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linguagem e
interdisciplinaridade
diferentes gestos de interpretação
Produção Ebook: Telma Custódio
Revisão: Thiago Zilio Passerini
Imagem da capa: br.freepik.com
L727
Linguagem e interdisciplinaridade [recurso eletrônico] : diferentes gestos
de interpretação / organização Roberta Caiado , Benedito Bezerra , Isabela do
Rêgo Barros. - 1. ed. - São Paulo : Pá de Palavra, 2019.
recurso digital
Formato: eletrônico
Requisitos do sistema:
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-68326-31-2 (recurso eletrônico)
Direitos reservados a
ROBERTA CAIADO, ISABELA DO RÊGO BARROS, BENEDITO BEZERRA
PÁ DE PALAVRA
[O selo de autopublicação da Parábola Editorial]
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transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo
fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão por escrito da editora.
ISBN: 978-85-68326-31-2
© do texto: Roberta Caiado, Isabela do Rêgo, Benedito Bezerra, 2019.
© da edição: Pá de Palavra, São Paulo, março de 2019.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Marígia Aguiar
CAPÍTULO 1
ESPELHAMENTO E FUNÇÃO POÉTICA : O lugar ocupado pela noção
de eco em aquisição de linguagem
Glória Maria Monteiro de Carvalho
CAPÍTULO 2
A COESÃO E A COERÊNCIA EM TECNOLOGIA DIGITAL MÓVEL:
Produção textual de fábula imagética
Renata Fonseca Lima da Fonte, Isabela Barbosa do Rêgo Barros e
Roberta Varginha Ramos Caiado
CAPÍTULO 3
FONORIMA: Um aplicativo para estimular habilidades fonológicas em crianças
disléxicas voltado para atividades com rima
Luciana Cidrim, João Gabriel Sodré da Mota, Antonio Roazzi, Maíra Roazzi e
Francisco Madeiro
CAPÍTULO 4
O PROCESSO DE MUDANÇA DE POSIÇÃO DE SUJEITO GAGO PARA
SUJEITO FLUENTE: Uma análise discursiva em grupo de apoio no Recife
Claudemir dos Santos Silva e Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo
CAPÍTULO 5
FALA, ESCRITA E ENSINO NA PERCEPÇÃO DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS
Rossana Ramos Henz e Benedito Gomes Bezerra
CAPÍTULO 6
LEGITIMAÇÃO, COGNIÇÃO SOCIAL E COGNIÇÃO POLÍTICA:
Análise crítico-discursiva de uma entrevista de Michel Temer
Karl Heinz Efken e Alexcina Oliveira Cirne
CAPÍTULO 7
NOVINHA : Efeitos de um já-dito na música brasileira
José Reginaldo Gomes de Santana e Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo
CAPÍTULO 8
ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE IDEOLOGIAS MÉDICAS
Transdisciplinaridade, biomedicina e homeopatia
Moab Duarte Acioli
CAPÍTULO 9
REDIGIR ENEM : Aplicativo para aprendizagem de textos argumentativos em
dispositivos móveis de comunicação
Antônio Carlos Xavier e Roberta Caiado
CAPÍTULO 10
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL EM CIÊNCIAS DA LINGUAGEM : Mineração
e sumarização de textos, análise semântica e ferramentas úteis
Matheus Barreto Lins Marinho, Eric Rocha de Souza, Anthony José da Cunha
Carneiro Lins, Fernando José Araújo Wanderley e Francisco Madeiro
CAPÍTULO 11
O SER DA LINGUAGEM: Aproximações entre a Linguística e a Literatura
André Luís de Araújo e Melissa Marques Gonçalves Boëchat
CAPÍTULO 12
ESCRITA EM LÍNGUA PORTUGUESA COMO SEGUNDA LÍNGUA POR SURDOS
USUÁRIOS DE LÍNGUA DE SINAIS: Algumas reflexões, possíveis soluções
Jurandir F. Dias Jr. e Wanilda Mª A. Cavalcanti
CAPÍTULO 13
CORPO E IDENTIDADES DE GÊNERO: A escrita feminina em espaços digitais
Denise Lima Gomes da Silva e Dóris de Arruda C. da Cunha
CAPÍTULO 14
O DRAMA TRÁGICO DE OSMAN LINS: Alegoria e História na peça
Guerra do Cansa-Cavalo
Gilberto Figueiredo Martins
CAPÍTULO 15
EFEITOS DO DISCURSO SOBRE O PALCO: Dramaturgia e representação
alegórica – Uma homenagem a Dias Gomes
Robson Teles Gomes
SOBRE OS AUTORES
APRESENTAÇÃO
A
presentar este livro vai além de simplesmente fa-
miliarizar o leitor com o conteúdo temático que ele
oferece. Na realidade, é trazer para estudiosos da
linguagem o resultado do trabalho de pesquisado-
res alinhados na orientação do Programa de Pós-graduação em
Ciências da Linguagem, da UNICAP, cujo caráter multidiscipli-
nar justificou sua proposta de implantação em 2002. O Livro
interessa, particularmente, a profissionais de Linguística, Fono-
audiologia, Psicologia, Educação, Filosofia, Comunicação Social,
Computação, enfim, de áreas que trabalham na interface com a
Linguagem, além de proporcionar, no geral, uma visão panorâ-
mica do estado da arte das Ciências da Linguagem.
Desde sua implantação, a concepção do Programa é abrir
espaço para discussões acerca das várias tendências da Lingua-
gem na interface com outras Ciências que, de uma forma pecu-
liar, com ela mantêm contato. Estudos que envolvam o homem
em sua complexidade não se fazem sem recorrer às várias áreas
do conhecimento. Não se pode pensar em segmentar um co-
nhecimento de um todo complexo para explicar uma parte des-
se todo desvinculada das outras partes. A construção do texto
discursivo se dá no contexto das relações humanas, em even-
tos interindividuais, de ações presentes e passadas, construídas
com base em experiências partilhadas. Para isso, recorrem-se às
informações prévias e de mundo, dados dos falantes, do mundo
social e do grau de conhecimento de cada um deles, dentre ou-
tras coisas. Para melhor conhecer como se dá o complexo fenô-
meno discursivo, buscam-se noções da Linguística, Psicologia,
Sociologia, Etnografia, Psicanálise, Antropologia, Antropologia
Social, Ciência da Computação, a depender da perspectiva a
ser explorada. Tal estudo, consequentemente, requer o conheci-
mento de outras ciências, e o estudo da Linguagem constitui-se,
assim, naturalmente multidisciplinar.
Em seus quinze capítulos, com textos de docentes da UNI-
CAP e de convidados de instituições com as quais o Programa
em Ciências da Linguagem interage, o livro confirma essa con-
cepção multidisciplinar, deixando visível a preocupação de seus
autores em seguir a perspectiva que constitui o diferencial que
justificou e justifica a concepção, implantação e funcionamento
do Programa.
Logo no capítulo 1, Espelhamento e função poética: o lugar
ocupado pela noção de eco em aquisição de linguagem (de Glória
Carvalho), a interdisciplinaridade está na relação da Linguística
com a Psicologia, quando a autora coloca em discussão a dife-
rença específica que leis genéricas de funcionamento da língua (leis
de funcionamento estrutural sintagmáticas e associativas, de
Saussure, e metonímicas e metafóricas, de Jakobson) estariam
assumindo no espelhamento (como proposto por Lemos), dado o
caráter singular das produções verbais infantis. Na explicação do
funcionamento dessas noções, a autora traça um paralelo com
a noção de Jacques Lacan que, no seu retorno a Freud, retoma
alguns linguistas, como Saussure (relações estruturais no funcio-
namento da linguagem), e Jakobson (a noção de função poética,
que enfoca a própria mensagem, a mensagem como tal, ou melhor,
trata-se do enfoque da mensagem por ela própria) ao afirmar que a
função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção
sobre o eixo de combinação. Ao se contrapor a Jakobson, Lacan
assinala a relação da linguagem com o sujeito do inconsciente…
(lalangue). A abordagem dada pela autora, enfocando paralelos
e semelhanças no tratamento dado pelos teóricos citados, é bas-
tante elucidativa para a compreensão do processo linguístico no
desenvolvimento da linguagem, e o faz recorrendo a princípios
da Linguística, da Psicologia, da Psicanálise e da Poética.
O capítulo 2, A coesão e a coerência em tecnologia digital
móvel: a produção textual de uma fábula imagética (Renata da Fon-
te, Isabela do Rêgo Barros e Roberta Caiado), segue a orienta-
ção da Linguística Textual e o uso pedagógico das Tecnologias
Digitais Móveis (TDM) em questões relacionadas à Semiótica.
Há, portanto um entrelaçamento entre Linguística, Semiótica e
Tecnologia Digital, na abordagem da aprendizagem móvel a par-
tir das práticas sociais, culturais, acadêmicas e digitais dos sujei-
tos, ao mesmo tempo em que considera aspectos semióticos, bem
como […] critérios da coesão e da coerência, em produções textuais
imagéticas, trazendo exemplos ilustrativos recolhidos das produções
realizadas pelos discentes. Por aprendizagem móvel, as autoras
definem a aprendizagem que acontece a partir das práticas sociais,
em smartphones, tablets, notebooks, dentre outros, com base nos
princípios de interatividade, mobilidade, portabilidade, multimoda-
lidade propiciados pela integração multimídia presente e acessível,
em tecnologia móvel. O texto explora o uso pedagógico das TDM
e […] a natureza semiótica da linguagem, instigando os discentes a
produzirem e refletirem sobre textos imagéticos coesos e coerentes,
construídos a partir das imagens do teclado do aplicativo WhatsA-
pp, no smartphone. Para a realização do trabalho, a Linguística
Textual fornece as bases teórico-metodológicas, ao mesmo tem-
po em que se exploram dados imagéticos, proporcionando um
trabalho dinâmico em sala de aula, o que constitui uma contri-
buição relevante para o ensino-aprendizagem em um contexto
atual e familiar aos discentes.
O tema do capítulo 3, Fonorima: um aplicativo para estimular
habilidades fonológicas por crianças disléxicas, voltado para ativi-
dades com rima (Luciana Cidrim, João Gabriel Sodré da Mota,
Antonio Roazzi, Maíra Roazzi e Francisco Madeiro), denota já a
perspectiva multidisciplinar do trabalho, que aborda o proces-
so de aquisição da escrita e explora dados fonético-fonêmicos,
desenvolvidos na produção infantil, bem como outras habilida-
des, a exemplo da consciência fonológica (reflexão sobre as carac-
terísticas da linguagem, […] um dos pré-requisitos mais importantes
para aprender a ler e escrever) e memória de curto prazo fonológica,
como uma instrução formal sobre as relações entre fonemas e gra-
femas. Crianças disléxicas tendem a demonstrar dificuldade no
desenvolvimento dessas noções. Segundo os autores, a criança
disléxica exibe um transtorno específico de aprendizagem, caracte-
rizado pela dificuldade em fazer uma leitura precisa e/ou fluente. A
importância deste trabalho, além de trazer uma discussão teó-
rica relevante para os estudos fonético-fonológicos e um apro-
fundamento nas discussões sobre consciência fonológica, está
em desenvolver um aplicativo, para dispositivos Android, a ser
utilizado tanto em atividades clínicas como educacionais, para
apoio à aprendizagem da escrita por crianças disléxicas, voltado
para atividades com rima.
O capítulo 4, O processo de mudança de posição de sujeito-ga-
go para sujeito-fluente: uma análise discursiva em grupo de apoio no
Recife (Claudemir Silva e Nadia Azevedo), também circunscrito
na área de distúrbios da linguagem, traz, por sua vez, uma dis-
cussão sobre Gagueira, histórico fantasma excludente na vida
social, particularmente nos ambientes escolares. Segundo os au-
tores, sujeitos com gagueira, além de se cobrarem muito, formam
uma imagem estigmatizada de falante, porque estão circunscritos
em uma ideologia do bem falar. Seus autores desenvolvem o estu-
do aprofundado da gagueira sob a ótica discursiva, em grupo de
apoio, com atenção à saúde e à educação. Realizado em encontros
semanais, o trabalho tem levado o grupo à reflexão sobre a ideia
equivocada acerca da suposta fluência absoluta, e que “fluência e
disfluência não se opõem”. Neste capítulo, o estudo da gagueira […]
é visto sob a perspectiva linguístico-discursiva, […] e a gagueira,
um lugar de subjetivação discursiva, numa perspectiva também
multidisciplinar.
No capítulo 5, Fala, escrita e ensino na percepção de profes-
soras alfabetizadoras (Rossana Ramos Henz e Benedito Gomes
Bezerra), os autores se voltam para a questão que despertou e
vem despertando a atenção de pesquisadores e que mudou a
concepção do ensino da leitura e da escrita como duas ativida-
des opostas e diferentes no ensino-aprendizagem da linguagem.
Discutem-se ali questões teóricas relativas ao continuum fala-
-escrita, dialogando com os estudos dos letramentos e com as abor-
dagens de base antropológica, sociológica e psicológica sobre fala e
escrita e oralidade e letramento. A discussão chama atenção para
a necessidade de um olhar adequado ao tratamento do meio so-
cial e da importância em se considerar manifestações individu-
ais e próprias ao ambiente linguístico do aluno. A contribuição
maior do trabalho está em buscar informações quanto ao conhe-
cimento de alfabetizadoras e a relação entre a teoria e a prática
em suas atividades com os gêneros orais e escritos no ensino.
O estudo multidisciplinar se evidencia, mais uma vez, no
capítulo 6, Legitimação, cognição social e cognição política: uma
análise crítica discursiva de uma entrevista de Michel Temer (Karl
Heinz Efken e Alexcina Oliveira Cirne), que utiliza a teoria so-
ciocognitiva de Van Dijk, sobretudo os conceitos de legitimação,
ideologia, cognição social e cognição política com a base epistemo-
lógica fornecida pela Teoria dos Estudos Críticos do Discurso,
com destaque para o sociocognitivismo. O trabalho está ancora-
do em uma entrevista do Presidente Michel Temer ao jornal Fo-
lha de S.Paulo, de 08 de abril de 2017. O trabalho chama atenção
para a importância da triangulação texto-cognição-estrutura so-
cial em uma análise textual do discurso e de como esses atos
estão relacionados nos níveis micro e macro de análise.
O capítulo 7, Novinha: efeitos de um já-dito na música brasi-
leira (José Reginaldo de Santana e Nadia Azevedo), tem como
temática principal a memória discursiva e traços de memória
no discurso, em músicas do brega-funk pernambucano, numa
orientação teórica e metodológica da Análise de Discurso pe-
cheutiana e nos seus desdobramentos a partir de estudos de Eni
Orlandi. Os autores fazem uma retomada de produções musi-
cais antigas, passando por alguns cantores da música popular
brasileira, enveredando pelo brega, o funk carioca e batidas de
música eletrônica, nas músicas de Mc Sheldom e Boco, Celmar
de Moraes (Moraezinho) e Sérgio Reis e Zé Ramalho, num pro-
cesso de intertextualidade com um mote do repentista Otacílio
Batista, e o Xote das meninas, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, além
do cancioneiro da música sertaneja. O corpus deste trabalho foi
constituído por recortes mobilizados a partir dessas músicas e
de notícias sobre o Brega-funk em blogs.
O capítulo, Análise crítica do discurso de ideologias médicas:
transdisciplinaridade, biomedicina e homeopatia, assinado por Moab
Acioli, que constitui o capítulo 8, também numa perspectiva da
Análise Crítica do Discurso, traz um enfoque transdisciplinar.
Utiliza o conceito de discurso de Fairclough que percebe a lingua-
gem como um elemento da vida social intrinsecamente conectada com
outros elementos da respectiva prática discursiva, (no caso da intertex-
tualidade) ou prática discursiva (no caso, os aspectos ideológicos), ana-
lisando os aspectos dialógicos e monológicos em uma entrevista
médica padrão e uma entrevista médica alternativa. O autor faz
um percurso por trabalhos em Análise de Discurso, Ideologia e
Sociologia do Conhecimento, recorrendo a nomes como Bakhtin,
Foucault e Fairclough, sustentáculos de seu aparato teórico.
O capítulo 9, Redigir ENEM: um aplicativo para aprendiza-
gem de textos argumentativos em dispositivos móveis de comunica-
ção (de Antonio Carlos Xavier e Roberta Caiado), enfoca o desen-
volvimento da competência da produção de texto e a necessidade da
aquisição da habilidade argumentativa dos estudantes, objetivando
[…], principalmente, desenvolver atividades pedagógicas com poten-
cial de se transformar em conteúdo conversível em linguagem de
computação, para constituir um aplicativo educacional, visando a
[…] auxiliar os estudantes do ensino fundamental e médio a desen-
volver sua competência escrita de textos dissertativos. O aparato
teórico utilizado na elaboração do trabalho tem suas bases na
Linguística de Texto, na Semântica argumentativa e na Pragmá-
tica Linguística, além da Teoria Sociointeracionista aplicada ao
ensino-aprendizagem de língua, dos conceitos de Multimodali-
dade, de Hipertextualidade e de Semiótica digital.
No capítulo 10, Inteligência Artificial em Ciências da Lingua-
gem: mineração e sumarização de textos, análise semântica e ferra-
mentas úteis (de Matheus Marinho, Eric de Souza, Anthony José
Lins, Fernando Jose Wanderley e Francisco Madeiro), uma área
mais recente nos estudos multidisciplinares, a da Inteligência Ar-
tificial, é abordada na interface com as Ciências da Linguagem,
num processo emergente de investigação conhecido como minera-
ção e sumarização de texto através de interações em mídias sociais,
e de análise semântica. De acordo com seus autores, a técnica é
composta por campos multidisciplinares, como recuperação de infor-
mação, análise de texto, processamento de linguagem natural junta-
mente com linguística computacional. Nesse processo, são utilizadas
ferramentas de fácil uso de Inteligência Artificial (IA), da Google
Cloud Platform e da Amazon Web Services, com funcionalidades que
permitem aplicações de interesse da área de Ciências da Linguagem.
O texto proporciona uma familiarização do leitor com conceitos e
aplicações da IA no estudo da linguagem, e uma de suas grandes
contribuições está, nas palavras de seus autores, na viabilização
da análise do comportamento de usuários por meio dos comentários
sobre um determinado produto em postagens nas redes sociais.
O capítulo 11, O ser da linguagem: Aproximações entre a Lin-
guística e a Literatura (André Luís de Araújo e Melissa Marques
Gonçalves Boëchat), revisita a antiga celeuma da polarização
linguística e literatura, defendendo uma mediação com a proposi-
ção do Ser da linguagem na aproximação das duas abordagens de
interação linguística. Aqui também são evocados nomes como
Jakobson, Bakhtin, Roland Barthes e os filósofos da diferença, no-
tadamente, Michel Foucault, Maurice Blanchot, Gilles Deleuze, Fé-
lix Guattari e Jacques Derrida, alguns já mencionados em outros
trabalhos deste livro. Nas palavras dos autores deste capítulo,
[…] Não se trata simplesmente de fazer comunicar esses domínios.
Trata-se de alterar, de deslocar a imagem que temos da Linguística
e da Literatura, criando, portanto, um espaço de trânsito pendular
entre uma e outra, em favor do enriquecimento da essência que há
na interlocução destes dois saberes.
Mais um capítulo, Escrita em língua portuguesa como segun-
da língua por surdos usuários de língua dos sinais: algumas refle-
xões, possíveis soluções, o capítulo 12 (de Jurandir Dias e Wanil-
da Cavalcanti), vem confirmar a necessidade de se recorrer à
variedade de inter-relações da Linguística com outras Ciências
para explicar os usos, estrutura e funcionamento da Língua de
sinais, na investigação do processo de aprendizagem da escrita
da Língua portuguesa por falantes da Língua de sinais. Ao con-
trário de crianças ouvintes, na criança surda a intermediação
fala-escrita se dá pela língua de sinais, caracterizada por uma
gramática própria, à semelhança do processo em crianças ou-
vintes falantes da língua portuguesa. Para o estudo, os pesqui-
sadores se apoiam em conhecimentos de ciências como a Neu-
rologia, a Psicologia e a Linguística, bem como em contribuições
da Educação. A relevância deste capítulo está em proporcionar
uma reflexão sobre o processo de aprendizagem da escrita por
surdos e da necessidade de se formar docentes, tanto em ter-
mos de conhecimento teórico quanto de sua aplicabilidade, para
que sejam capazes de identificar as dificuldades desses sujeitos,
capacitando-os para o processo de ensino-aprendizagem.
O capítulo 13, Corpo e identidade de gênero: a escrita femini-
na em espaços digitais (de Denise Lima e Dóris de Arruda C. da
Cunha), tem como suporte teórico a Teoria Dialógica do Discur-
so e as teorias de identidade de gênero para abordar questões
relacionadas à construção das identidades de gênero a partir da
representação do corpo na escrita de mulheres em espaços digitais.
Aqui, o trabalho de Bakhtin, nas discussões sobre dialogismo,
e Siblot e Moirand, nas discussões sobre o ato de nomear, e
Haraway, Scott e Butler que fundamentam a noção de identi-
dade de gênero, constituem os aportes teóricos da pesquisa. O
trabalho é baseado em postagens no Blogueiras Feministas, que
se caracteriza como um blog coletivo e político, cujo objetivo é
buscar uma sociedade mais justa e igualitária. O aporte teórico é
detalhadamente discutido, proporcionando ao leitor um apro-
fundamento nos princípios dialógicos de Bakhtin, que vê a lín-
gua como dialógica por natureza, realizada no discurso, sendo
impossível polarizá-los por serem ambos de caráter social. O
processo de nomeação como visto por Siblot vai nessa mesma
direção ao romper com a discussão sobre objeto e representação,
entendendo que entre o sujeito e a realidade nomeada existe uma
multiplicidade de interações, representações e sentidos que são rea-
justados a cada atualização discursiva, de modo que a palavra traz
uma memória e revela um ponto de vista do enunciador. A noção
de gênero está alinhada a este processo de nomeação, pois só é
possível apreender a materialidade do corpo através do discur-
so. E é também nessa linha que se dá o tratamento de gênero,
sexo e corpo. A análise do corpus mostra que os movimentos
discursivos e as nomeações utilizadas promovem uma produção
de sentidos que não apenas reconfiguram as formas de pensar
o feminino, como também, a maneira de pensar o conceito de
gênero e sua relação com o corpo. A perspectiva teórica que nor-
teia este trabalho, também na linha multidisciplinar, corrobora
a afirmação de que não se pode estudar a linguagem (intrinse-
camente social) de forma isolada.
O caminhar temático nos capítulos deste livro levou, na-
turalmente, a uma abordagem literária da Linguagem em sua
função poética. O capítulo 14, O drama trágico de Osman Lins
— Alegoria e História na peça Guerra do Cansa-Cavalo, de Gil-
berto Figueiredo Martins, e o Décimo Quinto, Efeitos do discur-
so sobre o palco: dramaturgia e representação alegórica — Uma
homenagem a Dias Gomes, de Robson Teles Gomes, em cujas
análises está presente a intertextualidade na evocação de textos
clássicos, com a linguagem cuidadosamente pinçada para uma
evocação imagética. As análises situam-se na função poética da
linguagem e oferecem uma análise à luz da teoria literária, en-
riquecendo as diversas formas de abordagem da linguagem em
seus diferentes usos e funções.
Por fim, os estudos e experiências vivenciadas com a lin-
guagem em ação aqui apresentados não apenas contribuem para
entender suas variadas interfaces com outras ciências, mas tam-
bém para conhecer melhor esse todo complexo que o homem
utiliza para sua comunicação diária. Acima de tudo, proporcio-
nam uma reflexão sobre sua aquisição e ensino-aprendizagem
em diferentes níveis, áreas e usos.
Para concluir, tomo emprestadas as palavras de Lakoff:
Marígia Aguiar
CAPÍTULO 1 ESPELHAMENTO E
FUNÇÃO POÉTICA:
O lugar ocupado pela noção de eco
em aquisição de linguagem1
Glória Maria Monteiro de Carvalho (UNICAP)
1. Introdução
O
objetivo deste capítulo consiste em aproximar as no-
ções de espelhamento (Lemos, 2002), função poética
(Jakobson, ([1963]2008) e eco (Porge, 2014) na abor-
dagem da fala da criança em um momento inicial de
sua trajetória linguística.
Ao propor a noção de espelhamento — entre mãe e criança –,
Lemos (2002) deixa claro o lugar fundamental ocupado tanto
pelo outro, quanto pela teoria linguística, na explicação das mu-
danças que ocorrem na fala da criança, durante sua constitui-
ção como falante. O espelhamento é concebido por essa autora (a
partir da leitura de Saussure, Jakobson e Lacan) como o movi-
mento pelo qual fragmentos da fala da mãe retornam na fala da
criança, reaparecendo na fala da mãe ao interpretar esses frag-
mentos. Podemos dizer que se trata de fragmentos sonoros ou de
1
Este trabalho faz parte de Projeto de Pesquisa financiado pelo CNPq, tendo sido
apresentado no IX ENAL/III EIAL – realizado em outubro de 2013 na UFPB, João
Pessoa-PB – e, posteriormente publicado, como artigo, em Carvalho (2015). Esse
artigo, com modificações, resultou no presente capítulo.
ecos da fala materna, de acordo com Porge (2014) que concebe
um estádio do eco na constituição do falante. Seriam, portanto,
deslocamentos metonímicos que são dominantes, nas produções
infantis, no início da aquisição de linguagem, implicando, já
nesse momento, o funcionamento linguístico-estrutural.
Desse modo, as leis de funcionamento estrutural (sintagmá-
ticas e associativas, segundo Saussure ([1916]1989) e metoními-
cas e metafóricas, para Jakobson ([1963]2008) possuem o mérito
de explicar, de forma genérica, tanto as produções verbais do
falante, como as produções erráticas da criança em seu momento
de mudança. Pretendemos, então, colocar em discussão a diferen-
ça específica que essas leis genéricas de funcionamento da língua
estariam assumindo no espelhamento, considerando o caráter
singular das produções verbais infantis. A expressão “differentia
specifica” é usada por Jakobson ([1963]2008, p. 119), provavel-
mente, a partir de Aristóteles ([384-322 A.C.]1987). Ao examinar,
minuciosamente, o problema da definição, particularmente, da
definição científica, esse filósofo coloca a necessidade de relacio-
nar o gênero próximo à diferença específica. Assim, ao se definir a
espécie (homem), deve-se inclui-la na classe geral, mais próxima,
que a engloba, isto é, o gênero (animal), ligando-o ao predicado
essencial (racional) que diferencia essa espécie, o que constitui
sua diferença específica, na medida em que a situa em relação às
outras subclasses do gênero.
Para uma abordagem da diferença específica que o funcio-
namento da língua assume quando se trata do espelhamento na
fala da criança, recorremos, portanto, a Jakobson (1963/2008)
que afirma: “Existe uma unidade de língua, mas esse código
global representa um sistema de subcódigos relacionados entre
si; toda língua encerra diversos tipos simultâneos, cada um dos
quais é caracterizado por uma função diferente”. (p. 122). Nesse
sentido, todas as manifestações da língua estão submetidas às
mesmas leis linguístico-estruturais; no entanto, em cada subcó-
digo ou em cada subestrutura, essas leis trazem uma marca que
a especifica.
2. Roman Jakobson e a função poética
Jakobson ([1963]2008) realça a denominada função poética,
procurando caracterizá-la a partir da posição que ela ocupa no
esquema clássico de comunicação que se constitui de seis fatores:
remetente, mensagem, destinatário, contexto, contato e código. Des-
tacando que, em cada um desses lugares, a língua assume uma
função diferente, adverte, contudo, que não se trata de uma fun-
ção exclusiva e sim, de uma função dominante, em relação às
outras que, embora se coloquem em posições secundárias, não
devem ser negligenciadas pelo linguista. A esse respeito, afirma:
“A função poética não é a única função da arte verbal, mas tão-so-
mente a função dominante, determinante, ao passo que, em todas
as outras atividades verbais, ela funciona como um constituinte
acessório, subsidiário” (p. 128). Mais adiante, coloca o linguista:
“Conforme dissemos, o estudo linguístico da função poética deve
ultrapassar os limites da poesia, e, por outro lado, o escrutínio lin-
guístico da poesia não se pode limitar à função poética”. (p. 129)
Nessa perspectiva, a função poética enfoca a própria men-
sagem, a mensagem como tal, ou melhor, trata-se do “enfoque
da mensagem por ela própria” (JAKOBSON, [1963] 2008, p. 127-
128). Já que se trata de uma volta/um retorno da mensagem
sobre ela mesma, o autor dá destaque ao eixo da semelhança,
propondo, como diferença específica, que: “A função poética
projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o
eixo de combinação. A equivalência é promovida à condição de
recurso constitutivo da sequência”. (p. 130). O linguista assinala
que as sílabas se convertem em unidade de medida, o mesmo
acontecendo com as moras e acentos. Por exemplo, em poesia,
uma sílaba é igualada a todas as outras sílabas da mesma pala-
vra, cada acento de palavra é igualado a qualquer outro acento
de palavra e fronteira de palavra iguala fronteira de palavra.
