos,
como fator positivo e considerando aspectos semióticos, bem
como apresentaremos os critérios da coesão e da coerência, em
produções textuais imagéticas, trazendo exemplos ilustrativos
recolhidos das produções realizadas pelos discentes.

1. Tecnologias digitais móveis


O termo letramento digital surge emparelhado às necessi-
dades práticas cotidianas e ao avanço das tecnologias digitais da
informação e comunicação (FONTE; CAIADO, 2014; 2015); em
especial, a Tecnologia Digital Móvel, na qual novos Letramentos
são requeridos, implicando na utilização de arranjos semióticos
diversos que articulam: palavras, sons, imagens e movimentos,
sincronicamente, em um meio caracterizado por noções de mul-
tilinearidade e enunciados multissemióticos (CAIADO; FON-
TE; BARROS, 2018).
Geddes (2004) definiu “m-learning como a aquisição de
qualquer conhecimento e habilidade através da utilização de
tecnologia móvel, em qualquer lugar, a qualquer hora, resultan-
do em uma alteração do comportamento do aprendiz que pode
indicar o resultado de aprendizagens”.
Entendemos por aprendizagem móvel, m-learning, corrobo-
rando das ideias de Caiado (2017), a aprendizagem que acontece
a partir das práticas sociais, culturais, acadêmicas e digitais dos
sujeitos, em dispositivos móveis (smartphones, tablets, notebooks,
dentre outros), com base nos princípios de interatividade, mo-
bilidade, portabilidade, multimodalidade propiciados pela inte-
gração multimídia presente e, acessível, em tecnologia móvel.
Dentre as competências e as habilidades no meio digital,
destacamos: (i) interatividade, no sentido da dialogicidade pro-
piciada pelo dispositivo móvel; (ii) espontaneidade ou formali-
dade, pois os discentes podem monitorar sua interação e seu
discurso, de acordo com seus interlocutores, seus propósitos
comunicacionais, o gênero discursivo, o contexto e a materia-
lidade selecionada, em conformidade com a sua intenção; (iii)
motivação, pois as tecnologias digitais motivam os discentes e
as TDM acrescentam à motivação a perspectiva da portabilida-
de, da ubiquidade que significa utilizar o dispositivo quando e
onde desejar; (iv) multimodalidade, pois o ambiente hipermí-
dia do smartphone propicia aos discentes a utilização de áudio,
mensagens escritas, imagens, vídeo, emojis, produzindo, nessa
convergência de mídias, uma atitude ativa dos sujeitos; (v) pla-
nejamento e reelaboração, pois a aprendizagem móvel favorece
um planejamento prévio da interação com os pares; (vi) per-
sonalização, na medida em que os discentes utilizam os seus
próprios smartphones, interagindo com os conteúdos propostos
e assumindo o controle do acesso e do caminho percorrido, tra-
zendo um efeito positivo para a aprendizagem, além de estabe-
lecer um novo índice relacional propiciado pela intimidade com
o dispositivo móvel, que se configura como extensão do “eu” na
contemporaneidade, conforme figura 1:

Figura 1: Competências e habilidades em TDM

Interativo

Espontâneo/
Personalizado
formal

USO das
TDM
Reelaborado Motivado

Planejado Multimodal

Fonte: CAIADO (2016)


Essas competências e habilidades no meio digital contri-
buem para a leitura e a produção de textos imagéticos. Segundo
Santaella, ler imagens

[…] significa adquirir os conhecimentos correspondentes e desenvol-


ver a sensibilidade necessária para saber como as imagens se apre-
sentam, como indicam o que querem indicar, qual é o seu contexto
de referência, como as imagens significam, como elas pensam, quais
são seus modos específicos de representar a realidade. (SANTAELLA,
2012, p. 13)

Segundo Santaella (2012), algumas práticas pedagógicas


desconsideram o trabalho com leitura e produção de textos ima-
géticos, minimizando a importância cognitiva da imagem nos
processos de ensino e de aprendizagem. De acordo com a auto-
ra, “embora a característica primordial da imagem seja a de ser
apreendida no golpe de um olhar, […] ela encerra complexidades
que temos de aprender a explorar.” (2012, p.14).
O uso pedagógico das TDM, como proposto neste traba-
lho, considera a natureza semiótica da linguagem, instigando
os discentes a produzirem e refletirem sobre textos imagéticos
coesos e coerentes, construídos a partir das imagens do teclado
do aplicativo WhatsApp no smartphone.
Concebemos que o texto pode se apresentar sob diversas
materialidades: imagética, gestual, sonora, escrita. Considera-
mos que a escola deve mostrar, oferecer e propor aos discen-
tes as pluralidades de materialidades textuais, aliadas às TDM.
Segundo Caiado e Leffa (2017), a aprendizagem móvel aliada à
produção de textos, quando bem conduzida, pode surtir efeitos
positivos porque revela uma gama de características desenca-
deadoras de processos favoráveis à apreensão/ressignificação/
reelaboração/redescrição do conhecimento.
Essas características podem favorecer a textualidade, em
especial, os critérios de coesão e coerência. No próximo tópico,
discutiremos tais critérios a partir de uma produção textual
imagética — o gênero discursivo/textual fábula — em uma ten-
tativa de teorizar sobre esses critérios da textualidade, de for-
ma a compreender as inter-relações entre imagem-imagem na
fábula imagética.

2. Coesão e coerência imagéticas no gênero fábula


Fábula é uma palavra latina, derivada do verbo “fabulare”,
que significa narrar ou falar. Originária da tradição oral, de pe-
quena extensão e, predominantemente, narrativa (tipo textual),
a Fábula tem como personagens animais ou criaturas imaginá-
rias que fazem alusão às características encontradas em seres
humanos; deve-se a isso seu caráter pedagógico — a pequena
narrativa exemplar serviria como instrumento de aprendiza-
gem, fixação e memorização dos valores morais do grupo social
(BAGNO, 2006).
Segundo Bagno:

A fábula é um gênero literário muito antigo que se encontra em


praticamente todas as culturas humanas e em todos os períodos
históricos. Este caráter universal da fábula se deve, sem dúvida, à
sua ligação muito íntima com a sabedoria popular. De fato, a fábula
é uma pequena narrativa que serve para ilustrar algum vício ou al-
guma virtude, e termina, invariavelmente, com uma lição de moral.
(BAGNO, 2006, p. 51)

A moral de algumas fábulas transformou-se em provérbios


nas línguas do Ocidente, muitas vezes sem que as pessoas co-
nheçam a fábula original. Na história do Ocidente, houve gran-
des autores de fábulas. Na Grécia antiga, o mais famoso deles
foi Esopo, que viveu entre os séculos VI e VII antes de Cristo.
Esopo era um grande contador de histórias, mas não deixou ne-
nhuma fábula escrita, suas narrativas foram registradas, de for-
ma literária, por outros autores (BAGNO, 2006).
Consideramos que a Fábula, gênero discursivo/textual
presente no cotidiano das escolas e nas práticas pedagógicas
dos docentes, ainda, possui elevado potencial para o trabalho
pedagógico com o eixo de ensino produção de textos, se alia-
da às tecnologias digitais móveis. O gênero discursivo/textual
Fábula foi utilizado, neste trabalho, tendo em vista seu for-
mato organizacional e sua extensão. Observe-se nas figuras
2 e 3, a fábula intitulada “O Leão e o Ratinho”, da autoria de
Esopo, produzida de duas formas: linguagem verbal escrita e
linguagem visual/imagética. Especificamente, neste capítulo,
tratamos da coesão e da coerência imagéticas em tecnologia
digital móvel.

Figura 2: Fábula O Leão e o Ratinho

O Leão e o Ratinho
Esopo

O Leão estava dormindo um bom sono, quando foi acordado por


um rato que passou correndo em seu rosto. Agilmente, o mesmo o
agarrou, e estava pronto para matá-lo.
Logo, o rato implorou:
- Por favor, solte-me, tenho certeza de que um dia irei poder
retribuir este favor.
Logo, o Leão soltou com grandes risadas, pois um grande e forte
destemido, não iria precisar de um rato.
Logo após um tempo, o Leão caiu em uma armadilha de caçadores.
Estava preso e mal podia se mexer.
O Rato ao ouvir seus rugidos, roeu a corda até solta-lo e disse:
- O senhor riu da ideia de que eu jamais iria poder lhe ajudar. Nunca
pensou que poderia precisar de um pobre e pequeno rato!
Mas, agora, sabe que um pequeno Rato pode retribuir um favor a
um grande Leão!

Moral da história: “Os pequenos amigos podem se revelar os


melhores e mais leais aliados”.
Figura 3: Produção Imagética em TDM: O Leão e o Ratinho

Fonte: Elaborada por alunos do 8º período do curso de Letras

O título da fábula é marcado por três imagens: um leão, um


sinal de adição e um rato. O sinal de adição estabelece ligação
entre os segmentos do texto: leão e rato, substituindo a conjun-
ção aditiva “e” do texto verbal escrito da fábula em análise.
Esse texto imagético é estruturado em dezoito postagens as-
síncronas do WhatsApp, que substituem os parágrafos do texto
escrito, além de um espaço duplo entre o título e o início da fá-
bula, dois espaços simples no meio do texto representando uma
passagem temporal e outro espaço simples representando o final
do texto e a moral da fábula.
Os espaços existentes na produção imagética representam
aspectos coesivos, pois destacam e demarcam o título e a moral
da fábula, além da passagem de tempo. Consideramos que esse
aspecto coesivo contribui, também, para a coerência da produ-
ção textual imagética do gênero discursivo/textual fábula.
A coesão imagética ocorre pela relação existente entre as
imagens no interior do texto atrelada à sintaxe visual, possibi-
litando articular, relacionar e conectar todas as imagens e os
recursos disponíveis na construção de um texto de natureza
visual; enquanto a coerência imagética ocorre a partir das re-
lações de sentido que o sujeito estabelece entre as imagens do
texto com base em seus conhecimentos de mundo, prévios e do
gênero discursivo/textual utilizado, estando intimamente ligada
à semântica.
Em relação à coesão no texto imagético, consideramos:
(i) Associação coesiva — consiste na relação semântica
das imagens com as ideias que elas sugerem.
Figura 4: Coesão por Associação coesiva: verbo agarrar

A palavra “agarrou”2 é representada na figura 4 pela ima-


gem do ratinho entre duas luvas verdes representando mãos. A
ideia do verbo agarrar, gerada pelo conjunto das três imagens,
resulta em uma relação semântica por associação de ideias por
meio de imagens. O núcleo semântico do conteúdo imagético


2
“Agilmente, o mesmo o agarrou, e estava pronto para matá-lo”. (ESOPO, s.d.)
está na imagem das luvas, uma vez que o sentido de agarrar é
construído na repetição de duas imagens que “seguram” a ima-
gem que está no centro, compartilhando o mesmo recurso coe-
sivo da figura 5:
Figura 5: Coesão Associação coesiva: verbo prender

Nesta figura, as duas cordas representam não mais agarrar,


mas “prender”3 o animal que está no centro das imagens: o leão.
Igualmente representa uma associação coesiva.
(ii) Reiteração — é a retomada de uma imagem já introdu-
zida no texto.
Figura 6: Coesão por Reiteração

A repetição das imagens do ratinho e do leão ao longo do


texto imagético estabelece a coesão por reiteração, pois reto-


3
“Estava preso e mal podia se mexer.” (ESOPO, s.d.)
ma imagens já introduzidas no texto, articulando a narrativa e
lembrando constantemente a fábula ao leitor, a partir dos seus
personagens.
(iii) Conexão — acontece quando as imagens estabele-
cem elos entre os segmentos do texto. Pode ocorrer de
duas formas: a) conexão simbólica e b) conexão por
contiguidade.

Figura 7: Coesão por Conexão simbólica e por contiguidade

A conexão simbólica ocorre entre imagem-imagem vincula-


das por ícones convencionais, a exemplo de setas, linhas, gestos,
dentre outros. Na figura 7, observa-se a flecha representando
a ideia de sequência, a partir de uma conexão simbólica e, ao
mesmo tempo, este ícone estabelece uma conexão por contigui-
dade, que acontece quando as imagens estabelecem uma relação
conectiva a partir da progressão temática, temporal ou espa-
cial. Neste caso, ocorreu uma conexão temporal, assim como, na
imagem das ampulhetas marcadas na mesma figura.
Quanto à coerência no texto imagético, concebemos:
(i) Continuidade semântica — acontece pela repetição de
imagens relacionadas semanticamente.
Figura 8: Coerência por Continuidade semântica

A ideia de imobilidade resultante de uma situação prisional


do leão está representada na figura 8 pelo conjunto de imagens
do cadeado e da âncora, que configuram uma coerência por
continuidade semântica, a partir da associação coesiva entre as
duas imagens, tendo em vista que o cadeado remete ao sentido
de preso e a âncora ao de imóvel.
(ii) Associação contextual — acontece quando imagem-
-imagem se relacionam a partir de interpretações e expe-
riências socioculturais de cada sujeito.

Figura 9: Coerência por Associação contextual

A moral da fábula O Leão e o Ratinho, na versão escrita, é


a seguinte: “Os pequenos amigos podem se revelar os melhores
e mais leais aliados”. Para representá-la, os sujeitos realizaram
uma associação contextual de imagens a partir de um conjunto
de minorias, introduzido pelo ícone de menos ( — ); entre essas
minoriais, destacaram: sociais, raciais, religiosas e culturais as-
sinaladas pela presença dos emojis caracterizando raça, religião,
gênero, idade, deficiências. O ícone de menos ( — ) e a seta com
a palavra “END” estabelecem um conjunto de conexão simbóli-
ca; ao mesmo tempo, essa última representa o fechamento ou a
conclusão da fábula, introduzindo sua moral.
Segundo Antunes,
A coerência não depende apenas da materialidade do texto. […] ela
é construída na relação colaborativa entre interlocutores, a partir
de um contexto, de uma situação comunicativa qualquer e aliada ao
conjunto de saberes já sedimentados na memória. O contexto em
que acontece o evento sociocomunicativo é parte constitutiva dessa
coerência; é, portanto, muito mais que um item acessório ao qual
eventualmente se recorra. (ANTUNES, 2017, p. 75)

O critério de coerência discutido pressupõe um propósito


comunicativo, uma intenção do sujeito a partir da reelaboração,
seleção, ressignificação das imagens e a presença de sentidos
envoltos no texto que o leitor se esforça para identificar, tendo
como possíveis marcas de construção de sentido o conhecimen-
to do gênero discursivo/textual.

Considerações finais
Este capítulo discutiu a coesão e a coerência na fábula ima-
gética, “O Leão e o Ratinho”, produzida por alunos do curso
de Letras, a partir do uso de imagens do teclado do aplicativo
WhatsApp.
Os exemplos ilustrativos utilizados para a discussão pro-
posta revelaram que as imagens substituem o texto verbal, sem
prejuízo para os critérios da coesão e da coerência, apontando
que é possível estabelecê-los em produções textuais imagéticas.
Alguns aspectos merecem destaque a título de conclusão:
(i) os sujeitos ressignificaram e reelaboraram vários segmentos
do texto, objetivando sintetizar os fatos mais relevantes da fá-
bula original para a produção de sentido da fábula imagética;
(ii) em relação ao critério da coesão, observamos: a associação
coesiva quando os sujeitos relacionaram, semanticamente, ima-
gens; a reiteração quando eles retomaram a mesma imagem em
diferentes passagens da fábula, o que favorece, possivelmente,
a leitura imagética; a conexão simbólica, isto é, o recurso coe-
sivo utilizado para remeter às imagens vinculadas por ícones
convencionais; a conexão por contiguidade temporal quando
as imagens usadas pelos sujeitos estabeleceram uma relação a
partir da progressão do tempo da narrativa; (iii) em relação ao
critério da coerência, identificamos: a continuidade semântica
através do uso de imagens pertencentes a um mesmo campo
semântico; e a associação contextual relacionada ao uso de ima-
gens que estabelecem interpretações socioculturais dos sujeitos.
Acreditamos que os critérios da textualidade, coesão e coe-
rência, acontecem em um continuum, tanto na produção de tex-
tos verbais escritos quanto na produção de textos imagéticos,
uma vez que esses critérios estão correlacionados e vão além da
materialidade linguística.

Referências
ANTUNES, I. Textualidade: noções básicas e implicações pedagógicas. São Paulo:
Parábola, 2017.
BAGNO, M. Fábulas fabulosas. In: Carvalho, Maria Angélica Freire de;  Mendonça,
Rosa Helena. (orgs.). Práticas de Leitura e Escrita. Brasília: Ministério da
Educação, 2006. 180 p.
CAIADO, R. V. R. O trabalho com a oralidade em tecnologia digital móvel: debate
regrado via WhatsApp. Trabalho apresentado no XXXI Encontro Nacional
da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguís-
tica — ANPOLL. Campinas — SP, 2016.
CAIADO, R.; LEFFA, V. J. A oralidade em tecnologia digital móvel: debate regrado
via WhatsApp. Revista Digital Hipertextus. Recife, Universidade Federal de
Pernambuco — UFPE, jun. 2017, v. 16, n. 1, pp. 109-133.
CAIADO, R.; FONTE, R.; BARROS, I. Revista Digital Hipertextus. Recife, Univer-
sidade Federal de Pernambuco — UFPE, dez. 2017, v. 19, n. 2.
FONTE, R.; CAIADO, R. Multimodalidade e Tecnologia Móvel Digital: a relação
entre imagem e texto verbal na produção de sentidos. In: ACIOLI, M. et al
(Orgs.). Linguagem: entre o sistema, o texto e o discurso. Curitiba: CRV, 2015,
pp. 39-50.
FONTE, R.; CAIADO, R. V. R. Práticas discursivas multimodais no WhatsApp: uma
análise verbo-visual. Revista Desenredo. Programa de Pós-graduação em Le-
tras da Universidade de Passo Fundo. v. 10, n. 2, jul/dez 2014, pp. 475-487.
GEDDES, S. J. Mobile learning in the 21st century: benefit for learners. 2004. Dis-
ponível em: <http://knowledgetree.flexiblelearning.net.au/edition06/download/
geddes.pdf>. Acesso em: 16 ago. 2018.
SANTAELLA, L. Leitura de Imagens. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2012.
CAPÍTULO 3 FONORIMA:
Um aplicativo para estimular
habilidades fonológicas em
crianças disléxicas voltado para
atividades com rima
Luciana Cidrim (UNICAP)
João Gabriel Sodré da Mota (UNICAP)
Antonio Roazzi (UFPE)
Maíra Roazzi (EAR)
Francisco Madeiro (UNICAP)

1. Introdução

A
o aprender os princípios de um sistema alfabético,
como é o caso do Português Brasileiro, a criança deve
ser instruída a perceber que a fala é composta por
unidades que podem ser segmentadas. Segundo Ca-
pellini e Conrado (2016) esse processo exige tanto o envolvi-
mento de habilidades, como consciência fonológica e memória
de curto prazo fonológica, como uma instrução formal sobre as
relações entre fonemas e grafemas.
A consciência fonológica, uma habilidade metalinguística
que envolve reflexão sobre as características da linguagem, é
um dos pré-requisitos mais importantes para aprender a ler e
escrever no início do processo de alfabetização, visto que o com-
ponente do processamento fonológico está relacionado à habili-
dade de perceber, reconhecer, refletir e manipular os segmentos
fonológicos (sílabas e fonemas) que compõem as palavras da lin-
guagem falada.
A consciência fonológica constitui, portanto, a ponte essen-
cial que conecta a linguagem oral e o sistema de signos convencio-
nalmente usados para designá-la. Assim, as crianças percebem,
discriminam, produzem, manipulam os sons da linguagem oral
e, de acordo com suas habilidades fonológicas, as transformam
em signos. Essa aquisição e domínio ocorre paulatinamente e
parte de uma sensibilidade superficial para uma mais profunda,
ou seja, inicialmente há a percepção dos segmentos maiores da
fala — palavras e sílabas — e, posteriormente, é possível lidar
com os menores segmentos da fala: os fonemas. Somente com o
desenvolvimento completo da competência fonológica pode-se
alcançar a representação sonora dos grafemas (COSTA; SOUZA;
DE ÁVILA, 2011; BURKE; COADY, 2015; CAPELLINI; PINHEI-
RO, 2015; HARTEN; ROAZZI; CARVALHO, 1995; ROAZZI;
CARVALHO, 1991; ROAZZI et al., 2013).
As habilidades de reconhecer e produzir rima e aliteração,
componentes da consciência silábica, são exercitadas com fre-
quência no ambiente escolar (WAGENSVELD et al., 2013), mes-
mo sendo habilidades adquiridas pelas crianças muito tempo
antes de iniciar a escolarização formal. A aliteração é trabalhada
anteriormente à rima, pois, no processo de alfabetização, há vá-
rias relações entre palavras que começam da mesma forma, que
começam com uma determinada letra, com a letra do nome da
criança, dos colegas, dentre outras estimulações. Já as atividades
de rima são realizadas no ambiente escolar desde a pré-escola de
forma implícita — com o uso de músicas, parlendas — mas as ati-
vidades explícitas que as envolvem são iniciadas posteriormente
às de aliteração (COSTA; SOUZA; DE ÁVILA, 2011).
A consciência fonológica permite a identificação de rimas,
de aliteração e de fonemas que podem ser manipulados para a
criação de novas palavras. Também faz da linguagem um objeto
de pensamento, possibilitando a reflexão sobre os sons da fala,
o julgamento e a manipulação da estrutura sonora das palavras
(FREITAS, 2003). É uma habilidade definida como a capacidade
para refletir sobre a estrutura sonora da fala bem como manipu-
lar seus componentes estruturais apresentando uma estreita re-
lação com o aprendizado do código escrito (MORAIS et al., 1998).
Estudos de Bradley e Bryant (1983) e Thompson e Goswa-
mi (2008) revelam que a percepção de rima se desenvolve na-
turalmente por volta dos 4 ou 5 anos de idade, sendo uma
habilidade fonológica inicial que irá colaborar para o apareci-
mento da consciência fonêmica. De fato, já a partir dos 4 anos
de idade, é comum notar crianças prestando mais atenção aos
aspectos fonológicos (sons) da linguagem falada, mostrando-se
particularmente sensíveis à cadência e ao ritmo da linguagem,
por exemplo, apreciando a rima como musicalidade, ritmo
(implicitamente) e reconhecendo a rima depois de trabalhar
na última sílaba da palavra (explicitamente). Essa percepção
da rima e dos ritmos da linguagem apresenta um efeito dire-
to, contribuindo para a criança perceber que palavras podem
compartilhar segmentos sonoros idênticos. Adicionalmente,
esta consciência da relação entre palavras baseadas na rima
leva, antecipadamente, ao conhecimento da relação entre as
palavras também no plano ortográfico.
Crianças com transtornos específicos de aprendizagem,
como é o caso da dislexia, apresentam desde cedo dificuldades
nas habilidades que envolvem consciência fonológica, como é o
caso da rima e aliteração. A dislexia é uma dificuldade especí-
fica de linguagem, de origem constitucional, caracterizada por
dificuldades na decodificação de palavras isoladas, normalmen-
te refletindo insuficiência do processamento fonológico (LYON;
SHAYWITZ; SHAYWITZ, 2003). De fato, uma criança disléxica
exibe um transtorno específico de aprendizagem, caracteriza-
do pela dificuldade em fazer uma leitura precisa e/ou fluente.
Apresenta um déficit no sistema de linguagem no nível fonoló-
gico que prejudica sua capacidade para segmentar a palavra es-
crita em seus componentes fonológicos subjacentes, consistindo
em uma dificuldade específica nos processos de linguagem para
reconhecer, reproduzir, identificar, associar e ordenar os sons e
as formas das letras, organizando-os corretamente, ou seja, difi-
culdades em fixar a correspondência entre sinais gráficos e sons
e automatizar o processo de conversão (ROAZZI et al., 2016).
As dificuldades dos disléxicos na decodificação de palavras
isoladas são muitas vezes inesperadas em relação à idade e ou-
tras habilidades cognitivas e acadêmicas. A dislexia é manifes-
tada por dificuldades linguísticas variadas, incluindo, normal-
mente, para além das alterações de leitura, um problema com a
aquisição da proficiência da escrita e da soletração.
Desenvolvimentos recentes utilizam aplicações das Tecno-
logias da Informação e da Comunicação (TIC) para apoiar as
necessidades de aprendizagem de crianças com dificuldades de
leitura e escrita, mais especificamente para o público de crian-
ças com dislexia (CIDRIM; MADEIRO, 2017; BORHAN et al.,
2018; CIDRIM; BRAGA; MADEIRO, 2018; KNOOP-VAN CAM-
PEN; SEGERS; VERHOEVEN, 2018; LEITE; CIDRIM; MADEI-
RO, 2018; LUCENA; CIDRIM; MADEIRO, 2017).
Este capítulo apresenta um aplicativo para apoio à aprendi-
zagem da escrita por crianças disléxicas voltado para atividades
com rima.

2. Revisão da literatura
O sistema alfabético de escrita associa um componente au-
ditivo fonêmico a um componente visual gráfico (correspondên-
cia grafofonêmica) e para compreensão do princípio alfabético
são necessários três fatores: (1) a consciência de que é possível
segmentar a língua falada em unidades distintas; (2) o conheci-
mento de que essas mesmas unidades repetem-se em diferentes
palavras e (3) a ciência das regras de correspondência entre gra-
femas e fonemas (GERMANO; PINHEIRO; CAPELLINI, 2009).
De fato, para adquirir a correspondência entre letra (grafema)
e som (fonema) é importante que a criança pense nas palavras
como compostas de muitos sons, que podem ser decompostos e
recompostos, analisados e manipulados, e reconheça semelhan-
ças e diferenças fonológicas entre palavras. Destaca-se que os
dois primeiros fatores são aspectos da consciência fonológica, e
isto a coloca como indispensável no desenvolvimento da leitura
e da escrita (BARRERA; MALUF, 2003; GUIMARÃES, 2003;
ROAZZI; MINERVINO; MELO, 2014).
A consciência fonológica é dividida em níveis, sendo estes:
consciência da sílaba, consciência de elementos intrassilábicos
e consciência fonêmica. A consciência de sílaba e de elementos
intrassilábicos permite que o indivíduo reconheça rimas, uni-
dades fonológicas semelhantes no final das palavras (ex.: cama/
ama), e reconheça também unidades fonológicas semelhantes
no início das palavras (pato/pacote) (FREITAS, 2003; ALVES,
2009). A consciência de sílaba e de fonemas, além de auxiliar na
aquisição da leitura, é forte preditora para o domínio da escrita
(FREITAS, 2003).
As habilidades fonológicas são necessárias para a lei-
tura e escrita, na medida em que a consciência fonológica é
um aspecto a ser integrado no reconhecimento de palavras
(CUNHA; CAPELLINI, 2009; CAPELLINI; SANTOS; UVO,
2015; UVO; GERMANO; CAPELLINI, 2017). A linguagem es-
crita deve ser considerada como um sistema de representação
da língua, cuja aprendizagem significa a apropriação de um
novo objeto de conhecimento (ROAZZI et al., 2015). A percep-
ção dos sons durante a produção da linguagem oral influencia
diretamente o desenvolvimento da leitura e da escrita (CA-
PELLINI; OLIVEIRA, 2003; PEDOTT; CÁCERES-ASSENÇO;
BEFI-LOPES, 2017).
Um teste de rima envolve a identificação de unidades cha-
madas intrassilábicas e é realizado a partir da detecção de dois
fonemas comuns. Quando essa habilidade encontra-se altera-
da, é o mecanismo gerativo de produção de palavras a partir
de sons e sílabas que se encontra prejudicado (BRYANT et al.,
1990; DUNCAN; SEYMOUR; BOLIK, 2007).
Na dislexia há dificuldade acentuada quanto às habilidades
fonológicas, constatadas pelo desempenho inferior em tarefas de
rima e aliteração quando comparado a grupos de bons leitores,
pois atenção, discriminação e percepção de segmentos seme-
lhantes da palavra encontram-se comprometidas (CAPELLINI­;
GERMANO; CARDOSO, 2008).
As primeiras manifestações observadas em crianças com
dislexia aparecem na decodificação fonografêmica, quando
a criança precisa entender e utilizar a associação dos sinais
gráficos com as sequências fonológicas das palavras no início da
alfabetização (ASHA, 2005).
Pesquisadores têm defendido a hipótese do déficit fonológico
como um dos fatores causais da dislexia. Os disléxicos apresen-
tam dificuldades no uso da rota sublexical para a leitura, ou
seja, no uso do mecanismo de conversão grafema-fonema em
atividades que exigem habilidades fonológicas, como em leitura
de palavras inventadas ou na categorização de palavras quan-
to aos sons (BRADLEY; BRYANT, 1983; OLSON et al., 1990;
GALABURDA; CESTINICK, 2003; ÁVILA, 2004; SHAYWITZ,
2006; COSTA; SOUZA; DE ÁVILA, 2011; NAVAS, 2012).
A hipótese do déficit fonológico tem sido sustentada por
pesquisas em que os resultados apontam atrasos quanto à sen-
sibilidade à rima, aliteração e segmentação fonêmica durante o
desenvolvimento da leitura por crianças com dislexia (VUKO-
VIC; WILSON; NASH, 2004; SAVAGE et al., 2005; THOMSON;
GOSWAMI, 2008; GERMANO, 2008).
As crianças com dislexia têm dificuldades em perceber pa-
res de fonemas acusticamente semelhantes. A categorização do
fonema é essencial para a percepção da fala. Nos bons leitores,
as representações fonológicas estão categorizadas e armazena-
das na memória de longa duração ou longo prazo, formando
um repertório básico com o qual a escrita pode ser associada
(LÓPEZ-ESCRIBANO, 2007). Dentre as falhas no processamen-
to fonológico, encontra-se a dificuldade em realizar tarefas como
a de análise, síntese, segmentação e omissão de fonemas e rimas
(DALLY; 2006; GERMANO; PINHEIRO; CAPELLINI, 2009).
Em pesquisas realizadas com escolares disléxicos foram
evidenciadas dificuldades quanto à percepção e produção de
rima, mostrando que o déficit fonológico compromete a repre-
sentação, a análise e a manipulação fonêmica (que são necessá-
rias para gerar a representação interna da estrutura fonológica
da palavra, a partir da palavra escrita, antes mesmo de o signifi-
cado da palavra ser acessado (BARROS; CAPELLINI, 2003; CA-
PELLNI; PADULA; CIASCA, 2004). Para Germano, Pinheiro e
Capellini (2009) crianças com dislexia apresentam dificuldades
quanto à identificação de rima e produção de palavras com o
som dado, sugerindo um déficit em acessar os códigos, represen-
tações e armazenamento fonológicos. Esta dificuldade tem um
impacto sobre a aprendizagem escolar e as atividades da vida
diária que exigem leitura de textos escritos.

3. O aplicativo
O aplicativo foi desenvolvido para dispositivos Android e
é voltado para o uso educacional e clínico. A atividade propos-
ta no aplicativo é um treinamento com rima e apresenta como
recursos tecnológicos pistas auditivas, por meio da conversão
texto-fala para facilitar o reconhecimento da rima, e a escrita
das palavras na tela, por meio do touch screen, para tornar a
atividade mais atrativa.
Na Figura 1 é possível observar a tela inicial do aplicativo com
os botões de ‘iniciar’, ‘instruções’, ‘gerenciar sessões’ e ‘opções’.
Ao selecionar ‘iniciar’, o usuário é direcionado para a tela
de ‘criação das palavras’ que irão compor uma lista. No aplica-
tivo é possível adicionar, editar ou excluir uma sessão já cria-
da possibilitando que as listas sejam modificadas por meio do
botão ‘gerenciar sessões’, onde estarão disponíveis as sessões
salvas para acompanhamento da evolução da criança.
Na Figura 2 é apresentada uma sessão em que foram adi-
cionadas palavras do cotidiano (comuns) para a realização do
treinamento com rima. O aplicativo permite a criação de listas
com palavras em língua portuguesa. Da lista de palavras cria-
da, apenas uma será a palavra-alvo. Selecionada a palavra-alvo
(Figura 3), o usuário inicia a sessão.
Ao selecionar ‘começar’ (Figura 3) as palavras surgirão em
velocidade lenta,  uma por vez, na parte inferior da tela (Figura
4) e começarão a subir até o limite superior da tela. No momento
em que a palavra surge, é acionada automaticamente uma ‘pista’
auditiva que reproduz a palavra através da conversão texto-fala.
Enquanto a palavra se desloca no sentido do topo da tela, o usu-
ário deverá ‘tocar’ na palavra quando rimar com a palavra-alvo.
Na Figura 5 é apresentada uma tela com o resultado de
uma atividade em que a palavra-alvo é ‘gato’. Foram utiliza-
das as palavras ‘casa’, ‘rato’ e ‘pato’ para o treinamento com
rima. Ao final da sessão, após o usuário ter ou não ‘tocado’ na(s)
palavra(s) que rima(m) com ‘gato’, é apresentado um resumo do
que foi realizado, podendo ser salvo ou não.
A cada sessão, o usuário tem três vidas indicadas por três
corações no canto inferior esquerdo da tela (Figura 6) e alcan-
çará uma pontuação máxima caso acerte todas as rimas criadas
na sessão. Se errar, perderá uma vida. Ao final da sessão ou ao
esgotar as três vidas, surge uma mensagem de fim de jogo, para-
benizando o usuário e apresentando a sua pontuação. 
Em ‘opções’ o usuário pode modificar a interface alteran-
do, por exemplo, a cor do background da aplicação (Figura 7).


Figura 1 – Tela inicial do aplicativo Figura 2 – Tela de criação das palavras

Figura 3 – Tela de início da sessão Figura 4 – Tela da sessão

Figura 5 – Tela da atividade Figura 6 – Tela de pontuação


Figura 7 – Tela do background

4. Considerações finais
Foi verificado na revisão da literatura a importância da ha-
bilidade de consciência fonológica na aprendizagem da leitura
e da escrita em crianças disléxicas e não disléxicas. Ressalta-se
a importância de considerar esta habilidade, tanto através de
programas de monitoramento (YOPP, 1988; YOPP, 1995) pro-
movendo o seu desenvolvimento, como potencializando o seu
desempenho através de aplicativos e treinamentos específicos
desde o pré-escolar até o ensino fundamental.
A proposta deste aplicativo está alinhada com uma litera-
tura que aponta a validade do uso de tecnologias no contex-
to pedagógico visando a aquisição das aptidões básicas para
a aprendizagem da leitura e da escrita. O uso de aplicativos,
­softwares, e treinamentos computadorizados para a aquisição da
consciência fonológica favorece, de fato, uma mais rápida apren-
dizagem dessas competências, comparativamente com progra-
mas que utilizam materiais tradicionais sem aproveitar as po-
tencialidades das tecnologias que têm demostrado ser eficazes
nas fases iniciais da alfabetização (TORGESEN; BARKER, 1995;
MIODSUR; TUR KASPA; LEITNER, 2000; MAGNAN; ECAL-
LE, 2006; HSU, 2011; GOFFREDO et al., 2016).
Pode-se argumentar, portanto, que as características dos
programas de alfabetização educacional que exploram as fun-
cionalidades inerentes a aplicativos e programas informatizados
podem determinar um alto nível de ativação das funções aten-
cionais, favorecendo, assim, uma aprendizagem mais eficaz.
Neste capítulo foi introduzido um aplicativo para treinamento
de sessões com rima que podem ser criadas de acordo com as difi-
culdades de cada criança visando favorecer as habilidades de cons-
ciência fonológica de um modo geral. O aplicativo permite esta-
belecer níveis diferentes de complexidade das palavras utilizadas.
Como trabalhos futuros, pretende-se investir nos elementos
de interface gráfica do aplicativo. A partir de um maior aprimo-
ramento tecnológico do aplicativo, podem ser realizados estudos
que visem avaliar como a intervenção por meio da manipulação
de sons das palavras, como a rima, pode favorecer a aprendi-
zagem das habilidades de consciência fonológica em crianças
disléxicas e não disléxicas.

Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), pela concessão da bolsa de apoio financeiro
à primeira autora, e ao Conselho Nacional de Desenvolvimen-
to Científico e Tecnológico (CNPq), pela concessão de Bolsa de
Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação (PIBITI)
ao segundo autor.

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CAPÍTULO 4 O PROCESSO
DE MUDANÇA DE POSIÇÃO
DE SUJEITO GAGO
PARA SUJEITO FLUENTE:
Uma análise discursiva em grupo
de apoio no Recife
Claudemir dos Santos Silva (UNICAP)
Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo (UNICAP)

Introdução
[…]Vencer o inimigo invencível
[…]Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
[…]
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição[…].
(Chico Buarque; Maria Bethânia).

S
abidamente existe a necessidade de maiores informações
e esclarecimentos em relação à gagueira, um distúrbio da
linguagem que tem afligido e acarretado malefícios na
vida social, familiar e escolar dos sujeitos. Diante des-
sa realidade, constatamos que desde a mais tenra idade, até os
dias atuais, ainda há muito preconceito e ignorância, em rela-
ção àqueles que se veem na condição de sujeitos com gagueira.
Isso porque, enquanto falantes, somos situados historicamente
e inscritos em formações discursivas (FD)1, que disseminam na
comunidade, em grupos, suas crenças, valores culturais, sociais,
exigindo, no caso, da FD da gagueira, um sujeito falante sem pau-
sas prolongadas, hesitações ou repetições fonêmicas na fala, na
maioria das vezes, por desconhecer a instabilidade da fluência.
Em decorrência disso, sujeitos com gagueira, além de se cobra-
rem muito, formam uma imagem estigmatizada de falante, porque
estão circunscritos em uma ideologia do bem falar2. A sociedade, as-
sim, inscreve-o numa suposta fala perfeita, onde essa FD ignora a
linguagem desses falantes e até interfere nela, não admitindo erros,
cobrando uma fluência absoluta na fala, sem deslizes, erros e/ou
falhas. Considerando essa argumentação, passamos a utilizar a ex-
pressão sujeito-gago, com hífen, uma vez que compreendemos que
ele foi constituído ideologicamente como mal falante, na infância,
e está nesta FD (da gagueira). Por outro lado, os sujeitos-fluentes,
ao contrário, só com o passar do tempo, quando começam a ques-
tionar os dizeres anteriores, inscrevem-se na FD da fluência, en-
tendendo que pausas, prolongamentos e/ou bloqueios fazem parte
do processo natural de linguagem e, consequentemente, passam a
se ver como sujeitos que gaguejam, porém não se cobrando mais,
porque a gagueira é vista como algo natural.
É importante destacarmos que, ao assumirmos a posição
de autoria deste trabalho, configuramo-nos como: 1) sujeitos
professores/pesquisadores da gagueira, onde, sendo analistas do
discurso, temos um interesse em comum: o estudo aprofundado

1
Uma FD corresponde a um domínio de saber, constituído de enunciados dis-
cursivos que representam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente, regu-
lando o que pode e deve ser dito (PÊCHEUX, 1988, p.160). Já para Orlandi (1996),
trata-se de lugar do sentido, da metáfora, é função da interpretação, espaço da
ideologia (ORLANDI, 1996, p. 21).
2
Tal ideologia perpassa o imaginário social do cotidiano e sustenta relações de
comunicação em que trechos de fala disfluente não são reconhecidos como lingua-
gem, como se tivessem sentido; são reconhecidos apenas por sua forma (FRIED-
MAN e PASSOS, 2007, p.147).
da gagueira sob a ótica discursiva, que procura olhar a gagueira
em grupo de apoio; 2) o primeiro autor desse trabalho já foi um
sujeito identificado à FD da gagueira, mas hoje, mudou de posi-
ção e se vê como sujeito fluente, com momentos de disfluência,
que já não se constituem mais como um problema.
Portanto, nesse contexto, circunscrevemos este capítulo,
como um trabalho que versará, basicamente, dando atenção à
saúde e educação, propondo o estudo da gagueira sob o prisma
discursivo, em grupo de atendimento, “que inclui, necessaria-
mente, o sujeito e a linguagem em sua abordagem e vê a gaguei-
ra como um lugar de subjetivação discursiva” (AZEVEDO, 2000,
p.118), não tratando a gagueira como uma doença passível de
cura, mas, ao contrário, de acordo com os estudos de Azevedo
(2000; 2006; 2013; 2016; 2018); Petrusk (2013); Silva (2016); Ca-
valcanti (2016), a gagueira é compreendida como um distúrbio
da ordem do discurso, que apresenta relação direta com os inter-
locutores, suas Formações Imaginárias (Fim) e, por consequên-
cia, atreladas às condições de produção (CP).
Em sintonia com as questões postas, até então, visando
compreender a dinâmica, a forma e o funcionamento da lin-
guagem dos sujeitos-gagos e sujeitos com gagueira (entendidos
como sujeitos-fluentes), a segunda autora mantém um Projeto
de Extensão, Ensino e Pesquisa, buscando refletir sobre o dis-
curso do sofrimento dos primeiros, gerados pela necessidade de
falar versus a dificuldade para falar, considerando-se a cobrança
do seu meio social. Assim, esse Grupo de Apoio, denominado
“Grupo de Estudos e Atendimento à Gagueira” (GEAG)3, tem
recebido tais sujeitos, além de ser espaço de ensino e pesquisa
para alunos da graduação em Fonoaudiologia e Letras e do Pro-
grama de Pós-graduação em Ciências da Linguagem, já tendo

3
Subdividido em grupos de: crianças; adolescentes (de 12 a 16 anos) e o de adul-
tos (a partir de 18 anos), com reuniões semanais todas as quartas-feiras, onde das
17.30h às 18.30h, ocorrem sessões com as crianças e adolescentes e depois das
18.30h às 20.00h, com adultos no laboratório de Práticas de linguagem, bloco G4,
7º andar, da UNICAP. A cada quinze dias, também são realizadas reuniões com as
famílias das crianças.
sido publicados inúmeros trabalhos de graduação, em forma de
TCC e PIBIC, além de dissertações de mestrado e teses de dou-
torado, já defendidos e em acompanhamento.
O trabalho no GEAG visa, entre outras questões, obter re-
sultados positivos na vida dos sujeitos que frequentam o gru-
po e, consequentemente, possibilitar reflexões nos respectivos
contextos sócio-histórico-culturais, bem como apoiar o processo
de mudança de posição discursiva, mostrando que a fluência
não é perfeita, pois fazem parte dela pausas, hesitações e pro-
longamentos. Sendo assim, afastamo-nos de postulados que res-
tringem a gagueira ao campo patológico, ao se apresentar como
uma manifestação que se dá no plano do corpo, ora sinalizando
para tensão muscular, alteração na respiração, na produção de
fala, ou ainda, como formação genética. Nesse sentido, assumi-
mos a posição de circunscrever o discurso como gênese e sítio
de surgimento e continuidade da gagueira, sob a forma pecu-
liar de efeito de interlocução e sentidos, uma vez que sujeito e
linguagem constituem-se mutuamente e, com isso, evidencia-
mos a mudança de posição de sujeito-gago para sujeito-fluente,
fazendo-os notar que possuem fluência e na prática, apoiá-los
no enfrentamento das diversas situações discursivas, seja quais
forem as suas formações imaginárias.
Considerando que o GEAG existe desde 2007 e vêm sendo
importante espaço de apoio à comunidade, ensino e pesquisa, o
presente capítulo pretende analisar o processo de mudança de
posição de sujeito-gago para sujeito-fluente em grupo de apoio
no Recife, tendo como o dispositivo teórico e analítico a Análi-
se do Discurso de linha francesa, fundada por Michel Pêcheux
(AD) e desenvolvida no Brasil por Eni Orlandi e seguidores.

1. Uma breve contextualização histórica sobre o Grupo de


Estudos e Atendimento à Gagueira (GEAG)
Os seres humanos enquanto sujeitos históricos, sociais e
ideológicos, nascem, crescem e, por fim, morrem, sempre in-
seridos em grupos familiares, escolares, religiosos e/ou profis-
sionais. É, nesses grupos, que “atravessarão experiências de
alegria e tristeza, saúde e doença, sucesso e fracasso, podendo
inclusive, obter as mudanças desejáveis” (BECHELLI; SAN-
TOS, 2005, p. 250). Nessa composição, registros apontam que
intervenções com grupos, segundo Machado et al (2007, p. 63),
começaram a ser implementadas no Brasil na década de 1980.
Entretanto, tais práticas ainda consistiam em agilizar o aten-
dimento e diminuir as listas de espera. De qualquer maneira,
podemos observar na literatura fonoaudiológica, “a partir de
meados de 1990, não só uma ampliação de relatos e estudos
acerca de práticas grupais, como o aprofundamento teórico em
torno destas”. Alguns desses trabalhos, além de propostas de
terapia grupal, sugerem, especialmente, no contexto da Saúde
Pública, a constituição de grupos como possibilidades de in-
tervenções preventivas e educativas, que visem à promoção da
saúde e da linguagem.
Atualmente, no Brasil, sobretudo na saúde pública, Frie-
dman; Passos (2007) esclarecem que as concepções de grupo,
coletivo, equipe, estão na ordem do dia. Cada vez mais, consta-
tamos a importância do trabalho grupal, onde se desenvolvem
diferentes tipos de grupos: com crianças, pais, famílias, idosos,
gêmeos, hipertensos etc. É necessário, portanto, que a formação
desses grupos fundamente-se em concepções que permitam a
focalização pretendida e a obtenção de resultados compatíveis
com objetivos previamente delineados4, que sem negar as pró-
prias bases etiológicas, sintomatológicas e terapêuticas, consti-
tuindo abordagens próprias para a operacionalização de grupos.
Sendo assim, “o grupo ressalta o papel do outro e facilita a ex-
pressão de alterações de linguagem, ao mesmo tempo em que
pede intervenção do terapeuta para proporcionar mudanças de
funcionamento linguístico” (FRIEDMAN; PASSOS, 2007, p.143)

4
Esta clínica é aquela que vai além da patologia para considerar o sujeito em
suas manifestações de linguagem, em sua posição no mundo, em sua maneira de
se relacionar com os outros (FRIEDMAN; PASSOS, 2007).
A preocupação em se estudar grupos, em especial nas ciên-
cias humanas e da saúde, segundo Souza et al (2011) tomou força
com o surgimento das grandes crises mundiais, época em que
se tornou fundamental trabalhar com grupos, em função da es-
cassez de agentes de saúde. Hoje, “além de possibilitar o aten-
dimento de grandes demandas em serviços públicos, o grupo
tem sua importância reconhecida na determinação do compor-
tamento individual” (SOUZA et al, 2011, p. 140). Nesse contexto,
o GEAG é fundado no 2º semestre de 2007, pela segunda au-
tora desse capítulo, tendo como objetivos principais: atender a
sujeitos com queixa de gagueira da comunidade, proporcionar
experiência profissional aos estudantes, melhorar as condições
sociais da população-alvo, gerar indicadores para a análise de
políticas públicas, incrementar a relação entre ensino, pesquisa
e extensão. Diante disso, o Grupo de Apoio se propõe a atender
crianças e pré-adolescentes (cuja faixa etária esteja entre 2 e 13
anos de idade), adolescentes e adultos (a partir de 14 anos), com
queixa de gagueira ou ter a queixa trazida pelo (a) responsável;
identificar os riscos de evolução, evitando a cronicidade das dis-
fluências apresentadas; proporcionar o encaminhamento neces-
sário, ao grupo ou a atendimentos especiais, às crianças que já
apresentem um quadro de gagueira instalada e realizar traba-
lhos direcionados à escuta das famílias dessas crianças e das que
se encontram em uma fase de gagueira natural (compreendida
como própria da aquisição de linguagem), ou não, já com um
quadro de gagueira atípica, com sinais de sofrimento pelo pro-
blema e de observação e resistência aos momentos de bloqueio.
No Grupo de Apoio, a questão da alta está bem atrelada à
abordagem proposta por Friedman e Passos (2007), que deixam
claro que não cabe ao terapeuta determinar o momento da alta
do participante, mas apontar a interpretação dos sinais ofere-
cidos por este, que deve falar sobre seu sofrimento e a relação
que isso possa ter com sua permanência no grupo. Com isso, os
sujeitos são, desde o começo do processo, convidados a assumir
sua alta. Cabe-lhes, portanto, trazer para o grupo, quando for o
caso, a intenção de deixar de frequentá-lo, a pretensão ou não de
retornar e seus motivos para tal. As estudiosas ainda reafirmam
que sair do grupo em caso de pessoas que voltam, nem sempre
é uma decisão de alta (FRIEDMAN; PASSOS, 2007; AZEVEDO,
2015; 2018a).
Com relação às estratégias, metas e metodologia de ação e
avaliação no GEAG, Azevedo (2018b) revela que há dois focos
principais:

A) Apoio
O funcionamento desse grupo se dá a partir do planeja-
mento diário realizado, previamente, pela coordenadora do pro-
jeto, professores e alunos. No GEAG, os sujeitos envolvidos par-
ticipam das atividades de linguagem, de acordo com os objetivos
planejados. Caso os objetivos não tenham sido alcançados por
completo, os mesmos poderão ser retomados na dinâmica das
atividades, posteriormente. Com os familiares, o aspecto prin-
cipal é a escuta, que perpassará todo o processo. Além disso,
podem ser realizadas palestras sobre temáticas específicas de
interesse da família e que contribuam para uma melhor com-
preensão do quadro de gagueira. Quando é necessário trabalhar
outra temática que não faça parte do conhecimento específico
da Fonoaudiologia ou Linguística, é solicitada a participação de
um profissional convidado.
Nesse espaço de apoio, há diversas atividades, tais como:
oficinas de trabalho corporal (respiração e relaxamento mus-
cular); trabalho proprioceptivo fonêmico; auto-observação de
linguagem; análise das Formações Imaginárias e das Condições
de Produção do discurso; interdiscursividade e encontro mensal
com as famílias de crianças e adolescentes com gagueira.

B) Estudos
A produção advinda das atividades implementadas consis-
te em dados importantes para o desenvolvimento de pesquisas
referentes ao Grupo de Apoio. Por isso, é importante a criação
de um banco de dados, que já vem sendo realizado. Dessa ma-
neira, as atividades são adaptadas às necessidades especiais de
seus participantes, funcionando também como um campo para
composição de acervo de dados, uma vez que todo o processo
passa por registro documental descritivo e videográfico.
Conforme se constata, o grupo oferece aos participantes um
espaço de convivência e inclusão social, nos quais os sujeitos
podem enfrentar suas dificuldades linguístico-discursivas e esta-
belecer processos alternativos de significação, pela evocação de
inúmeras práticas de linguagem, como, por exemplo, a conversa
sobre fatos de sua vida cotidiana, podendo nos mostrar que seus
discursos não se apagam frente aos problemas, de acordo com
Azevedo (2018a). Assim sendo, o grupo ressalta o papel do outro
e facilita a expressão de alterações de linguagem, ao mesmo tem-
po em que pedem intervenção do terapeuta para proporcionar
mudanças no funcionamento linguístico (FRIEDMAN; PASSOS,
2007). Reiteramos, ainda, que o trabalho com grupos se revela,
não como um espaço de prescrições, nem como um espaço mági-
co que gera transformações rápidas e eficazes, mas como local de
reflexões, de idas e vindas que permitem respeitar as diferenças
e apoiar-se nas experiências de outros para que cada um, dentro
de suas possibilidades, ressignifique a própria relação (GUARI-
NELLO; LACERDA, 2007). Logo, é a partir dessas vivências que
os sujeitos-gagos significam e se ressignificam enquanto sujeitos-
-fluentes, primeiro para si e, consequentemente, para o outro, ou,
melhor dizendo, no Grupo de Apoio, os participantes, entre um
discurso e outro, entendem e fazem-se entender por seus pares
discursivos durante todo o processo de linguagem.

2. Gagueira: a perspectiva linguístico-discursiva


As discussões em torno da gagueira engendram polêmicas
entre diferentes públicos, e ao longo da história, vêm ganhando
sentido na sociedade e seus respectivos contextos. Em estudos
recentes, Rocha (2015, p.11) informa que “5% da população apre-
senta gagueira em algum momento de suas vidas — isso repre-
senta quase dez milhões de brasileiros” (ROCHA, 2015, p.11).
Azevedo (no prelo) afirma, com dados atuais do IBGE, que este
número supera a população das cidades do Rio de Janeiro e Bra-
sília juntas. Conclui que a prevalência da gagueira é de 1% na
população. Assim, cerca de 2 milhões e 100 mil brasileiros ga-
guejam de forma crônica. Este número é maior do que a popula-
ção de Curitiba, Recife ou Porto Alegre.
Na literatura fonoaudiológica é possível identificarmos pro-
fissionais vinculados a uma determinada “escola”, sustentando
sua prática clínica a partir de um corpo de crenças comuns.
Nesse sentido, segundo Oliveira e Friedman (2006, p.01), “cada
clínico que defende uma teoria sobre a gagueira revela invaria-
velmente o paradigma que sustenta essa escolha, porque este
lhe impõe uma moldura”.
De certo, a gagueira é uma fonte geradora de muitos con-
flitos, que se refletem em sofrimentos pessoais dos sujeitos, até
a entrada no GEAG, quando percebem que não estão sozinhos.
Há, ainda, grupos que pesquisam a origem da gagueira na Neu-
rologia e na Genética, porém não será este o foco do nosso tra-
balho. Em outra via, a partir do olhar da Psicologia Social, o
problema se origina da existência, na sociedade, de uma ideolo-
gia do bem falar, o que geraria uma imagem estigmatizada de fa-
lante para quem gagueja, como as questões postas por Friedman
([1986] 2004; [1988] 2012; 1994; 2001; 2004; 2014; 2018a; 2018b).
A partir dos estudos da mencionada autora, as pesquisas
deram um salto na elaboração de conhecimentos que discorrem
em torno do viés subjetivo, por conseguinte, a Perspectiva Lin-
guístico-Discursiva na relação com a gagueira foi desenvolvida
por Azevedo (2000; 2006; 2013; 2015; 2018a), partindo da AD,
logo, quando olharmos o sujeito sob a ótica discursiva, a gaguei-
ra pode ser compreendida como um distúrbio5 dessa ordem, que

5
Trata-se de uma interrupção de uma continuidade (da fala), assim, o sujeito que
gagueja é fluente e apresenta momentos de gagueira e não o inverso (PETRUSK,
2013, p.15).
apresenta uma relação direta com as CP do discurso, que são
Formações Imaginárias, apresentando a relação de forças — os
lugares sociais dos interlocutores e sua posição relativa no dis-
curso, a relação de sentido- o coro de vozes, a intertextualida-
de, a relação que existe entre um discurso e os outros, a anteci-
pação — a maneira como o locutor representa as representações
do seu interlocutor e vice-versa, ou seja, “o sujeito experimenta
o lugar de seu ouvinte a partir do seu próprio lugar”(ORLANDI,
2011, p.126-158, grifos nossos).
Em virtude disso, a gagueira se apresentará caracterizada
pela ocorrência de repetições de sons, sílabas, palavras ou fra-
ses, hesitações, prolongamentos de fonemas e/ou bloqueios ten-
sos de sons (AZEVEDO, 2000; 2006; 2013; 2015; 2018a). Daí o
sujeito-gago falará de uma forma ou de outra, dependendo do
efeito que possa produzir em seu ouvinte. Constatamos, então,
que os sujeitos-gagos para Azevedo (2013, p. 147) são aqueles
“que apresentam, de antemão, a certeza da gagueira e que, antes
mesmo de falarem, já estão certos de que a palavra será repeti-
da, bloqueada, prolongada”. Pensar o sujeito-gago é refletir sobre
uma proposta terapêutica que o tire deste lugar e o insira em
outra situação de integração social: a de sujeito-fluente, conside-
rando a fluência como relativa, porque não há fluência linear e
é sempre relativa, tendo hesitações e repetições. Vale salientar
que a gagueira é marcada pela previsão do erro iminente. Há
uma certeza a priori deste erro e é a partir da possibilidade de
errar que o sujeito-gago opta por tentar evitá-lo ou adiá-lo (AZE-
VEDO, 2000; 2006; 2013; 2018a).

3. Procedimentos metodológicos
O estudo foi desenvolvido no Laboratório de Práticas de Lin-
guagem do Programa de Pós-Graduação da Universidade Católi-
ca de Pernambuco — PPGCL-UNICAP, 7º andar, Bloco G4, sala
C3-D7, entre agosto de 2014 a dezembro de 2017, onde está cir-
cunscrito o GEAG, que atende aos sujeitos-gagos, contando com
a atuação dos pesquisadores (coordenadora dos grupos, segunda
autora, doutorando em Ciências da Linguagem, primeiro autor,
bolsistas da graduação em Fonoaudiologia, de Iniciação Científi-
ca (PIBIC) e de Extensão, além de alunos voluntários). Nesse con-
texto, realizamos uma pesquisa qualitativa do tipo etnográfico,
pois de acordo com André (2008), uma das características dessa
pesquisa é o envolvimento num trabalho de campo, no qual o
pesquisador se aproxima de pessoas, situações, locais, eventos,
mantendo com eles um contato direto. Atrelado a isso, um es-
tudo longitudinal (prospectivo e/ou retrospectivo), propiciando
uma sequência temporal para estudar um processo ao longo do
tempo, investigando mudanças (HOCHMAN et al, 2005).
Esclarecemos que a pesquisa faz parte de um projeto maior
da segunda autora, intitulado: Aquisição e distúrbios de Lingua-
gem sob a ótica linguístico-discursiva, submetido e aprovado
pelo CEP/UNICAP sob o CAAE 61291316.3.0000.5206.
Ressaltamos que o participante desse trabalho, sujeito-gago
(sexo masculino) foi selecionado mediante contato prévio, aten-
dendo aos critérios abaixo, em que deveria: a) participar das ses-
sões do GEAG, que ocorre semanalmente às quartas-feiras, das
18h30 às 20h; b)ser de faixa etária acima de 18 anos e c) aceitar
livremente a participação na pesquisa e assinar o termo de livre
consentimento e aceitação (TCLE).
Para tanto, toda leitura precisa de um artefato teórico para
que se efetue, e à luz da AD, pudemos constituir o corpus discur-
sivo que nos levou à eleição do recorte discursivo da pesquisa
e posterior análise com base nos procedimentos do próprio ar-
tefato teórico-metodológico (ORLANDI, 1996), Dessa maneira,
para melhor compreendermos a proposta teórico-metodológica
da AD, bem como mais de seus conceitos teóricos basilares,
trataremos de analisar o processo de mudança de posição de
sujeito-gago para sujeito-fluente em grupo de apoio no Recife.
Salientamos que constituímos o recorte discursivo a seguir, por-
que compreendemos que, nele, o participante já mostra uma
avaliação da sua participação no grupo e podemos observar a
mudança de posição de sujeito-gago para sujeito-fluente, consi-
derando a fluência como relativa. Para tanto, mobilizamos as
seguintes concepções da AD: Formações Imaginárias (Fim) e
Formações discursivas (FD), já trabalhadas na teoria. É impor-
tante esclarecer que o sujeito se identifica a uma FD, mas, ao
questioná-la, se contraidentifica. Em seguida, pode se desiden-
tificar dessa FD (no caso em questão, da FD da Gagueira) e, ao
mesmo tempo em que se desidentifica, se insere em nova FD,
aqui, a FD da Fluência.
Informamos que o recorte discursivo está exposto em um
quadro, apresentando o sujeito-gago investigado (A), o pesquisa-
dor (P), e os números complementares a A são os segmentos dis-
cursivos, isto é, cada momento de fala do participante, marcado
em negrito o que nos parece mais evidente.

RECORTE DISCURSIVO

P. Você já fez parte do grupo?


S1. Não, é a minha primeira vez que eu venho pra cá. Meu nome é A, te-
nho 22 anos, moro em Nova Descoberta. O meu motivo que eu vim pra cá
é porque, eu vim querer saber desse modo de tratamento da gagueira. Eu
gaguejo tanto… Agora, vejo que não só sou eu que sou gago, mas
todos que estão aqui e que quer se tratado também.
P. Aos poucos você vai vendo que consegue falar! Aquela ideia de incapaci-
dade de que eu não consigo falar, foi criada por você. Precisamos eliminar
esse pensamento de que falar remete a gaguejar e simplesmente falar, sem
pensar, ir enfrentando as situações de fala […]
S2. E antes mesmo, né, quando eu cheguei aqui no primeiro dia, eu
acho que eu tava assim, né, a minha fala, tava mais baixa. Mas eu
acho que eu tô me achando mais melhor, porque eu antes pra falar
com alguém, minha mãe, onde eu moro, eu falava ruim mesmo […]
Mas eu mesmo tô assim: falo com um, falo com outro…falo normal
mais, despreocupado, falo, falo…
P. A tua inserção no grupo tem ajudado em que sentido, assim? Tu dizes
que já estás tendo uma melhora e tal…
S3. É porque, antes, assim, quando eu falava do modo mais calmo eu acha-
va ruim falar, quando falava baixinho, ficava travando… Ainda quando
eu vou falar trava muito ainda, mas eu acho que eu melhorei mais,
assim, agora, do que antes, tô mais melhor.
P. O Grupo tem te ajudado a ver o quê?
S4. É porque assim: eu antes pra falar eu tinha mais medo com alguém do meu
lado assim, né, mas agora, não, pra mim o que me ajudou mais foi o gru-
po… Porque eu antes tinha vergonha, nervoso pra falar, aí ficava ruim…
S5. Antes mesmo de vir, do meu primeiro dia, de eu vir pro grupo aqui, né,
eu tinha medo de falar com alguém na rua. Eu travava muito mes-
mo, […] gaguejava muito […] Mas, agora, eu falo mesmo normal, se
gaguejar ou sim ou não, aí, dali eu falo, vou falando…
S6. O meu momento que eu cheguei aqui, foi bem mal no grupo. Fi-
cava calado, cheguei aqui na metade de agosto do ano passado. […] Eu
antes pra falar era difícil, […] Eu era gago, tinha medo de falar com
os outros, todas as quartas eu venho pro grupo e tenho visto uma
grande mudança minha. Então, temos que falar […], né isso, professora?
P. É isso, sim!
S7. E também deixar que aquela confiança entre, mesmo você falando
ou travando, falando mal ou fluentemente, mas mesmo assim, fale
[…], minha mudança foi muito boa. Até minha mãe disse: “você está
ótimo mesmo!”.
P. Você acreditar que vai gaguejar, traz mais gagueira.
S8. Bom, quando eu cheguei aqui, no ano passado, em agosto, che-
guei cabeça baixa, não falava nada, bem calado […] Aí, agora, de-
pois de uns tempos depois, né, eu mudei! Porque eu tinha momen-
tos que eu travava, né, eu travo, mas eu falo, antes eu nem falava,
mas agora, eu enfrento, com disfluência ou não.
P. Quanto mais você se desligar de travar, menos você vai travar… é a
grande questão, né, quando você deixa pra lá, fala e pronto.
S9. […] Eu to aqui no grupo há um ano e três meses, né, […] vim bem
ruim pra cá, eu evitava falar com alguém, porque eu travava, né,
tinha bastante disfluência, tinha medo de falar, […], mas depois de
uns mês eu melhorei e comecei a falar mesmo com muita disfluên-
cia ou não, eu não quero saber e falo mesmo, né?!
S10. […] Tenho 25 anos, cheguei aqui no grupo no segundo semestre de
2014, pronto, de lá pra cá, eu tenho vindo […], e, eu mudei, dou umas
travadas em casa, quando eu fico preocupado, um tiquinho de nada, um
pouquinho, eu não fico tão preocupado como era antes, mas eu nem
ligo mais, eu extravaso em casa, com minha mãe, com meu pai, minha
família, meus amigos, e eles não ficam dizendo feito era antes: “oxe,
menino, tu tá ruim mesmo, né?” Eles nem falam isso mais, não me su-
focam mais e levo a minha vida assim: pergunto, tiro dúvida, tudo isso
depois que eu vim pro grupo aqui.

P. E está super bem…


O GEAG revela-se como um espaço de significação para
aqueles que se veem na condição de sujeitos-gagos, que, por
causa da sua inscrição na FD da gagueira, chegam silenciados,
acreditando veementemente ser a gagueira um problema que
irá impossibilitá-los de interagir com seus pares discursivos e,
na prática, fazendo-os deixar de enfrentar situações discursivas
diariamente nas esferas social, familiar e escolar.
Diante dessa postulação, ao lermos o recorte discursivo,
notamos a inscrição do sujeito em análise, na posição de gago,
declarando: Eu gaguejo tanto, e através da afirmação, revela-
-nos uma preocupação com a gagueira, no sentido de que não
seria natural estar nessa condição e, se isso ocorre, é porque há
algo de errado com a sua fala. Isso ocorre, porque na grande
maioria das vezes, o sujeito-gago é vítima da desinformação e
preconceito daqueles que não admitem, por desconhecer a ins-
tabilidade da fluência, a fala gaguejada, com isso, são postos à
margem da sociedade, identificados como anormais, doentes, se
sentem excluídos, sozinhos e, acabam silenciados ou silenciando
seus discursos. Por outro lado, o grupo se configura como um
espaço de acolhimento, apoio, trazendo muitos esclarecimentos
sobre a gagueira e as situações discursivas para os participantes,
fazendo-os ver que não estão sozinhos: Agora, vejo que não só
sou eu que sou gago, mas todos que estão aqui e que quer se
tratado também, como nos diz A. no segmento discursivo 1.
A partir da inserção no grupo de apoio, ou seja, ao longo
das sessões que ocorrem semanalmente, os sujeitos começam
a perceber, entre outras coisas, principalmente, como atesta
Friedman (2018c, s/p), “a ideia de que a fluência é absoluta é
um mito, porque não se sabe que fluência e disfluência não se
opõem; que a fluência inclui a disfluência”, uma vez que o co-
nhecimento de senso comum acaba disseminando a crença de
que a fluência é absoluta e a disfluência é um problema. A par-
tir de então, há, segundo os trabalhos de Petrusk (2013), Silva
(2016) e Azevedo (2013; 2018a) uma ressignificação discursiva e,
com o passar do tempo, há o questionamento de dizeres anterio-
res, a desidentificação da FD da Gagueira e a inscrição na FD da
fluência, passando a entender que pausas, prolongamentos e/ou
bloqueios fazem parte do processo natural de linguagem, con-
sequentemente, não se veem mais como sujeitos que gaguejam,
não se cobram, porque a gagueira é vista como algo natural.
Nessa nova FD, passam a perceber os momentos de gagueira
apenas quando eles acontecem e não mais antes.
Com o passar do tempo, ao longo das discussões em grupo,
ajudando no processo de desmistificações, entre elas, que o pro-
blema — conforme uma tendência normativa social — constrói
“a personagem de bom falante”, exigindo-se a necessidade de ajus-
tamento nos moldes de “ideologia do bem falar” (FRIEDMAN,
1986; 1994 2004). Com isso, observamos que os participantes
do grupo começam a refletir sobre tais ditames e, daí, perce-
bem que gaguejar é algo natural, mostrando, inicialmente, uma
mudança, como nos mostra o segmento discursivo 2: E antes
mesmo, né, quando eu cheguei aqui no primeiro dia, eu acho
que eu tava assim, né, a minha fala, tava mais baixa. Mas
eu acho que eu to me achando mais melhor, porque eu antes
pra falar com alguém, minha mãe, onde eu moro, eu falava
ruim mesmo […] Mas eu mesmo to assim: falo com um, falo
com outro…falo normal mais, despreocupado, falo, falo…
Estar despreocupado leva o sujeito A a falar, falar. Isso nos leva
a afirmar que na FD da gagueira há uma previsão do erro, po-
rém na FD da fluência, mesmo havendo momentos de gagueira,
eles só são observados após acontecerem.
No segmento discursivo 3, o sujeito diz; antes, assim, quan-
do eu falava do modo mais calmo eu achava ruim falar, quando
falava baixinho, ficava travando…Nesse sentido, mostra através
da modalização de tempo, que “hoje” não ocupa mais aquela
posição de vítima, pelo contrário, está inserido na FD da fluên-
cia, um espaço onde cabe bem o que ele complementa: Ainda
quando eu vou falar trava muito ainda, mas eu acho que eu
melhorei mais, assim, agora, do que antes, tô mais melhor,
por consequência, marca bem o rompimento com a FD da ga-
gueira, disseminando, através de posições discursivas que con-
firmam questões de falhas, disfluência, experiências anteriores
e discursos de impossibilidade.
Ao longo das sessões no GEAG, a estratégia grupal funcio-
na como uma égide significativa, assemelhando-se bastante à
dinâmica social cotidiana em que estamos inseridos, pois so-
licita a cada encontro que os sujeitos-gagos interajam com seus
pares discursivos, fazendo-se com que percebam e se sintam
valorizados diante de sua gagueira, sendo compreendida como
algo que faz parte da própria fluência. Tal afirmação fica evi-
dente no segmento discursivo 4, quando o sujeito explica: eu
antes pra falar eu tinha mais medo com alguém do meu lado assim,
né, mas agora, não, pra mim o que me ajudou mais foi o
grupo… Porque eu antes tinha vergonha, nervoso pra falar,
aí ficava ruim. E respaldado no segmento discursivo 5: Antes
mesmo de vir, do meu primeiro dia, de eu vir pro grupo aqui, né, eu
tinha medo de falar com alguém na rua. Eu travava muito
mesmo, […] gaguejava muito […] Mas, agora, eu falo mesmo
normal, se gaguejar, ou sim ou não, aí, dali eu falo, vou falando.
É importante esclarecermos que a gagueira não está cola-
da nem à vergonha, muito menos ao nervosismo, uma vez que
podemos nos sentir envergonhados ou tensos e não gaguejar-
mos. Da mesma forma, estar calmo e relaxado pode conduzir
à gagueira. Basta que haja previsão da fala gaguejada. Agora,
precisamos ver que há situações que levam a mais gagueira
ou menos gagueira, por exemplo, estar na companhia de fami-
liares ou colegas. Ao interpretarmos esses segmentos discursi-
vos, podemos notar a posição que o sujeito em análise ocupa,
mostrando-se, possivelmente, circunscrita em suas Formações
Imaginárias, em Condições de Produção plenamente atreladas
à antecipação, em que diante de um interlocutor, a seu ver, irá
censurá-lo, repreendê-lo.
Em relação às questões, delineadas, até então, Azevedo
(2000, p. 64), reitera que “a língua por si só não desloca o sujei-
to para a posição de gago, logo, para que haja gagueira, é abso-
lutamente fundamental existir o outro. Esse outro deve ocupar
a posição de intérprete”. Como efeito, o sujeito não é livre para
dizer o que quer, assim, a gagueira não se encontra naquele
que fala, assim como não é um problema do interlocutor, mas
relaciona-se às condições de produção e ao espaço do discurso,
em uma relação necessária com a exterioridade. Assim, a ga-
gueira não está na pessoa que fala, nem em seu ouvinte, mas
nesse espaço intervalar, no entremeio, no discurso (AZEVEDO,
2013; 2018a).
É na prática da linguagem que os sujeitos se constituem
mutuamente, sendo por meio desse processo, segundo Orlandi
(2013), com a palavra em movimento, que observamos o ho-
mem falando, entendendo e fazendo-se entender, ingressando
assim, na cultura, na ordem das trocas históricas e sociocultu-
rais. Daí, vemos que não há discurso neutro, pois todo discurso
produz sentidos que expressam as posições sociais, culturais,
ideológicas dos sujeitos da linguagem. Assim sendo, isso pode
ser constatado no segmento discursivo 6: O meu momento que eu
cheguei aqui, foi bem mal no grupo. Ficava calado, cheguei
aqui na metade de agosto do ano passado, […] Eu antes pra falar
era difícil, […] Eu era gago, tinha medo de falar com os outros.
Nesse sentido, de acordo com Petrusk (2013, p.75), “temos posi-
ções discursivas (controle de falas, falhas, antecipação, silencia-
mento, disfluência, experiências anteriores, previsões, discursos
de impossibilidade, silêncio)”. Nessa FD, a gagueira e disfluência
são vistas como erro, na medida em que se acredita em uma fala
perfeita, sem deslizes. Essas posições representam, no processo
discursivo, os lugares ocupados pelos sujeitos na estrutura de
uma formação social. Nessa FD, vemos que o participante do
GEAG se identificava (forma-sujeito), se inscrevendo na posição
sujeito que gagueja. Assim, o sujeito reproduz os sentidos ine-
rentes à FD na qual está interpelado. No entanto, por estar par-
ticipando ao longo da convivência em grupo e aprendendo, por
exemplo, que a fluência absoluta é um mito e que fluir, inclui
necessariamente, disfluir, os efeitos dessa ressignificação ficam
evidentes quando o sujeito finaliza: todas as quartas eu venho
pro grupo e tenho visto uma grande mudança minha.
No segmento discursivo 7, o sujeito em análise salienta os
efeitos dessa mudança na prática: mesmo você falando ou tra-
vando, falando mal ou fluentemente, mas mesmo assim, fale
[…], minha mudança foi muita boa, entendemos que anterior-
mente, havia situações discursivas, em que, por exemplo, dizia
“Eu era gago”, logo, mantinha-se na posição sujeito que gague-
java (AZEVEDO, 2000, p.59). Essa “prisão”, digamos assim, tam-
bém pode ser evidenciada no segmento discursivo 8, onde ele
relembra: Bom, quando eu cheguei aqui, no ano passado, em
agosto, cheguei cabeça baixa, não falava nada, bem calado
[…]. Discursos como esse cristalizam o sujeito numa posição que
atesta a sua gagueira. Os dois segmentos em análise retratam
bem a inscrição na FD da gagueira, bem como o “rompimento”
do sujeito e a sua identificação na FD da fluência, como ainda
nos mostra S8. Aí, agora, depois de uns tempos depois, né, eu
mudei! Porque eu tinha momentos que eu travava, né, eu tra-
vo, mas eu falo, antes eu nem falava, mas agora, eu enfrento,
com disfluência ou não. Isto marca bem que se trata de uma
mudança, mas para que ela aconteça, no processo de apoio em
grupo, também é enfatizado que o sujeito deve desprender-se de
discursos de impossibilidade, pois “na nova FD, ele se identifica
com outros saberes, ligados à outra forma-sujeito: espontaneida-
de ao falar, disfluência, falhas — vistas como constitutivas do
sujeito/linguagem” (PETRUSK, 2013, p.75).
Por fim, quando atentamos para a leitura e análise, inicial-
mente, do segmento discursivo 9: […] Eu to aqui no grupo há
um ano e três meses, né, […] vim bem ruim pra cá, eu evita-
va falar com alguém, porque eu travava, né, tinha bastante
disfluência, tinha medo de falar, […], mas depois de uns mês
eu melhorei e comecei a falar mesmo com muita disfluên-
cia ou não, eu não quero saber e falo mesmo, né?! Nesse
sentido, vemos uma rápida mudança de posição de sujeito-gago
para sujeito-fluente, isto é, o grupo funciona proporcionando
um grito de alerta e despertou o sujeito para o enfrentamento
das práticas discursivas. Com isso, algo impactou a sua vida
fazendo com que rompesse uma forma-sujeito que expressava
um discurso de impossibilidade, assumindo uma nova FD que
evidencia uma fluência que é imprevisível, onde o mais impor-
tante é fazer-se entender pelo interlocutor.
Entre muitas práticas desenvolvidas no grupo de apoio, uma
delas merece destaque: todas as vezes que recebemos novos par-
ticipantes, costumamos nos apresentar contando um pouco de
nós, trazendo experiências que acabam fortalecendo os antigos
e os que estão chegando. Esta situação pode ser constatada no
segmento discursivo 10, onde o sujeito se apresenta e fala um
pouco de suas vitórias e conquistas: […] Tenho 25 anos, cheguei
aqui no grupo no segundo semestre de 2014, pronto, de lá pra cá eu
tenho vindo […], e, eu mudei, dou umas travadas em casa, quando
eu fico preocupado, um tiquinho de nada, um pouquinho, eu não
fico tão preocupado como era antes, mas eu nem ligo mais,
eu extravaso em casa, com minha mãe, com meu pai, minha família,
meus amigos. Dessa maneira, de acordo com Friedman (2012,
p.12), “o bom falante é aquele que acredita na sua fala e nem
pensa sobre sua articulação”. Ainda, conforme a estudiosa, isso
significa que o modo espontâneo de falar se entretece entre fluir
e disfluir com base nas relações inter e intrassubjetivas singula-
res (FRIEDMAN, 2004).
A partir dos trabalhos com base teórica-metodológica na
AD, somente quando o sujeito passa a questionar as situações
discursivas da FD da gagueira, solo fértil que dissemina discur-
sos preconceituosos, carregados de nuances de intolerância, in-
capacidade e impossibilidades e assume uma nova forma-sujeito
em que estão inscritos dizeres que correspondem a uma fluên-
cia que não é absoluta, há uma mudança de posição discursiva
no sujeito, conforme as pesquisas de Petrusk (2013), Silva (2016)
e Azevedo (2013; 2018a). O sujeito A, ainda, destaca: e eles não
ficam dizendo feito era antes: “oxe, menino, tu tá ruim mesmo,
né?” Eles nem falam isso mais, não me sufocam mais e levo a
minha vida assim: pergunto, tiro dúvida, tudo isso depois que
eu vim pro grupo aqui. Ou seja, vir para o grupo de apoio tem
o sentido de acolhimento, mudança, aceitação e escuta, que o
conduziram a mudar de posição no discurso.

