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Saudação a Davi Kopenawa por ocasião de sua eleição como membro colaborador sa

Academia Brasileira e Ciências

— Reunião Magna da ABC, 06 de outubro de 2021 —

Eduardo Viveiros de Castro

Agradeço aos organizadores desta cerimônia a honra que me foi concedida de saudar Davi Kopenawa
como novo membro colaborador da Academia Brasileira de Ciências, para a qual não é menor motivo
de honra e de alegria recebê-lo, a este pensador e ativista já distinguido com o prêmio Global 500 das
Nações Unidas, a Ordem de Rio Branco, a Ordem do Mérito Cultural do Brasil e o Right Livelihood
Award.   

Vejo essa recepção como um gesto de reconhecimento, no duplo sentido da palavra. Em


primeiro lugar, como um agradecimento: a ABC é reconhecida a Davi Kopenawa por seu trabalho
infatigável para dar a conhecer, aos demais habitantes do país e além, a vida tal como vivida e
pensada pelos povos indígenas, vida marcada por uma profunda e consciente interdependência,
material e espiritual, com a vida de inumeráveis outras espécies. Em outras palavras, uma vida
constituída por sua pertença imanente à t/Terra — as duas, a terra com t minúsculo e a Terra com T
maiúsculo. Terras, ambas, que hoje parecem nos fugir sob os pés, enquanto alguns correm para se
apropriar do que dela ainda resta para ser devorado, e outros, no fundo os mesmos, se preparam para
fugir dela em direção ao céu — mas o céu ameaça desabar sobre a cabeça de todos.

Em segundo lugar, vejo a eleição de Kopenawa para esta Academia (de ciências de não “da
Ciência”) como um reconhecimento no sentido de ser uma constatação formal do valor dos
conhecimentos ou saberes indígenas, bem como da sabedoria que envolve esses saberes, sabedoria
que se mostra cada vez mais relevante à medida em que aumenta nossa consciência da catástrofe
ambiental, econômica, política e cultural desencadeada pela forma de vida humana hoje hegemônica
no planeta. Distingo aqui “sabedoria” de conhecimento empírico ou saber sobre as coisas do mundo,
pois ela é, em certo sentido, algo maior — a sabedoria é um saber sobre os usos e as consequências
dos usos do conhecimento: consequências diretas como indiretas, imediatas como sistêmicas. Graças
em grande parte à sabedoria de pensadores como Kopenawa, nunca mais poderemos dizer que não
sabíamos; que não estávamos, justamente, cientes do que fazíamos.

Davi Kopenawa tem desempenhado, com uma constância e uma determinação


impressionantes, múltiplos papéis de relevância estratégica na presente conjuntura planetária.
Primeiramente, como um dos xamãs de seu povo, ele exerce funções de diplomata (no sentido de
Bruno Latour), ao negociar a aliança, a paciência e a benevolência dos representantes espirituais dos
inumeráveis seres e fenômenos do cosmos, procurando assim garantir a frágil estabilidade de urihi, o
“mundo-floresta”, nome yanomami para o que chamamos “natureza” — ou deveríamos dizer, o
mundo-que-resta: “a última floresta”, como no título do esplêndido filme de Luiz Bolognesi a quer
acabamos de assistir. Entre os seres com quem os xamãs precisam se haver, estão os espíritos
maléficos associados aos brancos, personificações monstruosas das epidemias e venenos que estes
trazem para a terra dos Yanomami. O trabalho diplomático de Kopenawa inclui, assim, a pacificação
dos brancos, talvez a tarefa mais difícil a que ele jamais se propôs.

Em seguida, em sua função de profeta — não temamos a palavra —, Davi é um mensageiro


das potências extramundanas que sustentam a terra; é um anunciador do que o mundo fará em
resposta ao que fazemos com ele; é um acusador da opressão política, da devastação ambiental e do
genocídio deliberado que os Yanomami e os demais povos indígenas vêm sendo alvo crescente no
Brasil, em especial depois da ascensão de um governo dedicado ao extermínio, à destruição completa
de todo valor existencial não monetarizável e de todo afeto ativo (no sentido espinosista da
expressão). Nesta função profética, Davi é também um líder e um organizador da resistência
yanomami contra o poder de captura espiritual dos jovens de seu povo pela magia branca, aquilo que
Pignarre e Stengers chamaram de feitiçaria capitalista.

Por fim, como antropólogo — e portanto como titular pleno da condição de “cientista social”
— Davi se revelou não só um expositor admirável da ossatura cosmológica da vida yanomami, como
também um dos etnógrafos mais argutos da sociedade e da cultura do “povo da mercadoria”, um dos
etnônimos com que os Yanomami se referem a nós, os brancos, aquele povo que, como disse
memoravelmente Kopenawa, “dorme muito, mas só sonha consigo mesmo”. Ninguém captura melhor
a fenomenologia do espírito do capitalismo que um observador radicalmente exterior a ele, sobretudo
quando é alguém de um povo que está sofrendo suas consequências. Pudemos constatar no filme qual
a verdadeira origem mitológica dos brancos: descendentes do gêmeo estúpido Yoasi, eles de fato só
sonham consigo mesmos... não são capazes de olhar além do próprio umbigo — da própria barriga
(barriga da perna, no caso).