Propõe, partindo de Hopkins, que o verso é fundamentalmente,
mas não unicamente, uma figura de som recorrente, assumindo,
em seguida, a concepção de Valéry, segundo a qual a poesia
consiste na hesitação entre som e sentido. Afirma, então:
Sem dúvida alguma, o verso é uma ‘figura de som’ recorrente. Funda-
mentalmente, sempre, mas nunca unicamente. Todas as tentativas
de confinar convenções poéticas como metro, aliteração ou rima,
ao plano sonoro são meros raciocínios especulativos. Sem nenhuma
comprovação empírica. A projeção do princípio de equivalência na
sequência tem significação muito mais vasta e profunda. […] Con-
quanto a rima, por definição, se baseie na recorrência regular de fo-
nemas ou grupos de fonemas equivalentes, seria uma simplificação
abusiva tratar a rima meramente do ponto de vista do som. A rima
implica necessariamente uma relação semântica entre unidades rít-
micas […] (JAKOBSON, [1963]2008, p. 144)
4. Considerações finais
Supomos que, na fala infantil inicial, podemos indicar uma
dominância da função poética, conforme concebida por Jakob-
son ([1963] 2008), na medida em que a equivalência, ou melhor,
a semelhança sonora “é promovida à condição de recurso cons-
titutivo da sequência” (p. 130), como já foi destacado. Assim,
fragmentos sonoros de enunciados do outro (mãe) compõem a
fala infantil. Esses fragmentos, contudo, movimentam-se, isto
é, sofrem modificações, sendo essas modificações guiadas, so-
bretudo, pela semelhança de som (mas também, de ritmo ou de
acento). Em outras palavras, ao migrarem da fala do outro para
a fala da criança, os fragmentos sonoros se igualam, ou se apro-
ximam, em virtude de alguma semelhança sonora com outros
fragmentos, na escuta da criança. Por sua vez, esse movimento
de aproximação, entre fragmentos sonoros, guiado por uma se-
melhança sonora, continuaria a ocorrer no interior da fala da
criança, produzindo também modificações nesses fragmentos.
Nesse momento, os jogos sonoros infantis a que nos referimos
estariam indicando a abertura de uma via para a entrada do
significante, ou melhor, um movimento de passagem para o sig-
nificante, nas produções infantis.
Nessa perspectiva, autores que assumem a posição psica-
nalítica (por exemplo, DIDIER-WEILL, 1999, POMMIER, 2007)
propõem que, para se tornar falante, a criança precisa deixar
escapar — deixar perder/esquecer/recalcar — a dimensão sonora
da voz e conservar o sentido, o que, entretanto, somente ocorre
se o objeto voz se mantém, no sujeito, como inscrição significan-
te. A fala, portanto, exige que o som seja esquecido/recalcado.
Segundo Pommier (2004, p. 124), “O diferencial esquece o som,
recalca o som do objeto quando ele se torna uma letra que par-
ticipa da formação de um significante”.
Nesta discussão, propusemos, anteriormente, que o con-
ceito jakobsoniano de função poética ocupa um importante
lugar na investigação da aquisição de linguagem, consideran-
do a supremacia da equivalência, da similaridade. No caso da
criança, pudemos indicar uma dominância da similaridade so-
nora, provocando uma recorrência do mesmo segmento sono-
ro — ou de segmentos sonoros semelhantes — na fala infantil.
Tal dominância tornou, especialmente, visível, uma dificuldade
(impossibilidade?) de traçar um limite nítido entre similarida-
de e contiguidade. No que toca a função poética, diz Jakobson
(1963/2008, p. 140): “Em poesia, onde a similaridade se super-
põe à contiguidade, toda metonímia é ligeiramente metáfora e
toda metáfora tem um matiz metonímico”.
Destaca ainda esse autor, como uma marca inalienável do
retorno da mensagem sobre ela mesma, não somente a ambigui-
dade da referência, na poesia, mas também a ambiguidade do
destinatário e de seu remetente, afirmando:
Sobre a resistência que a fala da criança opõe à teoria linguística, ver Lier-De
2
Referências
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SAUSSURE, F. Curso de linguística Geral, São Paulo: Cultrix, [1916] 1989.
CAPÍTULO 2 A COESÃO E A
COERÊNCIA EM TECNOLOGIA
DIGITAL MÓVEL:
Produção textual de fábula imagética
Renata Fonseca Lima da Fonte (UNICAP)
Isabela Barbosa do Rêgo Barros (UNICAP)
Roberta Varginha Ramos Caiado (UNICAP)
O
objetivo deste capítulo é discutir a coesão e a coerên-
cia na fábula imagética, “O Leão e o Ratinho”, produ-
zida por alunos do oitavo período do curso de Letras
de uma universidade particular do Recife, a partir
do uso de imagens do teclado do aplicativo WhatsApp (WA).
Nossa discussão será norteada pela Linguística Textual;
pelo uso pedagógico das Tecnologias Digitais Móveis (TDM) e
pelas questões relacionadas à Semiótica.
O uso das tecnologias digitais no contexto educacional tem
favorecido novas práticas de escrita no meio digital, que deman-
dam mudanças na cultura do letramento, exigindo novas habi-
lidades, dentre elas, a capacidade de produção de textos imagé-
ticos e a reflexão sobre o uso de múltiplas semioses em favor da
produção de sentidos.
Neste capítulo destacaremos o conceito de Tecnologias
Digitais Móveis — abordando a aprendizagem móvel1 a partir
1
Autores internacionais fazem referência à aprendizagem móvel utilizando o
termo m-learning.
das práticas sociais, culturais, acadêmicas e digitais dos sujeitos,
como fator positivo e considerando aspectos semióticos, bem
como apresentaremos os critérios da coesão e da coerência, em
produções textuais imagéticas, trazendo exemplos ilustrativos
recolhidos das produções realizadas pelos discentes.
Interativo
Espontâneo/
Personalizado
formal
USO das
TDM
Reelaborado Motivado
Planejado Multimodal
O Leão e o Ratinho
Esopo
2
“Agilmente, o mesmo o agarrou, e estava pronto para matá-lo”. (ESOPO, s.d.)
está na imagem das luvas, uma vez que o sentido de agarrar é
construído na repetição de duas imagens que “seguram” a ima-
gem que está no centro, compartilhando o mesmo recurso coe-
sivo da figura 5:
Figura 5: Coesão Associação coesiva: verbo prender
3
“Estava preso e mal podia se mexer.” (ESOPO, s.d.)
ma imagens já introduzidas no texto, articulando a narrativa e
lembrando constantemente a fábula ao leitor, a partir dos seus
personagens.
(iii) Conexão — acontece quando as imagens estabele-
cem elos entre os segmentos do texto. Pode ocorrer de
duas formas: a) conexão simbólica e b) conexão por
contiguidade.
Considerações finais
Este capítulo discutiu a coesão e a coerência na fábula ima-
gética, “O Leão e o Ratinho”, produzida por alunos do curso
de Letras, a partir do uso de imagens do teclado do aplicativo
WhatsApp.
Os exemplos ilustrativos utilizados para a discussão pro-
posta revelaram que as imagens substituem o texto verbal, sem
prejuízo para os critérios da coesão e da coerência, apontando
que é possível estabelecê-los em produções textuais imagéticas.
Alguns aspectos merecem destaque a título de conclusão:
(i) os sujeitos ressignificaram e reelaboraram vários segmentos
do texto, objetivando sintetizar os fatos mais relevantes da fá-
bula original para a produção de sentido da fábula imagética;
(ii) em relação ao critério da coesão, observamos: a associação
coesiva quando os sujeitos relacionaram, semanticamente, ima-
gens; a reiteração quando eles retomaram a mesma imagem em
diferentes passagens da fábula, o que favorece, possivelmente,
a leitura imagética; a conexão simbólica, isto é, o recurso coe-
sivo utilizado para remeter às imagens vinculadas por ícones
convencionais; a conexão por contiguidade temporal quando
as imagens usadas pelos sujeitos estabeleceram uma relação a
partir da progressão do tempo da narrativa; (iii) em relação ao
critério da coerência, identificamos: a continuidade semântica
através do uso de imagens pertencentes a um mesmo campo
semântico; e a associação contextual relacionada ao uso de ima-
gens que estabelecem interpretações socioculturais dos sujeitos.
Acreditamos que os critérios da textualidade, coesão e coe-
rência, acontecem em um continuum, tanto na produção de tex-
tos verbais escritos quanto na produção de textos imagéticos,
uma vez que esses critérios estão correlacionados e vão além da
materialidade linguística.
Referências
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SANTAELLA, L. Leitura de Imagens. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2012.
CAPÍTULO 3 FONORIMA:
Um aplicativo para estimular
habilidades fonológicas em
crianças disléxicas voltado para
atividades com rima
Luciana Cidrim (UNICAP)
João Gabriel Sodré da Mota (UNICAP)
Antonio Roazzi (UFPE)
Maíra Roazzi (EAR)
Francisco Madeiro (UNICAP)
1. Introdução
A
o aprender os princípios de um sistema alfabético,
como é o caso do Português Brasileiro, a criança deve
ser instruída a perceber que a fala é composta por
unidades que podem ser segmentadas. Segundo Ca-
pellini e Conrado (2016) esse processo exige tanto o envolvi-
mento de habilidades, como consciência fonológica e memória
de curto prazo fonológica, como uma instrução formal sobre as
relações entre fonemas e grafemas.
A consciência fonológica, uma habilidade metalinguística
que envolve reflexão sobre as características da linguagem, é
um dos pré-requisitos mais importantes para aprender a ler e
escrever no início do processo de alfabetização, visto que o com-
ponente do processamento fonológico está relacionado à habili-
dade de perceber, reconhecer, refletir e manipular os segmentos
fonológicos (sílabas e fonemas) que compõem as palavras da lin-
guagem falada.
A consciência fonológica constitui, portanto, a ponte essen-
cial que conecta a linguagem oral e o sistema de signos convencio-
nalmente usados para designá-la. Assim, as crianças percebem,
discriminam, produzem, manipulam os sons da linguagem oral
e, de acordo com suas habilidades fonológicas, as transformam
em signos. Essa aquisição e domínio ocorre paulatinamente e
parte de uma sensibilidade superficial para uma mais profunda,
ou seja, inicialmente há a percepção dos segmentos maiores da
fala — palavras e sílabas — e, posteriormente, é possível lidar
com os menores segmentos da fala: os fonemas. Somente com o
desenvolvimento completo da competência fonológica pode-se
alcançar a representação sonora dos grafemas (COSTA; SOUZA;
DE ÁVILA, 2011; BURKE; COADY, 2015; CAPELLINI; PINHEI-
RO, 2015; HARTEN; ROAZZI; CARVALHO, 1995; ROAZZI;
CARVALHO, 1991; ROAZZI et al., 2013).
As habilidades de reconhecer e produzir rima e aliteração,
componentes da consciência silábica, são exercitadas com fre-
quência no ambiente escolar (WAGENSVELD et al., 2013), mes-
mo sendo habilidades adquiridas pelas crianças muito tempo
antes de iniciar a escolarização formal. A aliteração é trabalhada
anteriormente à rima, pois, no processo de alfabetização, há vá-
rias relações entre palavras que começam da mesma forma, que
começam com uma determinada letra, com a letra do nome da
criança, dos colegas, dentre outras estimulações. Já as atividades
de rima são realizadas no ambiente escolar desde a pré-escola de
forma implícita — com o uso de músicas, parlendas — mas as ati-
vidades explícitas que as envolvem são iniciadas posteriormente
às de aliteração (COSTA; SOUZA; DE ÁVILA, 2011).
A consciência fonológica permite a identificação de rimas,
de aliteração e de fonemas que podem ser manipulados para a
criação de novas palavras. Também faz da linguagem um objeto
de pensamento, possibilitando a reflexão sobre os sons da fala,
o julgamento e a manipulação da estrutura sonora das palavras
(FREITAS, 2003). É uma habilidade definida como a capacidade
para refletir sobre a estrutura sonora da fala bem como manipu-
lar seus componentes estruturais apresentando uma estreita re-
lação com o aprendizado do código escrito (MORAIS et al., 1998).
Estudos de Bradley e Bryant (1983) e Thompson e Goswa-
mi (2008) revelam que a percepção de rima se desenvolve na-
turalmente por volta dos 4 ou 5 anos de idade, sendo uma
habilidade fonológica inicial que irá colaborar para o apareci-
mento da consciência fonêmica. De fato, já a partir dos 4 anos
de idade, é comum notar crianças prestando mais atenção aos
aspectos fonológicos (sons) da linguagem falada, mostrando-se
particularmente sensíveis à cadência e ao ritmo da linguagem,
por exemplo, apreciando a rima como musicalidade, ritmo
(implicitamente) e reconhecendo a rima depois de trabalhar
na última sílaba da palavra (explicitamente). Essa percepção
da rima e dos ritmos da linguagem apresenta um efeito dire-
to, contribuindo para a criança perceber que palavras podem
compartilhar segmentos sonoros idênticos. Adicionalmente,
esta consciência da relação entre palavras baseadas na rima
leva, antecipadamente, ao conhecimento da relação entre as
palavras também no plano ortográfico.
Crianças com transtornos específicos de aprendizagem,
como é o caso da dislexia, apresentam desde cedo dificuldades
nas habilidades que envolvem consciência fonológica, como é o
caso da rima e aliteração. A dislexia é uma dificuldade especí-
fica de linguagem, de origem constitucional, caracterizada por
dificuldades na decodificação de palavras isoladas, normalmen-
te refletindo insuficiência do processamento fonológico (LYON;
SHAYWITZ; SHAYWITZ, 2003). De fato, uma criança disléxica
exibe um transtorno específico de aprendizagem, caracteriza-
do pela dificuldade em fazer uma leitura precisa e/ou fluente.
Apresenta um déficit no sistema de linguagem no nível fonoló-
gico que prejudica sua capacidade para segmentar a palavra es-
crita em seus componentes fonológicos subjacentes, consistindo
em uma dificuldade específica nos processos de linguagem para
reconhecer, reproduzir, identificar, associar e ordenar os sons e
as formas das letras, organizando-os corretamente, ou seja, difi-
culdades em fixar a correspondência entre sinais gráficos e sons
e automatizar o processo de conversão (ROAZZI et al., 2016).
As dificuldades dos disléxicos na decodificação de palavras
isoladas são muitas vezes inesperadas em relação à idade e ou-
tras habilidades cognitivas e acadêmicas. A dislexia é manifes-
tada por dificuldades linguísticas variadas, incluindo, normal-
mente, para além das alterações de leitura, um problema com a
aquisição da proficiência da escrita e da soletração.
Desenvolvimentos recentes utilizam aplicações das Tecno-
logias da Informação e da Comunicação (TIC) para apoiar as
necessidades de aprendizagem de crianças com dificuldades de
leitura e escrita, mais especificamente para o público de crian-
ças com dislexia (CIDRIM; MADEIRO, 2017; BORHAN et al.,
2018; CIDRIM; BRAGA; MADEIRO, 2018; KNOOP-VAN CAM-
PEN; SEGERS; VERHOEVEN, 2018; LEITE; CIDRIM; MADEI-
RO, 2018; LUCENA; CIDRIM; MADEIRO, 2017).
Este capítulo apresenta um aplicativo para apoio à aprendi-
zagem da escrita por crianças disléxicas voltado para atividades
com rima.
2. Revisão da literatura
O sistema alfabético de escrita associa um componente au-
ditivo fonêmico a um componente visual gráfico (correspondên-
cia grafofonêmica) e para compreensão do princípio alfabético
são necessários três fatores: (1) a consciência de que é possível
segmentar a língua falada em unidades distintas; (2) o conheci-
mento de que essas mesmas unidades repetem-se em diferentes
palavras e (3) a ciência das regras de correspondência entre gra-
femas e fonemas (GERMANO; PINHEIRO; CAPELLINI, 2009).
De fato, para adquirir a correspondência entre letra (grafema)
e som (fonema) é importante que a criança pense nas palavras
como compostas de muitos sons, que podem ser decompostos e
recompostos, analisados e manipulados, e reconheça semelhan-
ças e diferenças fonológicas entre palavras. Destaca-se que os
dois primeiros fatores são aspectos da consciência fonológica, e
isto a coloca como indispensável no desenvolvimento da leitura
e da escrita (BARRERA; MALUF, 2003; GUIMARÃES, 2003;
ROAZZI; MINERVINO; MELO, 2014).
A consciência fonológica é dividida em níveis, sendo estes:
consciência da sílaba, consciência de elementos intrassilábicos
e consciência fonêmica. A consciência de sílaba e de elementos
intrassilábicos permite que o indivíduo reconheça rimas, uni-
dades fonológicas semelhantes no final das palavras (ex.: cama/
ama), e reconheça também unidades fonológicas semelhantes
no início das palavras (pato/pacote) (FREITAS, 2003; ALVES,
2009). A consciência de sílaba e de fonemas, além de auxiliar na
aquisição da leitura, é forte preditora para o domínio da escrita
(FREITAS, 2003).
As habilidades fonológicas são necessárias para a lei-
tura e escrita, na medida em que a consciência fonológica é
um aspecto a ser integrado no reconhecimento de palavras
(CUNHA; CAPELLINI, 2009; CAPELLINI; SANTOS; UVO,
2015; UVO; GERMANO; CAPELLINI, 2017). A linguagem es-
crita deve ser considerada como um sistema de representação
da língua, cuja aprendizagem significa a apropriação de um
novo objeto de conhecimento (ROAZZI et al., 2015). A percep-
ção dos sons durante a produção da linguagem oral influencia
diretamente o desenvolvimento da leitura e da escrita (CA-
PELLINI; OLIVEIRA, 2003; PEDOTT; CÁCERES-ASSENÇO;
BEFI-LOPES, 2017).
Um teste de rima envolve a identificação de unidades cha-
madas intrassilábicas e é realizado a partir da detecção de dois
fonemas comuns. Quando essa habilidade encontra-se altera-
da, é o mecanismo gerativo de produção de palavras a partir
de sons e sílabas que se encontra prejudicado (BRYANT et al.,
1990; DUNCAN; SEYMOUR; BOLIK, 2007).
Na dislexia há dificuldade acentuada quanto às habilidades
fonológicas, constatadas pelo desempenho inferior em tarefas de
rima e aliteração quando comparado a grupos de bons leitores,
pois atenção, discriminação e percepção de segmentos seme-
lhantes da palavra encontram-se comprometidas (CAPELLINI;
GERMANO; CARDOSO, 2008).
As primeiras manifestações observadas em crianças com
dislexia aparecem na decodificação fonografêmica, quando
a criança precisa entender e utilizar a associação dos sinais
gráficos com as sequências fonológicas das palavras no início da
alfabetização (ASHA, 2005).
Pesquisadores têm defendido a hipótese do déficit fonológico
como um dos fatores causais da dislexia. Os disléxicos apresen-
tam dificuldades no uso da rota sublexical para a leitura, ou
seja, no uso do mecanismo de conversão grafema-fonema em
atividades que exigem habilidades fonológicas, como em leitura
de palavras inventadas ou na categorização de palavras quan-
to aos sons (BRADLEY; BRYANT, 1983; OLSON et al., 1990;
GALABURDA; CESTINICK, 2003; ÁVILA, 2004; SHAYWITZ,
2006; COSTA; SOUZA; DE ÁVILA, 2011; NAVAS, 2012).
A hipótese do déficit fonológico tem sido sustentada por
pesquisas em que os resultados apontam atrasos quanto à sen-
sibilidade à rima, aliteração e segmentação fonêmica durante o
desenvolvimento da leitura por crianças com dislexia (VUKO-
VIC; WILSON; NASH, 2004; SAVAGE et al., 2005; THOMSON;
GOSWAMI, 2008; GERMANO, 2008).
As crianças com dislexia têm dificuldades em perceber pa-
res de fonemas acusticamente semelhantes. A categorização do
fonema é essencial para a percepção da fala. Nos bons leitores,
as representações fonológicas estão categorizadas e armazena-
das na memória de longa duração ou longo prazo, formando
um repertório básico com o qual a escrita pode ser associada
(LÓPEZ-ESCRIBANO, 2007). Dentre as falhas no processamen-
to fonológico, encontra-se a dificuldade em realizar tarefas como
a de análise, síntese, segmentação e omissão de fonemas e rimas
(DALLY; 2006; GERMANO; PINHEIRO; CAPELLINI, 2009).
Em pesquisas realizadas com escolares disléxicos foram
evidenciadas dificuldades quanto à percepção e produção de
rima, mostrando que o déficit fonológico compromete a repre-
sentação, a análise e a manipulação fonêmica (que são necessá-
rias para gerar a representação interna da estrutura fonológica
da palavra, a partir da palavra escrita, antes mesmo de o signifi-
cado da palavra ser acessado (BARROS; CAPELLINI, 2003; CA-
PELLNI; PADULA; CIASCA, 2004). Para Germano, Pinheiro e
Capellini (2009) crianças com dislexia apresentam dificuldades
quanto à identificação de rima e produção de palavras com o
som dado, sugerindo um déficit em acessar os códigos, represen-
tações e armazenamento fonológicos. Esta dificuldade tem um
impacto sobre a aprendizagem escolar e as atividades da vida
diária que exigem leitura de textos escritos.
3. O aplicativo
O aplicativo foi desenvolvido para dispositivos Android e
é voltado para o uso educacional e clínico. A atividade propos-
ta no aplicativo é um treinamento com rima e apresenta como
recursos tecnológicos pistas auditivas, por meio da conversão
texto-fala para facilitar o reconhecimento da rima, e a escrita
das palavras na tela, por meio do touch screen, para tornar a
atividade mais atrativa.
Na Figura 1 é possível observar a tela inicial do aplicativo com
os botões de ‘iniciar’, ‘instruções’, ‘gerenciar sessões’ e ‘opções’.
Ao selecionar ‘iniciar’, o usuário é direcionado para a tela
de ‘criação das palavras’ que irão compor uma lista. No aplica-
tivo é possível adicionar, editar ou excluir uma sessão já cria-
da possibilitando que as listas sejam modificadas por meio do
botão ‘gerenciar sessões’, onde estarão disponíveis as sessões
salvas para acompanhamento da evolução da criança.
Na Figura 2 é apresentada uma sessão em que foram adi-
cionadas palavras do cotidiano (comuns) para a realização do
treinamento com rima. O aplicativo permite a criação de listas
com palavras em língua portuguesa. Da lista de palavras cria-
da, apenas uma será a palavra-alvo. Selecionada a palavra-alvo
(Figura 3), o usuário inicia a sessão.
Ao selecionar ‘começar’ (Figura 3) as palavras surgirão em
velocidade lenta, uma por vez, na parte inferior da tela (Figura
4) e começarão a subir até o limite superior da tela. No momento
em que a palavra surge, é acionada automaticamente uma ‘pista’
auditiva que reproduz a palavra através da conversão texto-fala.
Enquanto a palavra se desloca no sentido do topo da tela, o usu-
ário deverá ‘tocar’ na palavra quando rimar com a palavra-alvo.
Na Figura 5 é apresentada uma tela com o resultado de
uma atividade em que a palavra-alvo é ‘gato’. Foram utiliza-
das as palavras ‘casa’, ‘rato’ e ‘pato’ para o treinamento com
rima. Ao final da sessão, após o usuário ter ou não ‘tocado’ na(s)
palavra(s) que rima(m) com ‘gato’, é apresentado um resumo do
que foi realizado, podendo ser salvo ou não.
A cada sessão, o usuário tem três vidas indicadas por três
corações no canto inferior esquerdo da tela (Figura 6) e alcan-
çará uma pontuação máxima caso acerte todas as rimas criadas
na sessão. Se errar, perderá uma vida. Ao final da sessão ou ao
esgotar as três vidas, surge uma mensagem de fim de jogo, para-
benizando o usuário e apresentando a sua pontuação.
Em ‘opções’ o usuário pode modificar a interface alteran-
do, por exemplo, a cor do background da aplicação (Figura 7).
Figura 1 – Tela inicial do aplicativo Figura 2 – Tela de criação das palavras
Figura 3 – Tela de início da sessão Figura 4 – Tela da sessão
4. Considerações finais
Foi verificado na revisão da literatura a importância da ha-
bilidade de consciência fonológica na aprendizagem da leitura
e da escrita em crianças disléxicas e não disléxicas. Ressalta-se
a importância de considerar esta habilidade, tanto através de
programas de monitoramento (YOPP, 1988; YOPP, 1995) pro-
movendo o seu desenvolvimento, como potencializando o seu
desempenho através de aplicativos e treinamentos específicos
desde o pré-escolar até o ensino fundamental.
A proposta deste aplicativo está alinhada com uma litera-
tura que aponta a validade do uso de tecnologias no contex-
to pedagógico visando a aquisição das aptidões básicas para
a aprendizagem da leitura e da escrita. O uso de aplicativos,
softwares, e treinamentos computadorizados para a aquisição da
consciência fonológica favorece, de fato, uma mais rápida apren-
dizagem dessas competências, comparativamente com progra-
mas que utilizam materiais tradicionais sem aproveitar as po-
tencialidades das tecnologias que têm demostrado ser eficazes
nas fases iniciais da alfabetização (TORGESEN; BARKER, 1995;
MIODSUR; TUR KASPA; LEITNER, 2000; MAGNAN; ECAL-
LE, 2006; HSU, 2011; GOFFREDO et al., 2016).
Pode-se argumentar, portanto, que as características dos
programas de alfabetização educacional que exploram as fun-
cionalidades inerentes a aplicativos e programas informatizados
podem determinar um alto nível de ativação das funções aten-
cionais, favorecendo, assim, uma aprendizagem mais eficaz.
Neste capítulo foi introduzido um aplicativo para treinamento
de sessões com rima que podem ser criadas de acordo com as difi-
culdades de cada criança visando favorecer as habilidades de cons-
ciência fonológica de um modo geral. O aplicativo permite esta-
belecer níveis diferentes de complexidade das palavras utilizadas.
Como trabalhos futuros, pretende-se investir nos elementos
de interface gráfica do aplicativo. A partir de um maior aprimo-
ramento tecnológico do aplicativo, podem ser realizados estudos
que visem avaliar como a intervenção por meio da manipulação
de sons das palavras, como a rima, pode favorecer a aprendi-
zagem das habilidades de consciência fonológica em crianças
disléxicas e não disléxicas.
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), pela concessão da bolsa de apoio financeiro
à primeira autora, e ao Conselho Nacional de Desenvolvimen-
to Científico e Tecnológico (CNPq), pela concessão de Bolsa de
Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação (PIBITI)
ao segundo autor.
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CAPÍTULO 4 O PROCESSO
DE MUDANÇA DE POSIÇÃO
DE SUJEITO GAGO
PARA SUJEITO FLUENTE:
Uma análise discursiva em grupo
de apoio no Recife
Claudemir dos Santos Silva (UNICAP)
Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo (UNICAP)
Introdução
[…]Vencer o inimigo invencível
[…]Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
[…]
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição[…].
(Chico Buarque; Maria Bethânia).
S
abidamente existe a necessidade de maiores informações
e esclarecimentos em relação à gagueira, um distúrbio da
linguagem que tem afligido e acarretado malefícios na
vida social, familiar e escolar dos sujeitos. Diante des-
sa realidade, constatamos que desde a mais tenra idade, até os
dias atuais, ainda há muito preconceito e ignorância, em rela-
ção àqueles que se veem na condição de sujeitos com gagueira.
Isso porque, enquanto falantes, somos situados historicamente
e inscritos em formações discursivas (FD)1, que disseminam na
comunidade, em grupos, suas crenças, valores culturais, sociais,
exigindo, no caso, da FD da gagueira, um sujeito falante sem pau-
sas prolongadas, hesitações ou repetições fonêmicas na fala, na
maioria das vezes, por desconhecer a instabilidade da fluência.
Em decorrência disso, sujeitos com gagueira, além de se cobra-
rem muito, formam uma imagem estigmatizada de falante, porque
estão circunscritos em uma ideologia do bem falar2. A sociedade, as-
sim, inscreve-o numa suposta fala perfeita, onde essa FD ignora a
linguagem desses falantes e até interfere nela, não admitindo erros,
cobrando uma fluência absoluta na fala, sem deslizes, erros e/ou
falhas. Considerando essa argumentação, passamos a utilizar a ex-
pressão sujeito-gago, com hífen, uma vez que compreendemos que
ele foi constituído ideologicamente como mal falante, na infância,
e está nesta FD (da gagueira). Por outro lado, os sujeitos-fluentes,
ao contrário, só com o passar do tempo, quando começam a ques-
tionar os dizeres anteriores, inscrevem-se na FD da fluência, en-
tendendo que pausas, prolongamentos e/ou bloqueios fazem parte
do processo natural de linguagem e, consequentemente, passam a
se ver como sujeitos que gaguejam, porém não se cobrando mais,
porque a gagueira é vista como algo natural.
É importante destacarmos que, ao assumirmos a posição
de autoria deste trabalho, configuramo-nos como: 1) sujeitos
professores/pesquisadores da gagueira, onde, sendo analistas do
discurso, temos um interesse em comum: o estudo aprofundado
1
Uma FD corresponde a um domínio de saber, constituído de enunciados dis-
cursivos que representam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente, regu-
lando o que pode e deve ser dito (PÊCHEUX, 1988, p.160). Já para Orlandi (1996),
trata-se de lugar do sentido, da metáfora, é função da interpretação, espaço da
ideologia (ORLANDI, 1996, p. 21).
2
Tal ideologia perpassa o imaginário social do cotidiano e sustenta relações de
comunicação em que trechos de fala disfluente não são reconhecidos como lingua-
gem, como se tivessem sentido; são reconhecidos apenas por sua forma (FRIED-
MAN e PASSOS, 2007, p.147).
da gagueira sob a ótica discursiva, que procura olhar a gagueira
em grupo de apoio; 2) o primeiro autor desse trabalho já foi um
sujeito identificado à FD da gagueira, mas hoje, mudou de posi-
ção e se vê como sujeito fluente, com momentos de disfluência,
que já não se constituem mais como um problema.
Portanto, nesse contexto, circunscrevemos este capítulo,
como um trabalho que versará, basicamente, dando atenção à
saúde e educação, propondo o estudo da gagueira sob o prisma
discursivo, em grupo de atendimento, “que inclui, necessaria-
mente, o sujeito e a linguagem em sua abordagem e vê a gaguei-
ra como um lugar de subjetivação discursiva” (AZEVEDO, 2000,
p.118), não tratando a gagueira como uma doença passível de
cura, mas, ao contrário, de acordo com os estudos de Azevedo
(2000; 2006; 2013; 2016; 2018); Petrusk (2013); Silva (2016); Ca-
valcanti (2016), a gagueira é compreendida como um distúrbio
da ordem do discurso, que apresenta relação direta com os inter-
locutores, suas Formações Imaginárias (Fim) e, por consequên-
cia, atreladas às condições de produção (CP).