Considerações finais
Diante do que foi mencionado, até então, constatamos que,
ao longo dos encontros nas sessões no GEAG, para os sujeitos,
inicialmente, a gagueira é um caminho sem volta, sendo per-
meado por muitos invólucros que a situam no campo do senso
comum, materializando discursos do tipo: “uma vez gago, para
sempre gago”, “a gagueira é uma doença, portanto, não tem cura!”.
Atrelado a isso, tais sujeitos chegam ao Grupo de Apoio bus-
cando a utópica ideia da fluência absoluta e, isso, infelizmente,
tem sido perpassado ao longo de gerações às FD, por meio do
interdiscurso (historicidade, memória do dizer), que é o lugar
das formações ideológicas (FI) com suporte em diferentes filia-
ções teóricas que restringem o problema aos aspectos do corpo
e da fala.
Ao longo das sessões semanais no Grupo de Apoio, temos
procurado refletir, entre outras coisas, sobre a ideia equivocada
acerca da suposta fluência absoluta, já que “fluência e disfluên-
cia não se opõem” e, logo, na prática, “a fluência inclui a disflu-
ência” (FRIEDMAN, 2018c, s/p).
Como enfatizamos, anteriormente, ao propormos, neste ca-
pítulo, o estudo da gagueira sob a perspectiva linguístico-dis-
cursiva, em grupo, necessariamente, isso inclui: “o sujeito e a
linguagem em sua abordagem e vê a gagueira como um lugar de
subjetivação discursiva” (AZEVEDO, 2000, p.118),
Partindo desse princípio, nessa tessitura, no processo de
funcionamento discursivo, produzimos discursos de acordo com
os efeitos que desejamos causar em nossos interlocutores, falan-
do a partir da concepção que temos do outro e da posição-sujeito
que acreditamos que ocupam na sociedade. Sendo assim, infe-
rimos, a partir do recorte discursivo constituído, baseados nos
estudos de Azevedo (2000; 2006; 2013; 2015; 2018a); Petrusk
(2013); Silva (2016); Cavalcanti (2016), que a gagueira é compre-
endida como um distúrbio da ordem do discurso, apresentando
relação direta com os interlocutores, suas formações imaginá-
rias e, consequentemente, atreladas às condições de produção,
essa última, sendo compreendida como circunstância de enun-
ciação e contexto sócio-histórico, ideológico, isto é, os discursos
dos sujeitos-gagos são produzidos tendo em vista a relação de
forças (a posição que se ocupa nos lugares sociais), a relação de
sentido (a interdiscursividade) e a antecipação, (representação
que os sujeitos fazem de si e do outro no discurso).
Portando, nessa composição, no processo de mudança de
posição de sujeito-gago para sujeito-fluente, inicialmente, per-
cebemos que, chegando ao GEAG, o sujeito mostrou-se, de iní-
cio, identificado com a FD da gagueira, revelando dizeres
de incapacidade, que desqualificavam a sua fala gaguejada e
interditava o seu posicionamento frente às várias situações coti-
dianas. A partir das reflexões construídas ao longo das sessões
em grupo, observamos que os pesquisadores fazem, à época,
aquele, então, sujeito-gago, entender que fazer-se compreender
por seu par discursivo é o mais importante na interlocução no
funcionamento discursivo. No grupo, também, é discutido que a
fluência não é linear, sem erros, mas relativa, oscilante, portan-
to, houve uma ressignificação dos dizeres postos pela sociedade
sobre a questão do que seja a fluência, a gagueira e descobriu-se
que é autor da sua voz, dos seus discursos e da sua fala. O su-
jeito A passou a questionar os dizeres da FD anterior e, é nesse
momento que assume uma nova FD — da fluência, pois há,
de fato, uma mudança de posição discursiva, mostrando que a
fluência é relativa e que todos nós temos momentos de gagueira.
Desta forma, ao se contraidentificar (questionar saberes)
e desidentificar-se de ideias que circunscrevem a gagueira ao
campo patológico e assumir-se em outra FD, o sujeito compre-
ende que não existe fluência absoluta, pois a gagueira é apenas
um momento da fala, a linguagem é incompleta, marcada no
equívoco, pela falta, que o sujeito é capaz de produzir qualquer
significante desvencilhando-se da preocupação com a forma
como falará.

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CAPÍTULO 5 FALA, ESCRITA
E ENSINO NA PERCEPÇÃO DE
PROFESSORAS ALFABETIZADORAS
Rossana Ramos Henz (UPE)
Benedito Gomes Bezerra (UNICAP/UPE)

Introdução

E
ste trabalho visa discutir as relações entre fala e escri-
ta na perspectiva de professoras alfabetizadoras, tendo
em vista o processo de ensino/aprendizagem da escrita
alfabético-ortográfica nos anos iniciais do Ensino Fun-
damental. As diferentes visões sobre a relação fala e escrita, ou
sobre oralidade e letramento, se constituem como conhecimento
básico para quem ensina a ler e a escrever, considerando que
essas relações entre fala e escrita se refletem a todo momento na
realização de textos orais e escritos. A primeira descoberta de
uma criança ao entrar em contato com a escrita é a de que ela
pode “dizer” coisas por escrito, tanto quanto por meio da fala.
Todavia, ao longo do processo de alfabetização, deve ocorrer um
aprendizado específico e ampliado das particularidades e possi-
bilidades de uso de ambas as modalidades de uso da língua: fala
e escrita. Falar de um modo e escrever de outro, dependendo
do gênero textual/discursivo1 em foco, é uma dessas particula-

1
Para mero efeito de desambiguação dos diferentes sentidos do termo gênero na
língua portuguesa, acrescentamos aqui a expressão textual/discursivo. Doravante,
ridades. Contudo, se essa peculiaridade não for compreendida
pela professora como uma adequação da língua aos usos oral
e escrito, é possível que ela (a professora) incorra em diversos
equívocos conceituais, como, por exemplo, o que verificamos
nesta pesquisa com nossas entrevistadas, professoras dos anos
iniciais, que consideram que os desvios da norma padrão na
escrita das crianças estão relacionados a uma “fala incorreta”,
sobretudo à fala daquelas que vivem na zona rural.
Uma hipótese que orientou o estudo foi a de que eventu-
ais limitações das professoras alfabetizadoras, em sua maioria
pedagogas, decorreriam da própria formação acadêmica, como
se evidencia no currículo dos cursos de Pedagogia, que não ofe-
recem um conhecimento adequado sobre estudos linguísticos
imprescindíveis a quem ensina a ler e escrever. Em virtude des-
sa carência de um conhecimento teórico adequado por parte
das professoras, o que se observa em relação à competência dos
alunos do ensino básico para os usos da linguagem é um cenário
trágico que se revela por meio das avaliações nacionais e inter-
nacionais no que se refere à leitura e a escrita.
O que aqui se questiona não é o curso de graduação em si,
voltado para uma atuação polivalente — a professora pedagoga en-
sina escrita, leitura, aritmética, História, Geografia etc. — mas o
tipo de conhecimento que deveria ser adquirido em sua formação
superior no que diz respeito às teorias e estudos linguísticos que
respaldam entre tantas questões a relação entre fala e a escrita.
Entendemos que a questão se amplia quando se observa
no ensino da escrita uma visão estreita que considera apenas o
plano estático do texto oral ou escrito sem a devida aproximação
com as dinâmicas das construções sociointerativas entre sujeito/
texto/contexto, que consideram os fatores extralinguísticos, com-
preendendo não somente a materialidade textual (os aspectos

utilizamos apenas gênero, considerando que o gênero se relaciona de modo inextri-


cável tanto com o texto como com o discurso, não podendo, portanto, ser rotulado
como apenas “textual” ou “discursivo”. A propósito dessa opção terminológica, ver
Marcuschi (2008) e Bezerra (2017).
mecânicos), mas também os fatores de natureza sociocognitiva
que envolvem a escrita e a leitura. Referimo-nos aqui ao fato de,
na maioria das vezes, os textos escritos apresentados pela escola
não retratarem a realidade linguística e social que engloba varia-
ções, processos etimológicos, cultura e diversidade social.
O escopo teórico desta pesquisa tomou por base os estu-
dos sobre a relação fala e escrita construídos principalmente no
âmbito da Linguística Textual, em diálogo com os estudos dos
letramentos e com as abordagens de base antropológica, socio-
lógica e psicológica sobre fala e escrita e oralidade e letramento.
Particularmente, o que se analisa são os fatos da língua median-
te seus usos (a materialidade linguística) com vistas à ampliação
da linguagem oral e à aquisição da linguagem escrita, bem como
às relações de natureza cognitiva e social que o tema envolve.
Utilizamos como metodologia para a geração e coleta de
dados a elaboração e aplicação de um questionário aberto, com
base em três questões que abrangem a teoria e a prática relati-
va ao tema, suscitando, desse modo, a investigação diretamente
com a parte envolvida, no caso, as professoras. Ouvi-las signifi-
cou constatar onde e quando se fazem os nós que impedem que
muitos alunos finalizem o ensino básico se mostrando capazes
de reconhecer e utilizar as normas básicas da escrita formal.
O trabalho está organizado em quatro tópicos principais.
No primeiro tópico, abordam-se as concepções de fala e escrita,
tanto as tradicionais como as que embasam este estudo. O tópico
seguinte aborda mitos sobre a relação fala e escrita, enquanto o
terceiro se concentra sobre o tema dos gêneros orais e escritos no
ensino. O quarto tópico apresenta nossa análise do questionário
aplicado a 10 professoras alfabetizadoras, antes de encerrar o
trabalho com algumas considerações decorrentes dessa análise.

1. Concepções sobre fala e escrita


Conforme assevera Botelho (2001), pesquisas mais antigas
postulavam duas concepções: a escrita como transcrição da fala,
o que aqui evidencia a concepção de língua como expressão do
pensamento, e a ideia de serem fala e escrita atividades distin-
tas. Essa distinção se daria em virtude de uma comparação que
tomava por base trechos de conversação espontânea (fala infor-
mal) em oposição a textos escritos formais, cujos gêneros exigem
certo monitoramento. Isso ocorreria, por exemplo, se compa-
rássemos uma conversação cotidiana entre amigos e um artigo
científico. Ainda segundo o autor, cuja visão endossamos, se a
comparação se desse entre textos orais e escritos de um mesmo
domínio discursivo, caracterizados por níveis semelhantes de
formalidade, como, por exemplo, uma conferência acadêmica
e um artigo científico, ou entre uma conversa informal e um
bilhete familiar, certamente haveria mais semelhanças que di-
ferenças entre a fala e a escrita.
Fato é que a relação entre fala e escrita, quando construída
como dicotomia, usualmente toma como protótipo de fala um
gênero mais informal (a conversação face a face, por exemplo),
por oposição a um protótipo de escrita mais formal (como o
artigo acadêmico). Para Blanche-Benveniste (1998), opor a fala
à escrita foi durante muito tempo um assunto da pedagogia es-
colar em face da perspectiva do erro. Tida como espontânea,
eventualmente pitoresca e cheia de erros, a fala foi costumeira-
mente ligada a aspectos negativos como a relação com a origem
e a cultura de determinados falantes.
Nos estudos desenvolvidos por especialistas de fora da área
dos estudos linguísticos, na segunda metade do século XX, as
concepções de fala e escrita ainda apontavam para uma pers-
pectiva dicotômica, como ressalta Marcuschi (2001, p. 26):

[…] particularmente entre sociólogos, antropólogos e psicólogos


sociais, encontramos a posição muito comum (prontamente as-
sumida pelos linguistas) de que a invenção da escrita trazia uma
“grande divisão” a ponto de ter introduzido uma nova forma de
conhecimento e ampliação da capacidade cognitiva (em especial a
escrita alfabética).
Nessa visão, a escrita, por sua condição de tecnologia au-
tônoma, assumiria uma indiscutível supremacia sobre a fala do
ponto de vista do sistema, da cognição e dos usos. Marcuschi
(2001) segue observando que nos anos 80 tal visão de caráter
dicotômico sobre a “autonomia da escrita” passa a ser confron-
tada especialmente nos EUA e na Inglaterra, sendo substituída
pela ideia de uma relação contínua entre letramento e oralidade/
escrita e fala. A partir dessa nova concepção, passam a ser iden-
tificadas especificidades na fala e na escrita, não mais caracteri-
zando-as como opostas (dicotômicas), e sim como formas típicas
de funcionamento da linguagem e de produção de sentido, vin-
culadas aos contextos de produção e de recepção.
Os estudos seguem evidenciando que, tanto em termos lin-
guísticos quanto de uso da língua, fala e escrita mantêm relações
mais próximas do que se pensava, sendo estas permeadas por gê-
neros e estilos e não mais devendo ser vistas em posições opostas.
Em relação às concepções de fala e escrita, entendemos
que do ponto de vista científico houve mudanças significativas.
A questão é em que medida essas novas concepções implicam
novas formas de ensino, tendo em vista que neste campo ainda
persistem alguns mitos.

2. Mitos sobre fala e escrita


Sobre a questão da origem dos mitos em relação à fala e a
escrita, entendemos que a visão dicotômica se dá, a priori, em
uma perspectiva sociocultural. Segundo Calvet (2011) as duas
formas de comunicação linguística, a oral e a escrita, defini-
riam duas formas de sociedade: as sociedades de tradição oral e
as sociedades de tradição escrita. Segundo uma visão ocidental
muito presente nas reflexões sobre fala e escrita, haveria rela-
ções intrínsecas entre o conhecimento, o saber e a escrita, o que
implicaria a ideia de que a noção de uma sociedade sem escrita
se caracterizaria como negativa, privativa, conotando a inferio-
ridade ou a incultura.
Gnerre (1998, p. 11) chama atenção para o fato de que “asso-
ciar a uma determinada variedade linguística o poder da escrita
foi nos últimos séculos da Idade Média uma operação que cor-
respondeu a exigências políticas e culturais”. Segue informando
que “eram grandes as diferenças entre variedades linguísticas
correntes e o latim, modelo de língua e de poder na Idade Mé-
dia”. No entanto, “as variedades linguísticas associadas com a
escrita passaram por um claro processo de ‘adequação’ lexical e
sintática, no qual o modelo era sempre o latim”.
Ainda nesse sentido da adequação, Teberosky (1998) nos
lembra o fato de que até hoje a escrita está, em geral, represen-
tada pelos textos editados que para isso requerem a participação
de muitos profissionais e que o processo inicial (os borrões) pelo
qual passa o produto em geral é ignorado. Esse fato contribui
para consolidar a ideia de que a escrita seria “naturalmente”
ou automaticamente organizada, enquanto a fala seria “natural-
mente” desorganizada, uma vez que se perde o processo pelo
qual a escrita chega a sua forma pública ou editada. Por sua vez,
como a autora segue afirmando, a fala não é editada. O que é
dito nem sempre pode ser apagado e reconstruído.
Estamos envoltos por uma tradição de línguas escritas e
nossa imagem de língua se torna fortemente marcada por isso,
segundo Blanche-Benveniste (1998). Vivemos uma ideia ingênua
de que uma língua é verdadeira na medida em que é escrita. Os
próprios linguistas se mostram incrédulos com a ideia de que
uma língua pode sobreviver sem escrita e sem escola ao longo do
tempo. A autora notifica que nem mesmo os estudos realizados
por Sapir, Whorf ou Bloomfield com as línguas ameríndias incita-
ram os linguistas a prosseguirem os estudos com línguas ágrafas.
Todas essas questões aqui expostas contribuem para a tese
da escrita em condição de superioridade em relação à fala, o
que resulta na perspectiva da dicotomia e nos mitos a respeito
dessas duas modalidades da língua. Para Rojo (2006, p. 32), “a
perspectiva da dicotomia fomenta, de fato, muitos mitos sobre
os poderes da escrita contra a submissão do oral”. A autora se-
gue expondo esses mitos classificando-os entre aqueles ligados
às características das modalidades da linguagem e os ligados
aos efeitos sociais e culturais das modalidades de linguagem.
Sobre as modalidades, os mitos dão conta de que a fala seria de-
sorganizada, variável, heterogênea; a escrita, por sua vez, seria
lógica, racional, estável e homogênea; a fala seria não planejada;
a escrita seria planejada e permanente; a fala seria o espaço
do erro e a escrita, o da regra e da norma; a fala se dá face a
face; a escrita serve para comunicar à distância no tempo e no
espaço; a escrita se inscreve; a fala é fugaz; a fala é expressão
unicamente sonora, a escrita, gráfica. Sobre os efeitos sociais da
oralidade e da escrita, o conhecimento da escrita não só confe-
riria acesso a poder e mobilidade social, como levaria a estágios
mais complexos e desenvolvidos de cultura e de organização
cognitiva do indivíduo.
Em consonância com essa questão dos mitos, Teberosky
(1998) afirma que na perspectiva que considera a oposição entre
o oral e o escrito pode ocorrer uma supervalorização ou desva-
lorização de uma ou de outra modalidade, e essa atribuição de
valores feita pelos usuários implicaria o fato de que a linguagem
cotidiana (mais próxima da fala) seria errônea, incompleta e des-
regrada, enquanto a linguagem formal, acadêmica, por exemplo,
seria normativa por ser tipicamente escrita. Essas concepções
ignoram o fato de que a escrita também pode ser informal e se
realizar no cotidiano, assim como a linguagem formal, acadêmi-
ca, também apresenta uma vertente na oralidade.
As concepções que se formam a partir dos mitos e do senso
comum sobre a fala e a escrita implicam posturas muitas vezes
equivocadas. Despreza-se a ideia de fala e escrita como marca-
das por um contínuo que caracteriza os fenômenos linguísti-
cos distribuídos conforme as variações múltiplas, entre elas as
coocorrências na fala e na escrita. Essas coocorrências indicam
que não há elementos somente próprios da escrita ou somente
da fala. Nas duas modalidades, é possível observar construções
linguísticas semelhantes (TEBEROSKY, 1998).
Em vez de concorrentes, como são retratadas pelos mitos,
as duas modalidades, fala e escrita, se caracterizam como com-
plementares, em uma espécie de contínuo, sendo cada uma de-
las adequada às demandas de interação. A questão da suprema-
cia do escrito sobre o oral parece se dar em virtude de pelo me-
nos duas razões: uma que evidencia a variação linguística, fato
normal, natural e comum em todas as línguas, que é observada,
sobretudo, na modalidade oral, principalmente em um país de
dimensões continentais como o Brasil; e outra que aponta para
a escrita como sendo um atributo de sujeitos com determinado
grau de escolaridade, como afirmam Marcuschi e Dionisio:

[…] a grande variação presenciada na oralidade não se verifica com a


mesma intensidade na escrita, dado que a escrita tem normas e pa-
drões ditados pelas academias. Possui normas ortográficas rígidas e
algumas regras de textualização que diferem na relação com a fala.
Mas isso ainda não significa que não haja variação nos modos de
escrever (MARCUSCHI; DIONISIO, 2007, p. 15).

Acontece que a variação no modo de escrever é simples-


mente invisibilizada, a não ser nos casos em que se pretende
ressaltar as infrações à norma ortográfica e à gramática nor-
mativa em geral. O não entendimento de que a escrita pode ser
tão variável quanto a fala gera, por parte da sociedade, atitudes
linguísticas2 negativas em relação a determinadas formas de se
escrever. É comum observarmos, por exemplo, julgamentos ne-
gativos em relação à “linguagem da internet”, já que, do ponto de
vista linguístico, o discurso eletrônico representa um tipo de co-
municação escrita, sem, entretanto, limitar-se às características
normalmente atribuídas a essa modalidade. O texto eletrônico
pode assumir formas mais aproximadas do texto oral, de modo
que boa parte da escrita em ambiente virtual pode ser caracteri-
zada como uma modalidade de uso da língua que foge a um en-

2
Atitudes linguísticas são aqui consideradas, a partir da Sociolinguística, como
o julgamento dos falantes sobre os comportamentos linguísticos.
quadramento nas noções convencionais da escrita e da oralida-
de, mas não ao ponto de configurar uma suposta “nova língua”
em uso nos ambientes virtuais.3 A fala e a escrita se atualizam
em diferentes gêneros, inclusive no meio digital, e em todas as
suas situações de uso a linguagem verbal é intrinsecamente va-
riável, independentemente da modalidade em que é usada.

3. Gêneros orais e escritos e ensino


As novas concepções de ensino de língua têm orientado a
reflexão e a produção textual na perspectiva dos gêneros. A es-
cola, nos níveis fundamental e médio, vem tentando trabalhar
didaticamente essa questão, embora ainda se observem práticas
voltadas à noção de tipologia textual, o que reflete o estrutura-
lismo predominante dos anos 50 e 60.
Os gêneros são, de acordo com Marcuschi (2002, p. 19),
essencialmente fenômenos históricos profundamente arraigados
na vida social e cultural:

Fruto do trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e esta-


bilizar as atividades comunicativas do dia a dia. São entidades sociodis-
cursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação
comunicativa. No entanto, mesmo apresentando alto poder preditivo e
interpretativo das ações humanas em qualquer contexto discursivo, os
gêneros não são instrumentos estanques e enrijecedores da ação criativa.

Como parte da vida da sociedade, os gêneros podem ser


analisados por uma diversidade de olhares, inclusive na rela-
ção com a oralidade e a escrita. Ainda, conforme Marcuschi
(2002), os gêneros se distribuem em um contínuo pelas duas
modalidades, dependendo do grau de formalidade, do canal de
comunicação e dos usos na vida cotidiana. O autor exemplifica
essa questão a partir das situações em que o texto é produzido


3
Sobre esse tema, ver Bezerra (2013).
na forma escrita e percebidos na forma oral, como é o caso das
notícias veiculadas no rádio e na televisão. É também o que
ocorre com as orações (textos religiosos) que são originalmente
produzidas na forma escrita e realizadas oralmente.
Desse modo, Marcuschi (2002) recomenda cautela quanto
à identificação dos gêneros como orais ou escritos em face da
heterogeneidade e da hibridez em relação aos seus usos. O que
se percebe nesse campo é que há uma expectativa por parte dos
interlocutores quanto à realização do gênero. Há uma espécie de
“negociação” comunicativa que envolve diversas semioses como
imagens, signos verbais, sons e formas em movimento. Desse
modo, em face da multiplicidade de elementos, torna-se comple-
xa uma tentativa de conceituar gêneros orais e escritos, a não ser
por uma perspectiva concreta que os identifique pelo suporte da
voz ou da imagem (escrita). Em outras palavras, o único atributo
que concretamente caracteriza uma oposição entre fala e escrita
diz respeito ao meio sonoro em que se realiza a primeira e o
meio gráfico/visual em que se realiza a segunda.
Embora ainda persistam no ensino de língua as concep-
ções pautadas na dicotomia e nos mitos que atribuem à fala
um status inferior à escrita, a partir dos anos 90, os Parâmetros
Curriculares Nacionais de língua portuguesa já indicam práti-
cas pedagógicas pautadas na oralidade:

[…] cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral no pla-


nejamento e realização de apresentações públicas: realização de en-
trevistas, debates, seminários, apresentações teatrais etc. Trata-se de
propor situações didáticas nas quais essas atividades façam sentido
de fato, pois é descabido treinar um nível mais formal da fala, tomado
como mais apropriado para todas as situações (BRASIL, 1998, p. 25).

Todavia, o trabalho com a oralidade pode se ver marcado por


equívocos no meio escolar, conforme ressalta Santos (2005, p. 1):

Em nenhum momento os PCN sugerem a análise da conversação es-


pontânea, seus aspectos linguísticos e discursivos, ou a observação da
diferença de abordagem dos temas, de acordo com a modalidade oral
ou escrita — atividades que, segundo Marcuschi (1997), são importan-
tes para mostrar como se estruturam os textos orais. Assim, o que pode-
ria ser um material de suporte para o professor acaba reforçando a con-
fusão sobre o trabalho com a oralidade e não colabora para desfazer
as dúvidas que os profissionais da área carregam desde sua formação.

A questão é que com o decorrer da escolarização, o ensino


de língua contribui para hierarquizar a fala e a escrita, tomando
“marcas de oralidade” como erros de escrita, quando deveriam
ser tratadas como hipóteses iniciais de escrita, bem como obser-
vadas, em alguns gêneros escritos, como um recurso que apro-
xima o texto escrito dos gêneros orais.
O problema torna-se ainda mais grave quando a escrita
é marcada pelas variantes da fala utilizadas pelos estudantes.
Tratados, muitas vezes, de forma preconceituosa, esses registros
deveriam ser considerados e observados na relação pedagógica
entre professores e alunos como uma reflexão sobre as inúmeras
possibilidades de realização da atividade comunicativa.
O momento crucial do processo de aquisição da escrita e da
leitura, tanto para crianças como para adultos em alfabetização, se
dá com o estabelecimento da relação fonema/grafema, letra/som,
quando já é possível escrever e ter a própria escrita lida, ainda que
com desvios de grafia, a exemplo de OGE por HOJE. Ao longo do
processo de desenvolvimento da escrita, as particularidades da
ortografia vão sendo aprendidas e aplicadas. A essa questão se adi-
cionam outras também responsáveis pela escrita não ortográfica,
como é o caso das variantes linguísticas que os alunos utilizam
em seu cotidiano de fala. Esses usos, na maioria das vezes, se re-
fletem na escrita em casos como UVEIA por OVELHA.
Acerca disso, tomamos aqui as ideias de Brown (apud
KATO, 1987), que discute o ciclo de influências mútuas de uma
modalidade sobre a outra, asseverando o fato de a fala pós-letra-
mento constituir uma simulação pelo menos parcial da escrita
e, por isso, apresentar-se como uma fala mais próxima da norma
padrão. O esquema a seguir nos mostra que não ocorre propria-
mente uma simulação da escrita, mas um ciclo de influências
contínuas. Tal ciclo poderia ser representado da seguinte forma:

Fala 1 Escrita 1 Escrita 2 Fala 2

A fala inicial do aluno (fala 1) deixa marcas na sua escrita


inicial (escrita 1), que como consequência do trabalho da escola
caminhará para uma escrita segunda (escrita 2), que por sua vez
afetará a fala da pessoa escolarizada (fala 2). Entretanto, a relação
de influência entre escrita 2 e fala 2 será recíproca, de modo que a
escrita da pessoa escolarizada sempre poderá influenciar a sua fala
e esta igualmente afetará sua escrita, não havendo, nesse processo,
nada de extraordinário, se considerarmos que se trata de modali-
dades de uso da mesma língua por um mesmo sujeito. O que se
pode depreender desse quadro é um processo natural que deveria
ocorrer na continuidade da escolarização. Todavia, o que se obser-
va é um cenário de dificuldades por parte dos alunos em utilizar a
escrita ortograficamente e, por parte das professores alfabetizado-
ras, uma certa incompreensão dos processos didáticos que esclare-
ceriam essas particularidades de uma e de outra modalidade.
Um dos motivos dessas dificuldades entende-se ser a for-
mação das professoras alfabetizadoras no que diz respeito aos
conhecimentos linguísticos, sobretudo, no que se refere à fala e
à escrita. Os cursos de Pedagogia, em geral, não oferecem con-
teúdos específicos que tratem das questões de fala e de escrita,
o que resulta em lacunas nesse aspecto.
Nesse sentido, com relação à escola, Marcuschi (2001) ex-
plica que:

Seria interessante que ela soubesse algo mais sobre essa questão para
enfrentar sua tarefa com maior preparo e maleabilidade, servindo até
mesmo de orientação na seleção de textos e definição de níveis de lin-
guagem a trabalhar. Parece que a escrita tem uma perspectiva na esco-
la e outra fora dela. A perspectiva da dicotomia estrita oferece um mo-
delo muito difundido nos manuais escolares, que pode ser considerado
como a visão imanentista que deu origem à maioria das gramáticas
pedagógicas que se acham hoje em uso. Sugere dicotomias estanques
com separação entre forma e conteúdo, separação entre língua e uso e
toma a língua como sistema de regras, o que conduz o ensino de língua
ao ensino de regras gramaticais (MARCUSCHI, 2001, p. 35).

Por um lado, a concepção sociointeracionista vem, ainda que


a passos lentos, contribuindo para uma abordagem do ensino de
língua que possibilite a superação do tratamento estigmatizado
de determinados usos linguísticos, entendendo-os como legitima-
dos em diversos contextos sociais. Por outro lado, a modalidade
oral ainda representa um desafio para o trabalho em sala de aula
pelos professores de Língua Portuguesa. Isso, certamente, ocorre
pela supremacia da escrita normatizada, com vistas para a vida
(universidade, emprego), conforme justificam os professores.
Ademais, vale ressaltar que o texto oral, sobretudo das
classes menos favorecidas, sofre com o estigma do erro. A even-
tual falta de habilidade por parte de professores para trabalhar
simultaneamente com textos orais e escritos, considerando suas
peculiaridades, resulta no abismo que se observa nas relações
de ensino/aprendizagem de língua.
Se, por um lado, a própria sociedade vem de forma ampla
utilizando a oralidade e a escrita nos meios digitais, por outro,
a escola ainda desconsidera o papel da modalidade oral como
um aspecto importante, não somente para o desenvolvimento
da competência comunicativa de forma geral, mas também para
o próprio entendimento e elaboração de textos escritos. É o que
procuramos constatar e discutir a partir da percepção das pro-
fessoras entrevistadas para este estudo.

4. Fala, escrita e ensino: o que dizem as professoras


O corpus deste estudo constitui-se de considerações de
professoras alfabetizadoras dos anos iniciais do Ensino Funda-
mental sobre as concepções de fala e escrita, bem como sobre
as estratégias didáticas utilizadas para a correção dos erros/
desvios apresentados pelos alunos nessa fase da vida escolar.
Com vistas a essa investigação, formulamos três perguntas que
consideramos ser relevantes para a análise. As perguntas não
foram respondidas pontualmente, mas funcionaram como de-
sencadeadoras e norteadoras do diálogo entre pesquisadores e
entrevistadas.

Questão 1:

Como você vê a escrita e a fala? Como entende essas duas moda-


lidades de língua?

Sobre o conhecimento a respeito das relações entre fala e


escrita, observamos que, das 10 professoras entrevistadas, nove
consideram escrita e fala como atividades distintas. As respostas
orbitaram em torno do conceito de fala como algo desorganizado:
…a gente não pensa pra falar;4 … na fala se repete muito as pala-
vras… Já em relação à escrita: … é preciso, pensar, analisar e por
isso é mais organizada. Contraditoriamente, ao longo da conver-
sa, as 10 entrevistadas, inclusive uma delas que cursou Letras,
consideraram que há relações entre fala e escrita por conta de
a escrita ser representação da fala. Ao serem provocadas sobre o
fato de escrita e fala serem atividades diferentes, segundo suas
considerações iniciais e em seguida dizerem que a escrita é re-
presentação da fala, seis entrevistadas disseram não saber res-
ponder essa questão. As outras entrevistadas tentaram explicar a
contradição com considerações do tipo: … a escrita é um modo de
você se expressar quando não pode estar perto da outra pessoa, mas
é diferente de falar porque não sabe se o outro entendeu a mensagem.
Na continuidade da conversa, também foi possível obser-
var considerações do tipo: … tem aluno que escreve como fala por-
que eles acham que é assim… inclusive aqueles que moram no sítio

As falas das entrevistadas serão grafadas em itálico, transcritas segundo infor-


4

mações colhidas (sic).


escrevem mais errado ainda. Questionada a respeito do porquê
de ser “mais errado”, a entrevistada respondeu: …acho que pra
escrever é necessário primeiro aprender a falar, né? Nesse momen-
to, é possível observar novamente a contradição entre a ideia
de fala e escrita serem atividades distintas, posição tomada por
essa mesma entrevistada, e o fato de aprender a falar “melhor”
para aprender a escrever melhor.
Até esse ponto, entendemos que há no posicionamento das
professoras alguns equívocos com respeito à noção de fala e es-
crita, por exemplo, em relação às marcas de oralidade na escrita
dos alunos. As crianças não escrevem “errado” porque falam
“errado”. O que se pode seguramente afirmar é que esse pro-
cesso decorre do contato mais estreito que se estabelece entre a
escrita e a fala no período escolar. Esse objeto, a escrita, agora
mais próximo e constante em sua vida, provoca na criança re-
construções cognitivas contínuas que se refletem no uso oral e
no uso escrito da língua.
Na sequência das entrevistas, observamos outros pontos de
vista sobre fala e escrita que tratam dos usos dessas modalida-
des. Por exemplo: Acho que escrever é mais difícil que falar por-
que quando a gente fala o outro responde se entendeu e aí a gente
corrige. Já escrever é “pau” porque você tem que ser objetivo se
não o outro não entende; … eu sempre prefiro falar do que escrever
porque tenho dificuldade de pôr no papel as ideias, apesar de saber
que a escrita é mais importante que a fala, principalmente para nós
professores.
Quando as entrevistadas se referem à dificuldade em escre-
ver, certamente pensam em gêneros que exigem mais monitora-
mento do que aqueles como bilhetes, mensagens no Whatsapp,
entre outros, de menor complexidade.
Desse modo, entendemos que fala e escrita não se configu-
ram em uma perspectiva dicotômica, mas sim como dois modos
de funcionamento da língua, não havendo razão para despresti-
giar a oralidade e supervalorizar a escrita, como pensa uma das
entrevistadas que afirma: …a escrita é mais importante que a fala.
O que nos parece ocorrer quando alguém declara que escri-
ta é mais importante e mais difícil que a fala é uma convicção
de que a escrita é sempre produzida com base em normas abso-
lutamente padronizadas e que as variações desse padrão sempre
se constituem como erro.
No decorrer da entrevista, quando expusemos as ideias do
contínuo e da variabilidade do gênero tanto na fala quanto na
escrita, as professoras, inclusive a que é formada em Letras e
pós-graduada em Língua Portuguesa, admitiram que a forma-
ção que tiveram na área de linguagem não foi suficiente para
que tivessem esse entendimento, o que se evidencia em frases
como a gente quando faz o curso de Pedagogia, não estuda esse tipo
de coisa… acho que faz falta um estudo melhor disso.
A questão prossegue quando tratamos das consequências
da falta de determinados saberes para as práticas pedagógicas.
… tem coisa que acontece e realmente a gente não sabe como resol-
ver. Se a senhora está dizendo que a fala não é diferente da escrita,
quer dizer, esse negócio aí, como é? Um contínuo? Como se faz pra
dizer isso a um aluno de 5º ano que escreve um texto cheio de aí,
aí…Eu tenho que dizer que a gente não escreve como fala. Então a
fala é diferente da escrita, não é?
O texto da entrevistada evidencia a dificuldade em com-
preender a questão do contínuo, por exemplo, no que se refere à
variabilidade do gênero. Conforme asseveram Marcuschi e Dio-
nísio (2007, p. 16), “a língua tem um vocabulário, uma gramática
e certas normas que devem ser observadas na produção dos gê-
neros textuais de acordo com as normas sociais e necessidades
cognitivas adequadas à situação concreta e aos interlocutores”.
Nesse caso, não se trataria somente de textos escritos, mas tam-
bém da organização dos textos orais.
De modo geral, percebemos que nas considerações de nos-
sas informantes prevalecem os mitos sobre as relações entre fala
e escrita, o que pode levar a equívocos, não só do ponto de
vista teórico, mas, sobretudo, no que diz respeito às estratégias
pedagógicas utilizadas. Se para as professoras fala e escrita são
distintas, as marcas de oralidade no texto dos alunos podem
ser consideradas como deficiência e não como um processo de
aprendizagem e de adequação dos textos a essas modalidades.

Questão 2:

Como você vê a escrita dos alunos das séries iniciais? Ocorre algo
relacionado à fala e à escrita?

A respeito dessa questão, mais específica que a anterior, do


ponto de vista do ensino, uma entrevistada fez as seguintes con-
siderações: Na verdade, as crianças não gostam muito de escrever,
principalmente os maiores, por isso, às vezes, é difícil trabalhar a
fala e a escrita, mais ainda a escrita.
A respeito dessa afirmação, entendemos que duas questões
envolvem essa recusa. A primeira tem a ver com a cultura do
certo e do errado. O fato de as crianças trazerem de casa uma
linguagem própria que se realiza em suas interações diárias e
se depararem na escola com a modalidade escrita que, na maio-
ria das vezes, se distancia deveras de suas práticas linguísti-
cas, gera o chamado abismo entre aquilo que se diz e o que se
escreve. As práticas pedagógicas, inclusive as que observamos
nessa pesquisa, geralmente caminham na direção contrária a
uma outra que deveria levar em conta os usos e normas e não o
certo e o errado.
É muito comum nas salas de aula ouvir alunos perguntan-
do: “Está certo, professora?”. Essa frase clássica traduz o fato
de a criança idealizar sua escrita como um produto pronto e
não como um processo de aprendizagem que aos poucos está
sendo construído. A recusa por escrever, em muitos casos, está
no medo de errar que, por sua vez não está só na criança, mas
também em adultos professores, como vimos nessa pesquisa,
quando uma entrevistada alega: …eu sempre prefiro falar do que
escrever porque tenho dificuldade de pôr no papel as ideias.
A segunda questão que vemos na recusa em escrever por
parte das crianças maiores tem a ver com a questão da funcio-
nalidade da escrita. Escrever por quê? Para quê? Ou para quem?
Leal e Brandão (2007, p. 100) assim descrevem o problema:

O caráter pragmático da escrita não é considerado e o escrever pas-


sa a ser uma tarefa desprovida de finalidades sociais, desarticula-
da da experiência que o indivíduo tem com a escrita, fruto de uma
convivência diversificada com um universo letrado, mediada pela
história de cada um, pela sua origem social.

Uma aproximação com a escrita funcional permeada pelas


experiências orais e escritas dos alunos emerge impulsionada
pelo surgimento da Psicogênese da Escrita, teoria desenvolvi-
da por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky na década de 70, que
descreveu os processos cognitivos pelos quais os indivíduos de-
senvolvem o conhecimento da escrita e da leitura. Ao longo do
tempo, esse processo passou a ser utilizado em algumas escolas
públicas e privadas, substituindo os métodos sintéticos e analíti-
cos de alfabetização. Nessa perspectiva, em que a criança expõe
suas impressões sobre a escrita e a leitura de modo espontâneo,
sem obrigação de escrever segundo a norma-padrão, surgem no-
vos estudos e reflexões sobre as relações entre fala e escrita.
Durante o período pré-alfabético5, por exemplo, crianças que
ainda não dominam a escrita alfabética podem “escrever” textos
que para ela estejam crivados de significados. No período silábico
podem escrever palavras atribuindo uma letra para cada sílaba.
A compreensão do conjunto de letras que formam as palavras or-
tograficamente é um processo contínuo que certamente demanda
adequadas intervenções do professor. Todavia, nessa perspectiva
a noção de erro não existe, tendo em vista que a “escrita” pré-si-
lábica é considerada como uma hipótese da criança sobre o texto.
Esse processo, às vezes denominado “método sociolinguís-
tico” (nomenclatura discutível por a natureza do processo não

5
Período em que a criança utiliza desenhos, letras e outras formas para repre-
sentar a escrita sem que haja nestes registros qualquer relação entre fonemas e
grafemas para formar palavras.
estar atrelada a uma metodologia), certamente demanda uma
reflexão mais ampla por parte de professores e alunos no que
diz respeito à fala e à escrita. Todavia, a aplicação desse pro-
cesso de alfabetização, sem a devida compreensão do professor
sobre o percurso cognitivo dos alunos e o conhecimento sobre
as questões linguísticas que ali se constituem, pode fragilizar
a mediação entre os sujeitos (as crianças) e o objeto (a escrita),
conforme observamos na fala da entrevistada que declara: …
quando eles escrevem errado, eu vou lá e digo como é o correto. A
atitude simples de dizer que algo na escrita do aluno está errado
evidencia a limitação de uma professora que não reflete nem
provoca na criança a reflexão sobre o “erro”.

…Eu trabalho no município no 1º ano e lá a gente usa o estruturado


(método fônico) que começa pelos sons das letras, os fonemas, aí eles
têm dificuldade quando vão escrever palavras que a gente não escreve
como fala. Eu mesma não sei o que fazer para resolver esse problema,
sendo que alguns vão assim até o Ensino Médio. Eu dou aula lá e sei
como é.

É possível também observar, sobretudo, nas considerações


das professoras que trabalham com o 1º ano (alfabetização), a
questão do método. A adoção de uma proposta cuja metodologia
apoia-se na base fonética da língua, conforme já dissemos, além
de priorizar somente um nível da língua, o dos sons, impede
professores e alunos de refletirem mais profundamente sobre as
relações entre fala e escrita.

Lá na escola do sítio, já faz tempo, quando eu disse pras crianças que


a gente ia construir um texto coletivo, eles perguntaram se a gente ia
fazer tampa de panela com esse nome aí, coletivo. Aí, eu perguntei a
professora da sala do lado e ela disse que testo, assim com S, pra eles é
tampa de panela… depois, eu fiquei pensando nisso da fala deles. Acho
que eu devia ter dito que aquela palavra que eles tinham pensado se
escrevia de outra forma. Mas na hora, eu só ri.
Sobre a história narrada por uma das entrevistadas, obser-
vamos que o papel da escola perante as questões da fala, mais es-
pecificamente em relação às diferenças sociolinguísticas, embora
seja tema de inúmeras discussões acadêmicas, ainda pode não ser
o esperado. Fruto da estratificação social e de outros fatores de
natureza cultural, o preconceito contra formas não padronizadas
de fala ou de compreensão de mundo distancia os alunos da “rea-
lidade escolar”. Como afirma Bortoni-Ricardo (2005, p. 15):

A escola não pode ignorar as diferenças sociolinguísticas. Os profes-


sores e por meio deles, os alunos têm que estar bem conscientes de
que existem duas ou mais maneiras de dizer a mesma coisa. E mais,
que essas formas alternativas servem a propósitos comunicativos
distintos e são recebidas de maneira diferenciada pela sociedade.

O episódio narrado pela professora, caso houvesse um co-


nhecimento mais amplo das concepções linguísticas, poderia
ensejar uma importante reflexão sobre as questões de fala, es-
crita e letramento social. A experiência linguística da criança
sobre a palavra TEXTO/TESTO suscita a ideia de que a lingua-
gem deve ser compreendida como interação social. Nesse caso, a
interação “além de ser uma ação conjunta, é uma ação recíproca,
no sentido de que os participantes exercem, entre si, mútuas in-
fluências, atuam uns sobre os outros na troca comunicativa que
empreendem” (ANTUNES, 2014, p. 18). A ação da linguagem
implica reciprocidade e colaboração entre os indivíduos que
participam da mesma situação de interação.
Sem o devido conhecimento das concepções de interação
produzidas no processo da linguagem, o professor perde deter-
minadas oportunidades, como a do episódio aqui exposto, de
desenvolver uma prática reflexiva sobre os fatos da língua. Per-
dem, sobretudo, os alunos, que não se veem como sujeitos do
processo de interação da linguagem.
As considerações das professoras sobre “os problemas de
escrita” implicam questões que vão desde a recusa dos alunos
maiores a escrever até mesmo ao reconhecimento da dificulda-
de que as próprias professoras confessam ter em desenvolver a
competência linguística dos alunos em direção à escrita alfa-
bética ortográfica, ou mesmo para a adequação da escrita aos
gêneros propostos.

Questão 3:

Analise os seguintes textos escritos por alunos.

Como se vê pelo comando, o ponto de partida da terceira


questão não foi uma pergunta e sim uma orientação para leitura
de textos produzidos por alunos.
Texto escrito por um estudante do 9º ano do Ensino
Fundamental:
‘‘MEU PAI SAI DE CASA DESSE A LADERA E VAI PARA O LAGERO E
PEGA OS ALUNO DO CARRO E SAI DO LAGEIRO. PARA LA EM SEU
BIU E VAMOS INDO. DESSE AS CURVAS. PASSA NO RIACHO DE JOR-
GE DESSE PASSA NA COMPESA DESSE PASSA NO PLANTIO DE BA-
TATAS E BANANAS. DESSE OUTRA LADEIRA PASSA NO ATOLEIRO.
PASSA PELA CACIMBA. VIRA A CURVA DESSE UM POQUINHO PASSA
NO BAR DE AMARO E NO ARRUADO E CHEGA A ESCOLA’’.

Palavras escritas por um estudante do 5º ano do Ensino


Fundamental:
‘‘BÃNANNA — ABACATI — CIBOLA — MASSAN — TUMATI — MACARÃO’’

Texto escrito por um estudante do 1º ano do Ensino Médio:


‘‘NÃO SEI OQUE PODE SE UMA PESSOA DIBEM’’

Sobre os textos, destacamos as seguintes considerações de


uma das entrevistadas:

No texto do caminho para a escola, a gente percebe que eles escrevem


do jeito que falam. Falta pontuação e algumas palavras estão escritas
erradas. No meu caso, eu peço pra fazer reescrita.
Diante disso, perguntamos: E como você conduz a reescrita
em situações como essa?

Marco o que está errado e peço pra eles consertarem. Às vezes, escrevo
as palavras na lousa para eles verem como é a forma certa de escrever.
Isso é o mais comum que a gente vê nos textos deles… acho que é falta
de leitura também porque quando a gente lê, aprende melhor. … Cos-
tumo fazer correção coletiva, coloco o texto no Datashow e a gente vai
corrigindo juntos.

Nesse caso, atribuir o erro à falta de leitura é simplificar o


fato de que para alcançar o nível alfabético da escrita a criança,
além de dominar as várias (não) correspondências som-grafia de
nossa língua, precisa observar as particularidades da ortografia,
trabalho que seguramente cabe ao professor desenvolver não
somente pela incentivo à prática de leitura, mas também por
meio de atividades mecânicas como, por exemplo, elaboração
de listas de palavras em que a letra S ocorra em suas diversas
possibilidades sonoras.

Como os meus estão alfabetizando, é comum escreverem desse jeito do


segundo quadro. Pra corrigir, eu falo a forma correta.

Nesse conjunto de considerações encontramos novamente


a ideia de erro, contudo sem uma proposta de reflexão ou es-
tratégia didáticas a respeito das marcas de oralidade na escrita
presentes nos textos.

Eu aprendi numa formação de professores alfabetizadores que a gente


deve usar jogos de escrita. Já fiz isso, mas não adiantou muito porque
quando vão escrever o texto continuam errando…

Nesse caso, o jogo pedagógico, recurso bastante eficiente,


não se configura, no caso da prática da professora, como uma
estratégia eficiente para a reflexão sobre a escrita.
Acho que a criança deve pensar no momento que está escrevendo.

Diante dessa afirmativa da entrevistada, foi indagado a ela


de que modo a professora poderia auxiliar a criança nesse pro-
cesso. Eis sua resposta:

Digo pra ela que a escrita e a fala são coisas diferentes, a gente fala de
um jeito e escreve de outro.

Continuando o diálogo, perguntamos à professora como a


criança poderia saber o jeito de escrever.

Aí, ela vai aprendendo com a correção e também com a leitura dessas
palavras. Procuro sempre mostrar o jeito certo de escrever.

Sobre a questão do método, uma das entrevistadas afirma:

Como eu trabalho com o método sociolinguístico, entendendo quando


a criança escreve como fala, no caso dessas palavras aí do segundo
quadro. Elas estão experimentando os sons para escrever a palavra que
querem. Para consertar esse problema, a gente faz listas com as pala-
vras para eles verem a diferença entre a escrita deles e a correta.

Nesse caso, a entrevistada apresenta o recurso didático das


listas de palavras, todavia não especifica o objetivo dessa estra-
tégia. O gênero lista é de fato uma estratégia da qual o ensino
pode se valer para a ampliação dos conhecimentos de lingua-
gem. Contudo, o objetivo desse recurso deve ser claro para o
professor e para o aluno.

O problema do R e dos dois R, é muito comum. Também com o SS, C…Ç.


Uma vez numa formação, a professora disse que é porque eles vão apren-
dendo separado. Primeiro o som do S de SAPATO… aí eles acham que S
é sempre o som de SAPATO. No construtivismo, como eles escrevem tudo
de uma vez só, fica mais fácil pra entender que o som do S pode variar.
Pode até ter som de Z em alguma palavra. Mas isso é com o tempo. Não
sei um jeito de ensinar isso pra eles escreverem sempre certo.
Eles escrevem muito junto… quando isso acontece eu vou escrevendo na
lousa, separando as palavras com tracinhos para eles como é o certo.
Eu fiz magistério e naquela época a gente aprendia que a criança tinha
que copiar várias vezes a palavra pra assimilar. Depois, no curso de Pe-
dagogia, a gente aprende que isso não adianta. Mas aí eu pergunto: o
que fazer então se eles não aprendem a gente só falando? É difícil.

As considerações das professoras evidenciam um quadro


de desinformação sobre as questões que envolvem fala e escrita,
bem como a respeito de estratégias didáticas a serem desenvol-
vidas no sentido de promover a escrita dos alunos ao nível alfa-
bético ortográfico. Ainda que insistíssemos sobre as estratégias
utilizadas, as respostas se fizeram vagas ou evidenciando sem-
pre o padrão certo/errado como em “Às vezes, escrevo as palavras
na lousa para eles verem como é a forma certa de escrever”.
O problema, a nosso ver, se constitui como uma barreira
quase intransponível, segundo declarações como: … o que fazer
então se eles não aprendem a gente só falando? É difícil. A questão
aqui exposta, a nosso ver, extrapola o campo do conhecimen-
to das teorias linguísticas, demonstrando, ademais, uma defi-
ciência no processo pedagógico. Como mediador do processo
de aquisição da leitura e da escrita, o professor deve munir-se
de estratégias didáticas e não apenas apontar os erros/desvios,
como, por exemplo, entender que a hipótese do aluno sobre a
escrita é seguramente o ponto de partida para as intervenções
adequadas, ou seja, aquilo que geralmente é considerado como
erro, verdadeiramente, se constitui como material de análise
e direção para as devidas intervenções. As marcas de orali-
dade na escrita, nesse caso, identificam o sujeito não somente
do ponto de vista do conhecimento da ortografia, mas, tam-
bém das variantes por ele utilizadas. Para Ferreiro e Teberosky
(1999), o ponto de partida de toda aprendizagem é o próprio su-
jeito e não o objeto a ser aprendido. Nessa perspectiva, escrever
o certo na lousa não dá conta das questões várias que envolvem
o ato de escrever.
Um fato narrado por uma de nossas entrevistadas descreve
uma situação em que a professora pede aos alunos que escre-
vam palavras com a letra U e um deles escreve UVEIA. É ime-
diatamente corrigido pela professora que pronuncia a palavra
pausadamente: O-VE-LHA. Nesse caso, é clara a perspectiva da
escola — a palavra dicionarizada é OVELHA –, que sobrepõe,
sem qualquer tipo de reflexão, o uso da variante oral.
Sobre essa questão: … eles escrevem muito junto… quando
isso acontece eu vou escrevendo na lousa, separando as palavras
com tracinhos para eles verem como é o certo. Nesse caso, “separar
as palavras com tracinhos”, além de artificializar a escrita, é
uma estratégia didática que está distante de uma análise teórica
como a que fazem Ferreiro e Teberosky (1999), ao afirmar que,
no início do processo de aquisição da escrita, conjuntos de uma
ou duas letras não são reconhecidos pela criança como sendo
palavras, por isso, em alguns casos, pode juntar essas letras à
palavra seguinte fazendo o que se denomina hipossegmentação.
As classes gramaticais como a conjunção “e”, os artigos, os pro-
nomes e as preposições (monossílabos átonos) são as mais afeta-
das por esse fenômeno. Podem ocorrer esses registros em outras
palavras que frequentemente são utilizadas em sequência como
é o caso de “derrepente”, “apartir”, “avista”, entre outras que se
fazem presentes também na escrita de adultos.

Considerações finais
Sobre o objetivo da pesquisa, que compreendeu discutir as
relações entre fala e escrita na perspectiva de professoras alfa-
betizadoras, com vistas ao processo de ensino/aprendizagem da
escrita alfabético-ortográfica nos anos iniciais do Ensino Funda-
mental, nossas considerações apontam para observações como
a de que o professor alfabetizador é um profissional da língua
e, por isso, necessita conhecer seu funcionamento para que te-
nha capacidade de trabalhar mais facilmente a valorização da
oralidade como mediação necessária para a aquisição da escrita.
Entendemos que a questão está na formação, ou seja, nos es-
paços de aprendizagens compartilhadas no próprio sistema. Segun-
do as declarações das entrevistadas, os conhecimentos na área de
linguagem são parcos e insuficientes para a tarefa de alfabetizar e
ampliar a competência linguística dos alunos no que diz respeito
às relações entre fala e escrita, por exemplo, com referência à con-
cepção da variante “do sítio” como incorreta, refletindo na escrita
de forma negativa. Também nos chamam atenção as soluções para,
por exemplo, os casos de escrita fonética que, segundo as professo-
ras, se resumiria à simples correção da palavra, individual ou coleti-
vamente, sem que haja qualquer reflexão sobre as particularidades
da escrita, sobretudo, no que se refere aos usos praticados na fala.
Outra questão relevante é as professoras atribuírem à “falta
de leitura” a incorreção na escrita, o que nos parece incoerente,
tendo em vista que as crianças se encontram em período de
alfabetização. Assim, ainda que a concepção de que a leitura
influencia diretamente a escrita fosse absolutamente comprová-
vel, trata-se de estudantes que ainda não praticam a leitura de
forma contínua e fluente.
Assim como essas questões aqui expostas, há outras a se-
rem resolvidas quando se trata de compreender a fala e a escrita
como fenômenos inter-relacionados, porém com características
particulares em virtudes de seus usos. Os resultados sugerem
a existência de inúmeras lacunas na formação e na prática do
professor alfabetizador. Falta-lhes maior sustentação teórica, do
que decorre a dificuldade de refletir, tomar as devidas decisões
e saber como intervir em determinadas situações.

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CAPÍTULO 6 LEGITIMAÇÃO,
COGNIÇÃO SOCIAL
E COGNIÇÃO POLÍTICA:
Análise crítico-discursiva de uma
entrevista de Michel Temer
Karl Heinz Efken (UNICAP)
Alexcina Oliveira Cirne (UNICAP)

Introdução

D
esde a posse de Michel Temer, em 31 de agosto de
2016, processos democráticos e livres de formação
da vontade e de decisão sofrem fortes ameaças: a
liberdade de expressão, a subtração de recursos de
programas sociais, as alterações das leis trabalhistas e o aumen-
to de salários dos altos escalões dos três poderes sucateiam o
país. O período pós-impeachment não revela maior cuidado para
com princípios éticos e da justiça, mas favorece, abertamente,
os feudos partidários, os donos do poder e o grande capital. O
governo Temer, desde o seu início, é marcado por escândalos de
corrupção envolvendo, além dele mesmo, seus ministros, alia-
dos políticos e seu partido. Temer foi denunciado por corrupção
passiva, obstrução da justiça e organização criminosa, o que
mostra a natureza falaciosa do seu discurso em torno da mo-
ralização da política, de salvar a pátria e de colocar o país nos
eixos. O presidente da república, Michel Temer, é o que obteve o
mais baixo nível de popularidade, segundo mostram pesquisas
realizadas nos últimos dois anos.
Vale ressaltar que Michel Temer é um dos alvos principais
na delação da JBS e, na delação da Odebrecht, é acusado de ter
participado de esquemas contratuais fraudulentos entre a Petro-
brás e a Odebrecht. Após sete meses do afastamento por proces-
so de impeachment da presidenta eleita pelo voto popular, Dilma
Rousseff, e de iniciado seu período governamental, Temer inicia
o exercício da presidência, e concede entrevista ao jornal Folha
de S.Paulo em 08/04/2017, defendendo seu modus operandi de go-
vernar. Objetivamos analisar e compreender até que ponto o
discurso do presidente, materializado em tal entrevista, mobili-
za estratégias linguístico-discursivas para conferir legitimidade
às práticas institucionalizadoras da corrupção, além de natura-
lizar e de banalizar esta prática.
Momentos de crise abrem espaços para a existência de pro-
cessos de legitimação de discursos políticos para manter espa-
ços de poder. (Cf. BOURDIEU, 1989; 2003). O discurso político
revela, em suas marcas discursivas, um processo de fortaleci-
mento e de legitimação de pessoas e de grupos no espaço de
prestígio e poder. (VAN DIKK, 2006; CHOULIARAKI; FAIR-
CLOUGH, 1999; ELSHARKAWY, 2016; PARDO ABRIL, 2013;
HART, 2014).
Utilizamos a teoria sociocognitiva de Van Dijk (2003, 2006,
2009, 2010), sobretudo os conceitos de legitimação, ideologia,
cognição social, cognição política para a análise do corpus, que
é uma entrevista de Michel Temer, concedida ao jornal Folha
de S.Paulo, e publicada em 08 de abril de 2017. Dividimos o
artigo em três partes: a primeira apresenta a proposta dos Es-
tudos Críticos do Discurso, com ênfase no sociocognitivismo;
a segunda objetiva expor os conceitos de legitimação, cognição
social e cognição política; a terceira dedica-se à análise do cor-
pus: entrevista do presidente Michel Temer ao jornal Folha de
S.Paulo.
1. A proposta do sociocognitivismo na
análise crítica do discurso
A análise crítica do discurso (ACD) surgiu no início dos
anos 1990, precisamente em janeiro de 1991, num simpósio em
Amsterdã, no qual estavam presentes Norman Fairclough, Teun
van Dijk, Gunther Kress, Theo van Leeuwen e Ruth Wodak. No
entanto, antes desse evento, que marcou o início oficial da ACD,
o ramo, conhecido como linguística crítica, já apresentava, nos
anos 70 e 80, os primeiros sinais do enfoque que a ACD amplia-
ria posteriormente, qual seja, o reconhecimento que a ação no
mundo se dá a partir do discurso. (WODAK, 2003; RAMALHO,
RESENDE, 2006; MAGALHÃES, 2003). Van Dijk (2005, p. 13)
pontua, também, o início de uma época, que ampliou o olhar
das análises no campo da linguística, “a linguística dos anos 60
tinha pouco que ver com o discurso; portanto, o passo a passo
seguinte foi largar as gramáticas das frases para as gramáticas
dos textos”. Ele continua o relato sobre o Simpósio em Amster-
dã, a partir da exposição do desenvolvimento1 de suas pesquisas
e estudos, bem como revela-nos o interesse que moveu o encon-
tro desses pesquisadores em 1991:

Nos anos 90, este trabalho sobre discurso, cognição, notícias e racis-
mo precisava de outra dimensão. Primeiro, o estudo do racismo não
é obviamente o único modo através do qual nós podemos analisar de
forma crítica o modo como o poder e a dominação são reproduzidos
na sociedade. O mesmo se passa relativamente ao sexismo, classicis-
mo e a outras formas de abuso de poder. Por esta razão, eu e muitos

1
Wodak e Reisigl (2015, p. 580, tradução nossa) mencionam, em relação às pes-
quisas de Van Dijk, que “desde a década de 1990, Van Dijk realizou uma série de
importantes estudos de caso sobre “elite racial” e racismo na imprensa, bem como
na política”. Outra pesquisa também faz referência aos avanços feitos por Van
Dijk na elaboração da sua proposta sociocognitivista: “o trabalho teórico de Van
Dijk sobre o processamento do discurso progrediu tremendamente, nos últimos
30 anos, desde seu foco inicial na compreensão e produção do discurso, até sua
incorporação de modelos mentais e, finalmente, à sua consideração mais recente
do contexto e da ideologia.” (ADDISON, 2013, p.12, tradução nossa).
outros acadêmicos juntamo-nos e propusemos uma abordagem ‘crí-
tica’ global ao estudo do discurso, a que chamamos de Análise Crítica
do Discurso (ACD), mas que genericamente falando deve ser desig-
nada de Estudos Críticos de Discurso (ECD), por que não estamos
apenas interessados na análise, mas também na teoria, aplicações e
outros e outros aspectos da abordagem crítica ao discurso.

Wodak (2001), Fairclough ([1992] 2008) e Van Dijk (2016a)


mencionam o desenvolvimento de siglas e termos para iden-
tificar a análise crítica do discurso e Wodak (2001) afirma
que, depois de diversas alterações, optou-se por usar a sigla
ACD. Van Dijk (2016a) considera que, para evitar conclusões
errôneas sobre a ACD como um método especial de análise
discursiva, ele, atualmente, prefere usar a expressão ‘estudos
críticos do discurso’(ECD). Essa postura é reforçada e explica-
da por ele quando afirma que os Estudos Críticos do Discurso
“usam qualquer método que seja relevante para os objetivos
dos seus projetos de pesquisa e tais métodos são, em gran-
de parte, aqueles utilizados em estudos do discurso em geral”
(VAN DIJK, 2008a, p. 10), e defende uma “transdisciplinarida-
de distribuída por todas as ciências humanas e sociais” (VAN
DIJK, 2008a, p. 11).
Além disso, o sociocognitivismo tenta ultrapassar concep-
ções da sociolinguística, que enfatizam a relação direta das va-
riáveis sociais e da linguagem com as estruturas do texto e da
fala, e questiona a relação explicativa dada como certa entre
esses dois polos, ao afirmar que não satisfaz a complexidade do
fenômeno estudado (VAN DIJK, 2014b; 2016a). Isso faz Van Dijk
questionar o modelo explicativo de Norman Fairclough (2003),
pois este não integra concepções de modelos mentais na cons-
trução dos significados pelos atores sociais (VAN DIJK, 2008a;
2008b), o que implica um forte componente determinista na
proposta faircloughiana. (Cf. GUIMARÃES, 2012).
Para Van Dijk, um modelo que procura compreender me-
lhor os enredamentos do fenômeno estudado, deve conectar as
estruturas textuais, cognitivas e sociais, quer dizer, a constru-
ção discursiva da realidade social passa por complexos proces-
sos cognitivos, os quais, por sua vez, exercem forte influên-
cia sobre as construções discursivas atuantes nas interações.
Rejeitar ou ignorar a relevância dessa proposta de análise nos
processos de interação discursiva, segundo ele, seria um retro-
cesso que nos remeteria às lógicas explicativas da ação com
base no behaviorismo que demanda categorias analíticas de
“observabilidade” ou “sociabilidade” das representações cogni-
tivas. (VAN DIJK, 2016b).
A teoria sociocognitiva apresenta uma proposta de investi-
gação do discurso que entende a cognição como uma interface
entre as dimensões discursiva e social. A cognição, dentro da
proposta de Van Dijk, é entendida como “a maneira segundo a
qual os indivíduos elaboram representações do mundo em suas
mentes, constituindo-se como formas de conhecimento”. (RI-
BEIRO, 2013, p. 51). Desse modo, há uma concepção de mundo,
que transcende a de uma totalidade dos elementos físicos, uma
vez que o concebe como um conjunto de indivíduos, numa dada
sociedade, que se mantém por “focalizarem a realidade a partir
de um ponto de vista comum, ou seja, por compartilharem das
mesmas cognições”. (RIBEIRO, 2013, p. 50). A teoria sociocog-
nitiva propõe um modelo explicativo que conecta as análises às
estruturas textuais, cognitivas e sociais (cf. VAN DIJK, 2006;
2009). Van Dijk (2016a; 2014a; 2014b) explica essa triangula-
ção em níveis de análise micronível e macronível e que “uma
teoria coerente do discurso deve explicitar como esses atos es-
tão relacionados, tanto no nível da micro quanto da macroa-
nálise” (VAN DIJK, 2016b, p. 27). O pensador assim define o
sociocognitivismo:

Uma teoria sociocognitiva pressupõe que as estruturas sociais pre-


cisam ser interpretadas e representadas cognitivamente e que tais
representações mentais afetam os processos cognitivos envolvidos
na produção e interpretação do discurso. O mesmo princípio vale
para a relação inversa, ou seja, como o discurso é capaz de afetar a
estrutura social — a saber, através das representações mentais dos
usuários da linguagem como atores sociais. (VAN DIJK, 2014b, p. 122,
tradução nossa).

Van Dijk (2014b) aponta que a inserção de uma interfa-


ce cognitiva na dinâmica explicativa da mudança social e do
abuso de poder é necessária e indispensável para uma análi-
se estratégica de “como as atores sociais produzem seus sig-
nificados e como eles organizam seu mundo de significados”.
(­K LOS-CZERWINSKA, 2015, p. 61, tradução nossa). A estru-
tura textual e a estrutura social são mediadas pela cognição
social, sendo esta “o sistema de representações e processos
mentais dos membros do grupo” (VAN DIJK, 1999, p.18, tradu-
ção nossa). Para Van Dijk, “explicar como os textos podem ser
socialmente construtivos pressupõe uma explicação que rela-
ciona as estruturas textuais com a cognição social e a cognição
social com as estruturas sociais” (HART, 2010, p. 15, tradução
nossa). Grupos, comunidades, instituições, estados nacionais
e suas propriedades e relações “só podem influenciar ou ser
influenciados pelo discurso por uma interface mental que
liga a representação mental de estruturas sociais com as es-
truturas mentais”. (VAN DIJK, 2016b, p. 20, grifo nosso). Ele
entende que os modelos mentais podem sofrer influências e
controle, atingindo também as ações discursivas dos indivídu-
os, quando o modelo responsável por conhecimentos, crenças,
opiniões, atitudes, valores e ideologias consegue ser manipu-
lado ou doutrinado para reproduzir determinado interesse de
um grupo, este ligado à prática de dominação e abuso de po-
der. Essas práticas, Van Dijk (2008a, p. 238) intitula de ‘ilegíti-
mas’: “definimos como ilegítimas todas as formas de interação,
comunicação ou outras práticas que servem apenas aos inte-
resses de uma parte e são contra os interesses dos receptores”.
Abaixo, apresentamos um esquema que descreve bem a pro-
posta de Van Dijk:
Social cognition
(cognitive structure)

Textual structure Social cognition

Fonte: Hart, 2010, p. 17.

