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MARCOS NOBRE • 341

Novas polarizações –
ainda sobre esquerda e direita

Marcos Nobre*

Resumo – Posicionando-se contra qualquer tipo de dogmatismo, o artigo parte


da idéia de que esquerda e direita se dividiram sempre segundo a prioridade
que cada qual tem conferido, respectivamente, à igualdade e à liberdade. Che-
ga à conclusão de que a divisão continua a se dar nesses termos. Mas, enquanto
a direita permanece aferrada ao primado da liberdade, a esquerda tende a
manter em suspenso esse juízo de prioridade, cuja determinação deve dar-se
nas lutas concretas que se tem movido em favor da ampliação da autonomia
cidadã. Essa nova caracterização é apresentada como conseqüência da aceita-
ção, por importantes parcelas da esquerda, do campo do Estado Democrático
de Direito, não apenas como terreno legítimo de disputa com a direita, mas
como portador de potenciais emancipatórios suscetíveis de serem realizados.
Palavras-chave – Esquerda, Direita, Estado Democrático de Direito, liberdade,
igualdade, emancipação.
Código JEL – Y80

Esta é uma intervenção escrita do ponto de vista da esquerda. O


que obriga desde já a avançar uma demarcação singela: é “de esquerda”
toda aquela e todo aquele que assim se declara. O critério da autodecla-
ração parece-me suficiente para afastar dogmatismos e sectarismos de
variados matizes. Mas está longe de pôr termo a qualquer debate. Pelo
contrário, é apenas um ponto de partida. Porque o debate não é sobre
ser “de esquerda” ou “de direita”, o que seria apenas uma curiosidade
taxonômica.
“Esquerda” e “direita” são termos em disputa e é nesse sentido polê-
mico que utilizo esses termos aqui. Em outras palavras, mesmo nos mo-
mentos em que me proponho simplesmente a descrever os dois campos,

*
Professor de Filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap e do CNPq. Rua Morgado
de Mateus, 615, CEP 04015-902 – São Paulo, SP. Email: nobre@pq.cnpq.br.

Econômica, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 341-351, dezembro 2007


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também já avanço a minha compreensão do que seja (e do que deva ser)


a esquerda. No que diz respeito à direita, o texto segue um caminho um
pouco diferente. Tomando esse campo de uma maneira mais uniforme,
utilizarei as formulações teóricas e práticas que considero as mais avan-
çadas e refletidas, já que me parecem as mais fecundas para um debate
possível. Daí a importância de se pontuar, sempre que necessário, a presen-
ça relevante de posições belicosas, beligerantes e autoritárias nesse campo.
Parto da constatação trivial de que “esquerda” e “direita” não se
encontram hoje em uma polarização tão visível e marcada como a que se
pôde observar até fins do século XX. Pretendo reconstruir em traços
bastante esquemáticos essa transformação e indicar um ângulo a partir
do qual se poderia compreender a natureza das polarizações atualmen-
te existentes entre os dois campos.
Parto da idéia de que “direita” e “esquerda” sempre se definiram
em relação à prioridade conferida, respectivamente, à liberdade e à igual-
dade no jogo constante de ponderação que as torna inseparáveis em
uma sociedade em processo de modernização. A configuração atual da
polarização continua a se dar nesses termos, muito embora a esquerda
não mais coloque por princípio a prioridade da igualdade sobre a liber-
dade, mas concentre seus esforços na determinação dos limites desses
dois vetores em cada luta concreta. Isso significa que se alteraram o
sentido e o horizonte do que seja a emancipação para a esquerda, o seu
traço distintivo mais importante em relação à direita. O que, por sua vez,
resulta também em uma concepção diversa do que sejam modernidade
e modernização.
Dito de maneira breve: a direita posiciona-se invariavelmente pela
fixação de conteúdos determinados para a caracterização dos direitos
de cidadania, procurando sempre bloquear a discussão sobre esses limi-
tes, que ela presume pétreos e intocáveis; a esquerda não aceita que a
discussão sobre qualquer tópico deva ser em princípio vedada – muito
pelo contrário, pretende trazer para a discussão e para a deliberação
públicas temas “invisíveis”, negligenciados pela fixação prévia de limites
para o exercício dos direitos de cidadania.