Em sintonia com as questões postas, até então, visando
compreender a dinâmica, a forma e o funcionamento da lin-
guagem dos sujeitos-gagos e sujeitos com gagueira (entendidos
como sujeitos-fluentes), a segunda autora mantém um Projeto
de Extensão, Ensino e Pesquisa, buscando refletir sobre o dis-
curso do sofrimento dos primeiros, gerados pela necessidade de
falar versus a dificuldade para falar, considerando-se a cobrança
do seu meio social. Assim, esse Grupo de Apoio, denominado
“Grupo de Estudos e Atendimento à Gagueira” (GEAG)3, tem
recebido tais sujeitos, além de ser espaço de ensino e pesquisa
para alunos da graduação em Fonoaudiologia e Letras e do Pro-
grama de Pós-graduação em Ciências da Linguagem, já tendo
3
Subdividido em grupos de: crianças; adolescentes (de 12 a 16 anos) e o de adul-
tos (a partir de 18 anos), com reuniões semanais todas as quartas-feiras, onde das
17.30h às 18.30h, ocorrem sessões com as crianças e adolescentes e depois das
18.30h às 20.00h, com adultos no laboratório de Práticas de linguagem, bloco G4,
7º andar, da UNICAP. A cada quinze dias, também são realizadas reuniões com as
famílias das crianças.
sido publicados inúmeros trabalhos de graduação, em forma de
TCC e PIBIC, além de dissertações de mestrado e teses de dou-
torado, já defendidos e em acompanhamento.
O trabalho no GEAG visa, entre outras questões, obter re-
sultados positivos na vida dos sujeitos que frequentam o gru-
po e, consequentemente, possibilitar reflexões nos respectivos
contextos sócio-histórico-culturais, bem como apoiar o processo
de mudança de posição discursiva, mostrando que a fluência
não é perfeita, pois fazem parte dela pausas, hesitações e pro-
longamentos. Sendo assim, afastamo-nos de postulados que res-
tringem a gagueira ao campo patológico, ao se apresentar como
uma manifestação que se dá no plano do corpo, ora sinalizando
para tensão muscular, alteração na respiração, na produção de
fala, ou ainda, como formação genética. Nesse sentido, assumi-
mos a posição de circunscrever o discurso como gênese e sítio
de surgimento e continuidade da gagueira, sob a forma pecu-
liar de efeito de interlocução e sentidos, uma vez que sujeito e
linguagem constituem-se mutuamente e, com isso, evidencia-
mos a mudança de posição de sujeito-gago para sujeito-fluente,
fazendo-os notar que possuem fluência e na prática, apoiá-los
no enfrentamento das diversas situações discursivas, seja quais
forem as suas formações imaginárias.
Considerando que o GEAG existe desde 2007 e vêm sendo
importante espaço de apoio à comunidade, ensino e pesquisa, o
presente capítulo pretende analisar o processo de mudança de
posição de sujeito-gago para sujeito-fluente em grupo de apoio
no Recife, tendo como o dispositivo teórico e analítico a Análi-
se do Discurso de linha francesa, fundada por Michel Pêcheux
(AD) e desenvolvida no Brasil por Eni Orlandi e seguidores.
4
Esta clínica é aquela que vai além da patologia para considerar o sujeito em
suas manifestações de linguagem, em sua posição no mundo, em sua maneira de
se relacionar com os outros (FRIEDMAN; PASSOS, 2007).
A preocupação em se estudar grupos, em especial nas ciên-
cias humanas e da saúde, segundo Souza et al (2011) tomou força
com o surgimento das grandes crises mundiais, época em que
se tornou fundamental trabalhar com grupos, em função da es-
cassez de agentes de saúde. Hoje, “além de possibilitar o aten-
dimento de grandes demandas em serviços públicos, o grupo
tem sua importância reconhecida na determinação do compor-
tamento individual” (SOUZA et al, 2011, p. 140). Nesse contexto,
o GEAG é fundado no 2º semestre de 2007, pela segunda au-
tora desse capítulo, tendo como objetivos principais: atender a
sujeitos com queixa de gagueira da comunidade, proporcionar
experiência profissional aos estudantes, melhorar as condições
sociais da população-alvo, gerar indicadores para a análise de
políticas públicas, incrementar a relação entre ensino, pesquisa
e extensão. Diante disso, o Grupo de Apoio se propõe a atender
crianças e pré-adolescentes (cuja faixa etária esteja entre 2 e 13
anos de idade), adolescentes e adultos (a partir de 14 anos), com
queixa de gagueira ou ter a queixa trazida pelo (a) responsável;
identificar os riscos de evolução, evitando a cronicidade das dis-
fluências apresentadas; proporcionar o encaminhamento neces-
sário, ao grupo ou a atendimentos especiais, às crianças que já
apresentem um quadro de gagueira instalada e realizar traba-
lhos direcionados à escuta das famílias dessas crianças e das que
se encontram em uma fase de gagueira natural (compreendida
como própria da aquisição de linguagem), ou não, já com um
quadro de gagueira atípica, com sinais de sofrimento pelo pro-
blema e de observação e resistência aos momentos de bloqueio.
No Grupo de Apoio, a questão da alta está bem atrelada à
abordagem proposta por Friedman e Passos (2007), que deixam
claro que não cabe ao terapeuta determinar o momento da alta
do participante, mas apontar a interpretação dos sinais ofere-
cidos por este, que deve falar sobre seu sofrimento e a relação
que isso possa ter com sua permanência no grupo. Com isso, os
sujeitos são, desde o começo do processo, convidados a assumir
sua alta. Cabe-lhes, portanto, trazer para o grupo, quando for o
caso, a intenção de deixar de frequentá-lo, a pretensão ou não de
retornar e seus motivos para tal. As estudiosas ainda reafirmam
que sair do grupo em caso de pessoas que voltam, nem sempre
é uma decisão de alta (FRIEDMAN; PASSOS, 2007; AZEVEDO,
2015; 2018a).
Com relação às estratégias, metas e metodologia de ação e
avaliação no GEAG, Azevedo (2018b) revela que há dois focos
principais:
A) Apoio
O funcionamento desse grupo se dá a partir do planeja-
mento diário realizado, previamente, pela coordenadora do pro-
jeto, professores e alunos. No GEAG, os sujeitos envolvidos par-
ticipam das atividades de linguagem, de acordo com os objetivos
planejados. Caso os objetivos não tenham sido alcançados por
completo, os mesmos poderão ser retomados na dinâmica das
atividades, posteriormente. Com os familiares, o aspecto prin-
cipal é a escuta, que perpassará todo o processo. Além disso,
podem ser realizadas palestras sobre temáticas específicas de
interesse da família e que contribuam para uma melhor com-
preensão do quadro de gagueira. Quando é necessário trabalhar
outra temática que não faça parte do conhecimento específico
da Fonoaudiologia ou Linguística, é solicitada a participação de
um profissional convidado.
Nesse espaço de apoio, há diversas atividades, tais como:
oficinas de trabalho corporal (respiração e relaxamento mus-
cular); trabalho proprioceptivo fonêmico; auto-observação de
linguagem; análise das Formações Imaginárias e das Condições
de Produção do discurso; interdiscursividade e encontro mensal
com as famílias de crianças e adolescentes com gagueira.
B) Estudos
A produção advinda das atividades implementadas consis-
te em dados importantes para o desenvolvimento de pesquisas
referentes ao Grupo de Apoio. Por isso, é importante a criação
de um banco de dados, que já vem sendo realizado. Dessa ma-
neira, as atividades são adaptadas às necessidades especiais de
seus participantes, funcionando também como um campo para
composição de acervo de dados, uma vez que todo o processo
passa por registro documental descritivo e videográfico.
Conforme se constata, o grupo oferece aos participantes um
espaço de convivência e inclusão social, nos quais os sujeitos
podem enfrentar suas dificuldades linguístico-discursivas e esta-
belecer processos alternativos de significação, pela evocação de
inúmeras práticas de linguagem, como, por exemplo, a conversa
sobre fatos de sua vida cotidiana, podendo nos mostrar que seus
discursos não se apagam frente aos problemas, de acordo com
Azevedo (2018a). Assim sendo, o grupo ressalta o papel do outro
e facilita a expressão de alterações de linguagem, ao mesmo tem-
po em que pedem intervenção do terapeuta para proporcionar
mudanças no funcionamento linguístico (FRIEDMAN; PASSOS,
2007). Reiteramos, ainda, que o trabalho com grupos se revela,
não como um espaço de prescrições, nem como um espaço mági-
co que gera transformações rápidas e eficazes, mas como local de
reflexões, de idas e vindas que permitem respeitar as diferenças
e apoiar-se nas experiências de outros para que cada um, dentro
de suas possibilidades, ressignifique a própria relação (GUARI-
NELLO; LACERDA, 2007). Logo, é a partir dessas vivências que
os sujeitos-gagos significam e se ressignificam enquanto sujeitos-
-fluentes, primeiro para si e, consequentemente, para o outro, ou,
melhor dizendo, no Grupo de Apoio, os participantes, entre um
discurso e outro, entendem e fazem-se entender por seus pares
discursivos durante todo o processo de linguagem.
5
Trata-se de uma interrupção de uma continuidade (da fala), assim, o sujeito que
gagueja é fluente e apresenta momentos de gagueira e não o inverso (PETRUSK,
2013, p.15).
apresenta uma relação direta com as CP do discurso, que são
Formações Imaginárias, apresentando a relação de forças — os
lugares sociais dos interlocutores e sua posição relativa no dis-
curso, a relação de sentido- o coro de vozes, a intertextualida-
de, a relação que existe entre um discurso e os outros, a anteci-
pação — a maneira como o locutor representa as representações
do seu interlocutor e vice-versa, ou seja, “o sujeito experimenta
o lugar de seu ouvinte a partir do seu próprio lugar”(ORLANDI,
2011, p.126-158, grifos nossos).
Em virtude disso, a gagueira se apresentará caracterizada
pela ocorrência de repetições de sons, sílabas, palavras ou fra-
ses, hesitações, prolongamentos de fonemas e/ou bloqueios ten-
sos de sons (AZEVEDO, 2000; 2006; 2013; 2015; 2018a). Daí o
sujeito-gago falará de uma forma ou de outra, dependendo do
efeito que possa produzir em seu ouvinte. Constatamos, então,
que os sujeitos-gagos para Azevedo (2013, p. 147) são aqueles
“que apresentam, de antemão, a certeza da gagueira e que, antes
mesmo de falarem, já estão certos de que a palavra será repeti-
da, bloqueada, prolongada”. Pensar o sujeito-gago é refletir sobre
uma proposta terapêutica que o tire deste lugar e o insira em
outra situação de integração social: a de sujeito-fluente, conside-
rando a fluência como relativa, porque não há fluência linear e
é sempre relativa, tendo hesitações e repetições. Vale salientar
que a gagueira é marcada pela previsão do erro iminente. Há
uma certeza a priori deste erro e é a partir da possibilidade de
errar que o sujeito-gago opta por tentar evitá-lo ou adiá-lo (AZE-
VEDO, 2000; 2006; 2013; 2018a).
3. Procedimentos metodológicos
O estudo foi desenvolvido no Laboratório de Práticas de Lin-
guagem do Programa de Pós-Graduação da Universidade Católi-
ca de Pernambuco — PPGCL-UNICAP, 7º andar, Bloco G4, sala
C3-D7, entre agosto de 2014 a dezembro de 2017, onde está cir-
cunscrito o GEAG, que atende aos sujeitos-gagos, contando com
a atuação dos pesquisadores (coordenadora dos grupos, segunda
autora, doutorando em Ciências da Linguagem, primeiro autor,
bolsistas da graduação em Fonoaudiologia, de Iniciação Científi-
ca (PIBIC) e de Extensão, além de alunos voluntários). Nesse con-
texto, realizamos uma pesquisa qualitativa do tipo etnográfico,
pois de acordo com André (2008), uma das características dessa
pesquisa é o envolvimento num trabalho de campo, no qual o
pesquisador se aproxima de pessoas, situações, locais, eventos,
mantendo com eles um contato direto. Atrelado a isso, um es-
tudo longitudinal (prospectivo e/ou retrospectivo), propiciando
uma sequência temporal para estudar um processo ao longo do
tempo, investigando mudanças (HOCHMAN et al, 2005).
Esclarecemos que a pesquisa faz parte de um projeto maior
da segunda autora, intitulado: Aquisição e distúrbios de Lingua-
gem sob a ótica linguístico-discursiva, submetido e aprovado
pelo CEP/UNICAP sob o CAAE 61291316.3.0000.5206.
Ressaltamos que o participante desse trabalho, sujeito-gago
(sexo masculino) foi selecionado mediante contato prévio, aten-
dendo aos critérios abaixo, em que deveria: a) participar das ses-
sões do GEAG, que ocorre semanalmente às quartas-feiras, das
18h30 às 20h; b)ser de faixa etária acima de 18 anos e c) aceitar
livremente a participação na pesquisa e assinar o termo de livre
consentimento e aceitação (TCLE).
Para tanto, toda leitura precisa de um artefato teórico para
que se efetue, e à luz da AD, pudemos constituir o corpus discur-
sivo que nos levou à eleição do recorte discursivo da pesquisa
e posterior análise com base nos procedimentos do próprio ar-
tefato teórico-metodológico (ORLANDI, 1996), Dessa maneira,
para melhor compreendermos a proposta teórico-metodológica
da AD, bem como mais de seus conceitos teóricos basilares,
trataremos de analisar o processo de mudança de posição de
sujeito-gago para sujeito-fluente em grupo de apoio no Recife.
Salientamos que constituímos o recorte discursivo a seguir, por-
que compreendemos que, nele, o participante já mostra uma
avaliação da sua participação no grupo e podemos observar a
mudança de posição de sujeito-gago para sujeito-fluente, consi-
derando a fluência como relativa. Para tanto, mobilizamos as
seguintes concepções da AD: Formações Imaginárias (Fim) e
Formações discursivas (FD), já trabalhadas na teoria. É impor-
tante esclarecer que o sujeito se identifica a uma FD, mas, ao
questioná-la, se contraidentifica. Em seguida, pode se desiden-
tificar dessa FD (no caso em questão, da FD da Gagueira) e, ao
mesmo tempo em que se desidentifica, se insere em nova FD,
aqui, a FD da Fluência.
Informamos que o recorte discursivo está exposto em um
quadro, apresentando o sujeito-gago investigado (A), o pesquisa-
dor (P), e os números complementares a A são os segmentos dis-
cursivos, isto é, cada momento de fala do participante, marcado
em negrito o que nos parece mais evidente.
RECORTE DISCURSIVO
Considerações finais
Diante do que foi mencionado, até então, constatamos que,
ao longo dos encontros nas sessões no GEAG, para os sujeitos,
inicialmente, a gagueira é um caminho sem volta, sendo per-
meado por muitos invólucros que a situam no campo do senso
comum, materializando discursos do tipo: “uma vez gago, para
sempre gago”, “a gagueira é uma doença, portanto, não tem cura!”.
Atrelado a isso, tais sujeitos chegam ao Grupo de Apoio bus-
cando a utópica ideia da fluência absoluta e, isso, infelizmente,
tem sido perpassado ao longo de gerações às FD, por meio do
interdiscurso (historicidade, memória do dizer), que é o lugar
das formações ideológicas (FI) com suporte em diferentes filia-
ções teóricas que restringem o problema aos aspectos do corpo
e da fala.
Ao longo das sessões semanais no Grupo de Apoio, temos
procurado refletir, entre outras coisas, sobre a ideia equivocada
acerca da suposta fluência absoluta, já que “fluência e disfluên-
cia não se opõem” e, logo, na prática, “a fluência inclui a disflu-
ência” (FRIEDMAN, 2018c, s/p).
Como enfatizamos, anteriormente, ao propormos, neste ca-
pítulo, o estudo da gagueira sob a perspectiva linguístico-dis-
cursiva, em grupo, necessariamente, isso inclui: “o sujeito e a
linguagem em sua abordagem e vê a gagueira como um lugar de
subjetivação discursiva” (AZEVEDO, 2000, p.118),
Partindo desse princípio, nessa tessitura, no processo de
funcionamento discursivo, produzimos discursos de acordo com
os efeitos que desejamos causar em nossos interlocutores, falan-
do a partir da concepção que temos do outro e da posição-sujeito
que acreditamos que ocupam na sociedade. Sendo assim, infe-
rimos, a partir do recorte discursivo constituído, baseados nos
estudos de Azevedo (2000; 2006; 2013; 2015; 2018a); Petrusk
(2013); Silva (2016); Cavalcanti (2016), que a gagueira é compre-
endida como um distúrbio da ordem do discurso, apresentando
relação direta com os interlocutores, suas formações imaginá-
rias e, consequentemente, atreladas às condições de produção,
essa última, sendo compreendida como circunstância de enun-
ciação e contexto sócio-histórico, ideológico, isto é, os discursos
dos sujeitos-gagos são produzidos tendo em vista a relação de
forças (a posição que se ocupa nos lugares sociais), a relação de
sentido (a interdiscursividade) e a antecipação, (representação
que os sujeitos fazem de si e do outro no discurso).
Portando, nessa composição, no processo de mudança de
posição de sujeito-gago para sujeito-fluente, inicialmente, per-
cebemos que, chegando ao GEAG, o sujeito mostrou-se, de iní-
cio, identificado com a FD da gagueira, revelando dizeres
de incapacidade, que desqualificavam a sua fala gaguejada e
interditava o seu posicionamento frente às várias situações coti-
dianas. A partir das reflexões construídas ao longo das sessões
em grupo, observamos que os pesquisadores fazem, à época,
aquele, então, sujeito-gago, entender que fazer-se compreender
por seu par discursivo é o mais importante na interlocução no
funcionamento discursivo. No grupo, também, é discutido que a
fluência não é linear, sem erros, mas relativa, oscilante, portan-
to, houve uma ressignificação dos dizeres postos pela sociedade
sobre a questão do que seja a fluência, a gagueira e descobriu-se
que é autor da sua voz, dos seus discursos e da sua fala. O su-
jeito A passou a questionar os dizeres da FD anterior e, é nesse
momento que assume uma nova FD — da fluência, pois há,
de fato, uma mudança de posição discursiva, mostrando que a
fluência é relativa e que todos nós temos momentos de gagueira.
Desta forma, ao se contraidentificar (questionar saberes)
e desidentificar-se de ideias que circunscrevem a gagueira ao
campo patológico e assumir-se em outra FD, o sujeito compre-
ende que não existe fluência absoluta, pois a gagueira é apenas
um momento da fala, a linguagem é incompleta, marcada no
equívoco, pela falta, que o sujeito é capaz de produzir qualquer
significante desvencilhando-se da preocupação com a forma
como falará.
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CAPÍTULO 5 FALA, ESCRITA
E ENSINO NA PERCEPÇÃO DE
PROFESSORAS ALFABETIZADORAS
Rossana Ramos Henz (UPE)
Benedito Gomes Bezerra (UNICAP/UPE)
Introdução
E
ste trabalho visa discutir as relações entre fala e escri-
ta na perspectiva de professoras alfabetizadoras, tendo
em vista o processo de ensino/aprendizagem da escrita
alfabético-ortográfica nos anos iniciais do Ensino Fun-
damental. As diferentes visões sobre a relação fala e escrita, ou
sobre oralidade e letramento, se constituem como conhecimento
básico para quem ensina a ler e a escrever, considerando que
essas relações entre fala e escrita se refletem a todo momento na
realização de textos orais e escritos. A primeira descoberta de
uma criança ao entrar em contato com a escrita é a de que ela
pode “dizer” coisas por escrito, tanto quanto por meio da fala.
Todavia, ao longo do processo de alfabetização, deve ocorrer um
aprendizado específico e ampliado das particularidades e possi-
bilidades de uso de ambas as modalidades de uso da língua: fala
e escrita. Falar de um modo e escrever de outro, dependendo
do gênero textual/discursivo1 em foco, é uma dessas particula-
1
Para mero efeito de desambiguação dos diferentes sentidos do termo gênero na
língua portuguesa, acrescentamos aqui a expressão textual/discursivo. Doravante,
ridades. Contudo, se essa peculiaridade não for compreendida
pela professora como uma adequação da língua aos usos oral
e escrito, é possível que ela (a professora) incorra em diversos
equívocos conceituais, como, por exemplo, o que verificamos
nesta pesquisa com nossas entrevistadas, professoras dos anos
iniciais, que consideram que os desvios da norma padrão na
escrita das crianças estão relacionados a uma “fala incorreta”,
sobretudo à fala daquelas que vivem na zona rural.
Uma hipótese que orientou o estudo foi a de que eventu-
ais limitações das professoras alfabetizadoras, em sua maioria
pedagogas, decorreriam da própria formação acadêmica, como
se evidencia no currículo dos cursos de Pedagogia, que não ofe-
recem um conhecimento adequado sobre estudos linguísticos
imprescindíveis a quem ensina a ler e escrever. Em virtude des-
sa carência de um conhecimento teórico adequado por parte
das professoras, o que se observa em relação à competência dos
alunos do ensino básico para os usos da linguagem é um cenário
trágico que se revela por meio das avaliações nacionais e inter-
nacionais no que se refere à leitura e a escrita.
O que aqui se questiona não é o curso de graduação em si,
voltado para uma atuação polivalente — a professora pedagoga en-
sina escrita, leitura, aritmética, História, Geografia etc. — mas o
tipo de conhecimento que deveria ser adquirido em sua formação
superior no que diz respeito às teorias e estudos linguísticos que
respaldam entre tantas questões a relação entre fala e a escrita.
Entendemos que a questão se amplia quando se observa
no ensino da escrita uma visão estreita que considera apenas o
plano estático do texto oral ou escrito sem a devida aproximação
com as dinâmicas das construções sociointerativas entre sujeito/
texto/contexto, que consideram os fatores extralinguísticos, com-
preendendo não somente a materialidade textual (os aspectos
2
Atitudes linguísticas são aqui consideradas, a partir da Sociolinguística, como
o julgamento dos falantes sobre os comportamentos linguísticos.
quadramento nas noções convencionais da escrita e da oralida-
de, mas não ao ponto de configurar uma suposta “nova língua”
em uso nos ambientes virtuais.3 A fala e a escrita se atualizam
em diferentes gêneros, inclusive no meio digital, e em todas as
suas situações de uso a linguagem verbal é intrinsecamente va-
riável, independentemente da modalidade em que é usada.
3
Sobre esse tema, ver Bezerra (2013).
na forma escrita e percebidos na forma oral, como é o caso das
notícias veiculadas no rádio e na televisão. É também o que
ocorre com as orações (textos religiosos) que são originalmente
produzidas na forma escrita e realizadas oralmente.
Desse modo, Marcuschi (2002) recomenda cautela quanto
à identificação dos gêneros como orais ou escritos em face da
heterogeneidade e da hibridez em relação aos seus usos. O que
se percebe nesse campo é que há uma expectativa por parte dos
interlocutores quanto à realização do gênero. Há uma espécie de
“negociação” comunicativa que envolve diversas semioses como
imagens, signos verbais, sons e formas em movimento. Desse
modo, em face da multiplicidade de elementos, torna-se comple-
xa uma tentativa de conceituar gêneros orais e escritos, a não ser
por uma perspectiva concreta que os identifique pelo suporte da
voz ou da imagem (escrita). Em outras palavras, o único atributo
que concretamente caracteriza uma oposição entre fala e escrita
diz respeito ao meio sonoro em que se realiza a primeira e o
meio gráfico/visual em que se realiza a segunda.
Embora ainda persistam no ensino de língua as concep-
ções pautadas na dicotomia e nos mitos que atribuem à fala
um status inferior à escrita, a partir dos anos 90, os Parâmetros
Curriculares Nacionais de língua portuguesa já indicam práti-
cas pedagógicas pautadas na oralidade:
Seria interessante que ela soubesse algo mais sobre essa questão para
enfrentar sua tarefa com maior preparo e maleabilidade, servindo até
mesmo de orientação na seleção de textos e definição de níveis de lin-
guagem a trabalhar. Parece que a escrita tem uma perspectiva na esco-
la e outra fora dela. A perspectiva da dicotomia estrita oferece um mo-
delo muito difundido nos manuais escolares, que pode ser considerado
como a visão imanentista que deu origem à maioria das gramáticas
pedagógicas que se acham hoje em uso. Sugere dicotomias estanques
com separação entre forma e conteúdo, separação entre língua e uso e
toma a língua como sistema de regras, o que conduz o ensino de língua
ao ensino de regras gramaticais (MARCUSCHI, 2001, p. 35).
Questão 1:
Questão 2:
Como você vê a escrita dos alunos das séries iniciais? Ocorre algo
relacionado à fala e à escrita?
5
Período em que a criança utiliza desenhos, letras e outras formas para repre-
sentar a escrita sem que haja nestes registros qualquer relação entre fonemas e
grafemas para formar palavras.
estar atrelada a uma metodologia), certamente demanda uma
reflexão mais ampla por parte de professores e alunos no que
diz respeito à fala e à escrita. Todavia, a aplicação desse pro-
cesso de alfabetização, sem a devida compreensão do professor
sobre o percurso cognitivo dos alunos e o conhecimento sobre
as questões linguísticas que ali se constituem, pode fragilizar
a mediação entre os sujeitos (as crianças) e o objeto (a escrita),
conforme observamos na fala da entrevistada que declara: …
quando eles escrevem errado, eu vou lá e digo como é o correto. A
atitude simples de dizer que algo na escrita do aluno está errado
evidencia a limitação de uma professora que não reflete nem
provoca na criança a reflexão sobre o “erro”.
Questão 3:
Marco o que está errado e peço pra eles consertarem. Às vezes, escrevo
as palavras na lousa para eles verem como é a forma certa de escrever.
Isso é o mais comum que a gente vê nos textos deles… acho que é falta
de leitura também porque quando a gente lê, aprende melhor. … Cos-
tumo fazer correção coletiva, coloco o texto no Datashow e a gente vai
corrigindo juntos.
Digo pra ela que a escrita e a fala são coisas diferentes, a gente fala de
um jeito e escreve de outro.
Aí, ela vai aprendendo com a correção e também com a leitura dessas
palavras. Procuro sempre mostrar o jeito certo de escrever.
Considerações finais
Sobre o objetivo da pesquisa, que compreendeu discutir as
relações entre fala e escrita na perspectiva de professoras alfa-
betizadoras, com vistas ao processo de ensino/aprendizagem da
escrita alfabético-ortográfica nos anos iniciais do Ensino Funda-
mental, nossas considerações apontam para observações como
a de que o professor alfabetizador é um profissional da língua
e, por isso, necessita conhecer seu funcionamento para que te-
nha capacidade de trabalhar mais facilmente a valorização da
oralidade como mediação necessária para a aquisição da escrita.
Entendemos que a questão está na formação, ou seja, nos es-
paços de aprendizagens compartilhadas no próprio sistema. Segun-
do as declarações das entrevistadas, os conhecimentos na área de
linguagem são parcos e insuficientes para a tarefa de alfabetizar e
ampliar a competência linguística dos alunos no que diz respeito
às relações entre fala e escrita, por exemplo, com referência à con-
cepção da variante “do sítio” como incorreta, refletindo na escrita
de forma negativa. Também nos chamam atenção as soluções para,
por exemplo, os casos de escrita fonética que, segundo as professo-
ras, se resumiria à simples correção da palavra, individual ou coleti-
vamente, sem que haja qualquer reflexão sobre as particularidades
da escrita, sobretudo, no que se refere aos usos praticados na fala.
Outra questão relevante é as professoras atribuírem à “falta
de leitura” a incorreção na escrita, o que nos parece incoerente,
tendo em vista que as crianças se encontram em período de
alfabetização. Assim, ainda que a concepção de que a leitura
influencia diretamente a escrita fosse absolutamente comprová-
vel, trata-se de estudantes que ainda não praticam a leitura de
forma contínua e fluente.
Assim como essas questões aqui expostas, há outras a se-
rem resolvidas quando se trata de compreender a fala e a escrita
como fenômenos inter-relacionados, porém com características
particulares em virtudes de seus usos. Os resultados sugerem
a existência de inúmeras lacunas na formação e na prática do
professor alfabetizador. Falta-lhes maior sustentação teórica, do
que decorre a dificuldade de refletir, tomar as devidas decisões
e saber como intervir em determinadas situações.
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CAPÍTULO 6 LEGITIMAÇÃO,
COGNIÇÃO SOCIAL
E COGNIÇÃO POLÍTICA:
Análise crítico-discursiva de uma
entrevista de Michel Temer
Karl Heinz Efken (UNICAP)
Alexcina Oliveira Cirne (UNICAP)
Introdução
D
esde a posse de Michel Temer, em 31 de agosto de
2016, processos democráticos e livres de formação
da vontade e de decisão sofrem fortes ameaças: a
liberdade de expressão, a subtração de recursos de
programas sociais, as alterações das leis trabalhistas e o aumen-
to de salários dos altos escalões dos três poderes sucateiam o
país. O período pós-impeachment não revela maior cuidado para
com princípios éticos e da justiça, mas favorece, abertamente,
os feudos partidários, os donos do poder e o grande capital. O
governo Temer, desde o seu início, é marcado por escândalos de
corrupção envolvendo, além dele mesmo, seus ministros, alia-
dos políticos e seu partido. Temer foi denunciado por corrupção
passiva, obstrução da justiça e organização criminosa, o que
mostra a natureza falaciosa do seu discurso em torno da mo-
ralização da política, de salvar a pátria e de colocar o país nos
eixos. O presidente da república, Michel Temer, é o que obteve o
mais baixo nível de popularidade, segundo mostram pesquisas
realizadas nos últimos dois anos.
Vale ressaltar que Michel Temer é um dos alvos principais
na delação da JBS e, na delação da Odebrecht, é acusado de ter
participado de esquemas contratuais fraudulentos entre a Petro-
brás e a Odebrecht. Após sete meses do afastamento por proces-
so de impeachment da presidenta eleita pelo voto popular, Dilma
Rousseff, e de iniciado seu período governamental, Temer inicia
o exercício da presidência, e concede entrevista ao jornal Folha
de S.Paulo em 08/04/2017, defendendo seu modus operandi de go-
vernar. Objetivamos analisar e compreender até que ponto o
discurso do presidente, materializado em tal entrevista, mobili-
za estratégias linguístico-discursivas para conferir legitimidade
às práticas institucionalizadoras da corrupção, além de natura-
lizar e de banalizar esta prática.