A triangulação sociocognitiva texto-cognição-estrutura so-


cial é destacada no trabalho de Hart (2010) Critical Discourse
Analysis and Cognitive Science e que apresentamos a seguir em
forma de quadro:

Panorama de texto-cognição-estrutura social

1. A cognição social está ligada ao que van Dijk (2002) denomina de


memória social.

2. Para van Dijk, processos cognitivos e representações são definidos


em relação a uma estrutura mental abstrata chamada memória, que
é dividida em memória de curto prazo e memória de longo prazo.

3. O processamento real da informação (discurso) ocorre na memória


de curto prazo em comparação à informação armazenada na memó-
ria de longo prazo (discursos). A memória de longo prazo, por sua
vez, é subdividida em memória episódica e memória semântica.

4. A memória episódica armazena informações com base em experiên-


cias pessoais.

5. A memória semântica armazena informações mais gerais, abstratas


e compartilhadas socialmente, como nosso conhecimento da língua
ou conhecimento do mundo.

6. Van Dijk usa a memória social para se referir à memória semântica,


dado o contraste entre a natureza socialmente compartilhada da me-
mória semântica e a natureza idiossincrática da memória episódica.

7. As cognições sociais são estruturas e representações mentais social-


mente compartilhadas.

8 Embora incorporados às mentes dos indivíduos, as cognições sociais


são sociais porque são compartilhadas e pressupostas pelos membros
do grupo. Nesse sentido, o modelo sociocognitivo une tanto o indi-
vidualismo e construtivismo social associado ao consumo de texto.
9. As cognições sociais podem ser caracterizadas mais abstratamente
como atitudes, ideologias, opiniões, preconceitos, discursos ou re-
cursos dos membros. Crucialmente, essas estruturas e representa-
ções cognitivas socialmente situadas são amplamente adquiridas,
usadas e modificadas através de textos.
10. Este processo é facilitado pela capacidade humana de metarrepre-
sentação (Sperber 2000).
“Uma metarrepresentação é uma representação de uma representa-
ção. Os textos são metarrepresentações públicas que “transmitem
representações mentais e têm, pelo menos por extensão, algumas das
propriedades das representações mentais que transmitem” (Sperber
2000: 128). Interpretar textos envolve a construção de metarrepre-
sentações cognitivas das representações linguísticas no texto.

Quadro elaborado pelos autores segundo o trabalho de Hart (2010, p. 16, tradução nossa).

Van Dijk (2016b, p. 27) esclarece que a triangulação texto-


-cognição-estrutura social pode ser analisada em todos os micro e
macroníveis e que “uma teoria coerente do discurso deve explicitar
como esses atos estão relacionados, tanto no nível da micro quanto
da macroanálise”. Além disso, tal movimento analítico, para Van
Dijk (2016b, p. 21), é fundamental para caracterizar o poder minu-
cioso da proposta da análise crítica do discurso e que deve “estar
claro que uma análise crítica adequada exige todos os níveis de
descrição.” Outrossim, a justificativa fornecida por Van Dijk para
sua proposta sociocognitivista é motivada por uma lacuna de viés
determinista que ele atribui ao modelo faircloughiano e que, por
isso, não abarca a complexa rede acionada no fluxo de informações
do processo de construção do discurso, que não é, segundo ele,
“um conjunto de operações algorítmicas, governadas por regras,
mas antes um processo estratégico”. (VAN DIJK, 2003, p. 169). Nes-
se processo estratégico, acionado para a análise, há de se recorrer
ao uso de micro e macro categorias de análise, conforme mencio-
namos. (Cf. ORTEGA, 2018; NATALE, 2015; TOMAZI; NATALE,
2015)2. O esquema abaixo tem por finalidade apresentar o que Van
Dijk (2016b) destaca como análise de micro nível e macro nível:

2
Sugerimos a leitura dos trabalhos de Ortega (2018), Natale (2015) e Tomazi e
Natale (2015) devido às analises dos corpus se debruçarem no movimento analítico
de micro e macro nível da teoria sociocognitivista.
Elementos da análise micronível e macronível no sociocognitivismo

Macro nível de análise Cognição Micro nível de análise

Gênero/Etnia Modelos mentais Sintaxe (discurso direto


e indireto, operadores
Ideologia
argumentativos, vozes verbais);

Grupos Sociais/Classe Léxico (substantivos, verbos,


Social/Cultura advérbios, adjetivos e
preposições);

Estado Estrutura textual, estruturas


narrativas, tópicos gerais do
discurso;

Instituições Estratégias gerais de


polarização, descrição de
atores, eufemismos, hipérbole,
metáforas, discurso de
autoridade;

Nação/ História Expressões multimodais (ima-


gens, fotos).

Quadro criado pelos autores com base em Van Dijk (2006; 2008b; 2014a; 2015)

A compreensão de como dado grupo social produz e repro-


duz abusos de poder e a dominação se concentra na “concepção
de modelos mentais, que são socialmente produzidos e compar-
tilhados pelos membros de um dado grupo social.” (CABRAL;
SILVA, 2016, p. 234). Esses modelos mentais, que fazem parte
da memória social, podem ser ativados quando da “produção da
linguagem em um dado contexto de interação” (CABRAL; SIL-
VA, 2016, p. 234), manifestando, nessas interações, os referen-
ciais de relações de poder de grupo(s) social(is), que são/estão ali
disseminadas para influenciar ideologicamente. Dessa maneira,
manipular o discurso cognitivamente, conforme Van Dijk, afe-
ta “a constituição ou alteração de modelos mentais singulares
(instanciados), com o objetivo de ter maior controle possível so-
bre as representações sociais que os membros de determinado
grupo compartilham entre si […]”. (APT, 2010, p.49). Abaixo,
uma ilustração que apresenta as articulações das memórias e
a vinculação do modelo mental à memória de longo prazo e a
memória semântica3:
Memória episódica
Memória de longo prazo
Memória Memória semântica
Memória de curto prazo Modelos mentais

Gráfico elaborado pelos autores com base em Van Dijk (1997; 2001; 2010).

Na memória de longo prazo, são armazenadas as infor-


mações mais importantes e duradouras (incluindo também as
memórias pessoais das experiências vividas) e que servem de
parâmetro para a leitura da realidade social. A função da me-
mória de longo prazo é comparável a um depósito de dados com
capacidade ilimitada. Nela, a informação é “arquivada e codifi-
cada para que possamos acessá-la quando necessitamos dela”.
(FELDMAN, 2015, p. 211). Os estudos atuais falam de módulos
de memória que possuem diferentes finalidades no contexto da
memória de longo prazo: (1) memória declarativa: “para infor-
mações factuais: nomes, rostos, datas e fatos ‘como uma bici-
cleta tem duas rodas’” e (2) memória processual: “refere-se à
memória para habilidades e hábitos, como andar de bicicleta
ou rebater uma bola.” (FELDMAN, 2015, p. 211). A memória

3
É importante destacar que a evidência experimental do fracionamento da me-
mória humana desenvolveu-se apenas nos últimos trinta anos, ou seja, são avanços
recentes. Reis (2014, p. 23) pontua os avanços nos estudos sobre memória: “No fi-
nal da década de sessenta Richard Atkinson e Richard Shiffrin ampliam o modelo
de James e passam a explicar a memória de uma forma alternativa, dividindo-a em
três níveis de Armazenamento: (1) Armazenamento Sensorial – de armazenamento
relativamente limitado, por um período breve de tempo, (2) Armazenamento de
Curto Prazo com período de tempo um pouco maior, mas ainda com capacidade
limitada de armazenamento e (3) Armazenamento de Longo Prazo com capacidade
grande de armazenamento de informações por um longo, e talvez infinito período
de tempo (Sternberg, 2000). Atualmente, os psicólogos cognitivos descrevem estas
estruturas como “Memória Sensorial” (MS), “Memória de Curto Prazo” (MCP) e
“Memória de Longo Prazo” (MLP).”
declarativa é dividida em memória episódica (ou individual) e
memória semântica (ou social).
Na memória semântica ou memória social, são armazena-
das as crenças coletivamente compartilhadas de uma sociedade,
como também as informações mais gerais e abstratas. Podemos
designá-la como “aquela para os conhecimentos e fatos gerais so-
bre o mundo. Bem como para as regras de lógica que são usadas
para deduzir4 outros fatos”. (FELDMAN, 2015, p. 211). Segundo
Van Dijk (1992), a memória semântica contem as representações
discursivas já generalizadas a partir desses conhecimentos com-
partilhados sobre o mundo.
A memória episódica retém experiências e eventos pesso-
ais ou narrados (por exemplo, formaturas, casamento, início ou
término de relacionamentos) bem como padrões extraídos des-
sas experiências. (KRZYZANOWSKI; WODAK, 2017; HART,
2010). Como afirma Reis (2014, p. 25), “é a memória dos detalhes
biográficos das nossas vidas particulares”. De acordo com Van
Dijk (1992), na memória episódica há representações discursivas
ainda não generalizadas. (Cf. TURAZZA, 2005).
Quanto à memória de curto prazo, ela pode “ser pensada
como o que está em nossa mente: é o que estamos conscientes
em um momento particular no tempo, e o que estamos cons-
cientes constantemente muda à medida que nossa atenção muda
de uma coisa para outra.” (CULPEPER, 2001, p. 58, tradução
nossa). A expressão ‘curto prazo’ faz jus ao termo, pois as infor-
mações ficam retidas num curto período de tempo, em torno de
15 a 25 segundos (FELDMAN, 2015), pois, na memória de curto
prazo, há um limite para armazenamento. (Cf. MILLER, 1956).
Na memória de curto prazo, a informação adquire seu primeiro
significado, embora possua “capacidades representacionais in-

4
Sobre essa questão relacional da memória semântica, Abreu et al (2014, p. 108)
afirma que “os conceitos que constituem a memória semântica se distribuem em
redes de módulos interconectados conforme proximidade de significado entre eles.
Por exemplo, o conceito de fogo está fortemente associado ao conceito incêndio e
mais fracamente com o conceito de água”.
completas” (FELDMAN, 2015, p. 207), isto é, sua capacidade de
estocagem é limitada a 7 ou 8 dígitos, e no caso de conterem mais
dígitos do que 7 ou 8, pode ser usada a técnica de agrupamento
de informações em sete blocos ou agrupamentos. Por exemplo:
PSBFOXCNNABCCBSMTVNBC

PSB FOX CNN ABC CBS MTV NBC

Fonte: Feldman, 2015, p. 208.

Conforme Culpeper (2001, p. 57, tradução nossa), a infor-


mação que foi capturada e interpretada na memória de curto
prazo “é provisoriamente considerada um “episódio” na memó-
ria episódica. Um episódio é uma experiência pessoal, associa-
da a um tempo e lugar específicos.” No entanto, a informação
pode passar da memória de curto prazo para a memória de lon-
go prazo através de estratégias mnemônicas (ensaio e ou ensaio
elaborativo)5 que aumentam, consideravelmente, a probabilida-
de de ser lembrada. (Cf. FELDMAN, 2015).
Porém, não se trata apenas de tipos de armazenamentos,
mas também, de diferentes tipos de conhecimento, ou seja, a
memória episódica e a memória semântica6 capturam diferen-
tes tipos de conhecimento. (VAN DIJK, 1998; CULPEPER, 2001).
Culpeper (2001, p. 59, tradução nossa) esclarece que o ponto de
corte entre a memória episódica e a memória semântica “não é
clara — é provavelmente um continuum — e também não está cla-
ro como exatamente a memória episódica alimenta a semântica”.
Após essa breve apresentação do sociocognitivismo, segui-
mos para exposição dos conceitos de legitimação, cognição so-
cial e cognição política.

5
Ensaio é a repetição de informações que entraram na memória de curto prazo.
O ensaio elaborativo “ocorre quando a informação é considerada e organizada de
alguma maneira” .(FELDMAN, 2015, p. 209).
6
Para maiores informações sobre as diferenças entre a memória de longo prazo
e a memória do curto prazo, indicamos a leitura do artigo What are the differences
between long-term, short-term, and working memory?, de Nelson Cowan (2008).
2. Legitimação, cognição social e cognição política na
perspectiva dos Estudos Críticos do Discurso
Van Dijk (2010; 2014a, 2014b) menciona que os Estudos
Críticos do Discurso mantêm um roteiro de questões e preocu-
pações permanentes nas suas pesquisas e articuladas por numa
rede interdisciplinar:

[…] a maioria dos tipos de ACD fará perguntas sobre o modo como
as estruturas específicas do discurso são organizadas para reprodu-
zir dominação social, quer façam parte de uma conversação, quer
façam parte de uma reportagem jornalística ou de outros gêneros
e contextos. Dessa forma, o vocabulário típico de muitos estudiosos
da ACD apresentará noções como “poder”, “dominação”, “hegemo-
nia”, “ideologia”, “classe”, “gênero”, “raça”, “discriminação”, “interes-
se”, “reprodução”, “instituições”, “estrutura social” e “ordem social”,
além das noções analíticas do discurso mais familiares. (VAN DIJK,
2010, p. 116).

Esse roteiro de noções descreve as preocupações dos Estu-


dos Críticos do Discurso, como o poder, a dominação, a hege-
monia, a ideologia, a raça, a reprodução, entre outros citados, e
é voltado para o entendimento de como as estruturas são orga-
nizadas e articuladas para manter a dominação e o abuso de po-
der. Os três conceitos que propomos trabalhar, neste subtítulo,
têm as seguintes finalidades dentro do contexto teórico do socio-
cognitivismo: (1) o conceito de legitimação, por exemplo, é estu-
dado por Van Dijk (2008b) para revelar como estratégias discur-
sivas, usadas por grupos de poder, podem naturalizar uma dada
ideologia com a finalidade de convencer que ações reprováveis
são boas; (2) o conceito de cognição social tem por finalidade,
dentro do panorama triádico do sociocognitivismo, “o estudo
do estatuto, da organização interna e das funções mentais da
ideologia” (SILVA, 2014, p. 34), e (3) o conceito de cognição polí-
tica, que trata das representações mentais compartilhadas pelos
atores políticos, “observa a reprodução do discurso legitimador
da corrupção política no indivíduo e no grupo social ao qual ele
pertence”. (SILVA, 2014, p. 38).
Trabalharemos, primeiramente, o conceito de legitimação.
Van Dijk (2006, p. 318) assevera que a legitimação “é uma das
principais funções sociais das ideologias”. Em seu trabalho ‘The-
re was a problem, and it was solved!’ Legitimating the expulsion
of ‘illegal’ immigrants in Spanish parliamentary discourse, Martin
Rojo e Van Dijk (1997, p. 560, 561, tradução nossa) conceituam
a legitimação como um ato de “atribuir aceitabilidade aos atores
sociais, ações e relações sociais dentro da ordem normativa ‘em
contextos de’ ações controversas, acusações, dúvidas, crítica ou
conflito”. Assim, a legitimação está relacionada “ao ato de fala
para defender-se, uma das condições de aptidão é muitas vezes
o orador fornecer boas razões, fundamentos ou motivações acei-
táveis de ações passadas ou presentes que foram ou poderiam
ter sido criticadas por outros”. (VAN DIJK, 2006, p. 318). Ela
sempre ocorre em contextos institucionais devido à necessidade
do falante recorrer aos suportes socialmente aceitáveis para jus-
tificar sua fala, que foi ou será criticada, não terá assentimento,
terá desacordo ou será atacada. (VAN DIJK, 2006; 2014a).
É possível que, devido a isso, Van Dijk (2006, p. 319) nos
alerte para a complexidade do processo de legitimação quando
afirma que a “legitimação pode ser uma prática discursiva com-
plexa, continuada, envolvendo um conjunto de discursos inter-
-relacionados”. Sendo o processo de legitimação uma associação
de crenças, hábitos, regras, estilos etc., que visa à superação
da condição de reprovação ou ataque, articula-se um conjunto
de discursos inter-relacionados que capta, dessas associações ci-
tadas, as representações sociais positivas que são chanceladas
por instituições como academias, universidades, laboratórios,
imprensa, tribunais e governo.
As acusações de ilegitimidade, conforme afirma Van
Dijk (2006, p. 319), “fazem  inferências  normativas  de  ações
do ator, ou sobre o seu direito de posição”, por isso, são pautadas
dentro do contexto no qual aquelas normas são valorizadas e
os atores políticos que recorrem a essa estratégia, para alterar
o cenário reprovável, buscam coletar referências dos valores ti-
dos como corretos naquele contexto político. Assim, afirma Van
Dijk (2008a, p. 320):

Dadas as relações entre a legitimação e o poder institucional, o dis-


curso de legitimação é prototipicamente político. Os que se legiti-
mam a si mesmos, como é de se esperar, são aqueles que ocupam
ou são designados para cargos públicos, e que exercem o poder em
razão desse cargo.

O que se intenciona, na utilização da estratégia de legitima-


ção7, é transitar nos ambientes intergrupais, sem que os interditos
de valores sejam acionados a ponto de perderem o poder simbó-
lico ou o seu direito à posição de prestígio e, por isso, “ao serem
quebrados esses limites legais torna-se necessário um discurso
que naturalize estas práticas”. (SILVA, 2014, p. 40). Ou seja, o
que possuía descrédito ou rejeição é transformado em algo banal,
trivial e insignificante, que, de fato, não é, e “cria-se uma ilusão
necessária de que certas práticas são naturais, são menos impor-
tantes e, portanto, legítimas”. (SILVA; BAPTISTA, 2011, p. 127).
Dessa maneira, por exemplo, a legitimação de um discurso
político é uma rede de validação e/ou revalidação que tem como
fundamento normas e valores que são acionados como suportes
validadores, que iniciam o processo de eufemização do fator de-
saprovador, ou seja, é um movimento de transformação de “algo
não-natural em natural, algo não familiar em familiar” (SILVA,
2011, p. 42; MOSCOVICI, 2009). Tal mudança de situação per-
mitirá que o ator institucional permaneça “dentro da ordem
moral vigente” (VAN DIJK, 2006, p. 319), ou seja, a função da

7
Silva (2014, p. 45) afirma que a legitimação “é uma consequência de uma inter-
pretação que presume consenso, é “uma visão de mundo que legitima a autoridade”
(HABERMAS, 2002 [1973], p.129). Esta “leitura de mundo” se processa por meios
sociocognitivos, que envolvem tanto atores e grupos políticos, como o próprio povo
brasileiro que pode vir a reconhecer o discurso mitigador da corrupção como legíti-
mo; e é o que se vê na esfera pública (JOVCHELOVICH, 2000)”. (SILVA, 2014, p. 45).
legitimação é atuar como estratégia discursiva “para naturalizar
uma dada ideologia”. (SILVA, 2014, p. 380).
Dessa forma, Van Dijk (2006, p. 319) afirma que a legiti-
mação “é um discurso que justifica a ação ‘oficial’ em termos
de direitos e obrigações associados a esse papel político, social
ou legal”. A legitimação é uma das principais funções sociais da
ideologia, na qual ideologia, em Van Dijk (2005, p. 54, 55, 190),
é definida como “princípios básicos que organizam as atitudes
partilhadas pelos membros de um grupo”. Em outro trabalho,
ele a conceitua como “estruturas cognitivas”, “uma espécie de
crença, ou seja, representações mentais”. Ele acrescenta, ainda,
que a ideologia é “a base ‘axiomática’ das representações men-
tais partilhadas pelos membros de um grupo social. Isto é, elas
representam os princípios básicos que governam o julgamento
social — aquilo que os membros dos grupos pensam estar certo
ou errado, ou ser verdadeiro ou falso”. (VAN DIJK, 2005, p. 54,
55, 190). Diante dessa dinâmica teórica proposta por Van Dijk
(2006, p. 322), há uma relação entre ideologia e legitimação que
ocorre dentro de uma rede de articulação:

Para legitimar a ação de um grupo, não somente para propósitos in-


ternos do grupo, mas para propósitos intergrupais, um grupo precisa
mostrar que seus princípios básicos são justos, e que, possivelmente,
os de outros grupos são incorretos. Ou precisam afirmar que seus prin-
cípios básicos são gerais, universais, e por tanto se aplicam a todos.

Ainda sobre as ideologias na proposta do sociocognitivis-


mo, Van Dijk (2015, p. 54) afirma que a legitimação é acionada
“quando grupos de pessoas as adquirem, compartilham, pro-
pagam e empregam a fim de difundirem seus interesses coleti-
vos e orientarem suas práticas sociais” e, por isso, a mediação
cognitiva no processo ideológico da legitimação é vista como
intrinsecamente relacionada, pois as ideologias dão “cognitiva-
mente a identidade, os valores e os objetivos de um grupo” e
fornecem “uma base para seu interesse” (VAN DIJK, 2014a, p.
97, tradução nossa). Sendo assim, “as ideologias fazem parte de
uma rede muito complexa de representações mentais de base neu-
rológica armazenadas na Memória de Longo Prazo” (VAN DIJK,
2015, p. 54, grifo nosso) e elas, dentro do contexto dos estudos
críticos do discurso, não assumem um caráter pejorativo, muito
comum ao termo, mas sim, assumem um caráter “mais geral”
e pertencem “às crenças sociais básicas de um grupo, sejam ou
não “positivas” ou “negativas”“. (VAN DIJK, 2014a, p. 97, tradu-
ção nossa; VAN DIJK, 2015).
O conceito de crença tem um papel central no movimen-
to teórico do conceito de ideologia. Conforme Kłos-Czerwińska
(2015, p. 54, tradução nossa), “pode-se dizer que Van Dijk cons-
trói sua teoria do discurso sobre a crença”. As crenças são repre-
sentações mentais que Van Dijk (2006, p. 19) conceitua como
“blocos de construção da mente”. Ele justifica que a persuasão
e a manipulação são ‘blocos de construção da mente’ que viabi-
lizam o controle ideológico do falante: “o controle ideológico do
falante ocorre quando grupos dominantes podem influenciar as
mentes dos próprios falantes, a saber, através da internalização
de crenças”. (VAN DIJK, 2006, p. 324). Dessa forma, podemos
entender que as crenças não são tratadas “como elementos da
doxa, mas como objetos fundamentais que são produzidos por
nossas mentes, constituem o sistema de conhecimento.” (KŁOS-
CZERWIŃSKA, 2015, p. 54, tradução nossa). Por isso que, dentro
da dinâmica conceitual da proposta de Van Dijk, as ideologias
podem ser positivas e negativas de acordo com os valores com-
partilhados por grupos sociais, isto é, elas podem ser desenvol-
vidas a fim de legitimar abusos dos poderes social e político ou
serem usadas a fim de resistir à dominação militar por questões
igualitárias, como combater o racismo e defender o feminismo.
(VAN DIJK, 2015).
Por exemplo, Van Dijk (2014a, p. 97) apresenta uma situa-
ção, no livro Discourse and knowledge: a sociocognitive approach,
sobre a política governamental de Barack Obama a favor dos
direitos civis dos gays. Tal política, informa ele, possuía muitos
adeptos nos EUA e na Europa e os apoiadores de Obama enten-
diam aquela defesa dos direitos civis dos gays como ideologia
“positiva”, bem como, também, havia opositores e conservado-
res que consideravam aquela mesma política como ideologia
“negativa”. As ideologias (positivas ou negativas) são comparti-
lhamentos de valores e normas dos membros de um grupo e não
são, como destaca Van Dijk, experiências pessoais. (VAN DIJK,
2014a, p. 98, tradução nossa).
Conforme explica VAN DIJK (2014a, p. 98, tradução nos-
sa), essas experiências pessoais, embora possam ser muito sig-
nificativas e importantes “na escolha ou desenvolvimento de
uma ideologia”, o são devido às crenças compartilhadas, segun-
do as quais “geralmente nos tornamos feministas ou pacíficas”
e “aprendemos através da comunicação, por exemplo, pela mí-
dia ou ideólogos de um grupo ideológico”. Na sequência des-
sa reflexão sobre o lugar das experiências pessoais, Van Dijk
(2014a, 2015) afirma que elas estariam mais ligadas às ques-
tões dos modelos mentais e, mesmo assim, os modelos mentais
não devem ser vistos como um compartimento que não dialoga
com as realidades sócio-históricas, pois eles, os modelos men-
tais, são responsáveis pela relação da estrutura social e agência
individual, e, consequentemente, para a formação e mudança
de ideologias. Os modelos mentais “são definidos como repre-
sentações mentais incorporadas e subjetivas de experiências,
ações e situações pessoais, representadas na parte da Memória
Episódica (autobiográfica) da Memória de Longo Prazo”. (VAN
DIJK, 2015, p. 55).
Dessa maneira, uma ideologia só pode ser tal, se iniciada
pelas ‘sementes’ subjetivas contidas nos modelos mentais e que
poderão ser ‘germinadas’ a fim de se tornarem socialmente com-
partilhadas. Os modelos mentais são ininterruptamente alimen-
tados para poderem “representar situações sociais e seu ambien-
te”; “para planejar e executar ações específicas e entendê-las ou
coordená-las com outros membros internos e externos ao grupo”
(VAN DIJK, 2015, p. 55). Segundo Van Dijk (2015, p. 56), a dinâ-
mica de aquisição de ideologias articuladas à prévia organização
de modelos mentais subjetivos ocorre da seguinte forma:

[…] elas [as ideologias] são adquiridas gradualmente por pessoas


como membros de grupos sociais, mediadas por experiências pesso-
ais (modelos mentais subjetivos) exemplificadas por, ou generaliza-
das como atitudes socialmente compartilhadas em relação a assun-
tos políticos ou sociais relevantes.

A partir dessa condição de formação dos modelos mentais


e seu funcionamento é que poderá existir uma conexão entre
a agência e a estrutura para o fortalecimento/construção da
ideologia, a saber, ser “base para experiências compartilhadas,
e para atuarem como orientações das práticas diárias de mem-
bros do grupo”. (VAN DIJK, 2015, p. 55). É exatamente devido
às características pré-formativas das ideologias (‘sementes’ sub-
jetivas contidas nos modelos mentais) que se pode explicar “por
que e como as ideologias podem apresentar variações, usos e
manifestações pessoais consideráveis” (VAN DIJK, 2015, p. 55).
Os modelos mentais são definidores de uma marca indelével da
subjetividade no olhar sobre o mundo, assim “podem até estar
mais ou menos em desacordo com as experiências compartilha-
das de um grupo”. (VAN DIJK, 2015, p. 55). Sendo assim, esse
caráter subjetivo dos modelos mentais é fundado nas experiên-
cias individuais ocorridas em ambientes sociais, numa relação
interacional. Assim, para Ribeiro (2013, p.59),

a teoria de modelos mentais tem como tese central o fato de que as


experiências individuais das pessoas, principalmente em interações
comunicativas, propiciam a construção de uma representação tipo
individual, armazenada na memória de longo prazo individual, tam-
bém designada de episódica.

De maneira que podemos pontuar as seguintes caracterís-


ticas dos modelos mentais: a) representações mentais corporifi-
cadas; b) experiências subjetivas; e c) ações e situações pessoais.
A mente na qual são reservadas todas as questões relativas às
representações mentais, não é mais abordada “em uma perspec-
tiva individual, pois a inserção e a interação sociais afetam, de
algum modo, o próprio funcionamento das redes neurais” (VERE-
ZA, 2016, p. 567). Quer dizer, tudo está interligado e entrelaçado
numa rede de interações: a agência e a estrutura cognitivamente
mediada. A transição de modelos mentais para ideologias, con-
forme Van Dijk (2014a, p. 98), dá-se quando as crenças pessoais
específicas sobre questões socialmente relevantes passam a ser
compartilhadas por grupos específicos na sociedade. Como bem
destaca ele, “não existem ideologias pessoais” (VAN DIJK, 2005,
p. 54). Dentro desse escopo, localiza-se o discurso público, no
qual se materializam e articulam as ideologias — os valores, nor-
mas e conhecimentos adquiridos e reproduzidos.
Neste sentido, é através da legitimação que um discurso
público se justifica como ação “oficial”, ao vincular o seu fazer,
através de um processo de justificação institucional, ao status
de adequado aos aspectos políticos e às normas em vigência de
dada comunidade atuando, assim, diretamente sobre a cognição
social, que é uma “combinação de representações mentais so-
cialmente compartilhadas e processos de seu uso em contextos
sociais.” (VAN DIJK, 2006, p. 70). A concepção do papel desse
contexto cognitivo na proposta de Van Dijk é bem pontuada por
Ribeiro (2013, p. 59):

O contexto cognitivo é a construção mental elaborada pelos partici-


pantes de uma prática discursiva, de tal forma que se criam modelos
mentais sobre fatos do mundo referencial. Tais modelos controlam
a produção e a recepção de textos e falas, na medida em que são
necessários para a criação de significados e fundamentais para a in-
teração intragrupos e intergrupos. Trata-se, portanto, muito mais de
uma teoria semântica, que se preocupa em explicar as representa-
ções mentais, que uma teoria pragmática, que se volta para a inter-
-relação de falantes.
As representações cognitivas sociais, de acordo com Van
Dijk (1990), podem ser adquiridas, usadas e modificadas atra-
vés de textos. Van Dijk (2006; 2015) destaca que são poucos os
estudos voltados para as diversas formas de cognição social, no
entanto, “o discurso baseado na ideologia e outras formas de
práticas sociais fornecem uma introspecção indireta dessas estru-
turas mentais subjacentes” (VAN DIJK, 2015, p. 54, grifo nosso).
Já a preocupação, que circunda a cognição política, é o tra-
tar das representações mentais compartilhadas pelos atores po-
líticos e está intrinsecamente vinculada à estratégia discursiva
da legitimação no “sentido de em que observa a reprodução do
discurso legitimador da corrupção política no indivíduo e no
grupo social ao qual pertence”. (SILVA, 2014, p. 38). A cogni-
ção política, segundo Imaculada (2009, p. 46), “se volta para o
estudo dessas representações, que são constituídas pelos conhe-
cimentos e opiniões sobre políticos, partidos”. Sendo assim, o
contexto político em que foi produzido aquele discurso “é tão
importante quanto à análise por meio das próprias caracterís-
ticas linguísticas.” (SILVA, 2001, p. 11, 12). Um esquema para
a compreensão do discurso político “é principalmente definido
por quem fala com quem, como, em que ocasião e com que ob-
jetivos, do que pelas categorias textuais somente”. (SILVA, 2001,
p. 11, 12). Seguindo esse princípio analítico, Van Dijk (2009, p.
257) defende a relevância da inclusão da cognição política nos
estudos do discurso político articulada à política, e às crenças
pessoais, ela seria uma “interface necessária entre as cognições
políticas socialmente compartilhadas, por um lado, e as crenças
pessoais, por outro”.
Dessa forma, o papel da cognição política é evidenciar a
sua preocupação “com os vários aspectos do processamento da
informação e procura explicitar como as representações mentais
sobre situações políticas, eventos, atores e grupos são adquiri-
das, negociadas e estruturadas discursivamente.” (IMACULA-
DA, 2009, p.48). Esses breves apontamentos nos permitem com-
preender o papel da cognição política no movimento explicativo
do discurso político, que é o de funcionar “como uma interface
teórica indispensável entre a dimensão pessoal e a dimensão
coletiva da política e do discurso político” (VAN DIJK, 2008b,
p. 253). Assim, os temas de pesquisa de discursos focados num
olhar da cognição política são: a organização das crenças políti-
cas; a percepção dos candidatos políticos; julgamento e tomada
de decisão política; estereótipos, preconceitos e outras atitudes
sociopolíticas; a identidade dos grupos políticos; a opinião pú-
blica, a formação da impressão e muitas outras questões que
têm a ver com as representações da memória e os processos
que contribuem para a compreensão política e interação. (VAN
DIJK, 2009). Silva (2011; 2014) utiliza o conceito de cognição
política para analisar a corrupção parlamentar, e afirma que “a
cognição política contribui para o entendimento da ideologia e
de suas representações, assim como também elucida as práticas
políticas, como a corrupção […]”.
Com base nesses conceitos trabalhados, seguiremos para
análise do corpus.

3. Análise do corpus
O corpus desse trabalho tem como unidade de análise uma
entrevista, intitulada “‘Acho que não cometi nenhum erro’, diz
Temer sobre seu governo”8, composta por 18 perguntas, entre-
vista concedida pelo presidente da república, Michel Temer9, ao
Jornal Folha de S.Paulo, publicada em 08 de abril de 2017, em
sua plataforma on line. Propomo-nos uma análise do discurso
do presidente, a partir de um enfoque sociocognitivo e com base
em categorias temáticas que enquadramos recortes de trechos
da entrevista. Sendo assim, procedemos, em seguida, à análise
do corpus com as seguintes categorias: 1) legitimação; 2) cogni-
ção social e 3) cognição política.

8
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/04/1873827-acho-que-nao-come-
ti-nenhum-erro-diz-temer-sobre-seu-governo.shtml

9
Período de seu governo: 31 de agosto de 2018 a 31 de dezembro de 2018.
3.1. Categoria 1: Legitimação (perguntas/respostas 1ª, 2ª, 3ª e 6ª)

As respostas de Temer aos questionamentos, marcados por


acusações e desaprovações, mobilizam o recurso de legitima-
ção. Ele recorre, sempre, à chancela dos contextos institucionais
para se defender e para superar as críticas e controversas. Ao
procurar amparo em suportes socialmente aceitáveis, tenta fa-
zer parecer natural o que não é, além de enquadrar suas ações
nas expectativas da ordem normativa. (Eu acho que não cometi
erros. Eu cometi acertos. […] Eu pratiquei atos, especialmente com
o apoio do Congresso, que foram considerados ousados). A legiti-
mação está relacionada ao ato de fala defensivo, sendo uma das
condições para tal processo o fornecimento de razões, funda-
mentos ou motivações que encontram eco nas ideologias mate-
rializadas nas práticas discursivas de determinadas instituições
sociais e, em outro momento da entrevista, Temer emprega a
legitimação para fundamentar a explicação sobre o escânda-
lo envolvendo o então ministro Geddel Vieira Lima. Ele tenta
persuadir os leitores de que a ação corruptora é aceitável, ao
minimizar a gravidade do fato, eufemizando-o. Assim, o “acon-
tecido” permanece “dentro da ordem moral vigente” e o áudio,
que capturou a ação ilícita de Geddel, segundo Michel Temer,
representa um ato reprovável, por ter sido capturado em sua
sala, ou seja, na do presidente da República. (Equivocado foi al-
guém entrar na sala do presidente e gravá-lo. Esse é um ato de gra-
vidade extraordinária — que não vi registrado, confesso a vocês). Há
um deslocamento, o escândalo de Geddel passa a um segundo
plano, o que realmente conta é que houve um ato equivocado de
gravidade extraordinária, Geddel é a verdadeira vítima, assim
como o presidente. Nota-se que Temer tenta desacreditar as opi-
niões negativas em relação ao escândalo Geddel redirecionando
à acusação contra os acusadores (o de ter gravado alguém na
sala do presidente), além de afirmar que Geddel pediu para sair
“quando soube dos episódios”, “durando” apenas por uma semana
após as denúncias. (O Geddel, quando soube dos episódios, durou
uma semana e ele pediu para sair). Nota-se a intenção de desvio
do foco da culpabilização e uma tentativa de desqualificar o ato
de corrupção (… quando soube dos episódios, durou uma semana
e ele pediu para sair), como se o fato de apenas se afastar do
cargo fosse suficiente para resolver a questão do envolvimento
de um ministro de Estado num escândalo por pressionar outro
ministro a liberar obra, em Salvador, que havia sido negada pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Há um outro efeito, ainda: o ministro aparece como alguém que
agiu eticamente (ele pediu para sair), pois quis preservar a ima-
gem da equipe do presidente e passar a imagem que é dotado
de certo constrangimento moral (… quando soube dos episódios,
durou uma semana e ele pediu para sair).
Partindo do acima exposto, estamos diante de um pre-
sidente que não somente tenta minimizar a gravidade dos
acontecimentos, mas tenta legitimá-los, articulando discur-
sos inter-relacionados às representações sociais positivas
mobilizadas em contextos institucionais: Congresso Nacional
(resposta 1ª — com apoio do Congresso), a mulher no contexto
da economia (resposta 2ª — “… a mulher assume cargos de di-
reção e executivos nas grandes empresas”), Ministério Público e
Tribunal Superior Eleitoral (resposta 6ª — “Pelo próprio parecer
do Ministério Público […]/[…] tendo em vista uma jurisprudência
firmada no TSE”).

3.2. C
 ategoria 2: Cognição social (perguntas/respostas
9ª, 10ª, 11ª, 12ª,13ª)

Nesta categoria, podemos perceber que as afirmações de


Temer visam a justificar as suas ações dentro do cenário polí-
tico, com a valorização de sua experiência e destaque de suas
credenciais sociais legitimadoras (“Eu sou da área do direito pú-
blico e constitucional. Durante muito tempo, eu convivi com juris-
tas, porque, antes de ser deputado federal, a minha atuação era na
área universitária”). Na sua resposta, há uma combinação de re-
presentações mentais socialmente compartilhadas, que podem
remontar às representações de prestígio que a área de direito
possui na percepção da população e Temer, ao afirmar que
convive com juristas, pode, também, acionar as representações
mentais de um status de prestígio relacionado ao seu círculo
de amizades e convivência. Essa representação de prestígio é
reforçada e valorizada, ainda mais, por mencionar o seu con-
vívio com pessoas ligadas ao saber e à prática da justiça. Além
disso, há a afirmação de sua atuação na ‘área universitária’
que o coloca na condição de um homem atuante nas rotinas
da universidade, do ensino, da educação e do pensar. (Duran-
te muito tempo, eu convivi com juristas, porque, antes de ser de-
putado federal, a minha atuação era na área universitária”). De
certa forma, ele desloca o sentido das representações positivas
socialmente compartilhadas das instituições e dos símbolos
para a sua própria imagem. Ao proceder assim, Temer tenta
blindar-se, pois toma para si, discursivamente, todo o aparato
de características positivas das instituições mencionadas. Ele
tenta afastar de si a imagem de político corrupto ou que usa
indevidamente sua posição política (E daí? A gente não pode
conversar?). Ao mobilizar modelos de cognição social relativos
ao campo do direito, ele procura identificar-se com a justiça,
com uma conduta ilibada e como alguém que pauta a vida pelo
respeito às leis. (Ele decidirá com aquilo que ele imagina e pensa
na boa interpretação do direito e da prova dos autos). O que fica
mais evidente, ainda, quando afirma estar preocupado com
qualquer interrupção de investigações ou obstrução da justiça
(… mas elas não podem cessar em função disso. Senão vão dizer
que estamos contra a Lava Jato).
3.3. Categoria 3: Cognição política (14ª, 15ª, 17ª, 18ª)

Temer pretende convencer que ele e seu grupo político não


estão envolvidos com esquemas de corrupção (“nada a ver”, “ne-
nhuma preocupação”, “nenhuma participação”…) e que ele não se
envolve em estratégias que visem a adquirir benefícios impró-
prios dentro do sistema jurídico. (Quem recebeu mal foi o juiz
Sérgio Moro. Ele indeferiu desde o início 21 perguntas […] Na pró-
pria sentença condenatória, o juiz disse que ele tentou chantagear o
presidente). As afirmações de Temer de que o poder judiciário o
vê de maneira positiva e até vítima de chantagem por Eduardo
Cunha (que afirma que Temer sabia de todas as ações ilícitas)
lhe possibilita apresentar e validar sua representação cognitiva
de determinados aspectos do mundo. A cognição política impli-
ca o entendimento do processo mental e social do indivíduo e
de seu grupo, através de articulações ideológicas complexas. Por
exemplo, o tema “chantagem” é retomado na pergunta: O senhor
se sentiu chantageado?, forçando Temer a dosar suas afirmações
para proteger o seu grupo social e político e sua identidade insti-
tucional, desviando quaisquer discursos que pudessem ligá-lo(s)
a práticas de corrupção. (Não me incomodo com o que ele diz, com
toda a franqueza. Não tenho nenhuma preocupação com as afirma-
ções dele. Ele é do PMDB, chegou à presidência da Câmara […]).
Percebe-se o uso dessa mesma prática discursiva de proteção à
identidade institucional quando responde sobre a questão em
relação a Renan Calheiros (PMDB) (Não rompi com ele, nem creio
que ele seja meu adversário). Temer constrói discursivamente
uma imagem positiva do seu partido e dos aliados (Acho até que,
quando ele diz uma coisa ou outra coisa, talvez tenha boa intenção,
não sei dizer), com base na cognição política resgata e mobiliza
conhecimentos que possui sobre política, partidos, conchavos,
debates, prestígio, cultura e acessa, assim, crenças e visões que
o povo possui em relação a esses temas.

Considerações finais
Mobilizamos as categorias, acima mencionadas, na análise
crítica da entrevista de Michel Temer, e constatamos, por parte
do presidente, estratégias discursivas de legitimação do seu pró-
prio desempenho enquanto líder do executivo e da atuação do
seu governo, fortemente criticado e questionado quanto ao seu
envolvimento em práticas de corrupção. Temer acessa represen-
tações mentais a fim de desconstruir as perguntas formuladas
pelo repórter, assim como as críticas e acusações levantadas
contra o seu governo, estabelecendo uma forte ligação entre o
seu modo de pensar e agir (pretensamente) e cognições sociais e
políticas atuantes no seio da sociedade brasileira e de determina-
das instituições, o que possibilita, por exemplo, o entendimento
que as relações institucionais podem validar comportamentos
fora da lei.  As três categorias mobilizadas na análise revelam
práticas sociais e políticas, na cena política brasileira, que:
ü colocam em risco a própria compreensão do Estado bra-
sileiro como sendo “de direito e democrático”;
evidenciam um desgaste crescente de determinados va-
ü
lores éticos e referencias morais necessários para uma
convivência razoável em sociedade;
representam verdadeiros abusos de poder e as diferentes
ü
formas discursivas de sua legitimação;
colocam acima de quaisquer interesses públicos, os inte-
ü
resses pessoais, partidários e corporativos;
visam à manipulação e à desorientação de possíveis cog-
ü
nições sociais e políticas que pudessem contribuir para
um processo de emancipação e conquista de cidadania
por parte da população;
instituem práticas nocivas de manipulação, interferên-
ü
cias irregulares e abusos de poder entre os três poderes:
executivo, legislativo e judiciário.

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CAPÍTULO 7 NOVINHA:
Efeitos de um já-dito
na música brasileira
José Reginaldo Gomes de Santana (UNICAP)
Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo (UNICAP)

E
ste trabalho trata de um gesto analítico voltado a um
discurso, de uma preferência masculina por mulheres
muito novas, materializado nas músicas de MC1 Shel-
dom, cantor atual do chamado brega-funk pernambu-
cano. A repetibilidade desse discurso — nas músicas de Shel-
dom e de outros Mcs espalhados pelo Brasil — traz um efeito de
evidência no dizer do senso comum e da mídia de que músicas
de outrora não eram por ele constituídas. Em comentários sobre
músicas brasileiras em sites da internet, é comum vermos cita-
ções como “A música brasileira de hoje é deprimente, principal-
mente o funk pedófilo, criminoso de ostentação”2 .
A partir de marcas discursivas, traços de memória (COUR-
TINE, 2006) em circulação na música “Novinha, não chora,
não”, fomos em busca de já-ditos, de repetições e deslizamentos
de sentidos em funcionamento na música brasileira de outras
épocas, para, então, compreendermos o funcionamento desse

1
MC é a sigla de mestre de cerimônia, um apresentador de evento musical, mas
que ultimamente denomina os artistas cantores de funk e hip hop.
2
Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/09/tese-douto-
rado-degeneracao-musica-brasileira.html Acesso em: 15 dez. 2018.
discurso em determinadas condições de produção, calcados na
afirmação que

O já dito está na base do dizível, sustentando cada tomada da pala-


vra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o
sujeito significa em uma situação discursiva dada. Ele é todo o con-
junto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que
dizemos. Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que ela
faça sentido (ORLANDI, 2007, p. 31).

Esse já-dito, dito de outra forma e em outro lugar, perpassa


os dizeres das músicas Novinha, não chora, não do Mc Sheldom
e Boco, Panela velha que foi composta por Celmar de Moraes
(Moraezinho) e conhecida na voz do cantor Sérgio Reis, O xote
das meninas de Luiz Gonzaga e Zé Dantas. O corpus discursivo
deste trabalho, então, foi constituído por recortes mobilizados a
partir dessas músicas e de notícias sobre o Brega-funk em blogs.
Este capítulo é fundamentado na teoria e na metodologia
da Análise de Discurso pecheutiana (AD) e nos seus desdo­
bramentos a partir de estudos de Eni Orlandi. Dentro do ar-
cabouço teórico da AD, utilizaremos o conceito de memória
discursiva e traços de memória (COURTINE, 2006) existentes
no discurso. A memória discursiva, segundo Courtine (2009, p.
105), se refere “à existência histórica do enunciado no interior
de práticas discursivas regradas por aparelhos ideológicos”. Ela
“irrompe na atualidade do acontecimento” (p. 103).
Apesar de nosso recorte se dar a partir do significante “no-
vinha” e de seus efeitos de sentido, sabemos que o brega-funk­
pernambucano não se restringe à sexualidade. Entendemos
como Gomes (2013) que, por intermédio da música, há uma
reinvenção de si e um reposicionamento na vida efetuados pelos
músicos desse gênero.

Tais composições apresentam elementos bem característicos da


modernidade em que processos de deslocamentos são constantes
favorecendo a (re)criação de diferentes identidades, bem como a rea-
lização de várias ações não devendo então ser rotuladas de forma
fixa, nem rígida, nem colocadas em fronteiras classificatórias estan-
ques, já que é extremamente movediço o universo em que os sujeitos
constituem a si próprios e constroem o mundo em que vivem. (…) o
funk não se furta a promover reflexividade e que resulta de um pro-
cesso de hibridização cultural bastante intenso, em que os atores so-
ciais, normalmente, se comprometem com o dito, seja para estabele-
cer, manter ou resistir a situações de dominação (GOMES, 2013, p. 8).

O nosso gesto analítico pretende interpretar o funciona-


mento discursivo desses ditos, no entanto não pretendemos es-
tabelecer uma via dicotômica analítica do certo e do errado. En-
tendemos que o não atentar para o que acontece no contexto do
“mundo” funk — o não compreender as condições de produção
dos discursos dos seus sujeitos, ou o olhar para esse “mundo” de
modo preconceituoso, retratando-o de forma estigmatizada —
parece revelar, como nos diz Gomes (2013, p. 21), “muito mais
a rejeição não apenas ao funkeiro, mas, sobretudo ao que ele
normalmente representa: pobreza, desemprego, baixa qualidade
da educação”.
Antes de partirmos para as análises, trataremos das condi-
ções de produção restritas das primeiras sequências discursivas.
Décadas atrás, quando um produto de um cantor era lançado no
mercado, geralmente, escolhia-se como divulgação uma “música
de trabalho”. Após certa saturação de determinada música na mí-
dia, lançava-se outra do mesmo CD/DVD. Hoje, os singles funcio-
nam de forma parecida nas rádios e nas plataformas digitais, po-
rém o poder de quem lança a música, de quem lança novos canto-
res não está restrito às grandes gravadoras. A forma de lucro dos
artistas também se diversificou. No final dos anos 2000, Tomioka
(2009) já relatava essas transformações no mercado fonográfico.

A antiga indústria fonográfica se baseava em um modelo de venda


de cópias, ou seja, na venda do arquivo de música atrelado à alguma
mídia, como o compact disc (CD). Os avanços tecnológicos, como o
barateamento de computadores pessoais e o desenvolvimento da
internet minaram o modelo de negócios dessa indústria. (…) boa par-
te dos artistas tem a sua receita principal com a venda de shows e
as grandes gravadoras, muito lentas no processo, ainda discutem
um possível novo modelo de distribuição de conteúdo que seja mais
rentável para elas (TOMIOKA, 2009, p. 1).

O brega-funk pernambucano surge nessas condições quan-


do os MCs pernambucanos passam a utilizar, de forma híbrida3,
o brega, o funk carioca e batidas de música eletrônica nas suas
músicas. Mas ao invés da temática romântica de sofrimento por
uma única mulher que o brega apresentava, o brega-funk tra-
zia músicas que posicionavam um homem sempre partindo em
busca de outra (ALBUQUERQUE, 2018). Essa ‘busca de outra”
inclui, também, as novinhas.
A primeira sequência que apresentaremos trata de uma no-
tícia sobre um inquérito aberto pela Polícia Civil de Pernambu-
co na investigação de músicas que traziam em suas letras versos
que poderiam ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente. A
segunda sequência trata do dizer sobre esse estilo de música e
sobre como se comportam as novinhas nos eventos que tocam
essas músicas. Partiremos, então, do dizer sobre o brega-funk
para, então, tratarmos do seu discurso como já-dito.

Sequência discursiva 1:
A Polícia Civil de Pernambuco abriu inquérito para investigar se três
músicas de MCs, que tocam diariamente nas emissoras de rádio no
Estado, incentivam a prática de pedofilia. A investigação foi aberta
a pedido do MP (Ministério Público Estadual), que questionou versos
das canções que viraram “hits” no Estado. As letras das músicas “A
posição da rã” e “Gostou, novinha?”, dos MCs Cego e Metal, e “Se eu

3
O conceito de híbrido, aqui, refere-se ao que Canclini (2011) chama de hibrida-
ção cultural, que trata, entre outros fenômenos dos diálogos entre a cultura popu-
lar, a cultura de massa e outras culturas nos países latino-americanos.
mato, eu vou preso”, composta pelo MC Sheldon, caíram na boca do
povo, mas, para o MPE, contêm versos com duplo sentido e poderiam
ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao incentivar a
prática sexual com adolescentes.4

Sequência discursiva 2:
E, infelizmente, hoje é comum ver “as novinhas” dançando de uma
forma que há algumas décadas atrás só as prostitutas faziam nos
cabarés. No entanto, mais preocupante do que meu conservadoris-
mo que faz com que eu sinta repúdio por essa coisa que insistem
em classificar como música, é a apologia à pedofilia e à erotização
precoce que o “funk” traz.5

Na SD1, os dizeres nos trazem marcas dessas condições


de produção restrita do discurso. Nelas, a repetibilidade do di-
zer “novinha” se efetua exaustivamente em um curto espaço de
tempo. São três músicas que tocam diariamente nas estações de
rádio, que viraram hits e caíram na boca do povo.
Essa repetibilidade é, antes, efetuada nas ruas, nos carri-
nhos de CDs, nos celulares de pessoas no metrô, nos ônibus e
nos bailes de periferia. Mas, no momento que passa a aparecer
em espaços outros, ela é questionada sobre o que ela diz e se
esse dizer pode ecoar em outros espaços que não sejam os da
comunidades desses MCs. Ou seja, o que é dito pela boca do
povo pode ser dito nas rádios? Remontemos ao “batuque na co-
zinha sinhá não quer…”, um samba composto por João Baiano,
no começo do séc. XX. Segundo Alvito (2009), Baiano, com seus
sambas, fazia críticas à perseguição do regime republicano à
população afro-brasileira do Rio de Janeiro.

4
“Polícia investiga se músicas com duplo sentido de MCs incentivam pedofilia
em Pernambuco” – matéria de Gabriel Diniz. Disponível em: http://blogdogabriel-
diniz.blogspot.com.br/search?updated-max=2011-08-26T21:16:00-03:00&max-
results=200&reverse-paginate=true Acesso em: 15 dez. 2018.
5
“Quem são ‘as novinhas’ do Funk? A apologia à pedofilia e a erotização preco-
ce” – matéria de Jefferson Nóbrega. Disponível em: http://candangoconservador.
blogspot.com.br/2011/07/quem-sao-as-novinhas-no-funk-apologia.html Acesso em:
15 dez. 2018.
Batuque era um termo genérico registrado pelos cronistas desde
o século XVIII e podia designar diferentes festas e manifestações
afro-brasileiras, como lundu, jongo, capoeira e candomblé. Nessa
época, também era encarado pelas autoridades judiciárias — e bran-
cas — como sinônimo de briga, desordem e talvez mortes. Por isso,
a cozinha, localizada dentro da casa-grande, não era o lugar mais
apropriado para se batucar. E era a Sinhá, a senhora de escravos, que
não permitia sua prática ali. A referência ao grupo de cativos reunido
à roda de uma fogueira também aparece quando se canta “por causa
do batuque eu queimei meu pé”. Ou, talvez, o sambista carioca qui-
sesse mostrar que aquele que cantasse na cozinha podia se queimar,
ou seja, ser punido (ALVITO, p. 46, 2009).

Para Orlandi (2012, p. 171) “todo dizer é assim já um gesto


de interpretação, uma posição, entre outras, em relação a uma
memória”. A posição de parte da sociedade, da mídia e do MPE,
para nós, produz um efeito de sentido de que enquanto o sujeito
MC se restringe ao seu espaço de periferia, ao seu modus ope-
randi anterior, esses setores o têm na ordem da invisibilidade.
Quando o sujeito MC aparece na mídia de uma forma
exaustiva, ultrapassando o espaço de segregação a ele confe-
rido, essa invisibilidade se “acaba”, mas isso não é garantia de
que a divisão do social se pague nessas relações. O que se vê
e o que se ouve, a partir daí, incomoda, desestabiliza o que
está posto no tocante ao que se deve ser visto, ouvido, cantado
e dançado em outros espaços que não sejam os espaços dos
bailes funks de comunidade. Orlandi (2012, p. 229) entende
que a sociedade não é inerte e que há diferentes modos de in-
dividuação produzidos pelo Estado, que determinados sujeitos
“se individuam pela falta, na falha do Estado. O que contribui
para que sejam postos em um processo de segregação”. No caso
dos MC e do brega-funk, é interessante perceber como esses
rituais de individuação, também, podem falhar. Como podem
ser dinâmicos os processos de subjetivação ante a individuação
do sujeito pelo Estado.
Na SD1, o “caíram na boca do povo” produz um efeito de
legitimidade, mas não de uma legalidade conferida pelo ECA.
Na SD2, a partir das marcas “as novinhas” dançando e só as pros-
titutas faziam nos cabarés, podemos pensar — numa alusão ao
que pode ser dito (PÊCHEUX, 2009) — sobre qual seria o corpo
feminino que pode/deve, ou não, expor-se, revelar-se, movimen-
tar-se sensualmente no espaço ou na materialidade musical-dis-
cursiva do funk. Os gestos de preocupação e repúdio do sujeito
da SD2 trazem um efeito de que o funk faz apologia à pedofilia
numa materialidade que antes não foi usada como “suporte”
a um discurso tal. Portanto, entendemos que, em determina-
dos espaços discursivos, o dizer “novinha” produz um efeito
de nunca ter sido dito, ou utilizado com efeitos de sentido que
lembrem os discursos que circulam nas condições de produção
do Brega-Funk.
A próxima sequência discursiva trata de um trecho de uma
música do Mc Sheldon que descreve a sua posição diante do fato
de ter sido preso por causa da repercussão negativa de suas mú-
sicas. Ele se dirige às novinhas que choraram pela sua prisão e,
também, marca e posição do juiz na legitimidade de sua soltura.

Sequência discursiva 3:
Novinha não para não. /Olha bem, não chora, não! /Quem pensou
que nós tá preso/Olha a gente no mundão (…) Mas o juiz já deu o
papo/ Que não tem problema, não/ Porque isso que nós canta/ É
liberdade de expressão. (Mc Sheldon)6

As expressões “novinha não para não” e “não chora, não”


na FD do brega-funk pernambucano estão, na maioria das ve-
zes, atreladas aos movimentos da dança, da relação sexual, ao
desejo de querer que algo continue. A SD3 é representativa de
um determinado momento após um tempo de idas e vindas do
sujeito com a justiça. Segundo Grigoletto (2005) “O sujeito sem-

6
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ovp9TuA4JDo Acesso em:
15 dez. 2018.
pre fala de um determinado lugar social, o qual é afetado por
diferentes relações de poder, e isso é constitutivo do seu discur-
so”. Nessa sequência — pensada em suas condições de produção
restrita — primeiro, o sujeito toma posição de um MC que gosta
de mulheres novas, adolescentes, submissas. Depois, o termo
“novinha” se apresenta legitimado no dizer do sujeito MC pela
menção à interpretação dada por um juiz ao termo e ao que a
ele se atrela.
Mesmo depois de o juiz interpretar o fato como liberdade
de expressão, o sujeito MC, dada a visibilidade das suas músicas
e por ele ser chamado à justiça, relativiza a expressão “novinha”,
como veremos adiante, relacionando-a às jovens que gostam de
serem assim chamadas para se acharem mais novas. Para burlar
a justiça, significantes vão sendo substituídos na música do MC
à proporção que ele se expõe perante à lei e às críticas de setores
da sociedade.

O ano de 2014 foi de reviravoltas na vida de Sheldon da Silva Fer-


reira, de 23 anos. Casado há 10 meses com Suelen Mansur, afastado
das drogas, ele desfez a dupla com Boco e deixou o título de MC para
dar o pontapé no projeto solo e trazer nova roupagem para com-
posições. “Decidi fazer músicas voltadas para os jovens, com letras
leves e sentidos mais puros, alegres e dançantes, além de algumas
faixas românticas”, explica o artista, que deixa as polêmicas com as
“novinhas” no passado e quer se afastar de temas “proibidos”. Para
consolidar a nova fase, ele divulga nesta segunda-feira (1º) o clipe
da música inédita Estilo panicat, a grande aposta para o verão, que
vai entrar no páreo para o hit do carnaval 2015.7

Passados alguns anos, na música O Hit do verão, lançada


para o Carnaval 2018, Sheldom se utiliza da palavra menina no
lugar de novinha: “Hit de verão pra todas meninas. Aquelas que

7
Disponível em: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2014/
12/01/internas_viver,546246/o-recomeco-de-sheldon-rei-das-novinhas-assume-
-a-carreira-solo.shtml Acesso em: 15 dez. 2018.
senta, aquela que quica”8. Essa troca se dá pelo fato de que a
palavra menina já ser amplamente utilizada e aceita em diferen-
tes formações discursivas do universo musical como uma forma
afetuosa de tratar uma mulher. Nesse gesto, o Sujeito MC não
muda sua posição de sujeito discursivo com relação às meninas
novas. Na nova música de Sheldom, menina funciona como algo
pré-construído que retorna, mobilizando sentidos já cristaliza-
dos no mundo do brega-Funk, assim como a utilização do pani-
cat lançado no Carnaval de 2015. Segundo Gallo (2001)

Paul Henry propõe o termo “pré-construído”, para dar conta dessa


presença do outro, que não é o outro enunciativo, nem o outro in-
terdiscursivo, o primeiro, pontual demais, o segundo, amplo demais.
O pré-construído é o outro do interdiscurso, circunscrito em uma
região histórica e ideológica, delimitada no acontecimento do dis-
curso. (GALLO, 2001, p. 1.)

Esse encaixe/substituição da palavra menina, fruto de cen-


sura e da pressão de partes da mídia, da sociedade e da coerção
da justiça, apesar de aludir a outros discursos que funcionam
de modos diferentes no cancioneiro brasileiro, não descola do
sentido de novinha na FD do brega-funk.
Analisados as condições de produção do discurso, o discur-
so sobre o funk pela mídia e a movência do dizer do sujeito MC,
trataremos, a seguir, do discurso de Novinha como um já-dito
na música popular brasileira.

Sequência discursiva 4:
Numa luta de gregos e troianos/ Por Helena, a mulher de Menelau/
Conta a história de um cavalo de pau/ Terminava uma guerra de
dez anos/ Menelau, o maior dos espartanos/ Venceu Páris, o gran-
de sedutor/ Humilhando a família de Heitor/ Em defesa da honra

Em “Sheldom, o diamante”. Disponível em: https://www.youtube.com/


8

watch?v=aUNAM_YP3pI Acesso em: 15 dez. 2018.


caprichosa/ Mulher nova, bonita e carinhosa/ faz o homem gemer
sem sentir dor.9

A música de Zé Ramalho, recortada na sequência 3, é pro-


veniente de um mote10 do poeta e repentista Otacílio Batista.
Nessa música, originada de um repente, há uma alusão à cultu-
ra clássica nos seus versos. Nessa sequência discursiva, o que
se cola à imagem da mulher é o legado do fato de ela ser nova,
bonita e carinhosa. O que se acentua no homem, na luta pela
posse da mulher que tem tais atributos, é a bravura e a sedução.
Embora o discurso possa ter um efeito elogioso a um tipo
de mulher — merecedora de ser a causa de um conflito bélico de
dez anos entre aqueus e troianos — ele produz um efeito de que
ela é dita como um objeto, um troféu de guerra, onde o brio do
homem macho deve ser polido. O ser nova é apresentado como a
primeira característica, e que com os outros dois dotes provoca o
gemido que não é produzido pela dor, mas pelo prazer. Um já-di-
to na literatura histórico-mitológica universal é assim mobiliza-
do produzindo outros efeitos de sentido. Diferente da SD1 o dizer
sobre a mulher “nova” se apresenta legitimado pela honra e pela
capacidade que ela tem de fazer o homem gemer sem sentir dor.
O texto do poema épico Ilíada (CAMPOS, 2003), atribuído
a Homero, revela Helena como a mulher mais bonita do mundo.
Na SD 4, um encaixe sintático — na composição musical em sua
relação com o mote de Otacílio Batista e pelo trabalho da me-
mória — adjetiva Helena como nova e carinhosa. Isso funciona
como um jogo de repetição. Indursky (2011) diz que o jogo de
repetição se produz no entrelaçamento entre repetição, memó-
ria e sentido. Entendemos que o significante nova, apresentada
como encaixe na adjetivação de Helena, apesar de ter um efeito
de evidência, possui uma materialidade histórica. Essa mate-

9
Disponível em: https://www.letras.mus.br/ze-ramalho/82373/ Acesso em: 15
dez. 2018.
Disponível em: https://www.last.fm/pt/music/Otac%C3%ADlio+Batista/+wiki
10

Acesso em: 15 dez. 2018.


rialidade constitui o dizer do sujeito autor ao relacionar a causa
do prazer masculino ao poder da beleza feminina. Uma beleza,
porém, intrínseca ao fato de a mulher ser nova.
A sequência discursiva 5, a seguir, é recortada do cancioneiro
da música sertaneja no início dos anos 1980. Para Caldas (2005),
a música sertaneja passou por várias transformações durante sua
existência. Assim, ele descreve as transformações que ocorreram
no início dos anos 1970 e perduraram por algumas décadas:

A viola portuguesa, símbolo mítico da canção sertaneja, cede espa-


ço para a guitarra elétrica. A forma nasalada de cantar, influência
da herança indígena, rapidamente desapareceria, a instrumentação
musical se transforma e ganha características técnicas e timbrísticas
diferentes do que era, aproximando-se muito da música pop interna-
cional (CALDAS, 2005, p. 63).

O cantor Sérgio veio da jovem guarda e se enquadrou per-


feitamente nessas transformações que a música sertaneja vinha
passando. No final dos anos 1970 e início dos anos 1980 foi
um dos cantores sertanejos que mais faturou com vendagens de
discos e realização de shows (CAVICHIA, 2014). Apesar dessa
posição de enquadramento nas transformações que passavam a
música sertaneja, as gravações do cantor traziam músicas com
temáticas tradicionais e regravações clássicos desse estilo que
evocava o cotidiano do Brasil rural.

Sequência discursiva 5:
Tô de namoro com uma moça solteirona,
A bonitona quer ser a minha patroa,
Os meus parentes já estão me criticando
Estão falando que ela é muito coroa,
Ela é madura, já tem mais de trinta anos
Mas para mim o que importa é a pessoa,
Não interessa se ela é coroa
Panela velha é que faz comida boa
Menina nova é muito bom mas mete medo/ Não tem segredo e vive
falando à toa/ Eu só confio em mulher com mais de trinta/ Sendo
distinta a gente erra ela perdoa,/ Para o capricho pode ser de qual-
quer raça/ Ser africana, italiana ou alemão / Não interessa se ela é
coroa/ Panela velha é que faz comida boa. Dona de casa tem que ser
mulher madura/Porque ao contrário o problema se amontoa. (REIS,
Lado B, Faixa 3, 1983)

Na SD5, é retratado um episódio que descreve o fato de o


sujeito estar namorado uma mulher considerada solteirona, ma-
dura, coroa, panela velha. Apesar da crítica dos seus parentes, a
escolha do sujeito está, primordialmente, calcada nos atributos re-
lacionados à posição Dona de casa/patroa que a mulher ocupará.
Pelas pistas descritivas da música Panela Velha, nessas con-
dições de produção, poderíamos indagar em que faixa etária se
enquadraria a mulher nova, menina nova, moça nova, já que ser
madura e ser muito coroa é ter mais de trinta anos. Também,
entendemos que a oposição mulher madura x mulher nova pode
produzir sentidos outros; funcionar diferente da oposição mu-
lher madura x menina nova.
Apesar de menina nova é muito bom se fazer presente na mú-
sica, entendemos que o já-dito mulher boa para casar é o discurso
dominante. Ainda mais que o perdoar se mostra como um dos
atributos da mulher madura. No início dos anos 80, conjuntura
social da época da música, apesar da instituição do divórcio em
1977, ressoava, fortemente, o discurso do casamento como um
sacramento Indissolúvel. Daí, pela marca sendo distinta a gente
erra ela perdoa, entendemos que se tinha a possibilidade de con-
siderar que até uma traição do marido com outra mulher — um
erro “perdoável” para uma mulher distinta — não devesse aba-
lar o casamento e a instituição família.

1977 — O divórcio foi instituído oficialmente com a emenda cons-


titucional número 9, de 28 de junho de 1977, regulamentada pela
lei 6515 de 26 de dezembro do mesmo ano. De autoria do senador
Nelson Carneiro, a nova norma foi objeto de grande polêmica na
época, principalmente pela influência religiosa que ainda pairava
sobre o Estado. A inovação permitia extinguir por inteiro os vínculos
de um casamento e autorizava que a pessoa casasse novamente com
outra pessoa. Até o ano de 1977, quem casava, permanecia com um
vínculo jurídico para o resto da vida. Caso a convivência fosse insu-
portável, poderia ser pedido o ‘desquite’, que interrompia com os
deveres conjugais e terminava com a sociedade conjugal. Significa
que os bens eram partilhados, acabava a convivência sob mesmo
teto, mas nenhum dos dois poderia recomeçar sua vida ao lado de
outra pessoa cercado da proteção jurídica do casamento. Naquela
época, também não existiam leis que protegiam a União Estável e
resguardavam os direitos daqueles que viviam juntos informalmen-
te. A Lei do Divórcio, aprovada em 1977, concedeu a possibilidade
de um novo casamento, mas somente por uma vez. (…). Foi com a
Constituição de 1988 que passou a ser permitido divorciar e recasar
quantas vezes fosse preciso (IBDFAM, p.1, 2010).

Embora a música trate de mulher madura, um discurso sobre


menina nova atravessa o dizer do sujeito. Esse discurso determina
uma posição sujeito que difere a mulher boa para casar da menina
nova boa que mete medo, mas uma posição que não impede a de-
fesa da posição discursiva do sujeito — segundo as conjunturas
histórico-sociais da época — ter um relacionamento com ambas.
De um lado o capricho, do outro, o problema que se amontoa.
Ao passar o tempo, quando o homem se identifica com a
posição da velhice, o dizer pode se tornar outro. “Certo mesmo
é um ditado do povo: pra cavalo véio, o remédio é capim novo”.
(GONZAGA e CLEMETINO, 1976, faixa 1) Essa música faz re-
ferência a um ditado, um dizer popular, uma sabedoria popular,
portanto, algo que já circula há algum tempo e já se cristalizou
entre o povo. Na expressão “certo mesmo”, o autor ainda ratifica
a veracidade e infalibilidade do seu dizer.
A sequência discursiva 6 traz um recorte do cancioneiro
nordestino, que trata de uma menina na passagem para sua ado-
lescência e as formações imaginárias construídas por figuras
masculinas sobre essa passagem.

Sequência discursiva 6:
Mandacaru, quando fulora na seca/ É o sinal que a chuva chega no
sertão/ Toda menina que enjoa da boneca/ É sinal que o amor já che-
gou no coração/ Meia comprida, não quer mais sapato baixo/ Vestido
bem cintado. Não quer mais usar timão/ Ela só quer, só pensa em
namorar. (…) O pai leva, ao doutô, a filha adoentada. (…) Mas o doutô
nem examina. (…) pra tal menina, não há um só remédio em toda
medicina (GONZAGA, DANTAS, Lado A, Faixa 1, 1953).

Barcinski (2015) denomina de pavões misteriosos os can-


tores que entre os anos de 1974 a 1983 fizeram sucesso com
trabalhos de grande qualidade e criatividade musical; coopera-
ram para que o Brasil tivesse, pela primeira vez, uma indústria
musical competitiva; faziam parte de uma música jovem que “se
libertou dos clichês da Jovem Guarda e criou uma sonoridade
própria que não se limitava a copiar as músicas americanas e
italiana, até o momento imediatamente anterior à explosão do
rock brasileiro, ocorrido na primeira metade da década de 1980”
(BARCINSK, 2015, p. 209), mas que não figuram na cronologia
histórica dos livros de música brasileira.
Apesar de que existiu, nos anos de 1960, na grande mí-
dia, um hiato de sucesso na carreira de Luiz Gonzaga, diferente
dos pavões misteriosos, houve, e ainda há, uma imensa produ-
ção historiográfica e fonográfica de sua obra. Segundo Santos
(2013, 2014), Gonzaga, ao assumir uma posição transdiscursiva,
extrapola sua obra, produzindo “os pilares de muitas obras que
vêm surgindo, configurando-se em princípio unificador daqui-
lo que as vezes pode ser identificado como tradição musical”
(SANTOS, 2013. p. 5,). Entendemos que a obra de Gonzaga e
a literatura escrita sobre ela se constituem como documentos/
monumentos, tal qual Le Goff (2013) descreve
O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o
ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em
primeiro lugar analisados, desmistificando-lhe o seu significado
aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das socie-
dades históricas para impor ao futuro — voluntária ou involuntaria-
mente — determinada imagem de si próprias. No limite, não existe
um documento-verdade. Todo o documento é mentira. (…) qualquer
documento é, ao mesmo tempo, verdadeiro — incluindo talvez so-
bretudo os falsos — e falso, porque um monumento é em primeiro
lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem.
É preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, deses-
truturar esta construção e analisar as condições de produção dos
documentos-monumentos (LE GOFF, p. 497, 2013).

