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Agradeço aos organizadores desta cerimônia a honra que me foi concedida de saudar Davi Kopenawa
como novo membro colaborador da Academia Brasileira de Ciências, para a qual não é menor motivo
de honra e de alegria recebê-lo, a este pensador e ativista já distinguido com o prêmio Global 500 das
Nações Unidas, a Ordem de Rio Branco, a Ordem do Mérito Cultural do Brasil e o Right Livelihood
Award.
Em segundo lugar, vejo a eleição de Kopenawa para esta Academia (de ciências de não “da
Ciência”) como um reconhecimento no sentido de ser uma constatação formal do valor dos
conhecimentos ou saberes indígenas, bem como da sabedoria que envolve esses saberes, sabedoria
que se mostra cada vez mais relevante à medida em que aumenta nossa consciência da catástrofe
ambiental, econômica, política e cultural desencadeada pela forma de vida humana hoje hegemônica
no planeta. Distingo aqui “sabedoria” de conhecimento empírico ou saber sobre as coisas do mundo,
pois ela é, em certo sentido, algo maior — a sabedoria é um saber sobre os usos e as consequências
dos usos do conhecimento: consequências diretas como indiretas, imediatas como sistêmicas. Graças
em grande parte à sabedoria de pensadores como Kopenawa, nunca mais poderemos dizer que não
sabíamos; que não estávamos, justamente, cientes do que fazíamos.
Por fim, como antropólogo — e portanto como titular pleno da condição de “cientista social”
— Davi se revelou não só um expositor admirável da ossatura cosmológica da vida yanomami, como
também um dos etnógrafos mais argutos da sociedade e da cultura do “povo da mercadoria”, um dos
etnônimos com que os Yanomami se referem a nós, os brancos, aquele povo que, como disse
memoravelmente Kopenawa, “dorme muito, mas só sonha consigo mesmo”. Ninguém captura melhor
a fenomenologia do espírito do capitalismo que um observador radicalmente exterior a ele, sobretudo
quando é alguém de um povo que está sofrendo suas consequências. Pudemos constatar no filme qual
a verdadeira origem mitológica dos brancos: descendentes do gêmeo estúpido Yoasi, eles de fato só
sonham consigo mesmos... não são capazes de olhar além do próprio umbigo — da própria barriga
(barriga da perna, no caso).
Temos a obrigação de levar absolutamente a sério o que dizem os povos indígenas pela voz
de Davi Kopenawa — eles e todos os demais povos “tradicionais” do planeta, aqueles que
ainda resistem a sua dissolução pelo liquidificador ecocida e etnocida do projeto
civilizacional hegemônico. Para os brasileiros, como para as outras nacionalidades do
Novo Mundo instituídas em cima do genocídio de milhões de indígenas e da escravização de
milhões de africanos, tal obrigação se impõe com força redobrada. Pois passamos tempo
demais com o espírito voltado para nós mesmos, embrutecidos pelos mesmos velhos sonhos
de cobiça e conquista e império vindos nas caravelas, com a cabeça cada vez mais “cheia
de esquecimento”, imersa em um tenebroso vazio existencial, só de raro em raro iluminado,
ao longo de nossa pouco gloriosa história, por lampejos de lucidez política, poética — e
científica.
***
Justo ontem, nossa Constituição Federal comemorou seu 33º aniversário. O último capítulo da Carta
(capítulo VIII, “Dos Índios”, do Título VII, “Da Ordem Social”) trata justamente dos direitos dos
primeiros povos, os “First Peoples”, como eles se auto-denominam nas Américas de língua inglesa.
Os primeiros foram os últimos... Mas foram; chegaram lá, e muito bem: os direitos indígenas
reconhecidos pela Constituição representaram um avanço gigantesco para a causa da justiça no Brasil.
Como tantos outros direitos coletivos estabelecidos na Constituição de 1988, entretanto, os direitos
originários dos povos indígenas vêm sendo objeto de uma campanha feroz com o objetivo de revogá-
los, consolidando assim “legalmente” uma ofensiva altamente organizada, liderada por grandes
interesses político-econômicos, por não menores interesses político-teológicos, e por outros tantos
interesses ideológico-militares — uma ofensiva que visa extinguir a condição mesma de “povo
indígena” no Brasil. A incúria e a desídia governamentais, que sempre serviram de estímulo ao
esbulho territorial e à violência física contra os povos originários, agora se veem espantosamente
exponenciadas pela omissão calculada de assistência por ocasião da pandemia em curso.
Some-se a isto a presente conspiração dos Três Poderes para consolidar juridicamente uma
interpretação falaciosa do artigo 231 da Constituição, a chamada “tese do marco temporal”. Ao
congelar a situação das terras indígenas em 5/10/88 (e recordemos que o prazo de cinco anos para
finalizar as demarcações das terras indígenas não foi cumprido) 1, a tese legitima as violências a que os
povos foram submetidos até a promulgação da Constituição, em especial durante a ditadura: o que foi
roubado até o dia 04/10/88 permanece roubado (e foi ou será legalizado como propriedade de algum
grileiro milionário); o que foi retomado ou reivindicado após essa data será invalidado. Considerem o
absurdo de um direito originário que só vale até uma certa data. A tese do marco temporal consagra
uma situação multissecular de espoliação territorial; ela equivale a recusar aos povos indígenas seu
futuro, a expulsá-los da história como agentes, relegando-os ao passado. A intenção mal oculta de
tudo isso é fazer com que os povos originários desapareçam aos poucos como povos. Aos poucos ou
rapidamente, porque há pressa: é preciso acabar com tudo antes que tudo acabe.
1
Disposições Transitórias da CF 1988, art. 67. “A União concluirá a demarcação das terras indígenas
no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.”
Concluo dizendo que os povos indígenas aqui representados por Davi Kopenawa não estão
sozinhos em sua luta contra um governo de extrema direita dedicado à destruição dos direitos
constitucionais estabelecidos em 1988. Todos os capítulos do Título VII da Constituição (Da Ordem
Social) são hoje hoje alvo de um processo sistemático de erosão ou perversão por parte das forças no
poder. Considerem os temas desses capítulos: saúde; assistência social; educação; cultura;
comunicação; meio ambiente; povos indígenas; e, por fim — talvez não seja preciso lembrar aos que
me escutam — a ciência (artigos 218 e 219). A desordem social instaurada precisa acabar com tudo
isso ao mesmo tempo para poder enfim reinar soberana sobre as ruínas. Se deixarmos.