Momentos de crise abrem espaços para a existência de pro-
cessos de legitimação de discursos políticos para manter espa-
ços de poder. (Cf. BOURDIEU, 1989; 2003). O discurso político
revela, em suas marcas discursivas, um processo de fortaleci-
mento e de legitimação de pessoas e de grupos no espaço de
prestígio e poder. (VAN DIKK, 2006; CHOULIARAKI; FAIR-
CLOUGH, 1999; ELSHARKAWY, 2016; PARDO ABRIL, 2013;
HART, 2014).
Utilizamos a teoria sociocognitiva de Van Dijk (2003, 2006,
2009, 2010), sobretudo os conceitos de legitimação, ideologia,
cognição social, cognição política para a análise do corpus, que
é uma entrevista de Michel Temer, concedida ao jornal Folha
de S.Paulo, e publicada em 08 de abril de 2017. Dividimos o
artigo em três partes: a primeira apresenta a proposta dos Es-
tudos Críticos do Discurso, com ênfase no sociocognitivismo;
a segunda objetiva expor os conceitos de legitimação, cognição
social e cognição política; a terceira dedica-se à análise do cor-
pus: entrevista do presidente Michel Temer ao jornal Folha de
S.Paulo.
1. A proposta do sociocognitivismo na
análise crítica do discurso
A análise crítica do discurso (ACD) surgiu no início dos
anos 1990, precisamente em janeiro de 1991, num simpósio em
Amsterdã, no qual estavam presentes Norman Fairclough, Teun
van Dijk, Gunther Kress, Theo van Leeuwen e Ruth Wodak. No
entanto, antes desse evento, que marcou o início oficial da ACD,
o ramo, conhecido como linguística crítica, já apresentava, nos
anos 70 e 80, os primeiros sinais do enfoque que a ACD amplia-
ria posteriormente, qual seja, o reconhecimento que a ação no
mundo se dá a partir do discurso. (WODAK, 2003; RAMALHO,
RESENDE, 2006; MAGALHÃES, 2003). Van Dijk (2005, p. 13)
pontua, também, o início de uma época, que ampliou o olhar
das análises no campo da linguística, “a linguística dos anos 60
tinha pouco que ver com o discurso; portanto, o passo a passo
seguinte foi largar as gramáticas das frases para as gramáticas
dos textos”. Ele continua o relato sobre o Simpósio em Amster-
dã, a partir da exposição do desenvolvimento1 de suas pesquisas
e estudos, bem como revela-nos o interesse que moveu o encon-
tro desses pesquisadores em 1991:
Nos anos 90, este trabalho sobre discurso, cognição, notícias e racis-
mo precisava de outra dimensão. Primeiro, o estudo do racismo não
é obviamente o único modo através do qual nós podemos analisar de
forma crítica o modo como o poder e a dominação são reproduzidos
na sociedade. O mesmo se passa relativamente ao sexismo, classicis-
mo e a outras formas de abuso de poder. Por esta razão, eu e muitos
1
Wodak e Reisigl (2015, p. 580, tradução nossa) mencionam, em relação às pes-
quisas de Van Dijk, que “desde a década de 1990, Van Dijk realizou uma série de
importantes estudos de caso sobre “elite racial” e racismo na imprensa, bem como
na política”. Outra pesquisa também faz referência aos avanços feitos por Van
Dijk na elaboração da sua proposta sociocognitivista: “o trabalho teórico de Van
Dijk sobre o processamento do discurso progrediu tremendamente, nos últimos
30 anos, desde seu foco inicial na compreensão e produção do discurso, até sua
incorporação de modelos mentais e, finalmente, à sua consideração mais recente
do contexto e da ideologia.” (ADDISON, 2013, p.12, tradução nossa).
outros acadêmicos juntamo-nos e propusemos uma abordagem ‘crí-
tica’ global ao estudo do discurso, a que chamamos de Análise Crítica
do Discurso (ACD), mas que genericamente falando deve ser desig-
nada de Estudos Críticos de Discurso (ECD), por que não estamos
apenas interessados na análise, mas também na teoria, aplicações e
outros e outros aspectos da abordagem crítica ao discurso.
Quadro elaborado pelos autores segundo o trabalho de Hart (2010, p. 16, tradução nossa).
2
Sugerimos a leitura dos trabalhos de Ortega (2018), Natale (2015) e Tomazi e
Natale (2015) devido às analises dos corpus se debruçarem no movimento analítico
de micro e macro nível da teoria sociocognitivista.
Elementos da análise micronível e macronível no sociocognitivismo
Quadro criado pelos autores com base em Van Dijk (2006; 2008b; 2014a; 2015)
Gráfico elaborado pelos autores com base em Van Dijk (1997; 2001; 2010).
3
É importante destacar que a evidência experimental do fracionamento da me-
mória humana desenvolveu-se apenas nos últimos trinta anos, ou seja, são avanços
recentes. Reis (2014, p. 23) pontua os avanços nos estudos sobre memória: “No fi-
nal da década de sessenta Richard Atkinson e Richard Shiffrin ampliam o modelo
de James e passam a explicar a memória de uma forma alternativa, dividindo-a em
três níveis de Armazenamento: (1) Armazenamento Sensorial – de armazenamento
relativamente limitado, por um período breve de tempo, (2) Armazenamento de
Curto Prazo com período de tempo um pouco maior, mas ainda com capacidade
limitada de armazenamento e (3) Armazenamento de Longo Prazo com capacidade
grande de armazenamento de informações por um longo, e talvez infinito período
de tempo (Sternberg, 2000). Atualmente, os psicólogos cognitivos descrevem estas
estruturas como “Memória Sensorial” (MS), “Memória de Curto Prazo” (MCP) e
“Memória de Longo Prazo” (MLP).”
declarativa é dividida em memória episódica (ou individual) e
memória semântica (ou social).
Na memória semântica ou memória social, são armazena-
das as crenças coletivamente compartilhadas de uma sociedade,
como também as informações mais gerais e abstratas. Podemos
designá-la como “aquela para os conhecimentos e fatos gerais so-
bre o mundo. Bem como para as regras de lógica que são usadas
para deduzir4 outros fatos”. (FELDMAN, 2015, p. 211). Segundo
Van Dijk (1992), a memória semântica contem as representações
discursivas já generalizadas a partir desses conhecimentos com-
partilhados sobre o mundo.
A memória episódica retém experiências e eventos pesso-
ais ou narrados (por exemplo, formaturas, casamento, início ou
término de relacionamentos) bem como padrões extraídos des-
sas experiências. (KRZYZANOWSKI; WODAK, 2017; HART,
2010). Como afirma Reis (2014, p. 25), “é a memória dos detalhes
biográficos das nossas vidas particulares”. De acordo com Van
Dijk (1992), na memória episódica há representações discursivas
ainda não generalizadas. (Cf. TURAZZA, 2005).
Quanto à memória de curto prazo, ela pode “ser pensada
como o que está em nossa mente: é o que estamos conscientes
em um momento particular no tempo, e o que estamos cons-
cientes constantemente muda à medida que nossa atenção muda
de uma coisa para outra.” (CULPEPER, 2001, p. 58, tradução
nossa). A expressão ‘curto prazo’ faz jus ao termo, pois as infor-
mações ficam retidas num curto período de tempo, em torno de
15 a 25 segundos (FELDMAN, 2015), pois, na memória de curto
prazo, há um limite para armazenamento. (Cf. MILLER, 1956).
Na memória de curto prazo, a informação adquire seu primeiro
significado, embora possua “capacidades representacionais in-
4
Sobre essa questão relacional da memória semântica, Abreu et al (2014, p. 108)
afirma que “os conceitos que constituem a memória semântica se distribuem em
redes de módulos interconectados conforme proximidade de significado entre eles.
Por exemplo, o conceito de fogo está fortemente associado ao conceito incêndio e
mais fracamente com o conceito de água”.
completas” (FELDMAN, 2015, p. 207), isto é, sua capacidade de
estocagem é limitada a 7 ou 8 dígitos, e no caso de conterem mais
dígitos do que 7 ou 8, pode ser usada a técnica de agrupamento
de informações em sete blocos ou agrupamentos. Por exemplo:
PSBFOXCNNABCCBSMTVNBC
5
Ensaio é a repetição de informações que entraram na memória de curto prazo.
O ensaio elaborativo “ocorre quando a informação é considerada e organizada de
alguma maneira” .(FELDMAN, 2015, p. 209).
6
Para maiores informações sobre as diferenças entre a memória de longo prazo
e a memória do curto prazo, indicamos a leitura do artigo What are the differences
between long-term, short-term, and working memory?, de Nelson Cowan (2008).
2. Legitimação, cognição social e cognição política na
perspectiva dos Estudos Críticos do Discurso
Van Dijk (2010; 2014a, 2014b) menciona que os Estudos
Críticos do Discurso mantêm um roteiro de questões e preocu-
pações permanentes nas suas pesquisas e articuladas por numa
rede interdisciplinar:
[…] a maioria dos tipos de ACD fará perguntas sobre o modo como
as estruturas específicas do discurso são organizadas para reprodu-
zir dominação social, quer façam parte de uma conversação, quer
façam parte de uma reportagem jornalística ou de outros gêneros
e contextos. Dessa forma, o vocabulário típico de muitos estudiosos
da ACD apresentará noções como “poder”, “dominação”, “hegemo-
nia”, “ideologia”, “classe”, “gênero”, “raça”, “discriminação”, “interes-
se”, “reprodução”, “instituições”, “estrutura social” e “ordem social”,
além das noções analíticas do discurso mais familiares. (VAN DIJK,
2010, p. 116).
7
Silva (2014, p. 45) afirma que a legitimação “é uma consequência de uma inter-
pretação que presume consenso, é “uma visão de mundo que legitima a autoridade”
(HABERMAS, 2002 [1973], p.129). Esta “leitura de mundo” se processa por meios
sociocognitivos, que envolvem tanto atores e grupos políticos, como o próprio povo
brasileiro que pode vir a reconhecer o discurso mitigador da corrupção como legíti-
mo; e é o que se vê na esfera pública (JOVCHELOVICH, 2000)”. (SILVA, 2014, p. 45).
legitimação é atuar como estratégia discursiva “para naturalizar
uma dada ideologia”. (SILVA, 2014, p. 380).
Dessa forma, Van Dijk (2006, p. 319) afirma que a legiti-
mação “é um discurso que justifica a ação ‘oficial’ em termos
de direitos e obrigações associados a esse papel político, social
ou legal”. A legitimação é uma das principais funções sociais da
ideologia, na qual ideologia, em Van Dijk (2005, p. 54, 55, 190),
é definida como “princípios básicos que organizam as atitudes
partilhadas pelos membros de um grupo”. Em outro trabalho,
ele a conceitua como “estruturas cognitivas”, “uma espécie de
crença, ou seja, representações mentais”. Ele acrescenta, ainda,
que a ideologia é “a base ‘axiomática’ das representações men-
tais partilhadas pelos membros de um grupo social. Isto é, elas
representam os princípios básicos que governam o julgamento
social — aquilo que os membros dos grupos pensam estar certo
ou errado, ou ser verdadeiro ou falso”. (VAN DIJK, 2005, p. 54,
55, 190). Diante dessa dinâmica teórica proposta por Van Dijk
(2006, p. 322), há uma relação entre ideologia e legitimação que
ocorre dentro de uma rede de articulação:
3. Análise do corpus
O corpus desse trabalho tem como unidade de análise uma
entrevista, intitulada “‘Acho que não cometi nenhum erro’, diz
Temer sobre seu governo”8, composta por 18 perguntas, entre-
vista concedida pelo presidente da república, Michel Temer9, ao
Jornal Folha de S.Paulo, publicada em 08 de abril de 2017, em
sua plataforma on line. Propomo-nos uma análise do discurso
do presidente, a partir de um enfoque sociocognitivo e com base
em categorias temáticas que enquadramos recortes de trechos
da entrevista. Sendo assim, procedemos, em seguida, à análise
do corpus com as seguintes categorias: 1) legitimação; 2) cogni-
ção social e 3) cognição política.
8
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/04/1873827-acho-que-nao-come-
ti-nenhum-erro-diz-temer-sobre-seu-governo.shtml
9
Período de seu governo: 31 de agosto de 2018 a 31 de dezembro de 2018.
3.1. Categoria 1: Legitimação (perguntas/respostas 1ª, 2ª, 3ª e 6ª)
3.2. C
ategoria 2: Cognição social (perguntas/respostas
9ª, 10ª, 11ª, 12ª,13ª)
Considerações finais
Mobilizamos as categorias, acima mencionadas, na análise
crítica da entrevista de Michel Temer, e constatamos, por parte
do presidente, estratégias discursivas de legitimação do seu pró-
prio desempenho enquanto líder do executivo e da atuação do
seu governo, fortemente criticado e questionado quanto ao seu
envolvimento em práticas de corrupção. Temer acessa represen-
tações mentais a fim de desconstruir as perguntas formuladas
pelo repórter, assim como as críticas e acusações levantadas
contra o seu governo, estabelecendo uma forte ligação entre o
seu modo de pensar e agir (pretensamente) e cognições sociais e
políticas atuantes no seio da sociedade brasileira e de determina-
das instituições, o que possibilita, por exemplo, o entendimento
que as relações institucionais podem validar comportamentos
fora da lei. As três categorias mobilizadas na análise revelam
práticas sociais e políticas, na cena política brasileira, que:
ü colocam em risco a própria compreensão do Estado bra-
sileiro como sendo “de direito e democrático”;
evidenciam um desgaste crescente de determinados va-
ü
lores éticos e referencias morais necessários para uma
convivência razoável em sociedade;
representam verdadeiros abusos de poder e as diferentes
ü
formas discursivas de sua legitimação;
colocam acima de quaisquer interesses públicos, os inte-
ü
resses pessoais, partidários e corporativos;
visam à manipulação e à desorientação de possíveis cog-
ü
nições sociais e políticas que pudessem contribuir para
um processo de emancipação e conquista de cidadania
por parte da população;
instituem práticas nocivas de manipulação, interferên-
ü
cias irregulares e abusos de poder entre os três poderes:
executivo, legislativo e judiciário.
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CAPÍTULO 7 NOVINHA:
Efeitos de um já-dito
na música brasileira
José Reginaldo Gomes de Santana (UNICAP)
Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo (UNICAP)
E
ste trabalho trata de um gesto analítico voltado a um
discurso, de uma preferência masculina por mulheres
muito novas, materializado nas músicas de MC1 Shel-
dom, cantor atual do chamado brega-funk pernambu-
cano. A repetibilidade desse discurso — nas músicas de Shel-
dom e de outros Mcs espalhados pelo Brasil — traz um efeito de
evidência no dizer do senso comum e da mídia de que músicas
de outrora não eram por ele constituídas. Em comentários sobre
músicas brasileiras em sites da internet, é comum vermos cita-
ções como “A música brasileira de hoje é deprimente, principal-
mente o funk pedófilo, criminoso de ostentação”2 .
A partir de marcas discursivas, traços de memória (COUR-
TINE, 2006) em circulação na música “Novinha, não chora,
não”, fomos em busca de já-ditos, de repetições e deslizamentos
de sentidos em funcionamento na música brasileira de outras
épocas, para, então, compreendermos o funcionamento desse
1
MC é a sigla de mestre de cerimônia, um apresentador de evento musical, mas
que ultimamente denomina os artistas cantores de funk e hip hop.
2
Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/09/tese-douto-
rado-degeneracao-musica-brasileira.html Acesso em: 15 dez. 2018.
discurso em determinadas condições de produção, calcados na
afirmação que
Sequência discursiva 1:
A Polícia Civil de Pernambuco abriu inquérito para investigar se três
músicas de MCs, que tocam diariamente nas emissoras de rádio no
Estado, incentivam a prática de pedofilia. A investigação foi aberta
a pedido do MP (Ministério Público Estadual), que questionou versos
das canções que viraram “hits” no Estado. As letras das músicas “A
posição da rã” e “Gostou, novinha?”, dos MCs Cego e Metal, e “Se eu
3
O conceito de híbrido, aqui, refere-se ao que Canclini (2011) chama de hibrida-
ção cultural, que trata, entre outros fenômenos dos diálogos entre a cultura popu-
lar, a cultura de massa e outras culturas nos países latino-americanos.
mato, eu vou preso”, composta pelo MC Sheldon, caíram na boca do
povo, mas, para o MPE, contêm versos com duplo sentido e poderiam
ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao incentivar a
prática sexual com adolescentes.4
Sequência discursiva 2:
E, infelizmente, hoje é comum ver “as novinhas” dançando de uma
forma que há algumas décadas atrás só as prostitutas faziam nos
cabarés. No entanto, mais preocupante do que meu conservadoris-
mo que faz com que eu sinta repúdio por essa coisa que insistem
em classificar como música, é a apologia à pedofilia e à erotização
precoce que o “funk” traz.5
4
“Polícia investiga se músicas com duplo sentido de MCs incentivam pedofilia
em Pernambuco” – matéria de Gabriel Diniz. Disponível em: http://blogdogabriel-
diniz.blogspot.com.br/search?updated-max=2011-08-26T21:16:00-03:00&max-
results=200&reverse-paginate=true Acesso em: 15 dez. 2018.
5
“Quem são ‘as novinhas’ do Funk? A apologia à pedofilia e a erotização preco-
ce” – matéria de Jefferson Nóbrega. Disponível em: http://candangoconservador.
blogspot.com.br/2011/07/quem-sao-as-novinhas-no-funk-apologia.html Acesso em:
15 dez. 2018.
Batuque era um termo genérico registrado pelos cronistas desde
o século XVIII e podia designar diferentes festas e manifestações
afro-brasileiras, como lundu, jongo, capoeira e candomblé. Nessa
época, também era encarado pelas autoridades judiciárias — e bran-
cas — como sinônimo de briga, desordem e talvez mortes. Por isso,
a cozinha, localizada dentro da casa-grande, não era o lugar mais
apropriado para se batucar. E era a Sinhá, a senhora de escravos, que
não permitia sua prática ali. A referência ao grupo de cativos reunido
à roda de uma fogueira também aparece quando se canta “por causa
do batuque eu queimei meu pé”. Ou, talvez, o sambista carioca qui-
sesse mostrar que aquele que cantasse na cozinha podia se queimar,
ou seja, ser punido (ALVITO, p. 46, 2009).
Sequência discursiva 3:
Novinha não para não. /Olha bem, não chora, não! /Quem pensou
que nós tá preso/Olha a gente no mundão (…) Mas o juiz já deu o
papo/ Que não tem problema, não/ Porque isso que nós canta/ É
liberdade de expressão. (Mc Sheldon)6
6
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ovp9TuA4JDo Acesso em:
15 dez. 2018.
pre fala de um determinado lugar social, o qual é afetado por
diferentes relações de poder, e isso é constitutivo do seu discur-
so”. Nessa sequência — pensada em suas condições de produção
restrita — primeiro, o sujeito toma posição de um MC que gosta
de mulheres novas, adolescentes, submissas. Depois, o termo
“novinha” se apresenta legitimado no dizer do sujeito MC pela
menção à interpretação dada por um juiz ao termo e ao que a
ele se atrela.
Mesmo depois de o juiz interpretar o fato como liberdade
de expressão, o sujeito MC, dada a visibilidade das suas músicas
e por ele ser chamado à justiça, relativiza a expressão “novinha”,
como veremos adiante, relacionando-a às jovens que gostam de
serem assim chamadas para se acharem mais novas. Para burlar
a justiça, significantes vão sendo substituídos na música do MC
à proporção que ele se expõe perante à lei e às críticas de setores
da sociedade.
7
Disponível em: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2014/
12/01/internas_viver,546246/o-recomeco-de-sheldon-rei-das-novinhas-assume-
-a-carreira-solo.shtml Acesso em: 15 dez. 2018.
senta, aquela que quica”8. Essa troca se dá pelo fato de que a
palavra menina já ser amplamente utilizada e aceita em diferen-
tes formações discursivas do universo musical como uma forma
afetuosa de tratar uma mulher. Nesse gesto, o Sujeito MC não
muda sua posição de sujeito discursivo com relação às meninas
novas. Na nova música de Sheldom, menina funciona como algo
pré-construído que retorna, mobilizando sentidos já cristaliza-
dos no mundo do brega-Funk, assim como a utilização do pani-
cat lançado no Carnaval de 2015. Segundo Gallo (2001)
Sequência discursiva 4:
Numa luta de gregos e troianos/ Por Helena, a mulher de Menelau/
Conta a história de um cavalo de pau/ Terminava uma guerra de
dez anos/ Menelau, o maior dos espartanos/ Venceu Páris, o gran-
de sedutor/ Humilhando a família de Heitor/ Em defesa da honra
9
Disponível em: https://www.letras.mus.br/ze-ramalho/82373/ Acesso em: 15
dez. 2018.
Disponível em: https://www.last.fm/pt/music/Otac%C3%ADlio+Batista/+wiki
10
Sequência discursiva 5:
Tô de namoro com uma moça solteirona,
A bonitona quer ser a minha patroa,
Os meus parentes já estão me criticando
Estão falando que ela é muito coroa,
Ela é madura, já tem mais de trinta anos
Mas para mim o que importa é a pessoa,
Não interessa se ela é coroa
Panela velha é que faz comida boa
Menina nova é muito bom mas mete medo/ Não tem segredo e vive
falando à toa/ Eu só confio em mulher com mais de trinta/ Sendo
distinta a gente erra ela perdoa,/ Para o capricho pode ser de qual-
quer raça/ Ser africana, italiana ou alemão / Não interessa se ela é
coroa/ Panela velha é que faz comida boa. Dona de casa tem que ser
mulher madura/Porque ao contrário o problema se amontoa. (REIS,
Lado B, Faixa 3, 1983)
Sequência discursiva 6:
Mandacaru, quando fulora na seca/ É o sinal que a chuva chega no
sertão/ Toda menina que enjoa da boneca/ É sinal que o amor já che-
gou no coração/ Meia comprida, não quer mais sapato baixo/ Vestido
bem cintado. Não quer mais usar timão/ Ela só quer, só pensa em
namorar. (…) O pai leva, ao doutô, a filha adoentada. (…) Mas o doutô
nem examina. (…) pra tal menina, não há um só remédio em toda
medicina (GONZAGA, DANTAS, Lado A, Faixa 1, 1953).
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CAPÍTULO 8 ANÁLISE CRÍTICA
DO DISCURSO
DE IDEOLOGIAS MÉDICAS
Transdisciplinaridade,
biomedicina e homeopatia
Moab Duarte Acioli (UNICAP)
Introdução
D
e acordo com o pensamento bakhtiniano, existem
três diferentes conceitos em relação aos fenômenos
língua e linguagem. Em primeiro lugar, a linguagem
é concebida como uma representação do pensamen-
to, o que denota a influência anterior do racionalismo cartesiano
da primazia da razão (DESCARTES, 2002). Em segundo lugar, a
linguagem é enfocada na perspectiva de instrumento de comu-
nicação, o que permite posteriormente uma aproximação com
os sentidos pragmáticos dos usos da linguagem (AUSTIN, 1990;
LEVINSON, 2007). Por fim, baseando-se no psicólogo bielo-
-russo Lev Semyonovich Vigotsky (1896-1934), a linguagem se
apresenta como uma forma de interação, o que caracteriza uma
abordagem dialética no processo de produção do conhecimento
e entendida enquanto resultante de uma construção coletiva,
social e histórica. (GEDOZ; COSTA-HUBES, 2012).
Ao se pensar na relação médico e paciente, a linguagem que
a permeia pode se caracterizar como expressão de uma raciona-
lidade biomédica ou leiga, como práxis social e intercâmbio de
signos verbais e não verbais ou como uma interação sociocultu-
ral e linguística baseada em uma coletiva dimensão simbólica.
Neste específico processo de interação social e linguística,
parece que existe uma grande atmosfera que o envolve, poden-
do ser denominado de ideologia, igualmente abordada pelo pró-
prio Bakhtin/Voloshinov (2006, p.34) em célebre citação:
Doutor: Hum, hum.. Bem, o que você quer dizer com estômago azedo?
Paciente: O que é estômago azedo? Uma queimação.
Doutor: Como uma queimação ou uma coisa assim? Arde aqui?
Paciente: Sim. É co — eu acho — é como — Se o senhor pegar uma agulha e
espetar bem aqui. Dói bem aqui. E aí vai daqui até esse outro lado.
Doutor: Hum, hum. Hum, hum. Hum, hum. A dor vai até as costas?
Paciente: É só aqui. Não é só aqui na frente.
Doutor: Sim. E quando você sente isso?
Paciente: Bem… Quando eu como uma coisa errada.
Doutor: Quanto tempo assim depois que você come?
Paciente: Bem… Provavelmente uma hora talvez, menos.
Doutor: Mais ou menos uma hora?
Paciente: Talvez menos… Fiz bobagem e voltei a beber, o que eu não devia
ter feito.
Doutor: A bebida faz piorar?
Paciente: Ah! Ah! Sim… Especialmente a fermentação e o álcool.
Doutor: Hum, hum… Quantas doses você bebe?
Paciente: Não sei. O suficiente para me fazer dormir à noite… e isso é muito.
Doutor: Umas ou duas doses por dia?
Paciente: Ah! Não, não, não é… Mais de dez à noite.
Doutor: Quantas doses por noite?
Paciente: À noite.
Doutor: O que que…? Que tipo de bebida? Eu…
Paciente: Ah ! Vodka… É vodka e ginger ale.
Doutor: Há quanto tempo você tem bebido tanto assim?
Paciente: Desde que me casei.
Doutor: Há quanto tempo?
Paciente: (Risos). Quatro anos. (Risos)
Paciente: mas ela realmente tem sido muito injusta comigo não tem
Doutora: Hum
Paciente: respeito por mim e eu acho que uma das razões
Doutora: Hum
Paciente: pelas quais eu bebia tanto sabe, e ahn
Doutora: Hum, hum, hum e você…voltou? Você voltou a beber novamente?
Paciente: Não.
Doutora: Ah! Você não voltou e o tio…
Paciente: N ão, mas… Ah! Uma coisa que a senhora me disse na terça-
-feira foi que… Se minha mãe me mandasse embora de casa,
o que ela acha de…
Doutora: Sim.
Paciente: pode acontecer, que ela não gosta do jeito que tenho me com-
portado ela já me expulsou antes e ah. Ela disse ainda que
Doutora: Hum, hum.
Paciente: e la achava que eu podia que seria possível eu ir para um
apartamento da prefeitura
Doutora: Certo, sim, sim.
Paciente: m as ela disse que é muito ah… que não estava forçando por-
que minha
Doutora: Hum.
Paciente: mãe tem de assinar um monte de coisas e
Doutora: Hum, hum.
Paciente: É… Ela disse que é difícil e ah… não tem
Doutora: Hum.
Paciente: p
ressa, eu não sei se quer dizer uma coisa que eles dizem em
AA é que você não devia mudar nada, durante um ano.
Doutora: Hum, hum. Sim acho que é sensato. Acho que é sensato. Bem.
Olhe! Eu gostaria de continuar, sabe, me encontrando com
você. Continuar, sabe? Ouvindo como as coisas vão indo de
vez em quando se for possível.
Considerações finais
A análise faircloughiana do discurso permite uma contextua-
lização social e histórica da produção, distribuição e consumo dos
textos orais, visuais e escritos. A categoria poder se faz presente,
o que parece se revelar na entrevista médica, seja padrão, na qual
o paciente é objeto de exame e intervenção clínica; ou alternati-
va, como no caso da homeopatia, que o paciente se torna sujeito
enunciador a ser escutado pelo médico, atento a uma dimensão
de integralidade física, psíquica, sociocultural e espiritual.
Apesar de algumas dúvidas em Fairclough sobre os usos
amortecedores da técnica psicoterapêutica do aconselhamento
como uma estratégia mais sofisticada de controle social, não se
pode negar que com ela existe uma “ressubjetivação” do paciente.
Nisso, o pensamento bakhtiniano aponta que a literatura
de Dostoiévski revela a existência das muitas vozes na produção
textual, o que pode apontar para determinados modelos ideoló-
gicos que no presente artigo foram chamados de biomédicos ou
homeopáticos, caracterizando-se como uma intertextualidade
constitutiva.
Além disso, aquela literatura revela uma condição da cons-
ciência humana, para a qual não existe eu sem o tu, o que pode
abrir espaços tanto no campo da Saúde, como da Linguagem,
para o reconhecimento fundamental da relevância de uma es-
cuta hermenêutica.
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CAPÍTULO 9 REDIGIR ENEM:
Aplicativo para aprendizagem
de textos argumentativos
em dispositivos móveis de
comunicação1
Antônio Carlos Xavier (UFPE)
Roberta Caiado (UNICAP)
Introdução
A
inovação educacional proporcionada por dispositi-
vos móveis vem sendo estudada em vários países do
mundo, mas no Brasil ainda são poucos os trabalhos
sobre esse tema. Diante disso, tomando como focos
da investigação o desenvolvimento da competência da produção
de texto e a necessidade da aquisição da habilidade argumenta-
tiva dos estudantes, este capítulo descreve e apresenta o proje-
to realizado no âmbito do Edital Universal 2013 do CNPq, que
objetivou, principalmente, desenvolver atividades pedagógicas
com potencial de se transformar em conteúdo conversível em
linguagem de computação, para constituir um aplicativo edu-
cacional. Este App tem como objetivo auxiliar os estudantes do
ensino fundamental e médio a desenvolver sua competência es-
1
Projeto Financiado pelo Edital Universal 2013 do Cnpq – Processo:
479705/2012-7.
crita de textos dissertativos. Além desse objetivo mais amplo,
a pesquisa buscou ainda: (i) mapear recursos interativos nos
smartphones e tablets; (ii) descrever funções neles adaptáveis à
aprendizagem de argumentação e disponibilizar sites, blogs e co-
munidades virtuais com artigos científicos, resenhas de livros,
dissertações e teses sobre a temática do uso de aplicativos (App)
voltados para a aprendizagem de produção de texto.