Mesmo que a produção de sentidos não seja privilégio de


um autor e sua obra, entendemos que esses documentos/monu-
mentos — a obra de Gonzaga — são constituídos de discursos e
a partir de suas leituras são produzidas discursividades. E é pela
ótica da não transparência e evidência de sentidos (PÊCHEUX,
2009), e pela colocação da “determinação histórica dos proces-
sos de produção de sentido no centro da discussão” (ZOPPI
FONTANA, FERRARI, p .9, 2017) em torno dos dizeres sobre as
mulheres que analisaremos a SD6, recortada da música o xote
das meninas.
Em o Xote das meninas se estabelece a similaridade entre
a anunciação de chuvas através da floração do cacto mandacaru
em período de seca no Sertão nordestino e a entrada na ado-
lescência pela menina que não quer mais brincar de boneca.
Nessa mobilização, há um efeito de totalidade que generaliza e
evidência o gesto de enjoar da boneca pela menina como desejo
de namorar.
Esse efeito totalizante/generalizante funciona, também, na
posição discursiva masculina do doutor. O gesto do diagnóstico
médico é realizado sem, ao menos, o examinar da paciente. O
corpo adolescente feminino fala, significa ao olhar do sujeito
doutor, faz o profissional, em suas representações masculinas
do universo feminino, afirmar que a menina só quer e só pensa
em namorar. Nessa música, o desabrochar da adolescência é vis-
to como um mal incurável pela medicina, ou como um mal que
irar ser “curado”, provavelmente, no contato com um namorado
— dentro dessas condições de produção.
Esse olhar masculino é construído historicamente numa so-
ciedade patriarcal, fruto de processos históricos da colonização
portuguesa no Brasil, onde a menina, após o sacramento da pri-
meira comunhão, já era considerada moça apta para contrair ma-
trimônio. Eis a situação das meninas moças, no Brasil Império,
nas primeiras décadas do século XIX. descrita por Freyre (2006)

Objetar-se-á que o sexo é todo poderoso quando desembestado; e não


o negamos de modo algum. A dificuldade que reconhecemos é mais
a física: a das grossas paredes, a dos verdadeiros ralos de convento
em que, nas casas-grandes, se guardavam as sinhá-moças. Aí vinha
colhê-las verdes o casamento: aos treze e aos quinze anos. Não havia
tempo para explodirem em tão franzinos corpos de menina grandes
paixões lúbricas, cedo saciadas ou simplesmente abafadas no tálamo
patriarcal. Abafadas sob as carícias de maridos dez, quinze, vinte anos
mais velhos; e muitas vezes inteiramente desconhecidos das noivas.
Maridos da escolha ou da conveniência exclusiva dos pais. Bacharéis de
bigodes lustrosos de brilhantina, rubi no dedo, possibilidades políticas.
Negociantes portugueses redondos e grossos; suíças enormes; grandes
brilhantes no peitilho da camisa, nos punhos e nos dedos. Oficiais. Mé-
dicos. Senhores de Engenho. Desses casamentos feitos pelos pais nem
sempre resultaram dramas ou infelicidades (FREYRE, 2006, p. 423).

Como um efeito de conclusão, compreendemos que a me-


mória discursiva — ao funcionar por repetições, apagamentos,
esquecimentos, em sua forma excesso-lacunar (COURTINE,
2006) — produz efeitos que vão se estabelecendo de formas di-
versas, em diferentes conjunturas, condições de produção e su-
jeitos. Assim, o dizer novinha no brega-funk pernambucano é
constituído de um já-dito mobilizado em outros momentos, em
canções de diversos períodos, materializado em diversas práti-
cas durante a história e que vai deslizando em palavras, metáfo-
ras, circulando em formações sociais, tomando presença em for-
mações discursivas, fazendo parte de interpelações ideológicas
e apresentando-se como sentidos evidentes e revelando-se como
algo aparentemente nunca dito.

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CAPÍTULO 8 ANÁLISE CRÍTICA
DO DISCURSO
DE IDEOLOGIAS MÉDICAS
Transdisciplinaridade,
biomedicina e homeopatia
Moab Duarte Acioli (UNICAP)

Introdução

D
e acordo com o pensamento bakhtiniano, existem
três diferentes conceitos em relação aos fenômenos
língua e linguagem. Em primeiro lugar, a linguagem
é concebida como uma representação do pensamen-
to, o que denota a influência anterior do racionalismo cartesiano
da primazia da razão (DESCARTES, 2002). Em segundo lugar, a
linguagem é enfocada na perspectiva de instrumento de comu-
nicação, o que permite posteriormente uma aproximação com
os sentidos pragmáticos dos usos da linguagem (AUSTIN, 1990;
LEVINSON, 2007). Por fim, baseando-se no psicólogo bielo-
-russo Lev Semyonovich Vigotsky (1896-1934), a linguagem se
apresenta como uma forma de interação, o que caracteriza uma
abordagem dialética no processo de produção do conhecimento
e entendida enquanto resultante de uma construção coletiva,
social e histórica. (GEDOZ; COSTA-HUBES, 2012).
Ao se pensar na relação médico e paciente, a linguagem que
a permeia pode se caracterizar como expressão de uma raciona-
lidade biomédica ou leiga, como práxis social e intercâmbio de
signos verbais e não verbais ou como uma interação sociocultu-
ral e linguística baseada em uma coletiva dimensão simbólica.
Neste específico processo de interação social e linguística,
parece que existe uma grande atmosfera que o envolve, poden-
do ser denominado de ideologia, igualmente abordada pelo pró-
prio Bakhtin/Voloshinov (2006, p.34) em célebre citação:

Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou so-


cial) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto
de consumo, mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata
uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico pos-
sui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em
outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não
existe ideologia.
Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou so-
cial) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de
consumo, mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma
outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um
significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros ter-
mos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia.

Ideologia é, desse modo, um dos conceitos mais polissêmi-


cos nas Ciências Humanas e Sociais. Essa diversidade de sen-
tidos engendrou tentativas de classificação, o que foi elaborada
por Thompson (2000, p.44-74) distinguindo “concepções críti-
cas” de “concepções neutras”. Entre as últimas encontra-se Karl
Manheim (1893-1947), associando ideologia a uma Sociologia do
Conhecimento, conforme se entende na próxima citação:

Algo muy diferente ocorre con el concepto total de ideologia. Quando


atribuímos a determinada época histórica, un cierto mundo intelectu-
al y a nosotros un mundo distinto, o si cierto grupo social, determi-
nado historicamente, piensa em categorías distintas de las nuestras,
nos referimos, no a los casos aislados del contenido, sino a sistemas
de pensamentos divergentes y a modalidades de experiências y de
interpretación profundamente diferentes (MANHEIM: 1993, p.51).

Dessa forma, a proposta de uma Sociologia do Conheci-


mento parece relacionar ideologia com uma determinada Wel-
tanschauung representativa da construção social de um mundo
a partir de uma perspectiva social e histórica daquele grupo
específico que o constitui.
Entretanto, ao se entabular dialeticamente como Vigotski
(1993) que o pensamento é a interiorização da linguagem e que a
linguagem é a exteriorização do pensamento, pode-se relacionar
linguagem e visão de mundo ideológica como aquele processo abor-
dado por Bakhtin (2006) de reflexão e de refração da realidade.
Segundo o Dicionário Houaiss (HOUAISS; VILLAR, 2001,
p. 2412), “reflexão” é um substantivo que remete ao sentido de
ato ou efeito de refletir(-se). Isso implica, entre outros sentidos,
o retorno completo ou parcial de um feixe de partículas ou de
ondas que se propagam em um determinado meio, após a inci-
dência sobre a interface de separação entre esse meio e outro.
Por sua vez, o mesmo Dicionário (HOUAISS; VILLAR, 2001,
p. 2413), define “refração” como um substantivo que implica ato
ou efeito de refratar (-se). Entre outros sentidos denota mudança
da direção de uma onda que se propaga em um determinado meio
ao passar obliquamente para outro meio no qual a velocidade de
propagação é alterada, sendo mais comumente associada à luz.
Pode ser estabelecida uma analogia entre esses conceitos
de reflexão e refração com o Modelo Tridimensional do Dis-
curso, de acordo com a Análise Crítica do Discurso de Norman
Fairclough. Existe a materialidade do texto e a prática discursi-
va como uma prática social.
Fairclough (2008, p.106-107) assim escreve: “A prática dis-
cursiva, como indiquei anteriormente, envolve processos de
produção, distribuição e consumo textual, e a natureza desses
processos varia entre diferentes tipos de discurso de acordo com
fatores sociais”.
Existe, portanto, um pressuposto de que a produção textual
“reflete” uma determinada identidade social do grupo que por
sua vez, se reflete na distribuição e consumo desse texto, através
de um processo de intertextualidade, definida como uma “pro-
priedade que têm os textos de ser cheios de outros textos, que
podem ser delimitados explicitamente ou mesclados” (FAIR-
CLOUGH, 2008, p. 114).
Inevitavelmente, as diferenças ocorrem no processo de
consumo textual. O próprio Fairclough (2008, p. 107) escreve:

Os textos também são consumidos diferentemente em contextos


sociais diversos. Isso tem a ver parcialmente com o tipo de trabalho
interpretativo que neles se aplica (tais como exame minucioso ou
atenção dividida com a realização de outras coisas) e com os mo-
dos de interpretação disponíveis — por exemplo, geralmente não
se leem receitas como textos estéticos ou artigos acadêmicos como
textos retóricos, embora ambos os tipos de leitura sejam possíveis.

Portanto, o texto pode ser interpretado de modo refratá-


rio (concordado, discordado, criticado, elogiado, ironizado, entre
outros) de acordo com o contexto de consumo. Além disso, pode
engendrar respostas que não tornam o enunciador unicamente
localizado na posição de emissor. Esta posição é cambiável du-
rante o processo de interação discursiva.
Dessa forma, o objetivo do presente artigo, baseando-se em
categorias da Análise Crítica do Discurso, é discutir os aspectos
dialógicos e monológicos em dois textos. Eles são apresentados
por Fairclough (2008) como exemplos de construção das rela-
ções sociais, sendo o primeiro uma entrevista médica padrão e
outro, uma entrevista médica alternativa.
Importante diferenciar em Fairclough (2003), texto, linguagem
e discurso. Texto é utilizado de modo amplo, seja lista de compras
ou artigo de jornal, inclusive transcrições de conversações “fala-
das”, como também programas de televisão ou “webpages”. Lin-
guagem, por sua vez, remete a linguagem verbal, sejam palavras,
sentenças, entre outros, ou até mesmo uma língua seja a inglesa
ou a “swalli”. Por fim, discurso, ao qual se atribui o termo Análise
Crítica do Discurso, é a particular percepção de linguagem como
um elemento da vida social intrinsecamente conectada com outros
elementos da respectiva prática discursiva (no caso da intertextua-
lidade) ou prática discursiva (no caso, os aspectos ideológicos).

1. Ideologia médica padrão


Fairclough (2018, pag. 177-178) apresenta uma entrevista
médica padrão que será transcrita sem a referência a marcadores
conversacionais tais como controle interacional, turnos de con-
versação, controle de tópicos, superposição de falas, entre outros.

Doutor: Hum, hum.. Bem, o que você quer dizer com estômago azedo?
Paciente: O que é estômago azedo? Uma queimação.
Doutor: Como uma queimação ou uma coisa assim? Arde aqui?
Paciente: Sim. É co — eu acho — é como — Se o senhor pegar uma agulha e
espetar bem aqui. Dói bem aqui. E aí vai daqui até esse outro lado.
Doutor: Hum, hum. Hum, hum. Hum, hum. A dor vai até as costas?
Paciente: É só aqui. Não é só aqui na frente.
Doutor: Sim. E quando você sente isso?
Paciente: Bem… Quando eu como uma coisa errada.
Doutor: Quanto tempo assim depois que você come?
Paciente: Bem… Provavelmente uma hora talvez, menos.
Doutor: Mais ou menos uma hora?
Paciente: Talvez menos… Fiz bobagem e voltei a beber, o que eu não devia
ter feito.
Doutor: A bebida faz piorar?
Paciente: Ah! Ah! Sim… Especialmente a fermentação e o álcool.
Doutor: Hum, hum… Quantas doses você bebe?
Paciente: Não sei. O suficiente para me fazer dormir à noite… e isso é muito.
Doutor: Umas ou duas doses por dia?
Paciente: Ah! Não, não, não é… Mais de dez à noite.
Doutor: Quantas doses por noite?
Paciente: À noite.
Doutor: O que que…? Que tipo de bebida? Eu…
Paciente: Ah ! Vodka… É vodka e ginger ale.
Doutor: Há quanto tempo você tem bebido tanto assim?
Paciente: Desde que me casei.
Doutor: Há quanto tempo?
Paciente: (Risos). Quatro anos. (Risos)

Fonte: FAIRCLOUGH (2018, pag.177-178).


Em se tratando do texto, enfoca-se o gênero entrevista mé-
dica padrão. De acordo com Bakhtin (2006, p. 261) é definido o
seguinte:

Todos esses três elementos — o conteúdo temático, o estilo, a cons-


trução composicional — estão indissoluvelmente ligados no todo
do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade
de um determinado campo de comunicação. Evidentemente, cada
enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da
língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os
quais denominamos gêneros do discurso.

Em termos de conteúdo temático, o paciente utiliza-se de


uma metáfora: “estômago azedo” e o médico procura esclare-
cer o respectivo sentido, encontrando como resposta “queima-
ção”. Depois, o paciente fala em “dor como pontada de agulha”
e o médico questiona o local e os eventos causadores, encon-
trando como resposta “comer coisa errada” e também “beber
coisa errada”. A ênfase do médico passa a ser a quantidade
de doses e o tipo de etílico ingerido. Parece que não se es-
cuta uma subjetividade que diz “estar tendo problemas com
bebidas”.
Studart e Acioli (2011) estudaram as narrativas metafóricas
como expressão de engenharia semântica para a construção de
sentidos na difusa experiência da dor, o que se caracteriza como
recurso cognitivo e de comunicação social.
Entretanto, a relação entre o médico e o paciente parece
ter obedecido às estratégias de comunicação menos hermenêuti-
cas e presentes no método clínico. Estudando-o, Foucault (1998,
p.103) destaca o seguinte: “Os sintomas constituem uma camada
primária indissoluvelmente significante e significada”.
Dessa forma, o autor francês identifica a presença de uma
ordem discursiva — a partir de uma leitura que faz do pensa-
mento empírico de Étienne Condillac (1715-1780) — haja vista
que o sintoma não se apresenta como índice soberano, mas com
a ambiguidade de ser um significante natural e ao mesmo pato-
lógico, o que se contrapõe ao estado normal de saúde. E sendo
significado, ele tanto remete a si próprio, como também à doen-
ça que caracteriza. Conclui Foucault (1998, p. 104-105):

Quando coloca a linguagem de ação na origem da palavra, Condillac


nela introduz secretamente, despojando-a de toda figura concreta
(sintaxe, palavras e mesmo sons), a estrutura linguística inerente a
cada um dos atos de um sujeito que fala. Era-lhe, a partir de então,
possível liberar a linguagem pura e simples, na medida em que pre-
viamente havia postulado sua possibilidade. Dá-se o mesmo com a
clínica, no tocante às relações entre esta linguagem da ação que é o
sintoma e a estrutura explicitamente linguística do signo.

A ação postulada na citação foucaultiana é a “interven-


ção de uma consciência que transforma o sintoma em signo”
(FOUCAULT, 1998, p.105) obedecendo aos seguintes procedi-
mentos cognitivos: 1º Comparando sintomas com doenças. 2º
A partir de um saber sobre o funcionamento normal, elabora-
-se um saber sobre o funcionamento patológico. 3º Cálculo da
frequência de simultaneidade ou de sucessão dos sintomas.
4º Escuta do corpo e olhar sobre o invisível na visibilidade
das necropsias.
O signo clínico, portanto, é construído a partir de uma
consciência que não deve ser pensada como outra senão ideoló-
gica. Pode se chegar a essa interpretação, a partir do que Mio-
tello (2005, p.170) escreveu:

O conjunto de signos de um determinado grupo social forma o que


Bakhtin chama de universo de signos. E todo signo, além dessa du-
pla materialidade, no sentido físico-material e no sentido sócio-his-
tórico, ainda recebe um “ponto de vista”, pois representa a realidade
a partir de um lugar valorativo, revelando-a como verdadeira ou fal-
sa, boa ou má, positiva ou negativa, o que faz o signo coincidir com
o domínio ideológico.
Portanto, dois problemas devem ser sublinhados. A cons-
trução sócio-histórica da verdade presente no método clínico
permite analogias com o conceito estético de polifonia, a partir
dos estudos bakhtinianos sobre a poética de Dostoiévski, con-
forme se entende nesta outra citação: “A multiplicidade de vozes
e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifo-
nia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade
fundamental dos romances de Dostoiévski” (BAKHTIN, 2008,
p.4-5).
Retomando Fairclough (2008, p.152), o linguista inglês
aproxima o conceito de polifonia discursiva com o conceito de
intertextualidade, distinguindo ao seu modo a intertextualidade
manifesta da intertextualidade constitutiva ou interdiscursivi-
dade. A primeira é a recorrência explícita a outros textos, en-
quanto a interdiscursividade é “uma questão de como um tipo
de discurso é constituído por meio de uma combinação de ele-
mentos de ordem do discurso”.
Uma ordem discursiva ou uma ordem ideológica? Qual or-
dem ideológica seria, inclusive referência para uma interdiscur-
sividade que se torna constitutiva? Entre alguns pressupostos, a
se pensar que em 1910 foi publicado o estudo “Medical Educa-
tion in the United States and Canada — A Report to the Carne-
gie Foundation for the Advancement of Teaching”, redigido por
Abraham Flexner (1966-1959), o que ficou conhecido como o
Relatório Flexner, considerado modelo de referência ao ensino e
exercício da atividade médica padrão.
De acordo com Pagliosa e Das Ros (2008), o chamado “mo-
delo flexneriano” se pauta por alguns princípios, a saber:
1º Um exigente controle de admissão às escolas médicas;
2º O currículo deveria ser de quatro anos;
3º A divisão em um ciclo básico de dois anos, a serem trans-
corridos em laboratório e um ciclo clínico de mais dois
anos, agora exclusivamente dentro do hospital;
4º O hospital é o local privilegiado para o estudo das
doenças;
5º O estudo da medicina deve ser centrado no indivíduo;
6º A doença é considerada um processo natural e biológico;
7º Por sua vez, o social, o coletivo, o público e a comunida-
de não contam para o ensino médico e não são conside-
rados relevantes para o processo de saúde e de doença.
Desse modo, o “modelo flexneriano” se relaciona proxima-
mente com o modelo padrão da medicina e se caracteriza pelo
individualismo, valorização ôntica das doenças, hospitalocen-
trismo, valorização da dimensão biológica em detrimento da di-
mensão social, histórica e comunitária. São características que
parecem exercer influência na constituição de uma interação
monológica entre médicos e pacientes.
Bezerra (2005, p. 192) comenta o seguinte:

O modelo monológico não admite a existência da consciência res-


ponsiva e isônoma do outro; para ele não existe o “eu” isônomo do
outro, o “tu”. O outro nunca é outra consciência, é mero objeto da
consciência de um “eu” que tudo enforma e comanda. O monólogo é
algo concluído e surdo à resposta do outro, não reconhece nela força
decisória. Descarta o outro como entidade viva, falante e veiculadora
das múltiplas facetas da realidade social e cria um modelo monoló-
gico de um universo mudo, inerte.

A interação entre o médico e o paciente, de acordo com os


princípios da assim chamada biomedicina moderna e contem-
porânea, fundamenta-se em uma relação entre o sujeito médico,
envolvido em uma interdiscursividade constitutiva, e o objeto
doença, “enformado” e “comandado” por um processo de “des-
subjetivação” do outro.
Autores como Bastos (2002) chegam a apontar uma tensão
frequente entre a prática clínica e este modelo padrão biomédi-
co da medicina ocidental contemporânea. Compreendendo-se
que este modelo biomédico tem suas raízes no positivismo, exis-
tem contrapontos a esta racionalidade em paradigmas, entre ou-
tros, como o da psicanálise. Reitera-se que a biomedicina aborda
o corpo como uma máquina e constrói o conceito de doença
como universal. Em consequência, o desenvolvimento vertigi-
noso de novas técnicas diagnósticas e terapêuticas aumenta o
abismo entre o saber médico e esta prática clínica em pesquisas
“dessubjetivadas”.
Outras alternativas ao modelo padrão estão presentes na
homeopatia, por exemplo, conforme abordado no próximo item.

2. Homeopatia: ideologia médica alternativa


Fairclough (2008, p. 184) analisa outra entrevista transcor-
rida — e transcrita no presente artigo igualmente sem as marcas
conversacionais — entre um paciente e uma médica que integra
um grupo minoritário do Serviço Nacional de Saúde Britânico,
“aberto” à medicina alternativa, como a homeopatia e ao trata-
mento holístico. É esta a transcrição:

Paciente: mas ela realmente tem sido muito injusta comigo não tem
Doutora: Hum
Paciente: respeito por mim e eu acho que uma das razões
Doutora: Hum
Paciente: pelas quais eu bebia tanto sabe, e ahn
Doutora: Hum, hum, hum e você…voltou? Você voltou a beber novamente?
Paciente: Não.
Doutora: Ah! Você não voltou e o tio…
Paciente: N ão, mas… Ah! Uma coisa que a senhora me disse na terça-
-feira foi que… Se minha mãe me mandasse embora de casa,
o que ela acha de…
Doutora: Sim.
Paciente: pode acontecer, que ela não gosta do jeito que tenho me com-
portado ela já me expulsou antes e ah. Ela disse ainda que
Doutora: Hum, hum.
Paciente: e la achava que eu podia que seria possível eu ir para um
apartamento da prefeitura
Doutora: Certo, sim, sim.
Paciente: m as ela disse que é muito ah… que não estava forçando por-
que minha
Doutora: Hum.
Paciente: mãe tem de assinar um monte de coisas e
Doutora: Hum, hum.
Paciente: É… Ela disse que é difícil e ah… não tem
Doutora: Hum.
Paciente: p
 ressa, eu não sei se quer dizer uma coisa que eles dizem em
AA é que você não devia mudar nada, durante um ano.
Doutora: Hum, hum. Sim acho que é sensato. Acho que é sensato. Bem.
Olhe! Eu gostaria de continuar, sabe, me encontrando com
você. Continuar, sabe? Ouvindo como as coisas vão indo de
vez em quando se for possível.

Fonte: Fairclough (2008, p. 184)

A entrevista médica apresenta uma construção composi-


cional distinta em relação à entrevista médica padrão, pois é
atravessada por uma postura de escuta da doutora diante do so-
frimento do paciente, que expressa os seguintes temas — apesar
dele afirmar que não “voltou a beber”—. São eles os seguintes:
“ela tem sido injusta comigo”; “se minha mãe me mandar embo-
ra de casa, o que pode acontecer?”; “isso pode acontecer porque
ela já me expulsou outra vez”; “ela disse que seria possível eu ir
para um apartamento da prefeitura (moradia popular adminis-
trada pela prefeitura local)”; “ela disse que é difícil eu me mudar
porque ela tem que assinar muitos papéis”; “ela não tem pressa”;
“os Alcoólicos Anônimos recomendam não mudar nada durante
um ano”. Ao final, a médica estabelece um contrato terapêutico:
“Eu gostaria de continuar me encontrando com você e ouvindo
como as coisas vão indo de vez em quando”.
A prática terapêutica empática da médica com uso dos re-
cursos homeopáticos caracteriza-se como uma abordagem holís-
tica, igualmente considerada integral. A integralidade articula os
corpos físicos, psíquicos, socioculturais e porque não dizer espiri-
tuais, além de concatenar a promoção de saúde com a prevenção
da doença, também através de um processo de aconselhamento.
Sobre esse processo, Fairclough (2008, p. 187) em um pri-
meiro momento escreve o seguinte:

A relação interdiscursiva primária neste tipo de entrevista mé-


dica parece estar entre o gênero padrão de entrevista médica e o
aconselhamento […] O aconselhamento enfatiza a concessão aos
pacientes (ou clientes) do espaço para falar, mostrando empatia em
relação a seus relatos (com o conselheiro sempre ecoando ou formu-
lando esses relatos na voz do(a) paciente) sem ser diretivo.

Entretanto, o próprio Fairclough (2008, p. 129) adverte:

Considere-se, por exemplo, o aconselhamento, o modo de conversar


com as pessoas sobre elas mesmas e seus problemas, aparentemen-
te não-diretivo, não-avaliativo, buscando estabelecer empatia, em
situação de um para um. O aconselhamento tem suas origens na
terapia, mas agora circula com técnica em muitos domínios institu-
cionais, como efeito de uma reestruturação da ordem do discurso.
Mas tal desenvolvimento é altamente ambivalente em termos ideo-
lógicos e políticos.

A contradição se pauta, na leitura de Fairclough (2008,


p,129), sobre esta escuta de ela ser uma espécie de “colonização”
de uma “mudança libertadora” que materialmente não liberta.
Dessa forma, o processo deve ir além da própria escuta de um
sujeito que demanda acolhimento, nesse caso com problemas
com bebidas alcoólicas, problemas esses abertos a encontros
sistemáticos para se falar deles com a médica homeopata. Há
uma necessidade, portanto, de uma transformação paradigmá-
tica mais ampla de um modelo médico inerente a uma cultura
de modernidade para um modelo que se fortalece na chamada
cultura da pós-modernidade.
Essa mudança foi abordada por Santos (1989, p.34-35) como
a crítica elaborada pelo “racionalismo aplicado” presente no pen-
samento de Gaston Bachelard (1884-1962), compreendido como
uma epistemologia do “limite” do próprio pensamento científico
moderno. Portanto é pensada a transformação de uma relação
epistemológica (sujeito e objeto) para uma relação hermenêutica
(eu e tu), marcada pelos seguintes pontos que não são apenas
discursivos, mas igualmente históricos e sociais:
1º Uma passagem da relação de distância, de estranhamen-
to mútuo e de subordinação do objeto ao sujeito, para
uma relação de proximidade, compreensão e copartici-
pação do objeto em relação ao sujeito;
2º Do pressuposto de somente haver um conhecimento vá-
lido, para o reconhecimento da existência de outras for-
mas de conhecimento;
3º Da validade do conhecimento baseado na objetivi-
dade, para o reconhecimento da subjetividade e da
intersubjetividade;
4º Da separação entre ciência e ética, para sua conjugação;
5º Da disjunção entre teoria e prática, para sua interação;
6º Da redução dos observáveis aos quantificáveis, para a
contextualização do vivido à dimensão representativa
dos conceitos.
7º Da procura da verdade nas costas dos objetos, à busca
das respostas nas relações face a face.
Logo, a ruptura implica no reconhecimento do espaço da
intersubjetividade na construção do processo do conhecimen-
to, sendo igualmente uma relação ética em termos de prática
social, sem dualismos e nem dualidades, destacando a relevân-
cia dos sentidos e significados, tanto quanto às enumerações e
mensurações, e tendo como princípio as relações face a face,
fenômenos se que mostram pertinentes ao que se pode chamar
de ideologia homeopática.
Por que a homeopatia? Em breve história, sabe-se que o
criador foi o médico alemão Christian Friedrich Samuel Hah-
nemann (1755–1843). Um dos seus fundamentos básicos era de
que a quina utilizada para o tratamento da malária produzia
manifestações bastante semelhantes a essa doença quando apli-
cada em sujeitos saudáveis, vindo Hahnemann posteriormente a
testar novas substâncias como a beladona, o digital, o mercúrio
e outros. Dessa forma, apoiou-se no pensamento hipocrático de
que “Similia similibus currentur”. A influência deste pensamen-
to está em reconhecer que fatores climáticos, ecológicos e psi-
cológicos contribuem para o processo saúde-doença (CORREA
et al., 2006).
Três conceitos são fundamentais para a homeopatia: força
vital, miasma e psora. De acordo com Luz (1988, p. 124), a “força
vital” se manifesta na própria vida e nos seus desequilíbrios, os
eventos mórbidos que assim como a morte são estágios da vida.
Por sua vez, “miasma” é um conceito espiritual que identifica o
processo de contaminação da humanidade entre si, através de
“suscetibilização” que leva ao desenvolvimento das doenças (LUZ,
1988, p. 125). Por fim, o conceito de “psora” é entendido como a
origem de todos os miasmas, sendo a mãe das doenças crônicas,
caracterizando-se como uma energia maléfica e imaterial respon-
sável por uma gama enorme de sintomas (LUZ, 1998, p. 127).
Entretanto, o que se destaca na definição da homeopatia é
ser ela uma “medicina dos doentes individuais por oposição a
uma medicina das doenças” (LUZ, 1998, p. 143). E nesse senti-
do, a homeopatia apresenta alguns princípios terapêuticos que
lhe caracterizam especificamente, conforme ainda pontua Luz
(1998, p. 132):
1ª O indivíduo doente é objeto da terapêutica.
2º O remédio semelhante deve curar o quadro sintomatoló-
gico semelhante.
3º Os remédios devem ser testados em homens sãos.
4º Os doentes não devem tomar um medicamento com
mais de uma substância e nem devem ser tratados com
mais de um medicamento.
5º A dosagem de cada medicamento deve ser adaptada a
cada paciente de acordo com sua capacidade reativa.
6ª A capacidade de tratamento dos medicamentos somente
manifesta todas as suas propriedades quando estes são
submetidos a um processo de trituração e às sucessivas
diluições específicas chamadas de “dinamizações”.
Quais são as diferenças entre a homeopatia, como mode-
lo ideológico alternativo e o modelo ideológico da biomedicina?
Luz (1988, p. 132) comenta o seguinte:
1º Na medicina padrão o foco não é o doente, porém o obje-
to é a doença que deve ser combatida.
2º Na biomedicina são utilizados medicamentos que procu-
ram combater a patologia que fora contraída.
3º Os medicamentos são testados em homens doentes e em
animais.
4º Na biomedicina é utilizada uma mistura de medicamen-
tos de acordo com a medicina do “seu tempo”.
5º A dosagem dos medicamentos é prescrita de acordo com
uma norma universal elaborada em função das entida-
des patológicas.
6º Na homeopatia, as concentrações químicas dos medica-
mentos alopáticos são consideradas paliativas porque a
melhora dos pacientes em geral é sintomática e é consi-
derada transitória.
Como reflexo dessa posição ideológica pode se destacar a
anamnese, enquanto reconstrução histórica do sofrimento e ser
distinguida do modelo padrão que enfoca a cronologia dos sin-
tomas e suas medidas de intensidade, localização e natureza. Ao
contrário, a anamnese da homeopatia aponta para a singulari-
dade individual e os respectivos significados físicos e psíquicos
da experiência vital do sujeito.
Nesse sentido, Teixeira (2006, p. 37) comenta o seguinte:

A anamnese homeopática, que busca conhecer as diversas susce-


tibilidades do enfermo, com o objetivo específico de selecionar
um medicamento individualizante, permite ao paciente expor suas
idiossincrasias de forma detalhada, mobilizando aspectos interio-
res que, por si sós, podem trazer alívio para muitas manifestações
sintomáticas.

É substituído um modelo de interação monológico por um


modelo dialógico, o que pode encontrar paralelos com a leitura
bakhtiniana de Dostoiévski, ampliando para a própria condição
da humanidade, sobre os sentidos da relação entre o eu e o tu.
Bezerra (2005, p. 194) mais uma vez elabora o seguinte
comentário:

A esse tratamento reificante do homem contrapõe-se o dialogismo,


procedimento que constrói a imagem do homem num processo de
comunicação interativa, no qual eu me vejo e me reconheço através
do outro, na imagem que o outro faz de mim. Aí o autor visa a conhe-
cer o homem em sua verdadeira essência como um outro “eu” único,
infinito e inacabável; não se propõe Dostoiévski considerar que não
pode compreender, conhecer e afirmar o seu próprio “eu”.

O discurso monológico da biomedicina enseja reificar esse


discurso, o que se remete a um verbo transitivo direto que pro-
cura encarar algo abstrato como sendo uma coisa concreta, ou
seja, é sinônimo de coisificar (HOAUISS; VILLAR, 2001, p.
2419). Ao contrário, o pensamento dialógico concebe o homem
em sua verdadeira essência, como um outro “eu” que é único,
infinito e inacabável.
Um importante campo de saber é o da antropologia médica
e este distingue um modelo explicativo oficial para a doença,
reificante, como sendo modelo “disease”, ao contrário de um
modelo explicativo alternativo para a experiência do adoecer,
chamado de modelo “illness”.
Hellman (2003, p.110) caracteriza o modelo oficial “disea-
se” a partir das seguintes categorias de análise:
1ª Racionalidade médica: Trata-se do padrão biomédico po-
sitivista ocidental;
2ª Ênfase na mensuração objetiva e numérica: Existe uma
hegemonia da enumeração e da mensuração em detri-
mento da interpretação dos significados e dos valores;
3ª Ênfase em dados psicoquímicos: Ocorre a pressuposição
do aspecto metafísico envolvendo a subjetividade cog-
nitiva e afetiva, devendo esta ser explicada através de
processos bioquímicos;
4ª Dualismo mente-corpo: Influência direta do pensamento
moderno de René Descartes (1596-1650) para o qual a
mente era a “res cogitans”, ao cuidado da filosofia e da
religião, enquanto o corpo era a “res extensa”, ao cuidado
da ciência;
5ª Visão das doenças como entidades: As doenças podem
ser abordadas em uma perspectiva “ontológica”, no sen-
tido de apresentarem um determinado ser ou essência,
ou então, uma perspectiva “relacional” no sentido de não
existir um ser em si, mas um ser para com os outros,
estabelecendo-se os critérios de saúde e de doença (LA-
PLANTINE, 1991).
6º Reducionismo: A complexidade do fenômeno saúde e
doença é atribuída às dimensões biológicas, químicas e
físicas.
7º Ênfase no indivíduo paciente, não na família ou comu-
nidade: Importante comentar que esta ênfase individu-
al presente na ideologia do modelo médico padrão, em
primeiro lugar, exclui o olhar histórico, social, familiar
e comunitário. Além disso, a semântica do conceito de
indivíduo obedece a critérios que tornam, no caso, esse
conceito monológico e não o seu contrário.
Nesse aspecto, Lalande (1998, p. 555-556) aponta que o
conceito de indivíduo remonta à etimologia latina de individuum,
representando uma ideia atomista de coisa indivisível, o que
torna esse conceito passível de mensuração e atraente para as
metodologias quantitativas de pesquisa. Dessa forma, Renaut
(1998) pontua que a partir do conceito de indivíduo se organiza
uma ideologia individualista como desdobramento do modo de
produção capitalista, destacando um projeto de suposta eman-
cipação contra o fardo das tradições e das hierarquias naturais.
São os famosos números sem rostos ou sem faces (ALMEIDA
FILHO, 1989).
Ao contrário, a expressão do Mundo da Vida implica a com-
preensão da subjetividade do sujeito, que também é o sujeito da
linguagem e este se constitui não como uma indivisibilidade atô-
mica ou unidade de quantificação, mas como um sujeito que pro-
duz um texto através do qual outros sujeitos estão enunciados.
Concluindo, Bakhtin (2008, p. 322) sobre isso escreve o seguinte:

Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me


revelando para o outro. Os atos mais importantes, que constituem
a autoconsciência, são determinados pela relação com outra cons-
ciência (com o tu). A separação, o desligamento, o ensimesmamento
são a causa central da perda de si mesmo.

O sujeito da linguagem em Bakhtin é o sujeito da cons-


ciência que se constitui na alteridade, ou seja, não pode haver
sujeito sem intersubjetividade. Isso implica uma atitude de “des-
coisificação” do homem através do reconhecimento da atitude
dialógica como fundamental na constituição desse próprio ser.

Considerações finais
A análise faircloughiana do discurso permite uma contextua-
lização social e histórica da produção, distribuição e consumo dos
textos orais, visuais e escritos. A categoria poder se faz presente,
o que parece se revelar na entrevista médica, seja padrão, na qual
o paciente é objeto de exame e intervenção clínica; ou alternati-
va, como no caso da homeopatia, que o paciente se torna sujeito
enunciador a ser escutado pelo médico, atento a uma dimensão
de integralidade física, psíquica, sociocultural e espiritual.
Apesar de algumas dúvidas em Fairclough sobre os usos
amortecedores da técnica psicoterapêutica do aconselhamento
como uma estratégia mais sofisticada de controle social, não se
pode negar que com ela existe uma “ressubjetivação” do paciente.
Nisso, o pensamento bakhtiniano aponta que a literatura
de Dostoiévski revela a existência das muitas vozes na produção
textual, o que pode apontar para determinados modelos ideoló-
gicos que no presente artigo foram chamados de biomédicos ou
homeopáticos, caracterizando-se como uma intertextualidade
constitutiva.
Além disso, aquela literatura revela uma condição da cons-
ciência humana, para a qual não existe eu sem o tu, o que pode
abrir espaços tanto no campo da Saúde, como da Linguagem,
para o reconhecimento fundamental da relevância de uma es-
cuta hermenêutica.

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CAPÍTULO 9 REDIGIR ENEM:
Aplicativo para aprendizagem
de textos argumentativos
em dispositivos móveis de
comunicação1
Antônio Carlos Xavier (UFPE)
Roberta Caiado (UNICAP)

Introdução

A
inovação educacional proporcionada por dispositi-
vos móveis vem sendo estudada em vários países do
mundo, mas no Brasil ainda são poucos os trabalhos
sobre esse tema. Diante disso, tomando como focos
da investigação o desenvolvimento da competência da produção
de texto e a necessidade da aquisição da habilidade argumenta-
tiva dos estudantes, este capítulo descreve e apresenta o proje-
to realizado no âmbito do Edital Universal 2013 do CNPq, que
objetivou, principalmente, desenvolver atividades pedagógicas
com potencial de se transformar em conteúdo conversível em
linguagem de computação, para constituir um aplicativo edu-
cacional. Este App tem como objetivo auxiliar os estudantes do
ensino fundamental e médio a desenvolver sua competência es-

1
Projeto Financiado pelo Edital Universal 2013 do Cnpq – Processo:
479705/2012-7.
crita de textos dissertativos. Além desse objetivo mais amplo,
a pesquisa buscou ainda: (i) mapear recursos interativos nos
smartphones e tablets; (ii) descrever funções neles adaptáveis à
aprendizagem de argumentação e disponibilizar sites, blogs e co-
munidades virtuais com artigos científicos, resenhas de livros,
dissertações e teses sobre a temática do uso de aplicativos (App)
voltados para a aprendizagem de produção de texto.
Sob a perspectiva teórica dos estudos da Linguagem
(Linguística de Texto, Semântica, Pragmática e Linguística Aplica-
da), o projeto propôs atividades pedagógicas suficientes para com-
por um objeto de aprendizagem em formato de aplicativo compu-
tacional, utilizável em smartphones e tablets, nomeado de Redigir
Enem, desenvolvido para os sistemas Android e IOS para downlo-
ad gratuito. O App Redigir Enem explora as características e for-
matos da dissertação-argumentativa, trabalha os critérios de ava-
liação e sugere temas relacionados às problemáticas cotidianas.
Do ponto de vista da Metodologia, a pesquisa foi reali-
zada durante três anos e cumpriu com as seguintes etapas: i)
levantamento bibliográfico dos estudos sobre a utilização edu-
cacional de dispositivos móveis; ii) construção de um banco de
dados sobre a temática e publicação on-line dos links em língua
inglesa, francesa e espanhola; iii) proposição de atividades que
contemplam textos argumentativos; iv) observação do uso dos
dispositivos móveis (smartphones e tablets) por 60 alunos do ensi-
no médio, divididos de modo igual entre rede pública e privada.
O presente capítulo foi organizado da seguinte forma: ini-
ciamos com a apresentação do problema da pesquisa e abor-
dagem teórica do problema; focamos na metodologia utilizada;
posteriormente, apresentamos e descrevemos o App Redigir
Enem; e, finalizamos o capítulo, elencando as metas alcançadas
e contribuições científicas e tecnológicas da pesquisa.

1. Caracterização do problema de pesquisa


Em razão da importância conquistada pelo Enem como o
sistema de avaliação da qualidade da educação e agora também
responsável pela seleção de acesso de estudantes ao ensino su-
perior nas principais universidades brasileiras e da prova de
redação, que detém o maior peso entre as áreas do conheci-
mento avaliadas, o projeto empreendido teve como temática
a produção de textos argumentativos pelo aluno da educação
básica. O problema derivado deste tema vem a ser a necessi-
dade de melhorar a qualidade da escrita de textos pelos estu-
dantes, bem como a urgente ampliação da sua capacidade de
apresentar, defender e argumentar coerente e consistentemente
em favor de uma tese. Para isso, foram elaboradas estratégias
didáticas, fundamentadas em pesquisas com pressupostos
teórico-metodológicos, que, uma vez transformados em objetos
de aprendizagem eficientes, proporcionem uma real melhoria na
qualidade da escrita dos alunos, a qual ainda se encontra muito
distante do ideal necessário.
Em outras palavras, foram pensadas atividades pedagógicas
criativas para atacar o problema da dificuldade de escrever bons
textos argumentativos, verificada nos alunos e confirmada a
cada nova aplicação dos sistemas oficiais de avaliação de desem-
penho escolar. Trabalhando dentro de um contínuo processual,
que deve começar já nas séries iniciais do ensino fundamen-
tal para se consolidar no ensino médio, e impulsionados pelo
fascínio que as novas tecnologias exercem na prática social e
linguística das crianças, adolescentes e jovens contemporâneos,
parece ser possível à escola reverter a difícil situação em que
se encontram os estudantes brasileiros neste aspecto da sua
formação escolar. Uma grave deficiência na aprendizagem dos
discentes para a qual nosso sistema de educação ainda não en-
controu uma solução definitiva, apesar dos esforços realizados
pelos pesquisadores em educação e linguagem para identificar,
definir e categorizar o que tem efetivamente freado a apren-
dizagem da escrita. Por isso, pareceu-nos oportuno buscar-
mos soluções pedagógicas com o apoio das tecnologias digitais
contemporâneas para este e outros problemas que atormentam
o sistema educacional brasileiro.
2. Abordagem teórica do problema
Muito já se pesquisou sobre o tema da produção de texto na
escola. De acordo com Geraldi (1984), a produção escrita escolar
dizia respeito apenas à redação e não à produção efetiva de um
texto. Para ele, na redação “não há um sujeito que diz, mas um
aluno que devolve ao professor a palavra que lhe foi dita pela
escola”. Porém, no texto, “o autor insiste em dizer a sua palavra”,
isto é, assume a posição de sujeito do seu discurso. Santos (2003)
faz uma síntese sobre as abordagens da prática de ensino de es-
crita adotadas nos últimos 40 anos de história da escolarização
formal do Brasil. A autora divide-a em três momentos, aos quais
chamou de: a) Ensino tradicional de escrita; b) Ênfase na diver-
sidade textual e c) Ênfase no ensino de gêneros.
A autora observa que, na fase do Ensino Tradicional da
escrita, que compreende o início dos anos 1970, havia um novo
pensamento na educação, que passava a ser vista como o fator de
desenvolvimento social e econômico. Havia uma forte influência
do Estruturalismo Linguístico no ensino de língua materna, bem
como da Teoria da Comunicação. Adotavam-se modelos de boa
escrita que deveriam ser imitados. A “composição” passou a ser
um objeto de ensino na escola. Este “gênero escolar”, assim de-
nominado por Dolz e Schneuwly (2004[1996]), não funcionaria
fora da escola, pois suas sequências relativamente estereotipa-
das tais como a descrição–narração–dissertação pouco conside-
ravam o contexto da realização da escrita. Consequentemente,
a “hora da redação” era marcada pela diretividade do professor
em relação às ações do aluno, tornando este um sujeito passivo
face às “orientações” daquele.
Para Santos, a segunda abordagem do ensino de escrita deu
grande relevo à diversidade textual e surgiu a partir dos anos
1980, quando diversos países como França, Bélgica, Portugal,
Austrália e Brasil passaram a questionar e depois a reconceitua-
lizar os pressupostos educacionais e os procedimentos didáticos
dos objetos de ensino trabalhados na escola. Deflagrou-se uma
verdadeira reforma nos currículos. O ensino de Língua Portugue-
sa passou a seguir os paradigmas da Linguística da Enunciação,
das Teorias do Conhecimento — como a Psicologia Cognitiva — e
a Filosofia da Linguagem (especialmente tratados por Vigotsky
e Bakhtin).
Surgiram diferentes propostas para o ensino de línguas
pautadas na concepção de língua como forma de interação, ati-
vidade constitutiva do sujeito e não apenas como um instrumen-
to de comunicação. A noção de texto como uma coconstrução
de sentido, negociado intersubjetivamente, passava a ser o eixo
de gravidade para o trabalho com a leitura e a produção de tex-
to na escola. Valorizavam-se as diferentes tipologias textuais e
buscava-se definir quais textos a escola deveria priorizar. Dife-
rentemente da proposta do currículo tradicional, esta nova pers-
pectiva colocava o aluno como um sujeito ativo na construção
e mobilização de conhecimentos linguísticos, de mundo e par-
tilhados com seus prováveis leitores. Por isso, as atividades de-
veriam centralizar o “aprender a escrever, escrevendo”. Escrever
passou a ser visto como um ato social e não mais como uma
abstração mental, já que o sujeito que escreve tem propósitos
que ganham visibilidade pelas marcas linguísticas deixadas no
texto oral ou escrito.
Finalmente, conforme Santos (2003), no final da década de
1990 e início dos anos 2000, desenhou-se e vem-se tentando
pôr em prática uma proposta para o ensino de produção textual
fortemente centrada na noção de gênero textual. De modo seme-
lhante à fase anterior, essa perspectiva de ensino de texto pauta-
-se no conceito de língua como interação, compreende a escrita
como uma prática social-linguageira e reconhece que todo texto
(oral ou escrito) efetua um propósito particular no contexto em
que é produzido. De acordo com Schneuwly e Dolz (2004[1996]),
o gênero seria um modelo comum de texto que lança um hori-
zonte de expectativas para os membros de uma comunidade,
leitores endereçados, que compartilhariam das mesmas práticas
de linguagem do autor.
Na esteira da influência destas ideias, os Parâmetros Cur-
riculares Nacionais de Língua Portuguesa concebem como es-
critor competente aquele que “planeja o discurso e consequente-
mente o texto em função do seu objetivo e do leitor a que se des-
tina, sem desconsiderar as características específicas do gênero”
(BRASIL,1997, p. 65). Todavia, Schneuwly e Dolz (2004[1996])
alertam para o fato de que o ensino que leva ao domínio textual
exige uma intervenção constante do professor munido de uma
didática específica mobilizada por ele como consequência de
sua atitude pedagógica.
Não obstante as diferenças entre as abordagens para o en-
sino de língua, todas elas compartilham da visão geral de que
a aprendizagem da escrita demanda uma decisão consciente de
intervenção didática planejada pelo professor e não é o produto
de um “dom” que emerge do aprendiz espontaneamente no mo-
mento em que ele amadurece intelectualmente. No momento,
a perspectiva do ensino da escrita a partir do trabalho com os
gêneros textuais é a que prevalece nos documentos oficiais que
orientam as políticas públicas de educação como Parâmetros
Curriculares Nacionais e as Matrizes de Referência Curricula-
res. Tanto elas como os exames dos sistemas oficiais de avaliação
da educação (Saeb, Enem, Enceja, Prova Brasil e Provinha Bra-
sil) procuram induzir a prática pedagógica específica dos docen-
tes no interior da escola.
Contudo, a maioria das pesquisas em nível de mestrado e
doutorado, cadastradas na base de teses da Capes, mostra um
baixo impacto que tais documentos e avaliações ainda exer-
cem sobre o ensino de produção de texto na escola. Os resul-
tados de nossa consulta a este banco de dados indicam a não
predominância desta perspectiva. Os dados apontam haver até
hoje uma coexistência entre as três abordagens para o ensino
formal da modalidade escrita da Língua Portuguesa no Brasil.
Como não poderia ser diferente, a perspectiva teórica
adotada ao longo desta investigação foi ao encontro da aborda-
gem mais contemporânea para o ensino de produção de tex-
to, qual seja: a que enfatiza o trabalho de escrita a partir da
explicitação dos gêneros textuais. Por isso, decidimos adotar
os conceitos e perspectivas teóricas a seguir por considerá-los
adequados ao nosso objetivo e objeto de investigação. Também
acreditamos que essas escolhas teóricas são compatíveis epis-
temologicamente entre si. Por conseguinte, temos: a ótica do
Estudo da Linguagem de viés aplicado, mais especificamente
da Linguística de Texto (BEAUGRANDE, 1997; MARCUSCHI,
2008, 2009; KOCH, 2003; BAZERMAN, 2003; MILLER, 2009),
da Semântica argumentativa (DUCROT; ANSCOMBRE, 1983) e
da Pragmática linguística (GRICE, 1982; AUSTIN, 1990; DAS-
CAL, 2006), a visão da Teoria socionteracionista aplicada ao en-
sino-aprendizagem de língua (BRONCKART, 1999; SCHNEU-
WLY; DOLZ, 2004), dos conceitos de Multimodalidade (KRESS;
LEEUVEN, 1996), de Hipertextualidade (XAVIER, 2009; LÉVY,
1999, 2011) e de Semiótica digital (BOOTZ, 2007). Acrescenta-
mos, posteriormente, o estudo dos Descritores da Matrizes de
Referência do Enem para Língua Portuguesa para orientar a
formulação de questões/itens de leitura do texto-base das fases
do App Redigir Enem. Acreditamos que tais teorias e conceitos
foram suficientes para guiar as ações metodológicas, as análises
interpretativas e a elaboração das atividades do App assumidas
durante o percurso e finalização desta investigação.
O eixo teórico central foi a noção de gênero textual tomado
como um modelo de texto utilizado por um locutor/autor para
projetar seus propósitos comunicativos no limiar de expectativas
do seu interlocutor/leitor, noção esta tratada pelos pesquisadores
Schneuwly e Dolz (2004[1996]). Esta perspectiva está vinculada
à percepção da língua como interação intersubjetiva, cuja mo-
dalidade escrita é motivada por uma necessidade específica, no
caso em tela, de argumentar em defesa de uma tese plausível.
Acrescentamos a esta concepção relativa ao ensino de es-
crita o viés dos estudos retóricos de gênero, representados pelos
trabalhos de Bazerman (2003) e de Miller (2009). Partindo de
uma visão performativa da linguagem, esses autores compreen-
dem os gêneros como concretizações textuais de práticas sociais
e retóricas de interação determinadas por contextos. Dentro
desta linha sociorretórica, o gênero permite a realização de uma
ação retórica de um locutor/autor sobre seu interlocutor/leitor.
Logo, critérios de ordem pragmática que presidem a escolha dos
gêneros pelos sujeitos e não apenas uma decisão que estes reali-
zam sobre as formas linguísticas que compõem o gênero.
Tomando a redação do Enem — dissertação-argumentativa
— como um gênero textual, cujo propósito comunicativo é fazer o
candidato “Elaborar proposta de intervenção para o problema abor-
dado”, a concepção sociorretórica oferece uma solução razoável
por advogar a precedência de uma ação pragmática sobre a forma
ao se produzir um gênero. No caso do gênero em discussão, a ação
pragmática do locutor/autor visa “convencer” o interlocutor/leitor
de que o ponto de vista por ele apresentado é aceitável.
Cumpre esclarecer ainda que esta pesquisa levou em
consideração a tese de Ducrot e Anscombre (1983) para os quais
o uso da língua é constitutivamente argumentativo. De acor-
do com a Teoria da Argumentação na Língua (TAL), o usar a
linguagem é essencialmente defender posições. Estes linguistas
franceses postulam que, no interior do argumento, há um fato
que se revela quando se expõe uma razão. Em outras palavras,
o movimento de argumentação aconteceria de maneira qua-
se automática ao se pôr a língua em funcionamento, uma vez
que todo sujeito só a utiliza motivado por um propósito, por
um objetivo. Não se usa a língua gratuitamente. Segundo eles,
nas línguas há duplas de frases que, quando enunciam fatos do
mundo, apresentam orientações argumentativas diferentes. De
acordo com a TAL, não há nem transparência nem objetividade
na língua, ou seja, ela não representa com fidelidade as coisas a
que se refere, posto que a descrição que se faz sobre um objeto
do mundo real tomado como referente reflete uma visão parti-
cular de quem descreveu e não um fato real do mundo.
Faz-se necessário explicitar, também, que esta pesquisa
concentrou esforços para elaborar atividades com o uso da mo-
dalidade escrita em smartphones e tablets que explorassem qua-
tro das cinco competências que o estudante deve demonstrar do-
minar ao escrever sua redação submetida à avaliação do Enem.
Quadro 1: Competências

Demonstrar domínio da norma padrão da língua


Competência I:
escrita.

Compreender a proposta de redação e aplicar


conceitos das várias áreas de conhecimento para
Competência II:
desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais
do texto dissertativo-argumentativo.

Selecionar, relacionar, organizar e interpretar


Competência III: informações, fatos, opiniões e argumentos em
defesa de um ponto de vista.

Demonstrar conhecimento dos mecanismos


Competência IV: linguísticos necessários para a construção da
argumentação.

Fonte: Banco de teses da Capes

Cabe informar que a quinta competência, a referente aos Di-


reitos Humanos, deve ser trabalhada transversalmente pelas di-
versas disciplinas e não apenas a de Linguagem e suas tecnologias.
Foram criadas atividades de compreensão e de demonstração
de domínio do gênero textual dissertação-argumentativa para
o App Redigir Enem exatamente com as quatro competências,
uma vez que elas servem de critérios de avaliação do texto do
estudante (XAVIER, 2006b). Logo, sua preparação precisa ter
início desde os primeiros níveis de formação do aluno.
Com vistas a esta mesma formação, elegemos alguns itens
conceituais que constaram como ingredientes teóricos orienta-
dores das atividades elaboradas e formatadas em um aplicati-
vo educacional. A escolha de tais itens conceituais foi basea-
da na sua relação com determinados fenômenos da linguagem
que vêm sendo estudados em várias pesquisas no campo da
Linguística, com especial enfoque para as seguintes subáreas:
Linguística Aplicada, Linguística Textual, Semântica Argu-
mentativa e Pragmática Linguística. Sendo assim, para traba-
lhar as quatro competências avaliadas na redação do Enem, é
condição sine qua non abordar entrelaçadamente os seguintes
itens conceituais:
a. Gêneros textuais diversos — todavia, a ênfase re-
caiu no gênero explicitamente argumentativo, a saber: a
dissertação-argumentativa.
b. Fatores de textualidade: coesão, coerência, informati-
vidade, situacionalidade, aceitabilidade, intertextualida-
de, intencionalidade e movimentos de remissão: anáforas
e catáforas.
c. Aspectos semântico-textuais: sinonímia, antonímia,
denotação, conotação, expressão idiomática, metáfora,
metonímia, ambiguidade e polissemia.
d. Aspectos pragmáticos: atos de fala, referenciação,
dêixis, modalizadores, pressupostos, subentendidos,
implicaturas.
e. Aspectos multissemióticos e de letramento digital:
fontes, cores, fundo, nós, links, signos com performativi-
dade visual (emojis, imagens, vídeos) e sonoros.
As atividades assim elaboradas para o App motivam os es-
tudantes a conhecer e a produzir textos para fins escolares em
superfícies digitais. Notadamente, tais superfícies tecnológicas
acessadas mais frequentemente em dispositivos móveis são as
que eles vêm empregando para fins não educacionais. Por isso,
essa pesquisa otimizou a atração que estas tecnologias exercem
sobre eles para fazê-los praticar a linguagem escrita de modo
mais reflexivo e estratégico em seus discursos, principalmente
nos gêneros que podem lhes dar acesso à cidadania e ao ingres-
so no ensino superior acadêmico ou técnico.
A justificativa da relevância do trabalho com as Tecnolo-
gias Digitais Móveis (TDM) na escola, em favor de um novo
paradigma educacional no ensino e na aprendizagem de Língua
Portuguesa, está na necessidade de pesquisas que investiguem
esse processo em âmbito individual e colaborativo e como essas
TDM medeiam a aprendizagem favorecendo o letramento digi-
tal e as práticas sociais contemporâneas. Entendemos que novos
cenários educativos podem surgir a partir do uso pedagógico das
TDM, caracterizados pela: (i) mobilidade do aluno e da aprendi-
zagem; (ii) portabilidade; (iii) possibilidade de interação em dife-
rentes contextos, tudo isso promovendo o desenvolvimento das
competências necessárias aos letrados digitais do século XXI
(CAIADO; LEFFA, 2017, p. 110):
Para Costa, Xavier e Carvalho (2014, p. 202), a aprendiza-
gem móvel

é uma modalidade de ensino contextual que favorece novos tipos


de comportamentos resultantes da interação sociocultural dos
indivíduos e da convergência dos aspectos de usabilidade dos dis-
positivos móveis que permitem um fluxo de microconteúdos, possi-
bilitando uma real aprendizagem continuada, ou seja, sem emendas
entre os episódios de aprendizagem formal, não-formal e informal.

Compreendemos por aprendizagem móvel aquela que acon-


tece a partir das práticas sociais, culturais, acadêmicas e digi-
tais dos sujeitos, em dispositivos móveis (smartphones, tablets,
notebooks, dentre outros), com base nos princípios de interativi-
dade, mobilidade, portabilidade, multimodalidade propiciados
pela integração multimídia presente e, acessível, em tecnologia
móvel. Todos esses conceitos convergem para a aprendizagem
real, na medida em que a potencializam, melhoram, ampliam
seu alcance e alteram o comportamento do aprendiz a partir das
práticas sociais, culturais, acadêmicas e digitais. Aprendizagem
móvel é vista aqui como um meio multimídia e multifuncional
que pode ajudar e até mesmo influenciar as práticas pedagógicas
escolares (CAIADO, 2016).
A inovação educacional latente aos dispositivos móveis de
comunicação vem sendo estudada na América do Norte, Euro-
pa e Austrália, (HARTNELL; YOUNG; HEYM, 2008; SARAN
et al., 2008; PEMBERTON et al.,2009; SHARPLES et al., 2009;
GROMILK, 2010; LEPKOWSKA, 2010). Tais pesquisas têm re-
velado o forte apelo pedagógico atribuído aos telefones celulares
no que concerne à continuidade da aprendizagem de conteúdos
fora do ambiente escolar. A Unesco reconheceu este potencial e
promoveu em 2011, em Paris, a primeira Week Mobile Learning
(semana de aprendizagem móvel). O evento discutiu estratégias
de implementação deste tipo de aprendizagem a partir dos apa-
relhos móveis de comunicação. Vários projetos-piloto estão sen-
do realizados em diferentes países para mostrar as vantagens e
os limites desta nova forma de aprendizagem que tem sido con-
siderada uma alternativa à educação mundial presente e futura.
Quanto ao tablet, duas verdades a seu respeito são consen-
suais entre os especialistas, as quais foram consideradas em
sua integralidade nesta pesquisa: 1) trata-se de um excelente
equipamento para o consumo de conteúdo e 2) barateia muito o
custo do material didático, uma vez que armazena uma quan-
tidade incomparavelmente maior de dados do que qualquer
enciclopédia impressa, além de permitir acessar diferentes ban-
cos de dados disponíveis on-line. Por isso, os fabricantes deste
dispositivo móvel têm anunciado a inserção de aplicativos que
buscam facilitar o acesso à informação, matéria-prima funda-
mental ao ensino escolar.

3. Metodologia utilizada
Para alcançar os objetivos propostos, esta pesquisa de
cunho descritivo-interpretativo e propositivo, realizou, ao longo
de três anos, as seguintes ações metodológicas:
i) a observação dos recursos linguísticos e multissemióticos
das funções comunicativas contidas nos smartphone e ta-
blet; buscou-se, com isso, conhecer o potencial comuni-
cativo dos equipamentos estudados e, assim, inferir mo-
dos de usos pedagógicos executáveis a partir deles;
ii) a elaboração de um conjunto de atividades relativas
à produção de textos do tipo argumentativo como: a
dissertação-argumentativa. Considerando a natureza ar-
gumentativa da língua, explorou-se em tal gênero tex-
tual: a) compreensão global e sequenciada do gênero
dissertação-argumentativa; b) mapeamento da natureza
do gênero, suas características, sequências tipológicas e
propósito comunicativo; c) identificação e avaliação de
teses e argumentos dos autores presentes nos textos-fon-
te; e d) articuladores e operadores argumentativos como
recursos indiciadores de pontos de vista.
iii) foram selecionados 60 sujeitos informantes matricula-
dos e com frequência assídua às aulas de Língua Portu-
guesa de duas escolas, sendo uma delas pertencente à
rede pública e a outra, à rede privada. Equipamentos tais
como smartphone e tablet foram adquiridos pelo projeto
de pesquisa e utilizados para a coleta dos dados, garan-
tindo que todos os informantes tivessem acesso aos mes-
mos equipamentos, nas mesmas condições de manuseio
para responder ao questionário. Eles também receberam
instruções sobre o modo de operação dos dispositivos
móveis antes de usá-los para responder ao questionário
sócio-econômico-tecnológico.
Ao final das atividades, os pesquisadores constataram uma
sintomática aceitação de conteúdos presentes ao programa es-
colar e formatados em aplicativos educacionais. Esta constata-
ção levou a cogitar a produção de um aplicativo específico, que
desse conta da aprendizagem de redação de forma gamificada,
lúdica e divertida. Assim, a equipe de pesquisadores partiu para
a elaboração do aplicativo, uma empreitada bem desafiadora
pela complexidade que envolve a produção de um objeto digital
de aprendizagem.

4. Descrição do App Redigir Enem


O Redigir Enem é um game, e como tal, possui desafios,
metas e recompensas para o jogador. O game é composto por
cinco etapas, com dez desafios a cumprir em cada uma delas.
Cada uma das etapas tem uma Redação nota 1000 do Enem
como ponto de partida para a realização dos desafios. Ao passar
de uma etapa a outra, o jogador ganha bônus, que, em geral, é
uma sugestão de tema para ele escrever um texto aplicando os
conhecimentos adquiridos na etapa e assim ir se preparando
para a redação do Enem.
Figura 1: Telas do App Redigir Enem

Fonte: Aplicativo Redigir Enem

Figura 2: Tela de Fases do Redigir Enem

Fonte: Aplicativo Redigir Enem


O App está pedagogicamente ancorado na teoria da
aprendizagem sócio-cognitiva-interacionista e na teoria da
aprendizagem baseada em problemas; com foco, nessa pes-
quisa, na gamificação. De acordo com essas teorias, a apren-
dizagem ocorre quando o aprendiz interage socialmente com
outras pessoas e textos, acionando linguagens, conceitos,
raciocínios, imaginação, memória que são processados pela
inteligência humana.
Figura 3: Fase 1 - Etapa 8 Redigir Enem

Fonte: Aplicativo Redigir Enem

Ao interagir com o App Redigir Enem, o aluno não só apre-


ende o conteúdo relativo à produção do gênero dissertação-ar-
gumentativa, como monitora e personaliza sua participação —
características essas requeridas nas etapas do game — enquanto
jogador, e planeja suas ações subsequentes. A meta de todo joga-
dor é a passagem de uma etapa para outra no menor tempo pos-
sível sem ter que reiniciar o jogo em uma mesma fase, quando
o limite de tentativas de respostas for ultrapassado (CAIADO;
LEFFA, 2017).
Observemos algumas telas do App Redigir Enem:
Figura 4: Redação nota 1000 Enem

Fonte: Aplicativo Redigir Enem

O processo de gamificação da produção textual, no App


Redigir Enem, levou à motivação dos alunos participantes da
pesquisa, pois as tecnologias digitais incitam os alunos à partici-
pação e as TDM acrescem à motivação a perspectiva da portabi-
lidade — a toda hora e em qualquer lugar — o aluno utiliza onde
desejar e porta o dispositivo para onde quiser.

5. Metas alcançadas pelo projeto


Podemos dizer que as metas preestabelecidas pelo projeto
foram alcançadas. Assim, esta pesquisa a) ofertou mais uma
chance objetiva para melhorar a qualidade da produção de tex-
tos argumentativos do aluno da educação básica, uma vez que,
jogando, ele passa a refletir nas características do gênero ar-
gumentativo, especialmente, da dissertação-argumentativa, fora
da sala de aula, ao utilizar o Redigir Enem, seja instalado no
tablet ou no smartphone; b) instrumentalizou o professor de Lín-
gua Portuguesa com um conjunto de atividades elaboradas espe-
cificamente para propiciar a compreensão e a produção textual
quando do manuseio dos equipamentos móveis de comunicação
que, sem dúvida, exercem uma forte atração sobre os adolescen-
tes e jovens estudantes; c) disponibilizou, a partir do desenvol-
vimento do App, subsídios teórico-metodológicos para a criação
de outros objetos de aprendizagem aplicáveis à melhoria do de-
sempenho dos alunos em língua materna. Como o acesso e có-
pia ao Redigir Enem é gratuito, o docente terá livre acesso para
utilizá-lo como mais uma opção de recurso pedagógico para au-
xiliar no processo de ensino/aprendizagem.
Subjazia a esta pesquisa, e consequentemente ao desenvol-
vimento deste aplicativo, a ideia de que, se a escola dialogar mais
com o mundo estudantil, “falando sua linguagem” e utilizando
as ferramentas que o atraem, será possível motivar os aprendi-
zes a estudar com mais entusiasmo e prazer os conteúdos funda-
mentais para sua formação cidadã, crítica e criativa.

6. Contribuições da pesquisa
Como contribuições científicas, esta pesquisa obteve:
a) a oferta à comunidade acadêmico-científica de análises e
reflexões que podem mobilizar de modo interdisciplinar teorias
relativas aos estudos da linguagem, da comunicação e das no-
vas tecnologias a fim de melhorar o desempenho dos alunos
da educação básica no que concerne à aquisição de habilidades
para construir bons textos argumentativos e b) as construções
teórico-metodológicas que basearam as atividades elaboradas
para o App decorrentes deste empreendimento investigativo,
que tornaram o ensino-aprendizado de produção de textos com
este recurso uma realidade exequível. Os ganhos de qualidade
e de motivação para os alunos brasileiros atraídos por objetos
de aprendizagem computacionais poderão futuramente serem
metrificados em outras pesquisas.
Como contribuição tecnológica, esta pesquisa conseguiu:
a) produzir subsídios metodológicos, por meio da elaboração de
atividades inseridas no Redigir Enem, com potencial para incre-
mentar a habilidade de escrita argumentativa dos estudantes-
-jogadores; e b) construir um protótipo do aplicativo, testá-lo a
fim de detectar sua conveniência para, em seguida, aperfeiçoá-
lo para funcionar como um objeto de aprendizagem instigante e
dinâmico, sintonizado com as expectativas dos estudantes.

7. Considerações finais
Os resultados da pesquisa empreendida revelaram:
(i) O poder atrativo que um objeto digital de aprendiza-
gem exerce nos estudantes da educação básica. Esta
pode ser uma oportunidade com a qual o professor po-
derá aproveitar para introduzir temas densos e distan-
tes da realidade dos estudantes sugerindo aplicativos
que toquem ainda que tangencialmente tais temas;
(ii) a viabilidade da elaboração de um conjunto de ativida-
des textuais transformáveis em desafios gamificados
constituintes das sequências de um aplicativo com fito
didático-pedagógico;
(iii) a concretude do desenvolvimento real de um aplicati-
vo educacional virtual com foco na aprendizagem do
gênero dissertação-argumentativa para os alunos que
se submetem à redação do Enem.
Por fim, acreditamos que propor desafios aos alunos sem-
pre ajudará a aguçar sua capacidade de observação, de produção
de inferências que culmina com a compreensão do que precisa
saber sobre o gênero e de como deve fazê-lo na prática. O Redi-
gir Enem, ao entreter, informa e consolida conhecimentos sobre
a dissertação-argumentativa, preparando o aluno-jogador para
enfrentar as redações do Enem e da vida.

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CAPÍTULO 10 INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL EM CIÊNCIAS
DA LINGUAGEM:
Mineração e sumarização de textos,
análise semântica e ferramentas úteis
Matheus Barreto Lins Marinho (UNICAP)
Eric Rocha de Souza (UNL)
Anthony José da Cunha Carneiro Lins (UNICAP)
Fernando José Araújo Wanderley (UNICAP)
Francisco Madeiro (UNICAP)

1. Introdução
Humano: Está me levando para onde?
Carro: Supresa!
Humano: Lava a jato? Lavagem rápida de carro? Que é isso? E meu
compromisso? A mesa-redonda sobre IA na UNICAP?
Carro: Isso é para o Senhor aprender a me manter limpinho… E sei
que cearense gosta de aprender com humor! Chegaremos ao evento
com antecedência de um minuto.

O diálogo em tela envolve um professor e um carro inte-


ligente, ou seja, um veículo autônomo. O professor declarara
ao veículo o destino, a Universidade Católica de Pernambuco
(UNICAP), local onde iria participar de uma mesa-redonda so-
bre Inteligência Artificial (IA). De repente, no meio do percurso,
o professor se surpreende ao observar que o destino é diferente
do que havia sido solicitado: lava a jato. O diálogo se desenvolve
em claro clima de preocupação do professor em chegar atrasado
ao compromisso assumido. O veículo autônomo, ao processar
informações sobre trânsito, possíveis rotas de acesso à univer-
sidade, tempo gasto em lavagem de carro… “tranquiliza” o pro-
fessor e deixa sua mensagem sobre a necessidade de limpeza
(o veículo, equipado com sensores de imagem, “percebeu” que
há muito tempo está com bancos e tapetes empoeirados, com
vidros e laterais levemente sujos). Levando em conta que o pro-
fessor é cearense, povo conhecido por produzir excelentes hu-
moristas, o veículo deixa sua mensagem em “clima de humor”.
Observam-se diversas componentes relacionadas à IA no
diálogo previamente descrito, entre as quais podem ser citadas:
reconhecimento de fala, que permite ao veículo reconhecer o
que é dito pelo humano, e processamento da linguagem natural,
que permite que o diálogo aconteça com a “naturalidade” da
comunicação humana, a qual leva em conta elementos impor-
tantes, como semântica e conhecimento prévio.
O cenário agora é de um voo. Dentre os passageiros, um
robô humanoide médico. Há uma situação de passageiro que
requer atendimento de emergência. De acordo com a legislação
do país de origem do robô, procedimentos médicos podem ser
realizados por robôs. Ao chega no espaço aéreo de outro país,
o robô subitamente suspende o procedimento, em atendimento
à legislação local, que proíbe procedimento médico, socorro ou
atendimento de emergência por robôs. Não há médico humano
no voo. Neste caso, quem será responsabilizado por eventual
dano severo à saúde do passageiro ou por óbito? A empresa que
produziu o robô? Quem comprou o robô? Quem programou o
robô? E se o robô houvesse sido programado para salvar um
humano em risco, sob quaisquer circunstâncias? Partindo do
pressuposto de que o procedimento realizado pelo robô fora exi-
toso, quem responderá pelas ações legais movidas pelo Gover-
no do país em virtude do descumprimento da lei que proíbe
atendimento por robô? A empresa que produziu o robô? Quem
comprou o robô? Quem programou o robô? A companhia aérea?
Haveria um incidente diplomático?
Consideremos um terceiro cenário. Os algoritmos de apren-
dizagem, os sistemas de fusão de dados e as tecnologias de pro-
cessamento e armazenamento da informação chegam a um
nível de desenvolvimento que permitem um robô humanoide
aprender a programar. Um robô desenvolvera grandes habili-
dades de programação. Ele lança um aplicativo ou uma rede
social de sucesso mundial. De quem é o lucro? Do fabricante?
Do proprietário do robô? Do próprio robô, que reivindica lucros,
em virtude da autoria?
Os três cenários supracitados apontam para uma área que
tem fascinado a sociedade: a Inteligência Artificial. Os cenários
em tela deixam claro que, além dos desafios tecnológicos ineren-
tes à área, há questões importantes relacionadas à ética, à legis-
lação, à comunicação entre humanos e máquinas. Há inúmeras
polêmicas na área. É importante ressaltar que a IA tem trazido
benefícios para diversos setores da sociedade: saúde, segurança,
educação, transportes…
Este capítulo tem como objetivo abordar a IA à luz das
Ciências da Linguagem. São abordados temas como mineração
e sumarização de texto e análise semântica. São abordadas fer-
ramentas de IA, de fácil uso, da Google Cloud Platform e da
Amazon Web Services, com funcionalidades que permitem apli-
cações de interesse da área de Ciências da Linguagem.