O livro A Queda do Céu, resultado de uma colaboração de várias décadas com um


antropólogo branco, nosso colega Bruce Albert — a quem a disciplina que pratico nunca poderá
agradecer suficientemente —, é um acontecimento científico incontestável, que ainda levará alguns
anos para ser realmente assimilado pela comunidade acadêmica mundial. Repito aqui o que escrevi no
prefácio da edição brasileira do livro:

Temos a obrigação de levar absolutamente a sério o que dizem os povos indígenas pela voz
de Davi Kopenawa — eles e todos os demais povos “tradicionais” do planeta, aqueles que
ainda resistem a sua dissolução pelo liquidificador ecocida e etnocida do projeto
civilizacional hegemônico. Para os brasileiros, como para as outras nacionalidades do
Novo Mundo instituídas em cima do genocídio de milhões de indígenas e da escravização de
milhões de africanos, tal obrigação se impõe com força redobrada. Pois passamos tempo
demais com o espírito voltado para nós mesmos, embrutecidos pelos mesmos velhos sonhos
de cobiça e conquista e império vindos nas caravelas, com a cabeça cada vez mais “cheia
de esquecimento”, imersa em um tenebroso vazio existencial, só de raro em raro iluminado,
ao longo de nossa pouco gloriosa história, por lampejos de lucidez política, poética — e
científica.

***

Justo ontem, nossa Constituição Federal comemorou seu 33º aniversário. O último capítulo da Carta
(capítulo VIII, “Dos Índios”, do Título VII, “Da Ordem Social”) trata justamente dos direitos dos
primeiros povos, os “First Peoples”, como eles se auto-denominam nas Américas de língua inglesa.
Os primeiros foram os últimos... Mas foram; chegaram lá, e muito bem: os direitos indígenas
reconhecidos pela Constituição representaram um avanço gigantesco para a causa da justiça no Brasil.
Como tantos outros direitos coletivos estabelecidos na Constituição de 1988, entretanto, os direitos
originários dos povos indígenas vêm sendo objeto de uma campanha feroz com o objetivo de revogá-
los, consolidando assim “legalmente” uma ofensiva altamente organizada, liderada por grandes
interesses político-econômicos, por não menores interesses político-teológicos, e por outros tantos
interesses ideológico-militares — uma ofensiva que visa extinguir a condição mesma de “povo
indígena” no Brasil. A incúria e a desídia governamentais, que sempre serviram de estímulo ao
esbulho territorial e à violência física contra os povos originários, agora se veem espantosamente
exponenciadas pela omissão calculada de assistência por ocasião da pandemia em curso.

Some-se a isto a presente conspiração dos Três Poderes para consolidar juridicamente uma
interpretação falaciosa do artigo 231 da Constituição, a chamada “tese do marco temporal”. Ao
congelar a situação das terras indígenas em 5/10/88    (e recordemos que o prazo de cinco anos para
finalizar as demarcações das terras indígenas não foi cumprido) 1, a tese legitima as violências a que os
povos foram submetidos até a promulgação da Constituição, em especial durante a ditadura: o que foi
roubado até o dia 04/10/88 permanece roubado (e foi ou será legalizado como propriedade de algum
grileiro milionário); o que foi retomado ou reivindicado após essa data será invalidado. Considerem o
absurdo de um direito originário que só vale até uma certa data. A tese do marco temporal consagra
uma situação multissecular de espoliação territorial; ela equivale a recusar aos povos indígenas seu
futuro, a expulsá-los da história como agentes, relegando-os ao passado. A intenção mal oculta de
tudo isso é fazer com que os povos originários desapareçam aos poucos como povos. Aos poucos ou
rapidamente, porque há pressa: é preciso acabar com tudo antes que tudo acabe.

1
Disposições Transitórias da CF 1988, art. 67. “A União concluirá a demarcação das terras indígenas
no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.”
Concluo dizendo que os povos indígenas aqui representados por Davi Kopenawa não estão
sozinhos em sua luta contra um governo de extrema direita dedicado à destruição dos direitos
constitucionais estabelecidos em 1988. Todos os capítulos do Título VII da Constituição (Da Ordem
Social) são hoje hoje alvo de um processo sistemático de erosão ou perversão por parte das forças no
poder. Considerem os temas desses capítulos: saúde; assistência social; educação; cultura;
comunicação; meio ambiente; povos indígenas; e, por fim — talvez não seja preciso lembrar aos que
me escutam — a ciência (artigos 218 e 219). A desordem social instaurada precisa acabar com tudo
isso ao mesmo tempo para poder enfim reinar soberana sobre as ruínas. Se deixarmos.

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