Sob a perspectiva teórica dos estudos da Linguagem
(Linguística de Texto, Semântica, Pragmática e Linguística Aplica-
da), o projeto propôs atividades pedagógicas suficientes para com-
por um objeto de aprendizagem em formato de aplicativo compu-
tacional, utilizável em smartphones e tablets, nomeado de Redigir
Enem, desenvolvido para os sistemas Android e IOS para downlo-
ad gratuito. O App Redigir Enem explora as características e for-
matos da dissertação-argumentativa, trabalha os critérios de ava-
liação e sugere temas relacionados às problemáticas cotidianas.
Do ponto de vista da Metodologia, a pesquisa foi reali-
zada durante três anos e cumpriu com as seguintes etapas: i)
levantamento bibliográfico dos estudos sobre a utilização edu-
cacional de dispositivos móveis; ii) construção de um banco de
dados sobre a temática e publicação on-line dos links em língua
inglesa, francesa e espanhola; iii) proposição de atividades que
contemplam textos argumentativos; iv) observação do uso dos
dispositivos móveis (smartphones e tablets) por 60 alunos do ensi-
no médio, divididos de modo igual entre rede pública e privada.
O presente capítulo foi organizado da seguinte forma: ini-
ciamos com a apresentação do problema da pesquisa e abor-
dagem teórica do problema; focamos na metodologia utilizada;
posteriormente, apresentamos e descrevemos o App Redigir
Enem; e, finalizamos o capítulo, elencando as metas alcançadas
e contribuições científicas e tecnológicas da pesquisa.
3. Metodologia utilizada
Para alcançar os objetivos propostos, esta pesquisa de
cunho descritivo-interpretativo e propositivo, realizou, ao longo
de três anos, as seguintes ações metodológicas:
i) a observação dos recursos linguísticos e multissemióticos
das funções comunicativas contidas nos smartphone e ta-
blet; buscou-se, com isso, conhecer o potencial comuni-
cativo dos equipamentos estudados e, assim, inferir mo-
dos de usos pedagógicos executáveis a partir deles;
ii) a elaboração de um conjunto de atividades relativas
à produção de textos do tipo argumentativo como: a
dissertação-argumentativa. Considerando a natureza ar-
gumentativa da língua, explorou-se em tal gênero tex-
tual: a) compreensão global e sequenciada do gênero
dissertação-argumentativa; b) mapeamento da natureza
do gênero, suas características, sequências tipológicas e
propósito comunicativo; c) identificação e avaliação de
teses e argumentos dos autores presentes nos textos-fon-
te; e d) articuladores e operadores argumentativos como
recursos indiciadores de pontos de vista.
iii) foram selecionados 60 sujeitos informantes matricula-
dos e com frequência assídua às aulas de Língua Portu-
guesa de duas escolas, sendo uma delas pertencente à
rede pública e a outra, à rede privada. Equipamentos tais
como smartphone e tablet foram adquiridos pelo projeto
de pesquisa e utilizados para a coleta dos dados, garan-
tindo que todos os informantes tivessem acesso aos mes-
mos equipamentos, nas mesmas condições de manuseio
para responder ao questionário. Eles também receberam
instruções sobre o modo de operação dos dispositivos
móveis antes de usá-los para responder ao questionário
sócio-econômico-tecnológico.
Ao final das atividades, os pesquisadores constataram uma
sintomática aceitação de conteúdos presentes ao programa es-
colar e formatados em aplicativos educacionais. Esta constata-
ção levou a cogitar a produção de um aplicativo específico, que
desse conta da aprendizagem de redação de forma gamificada,
lúdica e divertida. Assim, a equipe de pesquisadores partiu para
a elaboração do aplicativo, uma empreitada bem desafiadora
pela complexidade que envolve a produção de um objeto digital
de aprendizagem.
6. Contribuições da pesquisa
Como contribuições científicas, esta pesquisa obteve:
a) a oferta à comunidade acadêmico-científica de análises e
reflexões que podem mobilizar de modo interdisciplinar teorias
relativas aos estudos da linguagem, da comunicação e das no-
vas tecnologias a fim de melhorar o desempenho dos alunos
da educação básica no que concerne à aquisição de habilidades
para construir bons textos argumentativos e b) as construções
teórico-metodológicas que basearam as atividades elaboradas
para o App decorrentes deste empreendimento investigativo,
que tornaram o ensino-aprendizado de produção de textos com
este recurso uma realidade exequível. Os ganhos de qualidade
e de motivação para os alunos brasileiros atraídos por objetos
de aprendizagem computacionais poderão futuramente serem
metrificados em outras pesquisas.
Como contribuição tecnológica, esta pesquisa conseguiu:
a) produzir subsídios metodológicos, por meio da elaboração de
atividades inseridas no Redigir Enem, com potencial para incre-
mentar a habilidade de escrita argumentativa dos estudantes-
-jogadores; e b) construir um protótipo do aplicativo, testá-lo a
fim de detectar sua conveniência para, em seguida, aperfeiçoá-
lo para funcionar como um objeto de aprendizagem instigante e
dinâmico, sintonizado com as expectativas dos estudantes.
7. Considerações finais
Os resultados da pesquisa empreendida revelaram:
(i) O poder atrativo que um objeto digital de aprendiza-
gem exerce nos estudantes da educação básica. Esta
pode ser uma oportunidade com a qual o professor po-
derá aproveitar para introduzir temas densos e distan-
tes da realidade dos estudantes sugerindo aplicativos
que toquem ainda que tangencialmente tais temas;
(ii) a viabilidade da elaboração de um conjunto de ativida-
des textuais transformáveis em desafios gamificados
constituintes das sequências de um aplicativo com fito
didático-pedagógico;
(iii) a concretude do desenvolvimento real de um aplicati-
vo educacional virtual com foco na aprendizagem do
gênero dissertação-argumentativa para os alunos que
se submetem à redação do Enem.
Por fim, acreditamos que propor desafios aos alunos sem-
pre ajudará a aguçar sua capacidade de observação, de produção
de inferências que culmina com a compreensão do que precisa
saber sobre o gênero e de como deve fazê-lo na prática. O Redi-
gir Enem, ao entreter, informa e consolida conhecimentos sobre
a dissertação-argumentativa, preparando o aluno-jogador para
enfrentar as redações do Enem e da vida.
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CAPÍTULO 10 INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL EM CIÊNCIAS
DA LINGUAGEM:
Mineração e sumarização de textos,
análise semântica e ferramentas úteis
Matheus Barreto Lins Marinho (UNICAP)
Eric Rocha de Souza (UNL)
Anthony José da Cunha Carneiro Lins (UNICAP)
Fernando José Araújo Wanderley (UNICAP)
Francisco Madeiro (UNICAP)
1. Introdução
Humano: Está me levando para onde?
Carro: Supresa!
Humano: Lava a jato? Lavagem rápida de carro? Que é isso? E meu
compromisso? A mesa-redonda sobre IA na UNICAP?
Carro: Isso é para o Senhor aprender a me manter limpinho… E sei
que cearense gosta de aprender com humor! Chegaremos ao evento
com antecedência de um minuto.
Chinês (tradicional e
908,7 milhões 198,4 milhões
simplificado)
6. Considerações finais
Neste capítulo foram apresentadas aplicações de Inteligên-
cia Artificial de interesse de Ciências da Linguagem. Foram
abordados temas como mineração e sumarização de texto e
análise semântica. O capítulo culminou com a apresentação e
descrição sucinta de ferramentas de IA, de fácil uso, da Google
Cloud Platform e da Amazon Web Services, com funcionalida-
des que permitem aplicações de interesse da área de Ciências da
Linguagem. Como exemplo da aplicação, apontamos a análise do
comportamento de usuários por meio dos comentários sobre um
determinado produto em postagens nas redes sociais. Apresen-
tamos, como exemplo no âmbito jornalístico, a possibilidade de
analisar automaticamente como as pessoas estão reagindo a um
determinado evento político-social. As ferramentas apresentadas
servem como base para que o leitor possa usar de sua criativida-
de para utilizar os benefícios oriundos da Inteligência Artificial.
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CAPÍTULO 11 O SER DA LINGUAGEM
Aproximações entre a
Linguística e a Literatura
André Luís de Araújo (UNICAP)
Melissa Marques Gonçalves Boëchat (UFSJ)
1. Introdução
N
ão nos parece nada natural uma aproximação entre
a Linguística e a Literatura. Ainda que se possa ad-
mitir com Roland Barthes (1968) que seja natural
que a ciência da linguagem (e das linguagens) se in-
teresse por aquilo que é incontestavelmente linguagem, a saber,
o texto literário, o que vemos acontecer, sobretudo nos nossos
centros acadêmicos, não é de todo um deslocamento natural e
necessário entre ambas. A grande maioria dos Programas de
Pós-Graduação das universidades brasileiras, por exemplo, ain-
da mantém seus domínios separados: de um lado, os Estudos
Literários e, de outro, os Estudos Linguísticos.
Por isso mesmo, um estudo honesto das Ciências da Lin-
guagem deveria interessar-se, antes de tudo, por uma ciência do
discurso, como advoga Roland Barthes, se pretende colocar a lin-
guagem em questão para propor aproximações linguístico-literá-
rias. Nesse sentido, a linguagem se torna uma preocupação das
ciências humanas, da reflexão filosófica e da experiência criati-
va. Desse modo, o que propomos, aqui, é que se desfaçam, pouco
a pouco, os limites puramente institucionais da Linguística e da
Literatura, a fim de que elas se deixem provocar uma pela outra,
discutindo irradiações possíveis e contribuições mútuas.
A partir dessa premissa, a Literatura não se situa no exte-
rior da linguagem e tampouco a Linguística propõe análises de
enunciados como se se tratasse de um somatório de frases sem
implicações semióticas, muitas vezes. Os deslocamentos são,
portanto, necessários. Como sabemos, por experiência própria,
é impossível estudar um texto (em particular) sem enunciar
imediatamente uma teoria do sentido. Consequentemente, não
se pode juntar a Linguística e a Literatura sem subverter final-
mente a ideia que se tem de uma e de outra. Limitar a tirania
ou o prestígio de um dos lados não será, pois, uma simples cláu-
sula de prudência ou de distância, mas ajudará a compor a cena
do estado atual das pesquisas, começando por designar o lugar
central desta investigação: o ser da linguagem. Cabe, então, relan-
çar a temática do ser da linguagem, a partir das já conhecidas
contribuições de Michel Foucault1, Jacques Derrida2 e Jacques
Rancière3, para citar alguns nomes, pois a questão precisa ser
debatida e amplamente discutida, antes de se afirmar apressa-
damente qualquer tese, que poderia ser injustamente tributária
ou contestadora de um desses domínios.
Nesse sentido, vale, também, evocar os trabalhos de Ro-
man Jakobson e Mikhail Bakhtin, bem como as investigações
da escola francesa, principalmente a partir das interlocuções
propostas por Roland Barthes e os filósofos da diferença, nota-
damente, Michel Foucault, Maurice Blanchot, Gilles Deleuze,
Félix Guattari e Jacques Derrida. Todo esse esforço equivale a
dizer que o interesse profundo desta pesquisa não reside no fato
de enriquecer com um novo departamento a ciência linguística
ou a crítica literária, conforme alertava Barthes, a modo de uma
1
Cf. MACHADO, R. O ser da linguagem. In: Foucault, a filosofia e a litera-
tura, p. 86-116.
2
Cf. NASCIMENTO, E. Literatura e Pensamento. In: Derrida e a literatura, p.
297-391.
3
Cf. RANCIÈRE, J. A literatura impensável. In: Políticas da Escrita, p. 27-50.
perspectiva meramente interdisciplinar. Não se trata simples-
mente de fazer comunicar esses domínios. Trata-se de alterar,
de deslocar a imagem que temos da Linguística e da Literatura,
criando, portanto, um espaço de trânsito pendular entre uma e
outra, em favor do enriquecimento da essência que há na inter-
locução destes dois saberes.
Em última análise, o que se propõe é um ponto de partida
para inúmeras reflexões sobre o que temos feito nas Ciências da
Linguagem e o que pretendemos com o avanço de nossas pes-
quisas e de nossas práticas, porque, ao que parece, a linguagem
“[…] jamais deixou de falar aquém de si mesma”.4 Encontra-se,
então, aberta uma ampla área de interlocução, pois, em sua ra-
dicalidade5 linguístico-literária, a linguagem constitui o seu ser
mais profundo arraigado ora como resistência, ora como alter-
nativa ao pensamento antropológico moderno, sobretudo nestes
tempos reversos que vivemos hoje.
4
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 119.
5
Entendemos radicalidade, aqui, como a compreende Foucault, quando fala de
Nietzsche, em As palavras e as coisas, por ter sido Nietzsche o primeiro responsável
por aproximar uma tarefa filosófica de uma reflexão radical sobre a linguagem.
Configura-se, pois, um bom exercício epistemológico e, consequentemente, uma
revisão de nossas práticas pedagógicas num esforço de raízes.
Nessa perspectiva, nossa intenção é, também, descobrir,
com esses estudiosos e na esteira de suas contribuições, uma
possível gramática que rege as ciências humanas e, por exten-
são, as Ciências da Linguagem, pelo simples fato de estar aten-
ta aos enunciados linguístico-literários e, ao mesmo tempo, à
análise das riquezas de cada um desses domínios, bem como
os seus desdobramentos na economia política ou na história na-
tural, como destaca Foucault. Dessa forma, é impossível não
admitir que todo enunciado reflita as condições específicas e as
finalidades de uma determinada ciência, não só pelo seu teor
programático, mas também pela seleção dos recursos formais e
de conteúdo que essa atividade humana coloca em cena e com
os quais trabalha. Vale salientar, ainda, que esses elementos te-
máticos, de estilo e de construção aparecem bem articulados no
conjunto dos enunciados, conforme a particularidade da ciência
humana em questão. Assim, embora cada enunciado particular
possa ser individual, cada campo de utilização da língua irá
elaborar seus tipos relativamente estáveis de enunciados, o que
dá origem ao que Bakhtin denominou gêneros do discurso, neste
texto escrito por ele entre os anos de 1952 e 1953.
Por isso, é interessante notar toda uma efervescência cul-
tural nesses anos de investigação, nas décadas de 1950 e 1960,
tendo, de um lado, a escola russa e, de outro, a escola francesa,
ambas dando grandes contribuições aos estudos linguístico-lite-
rários. Os primeiros ainda muito interessados pela forma, e os
segundos ocupando-se mais do conteúdo, ao ponto de Barthes re-
conhecer, no seu artigo intitulado Linguística e Literatura (1968),
a amabilidade de um grupo de investigadores estrangeiros, prin-
cipalmente, Jakobson e Bakhtin, que se juntaram ao grupo fran-
cês. Tarefa conjunta, como se vê, ainda que Barthes requeira
para o grupo francês a essencialidade do trabalho realizado.
No entanto, de entrada, o que salta aos olhos é que os ter-
mos que Barthes utiliza nesse artigo — a saber: gênero e discurso
— demonstram uma leitura atenta do texto de Bakhtin, dado que
o escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês
irá recorrer a esses termos para apresentar sua teoria de uma
ciência do discurso: a conjunção da Linguística e da Literatura.
Assim, apesar de haver uma referência clara a Bakhtin, aparece
também uma distinção. Barthes utiliza o termo gênero quando
quer falar de literatura e discurso quando quer tematizar a Lin-
guística. Propõe deslocamentos, como ele mesmo justifica, quan-
do admite que não há nenhum texto que não dependa de um
gênero, o qual já não se apresenta como uma categoria estética,
mas é levado a um tipo de discurso. Por outro lado, corre o risco
de sobrepor o elemento linguístico ao literário ao declarar que o
conceito de discurso excede o de gênero, devendo este, por sua vez,
permitir que se desfaçam os limites institucionais da Literatura,
dado que o gênero fatalmente implica uma espécie de norma que
tenta, pela análise, avaliar tipos de textos em função de desvios
de classificação. Para ele, a noção de gênero só será aceitável “[…]
se se destruir, se se abandonar ou se se deslocar […]”6, embora
reconheça que os gêneros são um ponto de partida útil.
De todo modo, mais adiante, Barthes parece ser mais caute-
loso e mostrar-se mais em acordo com Bakhtin, pois aponta que
o gênero identifica-se com uma célula específica de discurso e
esta célula pode transitar por obras muito diversas. Dessa ma-
neira, a tarefa da investigação que ele propõe seria definir tipos
de discurso, e não tipos de obras. Enfim, guardadas as devidas
proporções, Barthes parece admitir e aproximar-se muito mais
do que havia salientado Bakhtin, mais de uma década antes, ao
juntar os dois termos, em sua análise dos gêneros do discurso.
Interessante notar que os exemplos dessas lógicas novas que
Barthes começa a observar só apareçam — pelo menos, no texto
Linguística e Literatura (1968), que introduz uma série de análises
com outras obras da literatura universal — na produção francesa
e como textos inclassificáveis, fendas, diferenças, que exigem ou-
tra legibilidade para a obra literária, outros encadeamentos, es-
paços e rupturas, abalos aparentemente muito positivos no inte-
6
BARTHES, R et al. Linguística e literatura. In: Linguística e Literatura, p. 14.
rior da linguagem, em graus de subversão muito diversos. Com
isso, nosso estruturalista pretende lançar-se na tentativa de uma
aproximação linguístico-literária, mas ainda se perde em princí-
pios de ordenamento e disposições, porque defende uma propos-
ta dialética, ao passo que a cena cultural que se apresenta, na se-
quência — começando pelas análises de Foucault, amplamente
discutidas e em consonância com o pensamento de Blanchot –,
precisa ser enriquecida pela interlocução com a teoria do rizoma
e suas linhas de fuga, na perspectiva de Deleuze e Guattari, e
desconstruída, inúmeras vezes, por Derrida, dada a complexida-
de da trama discursiva na contemporaneidade.
Reconhecemos, assim, a necessidade de uma conversa in-
finita ou de um livro por vir, parafraseando títulos de obras de
Blanchot. Reconhecemos, ainda, a necessidade de se começar
por um diálogo possível, à maneira de Bakhtin, em resposta a
uma pergunta da revista Novi Mir, em 1970, sobre a ciência da
literatura hoje7. Dizia Bakhtin, na ocasião, que um sentido só
revela as suas profundezas encontrando e contatando o outro,
o sentido do outro, ou seja, é preciso que se comece entre os
interlocutores uma espécie de diálogo, que supera o fechamento
e a unilateralidade dos sentidos apresentados por eles e, res-
pectivamente, por suas culturas. É fundamental deixar de lado
universalismos abstratos, pois é necessário que se coloquem,
para a cultura do outro, novas questões que ela mesma talvez
não ousasse ou não fosse capaz de se fazer.
Isso posto, Foucault evidencia bem, no final de As palavras
e as coisas, que, por mais que se tenham conceitos, o movimento
da vida, a espessura da história e as evoluções da ordem natu-
ral são difíceis de dominar e talvez sejam mesmo um exercício
desnecessário. Melhor pensar que estamos, corajosamente, ten-
tando reencontrar, como ele mesmo diz, a complexa relação das
representações, das identidades, das ordens, das palavras, dos
7
BAKHTIN, M. A ciência da literatura hoje. In: Notas sobre literatura, cultu-
ra e ciências humanas, p. 9-19.
seres naturais, dos desejos e dos interesses, a partir do momento
em que toda essa grande rede se (des)faz. Assumamos, pois, o
risco, já que o estatuto dessa busca e de todas as questões que a
diversificam não é perfeitamente claro.
Vamos tomando, primeiramente, consciência da necessi-
dade de (re)encontrar num espaço único, mas multifacetado, o
grande jogo da linguagem e seu modo de ser múltiplo, num salto
decisivo para uma forma inteiramente nova de pensamento. E, é
bem verdade, talvez tenhamos de admitir, finalmente, com Fou-
cault, que já não sabemos responder do mesmo jeito às velhas
perguntas que nos fizeram iniciar esse périplo, pois será preciso
liberar as palavras dos conteúdos silenciosos que as alienavam,
ou, ainda, tornar a linguagem flexível e como que interiormente
fluida, a fim de que, liberta das espacializações do entendimen-
to, possa restituir o movimento da vida e sua duração própria.8
3. O ser da linguagem
Objetivamente, o que se deseja é que se proponha uma re-
flexão de peso, nas Ciências da Linguagem, a fim de que se con-
temple uma aproximação honesta entre os Estudos Linguísticos
e os Estudos Literários. Afinal, pelo que tudo indica, há mais
do que separações, pois que existem implicações semióticas e
discursivas entre os domínios em questão. Por isso, vale a pena
analisar em que medida a teoria literária se volta para a teoria
linguística, para discutir possíveis irradiações e contribuições
mútuas entre a Linguística e a Literatura, o que, certamente, já
vem abrindo, há algum tempo, novos caminhos e perspectivas
para as Ciências da Linguagem.
Desse modo, considerando o espaço epistemológico das
ciências humanas, vemos, em As palavras e as coisas, as dimen-
sões que se abrem às Ciências da Linguagem, dado o potencial
que elas endereçam ao homem, na medida em que ele vive, fala
8
FOUCAULT, M. O homem e seus duplos. In: As palavras e as coisas, p. 321.
e produz.9 Afinal, é como ser vivo, antes de tudo, que o homem
cresce, tem funções e necessidades e vê abrir-se diante de si um
horizonte de possibilidades para articular suas atitudes corpo-
rais, à medida que organiza redes de relações, de circulação e
de troca de experiências. Além disso, é exatamente porque tem
uma linguagem que ele pode constituir para si todo um uni-
verso simbólico, em cujo interior se relaciona com seu passado,
com as coisas, com os outros, com a natureza, com suas crenças,
projetando seu futuro.
Por conseguinte, é a partir desse panorama que o homem
consegue construir alguma coisa com o saber que apreende de
si e do mundo, nas fronteiras imediatas onde essas ciências da
atividade humana tratam da vida, do trabalho e da linguagem. As
considerações positivas, conforme sinalizado por Bakhtin10, na
análise que propõe para o papel do texto na Linguística, na Filolo-
gia e em outras ciências humanas são, prioritariamente, de cará-
ter filosófico. Nossa proposta ganha corpo, então, no solo de cam-
pos limítrofes, no cruzamento e na junção de várias disciplinas.
Portanto, o texto escrito ou oral deverá ser tratado e reco-
nhecido, antes de tudo, como o dado primeiro de toda e qual-
quer disciplina, bem como do pensamento filológico-humanista.
Ele é a nossa realidade imediata, na perspectiva de Bakhtin, isto
é: a realidade manifesta do pensamento e das vivências do ho-
mem, de tal sorte que onde não houver textualidade enunciada
não haverá objeto de pesquisa, tampouco de pensamento. Sendo
assim, concebemos o texto, em seu sentido mais amplo, como
um conjunto de signos, a ciência das artes, dos pensamentos
que evocam pensamentos, das vivências e das experiências, de
palavras que remetem a outras palavras.
Dessa maneira, o caminho do pensamento aberto na lin-
guagem permite a convocação de vários autores, muitos dos
9
FOUCAULT, M. As ciências humanas. In: As palavras e as coisas, p. 361-404.
Cf. BAKHTIN, M. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências
10
13
Ibidem, p. 227.
como experiência autônoma da linguagem significa querer ul-
trapassar a oposição entre interioridade e exterioridade, entre
sujeito e objeto. 14 A linguagem literária é, pois, linguagem pura,
que só fala de si mesma, que não expressa nenhuma realidade
pré-existente.
ra, p. 113.
15
Cf. RANCIÈRE, J. A literatura impensável. In: Políticas da Escrita, p. 27.
por ocasião da publicação do Livro, de Mallarmé, os manuais de
escola primária, na França, continuavam a manejar sem per-
turbação as regras da Retórica. Mas, de alguma forma, é o que
acontece, ainda hoje, quando os manuais de História da Litera-
tura, utilizados em nossas escolas, sinalizam para uma suposta
continuidade, a despeito das elaborações linguístico-literárias já
citadas e de outras que, entre nós, continuam em processo: bas-
ta lembrar a obra de Guimarães Rosa, as produções da poesia
concreta ou da poesia marginal — em seus desdobramentos nos
anos 1970, com os poetas da geração mimeógrafo, até os saraus
de poesia divergente, acontecendo nos grandes centros urbanos
das cidades brasileiras16.
Como se vê, a hipótese de Rancière enriquece a discussão
quando deixa entrever que a própria questão levantada pela Lin-
guagem, pelo viés da Literatura, vem justamente perturbar a or-
dem das classificações entre os modos e os gêneros do discurso.
16
Para aprofundar o tema, recomenda-se a leitura do artigo Poética brasileña con-
temporánea: de la poesía marginal hacia la poesía divergente. In: Caligrama, Belo
Horizonte, v. 23, n. 1, p. 5-20, 2018.
17
Ibidem, p. 30.
forma e conteúdo, indefinidamente, na legitimidade dos usos da
língua e da literatura, exercidos democraticamente pela comuni-
dade dos falantes. A ponto de podermos concluir, com Rancière:
Ibidem, p. 31.
18
disjunção própria do conceito de escrita que faz com que a própria
oposição do lógos vivo e da escrita morta só se coloque à custa de
instituir o mito de outra escrita, de um escrito mais que escrito.19
19
Ibidem, p. 45.
letra encarnada, na errância das páginas dos discursos, na ver-
tiginosa combinação de um jeito novo de se apresentar. O ser da
linguagem não existe nem como resultado de uma convenção,
mas também não é um exercício do seu poder linguístico-literá-
rio. Ele existe no instante rápido de uma enunciação possível, na
lacuna virulenta que dá vez e voz ao falante, muitas vezes pre-
terido e inopinado. É uma relação que partilha discursos com
a partilha dos corpos. É um acontecimento que rasura a letra e
atravessa anacronismos. É vida acontecendo aqui e além.
5. Considerações finais
Como vimos, o ser da linguagem performa um ato linguís-
tico-literário difícil de dissociar e de delimitar. Muitos teóricos
das Ciências da Linguagem, entre os quais Foucault e Derrida,
insistem sobre esse aspecto transgressivo, evidenciando uma es-
pécie de resposta negativa que os próprios textos dão aos enqua-
dramentos em um sistema de propriedade ou de pertencimento.
Este é um desafio frente a um binarismo mais antigo: Estudos
Linguísticos ou Estudos Literários. Essa divisão parece respon-
der mais a uma função moralmente enrijecida e penalizante
das análises linguísticas e literárias propostas, difundidas na
cultura e reprodutoras de um sistema de valores e sobredeter-
minações, do que se referir à condição mesma da textualidade
em questão.
Para Derrida, em entrevista intitulada “Essa estranha insti-
tuição chamada literatura”20, a Literatura é uma instituição que
consiste em transgredir e transformar. Melhor dizendo, o ser
da literatura produz formas discursivas, obras e acontecimentos
nos quais a própria possibilidade de uma constituição funda-
mental se encontra contestada, ameaçada, desconstruída, apre-
sentada em sua precariedade. Isto é, o ser da literatura e, con-
20
DERRIDA, J. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevis-
ta com Jacques Derrida, p. 114.
sequentemente, o ser da linguagem excede, interroga a lei e os
esquemas pré-estabelecidos, fazendo-a pensar, para dizer algo.
Desse modo, o caráter pensante que vimos evocando até
aqui, desde Michel Foucault, com “O pensamento do exterior”
(1966), esboça uma atividade reflexiva de natureza filosófica que
advoga por uma literatura pensante, ou seja, pretende interrogar
a História da Literatura, para dar conta do sentido em que se
construíram a produção dos enunciados e os atos performativos
poéticos e/ ou ficcionais. “O pensar literário, se existe, jamais
é puramente teórico ou reflexivo em sentido convencional”21 —
dirá Evando Nascimento, a propósito de Derrida. O autor de
literatura, mesmo quando veicula ideias, inscreve-as num corpo
textual que se dá antes como performance.
Isso equivale a dizer que o acontecimento linguístico-lite-
rário se dá como uma promessa e produz um engajamento de
forma e de conteúdo. Esta é a irresponsabilidade do escritor e,
por que não, do pesquisador das Ciências da Linguagem: irres-
ponsabilidade transgressiva perante autoridades constituídas;
assunção da lei para melhor transgredi-la. E este é também o
compromisso máximo que vimos perseguindo desde o início
deste trabalho: o compromisso com o pensamento, com aquilo
que desde sempre se relaciona às alteridades distintas do mes-
mo e do familiar. Compromisso que vem, certamente, de um
estranhamento inicial, pois não nos parecia nada natural uma
aproximação entre a Linguística e a Literatura.
Daí a vontade de escavar um espaço mais além do conhe-
cido, em ato e, consequentemente, um dever de irresponsabili-
dade, uma recusa mesmo em responder por uma prática restrita
diante de poderes constituídos academicamente. Talvez esteja
aqui nossa maior lucidez, diria Derrida: “a forma mais elevada
de responsabilidade”,22 o que leva a linguagem a dever ser, a um
só tempo, assumida e transgredida.
21
NASCIMENTO, E. Derrida e a literatura, p. 320.
22
Ibidem, p. 76
De fato, é no corpo a corpo com a linguagem, para ir além
dela, que se produzirá a surpresa, o dinamismo, a faísca, o lampejo,
o pensamento que se desloca, em êxodo, sob o risco da morte. Por
isso, a importância de sublinhar o ser da linguagem em exílio, nô-
made, estrangeiro, clandestino, em resistência, proibido, fora da lei
e fora do lugar: uma desterritorialização que se anuncia e se confir-
ma, o prazer de ler, de escrever, de sentir e de analisar o fenômeno
linguístico-literário no limite da letra que se desloca, abrindo um
novo terreno investigativo para as Ciências da Linguagem.
Bakhtin, Barthes, Foucault, Derrida e Rancière, para citar
alguns dos que nos acompanharam nesta empreitada, ajudaram-
-nos a ver que há um conjunto de obras que não se enquadra
sob o signo das “Belles-Lettres”. Com isso, eles abriram-nos a
possibilidade, não de todo inédita, de questionar o ser da lin-
guagem, tornando viável um tipo de pensamento que não anula
propriamente o valor representativo do texto, ao contrário, pro-
põe expor a textualidade como um momento dentro da História
da Literatura no Ocidente.