2. IA em mineração e classificação de textos nas mídias sociais

2.1. Entendendo as mídias sociais

As relações e as formas de interação entre indivíduos, bem


como com empresas em diversos segmentos, passaram por
grandes mudanças com o advento das Mídias Sociais, as quais
são ferramentas de base tecnológica (em sua grande maioria),
com características e propósitos diferentes. Duas das principais
ferramentas de Mídias Sociais, o Facebook e o Twitter, original-
mente não tinham como objetivo principal ser um meio pelo
qual seus usuários buscassem se manter informados sobre de-
terminado fato, mas que permitissem a essas pessoas se conec-
tarem com outras pessoas, criando suas próprias redes sociais
(HE; ZHA; LI, 2013). Segundo Sapountzi e Psannis (2018), o ter-
mo rede social é usado para descrever serviços baseados na web
que permitem que indivíduos criem um perfil público/semipú-
blico dentro de um domínio, de modo que possam se conectar
comunicativamente com outros usuários dentro da rede.
Na teoria de redes, uma rede social é geralmente modelada
por um grafo que consiste em usuários ou grupos chamados
nós, que estão conectados por padrões de contatos ou intera-
ções chamadas arestas ou links (SAPOUNTZI; PSANNIS, 2018).
Kietzmann et al. (2011) apresentam um framework que relacio-
na as Mídias Sociais, conforme sete blocos funcionais, que são:
identidade, conversações, compartilhamento, presença, relacio-
namentos, reputação e agrupamentos. Em cada um dos blocos
pode-se explorar uma faceta específica do usuário de mídia so-
cial e também suas implicações para empresas.
A proliferação das mídias sociais, aplicando diferentes for-
mas de interação, possibilita um aumento de oportunidades e
possibilidades para pesquisas sobre hábitos e comportamentos
de indivíduos e grupos ao analisar o que esses praticantes cos-
tumam publicar em seus perfis públicos dentro de suas redes
sociais. Estima-se, para o ano de 2019, que deverão existir cerca
de 2,8 bilhões de usuários conectados em todo o mundo, atra-
vés de ferramentas de mídias sociais (STATISTA, 2018). Quanto
ao volume de dados, com a perspectiva sempre crescente no
aumento do número de usuários, observa-se uma grande quan-
tidade de dados não estruturados, em períodos de tempo cada
vez menores. O grande volume de dados que trafega nas redes
pode ser analisado com uso de técnicas e ferramentas de Big
Data (BD) (GHANI et al., 2018, no prelo). Nas interações diá-
rias realizadas pelos participantes das redes sociais, através de
mídias sociais diversas, em geral não há uma preocupação com
a estrutura da linguagem utilizada, bem como com a grafia e
construção gramatical correta do texto apresentado, o que pode
levar a vários tipos de ambiguidades no contexto léxico, sintáti-
co e semântico, o que torna crítica a extração de padrões lógicos
e corretos (IRFAN et al., 2015).

2.2. Mineração de textos

A mineração de textos (text mining) é uma tecnologia emer-


gente que é aplicada para realizar a extração de informação signi-
ficativa de dados textuais não-estruturados (HE; ZHA; LI, 2013).
A mineração de textos pode ser entendida também como uma
extensão das técnicas de data mining (mineração de dados) para
dados coletados em textos, sendo mais complexa em comparação
com a mineração de dados devido à natureza não estruturada e
difusa do texto de linguagem natural (IRFAN et al., 2015).
A mineração de textos pode ser uma solução para os pro-
blemas de interpretação do significado e do sentido de cada pa-
lavra dentro de um contexto, durante a extração de informação.
A técnica é composta por campos multidisciplinares, como re-
cuperação de informação, análise de texto, processamento de
linguagem natural juntamente com linguística computacional
(SALLOUM et al., 2017).

2.3. Mineração de textos em mídias sociais

Ghani et al. (2018, no prelo) apresentam uma proposição


sobre a análise que pode ser feita usando Big Data aplicada ao
contexto de mídias sociais, sendo então dividida em quatro ti-
pos: descritivo, diagnóstico, preditivo e prescritivo. Em Jimenez-
-Marquez et al. (2019), é apresentado um framework para análise
com Big Data em mídias sociais, contendo dois estágios, sendo o
primeiro para o tratamento e integração dos dados e o segundo
para o processamento de classificação/clusterização de acordo
com a arquitetura de BD utilizada. A aplicação de técnicas de
Inteligência Computacional, tais como Redes Neurais Artificiais
(RNA), Inteligência de Enxames, Lógica Nebulosa (Fuzzy), Com-
putação Evolucionária e mais recentemente Redes de Aprendi-
zagem Profunda (Deep Learning), em conjunto com arquiteturas
de processamento de alto desempenho baseados em Unidades
de Processamento Gráfico (Graphical Processing Units) (GHA-
NI et al., 2018, no prelo), encerra a perspectiva de obtenção de
modelos computacionais adaptados a contextos hipercomplexos,
que manipulam dados massivos que se modificam dinamica-
mente, adequados ao contexto das redes sociais.
Minerar dados em mídias sociais, tais como Facebook e
Twitter, envolve uma série de tarefas complexas, além do cresci-
mento diário da quantidade de informações que trafegam nessas
mídias, o que torna o processo suscetível a diversos problemas.
O Facebook e o Twitter são exemplos de mídias sociais que pos-
suem bibliotecas de código, conhecidas como API (Application
Programming Interface), que podem ser acessadas por usuários
e empresas que tenham a intenção de produzir ferramentas ou
estratégias baseadas nos dados dessas mídias sociais e são utili-
zadas com outras linguagens e frameworks de aprendizagem de
máquina, tais como o Weka, Sci-kit, dentre outras (SAPOUNT-
ZI; PSANNIS, 2018).

2.4. Pré-processamento do texto

Durante a fase de coleta de textos podem ocorrer diversos


problemas devido à má organização do conteúdo, resultando em
uma interpretação irracional ou mesmo perda de informações.
Caso o texto não seja previamente analisado, poderá gerar in-
formações inconsistentes, e a mineração deste texto resultar em
lixo, ou informação inválida, tendo baixa acurácia na saída do
processamento. Dois métodos para pré-processamento de da-
dos, que podem ser aplicados à mineração de textos, são: feature
extraction (FE) ou extração de características, e feature selection
(FS) ou seleção de características. Irfan et al. (2015) descrevem a
FE como um processamento para análise morfológica, semânti-
ca e sintática de cada palavra no texto. FS busca eliminar infor-
mações redundantes e irrelevantes do texto.

2.5. Métodos de classificação de textos

Recentemente, diversos métodos têm sido propostos para


melhorar a classificação automática de textos não-estruturados,
identificando sentimentos e classificação de conteúdos, parti-
cularmente aplicados à área de Comunicação. Hartmann et al.
(2018, no prelo) apresentam um estudo comparativo de técni-
cas, que incluem Aprendizagem de Máquina (Redes Neurais
Artificiais, k-Nearest Neighbors, Näive-Bayes, Random Forest, e
Support Vector Machines) e métodos baseados em análise léxi-
ca (AFINN, definido por Nielsen; BING, definido Bing Liu e
colaboradores; LIWC — Linguistic Inquiry Word Count, definido
por Pennebaker e colaboradores; NRC Emotion Lexicon, definido
por Mohammad e Turney; e Valence Aware Dictionary for Senti-
ment Reasoning, definido por Hutto e Gilbert). Segundo Ghani
et al. (2018, no prelo), as técnicas para análise de dados em um
contexto de mídias sociais estão relacionadas com processamen-
to de linguagem natural, análises de sentimentos, análises das
redes sociais e de notícias.

3. A sumarização automática de textos por meio de


técnicas de IA
O objetivo desta seção é apresentar uma visão geral sobre
as técnicas de Inteligência Artificial para a sumarização automá-
tica de textos, otimizando o tempo de análise textual do usuário
e a qualidade da síntese da informação a partir de um grande
volume de dados gerado pelas plataformas sociais conectadas.
A necessidade de sumarização de texto emerge em grande
parte com o crescimento da publicação e da disseminação da
informação na internet, à medida que as plataformas sociais e
as tecnologias da informação e da comunicação estão se expan-
dindo. Uma imensa quantidade de dados está sendo produzida
dia a dia como resultado das interações promovidas por trocas
de conhecimento entre os usuários nessas plataformas sociais
(MOSA; ANWAR; HAMOUDA, 2018). Um recente estudo ela-
borado pela consultoria EMC aponta que nos últimos anos o
volume de dados gerados pela população mundial atingiu a casa
dos 20 Zettabytes (ou em outras palavras, aproximadamente 20
trilhões de Gigabytes). No estudo, os consultores estimam atin-
girmos em 2020 a casa dos 40 trilhões de Gigabytes de dados e
de informações oriundas de uma cadeia conectada de platafor-
mas sociais da internet.
Devido ao grande volume de informações, tornou-se difícil
uma mineração eficiente de informações úteis. A questão, então,
que inevitavelmente se coloca é: como gerar sumários, em tempo
hábil, para tão grande massa de textos? Assim, faz-se necessário
utilizar métodos automáticos apoiados pela IA — como técnicas
bioinspiradas (MOSA; ANWAR; HAMOUDA, 2018), processa-
mento de linguagem natural (DE SOUZA et al., 2017, BUI et
al., 2016) e aprendizagem de máquina para indexar, classificar,
compreender e apresentar as informações de forma clara e con-
cisa, permitindo que os usuários possam economizar tempo e
recursos. Uma solução é a utilização de técnicas de sumarização
automática de textos, que é o processo de criação automática de
uma versão compactada de um ou mais documentos (LINS et
al., 2012), visando obter o “significado”, ou melhor, a informação
relevante contida nos documentos. Os sumários também podem
ajudar nas questões de usabilidade de interfaces e de acessibili-
dade e inclusão digital, por exemplo, na apresentação de dados
em aparelhos celulares (cujos visores podem restringir a quanti-
dade de informação que pode ser mostrada) e em simplificação
de textos para leitores com pouco domínio da língua.
Essencialmente, as técnicas de sumarização (TS) são classifi-
cadas como extrativas e abstrativas (LLORET; PALOMAR, 2012).
TS extrativas produzem um subconjunto das sentenças mais im-
portantes de um documento, exatamente como elas aparecem
no documento original. Por outro lado, TS abstrativas produzem
sumários visando auxiliar e melhorar a coerência entre as sen-
tenças, eliminando redundâncias e deixando clara a relação entre
as frases, podendo até produzir novas sentenças para o resumo.
Em estudos recentes (BUI et al., 2016) pesquisadores têm
desenvolvido técnicas de processamento de linguagem natural
combinadas com algoritmos de aprendizagem de máquina para
o desenvolvimento de aplicações de sumarizações em revisões
sistemáticas da literatura, obtendo resultados encorajadores no
âmbito da geração de resumos dos artigos encontrados. Com
relação às técnicas bioinspiradas — como colônias de formigas,
por exemplo (MOSA; ANWAR; HAMOUDA, 2018) — os pesqui-
sadores da área de inteligência computacional têm encontrado
poucos trabalhos formais que relatem resultados relevantes so-
bre geradores de sumários coesos, incentivando desta forma a
comunidade a apontar trabalhos para esta direção.
Trabalhos de IA com o uso de técnicas de processamento
de linguagem natural (PLN) têm sido encontrados na literatura
(DE SOUZA et al., 2017) por levar em conta os seguintes as-
pectos: (i) morfológico — reconhecem uma palavra em termos
de unidade (morfemas); (ii) sintático — definem a estrutura de
uma frase com base na forma como as palavras dessa frase se
relacionam (categorias gramaticais); (iii) semântico — associam
significado às estruturas sintáticas, em função do significado
das palavras que a compõem e (iv) pragmático — adequam o
significado de uma frase ao contexto em que ela é usada. Os
trabalhos de PLN se fundamentam na “arquitetura linguística”
de um sumarizador automático (SPARK-JONES, 1993), o qual
contempla três tipos de informação: o linguístico, o informa-
tivo (ou de domínio) e o comunicativo, remetendo a questões
semânticas e pragmáticas que aumentam a complexidade dos
sistemas, devido à necessidade de modelagem do conhecimento
para manipulá-la.
No processamento dos textos, de acordo com (DE SOUZA et
al., 2017), utilizando abordagens baseadas em PLN, geralmente são
realizadas as seguintes ações básicas: a normalização da grafia e a
redução da palavra à forma raiz da expressão escrita. Além disso, o
PLN abrange também outros temas sobre os quais desenvolvem-se
estudos e pesquisas, tais como: o processamento morfossintático e
semântico de sentenças, as representações de variações linguísticas
e ambiguidades, a etiquetagem de texto, a eliminação de palavras
não funcionais, como artigos, conectivos e preposições sem prejuízo
da coerência textual, a representação do conhecimento e a recupe-
ração de informação (DE SOUZA et al., 2017; BUI et al., 2016).

4. IA para análise semântica


O objetivo desta seção é explicar o que é análise semântica
e apresentar algumas das principais abordagens usadas no con-
texto da Inteligência Artificial.
Avanços na área de Inteligência Artificial e Processamento
de Linguagem Natural (do inglês, Natural Language Processing
— NLP) têm impactado positivamente a análise semântica por
meio de algoritmos avançados, computadores poderosos e mui-
ta prática (DAS; MARTINS, 2007; GUPTA, 2010). Como conse-
quência, as máquinas estão ficando cada vez melhores na exe-
cução dessa atividade.
A análise semântica conduzida por máquinas possui várias
aplicações do mundo real. As máquinas podem, por exemplo, (i)
auxiliar na compreensão da fala de pessoas disártricas (DESPO-
TOVIC; WALTER; HAEB-UMBACH, 2018), (ii) extrair opiniões
de publicações realizadas em redes sociais (PAK; PAROUBEK,
2010), (iii) encontrar uma resposta para uma pergunta sem ter
que perguntar a um humano (ARGAL et al., 2018) ou (iv) desco-
brir as mensagens implícitas em textos tais como os sentimentos
dos autores (MEDHAT; HASSAN; KORASHY, 2014).
Antes de demonstrar as principais abordagens usadas para
aprendizagem de máquina, vamos dar uma breve explicação da
história do suporte da Inteligência Artificial na análise semân-
tica em textos.

4.1. História da análise semântica no contexto de IA


No começo havia uma análise textual (DAS; MARTINS,
2007). Os profissionais de Inteligência Artificial escreviam pro-
gramas que conseguiam coletar enormes quantidades de dados
e procurar palavras e frases que aparecessem com frequência
(GARCÍA-HERNÁNDEZ; LEDENEVA, 2009). A implicação era
de que a frequência seria um sinal de importância. Mesmo se
ignorarmos essa suposição errônea por um instante, ainda há
lacunas. Primeiro, alguém teria que olhar para os resultados e
determinar por que essa palavra está ocorrendo com mais fre-
quência e o que ela significa. É claro que é muito difícil fazer
isso com palavras removidas do contexto, especialmente quando
as palavras podem ter muitos significados e conotações diferen-
tes. Por exemplo, ao perguntar ao leitor sobre o significado da
palavra “cachorro”, provavelmente a resposta deve estar relacio-
nada a um animal da espécie canina. Todavia, em um contexto
de relação humana, a palavra cachorro pode ter o significado de
uma pessoa indigna, mau-caráter, infame (MICHAELIS, 2018)
ou, no contexto de transporte de carga, cachorro é o nome de
uma balsa descoberta de buriti usada na bacia do rio Parnaíba
no estado brasileiro do Piauí (MICHAELIS, 2018).
Após a análise textual baseada na frequência das palavras
no texto houve a “fase da marcação”. Marcação, também conhe-
cida como rótulo, tag ou tópico, era essencialmente uma tenta-
tiva de usar a compreensão diferenciada de um conteúdo por
parte do ser humano para criar um sistema que uma máquina
pudesse propagar em grande escala (FUENTES; ALFONSECA;
RODRÍGUEZ, 2007). Assim, profissionais de Inteligência Artifi-
cial escolhiam algumas palavras que eles esperavam ter algum
significado para um leitor, mas ainda estavam adivinhando
como um usuário individual conceituaria ou pesquisaria um
conteúdo (NENKOVA; MCKEOWN, 2012).
Após a fase da marcação, entramos na fase da aprendiza-
gem de máquina e análise de sentimentos (MEDHAT; HAS-
SAN; KORASHY, 2014). Com o advento das mídias sociais e
o abrangente conteúdo gerado pelos seus usuários que invadi-
ram a web, os profissionais de IA tiveram que intensificar os
esforços para extrair informações relevantes do enorme con-
junto de dados. Nesse sentido, os profissionais descobriram
um novo desafio: saber que alguém falando sobre um determi-
nado tópico (exemplo: assunto específico, produto ou empresa)
é menos importante do que saber como as pessoas estão se
sentindo ao falar sobre o tópico. Por exemplo, se a palavra
“droga” aparece ao lado de um produto de minha empresa, e
sei que isso tem um significado negativo, então posso inferir
que o que está sendo dito sobre meu produto é negativo (senti-
mento de insatisfação).
Do ponto de vista do processamento de dados, as semân-
ticas são “tokens” que fornecem contexto à linguagem. Eles
fornecem pistas não apenas sobre o significado das palavras,
mas também sobre suas relações com outras palavras e ou-
tros símbolos. O objetivo é olhar além das palavras na pági-
na para ver o significado (MEDHAT; HASSAN; KORASHY,
2014). Uma análise semântica bem-sucedida requer que um
programa examine conjuntos gigantescos de dados e, nessa
escala, ele deve estar fazendo muitas suposições (corretas).
Trata-se de pegar coisas que um computador pode facilmente
extrair dos dados, observando a frequência, a proximidade (e
muitos, muitos outros fatores juntos) e usá-las para dar saltos
cognitivos significativos. Ao saber aprender, um computador
pode conectar assuntos e recomendar soluções para proble-
mas de seus usuários (e de acordo com as preferências de tais
usuários). Assim, se um computador puder entender o con-
teúdo e o comportamento do usuário em um nível semântico
profundo, ele também pode fornecer conteúdo mais relevante
e, assim, criar uma experiência de usuário mais ressonante
(HUSSEIN, 2016).
4.2. Técnicas para análise semântica

Técnicas para análise semântica podem ser baseadas na


aprendizagem de máquina (CHENLO; HOGENBOOM; LOSA-
DA, 2003; GOMAA; ALY, 2013; GUPTA, 2010). Nesse caso são
usados algoritmos de Inteligência Artificial em conjunto com
recursos linguísticos. Em geral, a abordagem baseia-se em al-
goritmos para resolver a análise semântica como um problema
de classificação de texto regular que faz uso de características
sintáticas e linguísticas.
Os métodos de classificação de texto usando a abordagem
de aprendizagem de máquina podem ser divididos em métodos
de aprendizagem supervisionados e não-supervisionados (BEN-
VENUTO et al., 2018).

4.2.1. Aprendizagem supervisionada

Os métodos supervisionados fazem uso de um grande núme-


ro de documentos de treinamento rotulados. Existem muitos ti-
pos de classificadores supervisionados na literatura, por exemplo,
classificadores probabilísticos, classificadores lineares, classifica-
dores de árvore de decisão e classificadores baseados em regras.
Em geral, os classificadores probabilísticos obtêm resulta-
dos rapidamente e são apropriados quando o objetivo é eviden-
ciar tendências no espaço amostral e quando há uma irrelevân-
cia nas particularidades dos indivíduos. O modelo Bayesiano
é um exemplo de abordagem utilizada (NENKOVA; MCKEO-
WN, 2012; CELIKYILMAZ; HAKKANI-TUR, 2010; NENKOVA;
MCKEOWN, 2011; PAUDEL et al., 2018).
Existem muitos tipos de classificadores lineares. Entre eles,
estão os que utilizam Support Vector Machines (SVM) (FATIMA;
SRINIVASU, 2017; AGGARWAL, 2018).
É natural e intuitivo classificar um padrão através de uma
sequência de questões, onde a próxima questão depende da res-
posta da questão corrente (DUDA; HART; STORK, 2001). Uma
árvore de decisão é uma sequência hierárquica de questões. O
primeiro nó da árvore fica no topo e é chamado de nó raiz. Em
seguida, ramificações sucessivas são conectadas entre nós (essas
conexões são chamadas de links ou ramos). Essas conexões ocor-
rem até alcançar um nó terminal (chamado de nó folha). Para
classificar um item, dada uma árvore de decisão, percorre-se a
árvore do nó raiz até um nó folha seguindo o link apropriado
para o nó subsequente ou descendente. Cada nó folha contém
uma categoria rotulada (chamada de classe).
Classificadores baseados em regras são partes integrantes
de sistemas em inteligência artificial (DUDA; HART; STORK,
2001). Esses classificadores concentram-se em definir padrões
através de regras do tipo “se…então” (HADI; AL-RADAIDEH;
ALHAWARI, 2018). Por exemplo, “se” uma palavra x tem a pro-
priedade de que “nada” (verbo nadar) e a propriedade de “ter
escamas” “então” esse objeto é um “peixe”. Mitchell (1997) con-
sidera o conjunto de regras do tipo “se… então” uma das formas
mais expressiva e legível para representar hipóteses na aprendi-
zagem de máquina.

4.2.2. Aprendizagem não-supervisionada

Trabalhos têm utilizados métodos não-supervisionados


(KO; SEO, 2000; KALYANAM et al., 2017). Por exemplo, Ko e
Seo (2000) propuseram um método que divide os documentos
em sentenças e categorizaram cada sentença usando listas de
palavras-chave de cada categoria e medida de similaridade de
sentença e Kalyanam et al. (2017) verificam o uso de medica-
mentos controlados sem receita médica e o abuso de múltiplas
drogas em mensagens publicadas em uma rede social.

5. Ferramentas de IA em ciências da linguagem


Com a crescente democratização da Inteligência Artificial e
a sua utilização em áreas onde a tecnologia atua como um meio,
diversas ferramentas são propostas para que pessoas sem um
conhecimento prévio no assunto possam utilizar seus benefí-
cios. Nesta seção abordaremos plataformas online onde são dis-
ponibilizadas ferramentas de IA, de uma forma acessível para
que o leitor possa utiliza-las e compreender suas aplicações em
diferentes contextos. Serão abordadas as plataformas em nuvem
da Google e da Amazon, e suas ferramentas que envolvem Inte-
ligência Artificial, viabilizando, por exemplo, processamento de
linguagem natural e a aprendizagem de máquina.

Google Cloud Platform (https://cloud.google.com/)

O Google disponibiliza através da sua plataforma de com-


putação em nuvem intitulada Google Cloud Platform uma série
de ferramentas para aplicações relacionadas à Inteligência Ar-
tificial. As ferramentas permitem, por exemplo, (1) análise de
texto, (2) criação de modelos para a aprendizagem de máquina,
(3) reconhecimento de voz e (4) análise de imagens.
1. Cloud Natural Language (https://cloud.google.com/
natural-language/)
Descrição: Esta aplicação permite o usuário realizar
análises de texto, as quais podem ser feitas em textos
escritos em 10 idiomas, até o momento, entre eles inglês,
francês, alemão e português. Para uma contextualização,
na Tabela 1 é apresentada a quantidade de pessoas no
mundo de cada um dos 10 idiomas como primeira ou
segunda língua, de acordo com as informações obtidas
de (WIKIPEDIA, 2018).
Tabela 1: Quantidade de pessoas que falam um determinado idioma como
primeira ou segunda língua

Idioma Primeira Língua Segunda Língua

Chinês (tradicional e
908,7 milhões 198,4 milhões
simplificado)

Inglês 378,2 milhões 743,5 milhões

Francês 76,7 milhões 208,1 milhões


Alemão 76,0 milhões 56,0 milhões

Italiano 64,8 milhões 3,0 milhões

Japonês 128,2 milhões 131.000

Coreano 77,2 milhões -

Português 227,7 milhões 13,8 milhões

Espanhol 442,3 milhões 70,6 milhões

De acordo com os dados da tabela observa-se que o Cloud


Natural Language cobre aproximadamente 30,90% dos
idiomas falados no mundo como primeira língua e alcan-
ça um percentual de 47,70% dos idiomas falados em todo
o mundo como primeira ou segunda língua. Por meio do
Cloud Natural Language é possível encontrar entidades
e classifica-las como: pessoas, organizações, localidade,
bens de consumo, entre outros. Essas entidades podem
ser divididas em duas categorias: substantivos próprios
ou substantivos comuns. A aplicação permite, ainda,
realizar uma análise de sentimento, sendo este pontua-
do numa escala de -1 a 1. O sentimento negativo, como
por exemplo raiva e tristeza, é representado por valores
negativos; um sentimento neutro é próximo a zero; um
sentimento positivo, por exemplo alegria e amor, é repre-
sentado por valores positivos. Na análise de sentimentos
ainda é possível medir a intensidade geral da emoção,
por meio de um atributo intitulado magnitude, o qual
varia entre zero e infinito. Também é possível obter de-
talhes sobre a estrutura linguística do texto. Os detalhes
vão desde o âmbito morfológico a uma análise sintática.
Assim, podem ser extraídas informações gramaticais das
palavras identificadas na frase e no contexto sintático
uma árvore de dependência é criada para cada frase do
texto exibindo informações sintáticas para cada palavra.
Por fim, ainda é disponibilizada ao usuário uma catego-
rização do conteúdo do texto em mais de 50 categorias,
entre elas: esportes, politica, saúde e clima.
Aplicação: Dentre as possíveis áreas de aplicação, pode-se­
destacar a análise do comportamento de usuários atra-
vés dos comentários sobre um determinado produto em
postagens nas redes sociais ou, no âmbito jornalístico,
como as pessoas estão reagindo a um determinado even-
to político-social.
2. AutoML Natural Language (https://cloud.google.com/
natural-language/automl/docs/)
Descrição: A ferramenta permite criar modelos de
aprendizagem de máquina, responsáveis por fazerem
classificação automática de dados, ou seja, com esta
ferramenta o usuário é capaz de ensinar a máquina a
encontrar padrões previamente estabelecidos por ele.
Nesta aplicação os modelos gerados só podem classificar
conjunto de dados textuais, ou seja, o modelo gerado pela
ferramenta só recebe como entrada de dado palavras ou
frases e as classificam de acordo com uma categoria de-
finida. Existem diversas maneiras de o usuário intera-
gir com a aplicação para que a mesma possa gerar os
modelos de classificação. Entre elas está a inserção dos
dados via arquivos CSV (Comma-separated values). Nes-
ses arquivos o usuário disponibilizará os textos e suas
classificações para que a aplicação possa aprender com
os dados.
Aplicação: Um exemplo prático seria utilizar o AutoML
Natural Language na classificação automática de comen-
tários numa rede social em uma dentre duas categorias:
ofensivos, como por exemplo, xingamentos e comentá-
rios preconceituosos; não ofensivos. Para gerar o modelo
é muito simples. O usuário disponibiliza para a aplicação
um conjunto de dados previamente classificados, cha-
mado conjunto de treinamento, termo utilizado na área
de aprendizagem de máquina. Este conjunto de dados é
classificado inicialmente pelo próprio usuário. No caso
do exemplo citado anteriormente, seriam extraídos co-
mentários ofensivos e não ofensivos de uma rede social e
em seguida esses seriam classificados de acordo com sua
categoria. Após a inserção desse conjunto na aplicação,
a mesma gera um modelo preditor que poderá ser usado
pelo usuário na classificação de novos comentários de
maneira automatizada.

3. Cloud Speech-to-Text (https://cloud.google.com/speech-


to-text/)
Descrição: Esta aplicação permite realizar uma conver-
são de voz em texto. O Cloud Speech-to-Text utiliza-se de
modelos de redes neurais, que são abstraídos ao usuário,
permitindo que uma tarefa complexa como esta seja rea-
lizada de maneira transparente, necessitando apenas que
seja disponibilizado à ferramenta o áudio da conversação
a ser transcrita. A aplicação reconhece até 120 idiomas,
sendo possível, em todos eles, realizar uma filtragem de
conteúdo inadequado de forma automática e esse não ser
exibido no texto gerado através do áudio.
Aplicação: Uma utilização interessante desta ferramen-
ta seria no âmbito da acessibilidade para deficientes au-
ditivos, onde pode ser gerado em tempo real um texto do
que está sendo falado num diálogo, por exemplo.

4. Cloud Vision (https://cloud.google.com/vision/)


Descrição: Nesta ferramenta é possível realizar diver-
sas análises sobre o conteúdo identificado em imagens.
Entre elas pode-se elencar: (i) Identificação de rostos,
permitindo também uma análise do sentimento em cada
rosto detectado. Os sentimentos podem ser classificados
como: alegria, tristeza, raiva e surpresa. (ii) Entidades
da web, em que podem-se encontrar páginas na internet
que contenham tanto a imagem tal qual foi mostrada ou
páginas que exibam imagens visualmente semelhantes,
(iii) Detecção de marcadores, na qual é possível extrair
informações sobre as entidades contidas na imagem,
dentre elas animais, objetos e produtos. A aplicação ain-
da permite ao usuário (iv) Extração de texto, onde são
mostrados ao usuário os textos encontrados na imagem
e, por fim, (v) Moderação de conteúdo, sendo viável de-
tectar imagens inadequadas, classificando-as em conteú-
do adulto, ofensivo, médico ou violento.
Aplicação: Uma utilização interessante desta ferramen-
ta se dá no âmbito de como o cliente reage a mudanças de
preços em um supermercado ou ainda, qual a sensação
de o mesmo ao realizar o pagamento de suas compras.
Isto permite que o estabelecimento possa fazer ajustes
para garantir uma melhor satisfação dos seus clientes.

Amazon Web Services (https://aws.amazon.com/)

A Amazon disponibiliza através do Amazon Web Services


(AWS) diversos serviços de computação em nuvem, que ofere-
cem um vasto poder computacional e a possibilidade da criação
de aplicações com flexibilidade, escalabilidade e confiabilidade.
Dentre os produtos oferecidos pela AWS estão os relacionados
à aprendizagem de máquina, disponibilizados de acordo com a
necessidade e o nível de experiência dos usuários. Entre os ser-
viços ofertados serão destacados os que abordam os seguintes
contextos: (1) processamento de linguagem natural, (2) tradução
automática de textos e (3) reconhecimento de vídeos.

1. Amazon Comprehend (https://aws.amazon.com/pt/


comprehend)
Descrição: Este serviço utiliza técnicas de processa-
mento de linguagem natural para extrair informações de
textos. Entre elas podem-se destacar (i) Entidades, divi-
didas em diferentes categorias, entre as quais pessoas e
lugares. (ii) Detecção de idioma, que permite identificar
o idioma dominante, dentre 100 idiomas disponíveis,
(iii) sentimento, que possibilita inferi-lo através do texto,
podendo este ser negativo, neutro, positivo ou misto e
por fim (iv) análise sintática, em que são verificadas as
palavras do texto e classificadas como substantivos, ad-
jetivos, verbos entre outros.
Aplicação: Pode-se utilizar esta ferramenta para identi-
ficar assuntos de interesse de um usuário em uma rede
social e ofertar ao mesmo notícias personalizadas para o
seu perfil.

2. Amazon Translate (https://aws.amazon.com/pt/translate)


Descrição: Este serviço oferece ao usuário traduções de
qualidade e com uma maior fluência do texto, pois uti-
liza modelos de aprendizagem profunda para realizar a
tradução, fazendo com que o texto traduzido seja mais
natural do que os traduzidos a partir de algoritmos ba-
seados em regras (AMAZON, 2018). É disponibilizada a
tradução do inglês para doze idiomas e vice versa, in-
cluindo português, francês, espanhol e japonês.
Aplicação: A utilização desta ferramenta pode ser feita
em plataformas onde o usuário quer promover um diálo-
go entre pessoas de diferentes idiomas, porém cada um
falando em sua língua nativa, outra utilização pode ser
feita para promover o ensino de um determinado idioma.

3. Amazon Rekognition (https://aws.amazon.com/pt/


rekognition)
Descrição: Nesta ferramenta é possível realizar análi-
se tanto em vídeos quanto em imagens, porém iremos
abordar apenas as perspectivas relacionadas aos vídeos.
Fornecendo o arquivo de vídeo em diferentes formatos
ao Amazon Rekognition, é realizada a detecção de (i) obje-
tos, tais quais: carros, bolas entre outros, (ii) atividades,
entre elas: falando e jogando futebol, (iii) identificação de
celebridades, (iv) identificação de pessoas, ou seja, quais
pessoas aparecem no vídeo, exibindo uma foto de cada
uma e por fim (v) identificação de conteúdo, sendo neste
ponto informado ao usuário se existe algum conteúdo
inadequado em algum momento do vídeo. Em todas es-
sas detecções a ferramenta permite ao usuário saber em
quais momentos do vídeo elas acontecem, possibilitando
uma validação dos resultados encontrados.
Aplicação: Uma aplicação para esta ferramenta é a ve-
rificação de conteúdo em vídeos disponibilizados pelos
usuários em redes sociais, permitindo que o usuário
modere postagens e identifique aquelas que possuem
um conteúdo suspeito, por exemplo: vídeos inadequa-
dos para menores de 18 anos ou vídeos que tenham um
cunho violento com exibição de armas.

6. Considerações finais
Neste capítulo foram apresentadas aplicações de Inteligên-
cia Artificial de interesse de Ciências da Linguagem. Foram
abordados temas como mineração e sumarização de texto e
análise semântica. O capítulo culminou com a apresentação e
descrição sucinta de ferramentas de IA, de fácil uso, da Google
Cloud Platform e da Amazon Web Services, com funcionalida-
des que permitem aplicações de interesse da área de Ciências da
Linguagem. Como exemplo da aplicação, apontamos a análise do
comportamento de usuários por meio dos comentários sobre um
determinado produto em postagens nas redes sociais. Apresen-
tamos, como exemplo no âmbito jornalístico, a possibilidade de
analisar automaticamente como as pessoas estão reagindo a um
determinado evento político-social. As ferramentas apresentadas
servem como base para que o leitor possa usar de sua criativida-
de para utilizar os benefícios oriundos da Inteligência Artificial.

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CAPÍTULO 11 O SER DA LINGUAGEM
Aproximações entre a
Linguística e a Literatura
André Luís de Araújo (UNICAP)
Melissa Marques Gonçalves Boëchat (UFSJ)

1. Introdução

N
ão nos parece nada natural uma aproximação entre
a Linguística e a Literatura. Ainda que se possa ad-
mitir com Roland Barthes (1968) que seja natural
que a ciência da linguagem (e das linguagens) se in-
teresse por aquilo que é incontestavelmente linguagem, a saber,
o texto literário, o que vemos acontecer, sobretudo nos nossos
centros acadêmicos, não é de todo um deslocamento natural e
necessário entre ambas. A grande maioria dos Programas de
Pós-Graduação das universidades brasileiras, por exemplo, ain-
da mantém seus domínios separados: de um lado, os Estudos
Literários e, de outro, os Estudos Linguísticos.
Por isso mesmo, um estudo honesto das Ciências da Lin-
guagem deveria interessar-se, antes de tudo, por uma ciência do
discurso, como advoga Roland Barthes, se pretende colocar a lin-
guagem em questão para propor aproximações linguístico-literá-
rias. Nesse sentido, a linguagem se torna uma preocupação das
ciências humanas, da reflexão filosófica e da experiência criati-
va. Desse modo, o que propomos, aqui, é que se desfaçam, pouco
a pouco, os limites puramente institucionais da Linguística e da
Literatura, a fim de que elas se deixem provocar uma pela outra,
discutindo irradiações possíveis e contribuições mútuas.
A partir dessa premissa, a Literatura não se situa no exte-
rior da linguagem e tampouco a Linguística propõe análises de
enunciados como se se tratasse de um somatório de frases sem
implicações semióticas, muitas vezes. Os deslocamentos são,
portanto, necessários. Como sabemos, por experiência própria,
é impossível estudar um texto (em particular) sem enunciar
imediatamente uma teoria do sentido. Consequentemente, não
se pode juntar a Linguística e a Literatura sem subverter final-
mente a ideia que se tem de uma e de outra. Limitar a tirania
ou o prestígio de um dos lados não será, pois, uma simples cláu-
sula de prudência ou de distância, mas ajudará a compor a cena
do estado atual das pesquisas, começando por designar o lugar
central desta investigação: o ser da linguagem. Cabe, então, relan-
çar a temática do ser da linguagem, a partir das já conhecidas
contribuições de Michel Foucault1, Jacques Derrida2 e Jacques
Rancière3, para citar alguns nomes, pois a questão precisa ser
debatida e amplamente discutida, antes de se afirmar apressa-
damente qualquer tese, que poderia ser injustamente tributária
ou contestadora de um desses domínios.
Nesse sentido, vale, também, evocar os trabalhos de Ro-
man Jakobson e Mikhail Bakhtin, bem como as investigações
da escola francesa, principalmente a partir das interlocuções
propostas por Roland Barthes e os filósofos da diferença, nota-
damente, Michel Foucault, Maurice Blanchot, Gilles Deleuze,
Félix Guattari e Jacques Derrida. Todo esse esforço equivale a
dizer que o interesse profundo desta pesquisa não reside no fato
de enriquecer com um novo departamento a ciência linguística
ou a crítica literária, conforme alertava Barthes, a modo de uma

1
Cf. MACHADO, R. O ser da linguagem. In: Foucault, a filosofia e a litera-
tura, p. 86-116.
2
Cf. NASCIMENTO, E. Literatura e Pensamento. In: Derrida e a literatura, p.
297-391.

3
Cf. RANCIÈRE, J. A literatura impensável. In: Políticas da Escrita, p. 27-50.
perspectiva meramente interdisciplinar. Não se trata simples-
mente de fazer comunicar esses domínios. Trata-se de alterar,
de deslocar a imagem que temos da Linguística e da Literatura,
criando, portanto, um espaço de trânsito pendular entre uma e
outra, em favor do enriquecimento da essência que há na inter-
locução destes dois saberes.
Em última análise, o que se propõe é um ponto de partida
para inúmeras reflexões sobre o que temos feito nas Ciências da
Linguagem e o que pretendemos com o avanço de nossas pes-
quisas e de nossas práticas, porque, ao que parece, a linguagem
“[…] jamais deixou de falar aquém de si mesma”.4 Encontra-se,
então, aberta uma ampla área de interlocução, pois, em sua ra-
dicalidade5 linguístico-literária, a linguagem constitui o seu ser
mais profundo arraigado ora como resistência, ora como alter-
nativa ao pensamento antropológico moderno, sobretudo nestes
tempos reversos que vivemos hoje.

2. Por uma ciência do discurso


Mikhail Bakhtin assinala, em Os gêneros do discurso, que os
diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da
linguagem. Compreende-se, perfeitamente, assim, que o caráter
e as formas desse uso sejam, como ele mesmo conclui, tão mul-
tiformes quanto os campos da atividade humana. O emprego da
língua efetua-se em forma de enunciados orais e escritos, concre-
tos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele cam-
po da atividade humana. Certamente, por essa razão, Foucault,
em As palavras e as coisas (1966), vai dedicar todo um capítulo a
essa reflexão, tomando por base a gênese e a filosofia das ciên-
cias humanas, propondo uma arqueologia das ciências humanas.


4
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 119.
5
Entendemos radicalidade, aqui, como a compreende Foucault, quando fala de
Nietzsche, em As palavras e as coisas, por ter sido Nietzsche o primeiro responsável
por aproximar uma tarefa filosófica de uma reflexão radical sobre a linguagem.
Configura-se, pois, um bom exercício epistemológico e, consequentemente, uma
revisão de nossas práticas pedagógicas num esforço de raízes.
Nessa perspectiva, nossa intenção é, também, descobrir,
com esses estudiosos e na esteira de suas contribuições, uma
possível gramática que rege as ciências humanas e, por exten-
são, as Ciências da Linguagem, pelo simples fato de estar aten-
ta aos enunciados linguístico-literários e, ao mesmo tempo, à
análise das riquezas de cada um desses domínios, bem como
os seus desdobramentos na economia política ou na história na-
tural, como destaca Foucault. Dessa forma, é impossível não
admitir que todo enunciado reflita as condições específicas e as
finalidades de uma determinada ciência, não só pelo seu teor
programático, mas também pela seleção dos recursos formais e
de conteúdo que essa atividade humana coloca em cena e com
os quais trabalha. Vale salientar, ainda, que esses elementos te-
máticos, de estilo e de construção aparecem bem articulados no
conjunto dos enunciados, conforme a particularidade da ciência
humana em questão. Assim, embora cada enunciado particular
possa ser individual, cada campo de utilização da língua irá
elaborar seus tipos relativamente estáveis de enunciados, o que
dá origem ao que Bakhtin denominou gêneros do discurso, neste
texto escrito por ele entre os anos de 1952 e 1953.
Por isso, é interessante notar toda uma efervescência cul-
tural nesses anos de investigação, nas décadas de 1950 e 1960,
tendo, de um lado, a escola russa e, de outro, a escola francesa,
ambas dando grandes contribuições aos estudos linguístico-lite-
rários. Os primeiros ainda muito interessados pela forma, e os
segundos ocupando-se mais do conteúdo, ao ponto de Barthes re-
conhecer, no seu artigo intitulado Linguística e Literatura (1968),
a amabilidade de um grupo de investigadores estrangeiros, prin-
cipalmente, Jakobson e Bakhtin, que se juntaram ao grupo fran-
cês. Tarefa conjunta, como se vê, ainda que Barthes requeira
para o grupo francês a essencialidade do trabalho realizado.
No entanto, de entrada, o que salta aos olhos é que os ter-
mos que Barthes utiliza nesse artigo — a saber: gênero e discurso
— demonstram uma leitura atenta do texto de Bakhtin, dado que
o escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês
irá recorrer a esses termos para apresentar sua teoria de uma
ciência do discurso: a conjunção da Linguística e da Literatura.
Assim, apesar de haver uma referência clara a Bakhtin, aparece
também uma distinção. Barthes utiliza o termo gênero quando
quer falar de literatura e discurso quando quer tematizar a Lin-
guística. Propõe deslocamentos, como ele mesmo justifica, quan-
do admite que não há nenhum texto que não dependa de um
gênero, o qual já não se apresenta como uma categoria estética,
mas é levado a um tipo de discurso. Por outro lado, corre o risco
de sobrepor o elemento linguístico ao literário ao declarar que o
conceito de discurso excede o de gênero, devendo este, por sua vez,
permitir que se desfaçam os limites institucionais da Literatura,
dado que o gênero fatalmente implica uma espécie de norma que
tenta, pela análise, avaliar tipos de textos em função de desvios
de classificação. Para ele, a noção de gênero só será aceitável “[…]
se se destruir, se se abandonar ou se se deslocar […]”6, embora
reconheça que os gêneros são um ponto de partida útil.
De todo modo, mais adiante, Barthes parece ser mais caute-
loso e mostrar-se mais em acordo com Bakhtin, pois aponta que
o gênero identifica-se com uma célula específica de discurso e
esta célula pode transitar por obras muito diversas. Dessa ma-
neira, a tarefa da investigação que ele propõe seria definir tipos
de discurso, e não tipos de obras. Enfim, guardadas as devidas
proporções, Barthes parece admitir e aproximar-se muito mais
do que havia salientado Bakhtin, mais de uma década antes, ao
juntar os dois termos, em sua análise dos gêneros do discurso.
Interessante notar que os exemplos dessas lógicas novas que
Barthes começa a observar só apareçam — pelo menos, no texto
Linguística e Literatura (1968), que introduz uma série de análises
com outras obras da literatura universal — na produção francesa
e como textos inclassificáveis, fendas, diferenças, que exigem ou-
tra legibilidade para a obra literária, outros encadeamentos, es-
paços e rupturas, abalos aparentemente muito positivos no inte-


6
BARTHES, R et al. Linguística e literatura. In: Linguística e Literatura, p. 14.
rior da linguagem, em graus de subversão muito diversos. Com
isso, nosso estruturalista pretende lançar-se na tentativa de uma
aproximação linguístico-literária, mas ainda se perde em princí-
pios de ordenamento e disposições, porque defende uma propos-
ta dialética, ao passo que a cena cultural que se apresenta, na se-
quência — começando pelas análises de Foucault, amplamente
discutidas e em consonância com o pensamento de Blanchot –,
precisa ser enriquecida pela interlocução com a teoria do rizoma
e suas linhas de fuga, na perspectiva de Deleuze e Guattari, e
desconstruída, inúmeras vezes, por Derrida, dada a complexida-
de da trama discursiva na contemporaneidade.
Reconhecemos, assim, a necessidade de uma conversa in-
finita ou de um livro por vir, parafraseando títulos de obras de
Blanchot. Reconhecemos, ainda, a necessidade de se começar
por um diálogo possível, à maneira de Bakhtin, em resposta a
uma pergunta da revista Novi Mir, em 1970, sobre a ciência da
literatura hoje7. Dizia Bakhtin, na ocasião, que um sentido só
revela as suas profundezas encontrando e contatando o outro,
o sentido do outro, ou seja, é preciso que se comece entre os
interlocutores uma espécie de diálogo, que supera o fechamento
e a unilateralidade dos sentidos apresentados por eles e, res-
pectivamente, por suas culturas. É fundamental deixar de lado
universalismos abstratos, pois é necessário que se coloquem,
para a cultura do outro, novas questões que ela mesma talvez
não ousasse ou não fosse capaz de se fazer.
Isso posto, Foucault evidencia bem, no final de As palavras
e as coisas, que, por mais que se tenham conceitos, o movimento
da vida, a espessura da história e as evoluções da ordem natu-
ral são difíceis de dominar e talvez sejam mesmo um exercício
desnecessário. Melhor pensar que estamos, corajosamente, ten-
tando reencontrar, como ele mesmo diz, a complexa relação das
representações, das identidades, das ordens, das palavras, dos

7
BAKHTIN, M. A ciência da literatura hoje. In: Notas sobre literatura, cultu-
ra e ciências humanas, p. 9-19.
seres naturais, dos desejos e dos interesses, a partir do momento
em que toda essa grande rede se (des)faz. Assumamos, pois, o
risco, já que o estatuto dessa busca e de todas as questões que a
diversificam não é perfeitamente claro.
Vamos tomando, primeiramente, consciência da necessi-
dade de (re)encontrar num espaço único, mas multifacetado, o
grande jogo da linguagem e seu modo de ser múltiplo, num salto
decisivo para uma forma inteiramente nova de pensamento. E, é
bem verdade, talvez tenhamos de admitir, finalmente, com Fou-
cault, que já não sabemos responder do mesmo jeito às velhas
perguntas que nos fizeram iniciar esse périplo, pois será preciso
liberar as palavras dos conteúdos silenciosos que as alienavam,
ou, ainda, tornar a linguagem flexível e como que interiormente
fluida, a fim de que, liberta das espacializações do entendimen-
to, possa restituir o movimento da vida e sua duração própria.8

3. O ser da linguagem
Objetivamente, o que se deseja é que se proponha uma re-
flexão de peso, nas Ciências da Linguagem, a fim de que se con-
temple uma aproximação honesta entre os Estudos Linguísticos
e os Estudos Literários. Afinal, pelo que tudo indica, há mais
do que separações, pois que existem implicações semióticas e
discursivas entre os domínios em questão. Por isso, vale a pena
analisar em que medida a teoria literária se volta para a teoria
linguística, para discutir possíveis irradiações e contribuições
mútuas entre a Linguística e a Literatura, o que, certamente, já
vem abrindo, há algum tempo, novos caminhos e perspectivas
para as Ciências da Linguagem.
Desse modo, considerando o espaço epistemológico das
ciências humanas, vemos, em As palavras e as coisas, as dimen-
sões que se abrem às Ciências da Linguagem, dado o potencial
que elas endereçam ao homem, na medida em que ele vive, fala

8
FOUCAULT, M. O homem e seus duplos. In: As palavras e as coisas, p. 321.
e produz.9 Afinal, é como ser vivo, antes de tudo, que o homem
cresce, tem funções e necessidades e vê abrir-se diante de si um
horizonte de possibilidades para articular suas atitudes corpo-
rais, à medida que organiza redes de relações, de circulação e
de troca de experiências. Além disso, é exatamente porque tem
uma linguagem que ele pode constituir para si todo um uni-
verso simbólico, em cujo interior se relaciona com seu passado,
com as coisas, com os outros, com a natureza, com suas crenças,
projetando seu futuro.
Por conseguinte, é a partir desse panorama que o homem
consegue construir alguma coisa com o saber que apreende de
si e do mundo, nas fronteiras imediatas onde essas ciências da
atividade humana tratam da vida, do trabalho e da linguagem. As
considerações positivas, conforme sinalizado por Bakhtin10, na
análise que propõe para o papel do texto na Linguística, na Filolo-
gia e em outras ciências humanas são, prioritariamente, de cará-
ter filosófico. Nossa proposta ganha corpo, então, no solo de cam-
pos limítrofes, no cruzamento e na junção de várias disciplinas.
Portanto, o texto escrito ou oral deverá ser tratado e reco-
nhecido, antes de tudo, como o dado primeiro de toda e qual-
quer disciplina, bem como do pensamento filológico-humanista.
Ele é a nossa realidade imediata, na perspectiva de Bakhtin, isto
é: a realidade manifesta do pensamento e das vivências do ho-
mem, de tal sorte que onde não houver textualidade enunciada
não haverá objeto de pesquisa, tampouco de pensamento. Sendo
assim, concebemos o texto, em seu sentido mais amplo, como
um conjunto de signos, a ciência das artes, dos pensamentos
que evocam pensamentos, das vivências e das experiências, de
palavras que remetem a outras palavras.
Dessa maneira, o caminho do pensamento aberto na lin-
guagem permite a convocação de vários autores, muitos dos

9
FOUCAULT, M. As ciências humanas. In: As palavras e as coisas, p. 361-404.
Cf. BAKHTIN, M. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências
10

humanas: um experimento de análise filosófica. In: Notas sobre literatura, cul-


tura e ciências humanas, p. 71-107.
quais escritores, poetas e filósofos, que manusearam a lingua-
gem e, consequentemente, deram sua contribuição linguístico-
-literária, a partir de variadas inter-relações de ordem morfológi-
ca, sintática, semântica e pragmática. Foi assim e ainda é dessa
maneira que essa conjunção entre a Literatura e a Linguística
borrou limites e inaugurou possibilidades de enunciação, fazen-
do ampliar a noção de gênero e de discurso nas Ciências da
Linguagem, provocando a velha Retórica, com seus princípios
enrijecidos de taxonomia, para ver surgir, também, o ser da lite-
ratura, livre e dinâmico, e seus estudos mais robustos, a partir,
sobretudo, do século XIX, com a formação do cânone das litera-
turas nacionais no Ocidente. Para tanto, basta evocar, na contra-
corrente, a literatura de Mallarmé, Blanchot, Sade, Dostoiévski,
Borges ou Kafka, para lembrar apenas alguns dos nomes temati-
zados por Foucault, Derrida e Rancière, em suas pesquisas, que
“[…] designam o projeto de reconduzir toda linguagem possível,
toda linguagem por vir, à soberania desse Discurso único que
ninguém poderá ouvir”.11
Essa conjunção linguístico-literária permitiu e seguirá tor-
nando possível explorar a fecundidade que reside aí, não apenas
nas formas, mas nos conteúdos e na expressão semiótica que
derivam da realização de tantos enunciados. E é aí precisamen-
te que a atividade humana se torna um texto em potencial, no
fato de poder ser lida como ciência do discurso, como enunciou
Barthes, ou como discurso semiótico, posto que participa de um
contexto dialógico sempre maior, com implicações semânticas e
com unidades dotadas de entonação e de expressividade linguís-
tica próprias e autorais.
Claro que nem sempre estaremos confortáveis, em nossos
lugares de enunciação, dada a novidade anunciada em novos
estilos e possibilidades de abordagem do fenômeno linguístico-
-literário, para além das oposições maniqueístas e da mera dia-
lética do pensamento, instalado em suas categorias rotineiras.

FOUCAULT, M. A linguagem ao infinito. In: Estética: literatura e pintura,


11

música e cinema, p. 54.


De tal modo o livro impossível de Sade, o Livro de Mallarmé,
ou O livro por vir de Blanchot são repetidos, combinados, disso-
ciados, invertidos, depois novamente revertidos, não em direção
de uma recompensa dialética — no dizer de Foucault — mas em
busca de uma exaustão radical.
Por essa razão, é preciso aprender a pensar e a trabalhar
nesse limite, entre escombros e ruídos, linhas de fuga e angús-
tia, na nova territorialidade que nos incita a fazer a passagem a
outros sistemas filosóficos de compreensão do esquema-mundo,
se quisermos dar conta da complexidade da cena cultural con-
temporânea, sobretudo no que se anuncia nos escritos de Deleu-
ze e Guattari: cartografias e migrações de estilos, formas e con-
teúdos perturbando a Retórica, proliferações ao infinito de lacu-
nas virulentas de enunciação, geralmente obliteradas, mas que
vão vindo à tona nessas experimentações linguístico-literárias.
Em suma, não se trata mais meramente de um discurso
ou de uma comunicação de sentido, mas da “[…] exposição da
linguagem em seu ser bruto, pura exterioridade manifesta”12 —
insiste Foucault. Trata-se de uma passagem para “fora”, para um
pensamento mais arguto, fora de nossos esquemas pré-estabe-
lecidos, pois a linguagem escapa ao modo de ser do discurso —
isto é, à dinastia da representação, como ele ainda salienta — e
o discurso literário forma uma rede (rizoma, no dizer de Deleuze
e Guattari) em que cada ponto, distinto dos outros, está situado
em relação a todos em um espaço que, ao mesmo tempo, abriga
e separa. É preciso, então, fazer surgir os limites e pensar no
limiar daquilo que ainda não encontrou seu lugar de enuncia-
ção discursiva e acolher, na dispersão, as formas e as categorias
do que se poderia denominar de um “pensamento do exterior”
— na perspectiva foucaultiana. Isto é: a linguagem escavando
a si mesma, para liberar um espaço de interlocução, livre para
um (re)começo, num vigor calmo, anunciando extrema fecun-

FOUCAULT, M. O pensamento do exterior. In: Estética: literatura e pintura,


12

música e cinema, p. 224.


didade, ao preço de erosões e rumores. Linguagem reflexiva:
voltada, não para uma confirmação interior, intimista ou ensi-
mesmada, uma espécie de certeza central de onde não poderia
jamais ser desalojada, mas para uma exterioridade em que lhe
seja possível contestar seus próprios limites.
De acordo com Foucault, essa é a experiência que reapa-
rece na segunda metade do século XIX e no próprio âmago da
linguagem, o que ele qualifica como sendo o próprio brilho do
exterior:13 em Nietzsche, quando ele descobre que toda metafí-
sica do Ocidente está ligada não somente à sua gramática, mas
àqueles que, sustentando o discurso, detêm o direito à fala; em
Mallarmé, no movimento no qual desaparece aquele que fala;
em Artaud, quando toda linguagem discursiva é instada a se sol-
tar na violência do corpo e do grito, e o pensamento, deixando
a interioridade falaz da consciência, se torna energia material,
sofrimento da carne, perseguição e dilaceramento do próprio
sujeito; em Bataille, quando o pensamento, em vez de ser o dis-
curso da contradição ou do inconsciente, torna-se o do limite, da
subjetividade rompida, da transgressão; em Klossowski, com a
experiência do duplo, da exterioridade dos simulacros, da multi-
plicação teatral e demente do Eu; em Blanchot, que quanto mais
se retira na manifestação de sua obra, mais se encontra evidente
nos seus textos.
O ser da linguagem abre, assim, múltiplos espaços. A lin-
guagem se mostra, como se pode ver, livre de mitos e de cir-
cunscrições, livre de qualquer instrumentalização linguístico-
-literária, pois tem a resistência de um movimento que não
promete a recompensa de um repouso. Ela não se envolve com
nenhuma interioridade, nem com determinações prévias, por-
que não suporta catalogações e aponta para um irremediável
exterior que não cessa de atraí-la, libertando-a. Corroborando
essa tese, Roberto Machado chega a afirmar que, para Foucault,
pensar a Literatura como experiência e a experiência literária

13
Ibidem, p. 227.
como experiência autônoma da linguagem significa querer ul-
trapassar a oposição entre interioridade e exterioridade, entre
sujeito e objeto. 14 A linguagem literária é, pois, linguagem pura,
que só fala de si mesma, que não expressa nenhuma realidade
pré-existente.

4. A linguagem literária ou o ser da literatura


Descortina-se, assim, um amplo horizonte para o ser da lin-
guagem, pois o que se evidencia é anunciado, igualmente, pelos
estudiosos contemporâneos: assistimos a um deslizamento his-
tórico, ou seja, vislumbramos a passagem de um saber para uma
arte, no dizer de Jacques Rancière, com todas as consequências
que isso pode ter.
No século XVIII, como se sabe, a literatura não era a arte
dos escritores, era o saber dos letrados, aquilo que lhes permitia
apreciar as belas-letras. […] Gêneros e subgêneros punham em
prática saberes precisos […]. Regras técnicas indicavam os meios
de produzir efeitos expressivos específicos. Regras de gosto per-
mitiam julgar quais efeitos deviam ou não ser produzidos. As
aulas de literatura do século XVIII ensinavam o letrado a apre-
ciar as obras a partir desses saberes e dessas normas15.
A Literatura comparece, então, neste momento, como um
modo próprio do discurso, até mesmo um modo de vida próprio,
a realização de um dever específico para com a língua, em que
a Ética e a Estilística se confundem — continuará Rancière. Ela
comparece para dar nome a uma ruptura em relação à tradição
das belas-letras. Ela vem para apagar essa ruptura na ilusão da
continuidade, mas pode também levá-la a seu ponto máximo de
absolutização, pois sob o nome de Literatura podem coexistir os
contrários. Segundo o autor, na época dos burburinhos causados

Cf. MACHADO, R. O ser da linguagem. In: Foucault, a filosofia e a literatu-


14

ra, p. 113.
15
Cf. RANCIÈRE, J. A literatura impensável. In: Políticas da Escrita, p. 27.
por ocasião da publicação do Livro, de Mallarmé, os manuais de
escola primária, na França, continuavam a manejar sem per-
turbação as regras da Retórica. Mas, de alguma forma, é o que
acontece, ainda hoje, quando os manuais de História da Litera-
tura, utilizados em nossas escolas, sinalizam para uma suposta
continuidade, a despeito das elaborações linguístico-literárias já
citadas e de outras que, entre nós, continuam em processo: bas-
ta lembrar a obra de Guimarães Rosa, as produções da poesia
concreta ou da poesia marginal — em seus desdobramentos nos
anos 1970, com os poetas da geração mimeógrafo, até os saraus
de poesia divergente, acontecendo nos grandes centros urbanos
das cidades brasileiras16.
Como se vê, a hipótese de Rancière enriquece a discussão
quando deixa entrever que a própria questão levantada pela Lin-
guagem, pelo viés da Literatura, vem justamente perturbar a or-
dem das classificações entre os modos e os gêneros do discurso.

“Literatura” é um desses nomes flutuantes que resistem à redução


nominalista, um desses conceitos transversais que têm a proprieda-
de de desmanchar as relações estáveis entre nomes, ideias e coisas
e, junto com elas, as delimitações organizadas entre as artes, os sa-
beres ou os modos de discurso.17

O ser da linguagem ou, mais precisamente, o ser da litera-


tura, dispõe todos os elementos daquilo que Bakhtin denomi-
nou como dialogismo e polifonia do romance, segundo Ranciè-
re, como que para fechar por antecipação a desordem das vozes
e dos corpos no romance e no corpo da produção literária, de
forma geral. O ser da linguagem (literária) passa a ser o conjunto
aberto e sem lei das aventuras da letra, em que a falta de deli-
mitação dos discursos não para de se apagar, voltando a tomar

16
Para aprofundar o tema, recomenda-se a leitura do artigo Poética brasileña con-
temporánea: de la poesía marginal hacia la poesía divergente. In: Caligrama, Belo
Horizonte, v. 23, n. 1, p. 5-20, 2018.
17
Ibidem, p. 30.
forma e conteúdo, indefinidamente, na legitimidade dos usos da
língua e da literatura, exercidos democraticamente pela comuni-
dade dos falantes. A ponto de podermos concluir, com Rancière:

O ser da literatura seria o ser da língua onde esta se furta às ordenações


que dão aos corpos vozes próprias para colocá-los em seu lugar e em
sua função: uma perturbação na língua análoga à perturbação demo-
crática dos corpos quando só a contingência igualitária os põe juntos.18

Esta é uma desordem que, como vimos demonstrando, a Fi-


losofia e a Linguística, notadamente, os escritores, os sociólogos,
os críticos literários, os semiólogos e os filósofos não deixaram de
evitar: a singularidade do literário e a provocação dessas inter-
locuções no campo das Ciências da Linguagem, sem conjurá-las
a nenhuma redução encastelada, de um lado, nos Estudos Lite-
rários, nem de outro, nos Estudos Linguísticos. A reflexão que
se busca, portanto, é maior e ela se vê empurrada para fora de
si mesma, para o exterior, como dizia Foucault, para uma prosa
do pensamento. Ela se vê, pois, obrigada a se (re)inventar para
(re)interpretar a cena cultural contemporânea. E esse corpo de
verdade que se desvela por meio do ser da linguagem manifesta
sua verdade na medida mesmo de sua resistência fabuladora e
criativa, por meio da simulação exacerbada do poeta, do escritor
ou do performer.
Afinal, a Literatura não é simplesmente uma zona indeter-
minada de discurso que estaria alojada nos vazios ou às mar-
gens esquecidas da história, alheia ao que acontece no mundo.
Por outro lado, ela também não é a reprodução histórico-crítica
de acontecimentos ou uma mera releitura instrumentalizada
dos fatos do cotidiano.

A literatura é uma dramática da escrita, desse trajeto de letra desin-


corporada que pode tomar qualquer corpo. Ela tem seu lugar nessa

Ibidem, p. 31.
18
disjunção própria do conceito de escrita que faz com que a própria
oposição do lógos vivo e da escrita morta só se coloque à custa de
instituir o mito de outra escrita, de um escrito mais que escrito.19

Pelo que consta, o ser da linguagem realiza ao mesmo tem-


po uma tarefa linguística e uma tarefa literária difícil de distin-
guir, mas que uma poética da linguagem poderia responder e
apresentar como conceito, visto que exprime os riscos e o ethos
de toda uma coletividade, na feliz produção de sentidos, como
unidade de significação morfológica, sintática, semântica e
pragmática. Enfim, o ser da linguagem carrega em si as marcas
da subversão linguístico-literária ao manifestar essa plurivoci-
dade enunciativa em que, certamente, Linguística ou Literatura
seriam nomes genéricos de uma manifestação maior e mais pri-
vilegiada, dando-se para além de qualquer ato empírico.
O ser da linguagem se aloja, então, na relação existente en-
tre a ordem do discurso e a ordem dos corpos na comunidade.
Ele desenha modos do discurso na ordem dos corpos e nas suas
relações intrínsecas. Ele encarna o poder do lógos na polissemia
das análises possíveis.
Não se trata, assim, de uma apreciação estética pura e sim-
ples de um viés literário para conferir valor de análise linguís-
tica. Trata-se da Literatura como modo de discurso. Aliás, o ser
da linguagem tem seu vigor próprio no gesto que desfaz relações
pré-existentes, desfazendo demarcações para estabelecer um
jogo com a legislação vigente, que impõe divisões nas malhas
da letra, o que o ser da linguagem vem baralhar.
Finalmente, o ser da linguagem, ser linguístico-literário,
não existe como efetuação de um ato próprio. Seus esforços dão
letra ao corpo que escreve e se inscreve para além de um di-
namismo funcional. Ele se situa num lugar problemático onde
nem somente a Literatura, nem somente a Linguística o alojam.
Ele aponta para fora, ele se lança no espaço das aventuras da

19
Ibidem, p. 45.
letra encarnada, na errância das páginas dos discursos, na ver-
tiginosa combinação de um jeito novo de se apresentar. O ser da
linguagem não existe nem como resultado de uma convenção,
mas também não é um exercício do seu poder linguístico-literá-
rio. Ele existe no instante rápido de uma enunciação possível, na
lacuna virulenta que dá vez e voz ao falante, muitas vezes pre-
terido e inopinado. É uma relação que partilha discursos com
a partilha dos corpos. É um acontecimento que rasura a letra e
atravessa anacronismos. É vida acontecendo aqui e além.

5. Considerações finais
Como vimos, o ser da linguagem performa um ato linguís-
tico-literário difícil de dissociar e de delimitar. Muitos teóricos
das Ciências da Linguagem, entre os quais Foucault e Derrida,
insistem sobre esse aspecto transgressivo, evidenciando uma es-
pécie de resposta negativa que os próprios textos dão aos enqua-
dramentos em um sistema de propriedade ou de pertencimento.
Este é um desafio frente a um binarismo mais antigo: Estudos
Linguísticos ou Estudos Literários. Essa divisão parece respon-
der mais a uma função moralmente enrijecida e penalizante
das análises linguísticas e literárias propostas, difundidas na
cultura e reprodutoras de um sistema de valores e sobredeter-
minações, do que se referir à condição mesma da textualidade
em questão.
Para Derrida, em entrevista intitulada “Essa estranha insti-
tuição chamada literatura”20, a Literatura é uma instituição que
consiste em transgredir e transformar. Melhor dizendo, o ser
da literatura produz formas discursivas, obras e acontecimentos
nos quais a própria possibilidade de uma constituição funda-
mental se encontra contestada, ameaçada, desconstruída, apre-
sentada em sua precariedade. Isto é, o ser da literatura e, con-

20
DERRIDA, J. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevis-
ta com Jacques Derrida, p. 114.
sequentemente, o ser da linguagem excede, interroga a lei e os
esquemas pré-estabelecidos, fazendo-a pensar, para dizer algo.
Desse modo, o caráter pensante que vimos evocando até
aqui, desde Michel Foucault, com “O pensamento do exterior”
(1966), esboça uma atividade reflexiva de natureza filosófica que
advoga por uma literatura pensante, ou seja, pretende interrogar
a História da Literatura, para dar conta do sentido em que se
construíram a produção dos enunciados e os atos performativos
poéticos e/ ou ficcionais. “O pensar literário, se existe, jamais
é puramente teórico ou reflexivo em sentido convencional”21 —
dirá Evando Nascimento, a propósito de Derrida. O autor de
literatura, mesmo quando veicula ideias, inscreve-as num corpo
textual que se dá antes como performance.
Isso equivale a dizer que o acontecimento linguístico-lite-
rário se dá como uma promessa e produz um engajamento de
forma e de conteúdo. Esta é a irresponsabilidade do escritor e,
por que não, do pesquisador das Ciências da Linguagem: irres-
ponsabilidade transgressiva perante autoridades constituídas;
assunção da lei para melhor transgredi-la. E este é também o
compromisso máximo que vimos perseguindo desde o início
deste trabalho: o compromisso com o pensamento, com aquilo
que desde sempre se relaciona às alteridades distintas do mes-
mo e do familiar. Compromisso que vem, certamente, de um
estranhamento inicial, pois não nos parecia nada natural uma
aproximação entre a Linguística e a Literatura.
Daí a vontade de escavar um espaço mais além do conhe-
cido, em ato e, consequentemente, um dever de irresponsabili-
dade, uma recusa mesmo em responder por uma prática restrita
diante de poderes constituídos academicamente. Talvez esteja
aqui nossa maior lucidez, diria Derrida: “a forma mais elevada
de responsabilidade”,22 o que leva a linguagem a dever ser, a um
só tempo, assumida e transgredida.

21
NASCIMENTO, E. Derrida e a literatura, p. 320.
22
Ibidem, p. 76
De fato, é no corpo a corpo com a linguagem, para ir além
dela, que se produzirá a surpresa, o dinamismo, a faísca, o lampejo,
o pensamento que se desloca, em êxodo, sob o risco da morte. Por
isso, a importância de sublinhar o ser da linguagem em exílio, nô-
made, estrangeiro, clandestino, em resistência, proibido, fora da lei
e fora do lugar: uma desterritorialização que se anuncia e se confir-
ma, o prazer de ler, de escrever, de sentir e de analisar o fenômeno
linguístico-literário no limite da letra que se desloca, abrindo um
novo terreno investigativo para as Ciências da Linguagem.
Bakhtin, Barthes, Foucault, Derrida e Rancière, para citar
alguns dos que nos acompanharam nesta empreitada, ajudaram-
-nos a ver que há um conjunto de obras que não se enquadra
sob o signo das “Belles-Lettres”. Com isso, eles abriram-nos a
possibilidade, não de todo inédita, de questionar o ser da lin-
guagem, tornando viável um tipo de pensamento que não anula
propriamente o valor representativo do texto, ao contrário, pro-
põe expor a textualidade como um momento dentro da História
da Literatura no Ocidente.
O ser da linguagem configura-se, assim, como um tanto insi-
tuável. Pelo que se pode ver, ele não se permite essencializar, pois
se furta, em inúmeras estratégias, e não se deixa classificar facil-
mente em atribuições expressivas e representativas impostas pela
tradição. Ao assumir um valor de inscrição no horizonte teórico,
o papel das Ciências da Linguagem consistirá em fazer irromper
caminhos e modos de discurso para pensar a linguagem.
Acreditamos, portanto, que há já muitas pistas para pro-
vocar nossa sensorialidade no sentido de uma abordagem mais
justa do ser linguístico-literário da linguagem. E como se pode
atestar com Derrida: “[…] é possível que a escrita literária, na
modernidade, seja mais do que um exemplo entre outros, cons-
tituindo antes um fio condutor privilegiado para acessar a estru-
tura geral da textualidade”.23 Além disso, continuaria ele, o que

23
DERRIDA, J. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevis-
ta com Jacques Derrida, p. 113.
a Literatura faz com a língua detém um poder revelador, que
certamente não é único e nos ensina mais, indo até ao essen-
cial, nos limites filosóficos ou linguísticos da interpretação da
linguagem. Em suma, essa era uma das razões principais de seu
interesse pela Literatura, e ele parecia estar convencido de que
isso motivava o interesse de tantos Teóricos da Literatura pelos
procedimentos da desconstrução.
Realmente, aqui reside também o nosso maior interesse,
pois exatamente aí o ser da linguagem revela seu mais alto po-
der de subversão, a condição indispensável para um pensamen-
to desconstrutor dos velhos esquemas. Por isso, ousamos buscar
encontrar um local entre a Filosofia e a Linguagem, um lugar
a partir do qual a questão que nos motiva igualmente é poder
(re)pensar ou até mesmo deslocar os limites de nossa própria
escritura, de nossas próprias análises e posturas, não somente
no âmbito da reflexão histórica ou teórica, mas na compreensão
dos enunciados da vida mesma. E é assim que chegamos a este
termo: o ser da linguagem nos convida a avançar… Então, “ân-
coras ao vento” — continuemos singrando os mares e que nem
vento nem calmaria nos detenha. Vamos em frente!

Referências
ARAÚJO, André Luís de. Poética brasileña contemporánea: de la poesía marginal
hacia la poesía divergente. In: Caligrama, Belo Horizonte, v. 23, n. 1, p. 5-20,
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CAPÍTULO 12 ESCRITA EM LÍNGUA
PORTUGUESA COMO SEGUNDA
LÍNGUA POR SURDOS USUÁRIOS
DE LÍNGUA DE SINAIS:
Algumas reflexões,
possíveis soluções
Jurandir F. Dias Jr. (UFPE)
Wanilda Mª A. Cavalcanti (UNICAP)

Para início de conversa…

A
escrita em Língua Portuguesa por surdos tem mere-
cido reflexões de vários pesquisadores tendo em vis-
ta ser algo que ainda não parece ter sido resolvido.
Para tanto, realizamos um levantamento de produ-
ções sobre esse tema seguido de leitura de fontes bibliográficas
relacionadas com nosso objeto de estudo, além de relatar uma
experiência vivenciada no curso de Letras/Libras presencial, de
uma universidade pública pernambucana.
A motivação para tal recorte do objeto de estudo se prende
à necessidade de entender melhor algumas das dificuldades que
os surdos têm demonstrado na construção da escrita em Língua
Portuguesa, considerando que eles a utilizam para interagir com
outras pessoas sejam elas surdas ou ouvintes, em qualquer que
seja a situação. Mais recentemente, o uso das redes sociais mo-
bilizou todas as camadas da sociedade e, diante desse meio de
comunicação acessível para a maioria da população brasileira, o
interesse de surdos para o emprego dessa ferramenta é eviden-
te. Tal emprego traz consigo o ensejo de utilizar na maioria das
vezes a Língua Portuguesa escrita.
Levando em consideração que a maior dificuldade dos sur-
dos foi considerada durante muito tempo como a dificuldade
linguística, ainda não superada, precisamos enfrentá-la, esclare-
cendo que estamos falando de surdos usuários de Libras.
O reconhecimento dessa língua não se deu sem esforço e
nem sempre os surdos conseguiram utilizá-la de maneira livre
como vemos hoje. Após muitos anos de isolamento, eles final-
mente vêm sendo reconhecidos como indivíduos capazes (SAN-
TOS, 2009), com língua própria. Desse modo, observamos que
duas realidades convergem para o surdo, ou seja, comunicação
com outros surdos através da Libras e, por outro lado, o apren-
dizado da linguagem escrita em Língua Portuguesa para comu-
nicar-se com os ouvintes (SKLIAR, 1997).
É de conhecimento da grande maioria dos pesquisadores
dessa área, e nesse contexto nos incluímos, que as crianças sur-
das, filhas de pais ouvintes, geralmente, não conseguem estrutu-
rar uma língua e, com pouca interação verbal com os pais, elas
constroem seu conhecimento de mundo baseadas, principalmen-
te na visão, apesar de que dificilmente contem com alguém que
interprete o que veem em uma língua acessível para elas.
Embora Pereira (2009), de quem estamos trazendo os acha-
dos de pesquisas realizadas, no Brasil, há quase uma década,
afirme que encontramos poucas mudanças durante muitos
anos, e até a atualidade, no que se refere à melhoria da escri-
ta em Língua Portuguesa, por surdos, o que é confirmado por
Svartholm (2014) quando relata uma pesquisa na Suécia, com
resultados similares.
Pereira (2009, p 42) comentava que sendo pequeno o co-
nhecimento do mundo e de uma língua, que as crianças surdas
conseguem construir, provavelmente, serão “limitadas as suas
possibilidades de compreender um texto, atendo-se a palavras
isoladas” e desse modo, provavelmente, teriam dificuldades na
aprendizagem da escrita em Língua Portuguesa. Como poderão
escrever além de palavras soltas? A ideia preconizada pelo bi-
linguismo (filosofia adotada no Brasil), de que o surdo precisa
aprender a língua de sinais e a língua utilizada pela sociedade
ouvinte, na modalidade escrita evidencia como é essencial es-
tabelecer a relação entre ambas, como afirmam Salles (2004) e
Slomski (2012).
Sabemos que somente a aprovação da Lei 10.436/2002, que
legitimou a Libras, por si só, não garantiu a possibilidade efetiva
de acesso do surdo a esta língua. Tal lei representa a legitimação
do uso de uma língua própria de um grupo social, deixando de
considerá-la apenas como linguagem gestual, mímica ou outras
denominações, e tais referências quase sempre tinham caráter
depreciativo.
Segundo muitos alunos surdos, quando começam a apren-
der a escrever, pensam que o português escrito é a representa-
ção da língua de sinais que eles usam. Quando começam a em-
pregar a Língua Portuguesa e aparecem dificuldades nos níveis
de análise da língua, como inadequações morfossintáticas, co-
meçando a ver que é outra língua e, desse modo procuram me-
morizar alguns aspectos essenciais para estruturar melhor seu
texto, muitas vezes não se dão conta de que se trata do apren-
dizado de uma língua, de modalidade diferente, ocorrendo de
maneira instrumental como acontece com ouvintes ao aprender
uma segunda língua (VIANA e LIMA, 2016).
Diante dessa constatação, Pereira (2009) comentando sobre
o tema, observou que até final dos anos 80, a concepção de lin-
guagem que predominava na escola era de que esta servia como
instrumento de comunicação. Para a autora, a principal função
da linguagem é a transmissão de informações.
No entanto, influenciados pelas ideias de Vygotsky e de
Bakhtin, no final da década de 80, a linguagem passou a ser
concebida como atividade, lugar de interação humana, de inter-
locução e espaço de produção de linguagem e de constituição
de sujeitos. Esta forma de pensar mostra que a língua não está
pronta de antemão, mas é re/construída na atividade de lingua-
gem (PEREIRA, 2009).
Nos primeiros anos da década de 1990, evidencia-se que
a relação dos surdos com a Língua Portuguesa, na maioria das
vezes, só se constrói para favorecer uma comunicação efetiva
entre seus pares, quando eles passam a frequentar a escola, uma
vez que esse aprendizado não se constrói naturalmente com
os pais.
No entanto, apesar do oralismo ter seu emprego perdurado
por quase um século até quando se tornou evidente o fracas-
so dessa prática para o aprendizado do surdo, segundo Gomes
(2006, p 2):

[ …] multiplicaram-se em todo o mundo investigações das mais di-


versas ciências — neurologia, psicologia, linguística, educação —
comprovando o valor das línguas de sinais e a influência positiva
que elas têm na construção do desenvolvimento e da aprendizagem
dessas pessoas. Os movimentos sociais organizados pelos surdos e
essas — relativamente recentes — descobertas científicas funcio-
naram como questionamentos ao pensamento fonocêntrico que,
por tanto tempo, orientou a educação para surdos, abrindo caminho
para o rompimento com a visão de surdez como patologia e para o
reconhecimento do surdo como sujeito bilíngue.

Sendo assim, não podemos deixar de considerar, como


comenta Viana e Lima (2016, p. 9), ao retomar o princípio da
oralidade representado pelo “ouvir, pode ser considerada uma
das habilidades mais prazerosas da nossa vida e ainda constitui
uma peça fundamental para inserção social do indivíduo, por-
que tudo concorre a favor dos que escutam”. Nesse sentido, esta
não pode ser considerada a situação do surdo congênito que,
embora nascendo em lares ouvintes, como é o caso de, aproxi-
madamente, 95% dessas crianças ou daquelas que ficaram sur-
das nos primeiros meses de vida, a falta de comunicação entre
os pais e o filho surdo impede ou diminui o desenvolvimento da
linguagem nas etapas corretas de aquisição.
E, nesse momento, a aquisição da escrita deve ser conside-
rada face aos efeitos que a ausência de uma língua de comunica-
ção com os pais produz na interação com ouvintes e/ou surdos.
De acordo com Pereira e Rocco (2007, p 2):

Diferentemente das crianças ouvintes, a aquisição da escrita pelas


crianças surdas vai ser intermediada pela língua de sinais, uma lín-
gua visual-espacial, com gramática própria, e que permite às pes-
soas surdas desempenharem as mesmas funções que os ouvintes
por meio da linguagem oral.

Ainda segundo as autoras, tal opinião é partilhada por pes-


quisadores da área da surdez e da educação de surdos, como
Svartholm (1998), uma vez que, para elas, a única forma de as-
segurar que os textos se tornem significativos para os alunos
surdos é interpretá-los na língua de sinais, em um processo se-
melhante ao observado na aquisição de uma primeira língua.
Em uma pesquisa realizada por Costa & Cavalcanti (2007),
ficou evidente que, ao buscar entender melhor o que ocorreu a
partir do momento no qual a filosofia bilíngue foi sendo implan-
tada (década de 1990), houve um “certo abandono” de práticas
com a Língua Portuguesa pela reinserção da Libras na escola.
Esse fato demandou estudos e mesmo práticas para a vivên-
cia de uma nova proposta educacional que exigia uma renovação
na formação inicial e/ou uma atualização na formação dos pro-
fissionais que, na sua maioria, desconheciam a Libras e, do mes-
mo modo, muitos dos estudantes surdos. A manutenção de uma
formação tradicional de professores que não considera as espe-
cificidades desses estudantes mostra uma revisão muito lenta.
No entanto, hoje, os surdos brasileiros estão cientes de que
a Língua Brasileira de Sinais se constitui sua língua natural e a
Língua Portuguesa escrita é a língua com a qual vão se comuni-
car com o mundo ouvinte, uma vez que vivenciam uma situação
bilíngue. Do mesmo modo, não é possível negar que atualmente
a sociedade reconhece que a Libras possui regras que assegu-
ram aos seus usuários acesso ao conhecimento.
Segundo Alves et al. (2015), tecendo comentários sobre a
escrita em Língua Portuguesa no Ensino Superior, a partir do
momento em que concordamos que as leis que respaldam a in-
clusão não são realmente efetivadas nessas instituições educa-
cionais universitárias, constatam que os surdos ali matriculados
estão inseridos em um contexto basicamente oral, pois, além da
dificuldade comunicativa, a realização dos trabalhos acadêmicos
se tornam, particularmente, difíceis para serem desenvolvidos.
Alves et al. (2015), p 43 afirmam:

Em um ensino inclusivo que vise a atender às necessidades dos alu-


nos surdos, faz-se necessário que os professores tenham conheci-
mento sobre as particularidades das pessoas que não ouvem, com-
preendendo a forma como esses entendem o mundo.

Tal proposta ainda não é identificada, claramente, na práti-


ca da formação de professores, uma vez que o espaço destinado
às discussões sobre a acessibilidade de alunos, que podem fre-
quentar o ensino superior, praticamente inexiste.
Stumpf (2013), comentando sobre o tema de aquisição da
escrita por surdos, expressa que no Brasil o domínio da escrita
não ocorre de maneira natural para essas pessoas, sendo que
a língua que elas percebem e utilizam de maneira natural é a
língua de sinais, que, no caso de surdos filhos de pais surdos,
constitui sua língua materna (L1). A Língua Portuguesa é consi-
derada como segunda língua (L2), do mesmo modo que a língua
inglesa o seria para as pessoas que ouvem.
Portanto, segundo Cavalcanti (2011, p 16):

As questões envolvidas no entorno da aquisição de português


escrito vêm expor uma situação que requer ações específicas e
especializadas. Se, por um lado, temos os fenômenos típicos da aqui-
sição de segunda língua, por outro, são inegáveis as especificidades
da situação de aquisição da modalidade escrita da língua portugue-
sa mediada pela língua de sinais.

A partir do enfrentamento de uma situação como essa,


uma experiência idealizada no Curso de Letras-Libras merece
atenção.

1. O Curso de Letras-Libras: alargando horizontes


Depois da conhecida Lei de Libras (10.436/2002), que re-
gulamentou o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais, o
Decreto 5.626 de 22 de dezembro de 2005 situa o papel das
instituições federais de ensino superior:

Art. 14.  As instituições federais de ensino devem garantir, obrigato-


riamente, às pessoas surdas acesso à comunicação, à informação e
à educação nos processos seletivos, nas atividades e nos conteúdos
curriculares desenvolvidos em todos os níveis, etapas e modalidades
de educação, desde a educação infantil até à superior.

§  1º    Para garantir o atendimento educacional especializado e o


acesso previsto no caput, as instituições federais de ensino devem:

I — promover cursos de formação de professores para:


a) o ensino e uso da Libras;
b) a tradução e interpretação de Libras — Língua Portuguesa; e
c) o ensino da Língua Portuguesa, como segunda língua para pes-
soas surdas;

II — ofertar, obrigatoriamente, desde a educação infantil, o ensino


da Libras e também da Língua Portuguesa, como segunda língua
para alunos surdos;

III — prover as escolas com:


a) professor de Libras ou instrutor de Libras;
b) tradutor e intérprete de Libras — Língua Portuguesa;
c) professor para o ensino de Língua Portuguesa como segunda lín-
gua para pessoas surdas; e
d) professor regente de classe com conhecimento acerca da singula-
ridade linguística manifestada pelos alunos surdos.

Com o objetivo de assegurar o direito linguístico das pes-


soas surdas ou com deficiência auditiva, bem como para dis-
seminar a Libras, enquanto língua regulamentada, o Governo
Federal envidou esforços para com vários projetos: I) a implan-
tação do Exame de Proficiência em Libras (Pró-Libras); II) a
criação do primeiro curso de Licenciatura em Libras na Uni-
versidade Federal de Santa Catarina (2006), com 18 polos de
ensino a distância, formando 960 licenciados e bacharéis em
todo país; III) a criação do Curso de Graduação em Letras, com
licenciatura em português como segunda língua, na UnB; IV) a
criação do Curso superior Bilíngue no INES (Instituto Nacional
de Educação de Surdos), V) a implantação do Programa de Aces-
sibilidade na Educação Superior — Incluir — que apoia projetos
de criação ou reestruturação de Núcleos de Acessibilidade das
Instituições Federais de Ensino Superior (IFES); e, VI) em 2011,
o ‘Plano Viver sem Limite’.
Esse plano do Governo Federal é a decorrência do compro-
misso com a plena cidadania das pessoas com deficiência no
Brasil. Lançado em 17 de novembro de 2011 (Decreto Nº 7.612),
o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência — Vi-
ver sem Limite visa implementar novas iniciativas e intensificar
ações em benefício das pessoas com deficiência.
Dentre as várias propostas do Plano Viver sem Limite está a
criação de 27 cursos de Letras/Libras — Licenciatura e 27 cur-
sos de Letras/Libras — Bacharelado, com, aproximadamente,
2.700 vagas por ano para a formação de tradutores-intérpretes,
como também a criação de cursos de Pedagogia com ênfase na
educação bilíngue, ofertando, aproximadamente, 480 vagas por
ano, para a formação de professores.
Na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o curso
de Licenciatura em Letras-Libras abriu suas portas para acolher
a primeira turma em 2013.2, sendo formada por 30 discentes,
dos quais 22 eram surdos e 08 ouvintes, tendo sua formatura
ocorrida no primeiro semestre de 2018.
Nos quatro períodos iniciais, são oferecidas disciplinas de
Língua Portuguesa, quais sejam: Língua portuguesa: Estrutura
gramatical I (60h/a); Língua portuguesa: Estrutura gramatical II
(60h/a); Língua portuguesa: texto e textualidade (60h/a); e Lín-
gua portuguesa: textos acadêmicos (60h/a), no final do curso,
ainda é ofertado o componente — Processos de elaboração tex-
tual (60/a), perfazendo um total de 300 h/a de Língua Portugue-
sa, visando um melhor aproveitamento na aquisição/aprendiza-
gem desta língua, na modalidade escrita, por parte dos surdos,
neste caso, todos são usuários de Libras.
O curso foi concebido para o ingresso preferencial de pes-
soas surdas. Desta forma, as pessoas ouvintes que participarem
devem ter fluência na Libras, pois todas as disciplinas são regi-
das pelos docentes, tendo a Libras como língua de interação e a
Língua Portuguesa como língua presente nos livros, apostilas,
materiais impressos, leituras solicitadas, etc.
No processo seletivo de ingresso ao curso, portanto, todos
passam por uma prova escrita em Língua Portuguesa e um Tes-
te de Habilidade Específica (THE) em Libras.
Como é sabido, a Libras constitui a língua natural dos sur-
dos, uma vez que ela não apresenta, para eles, barreiras em sua
captação ou produção. Tomemos, neste trabalho, a ideia de que
a Libras seja a primeira língua (L1) dos surdos, ainda que, em
muitos casos, diríamos até em sua grande maioria, os surdos
nasçam em famílias de pais ouvintes, por isso, falantes da Lín-
gua Portuguesa.
Desta forma, os primeiros passos linguísticos da maioria
dos surdos realizam-se por meio da leitura orofacial. É bem ver-
dade que não excluímos aqui as fases do balbucio gestual pelo
qual passam todos os surdos, mas isso não constitui em si um
sistema linguístico pleno. Entretanto, entendemos claramente
que as línguas de sinais

são as únicas capazes de proporcionar às pessoas surdas uma ma-


neira específica de apreender o mundo ao seu redor e se expressar,
tendo em vista que, para essas pessoas, a aquisição de uma língua
oral, e consequentemente a percepção da realidade sonora, é-lhes
praticamente impossível, devido às suas limitações no sistema audi-
tivo. Com isso, é por meio da LS que os surdos podem se expressar e
perceber o mundo ao seu redor, por meio de estratégias baseadas na
percepção visual (SILVA, 2018, p. 24).

A linguagem é a casa do ser. É nessa morada que habita o


homem (cf. HEIDGGER, 2003). Com essa afirmação, reconhe-
cemos que as línguas de sinais configuram-se como elemento
essencial para constituição humana enquanto ser de linguagem
para os surdos, seus usuários mais genuínos. Pois, continua o
mesmo autor:

O homem fala. Falamos quando acordados e em sonho. Falamos


continuamente. Falamos mesmo quando não deixamos soar nenhu-
ma palavra. Falamos quando ouvimos e lemos. Falamos igualmente
quando não ouvimos e não lemos e, ao invés, realizamos um tra-
balho ou ficamos à toa. Falamos sempre de um jeito ou de outro
(HEIDEGGER, 2003, p.7).

Somente de posse de sua língua natural, neste caso, a Libras,


o surdo poderá ter um bom aproveitamento quando da aprendi-
zagem da Língua Portuguesa, em sua modalidade escrita.
Na universidade, o contexto em que se realiza esse evento
didático remonta o bilinguismo, no qual coexistem, numa mes-
ma sala de aula, duas línguas — Libras e Língua Portuguesa,
devendo esta última ser entendida como Segunda Língua (L2),
que, por sua vez, exige estratégias adaptadas e específicas para
este fim (cf. DIAS JR., 2009, p.46). Com efeito, “o estudo desse
processo [aquisição/aprendizagem] tornou-se, hoje, algo extre-
mamente necessário para todo e qualquer professor de surdos,
principalmente, aquele que ensina língua, daí a necessidade e
relevância deste tipo de reflexão” (idem, ibidem).
O foco, portanto, das aulas de Língua Portuguesa como L2
para surdos usuários de Libras está pautado na matéria escrita
para sua leitura, compreensão e produção. Tal decisão não abar-
ca as estratégias para com o estudo da mesma língua por parte
dos ouvintes, uma vez que eles já trazem consigo experiências
linguísticas distintas frente à sua L1, o português.

2. Uma turma, dois públicos… dois mundos…


No momento inicial das aulas de Língua Portuguesa, todos
os estudantes surdos e ouvintes, da primeira turma do curso de
licenciatura em Letras-Libras, foram alocados na mesma sala
para terem aula desta língua com um único docente. O resulta-
do não foi satisfatório: surdos usuários de uma língua de moda-
lidade visual-motor, que aprendiam Língua Portuguesa escrita
de maneira instrumental, uma vez que, não esta, mas a Libras
é sua língua natural. Por outro lado, ouvintes estudavam sua
língua natural e primeira língua tendo a Libras como veículo de
interação. Dias Jr. (2010, p. 116), sobre isto, afirma:

Consideramos que o português é para o surdo uma L2, esta língua


deveria ser ensinada como tal. Observe-se que, no contexto dos
ouvintes, jamais se juntam usuários nativos de uma língua e falan-
tes nativos de outra língua numa mesma sala de aula para ensino-
-aprendizagem da primeira. Ou seja, o português como língua es-
trangeira é ensinado, no Brasil, em condições radicalmente diferen-
tes daquelas utilizadas nas aulas de português para brasileiros (já
usuários do português). No caso da comunidade surda, a necessidade
de especificidade no ensino é ainda mais necessária, devido à dife-
rença de matéria-prima da L1 e da L2. A dita inclusão numa sala com
intérprete/tradutor de língua de sinais faz do aluno surdo um mero
espectador de um evento do qual não participa realmente.
No caso do curso de Letras-Libras, não há a presença de
intérprete de Libras, uma vez que o próprio professor possui
fluência na língua de sinais. Assim, ao compartilharem, sur-
dos e ouvintes, a mesma aula de Língua Portuguesa, o entrave
instaurou-se num aproveitamento não satisfatório da disciplina,
pois estratégias pertinentes, adequadas e adaptadas deveriam
ser empregadas pelo mesmo docente para públicos que exigiam
especificidades didáticas completamente distintas.
A decisão, desde a segunda semana de aula já estava toma-
da para os semestres subsequentes: é preciso separar a turma
a fim de dar a cada um aquilo que lhe for devido. Com os ou-
vintes, as aulas de Língua Portuguesa passaram a ser minis-
tradas na mesma língua, uma vez que neste contexto ocorria o
ensino-aprendizagem de L1, pois os alunos já traziam consigo
a matéria-prima. Já para os surdos, as aulas continuaram a ser
ministradas com um professor fluente em Libras, numa pers-
pectiva de aprendizagem de L2.
Segundo Higounet (2003), a escrita precisa de uma gama de
sinais que sejam pré-estabelecidos e acolhidos pela comunidade
social em que serão usados, capazes de gravar e reproduzir um
enunciado oral. Para os ouvintes, a experiência sensorial com o
som constitui, nestes falantes de uma língua oral-auditiva, um
referencial acústico, ao qual Saussure denomina ‘imagem acús-
tica’. Para os surdos, esse referencial se dá no campo imagético,
ao que chamamos de ‘imagem visual’.
Segundo Máximo (2016), as pessoas surdas, por sua vez,
têm na língua de sinais uma nova configuração para o signo
linguístico, no qual se pode considerar para o significante uma
“imagem visual”.
Por isso, no que diz respeito à escrita,

No caso das pessoas surdas esse processo ganha um grau a mais de


complexidade devido à falta de acesso à língua oral, que é represen-
tada pelo sistema de escrita que estão aprendendo. Enquanto que
para as pessoas ouvintes existe a dificuldade de compreensão sobre
como traduzir em signos escritos os sons da fala, para as pessoas sur-
das essa complexidade é sobre como traduzir em signos escritos sons
aos quais elas não têm acesso de maneira natural (SILVA, 2018, 99).

Neste sentido, o processo de aquisição/aprendizagem da


Língua Portuguesa, dentro da experiência que foi vivenciada
nesse grupo, jamais poderá ocorrer num mesmo espaço por sur-
dos usuários de uma língua de modalidade gesto-visual e ouvin-
tes usuários de uma língua oral-auditiva.

3. À guisa de conclusão
O trajeto histórico da educação de surdos traz consigo uma
conjuntura de procedimentos que deixaram máculas e estigmas
não só no processo em si, mas, sobretudo, nos indivíduos. Por
isso, é certo dizer que a sociedade carrega uma dívida cara e,
por isso, impagável para com as pessoas surdas.
O fenômeno linguístico tão discutido e pesquisado trouxe
novas luzes para o entendimento das línguas de sinais como
língua natural, dotada de todos os níveis de análise. No mes-
mo caminho, o reconhecimento da Libras como língua da sua
comunidade usuária, impõe reflexões essenciais. Enquanto ins-
trumento de interação, as línguas gestuais cumprem plenamen-
te seu papel de garantir aos utentes mais genuínos seus papéis
sociais outrora sonegados na sociedade.
A academia precisa rever seus próprios métodos e pro-
por estratégias que respeitem as especificidades nos métodos
e práticas empregados pelos docentes de surdos usuários de
língua gestual, pois toda questão de um bom desenvolvimento
do processo de aquisição/aprendizagem da língua escrita está
nas estratégias adotadas. Não falamos em necessidades, mas em
‘especificidades’.
Seja qual for o grupo destinado para o processo de aquisi-
ção/aprendizagem de uma língua, é preciso entender o perfil ali
presente a fim de que seja dado a cada um aquilo que lhe for
adequado, por meio de estratégias pertinentes, recursos os mais
variados possíveis, pois a inclusão não deve ser compreendida
como uma imposição para o cumprimento de dispositivos le-
gais, mas adequação nos métodos e estratégias, visando sempre
o desenvolvimento dos alunos.
Desta forma, é preciso dar ênfase na formação inicial dos
docentes, que se evidencia cada vez mais quando das análises de
dificuldades identificadas na aquisição/aprendizagem da Língua
Portuguesa por surdos. Os professores precisam ser devidamen-
te preparados teórica e praticamente, de modo que possam assu-
mir seu ofício de maneira a contribuir significativamente para
com a aquisição/aprendizagem de língua escrita de seus alunos.
Com efeito, é importante ao docente entender as nuanças
do processo de aquisição de L1 como L1 e de L2 como L2, para
que não haja uma confusão, e, por fim, uma inadequação didá-
tico-metodológica, acarretando prejuízo aos alunos.
Em relação aos surdos, sabemos que a falta de acesso à
língua oral dificulta a possibilidade de tradução dos signos orais
para os escritos, entretanto isso não compromete sua aquisição
de uma língua gestual, já que está lhes é natural.
Essa identidade linguística requer um trato que lhe possa
aproveitar todos os recursos que as línguas de sinais oferecem.
A modalidade gesto-visual reserva aos seus usuários uma gama
de possibilidades, mas também de limitações assim como as
línguas orais. E todos esses fatores devem ser levados em con-
sideração a fim de que tudo concorra para a transcendência do
humano, algo inerente às línguas.

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CAPÍTULO 13 CORPO E IDENTIDADES
DE GÊNERO:
A escrita feminina
em espaços digitais
Denise Lima Gomes da Silva (PNPD CAPES/UNICAP)
Dóris de Arruda C. da Cunha (UNICAP/UFPE/CNPq)

Introdução

E
ste capítulo tem como proposta refletir sobre a constru-
ção das identidades de gênero a partir da representação
do corpo na escrita de mulheres em espaços digitais.
Tomamos como aporte teórico a articulação entre teo-
rias da linguagem, na perspectiva dialógica do discurso, e teo-
rias de identidade e gênero.
O trabalho está dividido em três partes. Na primeira, a dis-
cussão aborda a questão do dialogismo na linguagem proposto
por Bakhtin (1998), (2011), (2015a), (2015b), (2016), e o ato de no-
mear proposto por Siblot (1990), (1997), (2001) e Moirand (2009),
(2011). Ambos abordam o ato de nomear na perspectiva dialógi-
ca e axiológica. É possível compreender com esses autores que
entre o sujeito e a realidade nomeada existe uma multiplicidade
de interações, representações e sentidos que são reajustados a
cada atualização discursiva, de modo que a palavra traz uma
memória e revela um ponto de vista do enunciador.
Na segunda, abordamos a noção de gênero proposta por Ha-
raway (2000) e Scott (1999), Butler (2013), (2014), (2000) (1986).
Com essas autoras é possível compreender como as identidades
de gênero são constituídas por práticas regulatórias que subscre-
vem os corpos, mas, por serem discurso, estão sempre suscetíveis
de desconstrução. E é justamente enquanto ato de questionar as
hegemonias que procuramos olhar as formas de representação
do corpo na escrita feminina em espaços digitais. Para Castells
(2013), as redes autônomas são ambientes de solidariedade, com-
partilhamento, denúncias e trocas de experiências. Os blogs são
exemplos dessas redes autônomas no ciberespaço.
Por fim, na terceira, nos deteremos na análise do corpus cons-
tituído pelas postagens publicadas no web blog, Blogueiras Femi-
nistas1 que atua desde 2010, e se define como um blog coletivo,
político, com o objetivo de buscar uma sociedade mais justa e igua-
litária. Como na história do feminismo a escrita sobre o corpo é
um instrumento de luta, resistência e denúncia, a análise procura
responder às seguintes perguntas: de que maneira o corpo é repre-
sentado em suas articulações com o gênero? De que forma estas
representações constroem discursivamente as identidades? Quais
as formas de nomear utilizadas e quais os sentidos construídos?

1. Dialogismo e ato de nomear


A noção de dialogismo aparece como objeto de investigação
em diversas áreas das Ciências da Linguagem. Embora seja am-
plamente difundido, o conceito de dialogismo não se apresenta
de imediato ao leitor de Bakhtin, pois percorre a maior parte de
sua obra como algo muitas vezes pensado, formulado e reformu-
lado. Nowakowska (2012) comparou a edição russa com a fran-
cesa dos textos Os gêneros do discurso, O Discurso no Romance
e Problemas da Poética de Dostoiévski e constatou que Bakhtin
utiliza seis termos diferentes na língua russa para falar sobre o
dialogismo, noção bastante ampla, ligada ao domínio do sentido
e da sua transmissão.

https://blogueirasfeministas.com/
1
Segundo Holquist (2002), a “filosofia de Bakhtin” é orienta-
da para uma teoria do conhecimento, mais particularmente, é
uma das várias epistemologias modernas que buscam compre-
ender o comportamento humano, através do uso da linguagem.
Mas, a contribuição de Bakhtin está na noção de dialogismo
como fundamental no funcionamento da linguagem.
Indo na contramão de uma “leitura eivada de um marxis-
mo vulgar”, Fiorin (2006, p.168) considera que Bakhtin não nega
a existência do sistema da língua, nem condena seu estudo, ao
contrário considera-o necessário para estudar as unidades da
língua. Mas, para o autor russo, apenas o estudo do sistema
língua não daria conta do modo de funcionamento real da lin-
guagem, propondo como objeto o discurso, isto é,

a língua em sua integridade concreta e viva, e não a língua como


objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração
absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida
concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraí-
dos da linguística, os que têm importância primordial para os nossos
fins. (BAKHTIN, 2015b, p. 207)

Bakhtin (2015b) ressalta que as suas análises não são lin-


guísticas no sentido rigoroso do termo, situando a sua perspec-
tiva na metalinguística, disciplina proposta por ele para o estudo
dos aspectos da vida do discurso que ultrapasse os limites da
linguística. No entanto, o autor destaca que as duas disciplinas
devem completar-se mutuamente, pois a linguística e a meta-
linguística estudam o mesmo fenômeno: o discurso, mas sob
diferentes ângulos.
O discurso é, em Bakhtin (2016), a língua in actu, sendo
inadmissível contrapor língua e discurso. O discurso é tão so-
cial quanto a língua, e as formas de enunciado, assim como a
língua, são sociais e igualmente determinadas pela comunica-
ção. Sendo assim, a ideia de discurso monológico e enunciado
neutro é recusada por Bakhtin. A língua é dialógica por natu-
reza: “o monólogo absoluto, que seria um monólogo fundado na
língua, é excluído pela própria natureza da língua.” (BAKHTIN,
2016, p. 118).
Em Bakhtin (2011) o sujeito é um indivíduo responsável
interagindo em permanente contato com outros indivíduos e ao
mesmo tempo em que entra em interação pela fala, ele pree-
xiste a esta tomada de fala. Bakhtin (2010) articula a posição
singular de cada ser ao espaço, ao tempo e ao ato carregado de
tons emotivos-volitivos e de valores. A concepção bakhtiniana
de homem singular, inacabado, que se constitui na relação com
o outro, encontrada em Para uma filosofia do ato e O autor e a
personagem na atividade estética (BAKHTIN, 2010; BAKHTIN,
2003) é aqui adotada. Acrescente-se a heterogeneidade consti-
tutiva do sujeito, em que se misturam o espírito do tempo que
se impõe a nós de forma diferenciada em função das gerações;
uma certa relação com o que se pensava em outras épocas e em
outros contextos; nossas especificidades e nosso caráter depen-
dente dos temas ou dos interlocutores; as particularidades da si-
tuação ou do nosso ponto de vista mais ou menos explícito sobre
ela; a heterogeneidade do que é humano que, multiplicada pelas
nossas diferenças intrínsecas, leva à multiplicidade de nossos
pontos de vista (FRANÇOIS, 2015).
A partir da filosofia de Kant, a não identidade entre o es-
pírito e o mundo é, em Bakhtin, a rocha conceitual em que o
dialogismo é fundado, como explica Holquist (2002). A própria
capacidade de ter consciência se baseia na alteridade e a alteri-
dade não é meramente uma dialética, no sentido de um cami-
nho para a superação em que o indivíduo irá adquirir com uma
identidade unificadora, uma consciência superior, pelo contrá-
rio, na perspectiva dialógica a consciência é alteridade, mais
precisamente, é a relação diferencial, a maneira como a coisa
em si se apresenta, as sensações e as percepções são acessíveis
pelo contorno de outrem.
Conforme Todorov (1981), o dialogismo enquanto essência
da linguagem está ligada à concepção de mundo como aconte-
cimento, da realidade enquanto processo e do ser em constan-
te devir pela palavra. Entre o discurso e o objeto, diz Bakhtin
(2015a, p. 48) existe um meio “elástico e amiúde dificilmente pe-
netrável de outros discursos alheios a respeito do mesmo objeto,
no mesmo tema.” É somente no processo de interação viva e ten-
sa, uma vez que não há sujeito passivo, que o sujeito concorda,
discorda, reage e age com o discurso que se individualiza.
Enquanto concretude socioideológica, a língua situa-se na
consciência individual na fronteira do que é do sujeito e o do
que é do outro. A palavra de uma língua somente se torna pa-
lavra quando o falante a inscreve com sua intenção, com seu
acento, sendo assim, a palavra não está numa língua neutra e
impessoal, não é do dicionário que o falante retira a palavra:

[…] a experiência discursiva individual de qualquer pessoa se for-


ma e se desenvolve em uma interação constante e contínua com os
enunciados individuais dos outros. Em certo sentido, essa experiên-
cia pode ser caracterizada como processo de assimilação — mais
ou menos criador — das palavras dos outros (e não das palavras da
língua). Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive
as obras criadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau vário
de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário de apercepti-
bilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a
sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos
e reacentuamos. (BAKHTIN, 2011, p. 294-295)

Segundo Cunha (2015), a posição axiológica, nos escritos de


Bakhtin, engloba valores, afetos, tempo, espaço. Para a autora,
a ideia de uma realidade em movimento, do ser constituindo-se
continuamente pelo discurso remete à noção de ponto de vista,
que embora não esteja claramente definido em Bakhtin, está
presente na noção de linguagem proposta pelo autor russo.
Dialogando com o pensamento de Frédéric François, Cunha
(2015; 2012) observa que a partir da noção de ponto de vista po-
demos pensar em um sujeito heterogêneo, com múltiplas iden-
tidades e que não existe um sujeito da enunciação, mas figuras
diferentes do sujeito, de acordo com o momento em que fala,
aquilo que fala, aquilo que silencia, a maneira como se relaciona
com o discurso do outro.
É justamente nesta dialética axiológica entre linguagem
e realidade, que Siblot rompendo com a questão da relação
entre objeto e representação apenas, aborda a problemática da
nomeação. Na visão de Siblot (1997), o homem jamais atinge o
sentido das coisas em si, mas o sentido que é dado às coisas,
que acompanha e facilita sua relação com as coisas. Sendo
assim, a nomeação, considerada como ato de significar, não
é somente o momento da atribuição inicial da denominação,
mas todo o processo de reatualização discursiva, fato que rein-
sere o sujeito e o referente no campo da reflexão sobre o signo
linguístico. A relação do nome com o objeto nomeado é de
ordem prática, o nome diz o que é o objeto para nós e nossa
relação com ele.
Siblot (2001) observa que o homem pela incapacidade de
nomear o objeto em si e por si, o nomeia tal como o percebe, tal
como o objeto aparece para ele, sendo assim qualquer nomeação
expressa uma visão da coisa nomeada, vista de um certo ângulo,
a partir de um ponto de vista de específico.

Aussi quand je crois nommer l’objet lui-même, c’est mon rapport à


lui qu’en réalité je nomme. […] Toute nomination exprime une vi-
sion de la chose nommée, vue “sous un certain angle” à partir du
“point de vue” auquel se place le locuteur. Elle est par là une prise
de position à l’égard de la chose nommée qui désigne, en même
temps que l’objet nommé, la position prise pour le nommer. Aussi
un locuteur ne peut-il désigner sans se désigner lui-même. (SIBLOT,
2001.p. 14:15)2

2
Por isso, quando eu penso que nomeio o próprio objeto, é minha relação com ele
na realidade que eu nomeio. Toda nomeação exprime uma visão da coisa nomeada,
vista de um certo ângulo, a partir de um ponto de vista onde se situa o locutor.
Ela é uma tomada de posição em relação à coisa nomeada que designa, ao mesmo
A dialética entre locutor e realidade nomeada abarca uma
multiplicidade de interações, categorizações, representações e
sentidos que são reajustados a cada atualização discursiva. No-
mear é não apenas se situar em relação ao objeto, mas também
tomar uma posição em relação a outras denominações do mes-
mo objeto. Sendo assim, uma reflexão sobre a questão da no-
meação envolve uma dialética da linguagem e realidade, e um
dialogismo da nominação (SIBLOT, 2001).
Realidade, linguagem e existência envolvem um arcabouço
de experiência perceptivas, práticas sociais, na quais as unida-
des linguísticas são (re)elaboradas. Pensar o sentido na lingua-
gem a partir do conhecimento adquirido sobre o objeto remete à
questão da relação com a realidade que não se reduz ao âmbito
da representação, mas engloba o homem no mundo, conforme
afirma Siblot (1990).
Podemos pensar então que o ato de nomear envolve uma
relação em três dimensões, como explica Moirand (2011, p.170-
171): “le réel du monde, qu’on catégorise pour lui donner sens;
le réel du sujet qui exprime la représentation qu’il se fait de ce
monde et la position qu’il prend à son égard; le réel du sujet aux
autres avec lesquels il entre nécessairement en dialogue.”3
Sendo assim, Moirand (2009) propõe que nomear é usar
as palavras que temos armazenadas na memória, palavras que
têm uma história e que carregam consigo o sentido encontra-
do em discursos e situações que elas cruzaram, comunidades
discursivas que atravessaram o locutor e que são atravessadas
por ele. Nomear é designar um ato por uma de suas facetas
construídas discursivamente por palavras que foram mantidas
em discursos anteriores e por palavras que mudam ao longo no
decorrer do evento.

tempo que o objeto nomeado, a posição tomada para nomear. Assim um locutor
não pode designar sem se autodesignar. (Tradução nossa)
3
“o real do mundo que é categorizado para lhe dar sentido; o real do sujeito que ex-
prime a representação que ele se faz deste mundo e a posição que toma em relação
a ele; o real do sujeito face aos outros com os quais ele dialoga necessariamente”.
2. Sexo, gênero e corpo
As temáticas que envolvem os estudos de gênero e sua
abordagem sobre o corpo e o sexo estão associadas aos contextos
e problemas suscitados nas diferentes fases do feminismo. Con-
forme Scavone (2008), historicamente o movimento feminista
tem sido delimitado em três grandes fases. A primeira fase, a
universalista, comporta ações pela aquisição igualitárias de di-
reitos civis, políticos e sociais; a segunda fase, a essencialista,
convoca o debate pela afirmação das diferenças e das identida-
des, e uma terceira fase, denominada de pós-moderna, influen-
ciada pela noção de desconstrução, reflete sobre a condição dos
sujeitos múltiplos e nômades.
Mesmo levando em conta os avanços epistemológicos, a
relação corpo, sexo e gênero continua convocando reflexões no
pensamento contemporâneo. Noções como a biologização da
mulher, a desnaturalização dos corpos, a performatividade do
gênero e a sexualização das identidades provocam diálogos cons-
tantes nos debates acadêmicos e político. Ao refletir sobre a mo-
dernidade, a universalização dos sujeitos e o movimento femi-
nista, Haraway (2000, p. 52) pergunta: “e quem é esse ‘nós’ que é
enunciado em minha própria retórica? Quais são as identidades
que fundamentam esse mito político tão potente chamado nós e
o que pode motivar o nosso envolvimento nessa comunidade?“
De acordo com Haraway (2000) depois do reconhecimento,
conquistado de maneira árdua, de que gênero, classe e raça são
sócio-historicamente construídos, não cabe mais pensar esses ele-
mentos na base da crença em uma unidade essencial. “Não existe
nada no fato de ser ‘mulher’ que naturalmente una as mulheres.
Não existe nem mesmo uma tal situação — ‘ser’ mulher.” (HA-
RAWAY, 2000, p. 52). Esse “ser mulher” está relacionado à uma
categoria altamente complexa, construída por meio de discursos
científicos sexuais e de outras práticas sociais questionáveis.
Questionando as dicotomias estruturantes do sujeito mo-
derno como as fronteiras estabelecidas entre o humano e o ani-
mal, o humano e a máquina, e o físico e não-físico, Haraway
propõe o que denominou de ciborgue. O ciborgue é um ser hí-
brido, não mais estruturado pela polaridade do público e do
privado; coloca em cheque a relação natureza e cultura em que
uma não pode ser objeto de apropriação ou incorporação da ou-
tra, e questiona as relações de polaridade e dominação hierár-
quica. Com o ciborgue, Haraway (2000) redefine a condição de
um sujeito fundado em uma “unidade original”, desfaz a “ideia
de plenitude” e propõe um sujeito em constante transformação,
conduzida através de relações.
Scott (1999), seguindo também a vertente pós-estrutura-
lista, argumenta que é necessário refletir em termos de plu-
ralidade e diversidade, em lugar de unidade e universalidade,
articulando modos de pensar alternativos sobre o gênero que
rompam com esquemas conceituais das velhas tradições filosó-
ficas ocidentais. O feminismo necessita de “teorias que possam
analisar o funcionamento do patriarcado em todas as manifesta-
ções- ideológicas, institucionais, organizativas, subjetivas, expli-
cando não somente a continuidade, mas também as mudanças
no tempo”, defende a autora. (1999, p. 203)
Partindo do diálogo com Foucault e Deleuze, Scott critica
a ideia de um sujeito universal, biológico e a-histórico que fun-
damenta o discurso falocêntrico e defende que gênero é uma
categoria histórica, cultural, política na construção de significa-
dos. Scott (1990) elabora um conceito de gênero que tem como
núcleo duas proposições ligadas entre si: “o gênero é um elemen-
to constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças
percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de
dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1990, p. 14). Sen-
do assim, é preciso examinar as formas pelas quais as identida-
des de gênero são construídas e relacioná-las às representações
sociais historicamente situadas.
Butler (2014) também defende que não existe uma estru-
tura originária que as identidades imitem. Gênero não é preci-
samente o que alguém “é” nem o que alguém “tem”, mas sim, o
aparato pelo qual a produção e a normalização do masculino e
do feminino se manifestam juntamente com as formas inters-
ticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e performativas que
o gênero assume. O gênero é o mecanismo pelo qual as noções
de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas
também o aparato através do qual masculino e feminino podem
ser desconstruídos e desnaturalizados.

Se a verdade interna do gênero é uma fabricação, e se o gênero


verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita sobre a superfície dos
corpos, então parece que os gêneros não podem ser nem verdadei-
ros nem falsos, mas somente produzidos como efeitos da verdade de
um discurso. (BUTLER, 2013, p.195).

Se são produzidos como efeito de verdade, como então pen-


sar a relação da materialidade do corpo vinculada à performati-
vidade do gênero? E como a categoria do sexo figura no interior
desta relação? São algumas questões colocadas por Butler.
Para a autora, não é possível pensar a diferença sexual que
não seja de alguma forma simultaneamente marcada e formada
por uma prática discursiva. Desta forma, a categoria do sexo, é
desde início, normativa. Nesse sentido, o sexo não apenas fun-
ciona como um norma, “mas é parte de uma prática regulatória
que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória
manifesta-se como uma espécie de poder produtivo, o poder de
produzir- demarcar, fazer, circular, diferenciar- os corpos que
ela controla.” (BUTLER, 2000, p.151)
Retomando o pensamento de Wittig, Butler (2013) argu-
menta que a distinção sexo/gênero não existe em linhas conven-
cionais, pois, o gênero é imbuído no sexo, e o sexo mostra ter
sido gênero desde o início. Portanto, colocar a dualidade do sexo
num domínio pré-discursivo é uma das maneiras de assegurar
eficazmente a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo.
Não há como qualificar o sexo como uma facticidade anatômica
pré-discursiva, defende a autora:
Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não
faz sentido definir gênero como a interpelação cultural do sexo. O
gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural
de significados num sexo previamente dado (uma concepção jurídi-
ca); tem de designar também o aparato mesmo de produção median-
te o qual os próprios sexos são estabelecidos. (BUTLER, 20013, p. 25)

Butler (2000) propõe que, ao considerar, por exemplo, a


cena do nascimento em que uma criança se transforma de um
“ser” neutro, num “ele” ou “ela”, nessa nomeação “ela”, a menina
torna-se menina ao ser convocada pelo domínio da linguagem,
através da interpelação do gênero. Entretanto, a autora destaca
que o tornar-se menina não termina ali, esta interpelação fun-
dante é reiterada por várias autoridades, ao longo do tempo, para
reforçar ou contestar esse efeito naturalizado. “A nomeação é, ao
mesmo tempo, o estabelecimento de uma fronteira e também a
inculcação repetida de uma norma” (BUTLER, 2000, p.159).
Se o corpo é em si mesmo uma construção que constitui o
sujeito com marcas de gênero, então, não se pode dizer que os
corpos tenham uma existência significável anterior às marcas
do gênero, por isso, pergunta Butler (2013, p. 27): “ em que me-
dida o corpo pode vir a existir nas marcas de gênero e por meio
delas?” O corpo será sempre performativo, escrito e subscrito
pela palavra, entretanto a autora coloca (2000) que a performa-
tividade deve ser entendida como prática reiterativa e citacional
pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia, e não
como um ato singular ou deliberado.
Desta forma Butler (2000) argumenta que as normas regu-
latórias trabalham para constituir a materialidade dos corpos,
mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, isto
é, a diferença sexual que consolida o imperativo heterossexual.
Nesse sentido, coloca a autora, aquilo que constitui a fixidez do
corpo, seus contornos, seus movimentos, será material, mas a
materialidade deve ser pensada como efeito produtivo de poder.
Nessa perspectiva, o gênero é definido como: “ a continuação da
estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no
interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se
cristaliza no tempo”, produzindo uma aparência natural do ser.”
(Butler, 2013, p. 59).
Conforme Salih (2016), Butler, ao desfazer a distinção sexo/
gênero, nos leva a pensar que o corpo não pode existir fora do
discurso generificado, ou seja, não existe nenhum corpo que
não seja sempre generificado. Entretanto, a autora chama aten-
ção para o fato de que isto não significa dizer que não exista
aquilo que é o corpo material, mas sim que apenas podemos
apreender essa materialidade através do discurso.

As a locus of cultural interpretations, the body is a material reality


which has already been located and defined within a social context.
The body is also the situation of having to take up and interpret that
set of received interpretations. No longer understood in its traditional
philosophical senses of ‘limit’ or ‘essence’, the body is a field of inter-
pretive possibilities, the locus of a dialectical process of interpreting
anew a historical set of interpretations which have become imprinted
in the flesh. The body becomes a peculiar nexus of culture and choice,
and ‘existing’ one’s body becomes a personal way of taking up and
reinterpreting received gender norms (BUTLER, 1986, p.45)4.

Nesse sentido, de acordo com Salih (2016) em Butler o gê-


nero é uma sequência de atos que está sempre e inevitavelmente
ocorrendo, uma vez que é impossível alguém existir como um
agente social fora dos termos do gênero. Butler situa, portanto,
gênero, sexo e consequentemente corpo, no contexto dos dis-

4
Como um locus de interpretações culturais, o corpo é uma realidade material
que foi situada e definida em um contexto social. O corpo é também a circuns-
tância de termos de assumir e interpretar esse conjunto de interpretações que nos
foram transmitidas. Não mais entendido em seus sentidos filosóficos tradicionais
de “limite” ou “essência”, o corpo é um campo de possibilidades interpretativas,
o locus de um processo dialético de interpretar novamente um conjunto histórico
de interpretações que se tornaram impressas na carne. O corpo se torna um nexo
peculiar de cultura e escolha, e “existindo” o corpo se torna uma maneira pessoal
de assumir e reinterpretar as normas de gênero transmitidas. (Tradução nossa)
cursos regulatórios pelos quais são enquadrados e formados, de
modo a tornar evidente o status construído em oposição ao na-
tural destas categorias.
É nessa perspectiva que procuramos olhar a representação
do corpo e sua relação com o gênero na escrita de mulheres,
mais especificamente, em espaços digitais que ganham cada vez
mais visibilidade da sociedade.

3. Blog e escrita em espaços digitais


Com os avanços das Tecnologias de Informação e Comuni-
cação, os espaços de iniciativas coletivas ganham novos contor-
nos. Na visão de Castells (2013), os movimentos sociais exercem
o contrapoder, construindo-se mediante um processo de comu-
nicação autônoma, subvertendo o controle do poder institucio-
nal. Como os meios de comunicação de massa são amplamente
controlados pelo poder estatal e privado, na sociedade em rede a
autonomia da comunicação é basicamente construída nas redes
de internet e nas plataformas digitais.
De acordo com Moraes (2001), a internet se constitui como
um espaço que dinamiza as lutas das entidades civis a favor da
igualdade num mundo que globaliza desigualdades em toda or-
dem. Com diferentes objetivos, as iniciativas coletivas buscam o
fortalecimento da sociedade civil no processo de democratização
de direitos. As vozes se somam ao ciberespaço representando
grupos identificados com causas e comprometimentos comuns,
a partir da diversidade de campos de interesse, são esforços de
intervenção na cena pública, sem se submeter a hierarquia de
juízos e idiossincrasias.
Neste contexto surge o ativismo digital ou o ciberativismo.
Segundo Silveira (2014), o ativismo digital é definido como o
conjunto de práticas em defesa de causas políticas, socioambien-
tais, e culturais realizadas nas redes cibernéticas, principalmen-
te na internet. São as práticas sociais de mobilização e ação so-
cial, tendo como suporte as tecnologias do ciberespaço.
Para Castells (2013), os atores da mudança social são capa-
zes de exercer influência decisiva, utilizando mecanismos de
construção de poder. Ao desenvolver redes autônomas de co-
municação horizontal, os cidadãos da sociedade em rede são
capazes de inventar novas formas de compartilhar seus sofri-
mentos, seus sonhos e esperanças. Os blogs são exemplos destas
redes autônomas no ciberespaço. São ambientes de solidarieda-
de, compartilhamento, denúncias e trocas de experiências. E é
principalmente por meio das práticas discursivas que os movi-
mentos ciberativista, de acordo com Castells (1999), constroem
sua identidade a ser compartilhada, identidades estas que são
fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas
e construídas no processo de individuação. Partamos então para
a contextualização do corpus e a análise.

3.1 Um corpo além do corpo

O web-blog, Blogueiras Feministas, é uma iniciativa cole-


tiva surgida em 2010, cuja temática principal como o próprio
nome revela, é o feminismo. Com a participação de mais de 70
integrantes, o blog é formado por pessoas de várias partes do
Brasil e em seu editorial propõe discutir o feminismo em suas
particularidades e peculiaridades. Quanto ao procedimento de
seleção do corpus, inicialmente realizamos um mapeamento
das publicações referentes ao corpo, no período de 2010 a 2017.
Como instrumento de coleta, as postagens foram selecionadas
pela palavra corpo colocada no buscador do blog. Neste primei-
ro mapeamento realizamos uma pré-leitura das publicações e
identificamos que o corpo era abordado em várias categorias
do blog: comportamento, mídia, diversidade, cultura, educação,
história, política, gênero, raça, etnia, saúde, violência, sexo, se-
xualidade e que as publicações, direta ou indiretamente, acaba-
vam por articular as questões de gênero. Em seguida realizamos
um segundo mapeamento. Partindo da pré-leitura realizada na
etapa anterior, procuramos identificar as publicações que apre-
sentavam a mesma proposta discursiva, isto é, as postagens que
explicitamente procuram promover uma reflexão sobre o corpo
a partir da perspectiva das identidades de gênero. Desse modo,
após uma leitura reflexiva sobre o material coletado, foram se-
lecionadas as seguintes publicações: O corpo da mulher cis5, pu-
blicada em 20 de agosto de 2013; O conceito de cisgeneridade e o
transfeminismo6, publicada no dia 21 de julho de 2016; O que faz
dos corpos cis naturais?7 publicado em 29 de abril de 2015.
Como foi dito na parte introdutória, a análise procura veri-
ficar: a) a maneira como o corpo é representado em suas articu-
lações com o gênero, b) a forma como estas representações cons-
troem discursivamente as identidades, c) as formas de nomear
utilizadas e os sentidos construídos. De início, começamos a
análise do post publicado em 20 de agosto de 2013, com o título,
O corpo da mulher cis.

(1) O corpo da mulher cis (Post publicado em 20 de agosto de 2013)


(2) Nota: o termo “cis” se refere a cisgênero, um conceito que identi-
fica as pessoas que não são trans. (Post publicado em 20 de agosto
de 2013)

O uso da nomeação cis expressa no título (1) antecipa a


perspectiva de abordagem do corpo. A nota (2), apresentada
logo em seguida, se configura como operador explicativo da
nomeação cis referida no título. É possível perceber que o uso
da expressão verbal “se refere” imprime uma neutralidade ao
enunciado e ao mesmo tempo sugere a presença de um outro
discurso reportado pela autora. Além disso, a alusão ao conceito
pontua o dualismo histórico intrínseco à condição dos corpos
cis/trans. Conceituado em oposição à transgeneridade, o termo

https://blogueirasfeministas.com/2013/08/20/o-corpo-da-mulher-cis/
5

6
https://blogueirasfeministas.com/2016/07/21/o-conceito-de-cisgenaridade-e-o-
-transfeminismo/
https://blogueirasfeministas.com/2015/04/29/o-que-faz-dos-corpos-cis-naturais/
7
cisgênero está relacionado à identidade daquelas pessoas, cujo
gênero corresponde àquele atribuído no nascimento.

(3) Meu corpo de mulher cis não tem definições exatas. Meu corpo
não define quem eu sou ou devo ser. Meu corpo pela sua forma ou
anatomia não é capaz de abarcar meu eu, tudo o que eu sou ou mi-
nhas escolhas. (Post publicado em 20 de agosto de 2013)

O enunciado (3) apresenta o ponto de vista da blogueira em


relação ao corpo cisgênero. O ato de nomear-se como cis marca
seu lugar de autoridade de fala. O uso repetido da negação deter-
mina a construção axiológica do enunciado. Primeiramente, a
negação reporta ao conceito de inexatidão sobre o qual a autora
apresenta seu corpo, meu corpo de mulher cis não tem definições
exatas, em seguida, expressa a instabilidade da relação entre
o corpo e a subjetividade, meu corpo não define quem eu sou ou
devo ser, e por fim, assinala o aspecto da singularidade: meu
corpo pela sua forma ou anatomia não é capaz de abarcar meu eu,
tudo o que eu sou ou minhas escolhas. É possível observar que
na sequência enunciativa a autora aponta uma ruptura com a
ideia da existência de um corpo “natural” determinante de sua
condição como mulher.

(4) Meu corpo de mulher cis não define minha sexualidade, feminili-
dade, maternidade, maternagem ou via de parto. Tão pouco determi-
na universalmente essas experiências. Meu corpo de mulher cis não é
parâmetro para definir isso tudo, quem dirá para todas as outras pes-
soas, sejam elas cis ou não. (Post publicado em 20 de agosto de 2013)

No enunciado (4) a crítica à normatização dos corpos é ex-


plícita. Os sentidos das nomeações sexualidade, feminilidade e
maternidade construídas socialmente referindo-se ao corpo “na-
tural” são deslocados da cadeia de significação mais usual e fre-
quente, cujas relações marcam os construtos culturais respon-
sáveis por uma padronização de um ethos feminino. Desarticu-
lando a correlação existente entre corpo “natural”, sexualidade,
feminilidade, maternidade, a blogueira coloca em relevo o cará-
ter transitório destes atributos, cujo pressuposto não é o corpo.
O processo de produção de sentidos nos enunciados (3) e (4)
pode ser compreendido, na perspectiva de Siblot (2001), quan-
do postula que a dialética entre locutor e realidade nomeada
abarca uma multiplicidade de interações, categorizações, re-
presentações que são reajustadas a cada atualização discursiva.
Desta forma, nos enunciados (3) e (4) articulam os movimentos
discursivos em que a blogueira: recupera os valores sociais, (re)
contextualiza-os, para então poder reivindicar uma política de
resistência ao cerceamento do corpo.

(5) Minhas experiências, minha vivência, o ambiente onde vivi e cres-


ci, as pessoas que conheci e com quem interagi, o lugar onde vivo,
tudo isso junto e misturado é que me fizeram entender o que sou e
também entender meu corpo como o entendo. Mas, eu não sou um
corpo pronto. Eu sou um corpo em construção. Eu sou hoje o rascu-
nho do que serei amanhã. (Post publicado em 20 de agosto de 2013)

No enunciado (5), o corpo é abordado na perspectiva re-


lacional. É possível observar na construção argumentativa os
seguintes movimentos discursivos: primeiramente o enunciado
é marcado pela ênfase na experiência do ser no mundo como
ponto de partida para compreender o corpo e não o inverso, a
blogueira reconhecendo ter uma compreensão em relação a sua
identidade e ao seu corpo a partir da vivência. Em seguida, o ar-
gumento do corpo inexato proposto no enunciado (3) é retomado:
“Mas, eu não sou um corpo pronto”. Logo adiante, o argumento é
ratificado pelas nominações rascunho e construção que definem
respectivamente o eu/subjetivo e o corpo. Ao nomear seu corpo
como construção e o seu eu como rascunho a blogueira posiciona
o ethos feminino no registro da relação de alteridade eu/mundo e
coloca em suspensão a concepção essencialista do corpo. Neste
sentido, o enunciado (5) aponta para pensarmos a identidade de
gênero constituída, de acordo com o ponto de vista de Butler
(2014): não é possível pensar mais na existência de uma estrutu-
ra originária, pré-discursiva onde o gênero acontece.

(6) Então, me incomoda uma militância que restrinja seu foco a um


tipo de corpo. Uma militância que restrinja as experiências das pes-
soas a uma forma de corpo, que restrinja o corpo. Que invoque ou
designe o corpo da mulher cis como o único corpo feminino possí-
vel. Me incomoda uma militância que insista em tratar o corpo da
mulher cis como norma e que tome esse corpo como base das suas
reivindicações. Minha militância questiona e questionará, sempre a
necessidade de especificação de um tipo de corpo como seu foco.
(Post publicado em 20 de agosto de 2013)

(7) A militância que visibiliza pessoas trans* não apaga a mulher cis.
A militância materna que se restringe a corpos de mulheres cis, ou
demandas exclusivas de mulheres cis, não me representa, porque
homens trans* engravidam, podem parir e amamentar. Existem mu-
lheres trans* e cis que não podem amamentar, engravidar ou parir.
Porque a parentagem e o cuidado não se restringem ao parto e a
amamentação. Porque não são essas ações biológicas que constro-
em e/ou determinam o vínculo parental. (Post publicado em 20 de
agosto de 2013)

Nos enunciados (6) e (7) o corpo é abordado como ação po-


lítica. A construção valorativa é marcada no enunciado (6) pela
inserção do discurso do outro, na relação dialógica de retomada
e oposição, ou seja, existe uma interlocução da autora com uma
outra fala representada por uma parte da militância. Ao anali-
sar a posição axiológica do discurso do outro, a autora delimita
o seu ponto de vista: critica de maneira categórica o exercício
da militância restrita à tipos de corpos e neste sentido, aponta
a contradição ideológica da prática de adotar o corpo cisgênero
como centro e base de reivindicações. No enunciado (7) a auto-
ra parte do conceito de maternidade como maneira de validar
seu posicionamento como militante na ressalva da inadequação
à concepção de maternidade atribuída apenas a normatividade
cisgênera e justifica: militância materna que se restringe a corpos
de mulheres cis, ou demandas exclusivas de mulheres cis: não me
representa, porque homens trans engravidam, podem parir e ama-
mentar. Existem mulheres trans e cis que não podem amamentar,
engravidar ou parir. Neste sentido, a blogueira recorre ao aspecto
valorativo da maternidade como legitimador do corpo cisgênero
para propor pensar numa identidade cisgênera constituída além
da fronteira sexista.
O debate sobre a construção de uma identidade feminina
centrada no dualismo de gênero aparece também na postagem
publicada no dia 21 de julho de 2016, com o título, O conceito de
cisgeneridade e o transfeminismo8. Entretanto a publicação aponta
um outro ponto de vista sobre o corpo.

(8) O conceito de cisgeneridade foi criado pelo ativismo trans


como uma forma de devolver o olhar e entender de outra forma
a posição social e política de pessoas “não-trans”, que até então eram
simplesmente definidas como “bio mulheres”, “bio homens”, ou como
“mulheres de verdade”, “homens de verdade”, “naturalmente mulheres”,
“naturalmente homens”. (Post publicado em 21 de julho de 2016)

(9) Essa definição [referida no enunciado 7] dava a entender que


pessoas cisgêneras seriam naturalmente e espontaneamente seu
próprio gênero — nascides já como são — enquanto nós, pessoas
trans, seríamos o efeito de uma artificialidade, de uma negação da
nossa “verdadeira natureza”. (Post publicado em 21 de julho de 2016)

É possível perceber que o uso das nomeações “bio mulheres”,


“bio homens”, “mulheres de verdade”, “homens de verdade”, “natu-
ralmente mulheres”, “naturalmente homens”, no enunciado 8, apon-
ta para um movimento discursivo de contestação. O sintagma
“que até então eram simplesmente definidas como” (8) que antecipa

8
https://blogueirasfeministas.com/2016/07/21/o-conceito-de-cisgenaridade-e-o-
-transfeminismo/
as nomeações, sugere a presença indireta de discursos outros.
Neste sentido, a utilização das aspas assinala uma tensão entre
posições ideológicas, na medida em que imprime nesse outro
discurso um tom depreciativo. O posicionamento é reiterado no
enunciado 9. Pelo ato de nomear-se como nós, pessoas trans, a
autora credita seu poder de fala e retoma a crítica sobre a artifi-
cialidade ligada à imagem do corpo transgênero. No enunciado
(8), o dialogismo aparece nas relações em que o sujeito em re-
lação de alteridade com um outro discurso, imprime o seu tom
valorativo de reelaboração ou reacentuação.

(10) Tudo isso, implica entendermos que pessoas cisgêneras são tão
artificialmente construídas quanto pessoas trans. Mas, os lugares
políticos dessas ficções e tecnologias são diferentes. É a partir desse
entendimento que falarmos de “mulheres com pênis”, “homens com
vagina” ganha sentido: não estamos buscando nos adequar aos seus
conceitos sobre o que é ser mulher ou homem, estamos buscando
transformar seus conceitos sobre o que significa ser “uma verdadei-
ra mulher” ou “um verdadeiro homem”, para entendermos que essa
verdade é algo que não existe para nenhuma de nós, a não ser no
espaço da construção política das nossas narrativas. (Post publicado
em 21 de julho de 2016)

No enunciado 10, o corpo é abordado a partir da noção de


artificialidade. A construção valorativa do enunciado parte do
pressuposto da inexistência de uma essência verdadeira, para
posteriormente, reivindicar a concepção de que todo corpo pos-
suirá em certo grau traços de artificialidade, porque as noções
de homem e mulher são escorregadias e a partir daí defender
a proposição de que se todos os corpos possuem traços de ar-
tificialidade, o limite que separa o corpo cisgênero e o corpo
transgênero é desfeito.

(11) Muito me espanta pessoas cis (em especial, feministas) acusa-


rem as pessoas trans de serem “criações artificiais” ao passo que os
corpos cis passam como transparentes. Se esquecem que todos os
corpos, incluindo os cis, são tão produtos de artifícios tecnológicos
quanto os corpos trans. (Post publicado em 29 de abril de 2015)

(12) A pergunta que fica é: o que faz dos corpos cis, corpos tidos
como transparentes, naturais? O que faz com que o corpo cis apa-
rente uma continuidade assombrosa entre o seu produto real e o
seu imaginário de corpo natural (como se o corpo cis que conhecês-
semos agora fosse uma espécie de extensão espontânea da própria
natureza)? (Post publicado em 29 de abril de 2015)

(13) Todos os corpos são produtos de uma cadeia complexa de re-


lações sociais que não podemos prever linearmente, tampouco cal-
cular. A descoberta das vacinas, a industrialização, a informatização,
medicamentos, etc. Todo o complexo social produz igualmente o
seu corpo e o meu. Você realmente acha que seu corpo, por não
sofrer determinadas sanções jurídicas e biomédicas sobre a transe-
xualidade, está acima de todo esse complexo social? Resposta… não,
não está. (Post publicado em 29 de abril de 2015)

O post do dia publicado em 29 de abril de 2015, intitulado


O que faz dos corpos cis naturais?9, coloca em pauta a discussão
sobre a estigmatização do corpo. No enunciado (11), que inicia
o post, as relações dialógicas podem ser observadas a partir da
interlocução direta com o discurso do outro. Diferentemente do
post anterior, essa relação aparece aqui de maneira explícita. A
blogueira inicia a argumentação reportando de maneira direta
um outro discurso: Muito me espanta pessoas cis (em especial,
feministas) acusarem as pessoas trans de serem “criações artificiais”
ao passo que os corpos cis passam como transparentes. O tom de
indignação explícito marca o confronto entre duas posições
ideológicas divergentes. Neste sentido, a autora assume a res-
ponsabilidade pela avaliação depreciativa desse outro discurso,
colocando em questão os corpos transparentes e artificiais. Em

https://blogueirasfeministas.com/2015/04/29/o-que-faz-dos-corpos-cis-naturais/
9
seguida, nos enunciados (12) e (13), a posição axiológica da auto-
ra é expressa no diálogo com um interlocutor. A utilização das
frases interrogativas como recurso retórico e do pronome “seu” e
“você” marca essa interlocução. Nesta relação, a autora marca o
seu posicionamento, colocando em questão a artificialidade dos
corpos na sociedade em que as sanções jurídicas e biomédicas
revestem independentemente todos os corpos contemporâneos.
No enunciado (14) a posição valorativa é apresentada com
maior evidência. O tom reivindicatório marca o enunciado, ao dar
ênfase ao processo de objetificação dos corpos imposto pela socie-
dade e propõe uma reflexão sobre o corpo transgênero. No enun-
ciado (15) a voz da resistência aparece como denúncia à transfobia.

(14) O que acontece aqui é uma objetificação específica de corpos e


identidades trans. Ao nos colocar na posição de objetos construídos
— ao passo que a cisgeneridade é posta de lado, como impensado
dessa construção social — nós somos destituídas de qualquer possi-
bilidade de agenciamento subjetivo, de tomada de consciência de si.
Somos meros produtos, não sujeitos que também interferem nesta
construção. (Post publicado em 29 de abril de 2015)

(15) Colocar pessoas trans como “meros produtos da sociedade pa-


triarcal” é a extensão do próprio discurso patriarcal que tira qualquer
possibilidade de constituição subjetiva e de resistência. É transfobia
também. (Post publicado em 29 de abril de 2015)

Considerações finais
Podemos dizer que as postagens analisadas problematizam
questões que nos últimos anos fomentam uma série de debates
no âmbito social e político e constitui um ponto para pensar a
questão da igualdade de gêneros. Os movimentos discursivos e
as nomeações utilizadas promovem uma produção de sentidos
que não apenas reconfiguram as formas de pensar o feminino,
como também, a maneira de pensar, o conceito de gênero e sua
relação com o corpo. É possível observar que as identidades de
gênero são constituídas a partir da desconstrução do pensamen-
to hegemônico que configura um único ethos para o feminino
e este argumento é materializado nas representações do corpo.
Vemos que os discursos revelam um ponto de vista de resistên-
cia ao corpo sexista e propõem um corpo relacional e político.
Desta forma, os posts analisados exemplificam algumas formas
de denúncia ao questionar os corpos normatizados, e de luta
ao propor outras formas de significar os corpos. É a partir do
momento em que as abordagens sobre o corpo convocam uma
reflexão em que a corporeidade não é algo dado, mas transitório,
que podemos pensar em identidades de gênero que abarquem
uma multiplicidade de sujeitos.