O ser da linguagem configura-se, assim, como um tanto insi-
tuável. Pelo que se pode ver, ele não se permite essencializar, pois
se furta, em inúmeras estratégias, e não se deixa classificar facil-
mente em atribuições expressivas e representativas impostas pela
tradição. Ao assumir um valor de inscrição no horizonte teórico,
o papel das Ciências da Linguagem consistirá em fazer irromper
caminhos e modos de discurso para pensar a linguagem.
Acreditamos, portanto, que há já muitas pistas para pro-
vocar nossa sensorialidade no sentido de uma abordagem mais
justa do ser linguístico-literário da linguagem. E como se pode
atestar com Derrida: “[…] é possível que a escrita literária, na
modernidade, seja mais do que um exemplo entre outros, cons-
tituindo antes um fio condutor privilegiado para acessar a estru-
tura geral da textualidade”.23 Além disso, continuaria ele, o que
23
DERRIDA, J. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevis-
ta com Jacques Derrida, p. 113.
a Literatura faz com a língua detém um poder revelador, que
certamente não é único e nos ensina mais, indo até ao essen-
cial, nos limites filosóficos ou linguísticos da interpretação da
linguagem. Em suma, essa era uma das razões principais de seu
interesse pela Literatura, e ele parecia estar convencido de que
isso motivava o interesse de tantos Teóricos da Literatura pelos
procedimentos da desconstrução.
Realmente, aqui reside também o nosso maior interesse,
pois exatamente aí o ser da linguagem revela seu mais alto po-
der de subversão, a condição indispensável para um pensamen-
to desconstrutor dos velhos esquemas. Por isso, ousamos buscar
encontrar um local entre a Filosofia e a Linguagem, um lugar
a partir do qual a questão que nos motiva igualmente é poder
(re)pensar ou até mesmo deslocar os limites de nossa própria
escritura, de nossas próprias análises e posturas, não somente
no âmbito da reflexão histórica ou teórica, mas na compreensão
dos enunciados da vida mesma. E é assim que chegamos a este
termo: o ser da linguagem nos convida a avançar… Então, “ân-
coras ao vento” — continuemos singrando os mares e que nem
vento nem calmaria nos detenha. Vamos em frente!
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CAPÍTULO 12 ESCRITA EM LÍNGUA
PORTUGUESA COMO SEGUNDA
LÍNGUA POR SURDOS USUÁRIOS
DE LÍNGUA DE SINAIS:
Algumas reflexões,
possíveis soluções
Jurandir F. Dias Jr. (UFPE)
Wanilda Mª A. Cavalcanti (UNICAP)
A
escrita em Língua Portuguesa por surdos tem mere-
cido reflexões de vários pesquisadores tendo em vis-
ta ser algo que ainda não parece ter sido resolvido.
Para tanto, realizamos um levantamento de produ-
ções sobre esse tema seguido de leitura de fontes bibliográficas
relacionadas com nosso objeto de estudo, além de relatar uma
experiência vivenciada no curso de Letras/Libras presencial, de
uma universidade pública pernambucana.
A motivação para tal recorte do objeto de estudo se prende
à necessidade de entender melhor algumas das dificuldades que
os surdos têm demonstrado na construção da escrita em Língua
Portuguesa, considerando que eles a utilizam para interagir com
outras pessoas sejam elas surdas ou ouvintes, em qualquer que
seja a situação. Mais recentemente, o uso das redes sociais mo-
bilizou todas as camadas da sociedade e, diante desse meio de
comunicação acessível para a maioria da população brasileira, o
interesse de surdos para o emprego dessa ferramenta é eviden-
te. Tal emprego traz consigo o ensejo de utilizar na maioria das
vezes a Língua Portuguesa escrita.
Levando em consideração que a maior dificuldade dos sur-
dos foi considerada durante muito tempo como a dificuldade
linguística, ainda não superada, precisamos enfrentá-la, esclare-
cendo que estamos falando de surdos usuários de Libras.
O reconhecimento dessa língua não se deu sem esforço e
nem sempre os surdos conseguiram utilizá-la de maneira livre
como vemos hoje. Após muitos anos de isolamento, eles final-
mente vêm sendo reconhecidos como indivíduos capazes (SAN-
TOS, 2009), com língua própria. Desse modo, observamos que
duas realidades convergem para o surdo, ou seja, comunicação
com outros surdos através da Libras e, por outro lado, o apren-
dizado da linguagem escrita em Língua Portuguesa para comu-
nicar-se com os ouvintes (SKLIAR, 1997).
É de conhecimento da grande maioria dos pesquisadores
dessa área, e nesse contexto nos incluímos, que as crianças sur-
das, filhas de pais ouvintes, geralmente, não conseguem estrutu-
rar uma língua e, com pouca interação verbal com os pais, elas
constroem seu conhecimento de mundo baseadas, principalmen-
te na visão, apesar de que dificilmente contem com alguém que
interprete o que veem em uma língua acessível para elas.
Embora Pereira (2009), de quem estamos trazendo os acha-
dos de pesquisas realizadas, no Brasil, há quase uma década,
afirme que encontramos poucas mudanças durante muitos
anos, e até a atualidade, no que se refere à melhoria da escri-
ta em Língua Portuguesa, por surdos, o que é confirmado por
Svartholm (2014) quando relata uma pesquisa na Suécia, com
resultados similares.
Pereira (2009, p 42) comentava que sendo pequeno o co-
nhecimento do mundo e de uma língua, que as crianças surdas
conseguem construir, provavelmente, serão “limitadas as suas
possibilidades de compreender um texto, atendo-se a palavras
isoladas” e desse modo, provavelmente, teriam dificuldades na
aprendizagem da escrita em Língua Portuguesa. Como poderão
escrever além de palavras soltas? A ideia preconizada pelo bi-
linguismo (filosofia adotada no Brasil), de que o surdo precisa
aprender a língua de sinais e a língua utilizada pela sociedade
ouvinte, na modalidade escrita evidencia como é essencial es-
tabelecer a relação entre ambas, como afirmam Salles (2004) e
Slomski (2012).
Sabemos que somente a aprovação da Lei 10.436/2002, que
legitimou a Libras, por si só, não garantiu a possibilidade efetiva
de acesso do surdo a esta língua. Tal lei representa a legitimação
do uso de uma língua própria de um grupo social, deixando de
considerá-la apenas como linguagem gestual, mímica ou outras
denominações, e tais referências quase sempre tinham caráter
depreciativo.
Segundo muitos alunos surdos, quando começam a apren-
der a escrever, pensam que o português escrito é a representa-
ção da língua de sinais que eles usam. Quando começam a em-
pregar a Língua Portuguesa e aparecem dificuldades nos níveis
de análise da língua, como inadequações morfossintáticas, co-
meçando a ver que é outra língua e, desse modo procuram me-
morizar alguns aspectos essenciais para estruturar melhor seu
texto, muitas vezes não se dão conta de que se trata do apren-
dizado de uma língua, de modalidade diferente, ocorrendo de
maneira instrumental como acontece com ouvintes ao aprender
uma segunda língua (VIANA e LIMA, 2016).
Diante dessa constatação, Pereira (2009) comentando sobre
o tema, observou que até final dos anos 80, a concepção de lin-
guagem que predominava na escola era de que esta servia como
instrumento de comunicação. Para a autora, a principal função
da linguagem é a transmissão de informações.
No entanto, influenciados pelas ideias de Vygotsky e de
Bakhtin, no final da década de 80, a linguagem passou a ser
concebida como atividade, lugar de interação humana, de inter-
locução e espaço de produção de linguagem e de constituição
de sujeitos. Esta forma de pensar mostra que a língua não está
pronta de antemão, mas é re/construída na atividade de lingua-
gem (PEREIRA, 2009).
Nos primeiros anos da década de 1990, evidencia-se que
a relação dos surdos com a Língua Portuguesa, na maioria das
vezes, só se constrói para favorecer uma comunicação efetiva
entre seus pares, quando eles passam a frequentar a escola, uma
vez que esse aprendizado não se constrói naturalmente com
os pais.
No entanto, apesar do oralismo ter seu emprego perdurado
por quase um século até quando se tornou evidente o fracas-
so dessa prática para o aprendizado do surdo, segundo Gomes
(2006, p 2):
3. À guisa de conclusão
O trajeto histórico da educação de surdos traz consigo uma
conjuntura de procedimentos que deixaram máculas e estigmas
não só no processo em si, mas, sobretudo, nos indivíduos. Por
isso, é certo dizer que a sociedade carrega uma dívida cara e,
por isso, impagável para com as pessoas surdas.
O fenômeno linguístico tão discutido e pesquisado trouxe
novas luzes para o entendimento das línguas de sinais como
língua natural, dotada de todos os níveis de análise. No mes-
mo caminho, o reconhecimento da Libras como língua da sua
comunidade usuária, impõe reflexões essenciais. Enquanto ins-
trumento de interação, as línguas gestuais cumprem plenamen-
te seu papel de garantir aos utentes mais genuínos seus papéis
sociais outrora sonegados na sociedade.
A academia precisa rever seus próprios métodos e pro-
por estratégias que respeitem as especificidades nos métodos
e práticas empregados pelos docentes de surdos usuários de
língua gestual, pois toda questão de um bom desenvolvimento
do processo de aquisição/aprendizagem da língua escrita está
nas estratégias adotadas. Não falamos em necessidades, mas em
‘especificidades’.
Seja qual for o grupo destinado para o processo de aquisi-
ção/aprendizagem de uma língua, é preciso entender o perfil ali
presente a fim de que seja dado a cada um aquilo que lhe for
adequado, por meio de estratégias pertinentes, recursos os mais
variados possíveis, pois a inclusão não deve ser compreendida
como uma imposição para o cumprimento de dispositivos le-
gais, mas adequação nos métodos e estratégias, visando sempre
o desenvolvimento dos alunos.
Desta forma, é preciso dar ênfase na formação inicial dos
docentes, que se evidencia cada vez mais quando das análises de
dificuldades identificadas na aquisição/aprendizagem da Língua
Portuguesa por surdos. Os professores precisam ser devidamen-
te preparados teórica e praticamente, de modo que possam assu-
mir seu ofício de maneira a contribuir significativamente para
com a aquisição/aprendizagem de língua escrita de seus alunos.
Com efeito, é importante ao docente entender as nuanças
do processo de aquisição de L1 como L1 e de L2 como L2, para
que não haja uma confusão, e, por fim, uma inadequação didá-
tico-metodológica, acarretando prejuízo aos alunos.
Em relação aos surdos, sabemos que a falta de acesso à
língua oral dificulta a possibilidade de tradução dos signos orais
para os escritos, entretanto isso não compromete sua aquisição
de uma língua gestual, já que está lhes é natural.
Essa identidade linguística requer um trato que lhe possa
aproveitar todos os recursos que as línguas de sinais oferecem.
A modalidade gesto-visual reserva aos seus usuários uma gama
de possibilidades, mas também de limitações assim como as
línguas orais. E todos esses fatores devem ser levados em con-
sideração a fim de que tudo concorra para a transcendência do
humano, algo inerente às línguas.
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CAPÍTULO 13 CORPO E IDENTIDADES
DE GÊNERO:
A escrita feminina
em espaços digitais
Denise Lima Gomes da Silva (PNPD CAPES/UNICAP)
Dóris de Arruda C. da Cunha (UNICAP/UFPE/CNPq)
Introdução
E
ste capítulo tem como proposta refletir sobre a constru-
ção das identidades de gênero a partir da representação
do corpo na escrita de mulheres em espaços digitais.
Tomamos como aporte teórico a articulação entre teo-
rias da linguagem, na perspectiva dialógica do discurso, e teo-
rias de identidade e gênero.
O trabalho está dividido em três partes. Na primeira, a dis-
cussão aborda a questão do dialogismo na linguagem proposto
por Bakhtin (1998), (2011), (2015a), (2015b), (2016), e o ato de no-
mear proposto por Siblot (1990), (1997), (2001) e Moirand (2009),
(2011). Ambos abordam o ato de nomear na perspectiva dialógi-
ca e axiológica. É possível compreender com esses autores que
entre o sujeito e a realidade nomeada existe uma multiplicidade
de interações, representações e sentidos que são reajustados a
cada atualização discursiva, de modo que a palavra traz uma
memória e revela um ponto de vista do enunciador.
Na segunda, abordamos a noção de gênero proposta por Ha-
raway (2000) e Scott (1999), Butler (2013), (2014), (2000) (1986).
Com essas autoras é possível compreender como as identidades
de gênero são constituídas por práticas regulatórias que subscre-
vem os corpos, mas, por serem discurso, estão sempre suscetíveis
de desconstrução. E é justamente enquanto ato de questionar as
hegemonias que procuramos olhar as formas de representação
do corpo na escrita feminina em espaços digitais. Para Castells
(2013), as redes autônomas são ambientes de solidariedade, com-
partilhamento, denúncias e trocas de experiências. Os blogs são
exemplos dessas redes autônomas no ciberespaço.
Por fim, na terceira, nos deteremos na análise do corpus cons-
tituído pelas postagens publicadas no web blog, Blogueiras Femi-
nistas1 que atua desde 2010, e se define como um blog coletivo,
político, com o objetivo de buscar uma sociedade mais justa e igua-
litária. Como na história do feminismo a escrita sobre o corpo é
um instrumento de luta, resistência e denúncia, a análise procura
responder às seguintes perguntas: de que maneira o corpo é repre-
sentado em suas articulações com o gênero? De que forma estas
representações constroem discursivamente as identidades? Quais
as formas de nomear utilizadas e quais os sentidos construídos?
https://blogueirasfeministas.com/
1
Segundo Holquist (2002), a “filosofia de Bakhtin” é orienta-
da para uma teoria do conhecimento, mais particularmente, é
uma das várias epistemologias modernas que buscam compre-
ender o comportamento humano, através do uso da linguagem.
Mas, a contribuição de Bakhtin está na noção de dialogismo
como fundamental no funcionamento da linguagem.
Indo na contramão de uma “leitura eivada de um marxis-
mo vulgar”, Fiorin (2006, p.168) considera que Bakhtin não nega
a existência do sistema da língua, nem condena seu estudo, ao
contrário considera-o necessário para estudar as unidades da
língua. Mas, para o autor russo, apenas o estudo do sistema
língua não daria conta do modo de funcionamento real da lin-
guagem, propondo como objeto o discurso, isto é,
2
Por isso, quando eu penso que nomeio o próprio objeto, é minha relação com ele
na realidade que eu nomeio. Toda nomeação exprime uma visão da coisa nomeada,
vista de um certo ângulo, a partir de um ponto de vista onde se situa o locutor.
Ela é uma tomada de posição em relação à coisa nomeada que designa, ao mesmo
A dialética entre locutor e realidade nomeada abarca uma
multiplicidade de interações, categorizações, representações e
sentidos que são reajustados a cada atualização discursiva. No-
mear é não apenas se situar em relação ao objeto, mas também
tomar uma posição em relação a outras denominações do mes-
mo objeto. Sendo assim, uma reflexão sobre a questão da no-
meação envolve uma dialética da linguagem e realidade, e um
dialogismo da nominação (SIBLOT, 2001).
Realidade, linguagem e existência envolvem um arcabouço
de experiência perceptivas, práticas sociais, na quais as unida-
des linguísticas são (re)elaboradas. Pensar o sentido na lingua-
gem a partir do conhecimento adquirido sobre o objeto remete à
questão da relação com a realidade que não se reduz ao âmbito
da representação, mas engloba o homem no mundo, conforme
afirma Siblot (1990).
Podemos pensar então que o ato de nomear envolve uma
relação em três dimensões, como explica Moirand (2011, p.170-
171): “le réel du monde, qu’on catégorise pour lui donner sens;
le réel du sujet qui exprime la représentation qu’il se fait de ce
monde et la position qu’il prend à son égard; le réel du sujet aux
autres avec lesquels il entre nécessairement en dialogue.”3
Sendo assim, Moirand (2009) propõe que nomear é usar
as palavras que temos armazenadas na memória, palavras que
têm uma história e que carregam consigo o sentido encontra-
do em discursos e situações que elas cruzaram, comunidades
discursivas que atravessaram o locutor e que são atravessadas
por ele. Nomear é designar um ato por uma de suas facetas
construídas discursivamente por palavras que foram mantidas
em discursos anteriores e por palavras que mudam ao longo no
decorrer do evento.
tempo que o objeto nomeado, a posição tomada para nomear. Assim um locutor
não pode designar sem se autodesignar. (Tradução nossa)
3
“o real do mundo que é categorizado para lhe dar sentido; o real do sujeito que ex-
prime a representação que ele se faz deste mundo e a posição que toma em relação
a ele; o real do sujeito face aos outros com os quais ele dialoga necessariamente”.
2. Sexo, gênero e corpo
As temáticas que envolvem os estudos de gênero e sua
abordagem sobre o corpo e o sexo estão associadas aos contextos
e problemas suscitados nas diferentes fases do feminismo. Con-
forme Scavone (2008), historicamente o movimento feminista
tem sido delimitado em três grandes fases. A primeira fase, a
universalista, comporta ações pela aquisição igualitárias de di-
reitos civis, políticos e sociais; a segunda fase, a essencialista,
convoca o debate pela afirmação das diferenças e das identida-
des, e uma terceira fase, denominada de pós-moderna, influen-
ciada pela noção de desconstrução, reflete sobre a condição dos
sujeitos múltiplos e nômades.
Mesmo levando em conta os avanços epistemológicos, a
relação corpo, sexo e gênero continua convocando reflexões no
pensamento contemporâneo. Noções como a biologização da
mulher, a desnaturalização dos corpos, a performatividade do
gênero e a sexualização das identidades provocam diálogos cons-
tantes nos debates acadêmicos e político. Ao refletir sobre a mo-
dernidade, a universalização dos sujeitos e o movimento femi-
nista, Haraway (2000, p. 52) pergunta: “e quem é esse ‘nós’ que é
enunciado em minha própria retórica? Quais são as identidades
que fundamentam esse mito político tão potente chamado nós e
o que pode motivar o nosso envolvimento nessa comunidade?“
De acordo com Haraway (2000) depois do reconhecimento,
conquistado de maneira árdua, de que gênero, classe e raça são
sócio-historicamente construídos, não cabe mais pensar esses ele-
mentos na base da crença em uma unidade essencial. “Não existe
nada no fato de ser ‘mulher’ que naturalmente una as mulheres.
Não existe nem mesmo uma tal situação — ‘ser’ mulher.” (HA-
RAWAY, 2000, p. 52). Esse “ser mulher” está relacionado à uma
categoria altamente complexa, construída por meio de discursos
científicos sexuais e de outras práticas sociais questionáveis.
Questionando as dicotomias estruturantes do sujeito mo-
derno como as fronteiras estabelecidas entre o humano e o ani-
mal, o humano e a máquina, e o físico e não-físico, Haraway
propõe o que denominou de ciborgue. O ciborgue é um ser hí-
brido, não mais estruturado pela polaridade do público e do
privado; coloca em cheque a relação natureza e cultura em que
uma não pode ser objeto de apropriação ou incorporação da ou-
tra, e questiona as relações de polaridade e dominação hierár-
quica. Com o ciborgue, Haraway (2000) redefine a condição de
um sujeito fundado em uma “unidade original”, desfaz a “ideia
de plenitude” e propõe um sujeito em constante transformação,
conduzida através de relações.
Scott (1999), seguindo também a vertente pós-estrutura-
lista, argumenta que é necessário refletir em termos de plu-
ralidade e diversidade, em lugar de unidade e universalidade,
articulando modos de pensar alternativos sobre o gênero que
rompam com esquemas conceituais das velhas tradições filosó-
ficas ocidentais. O feminismo necessita de “teorias que possam
analisar o funcionamento do patriarcado em todas as manifesta-
ções- ideológicas, institucionais, organizativas, subjetivas, expli-
cando não somente a continuidade, mas também as mudanças
no tempo”, defende a autora. (1999, p. 203)
Partindo do diálogo com Foucault e Deleuze, Scott critica
a ideia de um sujeito universal, biológico e a-histórico que fun-
damenta o discurso falocêntrico e defende que gênero é uma
categoria histórica, cultural, política na construção de significa-
dos. Scott (1990) elabora um conceito de gênero que tem como
núcleo duas proposições ligadas entre si: “o gênero é um elemen-
to constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças
percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de
dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1990, p. 14). Sen-
do assim, é preciso examinar as formas pelas quais as identida-
des de gênero são construídas e relacioná-las às representações
sociais historicamente situadas.
Butler (2014) também defende que não existe uma estru-
tura originária que as identidades imitem. Gênero não é preci-
samente o que alguém “é” nem o que alguém “tem”, mas sim, o
aparato pelo qual a produção e a normalização do masculino e
do feminino se manifestam juntamente com as formas inters-
ticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e performativas que
o gênero assume. O gênero é o mecanismo pelo qual as noções
de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas
também o aparato através do qual masculino e feminino podem
ser desconstruídos e desnaturalizados.
4
Como um locus de interpretações culturais, o corpo é uma realidade material
que foi situada e definida em um contexto social. O corpo é também a circuns-
tância de termos de assumir e interpretar esse conjunto de interpretações que nos
foram transmitidas. Não mais entendido em seus sentidos filosóficos tradicionais
de “limite” ou “essência”, o corpo é um campo de possibilidades interpretativas,
o locus de um processo dialético de interpretar novamente um conjunto histórico
de interpretações que se tornaram impressas na carne. O corpo se torna um nexo
peculiar de cultura e escolha, e “existindo” o corpo se torna uma maneira pessoal
de assumir e reinterpretar as normas de gênero transmitidas. (Tradução nossa)
cursos regulatórios pelos quais são enquadrados e formados, de
modo a tornar evidente o status construído em oposição ao na-
tural destas categorias.
É nessa perspectiva que procuramos olhar a representação
do corpo e sua relação com o gênero na escrita de mulheres,
mais especificamente, em espaços digitais que ganham cada vez
mais visibilidade da sociedade.
https://blogueirasfeministas.com/2013/08/20/o-corpo-da-mulher-cis/
5
6
https://blogueirasfeministas.com/2016/07/21/o-conceito-de-cisgenaridade-e-o-
-transfeminismo/
https://blogueirasfeministas.com/2015/04/29/o-que-faz-dos-corpos-cis-naturais/
7
cisgênero está relacionado à identidade daquelas pessoas, cujo
gênero corresponde àquele atribuído no nascimento.
(3) Meu corpo de mulher cis não tem definições exatas. Meu corpo
não define quem eu sou ou devo ser. Meu corpo pela sua forma ou
anatomia não é capaz de abarcar meu eu, tudo o que eu sou ou mi-
nhas escolhas. (Post publicado em 20 de agosto de 2013)
(4) Meu corpo de mulher cis não define minha sexualidade, feminili-
dade, maternidade, maternagem ou via de parto. Tão pouco determi-
na universalmente essas experiências. Meu corpo de mulher cis não é
parâmetro para definir isso tudo, quem dirá para todas as outras pes-
soas, sejam elas cis ou não. (Post publicado em 20 de agosto de 2013)
(7) A militância que visibiliza pessoas trans* não apaga a mulher cis.
A militância materna que se restringe a corpos de mulheres cis, ou
demandas exclusivas de mulheres cis, não me representa, porque
homens trans* engravidam, podem parir e amamentar. Existem mu-
lheres trans* e cis que não podem amamentar, engravidar ou parir.
Porque a parentagem e o cuidado não se restringem ao parto e a
amamentação. Porque não são essas ações biológicas que constro-
em e/ou determinam o vínculo parental. (Post publicado em 20 de
agosto de 2013)
8
https://blogueirasfeministas.com/2016/07/21/o-conceito-de-cisgenaridade-e-o-
-transfeminismo/
as nomeações, sugere a presença indireta de discursos outros.
Neste sentido, a utilização das aspas assinala uma tensão entre
posições ideológicas, na medida em que imprime nesse outro
discurso um tom depreciativo. O posicionamento é reiterado no
enunciado 9. Pelo ato de nomear-se como nós, pessoas trans, a
autora credita seu poder de fala e retoma a crítica sobre a artifi-
cialidade ligada à imagem do corpo transgênero. No enunciado
(8), o dialogismo aparece nas relações em que o sujeito em re-
lação de alteridade com um outro discurso, imprime o seu tom
valorativo de reelaboração ou reacentuação.
(10) Tudo isso, implica entendermos que pessoas cisgêneras são tão
artificialmente construídas quanto pessoas trans. Mas, os lugares
políticos dessas ficções e tecnologias são diferentes. É a partir desse
entendimento que falarmos de “mulheres com pênis”, “homens com
vagina” ganha sentido: não estamos buscando nos adequar aos seus
conceitos sobre o que é ser mulher ou homem, estamos buscando
transformar seus conceitos sobre o que significa ser “uma verdadei-
ra mulher” ou “um verdadeiro homem”, para entendermos que essa
verdade é algo que não existe para nenhuma de nós, a não ser no
espaço da construção política das nossas narrativas. (Post publicado
em 21 de julho de 2016)
(12) A pergunta que fica é: o que faz dos corpos cis, corpos tidos
como transparentes, naturais? O que faz com que o corpo cis apa-
rente uma continuidade assombrosa entre o seu produto real e o
seu imaginário de corpo natural (como se o corpo cis que conhecês-
semos agora fosse uma espécie de extensão espontânea da própria
natureza)? (Post publicado em 29 de abril de 2015)
https://blogueirasfeministas.com/2015/04/29/o-que-faz-dos-corpos-cis-naturais/
9
seguida, nos enunciados (12) e (13), a posição axiológica da auto-
ra é expressa no diálogo com um interlocutor. A utilização das
frases interrogativas como recurso retórico e do pronome “seu” e
“você” marca essa interlocução. Nesta relação, a autora marca o
seu posicionamento, colocando em questão a artificialidade dos
corpos na sociedade em que as sanções jurídicas e biomédicas
revestem independentemente todos os corpos contemporâneos.
No enunciado (14) a posição valorativa é apresentada com
maior evidência. O tom reivindicatório marca o enunciado, ao dar
ênfase ao processo de objetificação dos corpos imposto pela socie-
dade e propõe uma reflexão sobre o corpo transgênero. No enun-
ciado (15) a voz da resistência aparece como denúncia à transfobia.
Considerações finais
Podemos dizer que as postagens analisadas problematizam
questões que nos últimos anos fomentam uma série de debates
no âmbito social e político e constitui um ponto para pensar a
questão da igualdade de gêneros. Os movimentos discursivos e
as nomeações utilizadas promovem uma produção de sentidos
que não apenas reconfiguram as formas de pensar o feminino,
como também, a maneira de pensar, o conceito de gênero e sua
relação com o corpo. É possível observar que as identidades de
gênero são constituídas a partir da desconstrução do pensamen-
to hegemônico que configura um único ethos para o feminino
e este argumento é materializado nas representações do corpo.
Vemos que os discursos revelam um ponto de vista de resistên-
cia ao corpo sexista e propõem um corpo relacional e político.
Desta forma, os posts analisados exemplificam algumas formas
de denúncia ao questionar os corpos normatizados, e de luta
ao propor outras formas de significar os corpos. É a partir do
momento em que as abordagens sobre o corpo convocam uma
reflexão em que a corporeidade não é algo dado, mas transitório,
que podemos pensar em identidades de gênero que abarquem
uma multiplicidade de sujeitos.
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CAPÍTULO 14 O DRAMA TRÁGICO
DE OSMAN LINS:
Alegoria e História na peça
Guerra do Cansa-Cavalo
Gilberto Figueiredo Martins (UNESP)
1
LINS, 1974: 125.
2
ANDRADE, 1978: 153-154.
Um cavalo esquece o tempo
De cavalgar
E tudo é branco. Por dentro
De cada morto
Um silêncio cresce e finge
Um mesmo grito
De vida — esse grito aceso
Na própria chama
Em que se consome o sonho
De retornar.
(Elizabeth Hazin, Martu3)
V
encedor, em 1964, do “Prêmio Anchieta”, concedi-
do pela Comissão Estadual de Teatro de São Paulo,
o texto da peça Guerra do Cansa-Cavalo, de Osman
Lins (1924-1978), traz como epígrafe um pequeno tre-
cho do “Livro II” da Eneida, de Virgílio (século I a.C.), o capítulo
no qual Eneias narra o célebre episódio do cavalo de madeira
dado de presente pelos invasores gregos: “Surdos, cegos instan-
do, o monstro infausto / ah! no augusto recinto o colocamos”4.
A citação funciona como índice antecipatório do enredo e é a
primeira ocorrência de uma série de imagens que remetem à
ideia de haver sempre algo ou alguém que se esconde ou se dis-
farça, ludibriando visadas delirantes ou olhares menos atentos.
Afinal, graças ao expediente do embuço, à estratégia da simu-
lação ou da encenação teatralizada, os moradores do Engenho
Cansa-Cavalo recebem em casa o inimigo — acreditando ser ele
3
HAZIN, 2006: 81.
4
LINS, 1967: 5. (Neste estudo, passo a indicar, entre parênteses, no corpo do tex-
to, apenas o número da página desta edição da peça, publicada pela Editora Vozes).
Não há, nas duas edições consultadas, indicação de qual tradução da Eneida Os-
man Lins utilizou (ou se ele mesmo a efetuou). Numa recente publicação bilíngue,
aparece o trecho original da epopeia: “/.../ instamus tamen immemores caecique
furore / et monstrum infelix sacrata sistimus arce” (VIRGÍLIO, 2014: 152-3); e
também nela o mesmo excerto, em português: “Mas, esquecidos de tudo, o leva-
mos – cegueira incurável! - / e colocamos o monstro no próprio sacrário de Troia!”.