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CAPÍTULO 14 O DRAMA TRÁGICO
DE OSMAN LINS:
Alegoria e História na peça
Guerra do Cansa-Cavalo
Gilberto Figueiredo Martins (UNESP)

Para Angela Lins, porque os bons imprevistos também


acontecem.
Há, porém, em coisas as mais simples, projeções de ou-
tras que nem sempre descobrimos; refletem, muitas vezes,
claros segredos, que a nossa visão turva, pouco afeita a
transparências, não nos permite enxergar.
(Osman Lins, Guerra sem testemunhas1)
/…/ todo problema de forma, se tem densidade, está sem-
pre relacionado a uma concepção de mundo.
(Osman Lins, Guerra sem testemunhas)
O CAVALO DE TRÓIA — /…/ Sou um cavalo conservador.
Sou o Cavalo de Tróia! Quando me abriram, depois da úl-
tima guerra, eu tinha dentro de meu bojo um cavalinho de
Tróia — o tratado de Versalhes!
O CAVALO BRANCO DE NAPOLEÃO — E dentro dele o que
é que encontraram?
O CAVALO DE TRÓIA — O chanceler Hitler! /…/ Sou o único
cavalo da história! O meu verdadeiro nome é Tratado de
Paz. Apareço sempre no fim das guerras.
(Oswald de Andrade, O Homem e o Cavalo2)


1
LINS, 1974: 125.

2
ANDRADE, 1978: 153-154.
Um cavalo esquece o tempo
De cavalgar
E tudo é branco. Por dentro
De cada morto
Um silêncio cresce e finge
Um mesmo grito
De vida — esse grito aceso
Na própria chama
Em que se consome o sonho
De retornar.
(Elizabeth Hazin, Martu3)

V
encedor, em 1964, do “Prêmio Anchieta”, concedi-
do pela Comissão Estadual de Teatro de São Paulo,
o texto da peça Guerra do Cansa-Cavalo, de Osman
Lins (1924-1978), traz como epígrafe um pequeno tre-
cho do “Livro II” da Eneida, de Virgílio (século I a.C.), o capítulo
no qual Eneias narra o célebre episódio do cavalo de madeira
dado de presente pelos invasores gregos: “Surdos, cegos instan-
do, o monstro infausto / ah! no augusto recinto o colocamos”4.
A citação funciona como índice antecipatório do enredo e é a
primeira ocorrência de uma série de imagens que remetem à
ideia de haver sempre algo ou alguém que se esconde ou se dis-
farça, ludibriando visadas delirantes ou olhares menos atentos.
Afinal, graças ao expediente do embuço, à estratégia da simu-
lação ou da encenação teatralizada, os moradores do Engenho
Cansa-Cavalo recebem em casa o inimigo — acreditando ser ele


3
HAZIN, 2006: 81.
4
LINS, 1967: 5. (Neste estudo, passo a indicar, entre parênteses, no corpo do tex-
to, apenas o número da página desta edição da peça, publicada pela Editora Vozes).
Não há, nas duas edições consultadas, indicação de qual tradução da Eneida Os-
man Lins utilizou (ou se ele mesmo a efetuou). Numa recente publicação bilíngue,
aparece o trecho original da epopeia: “/.../ instamus tamen immemores caecique
furore / et monstrum infelix sacrata sistimus arce” (VIRGÍLIO, 2014: 152-3); e
também nela o mesmo excerto, em português: “Mas, esquecidos de tudo, o leva-
mos – cegueira incurável! - / e colocamos o monstro no próprio sacrário de Troia!”.
Já a versão adaptada para a prosa, da editora Cultrix (VERGÍLIO, 2007: 36), traz:
“Entretanto, nós prosseguíamos, sem nada ver, presa de furor cego, e colocamos o
monstro nefasto na cidadela consagrada”.
o padre que liderava uma procissão religiosa -, o senhor do En-
genho Timorante, de nome Drahomiro Marinho, cuja rivalidade
com eles se acentuara há pouco, justamente por ter sido seu
casamento interrompido e sua noiva raptada por Pedro Ivo de
Albuquerque Lins, herdeiro daquela primeira estirpe5. Como se
vê, o título e a epígrafe da peça remetem à afamada contenda da
Antiguidade, enquanto o entrecho arremeda a justificativa mais
romantizada usada para explicar o início da Guerra de Troia6:
o rapto de Helena de belos cabelos, cujo avatar é aqui Heloísa de
Barros Wanderley, filha de Coriolano, do Engenho Bom-Mirar.
Ao recuperar um motivo que serve de mote a duas das mais
importantes epopeias míticas da Antiguidade greco-latina —
três, se considerarmos o conteúdo da Odisseia como continuação
e desdobramento do que é narrado na épica guerreira Ilíada —, e
reformatá-lo, refundi-lo para o gênero dramático, Osman reali-
za, de pronto, uma opção importante: ocasiona um choque, um
curto-circuito entre os conceitos de fato ou verdade e os de versão
ou ponto de vista. Sim, pois não havendo na peça aquele narrador
único que detém o saber acabado sobre um passado inacessí-
vel, o “contar” (to tell) — próprio do épico — sofre um efeito
de presentificação no “mostrar” (to show) do teatro, a fim de se
encenarem perspectivas diferenciadas em conflito, por meio de
falas e ações de vários personagens (dezesseis, ao menos). Aliás,
como se sabe, essa fratura da voz responsável pela enunciação

5
No final do segundo ato, a simulação de um incêndio no canavial de Cansa-Ca-
valo também terá autoria atribuída a Drahomiro, com igual fito de armar literal-
mente uma cortina de fumaça para ele poder invadir sem resistência a propriedade
do rival. E, ainda, a fim de escapar ao resgate do noivo indesejado, Heloísa recebe
um disfarce de homem, vestindo as roupas de Pedro Ivo.
6
Vale lembrar que a epopeia de Virgílio serve igualmente como referência para
Osman escrever seu segundo romance. É do autor a “Confissão” memorialista e
metalinguística publicada em Marinheiro de primeira viagem: “Entregue, desde on-
tem, à revisão de O fiel e a pedra, essa tentativa de transposição, para o Nordeste
de 1936, da Eneida. Não propriamente uma transposição, uma vez que muitos dos
personagens e fatos apresentados têm origem na minha experiência. Mas a verdade
é que o romance, já iniciado, foi replanejado tendo em vista o poema de Virgílio.
/.../ Pois eu também tivera destruída minha Tróia, cujos muros pareciam inexpug-
náveis.” (LINS, 1980: 43)
vem sendo apontada pela fortuna crítica do autor pernambuca-
no como estratégia também da sua obra ficcional (digo dos ro-
mances, contos e demais “narrativas” em prosa). E a esta escolha
de pôr em cena ajusta-se outra, a de promover um movimento de
atualização dos temas, por meio da apropriação e acercamento
da matéria histórica brasileira7: o ambiente de discórdia civil
é agora o de uma “casa-grande de engenho, do Nordeste”, num
domingo, mais especificamente em 29 de setembro de 1940, dia
de São Miguel.
Entre a gesta dos míticos (in)sucessos de Eneias e o emba-
te ficcional na sobranceira propriedade de Fidêncio Cavalcanti
Lins — tendo ainda como pano de fundo histórico, embora “do
outro lado do mundo” (p. 27), a II Grande Guerra (referida aqui
como a “da Alemanha com a França”, invadida esta exatamente
naquele mesmo ano de 1940)8 -, interpõem-se os fatos verazes
das demandas pernambucanas contra a invasão dos holandeses,
trazidos à cena pela memória (seletiva e altaneira) do coronel do
engenho de Cansa-Cavalo:

7
Em outras contendas – não menos intestinas -, Osman Lins frequentemente
se entrincheirava no palco de luta contra os mercados editorial e teatral, propug-
nando pela necessária primazia dos textos e autores nacionais frente à sempre
reafirmada preeminência dos estrangeiros. Nos seus ensaios e entrevistas, como
no capítulo “O escritor e o teatro”, do volume Guerra sem testemunhas, trata do “de-
ver irrecusável e urgente” de ler e encenar a dramaturgia brasileira, “empenhada
em auscultar e interpretar o país”. E, também aqui, utiliza o exemplo mobilizado
na epígrafe da peça: “A História registra vários exemplos de culturas assimiladas
pelos invasores, como sucedeu com Roma em relação aos gregos; /.../ Quando, po-
rém, vemos indivíduos que, pelo gênero de atividade que desenvolvem – como os
diretores de cena e os empresários - /.../ entregarem-se alegremente a abrir nossos
portões a todos os cavalos de madeira abandonados em torno da cidade, a situação
torna-se alarmante”. Para concluir, exemplarmente, empunhando a arma que tem:
“Mas não se vai à guerra com hinos estranhos – e sim com as próprias canções, por
mais pobres que sejam” (LINS, 1974: 110 e 112).
8
A menção à II Guerra serve também para antecipar traços do caráter anti-he-
roico, individualista e covarde do descendente dos Albuquerque Lins, Pedro Ivo,
espécie de príncipe decaído. Sua própria mãe, Gertrudes (homônima da rainha de
Hamlet), ajuda a caracterizá-lo negativamente, como pouco afeito ao patriotismo e
às empreitadas altruístas: “Pedro Ivo diz que se o Brasil entrasse na guerra, ele sen-
tava praça, só porque marinheiro e soldado têm quantas mulheres querem” (LINS,
1967: 27).
FIDÊNCIO
/…/ No tempo dos holandeses, minha família já possuía terras. Meu tata-
ravô Belchior Bragança Cavalcanti morreu de trabuco na mão, no Monte
das Tabocas, defendendo seus canaviais contra a invasão dos gringos.
Estão aí os livros, que não me deixam mentir. (p. 18)
/…/ Olhe aqui, Pedro Ivo, a alma do ataque é a surpresa. Se lembre de
Filipe Camarão. De Henrique Dias! De meu tataravô Belchior Bragança.
Mas não morra. (p. 52) 9
Vai ser mesmo que os pernambucanos, no Monte das Tabocas, com os
holandeses. Eram os galegos querendo subir e os pernambucanos pas-
sando chumbo neles. Morria holandês feito passarinho. /…/ Não se es-
queça. Nós representamos a pátria, os cabras do Timorante representam
os hereges! (p. 63)
Pronto. Tudo providenciado. Agora, é esperar os holandeses. Quero ver
se ainda tenho pontaria. (p. 64)
Na posição que estamos, vai ser uma carnificina. Mesmo que no Monte
das Tabocas. /…/ Não foi quando os brasileiros deram nos holandeses,
em mil seiscentos e tanto? /…/ Sei é que essa batalha foi mais impor-
tante que a dos Guararapes. Meu avô sempre dizia isso. Nos Guararapes,
os brasileiros já surraram uns apanhados. Enquanto que no Monte das
Tabocas, os holandeses não tinham perdido aqui para ninguém. Fazia
bem uns quinze anos que mandavam chover em dia de sol quente, neste
Pernambuco velho. (p. 66)

A prepotência do velho coronel encarna uma visão da Histó-


ria como repetição, que repõe e estabiliza infindamente, tal qual
um destino, o sucesso dos vencedores. Os eventos inventariados
incessantemente em suas falas sustentam uma leitura mistifica-

9
A referida linhagem heroica não é nada modesta, não fosse justamente o con-
traste que com ela o comportamento de Pedro Ivo estabelece a todo instante. Filipe
Camarão e Henrique Dias atuaram diretamente nas batalhas de reconquista con-
tra os invasores holandeses, no século XVII (1645): o primeiro, um índio potiguar
convertido e batizado não por acaso na Igreja de São Miguel (cujo dia se comemo-
rava naquele ano de 1940, justamente na data da contenda entre os três senhores
de engenho da peça); o segundo, filho de escravos libertos, era Cavaleiro da Ordem
de Cristo e um futuro patrono do exército.
dora e mesmo mítica do passado, a qual será posta à prova, no
teste de realidade imposto pelas incertezas do presente histórico.
Esta, parece, é a principal demanda trazida à cena neste texto
dramático de Osman Lins. Disputam-se aqui não apenas poder e
terra, no sentido material dos termos; mas também outros domí-
nios e territórios, simbólicos, dentre os quais o direito de contar,
ressignificando-se as estórias dos tais livros de História mencio-
nados como prova de verdade pelo velho proprietário.
Na perspectiva de Fidêncio, um fato isolado, individual, de
âmbito familiar e patrimonial, ganha foros de conflito ancestral,
coletivo, religioso e gentilício: Drahomiro e seus capangas são
automaticamente identificados aos holandeses, à “Loja Maçôni-
ca” (p. 72) dos “protestantes’, “hereges”, pagãos e reformistas (p.
85), a serem naturalmente derrotados e expulsos pela proba tropa
católica de “bons cristãos” (p. 86) do Engenho Cansa-Cavalo, os
representantes da “pátria” (p. 63).
Se pela ótica interessada e distorcida do personagem o em-
bate é arbitrariamente investido do espírito cavaleiresco das
Cruzadas, da aura das lutas contrarreformistas e das memo-
ráveis contendas nativistas, o modelo de refrega que serve ao
dramaturgo parece vir mesmo é da cultura popular, sobretudo
da cavalhada10. Nas rubricas, por exemplo, o figurino de alguns
personagens é minuciosamente descrito: são roupas coloridas,
chapéus de variegados tipos e materiais, sapatos mais ou menos
gastos… E os adereços assumem função identificadora, similar à
dos ornatos das vestimentas dos praticantes do folguedo popu-
lar de origem ibérica: o mascate e ex-cangaceiro Rui Vilela traz
um lenço vermelho no bolso; Severino dos Santos, “emissário”
do “Capitão” Drahomiro Marinho, porta “um lenço na ponta de

10
Cf. o Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo (pp. 259-263), cava-
lhada é um desfile festivo que converge para o “Auto de Cristãos e Mouros”. Tendo
assistido a uma apresentação no Nordeste, no início da década de 1950, descreve
o folclorista: “Os cavaleiros, sempre em número par, vestem branco, e os prêmios
simbólicos são faixas de fazendas vistosas, na maioria azuis e encarnadas, cores que
dividem as duas alas” (p. 259). Nas cavalhadas, a cor vermelha identifica os comba-
tentes mouros (os encarnados); enquanto o azul distingue os cristãos católicos.
uma vara”; o negro João-João (parte do reforço aliado do Engenho
Bombarda, de Salustiano, vindo a pedido de Pedro Ivo) osten-
ta sua camisa azul-turquesa; Rosário, o capanga de tipo cigano
do Engenho Timorante, carrega um “lenço rubro no pescoço” e
“uma fita vermelha amarrada no tornozelo direito”; além disso,
este último personagem reativa o gesto de oferecer troféus às
damas, galanteria recorrente nos torneios medievais, encerrando
flores dentro da camisa, junto ao peito, como a que dá a Heloísa.
A opção pelo subalterno, pelo não hegemônico, é estrutu-
rante na peça. Assim, um personagem aparentemente secundá-
rio, periférico, praticante de um ofício modesto, é trazido para o
centro da trama, justamente para encarnar o contraponto ao po-
sicionamento soberano e supratemporal dos coronéis. Se Fidên-
cio Cavalcanti Lins reconta os episódios da história pernambu-
cana para legitimar o predestinado sucesso de suas empreitadas
de luta pela manutenção do poder absoluto, o mascate Antônio
Cabral Vilela os reatualiza, atento ao que neles sabe a mudança,
mobilizando-os como chaves para compreender o presente.
No lugar do enquadramento dos dominantes, os quais bus-
cam destacar o que se repete e se mantém na história dos ho-
mens para tão-somente a equiparar às leis férreas da natureza e
ao eterno retorno dos ciclos, o mercador nascido em Vitória de
Santo Antão exercita o ângulo que lhe permite ler os aconteci-
mentos ao rés do chão, distantes do pedestal alteado dos mitos11,
a fim de os compreender de modo dinâmico e secular, como
eventos instáveis e imprevisíveis do processo histórico. Em vez
da restauração continuada de um estado excepcional, fora do
tempo e do espaço, o dinamismo de uma tensão que pressupõe

11
Até mesmo uma espacialidade de exceção - a singular topografia da região -
é mobilizada com intenção mistificadora pelos senhores do engenho dos Lins: o
nome “Cansa-Cavalo” alude ao esforço necessário para se alcançar a propriedade,
isolada no alto de uma colina, como uma espécie de oásis de suposta estabilidade.
Cansado, depois de atingi-la carregando suas bolsas de mercadoria, o mascate Rui
Vilela afirma: “Nunca vi casa-grande num lugar assim, tão sobranceiro. Parece um
promontório. Um Adamastor. Mesmo pra quem vem montado, a subida até aqui é
dura”. E o herdeiro Pedro Ivo determina, categórico: “É subida pra homem” (p. 23).
descontinuidade, transformação e possibilidade de superação:
os dados do passado são para Antônio lances pregressos de uma
história de violência e dominação, que se revela e repõe rigoro-
samente como imanência no presente, podendo ser no entanto
alterada, inclusive por sujeitos como ele e Rui do Pajeú, seu par-
ceiro e admirador, aqueles que sempre têm “comido da banda
podre” (p. 34).
A presença da dupla de paladinos efetiva e ratifica o cruza-
mento das culturas erudita, popular e de massa na peça, visto
serem eles sucessores de uma longa linhagem, que perpassa a
novela de cavalaria medieval, o Siglo de Oro espanhol, a comme-
dia dell’arte italiana, assim como retomam a tradição circense
dos palhaços, as façanhas dos heróis dos folhetos de feira do
cordel nordestino e as variantes do bumba-meu-boi e, mesmo,
os duetos do cinema hollywoodiano e das histórias em quadri-
nhos, para dizer o mínimo… Antônio Cabral Vilela (“bem mais
alto que Rui”) é o Quixote redivivo, porém lúcido e atilado, an-
dante por ofício, “feito os cavaleiros de antes”, amante das estra-
das e que já viu o mar em uma curta viagem de navio, sendo
agora “um homem e tanto”, bastante “conhecido, por esse meio
de mundo”. Defensor dos oprimidos, lamenta não viger mais o
(mítico) corolário ético da “Cavalaria Andante”, pois se reconhe-
ce, melancolicamente, arauto resistente e deslocado dos valores
absolutos de Honra, Amor e Lealdade12, em um tempo (históri-
co) no qual tudo já se tornou relativo13:

Retomo, aqui, a tríade de características do cavaleiro medieval formulada


12

exemplarmente por Hegel, em sua Estética (Capítulo Segundo, “A Cavalaria”, da


Terceira Seção, “A Arte Romântica”).
13
Conforme A Teoria do Romance, onde Georg Lukács comenta a obra-prima
de Cervantes: “/.../ a mais autêntica e heroica evidência subjetiva não correspon-
de obrigatoriamente à realidade. É a profunda melancolia do curso histórico, do
transcorrer do tempo, que se expressa no fato de as atitudes eternas e os conteúdos
eternos perderem o sentido uma vez passado seu tempo; de o tempo poder passar
por cima do que é eterno. É a primeira grande batalha da interioridade contra a
infâmia prosaica da vida exterior /.../”. (LUKÁCS, 2000: 107).
A figura de Drahomiro Marinho, retrato do novo proprietário, sem origem nobre ou
herança de família (sobre ele diz Gertrudes que “veio do nada. O pai dele, dizem
ANTÔNIO
Não sou um cavaleiro. Precisava, pra isso, umas cerimônias que não
existem mais. Acabou-se a Cavalaria Andante. Mas eu queria ser feito
eles. O Cavaleiro Andante defendia os fracos. /…/ Um dia, há de voltar
a Cavalaria Andante. Quero estar preparado para ser sagrado um cava-
leiro. (p. 40-41)

Assim como seus idealizados antecessores, Antônio é o ho-


mem ético e honrado, a quem “não fica bem fugir” do mal e
muito menos se corromper: “O senhor não pode me comprar.
Não sou bicho”; “Pra mim, o que vale é viver como homem. Um
homem não se vende.”, dirá a Coriolano (p. 123). Quando é cha-
mado de “cabra” por Drahomiro, oponente armado, também re-
age: “Não me chame de cabra. /…/ Me trate como gente” (p. 111);
“O senhor reduziu a uma coisa triste o filho desse velho. Quero
dizer-lhe uma coisa: não vai conseguir fazer o mesmo comigo.”
(p. 121); “O que lhe sustenta em pé é a sua prepotência. Tirando
isto, não lhe fica mais nada. Mas o senhor, pra mim, está vazio.
Sua prepotência não pode comigo. /…/ Continuo homem e com
brio, ainda que o senhor me arranque o lombo. Só deixo de ser
homem, quando digo sim à humilhação. Mas ninguém arranca
meu nome de homem. Somente eu podia fazer isso. Mas nunca
fiz, nem faço.” (p. 122).

que roubava cavalos” – p. 14; Fidêncio é ainda mais direto: “/.../ valemos mais do
que você, que não tem raça” – p. 95), é um tipo paradigmático para Osman retratar
um mundo onde o único valor é o dinheiro: tendo a noiva raptada e, portanto, sua
honra posta em xeque, promete entretanto não se vingar se o dono de Cansa-Cavalo
passar para o nome dele a maior parte de suas chãs de várzea; e, pelo que se conta,
antes, já havia “passado nos cobres” um inimigo seu, “por um conto de réis” (p. 72).
É dele mesmo a cínica exposição de princípios: “Fui ofendido e venci a contenda.
Tenho todos os direitos, coronel. Os direitos de quem foi prejudicado e os direitos de
quem está de cima. Mas nunca, na vida, abusei de poderes: dou sempre uma opor-
tunidade. /.../ [E para Pedro Ivo] troco você por um pedaço de terra.” (p. 96). Final-
mente, para o dono do Timorante, os “cabedais” que Heloísa possui também fazem
“parte da pessoa”; por isso, deprecia Marisaura, dizendo-lhe: “Não se pode querer
alguém como a senhora, um pobre diabo que não faz sombra no chão” (p. 97). E con-
clui: “Dinheiro e terras não cheiram a podridão. O que cheira a podre é a pobreza.”
(p. 102). Mas, lembremos: o coronel permitirá que o filho seja torturado até a morte,
como Heitor decaído, mas não abre mão da melhor parte de suas herdades.
Além disso, “diz que nasceu pra uma” única mulher, cuja
“beleza imortal” deve ser por ele cultuada, inclusive retorica-
mente (p. 61). Finalmente, o mascate-pintor é leal aos santos
valedores da Cavalaria, São Jorge e São Miguel, afirmando sobre
este último: “Não podemos deixar nosso patrono ser hostilizado”
(p. 41); e “Temos os retratos deles nas bruacas” (p. 50). Entretan-
to, Antônio não ultrapassa o limite da automi(s)tificação: “Você
não me conhece, Rui. Pensa que sou grande, um santo. Mas sou
cheio de falhas e pecados. Um homem” (p. 54); “Não sou juiz do
mundo.” (p. 121).
São apenas alguns entre outros tantos exemplos que mos-
tram a vinculação de seus atos e falas aos comportamentos e
valores dos cavaleiros que tanto admira. É por isso que a con-
clusão produzida pelo filósofo alemão parece tão adequada para
compreender o personagem de Osman:

Quer se trate da honra, quer do amor, quer da lealdade, assiste-se


sempre à afirmação da independência do sujeito, às manifestações
da vida interior que não cessa de se ampliar até abranger os inte-
resses mais elevados e mais ricos, nas quais realiza a conciliação
consigo mesma (HEGEL, op. cit., p. 320).

Antes de sair da casa, ao apresentar e comentar seu despro-


porcional cartão de visita (“um palmo de largura”), o mascate
manifesta o desejo de ter nele estampado o personagem cer-
vantino, finalmente reconhecido — quase quatro séculos depois
— como membro da estirpe de protagonistas das tantas novelas
lidas pelo Cavaleiro da Triste Figura:

Queria que ele tivesse um retrato do maior cavaleiro que já houve: en-
frentou até os moinhos de vento. Na Holanda. (p. 44)14

14
E, com isso, também retorna ao texto a menção à pátria do invasor histórico do
território pernambucano... É recorrente, ainda, no universo de Osman, esta fusão
entre o ficcional e o histórico: aqui, um personagem teatral refere-se ao retrato de
outro, romanesco, como se reais e históricos ambos fossem.
E esta propensão de Antônio à representação pictórica, à
linguagem figural, talvez se deva a outro de seus ofícios: o de
pintor. Informa seu escudeiro, em diálogo com a dona da casa:

RUI
/…/ [Antônio] Faz figuras. Pinta igrejas. A Fortaleza, a Luxúria, a Prima-
vera, santos. A Virgem Maria, as potestades celestes. O ano passado, em
Nazaré da Mata, fez no altar-mor da Igreja um Dilúvio universal que é
uma beleza. Vem gente de longe, pra ver a Arca de Noé, com a bandeira
brasileira no mastro. Sabe o que ele fez, pra desenhar as águas do dilú-
vio? Viu o mar! (p. 24-25)

A temática do campo religioso católico é configurada de


forma alegorizada, assim como a arte medieval — a pictórica e
a teatral, por exemplo — fazia encarnar materialmente, perso-
nificados, valores e instituições, pecados e virtudes, mártires e
santos, sempre dignificados na linguagem escrita pela letra mai-
úscula inicial: “a Fortaleza, a Luxúria, a Primavera”… Contudo,
o mencionado movimento de atualização e ancoragem do dado
mítico na facticidade do presente e no chão histórico local rea-
parece nos procedimentos do artista-mercador: para represen-
tar, dentro de uma igreja pernambucana, o “Dilúvio universal”,
o pintor recupera a memória que guardou da imensidão visível
do oceano; enquanto a salvadora, posto que seletiva, Arca de
Noé (remodelada) traz no mastro o símbolo nacional, diferen-
ciando-se da precedente bíblica.
Nas epopeias greco-latinas referidas aqui, por conta da epí-
grafe da peça, é manifesto e determinante o procedimento da
écfrase — conceito caro aos estudos interartes15 -, como recurso

Ver, especialmente, o livro de GOMES (2015) e o artigo de Claus Clüver, “Es-


15

tudos Interartes – Conceitos, termos, objetivos”, publicado no segundo número da


revista Literatura e Sociedade, da FFLCH da USP (1997: 37-55). No texto, o professor
comenta exemplos de textos literários nos quais um objeto artístico (de um sistema
não-verbal) aparece destacadamente descrito, em um exercício de “verbalização da
arte visual”. Daí, o especialista passa a ilustrar e ampliar o conceito de “ekphrasis”,
a partir de sua aparição inicial em escritos de Leo Spitzer (em 1955): “A ekphrasis
estilístico. Na Ilíada, por exemplo, o escudo de Aquiles é deta-
lhadamente descrito; na Eneida, é a vez das armas de Eneias:

/…/ a écfrase foi imitada por praticamente todo poeta épico da Antigui-
dade e até por poetas de outros gêneros. A écfrase difere da mera descri-
ção, porque, primeiro, sempre incide num artefato (uma pintura parietal,
um escudo, um portão etc.), e, segundo, porque o caráter estático da
imagem no objeto maravilhosamente se transforma em movimento, em
ação que parece transbordar os limites do objeto: a écfrase são assim os
“efeitos especiais” de um poema.16

No texto de Osman, tal expediente ganha contornos e efei-


tos de miniaturização alegorizante; sobretudo numa cena do pri-
meiro ato na qual Antônio conta à família de Pedro Ivo sobre a
prenda que oferecera há pouco a Heloísa, antes da cerimônia de
casamento — logo depois interrompida — a ocorrer nas terras
do Bom-Mirar:

ANTÔNIO
/…/ Dei a ela um presente: um selo do Japão e um da China. /…/ São
coisas de tão longe! De tudo o que possuo, era o que eu prezava mais. O
do Japão é verde, com um vulcão e uma árvore. O da China é pequeno;
representa um dragão. E o selo da China, olhando contra a luz, a gente
vê assim como duas formas, uma voltada pra baixo, outra pra cima, e as
duas se completam. Representam o homem e a mulher, formando um Ó.
Um todo. (p. 30-31)

A racionalidade figural de Antônio permite-lhe intuir (claro


que graças à percuciência do autor real do texto) essa proprie-

é uma forma de reescrita e abrange práticas como a descrição de uma estátua ou


de uma catedral num livro de história da arte, a (re)criação de um concerto para
piano ou de um balé em um romance, a resenha detalhada de uma ópera ou uma
produção teatral, ou ainda a apresentação verbal de uma litografia no catálogo de
um leilão /.../” (p. 42).
Do prefácio de João Angelo Oliva Neto, “Breve anatomia de um clássico”, para
16

a recente edição de VIRGÍLIO (2014: 19-20).


dade de o micro especular o macro, e de ser possível discernir
o remoto e se acercar do distante sempre que atuante estiver
a imperiosa perícia do intérprete. Na cena, o personagem, por
meio de analogias, reativa a fermentação semântica potencial-
mente inscrita na forma hieroglífica das estampilhas orientais e
quer ver os emblemas para além (e/ou aquém) do que está neles
manifesto, aparente, traçado ou sedimentado, como significação
literal e fixa; para tanto, traduz e comenta, inquirindo e eluci-
dando indicativamente o que se oculta e pode assomar, sempre
ressignificado, a cada movimento de aproximação. O olhar à
contraluz, enviesado e oblíquo, pesquisa para produzir sentido,
em discrepância com a imemorial credulidade dos embotados
troianos17… Daí a relevância e valia que esse homem atribui aos
diminutos objetos. Não à toa, dentro da estrutura geral da obra,
esse detalhe retornará com foro de importante chave de leitura.
Se o personagem ensinara Heloísa a ver o selo para além da
mera aparência, igualmente, o dramaturgo indicia — figurando-
-a — a necessidade de o leitor/espectador fitar o episódio apa-
rentemente isolado e mínimo como ativador de outros sentidos
somente atribuíveis com a leitura integral da peça18.
No segundo ato, Antônio reencontra Heloísa (“ente deli-
cado”, “de muito sumo”), agora já raptada por Pedro Ivo e seu
bando. O trecho a seguir é longo, porém exemplifica bem o pro-
cedimento retórico de chamar a atenção para o detalhe e, sobre-
tudo, para o próprio processo interpretativo, demandado para a
recepção da peça:

HELOÍSA (tomando o copo)


Passei parte da noite olhando os selos que o senhor me deu. Botei, não
sei quantas vezes, o dragão contra a luz do candeeiro. É bem pensado,

Antes mesmo de levar para dentro dos muros o gigantesco cavalo, os troianos
17

interpretaram erroneamente o castigo sofrido por Laocoonte como punição por


não aceitarem o presente de grego.
Como vimos, do mesmo modo que a epígrafe já contém, em semente, o núcleo
18

dramático que o decorrer do drama fará brotar.


aquilo do Ó. /…/ Também é muito bonito o selo do Japão. A montanha
branca. Aquela árvore. Queria estar lá.
ANTÔNIO
Em toda parte há maldade. Aquele monte branco é um vulcão.
HELOÍSA
Não digo que quisesse estar em outras terras. Queria estar no selo; de-
baixo daquela árvore.
ANTÔNIO
Não queira estar num selo, dona Heloísa. (Mais concentrado). A senhora
queria estar num selo ontem?
HELOÍSA (com vivacidade)
Não.
/…/
ANTÔNIO
Pois eu, ontem ou hoje, quero estar na vida. Qualquer dia, mesmo sujeito
à morte. (p. 62-63)

Se, no primeiro momento, tendera a conferir um sentido


mais restrito a um dos selos — o chinês, justamente aquele no
qual, entretanto, vê camadas de imagens sobrepostas -, à ma-
neira de um decifrador de símbolos (“Representam o homem e
a mulher, formando um Ó. Um todo.”), na cena posterior, Antô-
nio já se mostra mais afeito à interpretação alegórica, atualizan-
do e ampliando o seu entendimento do cromo verde japonês, a
fim de ancorá-lo na situação presente, atribuindo-lhe dimensão
pragmática, desvendando o movimento oculto na estaticidade do
desenho, distinguindo a potência do vulcão escondido sob a pla-
cidez do monte alvo19. No excerto, curiosa também é a operação
expressiva efetuada pelo autor ao fazer Heloísa afirmar ter não o
desejo (romântico) de se evadir numa terra distante, o que pode-

Aqui, novamente, a ocorrência de uma imagem que se liga semanticamente


19

àquela do cavalo de Tróia e à do inimigo que se esconde sob a pele de padre. É


preciso lembrar que as origens de Antônio também o ligam aos antecedentes ré-
gios: tal como ocorre com Heloísa, a mãe do mascate fora raptada pelo noivo. E,
recorrendo à forma espiralada da história dentro da história, Osman Lins põe seu
personagem a relatar, epicamente (à maneira do teatro brechtiano), o episódio do
sequestro de uma imagem de Ana Bolena em Pernambuco.
ria ser facilmente sugerido pelas estampas ortivas, mas figurar
na própria gravura, desaparecer como humana para habitar, na
condição de imagem e representação, o selo mesmo. A comple-
xidade desse anelo servirá como deixa para o personagem qui-
xotesco reafirmar sua adesão à vida e sua concepção avessa à
ideia de submissão passiva ao destino ou à arbitrariedade dos
poderosos. Mesmo assumindo o tempo histórico como trajetória
irreversível rumo à ruína e à caveira20, ele o prefere à estagnação
estabilizadora da paisagem e do retrato21. Já Heloísa consegue,
afinal, figurar não nos selos, mas na peça teatral, microcosmo
representativo e em movimento que envia — feito a constelação
macunaímica — mensagens contínuas para o mundo presente…
A montanha, cuja imagem comumente remete às ideias de
estabilidade e permanência, guarda não obstante uma potencia-
lidade de erupção e manifestação que a dinamiza, mas também
a vincula à “maldade” que está “em toda parte”, sempre pronta a
se re-velar22. Tal como o dragão, do outro selo, que guarda uma

20
Conforme BENJAMIN (2011).
21
No universo ético e estético de Antônio, a Experiência sobrepõe-se ao Desti-
no. Confirma-o o conselho categórico com que confronta o discurso ressentido da
agregada Marisaura Pereira, a qual diz preferir estar morta, para se ver reduzida,
como seus pais, a “um nome numa cruz” (note-se, aliás, a proximidade disso com
a vontade de Heloísa de ocupar o selo): “Não existe essa história de mulher que
veio para ser homem, nem de homem que veio para ser anjo. Se a vida que leva
desagrada, faça outra.” (p. 35). O pintor alegorista constantemente sobreporá a
Vontade ao Destino, o livre arbítrio como modo de subjetivação e protagonismo
inconformista. Daí a réplica que dá a seu companheiro Rui, quando este quer sair
de Cansa-Cavalo antes que se efetive o duelo final entre os senhores rivais: “RUI
– Já ouvi, muitas vezes, falar no destino. Mas nunca eu tinha visto ele de frente.
Agora, vejo. É o destino que está lhe prendendo. / ANTÔNIO – Sou eu que quero
ficar.” (p. 54); para depois afirmar sobre seu estado pós-peleja: “Parte como Deus
manda. E, se não me engano, parte como eu faço.” (p. 61).
Já Pedro Ivo segue as sendas do pai, tentando naturalizar privilégios de classe e
gênero para obter quem deseja: “Pense que casar comigo é seu destino. Foi o desti-
no, Heloísa /.../”. Em contrapartida, instado pela moça a opinar, assim se pronuncia
Antônio: “/.../ é certo que, do destino, a gente só tem o barro. Ninguém encontra
parede levantada. É preciso cavar, cozinhar os tijolos, levantar as paredes. /.../ As
coisas são ariscas, não caem em nossa mão.” (p. 81-82).
Em certo momento, Antônio reflete, preocupado: “Joguei uma semente perigo-
22

sa, Rui. Falei demais. Por que, de vez em quando, desgoverno a língua? Por que
soltei meu demônio?” (p. 43); “Tenho de enfrentar o mal que liberei.” (p. 52).
identidade ligada ao demoníaco (e à onipotência dos poderosos,
a ser vencida justamente pelas entidades guerreiras de Miguel
e Jorge, santos homenageados na procissão e na peça), sem dei-
xar de invocar, outrossim, a união perfeita. O que importa é
sublinhar a visada de Antônio — que preza e sobrevaloriza os
selos como uma espécie de amuleto —, a reconhecer e garantir a
reversibilidade contínua dos significados das imagens, as quais
podem ser e querer dizer uma coisa e outra, até simultanea-
mente, em permanente atividade e reafirmada ambivalência, na
esteira da definição benjaminiana de alegoria (em oposição à
fixidez do símbolo23).
O dinamismo produtivo, aliás, que parece fazer romper a
integridade do Ó circular e fechado, imantando-o, antes, da ci-
nesia expansiva própria à voluta (tão cara a Osman), mostra-se
à luz, quando no perfil do dragão permite-se ver o mesmo talhe
do yin-yang taoísta: “a gente vê assim como duas formas, uma
voltada pra baixo, outra pra cima, e as duas se completam”24.
Como se sabe, tal signo chinês sinaliza justamente a comple-
mentaridade dos contrários tanto quanto a transformação con-
tínua25, traduzindo figurativamente a noção de que nada existe

23
Cf. BENJAMIN, op. cit..
24
Trecho da peça já citado, da pág. 31. A similaridade entre o signo taoísta (e
também cabalístico) do Yin-Yang e a trajetória helicoidal será depois reafirmada
em uma fala de Antônio: “Quero estar preparado para ser sagrado um cavaleiro.
Pra isso, na minha casa, armei na cumeeira um cata-vento, coisa que no tempo de
antes só os cavaleiros tinham o direito de fazer.” (p. 41, com grifo meu). Outra mar-
ca de distinção portada por este avatar de cavaleiro é o estribo de ouro que ganhara
da falecida Maria Úrsula, adereço teatral com função importante no desfecho da
trama, tal como nos dramas barrocos estudados por Walter Benjamin e nos me-
lodramas e folhetins que até hoje têm lugar garantido na preferência de leitores e
espectadores brasileiros.
25
O Yin-Yang é representado como “um círculo dividido em duas metades iguais
por uma linha sinuosa; uma parte preta (yin), outra branca (yang), em que é pos-
sível observar que o comprimento da separação mediana é igual à da semicircun-
ferência exterior; que o contorno de cada metade yin e yang é, portanto, igual ao
perímetro total da figura. /.../ ainda é preciso observar que a metade yin contém
um ponto yang e a metade yang um ponto yin, sinal da interdependência das duas
determinações, vestígio da luz na escuridão e da escuridão na luz”. (Cf. o Dicio-
nário de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, da editora José Olympio,
em estado puro e de que qualquer juízo pode ser visto como seu
oposto quando considerado a partir de outro ponto de vista26.
Exatamente, já foi afirmado há pouco, o que ocorre com a fun-
ção contrapontística das falas e ações de Antônio frente ao time
de personagens poderosos da peça.
A luta de classes não se interrompe, mas ganha diferentes
matizes, no embate de ideias do pintor-mascate com Marisau-
ra, a ressentida agregada do engenho Cansa-Cavalo. Humilhada
constantemente por sua origem e sobrenome comuns27, solteira
e “sem cabedal”, dependente e inconformada, vive de favor, “às
expensas de parentes”, e é dela o papel de intriguista na famí-
lia de latifundiários. Vinga-se delatando, tendo sempre “alguma
coisa de atravessado para dizer” (p. 13), presa à má infinitude
do movimento centrípeto de retorno ao mesmo ponto28. É mais
uma vez a precisão imagética do discurso certeiro de Antônio

p. 968-969). O yin remete à presença de nuvens, ao tempo encoberto, ao aspecto


obscuro de todas as coisas; é o terrestre, o feminino, o passivo e o intuitivo, a Lua,
o número par. Já yang, é o Sol que se eleva acima do horizonte, a colina ensolarada
de um vale, o aspecto luminoso, celeste, racional, masculino e ímpar. O conjunto
expressa, assim, a ordenação e totalidade do mundo e do espírito: “um todo”, na
fórmula sintética de Antônio.
26
Como de costume, as falas aparentemente simples e localizadas dos persona-
gens corporificam exemplarmente o embate encenado por Osman Lins na inte-
gralidade de sua peça. Enquanto Pedro Ivo, herdeiro decaído de uma soberania
fincada, recorre à autoafirmação excelsa pela via da tautologia divinal e glorifi-
cadora – “Sou quem sou!” -, Rui, que deixara de ser pistoleiro e matador, conver-
tido agora à moralidade virtuosa, porém desestabilizadora e satânica de Antônio,
mostra que nada é estático e tudo cambia: “Não sou mais o que fui /../ Hoje sou
de paz.” (p. 35).
Nas cenas iniciais, Marisaura ouve de Pedro Ivo, por exemplo: “É o sangue
27

do seu pai, aquele vagabundo, que se revolta em você./.../ Um sujeito que passou
a vida toda vendendo bois – e até bodes – para o matadouro!” (p. 14); depois, em
meio a uma discussão, será chamada por ele de “vaca” (p. 48); sobre seu pai e ela,
pronuncia-se sua tia Gertrudes: “Não tinha nome. Era um Pereira qualquer. Mas
não se pode dizer que fosse mau. /.../ Se seu pai houvesse posto o Lins no seu nome,
como Fidêncio queria, a coisa era outra. Você não vivia comendo o nosso pão e
revoltada, em casa, contra a gente. Feito uma inimiga.” (p. 14-15).
28
Afinal, como lembra a senhora de Cansa-Cavalo, referindo-se a si mesma, por-
que submetida desde sempre aos caprichos despóticos de seu marido infiel: “Má-
goas não envelhecem. As minhas vão todas para a cova comigo: novas como no dia
em que nasceram” (p. 19); “/.../ Eu vou morrer de velha e nunca soube o que foi um
instante de beleza.” (p. 128).
que o dramaturgo mobiliza para definir o comportamento da
personagem29, identificando-o à voragem turbilhonante e auto-
fágica do redemoinho:

ANTÔNIO
A senhora está nadando num fojo.
MARISAURA
Movo-me bem nessas águas. (p. 34) /…/
ANTÔNIO
A senhora se parece com um bicho morto de fome, que engolisse a lín-
gua. Como é que a gente pode ganhar os ouros da vida, se é o coração
que é feito pra isso, e a senhora rói o coração? (p. 38)

O sentido da trajetória de Marisaura é, portanto, oposto ao


da abertura do oceano (“um acaba-nunca”) e das muitas veredas
palmilhadas por Antônio (“Estrada não tem dono.” — p. 118), ele
que uma vez lera no Almanaque do Pensamento30 a frase que cer-
tamente poderia lhe servir de emblema31: “As estradas da vida
estão abertas”32 (p. 38).
Embora haja, da parte dos forasteiros, referências eventu-
ais a supostas aparições espectrais e outras assombrações33, não
existe para os homens do Engenho Cansa-Cavalo espaço para o
transcendente: os padres e seus ritos são desprezados por Fidên-

Em outro momento, afirma Antônio: “Não sei mais do que os outros homens.
29

Mas às vezes qualquer um pode ter dessas clarezas.” (p. 37).


Espécie de guia astrológico e de variedades cuja primeira edição brasileira foi
30

publicada em 1912.
Walter BENJAMIN (op. cit., p. 212 e ss.) refere-se a determinadas passagens dos
31

dramas trágicos do Barroco alemão e espanhol cuja formulação aproxima-se à das


máximas alegóricas apostas em faixas escritas nas pinturas antigas, à maneira dos
balões de fala das atuais histórias em quadrinhos.
Uma das últimas falas que Antônio dirige a Heloísa é: “Pode ser que um dia
32

a senhora resolva fazer uma viagem grande e mudar a sua vida. Queria que fosse
com um estribo assim. Os cavaleiros andantes usavam estribos de ouro.” (p. 119).
33
Antônio – cujo imaginário, como se viu, é tomado pelo universo da cavalaria
medieval – afirma que, na primeira vez em que viu Maria Úrsula, ficou tão impres-
sionado que às vezes pensava “se não foi uma aparição de Oriana, a noiva de Amadis
de Gaula”; “não sei por que, pensei que era uma assombração e me benzi” (p. 112).
cio, para quem “essa história de inferno e céu é embromação”
(p. 39); seus capangas entram “na igreja como uns possessos,
com cavalo e tudo”, dando “tiros nos santos” (p. 60); já Pedro Ivo
afirma não acreditar “em almas do outro mundo” e escarnece —
“Quero saber de santo?!” (p. 42).
À retórica de vassalagem à mulher idealizada que Antônio
lhe dedica, Heloísa responde com a sapiência desencantada de
que até a “beleza imortal” termina em ruína:

Não entendo o senhor. Pensa na mulher como num passarinho, que mor-
re com a beleza da plumagem. Mas é loucura. Encanto da mulher, nada
existe sobre a terra de menos imortal. /…/ Todas nós acabamos masti-
gadas sem pena pelo tempo. /…/ Isso são poesias. Nenhuma verdade.
(p. 61-62)

Nisso, o discurso da herdeira de Coriolano de Barros Wan-


derley vai ao encontro da iconoclastia profanadora e materialis-
ta de seu quase-sogro34, o qual assim se refere ao próprio tatara-
vô: “A caveira de Belchior Bragança Cavalcanti, se ainda existe,
hoje vai dar risada.” (p. 64). E é o proprietário mesmo quem
traça o retrato do ambiente, com ironia quase visionária sobre o
cenário de terra devastada a se erguer em breve: “Este engenho
está parecendo é um cemitério. /…/ Toca aí uma coisinha, pra
animar os defuntos.” (p. 49-50). Sem saber, acaba por antecipar
o desfecho da contenda e, ao mesmo tempo, retomar, embora

34
No mais, prevalece o rigor hierárquico da casa patriarcal na relação desigual
entre os quase-futuros-parentes: “HELOÍSA – Eu preferia ir. / FIDÊNCIO – Você
aqui não tem voz, menina.” (p. 69). O desprestígio histórico das mulheres nas famí-
lias senhoriais já aparecera figurado no trato do “coronel” sexagenário com as per-
sonagens Gertrudes (deixada sozinha por Fidêncio na noite do casamento, choran-
do em seus “lençóis de linho”, enquanto ele “foi meter-se na cama suja das negras”
– p. 19) e Marisaura, a quem aliás esbofeteia em cena (“Essa minha sobrinha não
passa duma cachorra. /.../ É pra isso que há seis anos eu lhe dou de comer. Mas que
é que se pode esperar da filha dum homem chamado Luiz Pereira e que, quando
registrou a criatura no cartório, não lhe pôs nem o nome da mulher? E minha irmã,
quando deixou de se casar com gente, pra querer um vendedor de bode chamado
Luíz Pereira, também já estava degenerada. /.../ Sua vagabunda! Fim de raça./.../
Puta!” - p. 99-100).
em tom jocoso, a lamentosa canção com que se abre a peça,
na voz de Gertrudes, unindo-se as duas pontas do drama: “/…/
o filho que me resta / vive andando atrás da morte” (p. 10)35.
Afinal, a sabedoria materna avaliava coerentemente a relação
entre o porvir da família e a configuração violenta da sociedade
brasileira: “Sei bem quem é a noiva. Meu filho Pedro Ivo vem
com a morte nos braços.”
A morte, a caveira, a ruína — “Isso é o que há de certo na
vida” (p. 55). O “orgulho apodrecido” (p. 120), o corpo surrado
e despedaçado (“sparagmós”), as covas abertas, o esvaziamento
do humano e sua reificação, os tons expressionistas do “rictus
de dor” (“páthos”), o conflito generalizado (“agón”), o reconhe-
cimento do excesso e do desperdício que levam à derrocada
(“anagnorisis”36): tudo remete ao território do trágico. Na peça de
Osman Lins, os campos conceituais e imagéticos da Antiguida-
de greco-latina e do Barroco europeu sobrepõem-se à atualidade
do estado de exceção recém-instalado pelo golpe civil-militar de
1964, trazendo à cena a formação violenta da sociedade brasilei-
ra e a dificuldade (ou impossibilidade) de sua superação. A deca-
dência dos valores “de tradição” (p. 129) e de uma forma de vida
que agoniza, resultado dos movimentos da História37, é a nova

35
Cego pela presunção da vitória, o orgulhoso e egoísta Fidêncio Cavalcanti pa-
rece não temer a iminente morte sacrificial do filho. Festejando precipitadamente
o resultado nefasto da guerra, manda tocar na sanfona o Hino Nacional, para que
todos... dancem! – “O Hino Nacional é o Hino Nacional. Fala nas grandezas da
pátria! /.../ Nós, os brasileiros, tocamos o Hino Nacional. E eles, os hereges, o que é
que vão tocar? Hein? Já sei! O ofício dos defuntos.” (p. 84-85).
36
Conforme a tipologia de Northrop Frye acerca do mito da procura do herói trá-
gico. O personagem de prenome shakespeariano, Coriolano de Barros Wanderley,
pai de Heloísa e dono do Engenho Bom-Mirar, aparece em cena ao final, no papel de
mediador, para racionalizar e decretar: “CORIOLANO - /.../ Acho que a minha idade
e a minha posição dão-me autoridade para falar em nome de meu futuro genro. /.../
/ DRAHOMIRO – A afronta que nós todos sofremos pede punição, Coronel. / CO-
RIOLANO – Não tem de ser, forçosamente, a morte.” (p. 106-107); “Já houve mortes
demais” (p. 126). No comportamento de Antônio, que parte ao final com sua filha
Heloísa (desfecho, aliás, semelhante ao da peça Lisbela e o prisioneiro), o coronel reco-
nhece o bom equilíbrio: “O senhor é vivido. Sabe dosar cautela e afoiteza.” (p. 127).
Ao final da peça, na última página do livro ou na derradeira cena, “a critério
37

do diretor”, o personagem Rui Vilela reaparecerá, “todo de branco”, já “em meio


fantasmagoria a assombrar a necrópole sobranceira onde jaz,
em avançado estado de decomposição, o Adamastor insepulto:

CORIOLANO
Pois é, Fidêncio. Toda a nossa raça está no fim. O poder, o nome, a prata
nos estribos, nas fivelas do freio e no rabicho da sela, as grandes terras
e até o nosso orgulho. Tudo está no fim.
FIDÊNCIO
É isso mesmo, Coriolano. É isso mesmo. São as voltas do mundo. Adeus.
(p. 128)

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VERGÍLIO. Eneida. Trad. de Tassilo Orpheu Spalding. São Paulo: Cultrix, 2007.
VIRGILIO. Eneida. Trad. de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2014.
CAPÍTULO 15 EFEITOS DO DISCURSO
SOBRE O PALCO:
Dramaturgia e
representação alegórica
Uma homenagem a Dias Gomes1
Robson Teles Gomes (UNICAP)

1. Produção dramatúrgica brasileira: aspectos históricos


O teatro é a arte por excelência da luta, do amor e da pai-
xão do homem.
(Dias Gomes)
O homem engajado permanece um homem livre, isto é, que
se liberta permanentemente pela humanização.
(Paul-Louis Landsberg)

A
grande produção dramatúrgica brasileira inserida no
contexto histórico-social e político das décadas de
1960 e de 1970 dialoga diretamente com a produção
dos anos de 1950. Trata-se de uma criação artística
que alegoriza anseios de parte de uma sociedade que começava
a dar sinais de insatisfação e que, por consequência, buscava saí-
das: os ‘antenados’, tais como alguns artistas, alguns intelectuais
e alguns membros da sociedade, já percebiam que, por trás das

1
Presta-se esta homenagem ao Autor em decorrência de seus 20 anos de
falecimento.
cortinas de uma aparente tranquilidade sócio-política nacional
e de um controle social, havia manipuladores sinalizando ações
em seu próprio benefício, em busca de um discurso hegemônico.
E essa percepção era reflexo de um ambiente em que, nacio-
nalmente, havia a luta de classes e muitas outras questões con-
cernentes a grupos que enfrentavam dificuldades de inserção
social, a exemplo de pobres, de negros, de mulheres, de homosse-
xuais — membros de classes sociais que não tinham assegurada
sua cidadania. Quanto ao cenário internacional, destacavam-se
os conflitos entre os países capitalistas — liderados pelos Estados
Unidos — e os países socialistas — que tinham à frente a URSS.
Dentro desse ambiente histórico-social, o teatro se desen-
volve e se fortalece não apenas como um produto de diversão
pública, de entretenimento. Na verdade, a produção teatral no
Brasil assume, dos anos de 1950 aos de 1960, um papel mais so-
ciopolítico, motivo que mobiliza a censura a observá-la e a cer-
cá-la de maneira mais rigorosa. Então, lado a lado aos primeiros
passos da maturidade política e de uma prática mais conscien-
tizadora e direcionada do teatro brasileiro, a censura estabele-
ceu uma relação difícil para dramaturgos e produtores artísticos
com o Estado. Em decorrência desse contexto censório, os textos
teatrais desse período passaram a refletir, de maneira alegórica,
as modificações da conjuntura social e política do país.
Nessa perspectiva, um ambiente assim, de confronto, instiga
a criatividade de dramaturgos, visto que choque entre visões que
se opõem é ponto de partida e elemento essencial para o gênero
dramático, terreno em que a dramaturgia tem gerado, desde o Te-
atro Clássico grego, os melhores frutos. Afinal, como destaca Eric
Bentley, “Ver el aspecto dramático de un acontecimiento significa
tanto percibir los elementos en conflicto como reaccionar emocio-
nalmente ante ellos”2 (BENTLEY: 2001, p. 16). Para tanto, princi-
palmente naquele contexto sociopolítico nacional, era necessária

Ver o aspecto dramático de um acontecimento tanto significa perceber os ele-


2

mentos em conflito como reagir emocionalmente diante deles. (Tradução nossa.)


uma linguagem que representasse figurativamente os elementos
concretos que molestavam a sociedade brasileira, além, é claro,
dos elementos “invisíveis”, dos “fragmentos invisíveis” — pro-
blemas culturais e morais que não eram discutidos. Eram, na
verdade, deixados de lado, por determinados segmentos sociais
e políticos, mas que transbordavam nas peças de teatro, como,
por exemplo, em dois textos de Dias Gomes: Dr. Ninguém (1943),
em que o médico protagonista é negro, e O Santo Inquérito (1966),
no qual a protagonista Branca Dias é uma cristã-nova. Assim, o
esquema de relacionar o triunfo do bem social aos acontecimen-
tos históricos se apresentava como urgentemente conscientizador.
Quanto a isso, Décio de Almeida Prado observa que “Nenhuma
peça reproduzia exatamente tal esquema. Mas todas o tomavam
tacitamente como guia ideológico” (PRADO: 2003, p. 64).
E no caso específico do teatro, questões políticas e sociais
passaram a compor com mais constância as ações dramáticas
entre as décadas de 1950 e de 1960. Nessa perspectiva, em 1955,
surgiu A moratória, de Jorge Andrade3. No ano seguinte, Ariano
Suassuna4 lançou o Auto da Compadecida, texto que, por meio
do riso provocado pelas ações dramáticas e pela construção das
personagens, busca a criação de um — na expressão de Sába-
to Magaldi — “populário religioso” (MAGALDI: 2001, p. 236),
não menos politizante, porém menos explícito. Na sequência,
em 1958, Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri5;

3
Aluísio Jorge Andrade Franco (Barretos/SP, 1922 – São Paulo/SP, 1984). Por ter
vivido a cultura do meio rural, esse ambiente aparece fortemente marcado em sua
obra, especialmente a derrocada e a adaptação ao meio urbano, fonte de conflitos
que atravessam a maior parte de suas criações.
4
Ariano Vilar Suassuna (João Pessoa/PB, 1927 – Recife/PE, 2014). Em sua dra-
maturgia, busca unir o espontâneo ao elaborado, o popular ao erudito, a linguagem
comum ao estilo terso, o regional ao universal (MAGALDI: 2003, p.237).
5
Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri (Milão/Itália,
1934 – São Paulo/SP, 2006). Chegou ao Rio de Janeiro aos dois anos de idade, quan-
do seus pais decidiram sair da Itália, por causa da onda fascista que tomava conta
do país. O público recebe bem a estreia do novo dramaturgo, que coloca em cena,
pela primeira vez na história do teatro brasileiro, a vida de operários durante uma
greve. A montagem, dirigida por José Renato, transforma-se em um sucesso estron-
doso e Guarnieri passa para a história como um autor preocupado com a realidade,
com densidade dramática e coragem de abordar problemas sociopolíticos.
em 1959, Chapetuba futebol clube, de Oduvaldo Vianna Filho6;
em 1960, duas peças, dois autores: O Pagador de Promessas, de
Dias Gomes, e Revolução na América do Sul, de Augusto Boal7.
Com a média de um autor por ano, essa representativa produção
dramatúrgica apresentava em comum a militância teatral e a
posição “nacionalista”. A produção dramatúrgica desses autores
está diretamente relacionada aos anseios das produções cultu-
rais que almejavam a manutenção e a restauração de condições
democráticas no país. A proposta presente nos textos desses dra-
maturgos era, pois, a de persuadir os espectadores a promove-
rem reflexões acerca da situação imposta à sociedade.
Apesar de a imprensa ter feito alertas quanto ao processo
ditatorial que se consolidava no país, a exemplo do jornalista
Carlos Heitor Cony8, o primeiro setor da intelectualidade brasi-
leira a, de fato, se organizar para protestar contra a ditadura que
havia se instalado em 1964 foi o teatro. Foi, portanto, nos palcos
brasileiros que se deu o início de denúncias organizadas contra
a situação sociopolítica criada pelo golpe militar. Dias Gomes

6
Oduvaldo Vianna Filho ou Vianninha (Rio de Janeiro/RJ, 1936 – Rio de Janeiro/
RJ, 1974). Participante ativo do Teatro de Arena, fundador do Centro Popular de
Cultura da UNE e do Grupo Opinião, Oduvaldo Vianna Filho personifica a traje-
tória de uma luta contra o imperialismo cultural. Sua dramaturgia coloca em cena
a realidade brasileira através do homem simples e do trabalhador.
7
Augusto Pinto Boal (Rio de Janeiro/RJ, 1931 – Rio de Janeiro/RJ, 2009). Por ser
um dos únicos homens de teatro a escrever sobre sua prática, formulando teorias
a respeito de seu trabalho, torna-se uma referência do teatro brasileiro. Principal
liderança do Teatro de Arena de São Paulo nos anos 1960. Criador do teatro do
oprimido, metodologia internacionalmente conhecida que alia teatro à ação social.
8
Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro em 1926, fez humanidades e curso
de filosofia no Seminário de São José. Estreou na literatura ganhando por duas vezes
consecutivas o Prêmio Manuel Antônio de Almeida (em 1957 e 1958) com os roman-
ces “A Verdade de Cada Dia” e “Tijolo de Segurança”. Cony trabalhou na imprensa
desde 1952, inicialmente no Jornal do Brasil, mais tarde no Correio da Manhã, do
qual foi redator, cronista e editor. Depois de várias prisões políticas durante a Dita-
dura Militar e de um período no exterior, entrou para o grupo Manchete. Foi colunis-
ta da Folha de S. Paulo, comentarista da rádio CBN. Como diretor da teledramatur-
gia da Rede Manchete, apresentou os projetos e as sinopses das novelas “A Marquesa
de Santos”, “Dona Beija” e “Kananga do Japão”. Em 1998, o governo francês, no Salão
do Livro, em Paris, condecorou-o com a L’Ordre des Arts et des Lettres. Foi eleito para
a Academia Brasileira de Letras em março de 2000. “O Ventre”, romance de estreia
de Cony, fez, em 2008, cinquenta anos.. Cony faleceu no Rio de Janeiro em 2018, aos
91 anos. (www.carlosheitorcony.com.br, acessado em dezembro de 2018)
afirma que “No palco, abriu-se a primeira trincheira. Nas salas
de espetáculos […] se efetuaram as primeiras reuniões de inte-
lectuais inconformados com o terrorismo cultural desencadeado
no país” (GOMES: 2012, p. 28). Nesse sentido, foram os ‘homens
de teatro’ que lideraram os movimentos de protesto da intelectu-
alidade brasileira no cenário político nacional, situação que, em
vários momentos, incomodou os que estavam à frente do poder.
A chamada ‘classe teatral’ se uniu, com cartazes e faixas,
nas escadarias do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e en-
frentou um choque com a polícia do Exército. Inclusive, todos
os teatros da cidade foram fechados por 72 horas, em sinal de
protesto, obtendo, a ‘classe teatral’, assim, “um atestado público
da sinceridade de seus propósitos e do vigor de sua indignação”,
nas palavras de Dias Gomes (GOMES: 2012, p. 29). Ou seja, a
classe teatral teve a coragem de se expor aos desmandos de um
Estado Autoritário, em nome de uma função política, insubordi-
nando-se e buscando saídas para aquelas atitudes de arbitrarie-
dades e de perseguições.
A luta pela liberdade de pensamento empunhada pelos ‘ho-
mens de teatro’ e pelos dramaturgos de então estava diretamen-
te relacionada à luta pela liberdade do povo brasileiro. Nesse
sentido, a arte teatral era um espaço aberto de apoio a lutas
individuais — de cada dramaturgo — e coletivas — de toda uma
nação. Logo, a luta era indivisivelmente do povo brasileiro, já
que naquele abril de 1964 havia se iniciado no país um processo
implacável que tinha como objetivo final enquadrar, conforme
Dias Gomes, o “povo dentro de limites de liberdade que tor-
nassem essa mesma liberdade um perigo facilmente controlável
pelo poder militar constituído” (GOMES: 2012, p. 30).
A prova desse controle era a imobilidade dos sindicatos, o
conveniente desentendimento dos partidos políticos e o domínio
sobre os meios de comunicação de massa — rádio e televisão.
Diante disso, cabia ao teatro o papel de pôr em cena protestos
e indignações; incialmente, de maneira indireta, nos subtextos
das montagens de peças estrangeiras, como Antígona, Electra ou
Andorra9 e, sem seguida, mesmo que de maneira não tão explíci-
ta, das produções brasileiras, com o show Opinião e as peças Li-
berdade, Liberdade10 e Arena Conta Zumbi. Tais espetáculos, por
meio de uma linguagem alegórica, punham em cena diferentes
formas de opressão que marcavam a história do Brasil, contri-
buindo, desse modo, para o combate às desigualdades sociais e
buscando reflexões em torno da luta de classes.
A boa e crescente presença do público para esses espetá-
culos chamou a atenção dos encarregados de manter o controle
da ‘liberdade’ dentro dos limites impostos pela Ditadura. Re-
sultado inevitável: uma sucessão de atitudes repressoras com o
objetivo principal de silenciar o teatro. A partir desse encontro
entre ‘homens de teatro’ e público, começou a se tornar visível
aos militares o caráter político-social inerente a toda representa-
ção teatral. A união de um grupo que preparou um espetáculo
para ser visto e um grupo que vai ver esse espetáculo é, indis-
cutivelmente, um ato social e politicamente alegórico inerente
ao próprio poder de contestação que o teatro exerce. É fato que
essas observações servem para toda e qualquer manifestação
artística, mas no teatro tal condição se torna mais especial por
ser uma manifestação artística que se exprime diante da plateia,
ao vivo. Ou seja, o teatro é uma arte que, ao invés de ser entre-
gue ao público depois de realizada, acontece diante do público.

9
Antígona, de Sófocles, utiliza como base de suas ações dramáticas o debate a
respeito da opressão do Estado sobre o indivíduo e a condição de alguém que en-
frenta esse Estado opressor. Na verdade, com as personagens Antígona e Electra,
Sófocles privilegiou a luta dos heróis contra o destino e a influência que os deuses
possuíam na vida dos homens. Quanto à Andorra, do alemão Max Frisch, em me-
morável montagem do Grupo de Teatro Oficina, discutem-se questões de xenofobia
e de antissemitismo.
Em um abril de outros tempos, mais precisamente e não por acaso no dia 21,
10

estreava no Rio de Janeiro o musical “Liberdade, liberdade”, de Millôr Fernandes e


Flávio Rangel. O ano era 1965 e a tensão causada pelo golpe militar do ano anterior
assombrava a classe artística, que sentia o reflexo da repressão. Para demonstrar a
insatisfação, dois grupos que já exploravam o gênero chamado “teatro de protesto”,
o paulista Teatro de Arena e o carioca Opinião, acabaram produzindo o espetáculo
considerado a obra pioneira do teatro de resistência no Brasil. O texto de “Liber-
dade, liberdade” é atual em qualquer época, pois reúne a visão de pensadores de
diferentes períodos e contextos, sobre o tal “direito inalienável”. (www.jornaldete-
atro.com.br – Acessado em dezembro de 2018)
No que concerne ao conteúdo de problemas políticos e so-
ciais brasileiros, a maioria dos grupos teatrais buscavam repre-
sentá-lo em seus espetáculos, seja por inclinação política, seja
por retratar em cena aspectos menos conhecidos ou menos ex-
plorados dramaticamente no Brasil. Ou, ainda, pelo fato de as
Companhias de Teatro produzirem espetáculos de autores na-
cionais, já que o comum eram as montagens de autores estran-
geiros. Esse momento é extremamente importante para o teatro
brasileiro, principalmente por haver, nesse sentido, um incenti-
vo ao surgimento de dramaturgos nacionais, que não produziam
antes e passaram a produzir ou aqueles que pouco produziam e
não mostravam a ninguém, em decorrência da falta de procura
por textos nacionais e por autores desconhecidos.
Assim, aos poucos, os palcos foram abrasileirando-se, es-
pecialmente em virtude do apoio do Teatro de Arena, que ti-
nha à frente o inquieto Augusto Boal, mas também pelo pró-
prio momento histórico que o Brasil enfrentava, de questiona-
mentos políticos, e pela necessidade de se estabelecerem novos
referenciais estéticos e sociais para a renascente dramaturgia
nacional. Ademais, o nacional ganhou, segundo Guinsburg e
Patriota, a feição de “nacionalismo crítico, e as formas artísti-
cas passaram a perseguir uma consciência crítica em relação ao
aceleramento histórico vivenciado pelas décadas subsequentes”
(GUINSBURG; PATRIOTA: 2012, p. 134). Ou seja, à medida que
a situação sociopolítica se tornava mais complexa, o teatro cum-
pria seu papel como instrumento de conscientização e de espaço
para debates de questões políticas e culturais do país.
A contribuição do teatro para o momento histórico e socio-
político em torno da década de 1960 foi grande e profícua, mas
era necessário que se estabelecesse um elo com outras instâncias,
em busca de melhores resultados no campo ideológico brasileiro.
Então, abrir diálogos com instâncias do movimento estudantil e
com representantes políticos de esquerda representava um fortale-
cimento dos ideais democráticos que se buscavam. Compartilha-
vam dessa percepção militantes do Movimento Estudantil e inte-
grantes do Partido Comunista Brasileiro, a exemplo de Gianfran-
cesco Guarnieri e de Oduvaldo Vianna Filho, os quais haviam
criado o Teatro Paulista do Estudante (TPE). Segundo Guarnieri,

Era quase um exercício de viver brigando por ideais, mas tudo muito
fechado, muito entre nós. Depois de uns três anos de movimento
estudantil firme, percebemos que realmente estávamos errando.
Depois de uns três anos é que chegamos à conclusão de que pre-
cisávamos ampliar aquilo, que o movimento estudantil não era só
nosso, não era só de uma cúpula e sim de grupos que se formavam
em várias capitais, grupos pequenos, mas que praticamente se iden-
tificavam. E que era necessário então fazer um trabalho sério entre
todos os estudantes. Chegamos à conclusão de que o movimento cul-
tural e principalmente o movimento artístico seriam um meio eficaz de
organização, onde se poderia discutir, reforçar os grêmios, estruturar
diretórios e procurar criar um debate cultural no meio estudantil.
(GUINSBURG; PATRIOTA: 2012, p. 138, grifos nossos.)