Já a versão adaptada para a prosa, da editora Cultrix (VERGÍLIO, 2007: 36), traz:
“Entretanto, nós prosseguíamos, sem nada ver, presa de furor cego, e colocamos o
monstro nefasto na cidadela consagrada”.
o padre que liderava uma procissão religiosa -, o senhor do En-
genho Timorante, de nome Drahomiro Marinho, cuja rivalidade
com eles se acentuara há pouco, justamente por ter sido seu
casamento interrompido e sua noiva raptada por Pedro Ivo de
Albuquerque Lins, herdeiro daquela primeira estirpe5. Como se
vê, o título e a epígrafe da peça remetem à afamada contenda da
Antiguidade, enquanto o entrecho arremeda a justificativa mais
romantizada usada para explicar o início da Guerra de Troia6:
o rapto de Helena de belos cabelos, cujo avatar é aqui Heloísa de
Barros Wanderley, filha de Coriolano, do Engenho Bom-Mirar.
Ao recuperar um motivo que serve de mote a duas das mais
importantes epopeias míticas da Antiguidade greco-latina —
três, se considerarmos o conteúdo da Odisseia como continuação
e desdobramento do que é narrado na épica guerreira Ilíada —, e
reformatá-lo, refundi-lo para o gênero dramático, Osman reali-
za, de pronto, uma opção importante: ocasiona um choque, um
curto-circuito entre os conceitos de fato ou verdade e os de versão
ou ponto de vista. Sim, pois não havendo na peça aquele narrador
único que detém o saber acabado sobre um passado inacessí-
vel, o “contar” (to tell) — próprio do épico — sofre um efeito
de presentificação no “mostrar” (to show) do teatro, a fim de se
encenarem perspectivas diferenciadas em conflito, por meio de
falas e ações de vários personagens (dezesseis, ao menos). Aliás,
como se sabe, essa fratura da voz responsável pela enunciação
5
No final do segundo ato, a simulação de um incêndio no canavial de Cansa-Ca-
valo também terá autoria atribuída a Drahomiro, com igual fito de armar literal-
mente uma cortina de fumaça para ele poder invadir sem resistência a propriedade
do rival. E, ainda, a fim de escapar ao resgate do noivo indesejado, Heloísa recebe
um disfarce de homem, vestindo as roupas de Pedro Ivo.
6
Vale lembrar que a epopeia de Virgílio serve igualmente como referência para
Osman escrever seu segundo romance. É do autor a “Confissão” memorialista e
metalinguística publicada em Marinheiro de primeira viagem: “Entregue, desde on-
tem, à revisão de O fiel e a pedra, essa tentativa de transposição, para o Nordeste
de 1936, da Eneida. Não propriamente uma transposição, uma vez que muitos dos
personagens e fatos apresentados têm origem na minha experiência. Mas a verdade
é que o romance, já iniciado, foi replanejado tendo em vista o poema de Virgílio.
/.../ Pois eu também tivera destruída minha Tróia, cujos muros pareciam inexpug-
náveis.” (LINS, 1980: 43)
vem sendo apontada pela fortuna crítica do autor pernambuca-
no como estratégia também da sua obra ficcional (digo dos ro-
mances, contos e demais “narrativas” em prosa). E a esta escolha
de pôr em cena ajusta-se outra, a de promover um movimento de
atualização dos temas, por meio da apropriação e acercamento
da matéria histórica brasileira7: o ambiente de discórdia civil
é agora o de uma “casa-grande de engenho, do Nordeste”, num
domingo, mais especificamente em 29 de setembro de 1940, dia
de São Miguel.
Entre a gesta dos míticos (in)sucessos de Eneias e o emba-
te ficcional na sobranceira propriedade de Fidêncio Cavalcanti
Lins — tendo ainda como pano de fundo histórico, embora “do
outro lado do mundo” (p. 27), a II Grande Guerra (referida aqui
como a “da Alemanha com a França”, invadida esta exatamente
naquele mesmo ano de 1940)8 -, interpõem-se os fatos verazes
das demandas pernambucanas contra a invasão dos holandeses,
trazidos à cena pela memória (seletiva e altaneira) do coronel do
engenho de Cansa-Cavalo:
7
Em outras contendas – não menos intestinas -, Osman Lins frequentemente
se entrincheirava no palco de luta contra os mercados editorial e teatral, propug-
nando pela necessária primazia dos textos e autores nacionais frente à sempre
reafirmada preeminência dos estrangeiros. Nos seus ensaios e entrevistas, como
no capítulo “O escritor e o teatro”, do volume Guerra sem testemunhas, trata do “de-
ver irrecusável e urgente” de ler e encenar a dramaturgia brasileira, “empenhada
em auscultar e interpretar o país”. E, também aqui, utiliza o exemplo mobilizado
na epígrafe da peça: “A História registra vários exemplos de culturas assimiladas
pelos invasores, como sucedeu com Roma em relação aos gregos; /.../ Quando, po-
rém, vemos indivíduos que, pelo gênero de atividade que desenvolvem – como os
diretores de cena e os empresários - /.../ entregarem-se alegremente a abrir nossos
portões a todos os cavalos de madeira abandonados em torno da cidade, a situação
torna-se alarmante”. Para concluir, exemplarmente, empunhando a arma que tem:
“Mas não se vai à guerra com hinos estranhos – e sim com as próprias canções, por
mais pobres que sejam” (LINS, 1974: 110 e 112).
8
A menção à II Guerra serve também para antecipar traços do caráter anti-he-
roico, individualista e covarde do descendente dos Albuquerque Lins, Pedro Ivo,
espécie de príncipe decaído. Sua própria mãe, Gertrudes (homônima da rainha de
Hamlet), ajuda a caracterizá-lo negativamente, como pouco afeito ao patriotismo e
às empreitadas altruístas: “Pedro Ivo diz que se o Brasil entrasse na guerra, ele sen-
tava praça, só porque marinheiro e soldado têm quantas mulheres querem” (LINS,
1967: 27).
FIDÊNCIO
/…/ No tempo dos holandeses, minha família já possuía terras. Meu tata-
ravô Belchior Bragança Cavalcanti morreu de trabuco na mão, no Monte
das Tabocas, defendendo seus canaviais contra a invasão dos gringos.
Estão aí os livros, que não me deixam mentir. (p. 18)
/…/ Olhe aqui, Pedro Ivo, a alma do ataque é a surpresa. Se lembre de
Filipe Camarão. De Henrique Dias! De meu tataravô Belchior Bragança.
Mas não morra. (p. 52) 9
Vai ser mesmo que os pernambucanos, no Monte das Tabocas, com os
holandeses. Eram os galegos querendo subir e os pernambucanos pas-
sando chumbo neles. Morria holandês feito passarinho. /…/ Não se es-
queça. Nós representamos a pátria, os cabras do Timorante representam
os hereges! (p. 63)
Pronto. Tudo providenciado. Agora, é esperar os holandeses. Quero ver
se ainda tenho pontaria. (p. 64)
Na posição que estamos, vai ser uma carnificina. Mesmo que no Monte
das Tabocas. /…/ Não foi quando os brasileiros deram nos holandeses,
em mil seiscentos e tanto? /…/ Sei é que essa batalha foi mais impor-
tante que a dos Guararapes. Meu avô sempre dizia isso. Nos Guararapes,
os brasileiros já surraram uns apanhados. Enquanto que no Monte das
Tabocas, os holandeses não tinham perdido aqui para ninguém. Fazia
bem uns quinze anos que mandavam chover em dia de sol quente, neste
Pernambuco velho. (p. 66)
9
A referida linhagem heroica não é nada modesta, não fosse justamente o con-
traste que com ela o comportamento de Pedro Ivo estabelece a todo instante. Filipe
Camarão e Henrique Dias atuaram diretamente nas batalhas de reconquista con-
tra os invasores holandeses, no século XVII (1645): o primeiro, um índio potiguar
convertido e batizado não por acaso na Igreja de São Miguel (cujo dia se comemo-
rava naquele ano de 1940, justamente na data da contenda entre os três senhores
de engenho da peça); o segundo, filho de escravos libertos, era Cavaleiro da Ordem
de Cristo e um futuro patrono do exército.
dora e mesmo mítica do passado, a qual será posta à prova, no
teste de realidade imposto pelas incertezas do presente histórico.
Esta, parece, é a principal demanda trazida à cena neste texto
dramático de Osman Lins. Disputam-se aqui não apenas poder e
terra, no sentido material dos termos; mas também outros domí-
nios e territórios, simbólicos, dentre os quais o direito de contar,
ressignificando-se as estórias dos tais livros de História mencio-
nados como prova de verdade pelo velho proprietário.
Na perspectiva de Fidêncio, um fato isolado, individual, de
âmbito familiar e patrimonial, ganha foros de conflito ancestral,
coletivo, religioso e gentilício: Drahomiro e seus capangas são
automaticamente identificados aos holandeses, à “Loja Maçôni-
ca” (p. 72) dos “protestantes’, “hereges”, pagãos e reformistas (p.
85), a serem naturalmente derrotados e expulsos pela proba tropa
católica de “bons cristãos” (p. 86) do Engenho Cansa-Cavalo, os
representantes da “pátria” (p. 63).
Se pela ótica interessada e distorcida do personagem o em-
bate é arbitrariamente investido do espírito cavaleiresco das
Cruzadas, da aura das lutas contrarreformistas e das memo-
ráveis contendas nativistas, o modelo de refrega que serve ao
dramaturgo parece vir mesmo é da cultura popular, sobretudo
da cavalhada10. Nas rubricas, por exemplo, o figurino de alguns
personagens é minuciosamente descrito: são roupas coloridas,
chapéus de variegados tipos e materiais, sapatos mais ou menos
gastos… E os adereços assumem função identificadora, similar à
dos ornatos das vestimentas dos praticantes do folguedo popu-
lar de origem ibérica: o mascate e ex-cangaceiro Rui Vilela traz
um lenço vermelho no bolso; Severino dos Santos, “emissário”
do “Capitão” Drahomiro Marinho, porta “um lenço na ponta de
10
Cf. o Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo (pp. 259-263), cava-
lhada é um desfile festivo que converge para o “Auto de Cristãos e Mouros”. Tendo
assistido a uma apresentação no Nordeste, no início da década de 1950, descreve
o folclorista: “Os cavaleiros, sempre em número par, vestem branco, e os prêmios
simbólicos são faixas de fazendas vistosas, na maioria azuis e encarnadas, cores que
dividem as duas alas” (p. 259). Nas cavalhadas, a cor vermelha identifica os comba-
tentes mouros (os encarnados); enquanto o azul distingue os cristãos católicos.
uma vara”; o negro João-João (parte do reforço aliado do Engenho
Bombarda, de Salustiano, vindo a pedido de Pedro Ivo) osten-
ta sua camisa azul-turquesa; Rosário, o capanga de tipo cigano
do Engenho Timorante, carrega um “lenço rubro no pescoço” e
“uma fita vermelha amarrada no tornozelo direito”; além disso,
este último personagem reativa o gesto de oferecer troféus às
damas, galanteria recorrente nos torneios medievais, encerrando
flores dentro da camisa, junto ao peito, como a que dá a Heloísa.
A opção pelo subalterno, pelo não hegemônico, é estrutu-
rante na peça. Assim, um personagem aparentemente secundá-
rio, periférico, praticante de um ofício modesto, é trazido para o
centro da trama, justamente para encarnar o contraponto ao po-
sicionamento soberano e supratemporal dos coronéis. Se Fidên-
cio Cavalcanti Lins reconta os episódios da história pernambu-
cana para legitimar o predestinado sucesso de suas empreitadas
de luta pela manutenção do poder absoluto, o mascate Antônio
Cabral Vilela os reatualiza, atento ao que neles sabe a mudança,
mobilizando-os como chaves para compreender o presente.
No lugar do enquadramento dos dominantes, os quais bus-
cam destacar o que se repete e se mantém na história dos ho-
mens para tão-somente a equiparar às leis férreas da natureza e
ao eterno retorno dos ciclos, o mercador nascido em Vitória de
Santo Antão exercita o ângulo que lhe permite ler os aconteci-
mentos ao rés do chão, distantes do pedestal alteado dos mitos11,
a fim de os compreender de modo dinâmico e secular, como
eventos instáveis e imprevisíveis do processo histórico. Em vez
da restauração continuada de um estado excepcional, fora do
tempo e do espaço, o dinamismo de uma tensão que pressupõe
11
Até mesmo uma espacialidade de exceção - a singular topografia da região -
é mobilizada com intenção mistificadora pelos senhores do engenho dos Lins: o
nome “Cansa-Cavalo” alude ao esforço necessário para se alcançar a propriedade,
isolada no alto de uma colina, como uma espécie de oásis de suposta estabilidade.
Cansado, depois de atingi-la carregando suas bolsas de mercadoria, o mascate Rui
Vilela afirma: “Nunca vi casa-grande num lugar assim, tão sobranceiro. Parece um
promontório. Um Adamastor. Mesmo pra quem vem montado, a subida até aqui é
dura”. E o herdeiro Pedro Ivo determina, categórico: “É subida pra homem” (p. 23).
descontinuidade, transformação e possibilidade de superação:
os dados do passado são para Antônio lances pregressos de uma
história de violência e dominação, que se revela e repõe rigoro-
samente como imanência no presente, podendo ser no entanto
alterada, inclusive por sujeitos como ele e Rui do Pajeú, seu par-
ceiro e admirador, aqueles que sempre têm “comido da banda
podre” (p. 34).
A presença da dupla de paladinos efetiva e ratifica o cruza-
mento das culturas erudita, popular e de massa na peça, visto
serem eles sucessores de uma longa linhagem, que perpassa a
novela de cavalaria medieval, o Siglo de Oro espanhol, a comme-
dia dell’arte italiana, assim como retomam a tradição circense
dos palhaços, as façanhas dos heróis dos folhetos de feira do
cordel nordestino e as variantes do bumba-meu-boi e, mesmo,
os duetos do cinema hollywoodiano e das histórias em quadri-
nhos, para dizer o mínimo… Antônio Cabral Vilela (“bem mais
alto que Rui”) é o Quixote redivivo, porém lúcido e atilado, an-
dante por ofício, “feito os cavaleiros de antes”, amante das estra-
das e que já viu o mar em uma curta viagem de navio, sendo
agora “um homem e tanto”, bastante “conhecido, por esse meio
de mundo”. Defensor dos oprimidos, lamenta não viger mais o
(mítico) corolário ético da “Cavalaria Andante”, pois se reconhe-
ce, melancolicamente, arauto resistente e deslocado dos valores
absolutos de Honra, Amor e Lealdade12, em um tempo (históri-
co) no qual tudo já se tornou relativo13:
que roubava cavalos” – p. 14; Fidêncio é ainda mais direto: “/.../ valemos mais do
que você, que não tem raça” – p. 95), é um tipo paradigmático para Osman retratar
um mundo onde o único valor é o dinheiro: tendo a noiva raptada e, portanto, sua
honra posta em xeque, promete entretanto não se vingar se o dono de Cansa-Cavalo
passar para o nome dele a maior parte de suas chãs de várzea; e, pelo que se conta,
antes, já havia “passado nos cobres” um inimigo seu, “por um conto de réis” (p. 72).
É dele mesmo a cínica exposição de princípios: “Fui ofendido e venci a contenda.
Tenho todos os direitos, coronel. Os direitos de quem foi prejudicado e os direitos de
quem está de cima. Mas nunca, na vida, abusei de poderes: dou sempre uma opor-
tunidade. /.../ [E para Pedro Ivo] troco você por um pedaço de terra.” (p. 96). Final-
mente, para o dono do Timorante, os “cabedais” que Heloísa possui também fazem
“parte da pessoa”; por isso, deprecia Marisaura, dizendo-lhe: “Não se pode querer
alguém como a senhora, um pobre diabo que não faz sombra no chão” (p. 97). E con-
clui: “Dinheiro e terras não cheiram a podridão. O que cheira a podre é a pobreza.”
(p. 102). Mas, lembremos: o coronel permitirá que o filho seja torturado até a morte,
como Heitor decaído, mas não abre mão da melhor parte de suas herdades.
Além disso, “diz que nasceu pra uma” única mulher, cuja
“beleza imortal” deve ser por ele cultuada, inclusive retorica-
mente (p. 61). Finalmente, o mascate-pintor é leal aos santos
valedores da Cavalaria, São Jorge e São Miguel, afirmando sobre
este último: “Não podemos deixar nosso patrono ser hostilizado”
(p. 41); e “Temos os retratos deles nas bruacas” (p. 50). Entretan-
to, Antônio não ultrapassa o limite da automi(s)tificação: “Você
não me conhece, Rui. Pensa que sou grande, um santo. Mas sou
cheio de falhas e pecados. Um homem” (p. 54); “Não sou juiz do
mundo.” (p. 121).
São apenas alguns entre outros tantos exemplos que mos-
tram a vinculação de seus atos e falas aos comportamentos e
valores dos cavaleiros que tanto admira. É por isso que a con-
clusão produzida pelo filósofo alemão parece tão adequada para
compreender o personagem de Osman:
Queria que ele tivesse um retrato do maior cavaleiro que já houve: en-
frentou até os moinhos de vento. Na Holanda. (p. 44)14
14
E, com isso, também retorna ao texto a menção à pátria do invasor histórico do
território pernambucano... É recorrente, ainda, no universo de Osman, esta fusão
entre o ficcional e o histórico: aqui, um personagem teatral refere-se ao retrato de
outro, romanesco, como se reais e históricos ambos fossem.
E esta propensão de Antônio à representação pictórica, à
linguagem figural, talvez se deva a outro de seus ofícios: o de
pintor. Informa seu escudeiro, em diálogo com a dona da casa:
RUI
/…/ [Antônio] Faz figuras. Pinta igrejas. A Fortaleza, a Luxúria, a Prima-
vera, santos. A Virgem Maria, as potestades celestes. O ano passado, em
Nazaré da Mata, fez no altar-mor da Igreja um Dilúvio universal que é
uma beleza. Vem gente de longe, pra ver a Arca de Noé, com a bandeira
brasileira no mastro. Sabe o que ele fez, pra desenhar as águas do dilú-
vio? Viu o mar! (p. 24-25)
/…/ a écfrase foi imitada por praticamente todo poeta épico da Antigui-
dade e até por poetas de outros gêneros. A écfrase difere da mera descri-
ção, porque, primeiro, sempre incide num artefato (uma pintura parietal,
um escudo, um portão etc.), e, segundo, porque o caráter estático da
imagem no objeto maravilhosamente se transforma em movimento, em
ação que parece transbordar os limites do objeto: a écfrase são assim os
“efeitos especiais” de um poema.16
ANTÔNIO
/…/ Dei a ela um presente: um selo do Japão e um da China. /…/ São
coisas de tão longe! De tudo o que possuo, era o que eu prezava mais. O
do Japão é verde, com um vulcão e uma árvore. O da China é pequeno;
representa um dragão. E o selo da China, olhando contra a luz, a gente
vê assim como duas formas, uma voltada pra baixo, outra pra cima, e as
duas se completam. Representam o homem e a mulher, formando um Ó.
Um todo. (p. 30-31)
Antes mesmo de levar para dentro dos muros o gigantesco cavalo, os troianos
17
20
Conforme BENJAMIN (2011).
21
No universo ético e estético de Antônio, a Experiência sobrepõe-se ao Desti-
no. Confirma-o o conselho categórico com que confronta o discurso ressentido da
agregada Marisaura Pereira, a qual diz preferir estar morta, para se ver reduzida,
como seus pais, a “um nome numa cruz” (note-se, aliás, a proximidade disso com
a vontade de Heloísa de ocupar o selo): “Não existe essa história de mulher que
veio para ser homem, nem de homem que veio para ser anjo. Se a vida que leva
desagrada, faça outra.” (p. 35). O pintor alegorista constantemente sobreporá a
Vontade ao Destino, o livre arbítrio como modo de subjetivação e protagonismo
inconformista. Daí a réplica que dá a seu companheiro Rui, quando este quer sair
de Cansa-Cavalo antes que se efetive o duelo final entre os senhores rivais: “RUI
– Já ouvi, muitas vezes, falar no destino. Mas nunca eu tinha visto ele de frente.
Agora, vejo. É o destino que está lhe prendendo. / ANTÔNIO – Sou eu que quero
ficar.” (p. 54); para depois afirmar sobre seu estado pós-peleja: “Parte como Deus
manda. E, se não me engano, parte como eu faço.” (p. 61).
Já Pedro Ivo segue as sendas do pai, tentando naturalizar privilégios de classe e
gênero para obter quem deseja: “Pense que casar comigo é seu destino. Foi o desti-
no, Heloísa /.../”. Em contrapartida, instado pela moça a opinar, assim se pronuncia
Antônio: “/.../ é certo que, do destino, a gente só tem o barro. Ninguém encontra
parede levantada. É preciso cavar, cozinhar os tijolos, levantar as paredes. /.../ As
coisas são ariscas, não caem em nossa mão.” (p. 81-82).
Em certo momento, Antônio reflete, preocupado: “Joguei uma semente perigo-
22
sa, Rui. Falei demais. Por que, de vez em quando, desgoverno a língua? Por que
soltei meu demônio?” (p. 43); “Tenho de enfrentar o mal que liberei.” (p. 52).
identidade ligada ao demoníaco (e à onipotência dos poderosos,
a ser vencida justamente pelas entidades guerreiras de Miguel
e Jorge, santos homenageados na procissão e na peça), sem dei-
xar de invocar, outrossim, a união perfeita. O que importa é
sublinhar a visada de Antônio — que preza e sobrevaloriza os
selos como uma espécie de amuleto —, a reconhecer e garantir a
reversibilidade contínua dos significados das imagens, as quais
podem ser e querer dizer uma coisa e outra, até simultanea-
mente, em permanente atividade e reafirmada ambivalência, na
esteira da definição benjaminiana de alegoria (em oposição à
fixidez do símbolo23).
O dinamismo produtivo, aliás, que parece fazer romper a
integridade do Ó circular e fechado, imantando-o, antes, da ci-
nesia expansiva própria à voluta (tão cara a Osman), mostra-se
à luz, quando no perfil do dragão permite-se ver o mesmo talhe
do yin-yang taoísta: “a gente vê assim como duas formas, uma
voltada pra baixo, outra pra cima, e as duas se completam”24.
Como se sabe, tal signo chinês sinaliza justamente a comple-
mentaridade dos contrários tanto quanto a transformação con-
tínua25, traduzindo figurativamente a noção de que nada existe
23
Cf. BENJAMIN, op. cit..
24
Trecho da peça já citado, da pág. 31. A similaridade entre o signo taoísta (e
também cabalístico) do Yin-Yang e a trajetória helicoidal será depois reafirmada
em uma fala de Antônio: “Quero estar preparado para ser sagrado um cavaleiro.
Pra isso, na minha casa, armei na cumeeira um cata-vento, coisa que no tempo de
antes só os cavaleiros tinham o direito de fazer.” (p. 41, com grifo meu). Outra mar-
ca de distinção portada por este avatar de cavaleiro é o estribo de ouro que ganhara
da falecida Maria Úrsula, adereço teatral com função importante no desfecho da
trama, tal como nos dramas barrocos estudados por Walter Benjamin e nos me-
lodramas e folhetins que até hoje têm lugar garantido na preferência de leitores e
espectadores brasileiros.
25
O Yin-Yang é representado como “um círculo dividido em duas metades iguais
por uma linha sinuosa; uma parte preta (yin), outra branca (yang), em que é pos-
sível observar que o comprimento da separação mediana é igual à da semicircun-
ferência exterior; que o contorno de cada metade yin e yang é, portanto, igual ao
perímetro total da figura. /.../ ainda é preciso observar que a metade yin contém
um ponto yang e a metade yang um ponto yin, sinal da interdependência das duas
determinações, vestígio da luz na escuridão e da escuridão na luz”. (Cf. o Dicio-
nário de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, da editora José Olympio,
em estado puro e de que qualquer juízo pode ser visto como seu
oposto quando considerado a partir de outro ponto de vista26.
Exatamente, já foi afirmado há pouco, o que ocorre com a fun-
ção contrapontística das falas e ações de Antônio frente ao time
de personagens poderosos da peça.
A luta de classes não se interrompe, mas ganha diferentes
matizes, no embate de ideias do pintor-mascate com Marisau-
ra, a ressentida agregada do engenho Cansa-Cavalo. Humilhada
constantemente por sua origem e sobrenome comuns27, solteira
e “sem cabedal”, dependente e inconformada, vive de favor, “às
expensas de parentes”, e é dela o papel de intriguista na famí-
lia de latifundiários. Vinga-se delatando, tendo sempre “alguma
coisa de atravessado para dizer” (p. 13), presa à má infinitude
do movimento centrípeto de retorno ao mesmo ponto28. É mais
uma vez a precisão imagética do discurso certeiro de Antônio
do seu pai, aquele vagabundo, que se revolta em você./.../ Um sujeito que passou
a vida toda vendendo bois – e até bodes – para o matadouro!” (p. 14); depois, em
meio a uma discussão, será chamada por ele de “vaca” (p. 48); sobre seu pai e ela,
pronuncia-se sua tia Gertrudes: “Não tinha nome. Era um Pereira qualquer. Mas
não se pode dizer que fosse mau. /.../ Se seu pai houvesse posto o Lins no seu nome,
como Fidêncio queria, a coisa era outra. Você não vivia comendo o nosso pão e
revoltada, em casa, contra a gente. Feito uma inimiga.” (p. 14-15).
28
Afinal, como lembra a senhora de Cansa-Cavalo, referindo-se a si mesma, por-
que submetida desde sempre aos caprichos despóticos de seu marido infiel: “Má-
goas não envelhecem. As minhas vão todas para a cova comigo: novas como no dia
em que nasceram” (p. 19); “/.../ Eu vou morrer de velha e nunca soube o que foi um
instante de beleza.” (p. 128).
que o dramaturgo mobiliza para definir o comportamento da
personagem29, identificando-o à voragem turbilhonante e auto-
fágica do redemoinho:
ANTÔNIO
A senhora está nadando num fojo.
MARISAURA
Movo-me bem nessas águas. (p. 34) /…/
ANTÔNIO
A senhora se parece com um bicho morto de fome, que engolisse a lín-
gua. Como é que a gente pode ganhar os ouros da vida, se é o coração
que é feito pra isso, e a senhora rói o coração? (p. 38)
Em outro momento, afirma Antônio: “Não sei mais do que os outros homens.
29
publicada em 1912.
Walter BENJAMIN (op. cit., p. 212 e ss.) refere-se a determinadas passagens dos
31
a senhora resolva fazer uma viagem grande e mudar a sua vida. Queria que fosse
com um estribo assim. Os cavaleiros andantes usavam estribos de ouro.” (p. 119).
33
Antônio – cujo imaginário, como se viu, é tomado pelo universo da cavalaria
medieval – afirma que, na primeira vez em que viu Maria Úrsula, ficou tão impres-
sionado que às vezes pensava “se não foi uma aparição de Oriana, a noiva de Amadis
de Gaula”; “não sei por que, pensei que era uma assombração e me benzi” (p. 112).
cio, para quem “essa história de inferno e céu é embromação”
(p. 39); seus capangas entram “na igreja como uns possessos,
com cavalo e tudo”, dando “tiros nos santos” (p. 60); já Pedro Ivo
afirma não acreditar “em almas do outro mundo” e escarnece —
“Quero saber de santo?!” (p. 42).
À retórica de vassalagem à mulher idealizada que Antônio
lhe dedica, Heloísa responde com a sapiência desencantada de
que até a “beleza imortal” termina em ruína:
Não entendo o senhor. Pensa na mulher como num passarinho, que mor-
re com a beleza da plumagem. Mas é loucura. Encanto da mulher, nada
existe sobre a terra de menos imortal. /…/ Todas nós acabamos masti-
gadas sem pena pelo tempo. /…/ Isso são poesias. Nenhuma verdade.
(p. 61-62)
34
No mais, prevalece o rigor hierárquico da casa patriarcal na relação desigual
entre os quase-futuros-parentes: “HELOÍSA – Eu preferia ir. / FIDÊNCIO – Você
aqui não tem voz, menina.” (p. 69). O desprestígio histórico das mulheres nas famí-
lias senhoriais já aparecera figurado no trato do “coronel” sexagenário com as per-
sonagens Gertrudes (deixada sozinha por Fidêncio na noite do casamento, choran-
do em seus “lençóis de linho”, enquanto ele “foi meter-se na cama suja das negras”
– p. 19) e Marisaura, a quem aliás esbofeteia em cena (“Essa minha sobrinha não
passa duma cachorra. /.../ É pra isso que há seis anos eu lhe dou de comer. Mas que
é que se pode esperar da filha dum homem chamado Luiz Pereira e que, quando
registrou a criatura no cartório, não lhe pôs nem o nome da mulher? E minha irmã,
quando deixou de se casar com gente, pra querer um vendedor de bode chamado
Luíz Pereira, também já estava degenerada. /.../ Sua vagabunda! Fim de raça./.../
Puta!” - p. 99-100).
em tom jocoso, a lamentosa canção com que se abre a peça,
na voz de Gertrudes, unindo-se as duas pontas do drama: “/…/
o filho que me resta / vive andando atrás da morte” (p. 10)35.
Afinal, a sabedoria materna avaliava coerentemente a relação
entre o porvir da família e a configuração violenta da sociedade
brasileira: “Sei bem quem é a noiva. Meu filho Pedro Ivo vem
com a morte nos braços.”
A morte, a caveira, a ruína — “Isso é o que há de certo na
vida” (p. 55). O “orgulho apodrecido” (p. 120), o corpo surrado
e despedaçado (“sparagmós”), as covas abertas, o esvaziamento
do humano e sua reificação, os tons expressionistas do “rictus
de dor” (“páthos”), o conflito generalizado (“agón”), o reconhe-
cimento do excesso e do desperdício que levam à derrocada
(“anagnorisis”36): tudo remete ao território do trágico. Na peça de
Osman Lins, os campos conceituais e imagéticos da Antiguida-
de greco-latina e do Barroco europeu sobrepõem-se à atualidade
do estado de exceção recém-instalado pelo golpe civil-militar de
1964, trazendo à cena a formação violenta da sociedade brasilei-
ra e a dificuldade (ou impossibilidade) de sua superação. A deca-
dência dos valores “de tradição” (p. 129) e de uma forma de vida
que agoniza, resultado dos movimentos da História37, é a nova
35
Cego pela presunção da vitória, o orgulhoso e egoísta Fidêncio Cavalcanti pa-
rece não temer a iminente morte sacrificial do filho. Festejando precipitadamente
o resultado nefasto da guerra, manda tocar na sanfona o Hino Nacional, para que
todos... dancem! – “O Hino Nacional é o Hino Nacional. Fala nas grandezas da
pátria! /.../ Nós, os brasileiros, tocamos o Hino Nacional. E eles, os hereges, o que é
que vão tocar? Hein? Já sei! O ofício dos defuntos.” (p. 84-85).