A partir das observações de Gianfrancesco Guarnieri, per-


cebe-se que havia claramente a busca por caminhos que estabe-
lecessem uma ligação direta e cúmplice entre questões políticas
e questões artísticas. Então, essa proposta cultural em que se
possa ter a arte como agente em favor de um ideário político pos-
sibilitou que, em determinados segmentos do teatro brasileiro, se
desenvolvessem atividades artísticas que almejavam estar em to-
tal sintonia com o momento histórico pelo qual o Brasil passava.
Se as ideias e os ideais já existiam no pensamento daqueles
que militavam e/ou simpatizavam com posicionamentos de es-
querda, era imprescindível que tais ideias e ideais fossem postos
em prática, para disseminá-los, para fazê-los ganhar materialida-
de. E o teatro se constituiu uma ferramenta funcional, visto que se
trata, destacadamente, de uma arte em que a apreciação é sempre
coletiva. Nesse sentido, prosseguem Guinsburg e Patriota, “no âm-
bito da atividade teatral começou-se a vislumbrar estímulos para
o desabrochar de uma consciência histórica” (GUINSBURG; PA-
TRIOTA: 2012, p. 139). Frente a esse compromisso, a construção de
uma dramaturgia nacionalizada nunca tinha sido tão conveniente,
pois a atividade teatral havia assumido compromissos públicos, os
quais não estavam apenas relacionados a princípios gerais de cul-
tura e de civilização, mas também a um processo que contribuísse
para que se impulsionasse a luta pela igualdade social.
Da dramaturgia que gira em torno da década de 1960, desta-
ca-se Eles não usam black-tie (1958). Sábato Magaldi (2001) chama
a atenção para o fato de que o baluarte do movimento naciona-
lista no teatro foi a atuação do Grupo de Teatro de Arena, em
São Paulo, o qual produziu a peça de Guarnieri, permanecendo
doze meses em cartaz, embora ocupasse uma sala de 150 lugares
apenas. Espantosa a recepção do público, que considerou a peça
como um sucesso indiscutível. Conforme Sábato Magaldi, “Acre-
ditou-se [a partir dessa receptividade] que os espectadores quises-
sem ouvir seus problemas em linguagem brasileira”, (MAGALDI:
2001, p. 214). E a peça expunha no palco os problemas sociais
provocados pela industrialização, junto a lutas reivindicatórias
por melhores salários. Pela abordagem que o autor lhe imprimiu,
informa Magaldi, “a peça de Gianfrancesco Guarnieri se definia
como a mais atual do repertório brasileiro, aquela que penetrava
a realidade do tempo com maior agudeza” (MAGALDI: 2001, p.
245), promovendo a concepção de que o palco era um funcional
espaço de debate em torno do momento histórico brasileiro.
Um dos elementos mais destacáveis do texto é a tese segun-
do a qual o indivíduo que despreza o coletivo e anseia salvar-
-se sozinho enfrentará uma solidão e um desprezo enorme dos
demais componentes da sociedade. As observações de Magaldi
acerca de Eles não usam black-tie deixam transparecer que a
ideia de solidariedade presente no texto, portanto, dialoga dire-
tamente com a visão marxista de que o povo deve unir-se em
torno do bem social. Mas se o argumento pode soar ingênuo ou
simplista demais, postula Magaldi, o próprio texto se incumbe
de filtrar a ideologia em questão e dar-lhe um caráter verossí-
mil e conveniente ao contexto histórico-social: “Na contextura
da peça, a simplicidade é elemento obrigatório, sem o qual as
personagens não teriam razão de ser” (MAGALDI: 2001, p. 246).
As personagens, na verdade, são bastante críveis, retiradas do
cotidiano, para que se mantivesse a espontaneidade e se pro-
movesse a identificação do público com as ações dramáticas.
Acredita-se que tenha sido essa estratégia dramática que garan-
tiu o espantoso sucesso da peça.
Sendo assim, a perspectiva nacionalista explicitada pelo tea-
tro se apresentou de maneira bastante funcional, por apresentar,
na visão de Décio Almeida Prado (2003), uma missão imediata e
cumpri-la, ao restituir aos brasileiros o lugar que lhes competia,
restabelecendo o equilíbrio momentaneamente perdido. Desse
modo, o grande êxito de Eles não usam black-tie possibilitou que
o público voltasse, novamente, sua atenção para a dramaturgia
nacional. Talvez essa situação tenha impulsionado Augusto Boal
a realizar o que ele chamou de “a nacionalização dos clássicos”:
imprimir ao espetáculo, independente da nacionalidade do au-
tor do texto, uma intenção nacionalizante. Ou seja, imprimir às
montagens das peças um estilo brasileiro, buscando e preservan-
do peculiaridades nacionais, a partir de peculiaridades idiomáti-
cas e gestuais, a despeito de ser um texto de Molière ou de Lope
de Vega. Como defende o próprio Boal: “Pensávamos naqueles
a quem nos queríamos dirigir, e pensávamos nas inter-relações
humanas e sociais das personagens, válidas em outras épocas
e na nossa” (BOAL: 1967, p. 19). O resultado dessa proposta foi
uma linha teatral politicamente engajada que permitiu ao públi-
co brasileiro se reconhecer em cena.
Tais posicionamentos político-ideológicos que o teatro desse
período propunha, observa Décio de Almeida Prado (2003), soam
como populismo na abordagem dramatúrgica. Não que fosse a
primeira vez que gente humilde tenha sido destaque nos palcos
brasileiros, haja vista a produção de Viriato Corrêa11 e a de Odu-

11
Viriato Corrêa (Manuel V. C. Baima do Lago Filho), jornalista, contista, ro-
mancista, teatrólogo e autor de crônicas históricas e livros infantojuvenis, nasceu
em 1884, em Pirapemas, MA, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 1967. O meio
teatral, que frequentou como crítico de jornal e mais tarde como professor de his-
tória do teatro, propiciou a Viriato Corrêa amplo domínio das técnicas dramáticas,
valdo Vianna12 (o pai) para a comédia de costumes, entre 1920 e
1930. Mas as entrelinhas do que ocorria nas produções do Teatro
de Arena sugeriam — como uma espécie de compensação — que
os pobres têm uma inocência, uma pureza de sentimentos, uma
alegria de viver e uma felicidade superiores a tudo o que os ricos
possam ter. Essa percepção limitada de luta de classes atribuía
um valor natural ao povo, visto, em uma perspectiva marxista,
como resultado da soma do operariado e do campesino, do pobre
oprimido que necessita de defesa. Quanto à ideia de nação, esta
se encontrava restrita ainda às camadas populares, excluindo-se,
conforme Décio de Almeida Prado, a burguesia — “o antipovo e
a antinação por excelência” (PRADO: 2003, p. 65).
Trata-se de uma visão lírica, romântica. O povo, Prado (2003)
chama a atenção, é visto, na verdade, enquanto seu modo de vi-
ver, e não enquanto classe social. Esse é o teor, por exemplo, de
Eles não usam black-tie, embora se perceba que o tom romântico
é diminuído à proporção que as personagens se veem arrancadas
do universo idílico e jogadas em plena luta social, enfrentando
greves, manifestações coletivas, repressões policiais violentas,
caracterizando, em resumo, a situação sociopolítica do Brasil
nas décadas de 1950 e de 1960. Eram operários em luta contra
o patrão, o oprimido em luta contra o opressor. Diante desse tra-
tamento artístico, percebe-se que o Grupo de Teatro de Arena
desejava mostrar ao país o Brasil dos oprimidos, inclusive nas
montagens dos clássicos, que eram, além de nacionalizados, rein-

transformando-o num dos mais festejados e fecundos autores teatrais em sua épo-
ca. Escreveu perto de 30 peças, entre dramas e comédias, que focalizam ambientes
sertanejos e urbanos, vinculando-o à tradição do teatro de costumes que vem de
Martins Pena e França Júnior. (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS)
12
Nasceu em 1892, em São Paulo, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1972. Suas
primeiras comédias de costumes de temas regionais e urbanos, lançadas no Teatro
Trianon, foram Terra Natal (1920), A Casa do Tio Pedro (1920), Manhãs de Sol (1921)
e A Vida é um Sonho (1921). Entretanto, o ano promissor para o autor foi 1919, com
nove peças encenadas, entre elas, Amor de Bandido, que rendeu mais de cem repre-
sentações. Depois vieram: O Almofadinha, O Clube dos Pierrots, Viva a República
e Flor da Noite. Foi no Teatro Trianon que teve início o movimento pela naciona-
lização do nosso teatro, e Oduvaldo Vianna era, certamente, o seu grande líder.
Tanto que, em 1921, estava ele à frente de uma campanha pela adoção da prosódia
brasileira no palco, substituindo o “tu” lusitano pelo “você” brasileiro. (FUNARTE)
terpretados em termos populares. Décio de Almeida Prado (2003)
destaca, ainda, que tão grande era esse anseio, que se chegou a
uma alteração drástica: na adaptação de O melhor juiz, o rei, de
Lope de Vega, o melhor juiz deixou de ser o rei, encarnando-se na
figura de um homem do povo. Nesse sentido, antes de tudo estava
a militância revolucionária marxista, com sua tradição de luta, e
só depois interessavam as questões teatrais (PRADO: 2003).
Conforme as observações de Prado (2003), o Arena, ao con-
ceber seus espetáculos, mais do que propor uma discussão acerca
de questões de cunho nacional, transpôs para o palco o confronto
entre a burguesia e o proletariado, classes sociais compostas pelo
modo de produção capitalista e pela militância como meio de luta
política revolucionária. Na verdade, acima da divisão de classes
deveria estar a questão nacional, independentemente, e ao tea-
tro, tanto quanto manifestação artística como espaço físico onde
ocorre tal manifestação, caberia, defendem Guinsburg e Patriota,
“ser um dos amálgamas na construção de elementos de identida-
de entre os cidadãos” (GUINSBURG; PATRIOTA: 2012, p. 150).
Afinal, a concepção de elementos nacionais deveria ser capaz de
aliar em torno de si quaisquer segmentos políticos e sociais.
Esse tratamento dado ao teatro fez que o Arena trocasse
seu público, que antes era composto em sua maioria por bur-
gueses para ser composto agora por estudantes, os quais eram
mais abertos às reivindicações sociais e políticas propostas pe-
las montagens do Grupo. Assim, se o Teatro de Arena deseja-
va ser popular por inspirar-se no povo, não era o que sucedia,
já que não congregava a todos, sem distinção de classes. Ao
contrário, insinuava-se em seu trabalho mais uma divisão que
propriamente uma união. Não se dirigia, dessa forma, ao povo
brasileiro de maneira integral, por representar claramente seus
interesses particulares. Segundo Décio de Almeida Prado, “Tea-
tro de intelectuais de esquerda, agiu sempre de cima para baixo,
através da propaganda doutrinária” (PRADO: 2003, p. 68).
Mas, indiscutivelmente, o Arena contribuiu bastante para
uma renovação no teatro brasileiro, principalmente com o Se-
minário de Dramaturgia, promovido, em 1958, em São Paulo.
Acerca dessa contribuição, a atriz e jornalista Vera Gertel afir-
ma que (apud. RIDENTI: 2000)

Esse Seminário foi muito importante, porque o Arena se propôs


a — durante dois anos, pelo menos — só montar peças nacionais.
E aí aconteceu o que se poderia chamar de novo salto do teatro
brasileiro; tem gente que o chama de revolução, eu não diria tanto.
(…) A partir daí [do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena],
colocaram-se em cena problemas da favela, de greve.
(RIDENTI: 2000, p. 105)

Vê-se, conforme esse depoimento, que o Teatro de Arena


e o Seminário, por consequência, buscavam uma dramaturgia
autêntica, que representasse verdadeiramente o Brasil. Além
disso, essa dramaturgia deveria não apenas tematizar assuntos
referentes ao Brasil, senão lograr uma linguagem brasileira. E os
frutos desse investimento do Arena fizeram surgir outro grupo
teatral de importante atuação nas décadas de 1960 e de 1970, o
Teatro Oficina, atuante até hoje. Mas se o Arena proporcionou
ganhos significativos, promoveu também limitações. As monta-
gens traduziam uma visão romântica em relação ao morro e à
greve, atitude reducionista para uma representação da cultura
nacional. “O resultado é que não era um teatro participante”
(RIDENTI: 2000, p. 106), frisa Vera Gertel. Esse teor está pre-
sente não só em Eles não usam black-tie (1958) mas também em
Chapetuba futebol clube (1959), de Oduvaldo Vianna Filho, texto
que denuncia a corrupção no meio futebolístico, e em Revolução
na América do Sul (1960), de Augusto Boal, peça que coloca em
cena todo o processo eleitoral corrupto que havia no Brasil.
Construído como um show musical, mas concebido a partir
de princípios claramente teatrais, o show Opinião foi, após o golpe
de 1964, uma das mais importantes manifestações culturais de
protesto contra a Ditadura Militar. Artistas e militantes do Cen-
tro Popular de Cultura ligados ao PCB — Denoy de Oliveira, Odu-
valdo Vianna Filho, Ferreira Gullar, João das Neves, Armando
Costa, Paulo Pontes, Pichin Plá e Tereza Aragão — conceberam
e montaram o show. Mas como não poderiam aparecer, porque
eram procurados pelos militares, tidos como subversivos, recorre-
ram a Boal, que dirigiu o espetáculo, enfatizando, pois, o enfoque
teatral/cênico do show. Para caracterizar a cultura brasileira e
dar um toque mais nacionalizante, juntaram-se três elementos
sociais: de acordo com Marcelo Ridenti, “um homem do campo,
que era o João do Vale, o malandro urbano — era o Zé Kéti — e
a menina da Zona Sul carioca, a Nara Leão” (RIDENTI: 2000, p.
125), que foi substituída posteriormente por Maria Bethânia. Um
dado importante é que nenhum desses artistas era ligado ao PCB.
Assistente de direção de Augusto Boal no espetáculo, Izaías
Almada avalia que

O show Opinião é um marco do teatro no Rio de Janeiro e no Brasil. O


sucesso foi grande: era a primeira manifestação mais pública, mais
midiática — para usar um termo de hoje — contra o golpe de 64. Um
ano depois dele, tinha um show num teatro bem localizado no Rio
de Janeiro, que superlotava diariamente. As pessoas iam fazer uma
catarse ali, contra a repressão violenta que se iniciava no Brasil.
(RIDENTI: 2000, p. 125)

Não muito diferente é a visão de Ferreira Gullar, o qual


afirma que

O show teve uma enorme repercussão; era feito com habilidade, uma
coisa engraçada, cheia de música, Narinha Leão, lindinha, conquis-
tando as pessoas, o João do Vale, que era um compositor do Nordes-
te e Zé Kéti, um compositor do morro. Ninguém com compromisso
político, com marca política nenhuma, mas o conteúdo do show, no
meio das brincadeiras, era contra a ditadura mesmo. No fundo, rea-
firmar o plano da reforma agrária, a luta de classes, contra a explo-
ração. O povo, a intelectualidade toda e o pessoal de classe média se
identificaram, viram que aquilo era a expressão contrária à ditadura
e o teatro era lotado com meses de antecedência. Quando a ditadura
se deu conta, não pôde fazer nada, porque não podia fechar um es-
petáculo que era o sucesso do teatro na época.
(RIDENTI: 2000, p. 125-126)

Embora Izaías Almada e Ferreira Gullar tenham posto em


destaque a meritória contribuição do espetáculo Opinião para a
sociedade no período imediato ao golpe de 1964, especialmente
quanto às questões de envolvimento político e politizante, dois
pontos de vista contrariam essa análise. Para Paulo Francis, um
jornalista de esquerda,

qualquer protesto é útil […] pois, desde 1° de abril, o país parece


imerso em catatonia, precisando de ser sacudido (sic). Mas Opinião,
quando chega ao público, pelos intérpretes e a música, nada contém
de indutivo à ação política. Basta-se a si próprio, é muito agradável
[…]. Mas daí a considerá-lo como um evento político vai uma certa
distância, pois, nesse terreno, o espetáculo nunca sai do Kindergar-
ten sentimental da esquerda brasileira.”
(apud. RIDENTI: 2000, p.126).

Para Roberto Schwarz (1978), embora haja um tom “quase


cívico” no espetáculo de “conclamação e encorajamento, era ine-
vitável certo mal-estar estético e político diante do total acordo
que se produzia entre palco e plateia […]. Nenhum elemento
de crítica ao populismo fora absorvido” (SCHWARZ: 1978, p.
80). Conforme a análise de Paulo Francis, o espetáculo cumpre
seu papel de entretenimento, no qual a plateia, se entra passiva
quanto aos problemas políticos nacionais, sai do evento com a
sensação de que passou momentos em que a arte correspondeu
a sua função de lazer, de entretenimento.
Mais suave na forma de expor sua crítica, Schwarz denota
um posicionamento pouco entusiasmado, morno até, em rela-
ção às propostas apresentadas durante o espetáculo, chamando
a atenção para o fato de que os artistas e o público apresentaram
a mesma leitura acrítica. Dessa maneira, aquela proposta de unir
elementos da sociedade brasileira que o espetáculo desejava e a de
ser uma criação de protesto à Ditadura Militar, no entendimento
de Schwarz, não passaram de uma intencionalidade que deve ter
ficado na cabeça dos idealizadores, mas não aconteceu no palco.
Em realidade, o que tais observações não podem negar é a
imensa contribuição das artes cênicas quanto à produção cul-
tural nos idos da década de 1960. E essa situação pode ser jus-
tificada pelo fato de o teatro representar uma arte que requer
um trabalho coletivo, de grupo. Desde a escritura do texto até a
montagem do espetáculo, várias modalidades artísticas interpe-
netram-se, exigindo a contribuição de dramaturgo, diretor, ator,
produtor, figurinista, maquiador, cenógrafo, iluminador e de ou-
tros profissionais, o que gera comunhão de ideias. A própria es-
sência dessa arte, portanto, permite uma inter-relação de teatro
e política. Em um período sociopolítico conturbado, Guinsburg
e Patriota comentam que “o olhar crítico e histórico continuou
voltado para a dramaturgia, em seu status de escritura e da pa-
lavra propriamente dita” (GUINSBURG; PATRIOTA: 2012, p.
154). E isso porque o teatro permite uma situação pragmática
que torna a palavra forte e funcional. Ademais, a palavra não é
apenas escrita ou lida. Principalmente, ela é dita, pronunciada,
escutada, crivada no palco e na plateia. O teatro assinala, assim,
mais que uma luta: um compromisso sociopolítico.
A dramaturgia brasileira seguia, desde Eles não usam black-
-tie (1958), sem muitos problemas em sua abordagem das ques-
tões nacionais. Gianfrancesco Guarnieri, por exemplo, lançou,
em 1959, Gimba, o Presidente dos Valentes, texto que retrata per-
sonagens faveladas, mas sem o matiz político do texto anterior,
e, em 1961, A semente, que tematiza a autocrítica da militância
de esquerda, perdida nos desvios do fanatismo. De parceria com
Augusto Boal, Guarnieri ainda produziu, sucessivamente, em
1965 e em 1967, Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes13,

13
Arena conta Tiradentes é a história da Inconfidência Mineira revista como au-
tocrítica da esquerda em face da política de hoje. Augusto Boal e Gianfrancesco
Guarnieri sublinharam, nos episódios de 1791, as correspondências com a situação
brasileira atual, de modo a explicar a derrota em 1964. O texto conclui com uma
espetáculos em que os heróis históricos servem para que se co-
notem questões políticas da época, sugerindo ao público uma
resistência ao regime que lhe era imposto. Percebe-se nessas
duas peças que Guarnieri deixou de lado a linguagem direta
presente em Eles não usam black-tie para investir, de maneira
mais inteligente, em uma linguagem alegórica. Essa foi a atitude
dos dramaturgos mais sagazes e com mais maturidade artística,
a exemplo de Dias Gomes. O uso da alegoria nacional como
linguagem teatral era, desse modo, uma atitude política de com-
bate e de resistência a um Estado Autoritário.
Em suma, os dramaturgos que produziram nas décadas de
1950 e 1960, de maneira geral, imprimiram a seus textos uma
forma de conhecimento da realidade nacional, pondo em prática
um papel decisivo na formação da consciência de que liberdade e
arte devem estabelecer entre si e para o público uma relação in-
trínseca. Tal consciência foi um fator determinante na resistência
a um Estado repressor e a uma infame censura. Importante frisar
que a produção dramatúrgica desse período histórico revelou que
uma produção teatral, feita com honestidade e respeito, leva, ine-
vitavelmente, ao engajamento político. Esse um dos motivos por
que os componentes da Ditadura Militar no Brasil tenham impos-
to especialmente censura às produções teatrais, por perceberem
que o teatro é um ato de conhecimento coletivo e, por essa natu-
reza, uma forte ameaça ao controle de uma sociedade. Ou, como
diz o próprio Dias Gomes, em uma entrevista ao Jornal Opinião,
em 1973: “[…] penso que, se o teatro não pode transformar o mun-
do, através dele, podemos, sem dúvida, transmitir a consciência
da necessidade de transformá-lo” (GOMES: 2012, p. 46).

2. Dias Gomes e o teatro como resistência político-social


Considerado um dos mais importantes dramaturgos de sua
geração, Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu a 19 de outubro

exortação para o aparecimento de heróis que proclamem a liberdade, sempre que


necessário. (MAGALDI: 2008, p. 124)
de 1922, em Salvador/BA, e faleceu a 18 de maio de 1999, em São
Paulo. Foi romancista, contista e teatrólogo. Em sua trajetória ar-
tística, Dias Gomes sempre buscou defender a visão de um mundo
mais justo e igualitário. Suas peças de teatro revelam essa defesa,
principalmente quando se percebe a constante busca do Drama-
turgo por liberdade de expressão, por direitos sociais assegurados.
Mesmo em um país censurado — pelo governo de Getúlio Vargas,
pela Ditadura Militar e até pela Nova República —, acabou trans-
formando suas obras em críticas sociais atemporais, que povoam
o subconsciente do país inteiro e são lembradas até hoje.
O primeiro texto teatral de Dias Gomes — A comédia dos
moralistas (1939) —, quando ele tinha apenas dezessete anos,
foi imediatamente premiado pelo Serviço Nacional de Teatro,
mesmo o Autor não tendo quase nenhum contato com o uni-
verso teatral. Segundo ele, chegou a ver, nessa época, algumas
operetas vienenses e um par de óperas. “De teatro dramático,
em prosa, eu nada tinha visto, e o que tinha lido resumia-se a
uma única peça — A noite dos reis, de Shakespeare”, confessa
Dias Gomes. Em seguida, ele reforça que “era essa toda a minha
cultura teatral, ao tentar minha primeira experiência de drama-
turgia” (GOMES: 2012, p. 67). Sua sensibilidade, seu poder de
observação da realidade e sua indignação frente a esta, portan-
to, foram guias na escritura de sua obra.
Na sequência, o Dramaturgo enfrentaria uma situação de-
licada: seu segundo texto teatral, Amanhã será outro dia (1941),
foi julgado um grande risco literário por apresentar um conteú-
do antinazista no período em que a Segunda Guerra Mundial
estava em plena vigência. Na visão de Dias Gomes, o defeito
maior era ser um drama e o menor, o fato de a humanidade
estar mergulhada ‘no drama universal’ da Segunda Guerra. Na
verdade, o problema era a alienação dos palcos brasileiros, ob-
serva o Dramaturgo, “dominados pelas comédias francesas e
pelas chanchadas nacionais, [então,] era preciso certa dose de
loucura visionária para alguém se aventurar a encenar um dra-
ma naqueles tempos” (GOMES: 2012, p. 9). Percebe-se, assim,
que a justificativa de Dias Gomes para o conflito em torno de
seu texto era, na verdade, resultado mais da escolha do gênero
teatral e menos do conteúdo da peça. Ou seja, o público, se-
gundo o Dramaturgo, tinha se acostumado com a massificação
apresentada nos palcos, e quebrar essa mesmice instaurada era
muito difícil, sobretudo a um dramaturgo iniciante.
Entretanto, sabe-se que durante a Segunda Guerra Mundial,
o Brasil se posicionou, inicialmente, de maneira neutra. Essa ati-
tude de Getúlio Vargas foi reprovada pelo então presidente dos
Estados Unidos, Franklin Roosevelt, que cobrou não apenas um
posicionamento do presidente brasileiro mas também total apoio
aos norte-americanos. De acordo com Letícia Pinheiro (2004), “a
neutralidade brasileira foi por diversas vezes manipulada em fa-
vor da causa aliada, ou mais precisamente em favor dos Estados
Unidos, donde o próprio conceito de neutralidade fica (…) com-
prometido” (PINHEIRO: 2004, p. 110). Ou seja, a partir de 1940,
o governo Vargas, em busca de obter alguma compensação, con-
solidou a aproximação com Washington. Diante disso, deduz-se
que o texto de Dias Gomes tenha sido, sim, um incômodo, por
questionar e desafiar o posicionamento neutro de Getúlio Var-
gas, e não por ser um drama, como justifica o Dramaturgo.
Aos 19 anos, Dias Gomes tem sua primeira peça encenada
— Pé de cabra — e banida, no dia da estreia, pelo DIP (Depar-
tamento de Imprensa e Propaganda). A liberação veio apenas
duas semanas depois. O DIP alegou que havia proibido a apre-
sentação da peça porque ela era marxista, “quando ele [Dias
Gomes], até aquele momento, ainda não havia lido uma só linha
de Marx” (GOMES: 2012, p. 9). Quanto a isso, mais tarde, em
uma entrevista a Ferreira Gullar e a Moacyr Félix, para a Revis-
ta Civilização Brasileira, o Dramaturgo admitiria que naquela
peça havia “certo esquerdismo que não deveria ter boa acolhida
na censura estado-novista” (GOMES: 2012, p. 69). Dias Gomes
continuou fazendo dos palcos seu espaço de considerações e de
indignações sociais, posicionamento perceptível nos dois textos
seguintes: Dr. Ninguém (1943) e Um pobre gênio (1943).
O primeiro texto questionava o mito de que não havia pre-
conceito racial no Brasil e apresentava um herói negro. O país
não estava preparado para admitir um herói negro, situação que
provocou uma mudança fulcral: o ator e produtor mais famo-
so da época, Procópio Ferreira, quando da montagem de Dr.
Ninguém, transformou o herói da peça em um homem branco
pobre, um filho de lavadeira, mantendo o apelo socioeconômi-
co, mas descartando completamente a discussão em torno da
questão racial. Com essa modificação, para Dias Gomes, a peça
virou uma tolice, perdeu seu objetivo sociopolítico. Porém, o
Dramaturgo não acusa Procópio Ferreira pelo resultado nega-
tivo. Era realmente a mentalidade teatral e a social da época,
das quais Dias Gomes discordava e às quais ele não queria se
moldar14. Criou-se, dessa forma, um impasse. “Impasse que não
era entre mim e Procópio, mas entre mim e o teatro da época,
e que iria determinar meu afastamento dos palcos por vários
anos” (GOMES: 2012, p. 71), declarou o Autor.
O já consagrado dramaturgo Nelson Rodrigues produziria,
em 1946, uma peça com a mesma temática, Anjo negro15, de-

Acerca desse tema, sugere-se a leitura do livro Entre Orfeu e Xangô: a emergên-
14

cia de uma nova consciência sobre a questão do negro no Brasil 1944/1968, de José
Jorge Siqueira, Pallas: 2006, sobretudo o capítulo III.
15
Em Anjo negro, Nelson Rodrigues enfrenta corajosamente o problema racial,
pondo a nu o preconceito, que, não obstante todas as recusas, existe velado na
sociedade brasileira. Nelson não faz estudo sociológico sobre a questão racial. Não
lhe interessa apontar um caminho para a solução do problema – essa é tarefa de
outra natureza, não projeto dramatúrgico. Incumbe à ficção ir ao cerne das mo-
tivações humanas, e Anjo negro desnuda o conflituoso relacionamento da mulher
branca e do homem de cor. Ao invés de indicar um desfecho prosaico, a tragédia
termina depois que o casal encerra num túmulo de vidro a filha de Virgínia e de
Elias, o irmão de criação (branco) de Ismael, personagem central. O coro sabe que
o ventre de Virgínia foi de novo fecundado pelo marido e pressagia o “futuro anjo
negro que morrerá como os outros”. O ritual se repete, imutável. O Autor, em vá-
rias ocasiões, afirma ter criado a personagem para seu amigo Abdias Nascimento
representar, pois, de acordo com Nelson Rodrigues, era o “único negro do Brasil”.
(MAGALDI: 2008, p. 25-26) O poeta Vinicius de Moraes produziu, em 1954, a
peça Orfeu da Conceição, uma adaptação do mito grego de Orfeu, aqui transposto
à realidade das favelas cariocas. Mas a peça de Vinicius só estreou no dia 25 de
setembro de 1956, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. A montagem foi reali-
zada pelo Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento, e corresponde à
primeira vez que um elenco de atores negros ocupava o mais famoso teatro bra-
sileiro. Ademais, em 1959, baseado na peça e sob a direção de Marcel Camus, foi
dicada ao ator e ativista negro Abdias Nascimento, que havia
fundado, em 1944, o Teatro Experimental do Negro16. O teatro,
portanto, cumprindo um de seus papeis — o sociopolítico, pu-
nha frente à sociedade questões mais que necessárias: urgentes.
Tratava-se de um período em que o Brasil passava por trans-
formações políticas e sociais, em busca de um país mais livre,
mais desenvolvido, que deveria, nessa perspectiva, respeitar va-
lores que concedessem cidadania a todos, sem discriminações.
Assim, a prática do respeito às classes desfavorecidas deveria
ser uma constante nacional, e não apenas um questionamento
levantado por dramaturgos brasileiros17.

lançado o filme Orfeu Negro, premiado com a Palma de Ouro, o Oscar e o Globo de
Ouro. Curiosamente, em 1956, Ariano Suassuna, ao lançar Auto da Compadecida,
punha em cena a personagem Manuel – Cristo se apresentando negro e suscitando
o preconceito do Bispo, do Padre João e de João Grilo, o único que tem coragem
de admitir seu preconceito em relação à negritude de Cristo. Ou seja, se as outras
instâncias sociopolíticas não se preocupam em discutir determinadas temáticas, a
arte, nesse sentido, se mostra um canal aberto e funcional.
16
Em 1944, Abdias Nascimento funda, no Rio de Janeiro, o Teatro Experimental
do Negro (TEN), do qual é o principal dirigente e porta-voz até 1968, quando essa
experiência se dissolveu com o exílio de Abdias nos Estados Unidos. A proposta
do TEN era mais vasta que o simples incentivo a um ‘teatro negro brasileiro’: na
verdade, esse seria o meio principal de sensibilizar o público – tanto negro, quanto
branco – para os problemas sociais, políticos e existenciais que marcavam e ainda
marcam a população dita negra em nosso país. O sentido educador parece ressal-
tar aí como o eixo intencional mais importante dessa iniciativa: transformar as
mentalidades do povo negro, de que ele espertando-lhe a consciência de seu valor
próprio, de sua cultura particular, inculcar-lhe uma dignidade perdida, reabilitá-lo
antes de mais nada de si mesmo. Para os brancos, enfatizar sua responsabilidade
na produção e reprodução desse problema, convocá-los a partilhar do esforço na
mudança dos padrões de relacionamento interétnico, mas sobretudo desfazer a
ideologia racista cristalizada entre eles, mesmo entre os ‘bem-intencionados’. O
caráter pedagógico do TEN era, por fim, a ênfase em um esforço de localização do
homem negro em uma sociedade que se sublinha ser sua também, em um propósi-
to de colocá-lo como beneficiário pleno e equalizado de um patrimônio de que ele
é um dos principais criadores. (Revista Dionysos, MINC/FUNDACEN - N° 28, 1988)
17
Esta pesquisa não tem o objetivo de discutir questões raciais e do mito da
democracia racial. Mas vale a pena uma menção a essa temática, afinal, a dra-
maturgia da época não deixou passar ao largo essa realidade brasileira. Segundo
Joaze Bernardino, a partir do momento de se encarar como racista aquele que
separa, evitou-se no Brasil, do ponto de vista oficial, reconhecer o tratamento di-
ferenciado de brasileiros em decorrência da raça, mesmo se este reconhecimento
pudesse significar uma oportunidade para a correção de desigualdades. Assim,
por exemplo, o movimento social dos negros é acusado de racista, uma vez que
diferencia os negros dos brancos. Em outras palavras, a regra no que diz respeito
Embora se mencione apenas Eles não usam black-tie, de
Gianfrancesco Guarnieri, lançada em 1958, como o grande tex-
to impactante em torno da temática da greve operária no Brasil,
em Um pobre gênio (1943), Dias Gomes já havia abordado tal as-
sunto, bastante perigoso para aquele momento histórico. Desde
muito cedo, Dias Gomes percebeu o teatro como um ato social
e como uma arte que permite a participação direta de pessoas
que são, na verdade, alheias ao processo de construção do espe-
táculo pelo artista, mas que, quando estão diante da encenação,
transformam-na em um ato coletivo.
Nesse sentido, desde Dr. Ninguém e de Um pobre gênio, mais
especificamente, o Autor já punha em prática a ideia de que “do
mesmo modo que o espetáculo atua sobre a plateia, esta atua
sobre o espetáculo que, assim, é uma resultante de fatores pon-
deráveis e imponderáveis, previsíveis e imprevisíveis” (GOMES:
2012, p. 14). Tal relação se dá porque, no gênero dramático, a
realização artística corresponde ao tempo presente, possibilitan-
do à plateia o testemunho não da obra realizada, mas em reali-
zação. Por esse motivo, por utilizar o homem realizando diante
de seus semelhantes, o teatro se torna um meio de expressão,
afirma Dias Gomes, “mais poderoso que qualquer outro, […] a

ao enfrentamento das desigualdades raciais no Brasil será uma “disposição para


‘esquecer o passado’ e ‘deixar que as coisas se resolvam por si mesmas’”, segundo
afirma Florestan Fernandes, uma vez que, conforme acreditam, não existem raças
no Brasil. E, consequentemente, como não existem raças, não cabe falar de popu-
lação negra. Diante dessa realidade social estruturada pelo mito da democracia
racial e pelo ideal de branqueamento, manteve-se intacto o padrão de relações
raciais brasileiro, não sendo posto em prática nenhum tipo de política que pudesse
corrigir as desigualdades raciais. Isso aconteceu dessa forma simplesmente porque
a interpretação hegemônica acerca das relações raciais brasileira, até mesmo entre
setores progressistas, não identificava nenhum problema de justiça racial. Estava
vedada, portanto, a possibilidade de intervenção organizada na realidade, restando
à população de cor a via da infiltração pessoal, que obviamente não possui alcan-
ce coletivo. Assim, o mito da democracia racial e o ideal de embranquecimento
deram origem a uma realidade social em que a discussão sobre a situação da po-
pulação negra foi identificada como indesejável e, até mesmo, perigosa. A recusa
de reconhecer a realidade da categoria raça, tanto em um sentido analítico quanto
de intervenção pública, fez do regime de relações raciais brasileiro um dos mais
nefastos e estáveis do mundo ocidental. (Joaze Bernardino, Estudos Afro-Asiáticos
– vol.24 n ° 2, Rio de Janeiro, 2002)
mais social de todas as artes, aquela que, de maneira mais ínti-
ma e reconhecível, pode apresentar o homem em sua luta contra
o destino” (GOMES: 2012, p. 16), desde os embates do Rei Édipo
até os embates do homem do século XXI.
Mas a consagração do Dramaturgo baiano se daria exata-
mente no ano de 1959, em pleno governo de Juscelino Kubits-
chek, com o lançamento de O Pagador de Promessas. Segundo
o crítico Sábato Magaldi, o retumbante sucesso dessa peça se
deu porque “na formação dos frequentadores habituais de tea-
tro pesou, fundamentalmente, a defesa contra as violências da
personalidade, características dos regimes políticos dominan-
tes” (MAGALDI: 2008, p. 133), naquele período em que o Brasil
se encontrava. Até porque, prossegue Magaldi, “quaisquer que
sejam as convicções intelectuais, a sensibilidade moderna está
impregnada de horror às tiranias, às ditaduras, às prepotências”
(MAGALDI: 2008, p. 133). Dessa forma, pode-se dizer que o te-
atro, mesmo que em proporções menores, desempenhava, como
sugere Décio de Almeida Prado (2003), o papel que, mais tarde,
com o advento da democracia, caberia à praça pública.
O Pagador de Promessas ganhou projeção internacional,
traduzida para vários idiomas e encenada em todo o mundo.
Ruggero Jacobbi, por exemplo, traduziu e publicou a peça, em
1966, para uma transmissão radiofônica e sucessivamente en-
cenou o texto, em 1973, na escadaria da Igreja de San Miniato,
em Florença, com o título Il pellegrino del Nordest (JACOBBI:
2012, p. 166). Além disso, adaptada para o cinema pelo próprio
Dias Gomes e dirigida por Anselmo Duarte, essa consagrada
peça ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1962,
tornando-se o único filme brasileiro premiado em Cannes, e
depois o primeiro filme brasileiro a concorrer ao Oscar. Indiscu-
tivelmente, a consagração de O Pagador de Promessas iria exigir
muito do Dramaturgo, já que se cobraria dele um texto de igual
impacto dramático e dramatúrgico, nunca menos que isso.
Ao clima tenebroso e de instabilidade sociopolítica estabe-
lecido no Brasil após o Golpe de 1964 correspondiam atitudes
autoritárias, que buscavam controlar os meios de comunicação
e inviabilizar qualquer atitude que lhes fosse contrária. Por uma
relação sugestivamente lógica, vários artistas nacionais foram
censurados e filmes interditados, a exemplo de O Pagador de
Promessas, evidentemente, por seu tom contestatório e conscien-
tizador dos embates entre forças populares e um poder estabe-
lecido e repressivo, alegorizado na imagem de uma Igreja menos
religiosa e mais política.
Não obstante ocorrerem tais proibições, a palavra e o palco
de Dias Gomes não deixaram de imiscuir-se diante da indigna-
ção social e política. Esse posicionamento contribuiu para que sua
fama de comunista se tornasse de conhecimento geral, principal-
mente depois de sua viagem à antiga União Soviética, em visita ao
túmulo de Stálin. Consequência fatal: sua imagem foi convertida
em inimiga pelo Estado, situação que forçou o Dramaturgo a es-
crever, várias vezes, sob pseudônimos, mas não a desistir de suas
convicções ideológicas: “Eu fiquei em uma espécie de lista negra, e
durante um ano, eu não consegui trabalhar” (GOMES: 2012, p. 10).
Em consequência dessas limitações impostas pelo Governo
Militar, Dias Gomes, inclusive para pagar suas contas, aceitou
trabalhar para a televisão. Conquanto se vejam as concessões às
redes de televisão feitas pelo Estado como um processo que visava
a uma massa alienada ou, ainda, conforme Flora Sussekind, como
um “tiro certeiro” de estratégia autoritária, o qual deixava “a inte-
lectualidade bradar denúncias e protestos, mas os seus possíveis
espectadores tinham sido roubados pela televisão” (SUSSEKIND:
1985, p. 14), com a qual se manipularia de forma mais fácil e mais
abrangente o povo brasileiro, o texto televisivo de Dias Gomes
contraria tais considerações. Na verdade, ele viu que esse veículo
de massa poderia dar a ele e a seu discurso uma amplitude maior
em busca da conscientização política que seus textos buscavam
transmitir, até porque, de acordo com Flora Sussekind, “a utopia
do ‘Brasil Grande’ dos governos militares pós-64 é construída via
televisão, via linguagem do espetáculo” (SUSSEKIND: 1985, p.
14). E essa construção fez que a produção artística e ensaística de
esquerda se visse transformada, prossegue Sussekind, em uma
“espécie de Cassandra. Podia falar sim, mas ninguém a ouvia. A
não ser outras idênticas cassandras” (SUSSEKIND: 1985, p. 14).
O processo de mudança e de renovação do texto televisivo
que a Rede Globo veiculava era urgente; Dias Gomes, então,
fez que as novelas dessa emissora passassem por esse processo,
ao abordar, de maneira alegórica, questões de enfrentamento
político e ideológico da sociedade brasileira. Nessa perspectiva,
o Autor buscou encontrar uma linguagem comum a um públi-
co de milhões de pessoas e bastante heterogêneo, composto de
todas as classes sociais, que contemplava desde o intelectual ao
marginal. Como ele mesmo disse, “Faço parte de uma geração
de dramaturgos que levantou, entre os anos de 1950 e de 1960,
a bandeira quixotesca de um teatro político e popular” (GO-
MES: 2012, p. 51). Mas esse teatro a que ele se refere convivia
com uma contradição básica: mesmo que dirigido a uma plateia
popular, era, realmente, visto por uma plateia de elite. Sendo as-
sim, Dias Gomes conclui: “De repente, a televisão me ofereceu
essa plateia popular. Recusar, virar as costas, seria incoerente,
burro e reacionário” (GOMES: 2012, p. 51).
Dessa forma, surge a primeira novela da Rede Globo que
falava sobre o Brasil: Verão vermelho18 (1970), ao abordar o des-
quite, atitude polêmica à época, vista com preconceito e muitas
ressalvas. O divórcio só foi instituído legalmente no Brasil em
1977. Em seguida, Assim na terra como no céu (1970-1971) — que
abordava o consumo de drogas e o celibato, tomando como pano
de fundo o dia a dia da juventude do bairro de Ipanema — e
Bandeira 2 (1971-1972) — que retratou o submundo do jogo do
bicho, com todos os problemas que esse universo pode conter. O
objetivo de Dias Gomes “sempre foi de envolvimento nacional:
revelar a sua própria realidade para que pudesse conscientizar
sua plateia, ou, no mínimo, informá-la, para que ela pudesse,
por fim, causar impacto social” (GOMES: 2012, p. 10).

O registro das informações acerca dessa novela e das outras comentadas nesta
18

pesquisa está em www.memoria.globo.com, site acessado em 2 de outubro de 2013.


Nessa perspectiva, cada novela tinha sua finalidade. Sara-
mandaia (1973), por exemplo, na qual se apresenta um confronto
político encabeçado por duas facções: os tradicionalistas, que
usam argumentos históricos para manter o nome atual da cida-
de, Bole-Bole; e os mudancistas, que alegam vergonha do nome,
querendo mudá-lo para Saramandaia, revela o universo popular
do nordeste. Usando uma linguagem popular, próxima ao cor-
del, e um realismo fantástico, a novela parece dar voz a uma
cultura regional tida como ‘menor’ diante do país.
Além disso, os elementos fantásticos e a linguagem diferen-
te, um pouco cifrada, bastante alegorizada, parecem lidar com
a defesa de uma cultura local a invasores estranhos que lhe ten-
tam tolher a vida. Ou quem sabe, ainda, a novela traduza a ideia
de que a realidade é tão insuportável, que precisa, muitas vezes,
ser fantasiada. Junto à Saramandaia (1973), outro grande sucesso
também de 1973 é a primeira novela em cores da Rede Globo: O
bem amado, que apresenta uma cidade fictícia, Sucupira, a qual
é na verdade uma alegoria do Brasil, e a personagem Odorico
Paraguaçu — imagem de todos os políticos corruptos e dema-
gogos que já assumiram o poder no Brasil. Vê-se, portanto, que
o Autor utilizou o veículo televisivo não como fator alienante,
mas sim como um grande comunicador de ideias ‘subversivas’,
‘contestatórias’, ‘conscientizadoras’, contrariando a estratégia do
Estado em oferecer concessões televisivas como forma de mas-
sificar o pensamento e as ações do povo brasileiro.
Retomando-se a produção teatral de Dias Gomes, duas pe-
ças merecem destaque, mesmo que não seja por sua eficiência
dramatúrgica, mas por sua temática: A invasão (1960) e a Revo-
lução dos beatos (1961). Nessa primeira peça, o Autor desenvolve,
paralelamente, histórias de famílias distintas, reunidas por um
denominador comum — a falta de um teto. São, na verdade,
três núcleos desenvolvendo-se em situações típicas de morado-
res de comunidades carentes: uma família ligada a um passado
de glórias no futebol, cujo filho é operário, uma família de reti-
rantes nordestinos e um casal de negros, do qual ele se destaca,
por estar em busca da consagração por meio do samba. A apro-
ximação com Eles não usam black-tie (1958), de Gianfrancesco
Guarnieri, é inevitável, já que este foi, segundo informa Sábato
Magaldi, “o primeiro dos nossos jovens dramaturgos a tratar de
conflitos sociais sob a perspectiva das camadas menos favoreci-
das” (MAGALDI: 2008, p. 134).
No caso da Revolução dos beatos, percebe-se certa aproxi-
mação com O Pagador de Promessas, no sentido que os dois tex-
tos abordam o sincretismo religioso, embora de forma diferente,
já que na primeira peça se discute o culto ao Padre Cícero e a
um boi. Em busca de um melhor desenvolvimento das ações
dramáticas, Dias Gomes vai além da história dos ‘milagres’ do
Juazeiro e lhes acrescenta, segundo observa Sábato Magaldi, “os
‘milagres’ do boi e pôs no primeiro plano a figura de um políti-
co inescrupuloso, para extrair as ilações queridas” (MAGALDI:
2008, p. 134). Em decorrência dessa estratégia, o Autor produziu
uma nota explicativa para a publicação do texto, definindo-o
como “uma tentativa de Teatro Popular”, que é “também político
— não poderia deixar de sê-lo”. Se a ação dramática da promessa
feita ao boi sugere uma ligação com a ação dramática da pro-
messa feita por Zé-do-Burro a Iansã em O Pagador de Promessas,
tal ligação é apenas sugestiva, já que, destaca o crítico Sábato
Magaldi, “o tratamento da realidade e das personagens procura
afastar o mais possível as duas obras” (MAGALDI: 2008, p. 135).
Segundo Décio Almeida Prado, quando Dias Gomes se
aproxima muito da realidade, “buscando interpretá-la à luz da
psicologia […] ou da política, […] não aprofunda devidamente o
debate de ideias ou das relações entre as ideias e os homens”,
visto que o Autor “tende a simplificações” (PRADO: 2003, p. 90).
Então, a obra do Dramaturgo baiano ganha em força dramática
e em qualidade estética quando ele faz uso de uma linguagem
mais alegórica; afinal, a simplificação acaba por deixar de lado
a possibilidade de aprofundamento de questões que interferem
diretamente na formação e no dia a dia da sociedade brasileira.
Ademais, o investimento em questões psicológicas ou políticas
de maneira ‘desnudada’, direta, sem a alegorização provocadora,
parece não chamar a atenção do receptor. Isso porque o dis-
curso tende a ficar pedagógico, instrutivo, menos artístico, por
conseguinte. Provocar o receptor, estimular nele a visão crítica
a partir de alegorias e analogias é fazê-lo se sentir tentado a
descobrir, a desvendar, a construir, por fim. Ao invés de receber
instruções, sentir-se capacitado a entender a si e ao mundo em
que está inserido parece ser um desafio mais interessante.
E no que diz respeito especificamente à questão política,
Dias Gomes deixa entrever aspectos que podem ser tomados
como alegorias nacionais, a exemplo da atmosfera dramática que
há na personagem Zé-do-Burro, de O Pagador de Promessas, e na
atmosfera da personagem Branca Dias, de O Santo Inquérito. A
história de vida dessas duas personagens pode ser tomada como
a História do Brasil, naquele período de repressão política e de
lutas sociais. O próprio Autor sugere essa concepção, quando
afirma que teve de recorrer, em muitas peças suas, a elemen-
tos antirrealistas, porque nem sempre um realismo formal é a
melhor maneira de refletir a realidade. “Principalmente quando
esta apresenta conotações grotescas, como é o caso da nossa”
(GOMES: 2012, p. 47). Portanto, a linguagem alegórica se revela
bastante funcional na construção da atmosfera dramática das
peças de Dias Gomes.
No que se refere a inquietações sociais e políticas, O San-
to Inquérito também representa bem as relações de poder e de
repressão presentes nos anos ditatoriais, de um Estado Autori-
tário. Nessa peça, Dias Gomes mostra mais uma vez o terror
estabelecido, deturpador do sentido das palavras, que tentava
silenciar os gritos dos inconformistas. A exemplo do que já ocor-
rera em O Pagador de Promessas, em O Santo Inquérito a temática
da incomunicabilidade humana vem à tona e consegue dialogar
alegoricamente com aqueles chamados ‘anos de chumbo’, em
que falar o que se pensava e questionar o que era imposto sig-
nificavam atos heroicos, mas que cobravam um preço inestimá-
vel — a própria vida. Dessa maneira, nas duas referidas peças,
a tentativa de silenciar o discurso dos protagonistas é a grande
arma usada por uma atmosfera autoritária, em uma flagrante
similitude entre a ficcionalidade dessas obras e a própria reali-
dade que o Brasil estava vivenciando.
Quanto a O santo inquérito, publicado em 1966, o contex-
to histórico brasileiro é ainda mais conturbado, já que o país
estava dominado por uma Ditadura Militar. Nesse contexto, o
Governo, em busca de acabar com a corrupção e, principal-
mente, com a subversão, a qualquer custo, usava os inquéritos
policial-militares­(IPMS) como instrumentos para dar fim ao
grande “mal político-social”: a subversão. Tratava-se de uma
atitude moralmente violenta, como a que é exposta por meio
da obra da qual é vítima a cristã-nova Branca Dias. Para a
sociedade brasileira, os anos de 1960 foram anos difíceis, de
perseguições, de limitações quanto aos direitos civis e à con-
cepção de cidadania. O Poder Eclesiástico, mais uma vez – a
exemplo do que havia feito a Zé-do-Burro –, tolhe os direitos
da protagonista. Nas duas peças, então, a imposição da Igreja
representa as relações entre um perverso poder político e uma
parte da sociedade brasileira que parece não perceber que está
sendo manipulada. Diante disso, entende-se que as ações dra-
máticas de O Pagador de Promessas e as de O Santo Inquérito
conseguem estabelecer uma relação entre a história pessoal dos
indivíduos Zé-do-Burro e Branca Dias, respectivamente, e uma
alegoria da situação combativa e de ordem pública da cultura e
da sociedade do Brasil.
Essa referência, portanto, ao Poder Eclesiástico e às per-
sonagens populares que os protagonistas representam traduz,
alegoricamente, a História do país em seu momento político.
Dias Gomes, como um artista que oferece ao povo brasileiro um
discurso que possibilita uma tomada de consciência sociopolíti-
ca, alegoriza a história de vida de Zé-do-Burro e de Branca Dias
como a História do Brasil, mimetizando os percalços pelos quais
passava a nação por meio dos percalços pelos quais passam es-
sas duas personagens.
Assim, mesmo ‘vigiado’ pelo governo militar, Dias Gomes
não desistiu de fazer do palco um espaço para divulgar suas
insatisfações e seus questionamentos sociopolíticos. Posterior-
mente, atingindo, inclusive, milhões de espectadores, o drama-
turgo desenvolveu textos para a televisão com o mesmo teor de
insatisfação e de questionamentos. Para tanto, no teatro e na
televisão, a elaboração da linguagem tomou por base estilística
a alegoria, aliada à refinada técnica na construção de suas tra-
mas e de suas personagens. Foi essa sagacidade dramatúrgica
que possibilitou ao Dramaturgo expor sua contribuição em bus-
ca de uma sociedade mais conscientizada acerca de problemas
sociopolíticos sem que a censura pudesse perceber e proibir,
evidentemente, as mensagens que suas personagens expunham
ao povo brasileiro.

Referências
BENTLEY, E. O teatro engajado. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2001.
BOAL, Augusto. Teatro do oprimido. São Paulo: Sagarana, 1967.
DIONYSOS. Rio de Janeiro: MEC/ SEAC-FUNARTE/ SNT, setembro de 1980. (Nú-
mero 25, dedicado ao Teatro Brasileiro de Comédia).
GOMES, Luana; GOMES, Mayra Dias (Orgs.). Encontros: Dias Gomes. Rio de Janei-
ro: Beco do Azougue, 2012.
GUINSBURG, Jacó; PATRIOTA, Rosângela. Teatro brasileiro: ideias de uma história.
São Paulo: Perspectiva, 2012.
JACOBBI, Ruggero. Teatro no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2012.
MAGALDI, Sábato. O Texto no Teatro. São Paulo, Editora Perspectiva, 2008.
____.Teatro em Foco. São Paulo. Editora Perspectiva. 2003.
____. O texto no teatro popular. São Paulo: Perspectiva, 2001.
PINHEIRO, Roberta Vanessa Crispim. O Pagador de Promessas: dramaticidade e tra-
gicidade, da literatura ao cinema. Dissertação de Mestrado — UFPB, 2010.
PRADO, Décio de Almeida. O Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo. Editora Pers-
pectiva. 2008.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000.
____. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. São Paulo: Pers-
pectiva, 1982.
____. A obra de Dias Gomes. In: GOMES, Dias. Coleção Dias Gomes. Os heróis venci-
dos. V. 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964 — 1969. In: O pai de família e outros
estudos. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1978. p. 61-92.
SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
SOBRE OS AUTORES

ALEXCINA OLIVEIRA CIRNE possui Licenciatura em Letras pela Funeso (1998)


e mestrado em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de Pernam-
buco (2015). Atualmente é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciên-
cias da Linguagem (PPGCL/UNICAP). Exerceu a função de diretora pedagógica
da Escola Técnica Máxima Cursos. Foi Secretária Acadêmica e Secretária Geral
de Campus da Universidade Salgado de Oliveira, participando dos processos
de renovação de reconhecimento de cursos de ensino superior. É membro do
Grupo de Pesquisa em Análise Crítica do Discurso (ACD) no PPGCL/UNICAP.
Desenvolve pesquisas sobre os pensadores Pierre Bourdieu, Norman Fairclough
e Teun Van Dijk. Áreas de interesse especial: poder simbólico, mercado linguís-
tico, habitus; análise crítica do discurso; leitura e interacionismo.

ANDRÉ LUÍS DE ARAÚJO é Jesuíta, Doutor e Mestre em Letras (Estudos Lite-


rários) pela UFMG. Graduado em Letras pela UFMG e em Filosofia e Teologia
pelo Centro Sèvres Facultés Jésuites de Paris, com parte de seus estudos filosó-
ficos realizados na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizon-
te. Como professor do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP),
aposta num projeto ético-estético de enunciação que se lança na confluência
com outras artes, a filosofia e a teologia. Desenvolve suas pesquisas na linha dos
processos de organização linguística e identidade social, tematizando a literatu-
ra, a expressão da alteridade e os outros sistemas semióticos, a partir da filosofia
francesa contemporânea, sobretudo as contribuições de Foucault, Blanchot, De-
leuze, Guattari e Derrida. Também se interessa pelos desdobramentos da lite-
ratura fantástica e pelo tratamento dado ao conceito de ficção, no horizonte de
uma cultura do simulacro, na perspectiva desenvolvida por Jean Baudrillard, e
da fabulação produtora de realidade(s), no cruzamento com os Estudos Culturais
na América Latina. Publicou o livro de poemas Sagrado Primitivo (Loyola, 2017).

ANTHONY LINS é Doutor em Biotecnologia pelo Renorbio (UFRPE/2018), tendo


como tema de pesquisa Aplicação de Aprendizagem de Máquina no Diagnóstico
de Declínio Cognitivo e Demência de Alzheimer baseado em Testes Cognitivos e
Marcadores Genéticos. Possui título de Mestre em Engenharia da Computação,
com ênfase em Computação Inteligente, pela Escola Politécnica da Universidade
de Pernambuco (2012), tendo como tema de pesquisa a Paralelização de Algo-
ritmos baseados em Cardumes utilizando Unidades de Processamento Gráfico.
Concluiu a graduação em Bacharelado em Sistemas de Informação pela Faculda-
de Integrada do Recife (2003). Atualmente é professor do curso de Jogos Digitais
da UNICAP e pesquisador na área de inteligência computacional aplicada em
saúde, jogos e ambientes interativos.

ANTONIO CARLOS DOS SANTOS XAVIER é Professor Titular-Livre de Linguísti-


ca no Departamento de Letras da UFPE. Pós-doutor em Hipertexto e Retórica di-
gital (2012) pela Universidade de Paris-VIII, França; Doutor em Linguística (2002)
pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil; Mestre em Letras pela Univer-
sidade Federal de Pernambuco (1995). Atua nas áreas de Linguagem-Educação-
-Tecnologias, Semântica, Pragmática, Filosofia da Linguística, Linguística de Texto
e Epistemologia. Investiga os temas: Hipertexto, Tecnologia Digital, Aprendiza-
gem, Multiletramentos, Retórica e Cultura Digitais e Formação Docente. É líder
do Grupo de Pesquisa Nehte, coeditor da Hipertextus Revista Digital e Curador
do Simpósio de Hipertexto e Tecnologias na Educação e Colóquio Internacional
de Educação com Tecnologias. É autor de artigos científicos, de opinião e de livros
como Retórica Digital, A Era do Hipertexto: linguagem e tecnologia, Hipertexto &
Cibercultura, Hipertexto e Gêneros Digitais (com Luiz Antonio Marcuschi - Edito-
ra Cortez), Conversas com Linguistas (Parábola Editorial), entre outros.

ANTONIO ROAZZI é Psicólogo, Doutor (D. Phil.) em Psicologia do Desenvolvi-


mento pela University of Oxford (Inglaterra) e Professor Titular do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva da Universidade Federal de Pernam-
buco. Pesquisador Nivel 1A do CNPq, foi membro de Comitês de Avaliação do
CNPq, CAPES, ENEM e FACEPE.

BENEDITO GOMES BEZERRA é docente na Universidade Católica de Pernambu-


co (UNICAP), em Recife, e na Universidade de Pernambuco (UPE), em Nazaré
da Mata. Licenciado em Letras e especialista em Descrição da Língua Portugue-
sa pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), obteve seu título de mestre em
Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e o doutorado em Letras/
Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Sua experiência
profissional abrange o ensino Fundamental, Médio e Superior em instituições
públicas e privadas. Atua nas áreas de Letramento, Linguística Textual, Teoria e
Análise de Gêneros e Ensino no curso de graduação em Letras e nos programas
de pós-graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL/UNICAP), do qual é atual-
mente o Coordenador, e Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS/UPE).

CLAUDEMIR DOS SANTOS SILVA é Licenciado em Letras Português-Inglês e


suas respectivas literaturas (2009) e Especialista em Psicopedagogia Institucional
(2011), Faculdades Integradas da Vitória de Santo Antão (FAINTVISA), Mestre
(2016) e Doutorando em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP), também é representante do corpo discente, integrando
a Comissão de Bolsas do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições
Comunitárias de Ensino Superior, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior-(PROSUC/CAPES).

DENISE LIMA é mestre e doutora em Letras pela Universidade Federal da Paraíba


(UFPB) na área de concentração Linguagens e Cultura. Também é graduada em
Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal
da Paraíba. Desenvolve pesquisa sobre o Estruturalismo e a Teoria do Discurso,
procurando relacioná-los à constituição do sujeito pós-moderno, dando ênfase
à construção das identidades de gênero em narrativas midiáticas e literárias.
Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado, financiada pela CAPES, no
programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem, da Universidade Cató-
lica de Pernambuco.

DÓRIS DE ARRUDA C. DA CUNHA é professora titular aposentada da Universi-


dade Federal de Pernambuco (UFPE), professora do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Linguagem (PPGCL) na Universidade Católica de Pernambu-
co (UNICAP) pesquisadora do CNPq. Tem licenciatura em Letras (português
e francês) pela Universidade Federal de Pernambuco e DEA en Linguistique
pela Université de Paris V (Rene Descartes). Cursou doutorado em Ciências
da Linguagem pela Université Paris Descartes e realizou estágios pós-doutorais
na Université de Paris III - Sorbonne Nouvelle, na PUC-SP, na Université Paris
Descartes. Coordenou o projeto de pesquisa em cooperação com a Université
Sorbonne-Nouvelle - Paris 3, financiado pelo Programa Capes-Cofecub (2014-
2018): Representação do Discurso Outro e discursividade escrita: estudo comparativo
em francês, espanhol e português brasileiro. É autora do livro Discours rapporté
et circulation de la parole, publicado pela Editora Peeters e Louvain-la-Neuve.
Atua e orienta trabalhos acadêmicos principalmente na perspectiva da Análise
Dialógica do Discurso.

ERIC ROCHA SOUZA possui bacharelado em Sistemas de Informação com ênfase


em engenharia de software pela Faculdade Integrada do Recife (2006), pós-gradua-
ção em Engenharia de Software pela Faculdade Boa Viagem (2008) e Mestrado em
Engenharia da Computação pela Universidade de Pernambuco (2012). Atualmen-
te, está a concluir o curso de Doutorado pela Faculdade de Ciências e Tecnologia
(FCT) da Universidade Nova de Lisboa (UNL) em Portugal. Além disso, faz parte
do grupo de pesquisadores da NOVA-LINCS (um centro europeu de excelência
em investigação científica de ponta em áreas-chave das Ciência da Computação
e da Informática). Tem cerca de 10 anos de experiência na indústria, onde traba-
lhou principalmente como líder técnico de engenharia de sistemas, e na educação,
onde trabalhou como professor em instituições de ensino técnico e superior.

FERNANDO JOSÉ ARAÚJO WANDERLEY é mestre em Engenharia da Com-


putação pela Universidade de Pernambuco, na área de Engenharia de Softwa-
re, com ênfase na área de Engenharia de Requisitos e Bacharel em Ciência da
Computação pela Universidade Católica de Pernambuco; trabalhou como Ar-
quiteto de Software e Líder técnico em projetos de médio e grande porte. Atual-
mente é Doutorando e Pesquisador (CNPq) pela Universidade Nova de Lisboa,
onde tem concentrado seus esforços na pesquisa de Modelagem de Requisitos
centrada no Usuário através da definição de uma linguagem cognitiva de requi-
sitos construída com base em Mapas Mentais e da sinergia das tecnologias da
Engenharia Orientada a Modelos (MDD) e Linguagem Específica de Domínio
(DSL). Atua como Professor da Universidade Católica de Pernambuco e da FGV
– Faculdade Nova Roma.

FRANCISCO MADEIRO BERNARDINO JUNIOR nasceu em Fortaleza, Ceará,


em 27 de março de 1972. É Doutor em Engenharia Elétrica pela Universida-
de Federal da Paraíba (2001), atual Universidade Federal de Campina Grande
(UFCG). De março de 2012 a fevereiro de 2018, foi bolsista de Produtividade em
Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora (DT) do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). É Professor Associado da
Universidade de Pernambuco (UPE) e Professor Adjunto da Universidade Cató-
lica de Pernambuco (UNICAP). Recebeu o prêmio Destaque em Ensino do ano
de 2008 da Escola Politécnica (POLI) da UPE e o Troféu Ciência e Tecnologia,
nas categorias Destaque em Pesquisa e Destaque em Ensino da POLI/UPE, ano
2013. Obteve Livre-Docência pela UPE em 2014.

GILBERTO FIGUEIREDO MARTINS graduou-se em Letras na FFLCH/USP


(1992), onde concluiu o Mestrado (1997) e o Doutorado (2002) em Literatura
Brasileira, com trabalhos sobre a obra de Clarice Lispector. Quando bolsista de
Pró-Doc da CAPES, atuou por dois anos como professor da UnB (Universidade
de Brasília). Atualmente é Professor Assistente Doutor de Teoria da Literatura
da Universidade Estadual Paulista (UNESP-Assis). Realizou estágio de pós-dou-
toramento na UNICAMP (IEL), acerca das relações entre teatro e religião no
Brasil (2010-2011). Em 2011, concluiu o curso de Especialização em História das
Religiões e das Religiosidades da UEM (Universidade Estadual de Maringá). É
autor do livro Estátuas invisíveis: experiências do espaço público na ficção de Clarice
Lispector (EDUSP/Nankin, 2010). Atualmente, é aluno do curso de Especializa-
ção em Atuação e Direção da Escola Superior de Artes Célia Helena (SP). Tem
experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, pesquisando
e orientando nos seguintes temas: literatura e sociedade, literatura e moderniza-
ção no Brasil, teatro brasileiro, literatura contemporânea.

GLÓRIA MARIA MONTEIRO DE CARVALHO possui graduação em Psicologia


pela Universidade Católica de Pernambuco, mestrado em psicologia (psicologia
cognitiva) pela Universidade Federal de Pernambuco e doutorado em linguística
pela Universidade Estadual de Campinas. Realizou pós-doutorado em aquisi-
ção de linguagem pela Universidade Estadual de Campinas-Instituto de Estudos
da Linguagem-IEL. É docente permanente do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Linguagem da UNICAP e colaborador do Programa de Pós-gradua-
ção em Psicologia Cognitiva da UFPE. Pesquisador 2b do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq. Participa do Grupo de Pesqui-
sa Aquisição e Patologias de Linguagem do LAEL-PUC/SP e do Grupo de Pesqui-
sa Aquisição de Linguagem da UNICAP. Tem experiência na área de linguística,
com ênfase na psicanálise, atuando em aquisição de linguagem, principalmente,
nos seguintes temas: aquisição de linguagem e o estatuto do investigador, autis-
mo, aquisição de linguagem e erro.

ISABELA BARBOSA DO RÊGO BARROS é professora pesquisadora da Uni-


versidade Católica de Pernambuco (UNICAP) atuando no Programa de Pós-
-graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL). Possui Doutorado em Letras
pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB - 2011); Mestrado em Ciências
da Linguagem pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP - 2006);
Pós-doutorado em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba (PRO-
LING/UFPB, 2016). Constituem temas de interesse de pesquisa: Aquisição e
Desenvolvimento da Linguagem Oral e Escrita, além de discussões em torno
da Semântica.

JOÃO GABRIEL COSTA SODRÉ DA MOTA é Graduando em Ciência da Compu-


tação na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Foi aluno de Inicia-
ção Científica, com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq), de 2017 a 2018, atuando no desenvolvimento de “Um
Aplicativo para Apoio à Aprendizagem de Escrita por Crianças Disléxicas Vol-
tado para Atividades com Rimas”. Tem experiência em desenvolvimento para
Android, utilizando Android Studio.

JOSÉ REGINALDO GOMES DE SANTANA é Doutorando em Ciências da Lin-


guagem pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, Mestre pela mes-
ma instituição (2013); possui graduação em Arquitetura pela Universidade Fede-
ral de Pernambuco (1990); licenciatura em música - UFPE (1997); especialização
Lato Sensu em programação de Ensino da Matemática - FAINTVISA(1999). É
professor com dedicação exclusiva no IFPE Campus Pesqueira; tem experiência
na área de Linguística, com ênfase em Analise do Discurso; atua, principalmen-
te, nos seguintes temas: voz cantada, análise do discurso, discurso, interdiscipli-
naridade e identidade.

JURANDIR F. DIAS JR. é Professor Adjunto na Universidade Federal de Pernam-


buco (UFPE). É graduado em Letras (Português-Inglês) e especialista em Lin-
guística Aplicada ao Ensino da Língua Portuguesa pela Faculdade Frassinetti
do Recife (FAFIRE). Cursou o Mestrado em Ciências da Linguagem no PPGCL/
UNICAP e o Mestrado em Linguística na UFPE. Obteve seu doutorado em Lin-
guística pela UFPE e realizou estágio de pós-doutorado na Universidade Cató-
lica de Pernambuco (PPGCL/UNICAP), em parceria com a Universität zu Köln
(Alemanha), analisando a aquisição de língua vernácula escrita como L2 por
alunos surdos usuários de língua de sinais em um estudo comparativo Brasil-
-Alemanha (2018). É pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Libras
(NEPEL-UFPE).
KARL HEINZ EFKEN possui doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (2003), mestrado em Filosofia pela Universidade
Federal de Pernambuco (1993), Licenciatura Plena em Filosofia pela Universida-
de Católica de Pernambuco (1986), curso de Filosofia Pura - Philosophisch-Theo-
logische Hochschule St. Georgen/Alemanha (1979) e graduação em Teologia pelo
Instituto de Teologia do Recife (1983). Atualmente é professor Adjunto IV da
Universidade Católica de Pernambuco. É professor e pesquisador do Curso de
Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL/
UNICAP). Suas atividades de ensino, pesquisa e de oprientação concentram-
-se em áreas como: filosofia (história da filosofia, filosofia política, filosofia da
linguagem), Análise Crítica do Discurso, Pensamento de Jürgen Habermas, ética
e direito (ética geral, ética do discurso, direitos humanos, filosofia do direito).

LUCIANA CIDRIM é fonoaudióloga clínica, Mestre em Ciências da Linguagem


pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP e Doutoranda em Ciên-
cias da Linguagem no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem
– UNICAP. Especialista em Linguagem pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia
– CFFa. Tem formação em dislexia pela Associação Brasileira de Dislexia – ABD/
SP. É professora dos cursos de Pós-Graduação em Linguagem e Fonoaudiologia
Educacional no Instituto de Desenvolvimento Educacional – IDE.

MAÍRA ROAZZI é Psicóloga, Mestre em Psicologia Cognitiva pela UFPE, Doutora


em Psicologia do Desenvolvimento pela University of Pittsburgh (USA) e Pós Dou-
tora em Psicologia pela UFRGS. Atua na Clínica Infantil e em Pesquisa.

MATHEUS MARINHO é Graduando em Ciência da Computação na Universidade


Católica de Pernambuco (UNICAP). Foi aluno PIBIC entre os anos 2016 e 2018 na
área de pesquisa envolvendo dependabilidade e modelagem utilizando Redes de
Petri, sendo premiado em terceiro lugar na categoria de ciências exatas e da terra
na 19ª Jornada de Iniciação Científica (2017), realizada pela UNICAP. Tem interesse
nas linhas de pesquisas envolvendo inteligência artificial e engenharia de software.

MELISSA MARQUES GONÇALVES BOËCHAT é Professora Adjunta de Lite-


raturas Hispânicas (UFVJM/MG). Doutora em Estudos Literários: Literatura
Comparada, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários,
da Faculdade de Letras da UFMG (2012). Realizou estágio doutoral no Birkbeck
College - School of Arts - University of London (2010/2011). É Mestre em Estu-
dos Literários - Teoria da Literatura pela UFMG. Tem Licenciatura em Letras
- Espanhol pela Universidade Federal de Minas Gerais (2001) e Bacharelado em
Comunicação Social - Publicidade & Propaganda pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (1997). Cursou Especialização em Ciências da Reli-
gião pela Universidade Cândido Mendes (RJ). Áreas de interesse: Literatura e
Expressões da Religiosidade; Teoria Literária; Literatura Comparada; Literatura
Hispano-americana e Espanhola; Relações entre Literatura e Iconografia - ima-
gem e fotografia; Ciências da Religião; Literatura e Antropologia; Literatura Cel-
ta; Druidismo; Narrativas do Ciclo Arturiano.
MOAB DUARTE ACIOLI é graduado em Medicina pela Universidade Federal de
Pernambuco (1983), especialista em Psiquiatria pela Universidade Federal de
Pernambuco (1986), mestre em Antropologia Cultural pela Universidade Federal
de Pernambuco (1990) e doutor em Saúde Pública pela Universidade Estadual
de Campinas (2001). Atua como Professor Adjunto II da Universidade Católica
de Pernambuco, no Curso de Medicina e de Psicologia do Centro de Ciências
Biológicas e da Saúde. Professor, pesquisador e orientador No Programa de Pós-
-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL/UNICAP). É professor, orien-
tador e preceptor da Residência em Saúde Mental da Universidade de Pernam-
buco. Apresenta comunicações orais e participa de painéis, mesas redondas em
encontros científicos regionais, nacionais e internacionais. Autor de relatórios
técnicos, artigos científicos, capítulos de livro e organizador de livros. Vem de-
senvolvendo pesquisas com alunos de graduação e pós-graduação em torno de
um campo interdisciplinar envolvendo Antropologia da Saúde, Saúde Pública,
Saúde Mental, Psicopatologia e Linguagem.

NADIA PEREIRA DA SILVA GONÇALVES DE AZEVEDO é Fonoaudióloga (Ins-


tituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação - IBMR, Rio de Janeiro, 1978), com
especialização em Patologias da Linguagem (UNICAP, 1984) e em Linguagem pelo
Conselho Federal de Fonoaudiologia. Cursou mestrado em Fonoaudiologia pela
PUC-SP e doutorado em Letras e Linguística pela UFPB. É professora adjunto III da
Universidade Católica de Pernambuco, atuando na Graduação em Fonoaudiologia e
no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL). Utiliza como
aporte teórico-metodológico a Análise do Discurso de linha francesa, na relação
com a aquisição e distúrbios de linguagem, em especial, a gagueira e a afasia. É líder
do grupo de pesquisa Discurso, Sujeito e Sociedade e membro do Grupo de Pes-
quisa Linguagem, Distúrbio e Multidisciplinaridade. É coordenadora do PROCAD
UNICAP, intitulado Diálogos em Linguística: do Formal ao Discursivo, em parceria
com as instituições UCPEL e UFPB. É consultora da CAPES a partir de 2017. É
presidente e membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/UNICAP) desde 2014.

RENATA FONSECA LIMA DA FONTE é mestra em Letras (2006) e doutora em


Linguística (2011) pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Obteve o título
de especialista em Linguagem pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia (2011),
especialização em Saúde Pública pela Universidade de Pernambuco (2009) e gra-
duação em Fonoaudiologia pela Universidade Católica de Pernambuco (2003).
Atualmente é professora assistente II da Universidade Católica de Pernambuco,
atuando na Graduação em Letras e na Graduação em Fonoaudiologia. É pro-
fessora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Lingua-
gem (PPGCL) da Universidade Católica de Pernambuco, atuando nos seguintes
temas: multimodalidade, tecnologia digital, aquisição da linguagem, interação,
cegueira e distúrbios da linguagem.

ROBERTA VARGINHA RAMOS CAIADO é professora pesquisadora da Uni-


versidade Católica de Pernambuco (UNICAP) atuando no Programa de Pós-
-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL). Tem doutorado em Educação
e mestrado em Letras/Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE – 2011, 2005). Realizou pós-doutorado em Linguística Aplicada pela Uni-
versidade Católica de Pelotas (UCPel - 2016). É graduada em Letras (Português/
Inglês) pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Tem expe-
riência como docente há mais de 30 anos, no ensino Fundamental e Superior,
na área de Linguística e Educação, com ênfase em Língua Portuguesa. Realiza
pesquisas relacionadas aos seguintes temas: Linguagem, Tecnologia e Ensino;
Linguística Textual, Multiletramentos, Letramento Digital, Tecnologias Digitais
da Informação e Comunicação e ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa.
Pertence ao grupo de pesquisa do Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologia
na Educação (NEHTE/UFPE).

ROBSON TELES GOMES é Doutor em Literatura e Cultura pela Universidade Fe-


deral da Paraíba (UFPB), Professor Assistente II da Universidade Católica de Per-
nambuco (UNICAP), Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco, Professor de
Linguagens do Ensino Médio do Colégio Santa Maria, Dramaturgo e Encenador.
É Vice-Presidente do ICOL (Instituto Cultural Osman Lins). Tem experiência na
área de Teatro e de Letras, com ênfase nos seguintes temas: Osman Lins, Olavo
Bilac, Dias Gomes, Imaginário, Gêneros Literários, Literatura Infantojuvenil.

ROSSANA REGINA GUIMARÃES RAMOS HENZ é professora adjunta da Uni-


versidade de Pernambuco (UPE) no Campus Mata Norte, em Nazaré da Mata/
PE. Graduada em Letras e em Pedagogia com Habilitação em Administração
Escolar, obteve seu mestrado e doutorado em Língua Portuguesa pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Em 2017, realizou estágio pós-
-doutoral pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Atua no curso
de Licenciatura em Letras e no Programa de Mestrado Profissional em Letras
(PROFLETRAS/UPE). Tem experiência na área de Língua Portuguesa, sociolin-
guística, alfabetização e letramento, literatura infantil e educação inclusiva. É
autora de livros nas áreas infantil e pedagógica.

WANILDA MARIA ALVES CAVALCANTI é Professora Assistente III da Universi-


dade Católica de Pernambuco (UNICAP), atuando no Curso de Fonoaudiologia e
no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL). Tem Gra-
duação em Letras Neolatinas, Formação e Licenciatura em Psicologia e Gradu-
ação em Pedagogia pela Faculdade Frassinete do Recife (FAFIRE). Cursou ainda
Especialização em Educação Especial pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Obteve seu doutorado em Salud y Familia pela Universidad de Deusto,
Espanha (2003), e realizou estágio pós-doutoral em 2016/2017 pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). Tem experiência na área de Educação, com ênfase
em Educação Especial, atuando principalmente nos seguintes temas: inclusão,
surdez, surdocegueira, cegueira, Libras, aquisição da linguagem.

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