36
Conforme a tipologia de Northrop Frye acerca do mito da procura do herói trá-
gico. O personagem de prenome shakespeariano, Coriolano de Barros Wanderley,
pai de Heloísa e dono do Engenho Bom-Mirar, aparece em cena ao final, no papel de
mediador, para racionalizar e decretar: “CORIOLANO - /.../ Acho que a minha idade
e a minha posição dão-me autoridade para falar em nome de meu futuro genro. /.../
/ DRAHOMIRO – A afronta que nós todos sofremos pede punição, Coronel. / CO-
RIOLANO – Não tem de ser, forçosamente, a morte.” (p. 106-107); “Já houve mortes
demais” (p. 126). No comportamento de Antônio, que parte ao final com sua filha
Heloísa (desfecho, aliás, semelhante ao da peça Lisbela e o prisioneiro), o coronel reco-
nhece o bom equilíbrio: “O senhor é vivido. Sabe dosar cautela e afoiteza.” (p. 127).
Ao final da peça, na última página do livro ou na derradeira cena, “a critério
37
CORIOLANO
Pois é, Fidêncio. Toda a nossa raça está no fim. O poder, o nome, a prata
nos estribos, nas fivelas do freio e no rabicho da sela, as grandes terras
e até o nosso orgulho. Tudo está no fim.
FIDÊNCIO
É isso mesmo, Coriolano. É isso mesmo. São as voltas do mundo. Adeus.
(p. 128)
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Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, s/d.
aos aplausos”, para se dirigir “com ênfase” ao público, deixando-nos sua “flama”.
Tendo sido o primeiro morto na “Guerra do Cansa-Cavalo”, volta “desencarnado”,
expressando-se em versos, “mais formoso, / metrificado e rimado, / num estilo
generoso”. E se/nos pergunta: “A história dou por finda, / Mas terminou a história?
/ Ou agora é que começa / a verdadeira, a de glória?” (p. 130)...
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CAPÍTULO 15 EFEITOS DO DISCURSO
SOBRE O PALCO:
Dramaturgia e
representação alegórica
Uma homenagem a Dias Gomes1
Robson Teles Gomes (UNICAP)
A
grande produção dramatúrgica brasileira inserida no
contexto histórico-social e político das décadas de
1960 e de 1970 dialoga diretamente com a produção
dos anos de 1950. Trata-se de uma criação artística
que alegoriza anseios de parte de uma sociedade que começava
a dar sinais de insatisfação e que, por consequência, buscava saí-
das: os ‘antenados’, tais como alguns artistas, alguns intelectuais
e alguns membros da sociedade, já percebiam que, por trás das
1
Presta-se esta homenagem ao Autor em decorrência de seus 20 anos de
falecimento.
cortinas de uma aparente tranquilidade sócio-política nacional
e de um controle social, havia manipuladores sinalizando ações
em seu próprio benefício, em busca de um discurso hegemônico.
E essa percepção era reflexo de um ambiente em que, nacio-
nalmente, havia a luta de classes e muitas outras questões con-
cernentes a grupos que enfrentavam dificuldades de inserção
social, a exemplo de pobres, de negros, de mulheres, de homosse-
xuais — membros de classes sociais que não tinham assegurada
sua cidadania. Quanto ao cenário internacional, destacavam-se
os conflitos entre os países capitalistas — liderados pelos Estados
Unidos — e os países socialistas — que tinham à frente a URSS.
Dentro desse ambiente histórico-social, o teatro se desen-
volve e se fortalece não apenas como um produto de diversão
pública, de entretenimento. Na verdade, a produção teatral no
Brasil assume, dos anos de 1950 aos de 1960, um papel mais so-
ciopolítico, motivo que mobiliza a censura a observá-la e a cer-
cá-la de maneira mais rigorosa. Então, lado a lado aos primeiros
passos da maturidade política e de uma prática mais conscien-
tizadora e direcionada do teatro brasileiro, a censura estabele-
ceu uma relação difícil para dramaturgos e produtores artísticos
com o Estado. Em decorrência desse contexto censório, os textos
teatrais desse período passaram a refletir, de maneira alegórica,
as modificações da conjuntura social e política do país.
Nessa perspectiva, um ambiente assim, de confronto, instiga
a criatividade de dramaturgos, visto que choque entre visões que
se opõem é ponto de partida e elemento essencial para o gênero
dramático, terreno em que a dramaturgia tem gerado, desde o Te-
atro Clássico grego, os melhores frutos. Afinal, como destaca Eric
Bentley, “Ver el aspecto dramático de un acontecimiento significa
tanto percibir los elementos en conflicto como reaccionar emocio-
nalmente ante ellos”2 (BENTLEY: 2001, p. 16). Para tanto, princi-
palmente naquele contexto sociopolítico nacional, era necessária
3
Aluísio Jorge Andrade Franco (Barretos/SP, 1922 – São Paulo/SP, 1984). Por ter
vivido a cultura do meio rural, esse ambiente aparece fortemente marcado em sua
obra, especialmente a derrocada e a adaptação ao meio urbano, fonte de conflitos
que atravessam a maior parte de suas criações.
4
Ariano Vilar Suassuna (João Pessoa/PB, 1927 – Recife/PE, 2014). Em sua dra-
maturgia, busca unir o espontâneo ao elaborado, o popular ao erudito, a linguagem
comum ao estilo terso, o regional ao universal (MAGALDI: 2003, p.237).
5
Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri (Milão/Itália,
1934 – São Paulo/SP, 2006). Chegou ao Rio de Janeiro aos dois anos de idade, quan-
do seus pais decidiram sair da Itália, por causa da onda fascista que tomava conta
do país. O público recebe bem a estreia do novo dramaturgo, que coloca em cena,
pela primeira vez na história do teatro brasileiro, a vida de operários durante uma
greve. A montagem, dirigida por José Renato, transforma-se em um sucesso estron-
doso e Guarnieri passa para a história como um autor preocupado com a realidade,
com densidade dramática e coragem de abordar problemas sociopolíticos.
em 1959, Chapetuba futebol clube, de Oduvaldo Vianna Filho6;
em 1960, duas peças, dois autores: O Pagador de Promessas, de
Dias Gomes, e Revolução na América do Sul, de Augusto Boal7.
Com a média de um autor por ano, essa representativa produção
dramatúrgica apresentava em comum a militância teatral e a
posição “nacionalista”. A produção dramatúrgica desses autores
está diretamente relacionada aos anseios das produções cultu-
rais que almejavam a manutenção e a restauração de condições
democráticas no país. A proposta presente nos textos desses dra-
maturgos era, pois, a de persuadir os espectadores a promove-
rem reflexões acerca da situação imposta à sociedade.
Apesar de a imprensa ter feito alertas quanto ao processo
ditatorial que se consolidava no país, a exemplo do jornalista
Carlos Heitor Cony8, o primeiro setor da intelectualidade brasi-
leira a, de fato, se organizar para protestar contra a ditadura que
havia se instalado em 1964 foi o teatro. Foi, portanto, nos palcos
brasileiros que se deu o início de denúncias organizadas contra
a situação sociopolítica criada pelo golpe militar. Dias Gomes
6
Oduvaldo Vianna Filho ou Vianninha (Rio de Janeiro/RJ, 1936 – Rio de Janeiro/
RJ, 1974). Participante ativo do Teatro de Arena, fundador do Centro Popular de
Cultura da UNE e do Grupo Opinião, Oduvaldo Vianna Filho personifica a traje-
tória de uma luta contra o imperialismo cultural. Sua dramaturgia coloca em cena
a realidade brasileira através do homem simples e do trabalhador.
7
Augusto Pinto Boal (Rio de Janeiro/RJ, 1931 – Rio de Janeiro/RJ, 2009). Por ser
um dos únicos homens de teatro a escrever sobre sua prática, formulando teorias
a respeito de seu trabalho, torna-se uma referência do teatro brasileiro. Principal
liderança do Teatro de Arena de São Paulo nos anos 1960. Criador do teatro do
oprimido, metodologia internacionalmente conhecida que alia teatro à ação social.
8
Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro em 1926, fez humanidades e curso
de filosofia no Seminário de São José. Estreou na literatura ganhando por duas vezes
consecutivas o Prêmio Manuel Antônio de Almeida (em 1957 e 1958) com os roman-
ces “A Verdade de Cada Dia” e “Tijolo de Segurança”. Cony trabalhou na imprensa
desde 1952, inicialmente no Jornal do Brasil, mais tarde no Correio da Manhã, do
qual foi redator, cronista e editor. Depois de várias prisões políticas durante a Dita-
dura Militar e de um período no exterior, entrou para o grupo Manchete. Foi colunis-
ta da Folha de S. Paulo, comentarista da rádio CBN. Como diretor da teledramatur-
gia da Rede Manchete, apresentou os projetos e as sinopses das novelas “A Marquesa
de Santos”, “Dona Beija” e “Kananga do Japão”. Em 1998, o governo francês, no Salão
do Livro, em Paris, condecorou-o com a L’Ordre des Arts et des Lettres. Foi eleito para
a Academia Brasileira de Letras em março de 2000. “O Ventre”, romance de estreia
de Cony, fez, em 2008, cinquenta anos.. Cony faleceu no Rio de Janeiro em 2018, aos
91 anos. (www.carlosheitorcony.com.br, acessado em dezembro de 2018)
afirma que “No palco, abriu-se a primeira trincheira. Nas salas
de espetáculos […] se efetuaram as primeiras reuniões de inte-
lectuais inconformados com o terrorismo cultural desencadeado
no país” (GOMES: 2012, p. 28). Nesse sentido, foram os ‘homens
de teatro’ que lideraram os movimentos de protesto da intelectu-
alidade brasileira no cenário político nacional, situação que, em
vários momentos, incomodou os que estavam à frente do poder.
A chamada ‘classe teatral’ se uniu, com cartazes e faixas,
nas escadarias do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e en-
frentou um choque com a polícia do Exército. Inclusive, todos
os teatros da cidade foram fechados por 72 horas, em sinal de
protesto, obtendo, a ‘classe teatral’, assim, “um atestado público
da sinceridade de seus propósitos e do vigor de sua indignação”,
nas palavras de Dias Gomes (GOMES: 2012, p. 29). Ou seja, a
classe teatral teve a coragem de se expor aos desmandos de um
Estado Autoritário, em nome de uma função política, insubordi-
nando-se e buscando saídas para aquelas atitudes de arbitrarie-
dades e de perseguições.
A luta pela liberdade de pensamento empunhada pelos ‘ho-
mens de teatro’ e pelos dramaturgos de então estava diretamen-
te relacionada à luta pela liberdade do povo brasileiro. Nesse
sentido, a arte teatral era um espaço aberto de apoio a lutas
individuais — de cada dramaturgo — e coletivas — de toda uma
nação. Logo, a luta era indivisivelmente do povo brasileiro, já
que naquele abril de 1964 havia se iniciado no país um processo
implacável que tinha como objetivo final enquadrar, conforme
Dias Gomes, o “povo dentro de limites de liberdade que tor-
nassem essa mesma liberdade um perigo facilmente controlável
pelo poder militar constituído” (GOMES: 2012, p. 30).
A prova desse controle era a imobilidade dos sindicatos, o
conveniente desentendimento dos partidos políticos e o domínio
sobre os meios de comunicação de massa — rádio e televisão.
Diante disso, cabia ao teatro o papel de pôr em cena protestos
e indignações; incialmente, de maneira indireta, nos subtextos
das montagens de peças estrangeiras, como Antígona, Electra ou
Andorra9 e, sem seguida, mesmo que de maneira não tão explíci-
ta, das produções brasileiras, com o show Opinião e as peças Li-
berdade, Liberdade10 e Arena Conta Zumbi. Tais espetáculos, por
meio de uma linguagem alegórica, punham em cena diferentes
formas de opressão que marcavam a história do Brasil, contri-
buindo, desse modo, para o combate às desigualdades sociais e
buscando reflexões em torno da luta de classes.
A boa e crescente presença do público para esses espetá-
culos chamou a atenção dos encarregados de manter o controle
da ‘liberdade’ dentro dos limites impostos pela Ditadura. Re-
sultado inevitável: uma sucessão de atitudes repressoras com o
objetivo principal de silenciar o teatro. A partir desse encontro
entre ‘homens de teatro’ e público, começou a se tornar visível
aos militares o caráter político-social inerente a toda representa-
ção teatral. A união de um grupo que preparou um espetáculo
para ser visto e um grupo que vai ver esse espetáculo é, indis-
cutivelmente, um ato social e politicamente alegórico inerente
ao próprio poder de contestação que o teatro exerce. É fato que
essas observações servem para toda e qualquer manifestação
artística, mas no teatro tal condição se torna mais especial por
ser uma manifestação artística que se exprime diante da plateia,
ao vivo. Ou seja, o teatro é uma arte que, ao invés de ser entre-
gue ao público depois de realizada, acontece diante do público.
9
Antígona, de Sófocles, utiliza como base de suas ações dramáticas o debate a
respeito da opressão do Estado sobre o indivíduo e a condição de alguém que en-
frenta esse Estado opressor. Na verdade, com as personagens Antígona e Electra,
Sófocles privilegiou a luta dos heróis contra o destino e a influência que os deuses
possuíam na vida dos homens. Quanto à Andorra, do alemão Max Frisch, em me-
morável montagem do Grupo de Teatro Oficina, discutem-se questões de xenofobia
e de antissemitismo.
Em um abril de outros tempos, mais precisamente e não por acaso no dia 21,
10
Era quase um exercício de viver brigando por ideais, mas tudo muito
fechado, muito entre nós. Depois de uns três anos de movimento
estudantil firme, percebemos que realmente estávamos errando.
Depois de uns três anos é que chegamos à conclusão de que pre-
cisávamos ampliar aquilo, que o movimento estudantil não era só
nosso, não era só de uma cúpula e sim de grupos que se formavam
em várias capitais, grupos pequenos, mas que praticamente se iden-
tificavam. E que era necessário então fazer um trabalho sério entre
todos os estudantes. Chegamos à conclusão de que o movimento cul-
tural e principalmente o movimento artístico seriam um meio eficaz de
organização, onde se poderia discutir, reforçar os grêmios, estruturar
diretórios e procurar criar um debate cultural no meio estudantil.
(GUINSBURG; PATRIOTA: 2012, p. 138, grifos nossos.)
11
Viriato Corrêa (Manuel V. C. Baima do Lago Filho), jornalista, contista, ro-
mancista, teatrólogo e autor de crônicas históricas e livros infantojuvenis, nasceu
em 1884, em Pirapemas, MA, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 1967. O meio
teatral, que frequentou como crítico de jornal e mais tarde como professor de his-
tória do teatro, propiciou a Viriato Corrêa amplo domínio das técnicas dramáticas,
valdo Vianna12 (o pai) para a comédia de costumes, entre 1920 e
1930. Mas as entrelinhas do que ocorria nas produções do Teatro
de Arena sugeriam — como uma espécie de compensação — que
os pobres têm uma inocência, uma pureza de sentimentos, uma
alegria de viver e uma felicidade superiores a tudo o que os ricos
possam ter. Essa percepção limitada de luta de classes atribuía
um valor natural ao povo, visto, em uma perspectiva marxista,
como resultado da soma do operariado e do campesino, do pobre
oprimido que necessita de defesa. Quanto à ideia de nação, esta
se encontrava restrita ainda às camadas populares, excluindo-se,
conforme Décio de Almeida Prado, a burguesia — “o antipovo e
a antinação por excelência” (PRADO: 2003, p. 65).
Trata-se de uma visão lírica, romântica. O povo, Prado (2003)
chama a atenção, é visto, na verdade, enquanto seu modo de vi-
ver, e não enquanto classe social. Esse é o teor, por exemplo, de
Eles não usam black-tie, embora se perceba que o tom romântico
é diminuído à proporção que as personagens se veem arrancadas
do universo idílico e jogadas em plena luta social, enfrentando
greves, manifestações coletivas, repressões policiais violentas,
caracterizando, em resumo, a situação sociopolítica do Brasil
nas décadas de 1950 e de 1960. Eram operários em luta contra
o patrão, o oprimido em luta contra o opressor. Diante desse tra-
tamento artístico, percebe-se que o Grupo de Teatro de Arena
desejava mostrar ao país o Brasil dos oprimidos, inclusive nas
montagens dos clássicos, que eram, além de nacionalizados, rein-
transformando-o num dos mais festejados e fecundos autores teatrais em sua épo-
ca. Escreveu perto de 30 peças, entre dramas e comédias, que focalizam ambientes
sertanejos e urbanos, vinculando-o à tradição do teatro de costumes que vem de
Martins Pena e França Júnior. (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS)
12
Nasceu em 1892, em São Paulo, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1972. Suas
primeiras comédias de costumes de temas regionais e urbanos, lançadas no Teatro
Trianon, foram Terra Natal (1920), A Casa do Tio Pedro (1920), Manhãs de Sol (1921)
e A Vida é um Sonho (1921). Entretanto, o ano promissor para o autor foi 1919, com
nove peças encenadas, entre elas, Amor de Bandido, que rendeu mais de cem repre-
sentações. Depois vieram: O Almofadinha, O Clube dos Pierrots, Viva a República
e Flor da Noite. Foi no Teatro Trianon que teve início o movimento pela naciona-
lização do nosso teatro, e Oduvaldo Vianna era, certamente, o seu grande líder.
Tanto que, em 1921, estava ele à frente de uma campanha pela adoção da prosódia
brasileira no palco, substituindo o “tu” lusitano pelo “você” brasileiro. (FUNARTE)
terpretados em termos populares. Décio de Almeida Prado (2003)
destaca, ainda, que tão grande era esse anseio, que se chegou a
uma alteração drástica: na adaptação de O melhor juiz, o rei, de
Lope de Vega, o melhor juiz deixou de ser o rei, encarnando-se na
figura de um homem do povo. Nesse sentido, antes de tudo estava
a militância revolucionária marxista, com sua tradição de luta, e
só depois interessavam as questões teatrais (PRADO: 2003).
Conforme as observações de Prado (2003), o Arena, ao con-
ceber seus espetáculos, mais do que propor uma discussão acerca
de questões de cunho nacional, transpôs para o palco o confronto
entre a burguesia e o proletariado, classes sociais compostas pelo
modo de produção capitalista e pela militância como meio de luta
política revolucionária. Na verdade, acima da divisão de classes
deveria estar a questão nacional, independentemente, e ao tea-
tro, tanto quanto manifestação artística como espaço físico onde
ocorre tal manifestação, caberia, defendem Guinsburg e Patriota,
“ser um dos amálgamas na construção de elementos de identida-
de entre os cidadãos” (GUINSBURG; PATRIOTA: 2012, p. 150).
Afinal, a concepção de elementos nacionais deveria ser capaz de
aliar em torno de si quaisquer segmentos políticos e sociais.
Esse tratamento dado ao teatro fez que o Arena trocasse
seu público, que antes era composto em sua maioria por bur-
gueses para ser composto agora por estudantes, os quais eram
mais abertos às reivindicações sociais e políticas propostas pe-
las montagens do Grupo. Assim, se o Teatro de Arena deseja-
va ser popular por inspirar-se no povo, não era o que sucedia,
já que não congregava a todos, sem distinção de classes. Ao
contrário, insinuava-se em seu trabalho mais uma divisão que
propriamente uma união. Não se dirigia, dessa forma, ao povo
brasileiro de maneira integral, por representar claramente seus
interesses particulares. Segundo Décio de Almeida Prado, “Tea-
tro de intelectuais de esquerda, agiu sempre de cima para baixo,
através da propaganda doutrinária” (PRADO: 2003, p. 68).
Mas, indiscutivelmente, o Arena contribuiu bastante para
uma renovação no teatro brasileiro, principalmente com o Se-
minário de Dramaturgia, promovido, em 1958, em São Paulo.
Acerca dessa contribuição, a atriz e jornalista Vera Gertel afir-
ma que (apud. RIDENTI: 2000)
O show teve uma enorme repercussão; era feito com habilidade, uma
coisa engraçada, cheia de música, Narinha Leão, lindinha, conquis-
tando as pessoas, o João do Vale, que era um compositor do Nordes-
te e Zé Kéti, um compositor do morro. Ninguém com compromisso
político, com marca política nenhuma, mas o conteúdo do show, no
meio das brincadeiras, era contra a ditadura mesmo. No fundo, rea-
firmar o plano da reforma agrária, a luta de classes, contra a explo-
ração. O povo, a intelectualidade toda e o pessoal de classe média se
identificaram, viram que aquilo era a expressão contrária à ditadura
e o teatro era lotado com meses de antecedência. Quando a ditadura
se deu conta, não pôde fazer nada, porque não podia fechar um es-
petáculo que era o sucesso do teatro na época.
(RIDENTI: 2000, p. 125-126)
13
Arena conta Tiradentes é a história da Inconfidência Mineira revista como au-
tocrítica da esquerda em face da política de hoje. Augusto Boal e Gianfrancesco
Guarnieri sublinharam, nos episódios de 1791, as correspondências com a situação
brasileira atual, de modo a explicar a derrota em 1964. O texto conclui com uma
espetáculos em que os heróis históricos servem para que se co-
notem questões políticas da época, sugerindo ao público uma
resistência ao regime que lhe era imposto. Percebe-se nessas
duas peças que Guarnieri deixou de lado a linguagem direta
presente em Eles não usam black-tie para investir, de maneira
mais inteligente, em uma linguagem alegórica. Essa foi a atitude
dos dramaturgos mais sagazes e com mais maturidade artística,
a exemplo de Dias Gomes. O uso da alegoria nacional como
linguagem teatral era, desse modo, uma atitude política de com-
bate e de resistência a um Estado Autoritário.
Em suma, os dramaturgos que produziram nas décadas de
1950 e 1960, de maneira geral, imprimiram a seus textos uma
forma de conhecimento da realidade nacional, pondo em prática
um papel decisivo na formação da consciência de que liberdade e
arte devem estabelecer entre si e para o público uma relação in-
trínseca. Tal consciência foi um fator determinante na resistência
a um Estado repressor e a uma infame censura. Importante frisar
que a produção dramatúrgica desse período histórico revelou que
uma produção teatral, feita com honestidade e respeito, leva, ine-
vitavelmente, ao engajamento político. Esse um dos motivos por
que os componentes da Ditadura Militar no Brasil tenham impos-
to especialmente censura às produções teatrais, por perceberem
que o teatro é um ato de conhecimento coletivo e, por essa natu-
reza, uma forte ameaça ao controle de uma sociedade. Ou, como
diz o próprio Dias Gomes, em uma entrevista ao Jornal Opinião,
em 1973: “[…] penso que, se o teatro não pode transformar o mun-
do, através dele, podemos, sem dúvida, transmitir a consciência
da necessidade de transformá-lo” (GOMES: 2012, p. 46).
Acerca desse tema, sugere-se a leitura do livro Entre Orfeu e Xangô: a emergên-
14
cia de uma nova consciência sobre a questão do negro no Brasil 1944/1968, de José
Jorge Siqueira, Pallas: 2006, sobretudo o capítulo III.
15
Em Anjo negro, Nelson Rodrigues enfrenta corajosamente o problema racial,
pondo a nu o preconceito, que, não obstante todas as recusas, existe velado na
sociedade brasileira. Nelson não faz estudo sociológico sobre a questão racial. Não
lhe interessa apontar um caminho para a solução do problema – essa é tarefa de
outra natureza, não projeto dramatúrgico. Incumbe à ficção ir ao cerne das mo-
tivações humanas, e Anjo negro desnuda o conflituoso relacionamento da mulher
branca e do homem de cor. Ao invés de indicar um desfecho prosaico, a tragédia
termina depois que o casal encerra num túmulo de vidro a filha de Virgínia e de
Elias, o irmão de criação (branco) de Ismael, personagem central. O coro sabe que
o ventre de Virgínia foi de novo fecundado pelo marido e pressagia o “futuro anjo
negro que morrerá como os outros”. O ritual se repete, imutável. O Autor, em vá-
rias ocasiões, afirma ter criado a personagem para seu amigo Abdias Nascimento
representar, pois, de acordo com Nelson Rodrigues, era o “único negro do Brasil”.
(MAGALDI: 2008, p. 25-26) O poeta Vinicius de Moraes produziu, em 1954, a
peça Orfeu da Conceição, uma adaptação do mito grego de Orfeu, aqui transposto
à realidade das favelas cariocas. Mas a peça de Vinicius só estreou no dia 25 de
setembro de 1956, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. A montagem foi reali-
zada pelo Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento, e corresponde à
primeira vez que um elenco de atores negros ocupava o mais famoso teatro bra-
sileiro. Ademais, em 1959, baseado na peça e sob a direção de Marcel Camus, foi
dicada ao ator e ativista negro Abdias Nascimento, que havia
fundado, em 1944, o Teatro Experimental do Negro16. O teatro,
portanto, cumprindo um de seus papeis — o sociopolítico, pu-
nha frente à sociedade questões mais que necessárias: urgentes.
Tratava-se de um período em que o Brasil passava por trans-
formações políticas e sociais, em busca de um país mais livre,
mais desenvolvido, que deveria, nessa perspectiva, respeitar va-
lores que concedessem cidadania a todos, sem discriminações.
Assim, a prática do respeito às classes desfavorecidas deveria
ser uma constante nacional, e não apenas um questionamento
levantado por dramaturgos brasileiros17.
lançado o filme Orfeu Negro, premiado com a Palma de Ouro, o Oscar e o Globo de
Ouro. Curiosamente, em 1956, Ariano Suassuna, ao lançar Auto da Compadecida,
punha em cena a personagem Manuel – Cristo se apresentando negro e suscitando
o preconceito do Bispo, do Padre João e de João Grilo, o único que tem coragem
de admitir seu preconceito em relação à negritude de Cristo. Ou seja, se as outras
instâncias sociopolíticas não se preocupam em discutir determinadas temáticas, a
arte, nesse sentido, se mostra um canal aberto e funcional.
16
Em 1944, Abdias Nascimento funda, no Rio de Janeiro, o Teatro Experimental
do Negro (TEN), do qual é o principal dirigente e porta-voz até 1968, quando essa
experiência se dissolveu com o exílio de Abdias nos Estados Unidos. A proposta
do TEN era mais vasta que o simples incentivo a um ‘teatro negro brasileiro’: na
verdade, esse seria o meio principal de sensibilizar o público – tanto negro, quanto
branco – para os problemas sociais, políticos e existenciais que marcavam e ainda
marcam a população dita negra em nosso país. O sentido educador parece ressal-
tar aí como o eixo intencional mais importante dessa iniciativa: transformar as
mentalidades do povo negro, de que ele espertando-lhe a consciência de seu valor
próprio, de sua cultura particular, inculcar-lhe uma dignidade perdida, reabilitá-lo
antes de mais nada de si mesmo. Para os brancos, enfatizar sua responsabilidade
na produção e reprodução desse problema, convocá-los a partilhar do esforço na
mudança dos padrões de relacionamento interétnico, mas sobretudo desfazer a
ideologia racista cristalizada entre eles, mesmo entre os ‘bem-intencionados’. O
caráter pedagógico do TEN era, por fim, a ênfase em um esforço de localização do
homem negro em uma sociedade que se sublinha ser sua também, em um propósi-
to de colocá-lo como beneficiário pleno e equalizado de um patrimônio de que ele
é um dos principais criadores. (Revista Dionysos, MINC/FUNDACEN - N° 28, 1988)
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Esta pesquisa não tem o objetivo de discutir questões raciais e do mito da
democracia racial. Mas vale a pena uma menção a essa temática, afinal, a dra-
maturgia da época não deixou passar ao largo essa realidade brasileira. Segundo
Joaze Bernardino, a partir do momento de se encarar como racista aquele que
separa, evitou-se no Brasil, do ponto de vista oficial, reconhecer o tratamento di-
ferenciado de brasileiros em decorrência da raça, mesmo se este reconhecimento
pudesse significar uma oportunidade para a correção de desigualdades. Assim,
por exemplo, o movimento social dos negros é acusado de racista, uma vez que
diferencia os negros dos brancos. Em outras palavras, a regra no que diz respeito
Embora se mencione apenas Eles não usam black-tie, de
Gianfrancesco Guarnieri, lançada em 1958, como o grande tex-
to impactante em torno da temática da greve operária no Brasil,
em Um pobre gênio (1943), Dias Gomes já havia abordado tal as-
sunto, bastante perigoso para aquele momento histórico. Desde
muito cedo, Dias Gomes percebeu o teatro como um ato social
e como uma arte que permite a participação direta de pessoas
que são, na verdade, alheias ao processo de construção do espe-
táculo pelo artista, mas que, quando estão diante da encenação,
transformam-na em um ato coletivo.
Nesse sentido, desde Dr. Ninguém e de Um pobre gênio, mais
especificamente, o Autor já punha em prática a ideia de que “do
mesmo modo que o espetáculo atua sobre a plateia, esta atua
sobre o espetáculo que, assim, é uma resultante de fatores pon-
deráveis e imponderáveis, previsíveis e imprevisíveis” (GOMES:
2012, p. 14). Tal relação se dá porque, no gênero dramático, a
realização artística corresponde ao tempo presente, possibilitan-
do à plateia o testemunho não da obra realizada, mas em reali-
zação. Por esse motivo, por utilizar o homem realizando diante
de seus semelhantes, o teatro se torna um meio de expressão,
afirma Dias Gomes, “mais poderoso que qualquer outro, […] a
O registro das informações acerca dessa novela e das outras comentadas nesta
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Referências
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