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O que mais chama a atenção hoje quando se toma o campo da


esquerda como objeto é a perda de uma base comum de diálogo. Não se
trata aqui de idealizar um passado que nunca existiu. Não são poucos os
episódios de violência verbal, física e moral no campo da esquerda. Mas,
mesmo se as posições eram muitas vezes estereotipadas e caricaturais, ao
menos um vocabulário e um estoque de problemas era compartilhado,
um repertório comum cujo fulcro era a disputa pela interpretação “cor-
reta” de Marx. Isso mesmo no caso daquelas e daqueles que recusavam o
marxismo (como é o caso dos anarquistas) ou que partiam de tradições
liberais para formular suas posições, já que tinham de se contrapor à
hegemonia marxista na esquerda.
Mas não foi apenas um vocabulário e um estoque comum de pro-
blemas que se perderam. Desapareceram também os solos históricos em
que se ancoravam. A certa altura, o marxismo não se mostrou mais capaz
de se reinventar de maneira plausível para orientar a teoria e a ação. O
campo da esquerda não se pluralizou apenas com os temas trazidos pe-
los chamados novos movimentos sociais, mas também no sentido de in-
corporar novas referências teóricas e práticas.
Tomando-se um período como, por exemplo, o que vai dos anos
1970 ao começo dos anos 1990, observa-se uma confluência nova e sig-
nificativa. Os chamados novos movimentos sociais deslocam o foco da
luta diretamente econômica e multiplicam as bandeiras políticas: meio
ambiente, gênero, sexualidade, etnicidade. A dinâmica mesma da
militância de esquerda se diversificou, se descentrou e se transformou
qualitativamente. Ao longo do tempo, esse desenvolvimento teve pelo
menos duas conseqüências importantes: o socialismo deixou de ser o
horizonte comum partilhado; o Estado foi pressionado a alterar estrutu-
ralmente sua relação com a sociedade civil.
As duas experiências históricas fundamentais cuja crítica impulsio-
nou essas transformações foram o chamado socialismo real e o capitalis-
mo regulado do pós-guerra.1 A defesa do socialismo real ou mesmo da
idéia de que o bloco soviético já havia realizado a revolução econômica,
faltando-lhe apenas uma revolução política, tornaram-se inteiramente
implausíveis. Ficou claro que a realização da igualdade econômica den-
tro dos moldes do planejamento estatal centralizado não conduzia auto-
maticamente à realização de direitos de liberdade.

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De outro lado, a experiência do capitalismo regulado de tipo euro-


peu também mostrou que um Estado paternalista não foi capaz de fo-
mentar ao mesmo tempo a igualdade e a autonomia cidadã. Se o chama-
do Welfare State procurou assegurar direitos de liberdade com o fomento
de políticas igualitárias, sua lógica estatal passou cada vez mais a limitar
de fato a autonomia de ação de cidadãs e de cidadãos. Nesse contexto, o
direito passou a desempenhar um papel importante na regulação de exten-
sos domínios da vida social. Boa parte da chamada juridificação das rela-
ções sociais trazia consigo não somente uma maior igualdade, mas também
um grau maior de limitações ao exercício de direitos de liberdade.2
Seja como for, o resultado foi o reconhecimento, por parcelas signi-
ficativas da esquerda, de que a democracia de massas e a forma que to-
mou o Estado sob o capitalismo não eram meramente instrumentos de
dominação, mas correspondiam também ao produto de muitas décadas
de lutas de resistência e transformação social, que conseguiram, entre
outras coisas, introduzir importantes direitos sociais. Parte da esquerda
passou a ver na política institucional uma arena legítima de disputa e
não apenas uma maneira de denunciar a farsa da democracia existente.
Passou a ver no direito não apenas um instrumento de dominação de
classe, de uniformização e limitação da ação, mas também um campo
fecundo de luta por ampliação da igualdade e da liberdade. Quando
isso aconteceu, parcelas significativas tanto da direita quanto da esquer-
da tiveram de aceitar o adversário como legítimo e não simplesmente
como um inimigo a ser abatido.
Eis aí , a meu ver, a origem da confusão atual. O que embolou a
distinção entre esquerda e direita foi exatamente a virtude desse proces-
so: a aceitação do jogo democrático por importantes parcelas dos dois
lados como solo político comum. Essa novidade teve pelo menos duas
conseqüências bastante distintas.
Em primeiro lugar, há que registrar a reafirmação de posições polí-
ticas tradicionais nos dois campos políticos. Do lado da esquerda, en-
contram-se posições que se recusaram a fazer esse movimento de aceita-
ção do jogo democrático e que reafirmam, sob novas roupagens, as teses
de que a democracia dita formal-burguesa é mero instrumento de domi-
nação de classe e que a autêntica resistência deve se dar na utilização
meramente estratégica de suas instituições para destruí-las. Para drama-
tizar essas velhas teses em uma nova encenação são utilizadas idéias como

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a de desconstrução, de estado de exceção, de biopolítica, no sentido de


mostrar que nada há de mais autoritário, controlador e arbitrário do
que a democracia existente. Do lado da direita, há que registrar aquelas
posições que, de maneira instrumental, lançam mão do discurso demo-
crático para estandardizar um modelo institucional definitivo e único,
sem alternativas. Essas posições de direita se exprimem tanto em atitu-
des xenófobas e discriminatórias quanto na idéia de que esse modelo
único e abstrato deve ser exportado para todo o planeta. Mediante guer-
ras, se necessário.
Em segundo lugar, entretanto, é preciso enfatizar que o fato de par-
celas significativas da direita e da esquerda aceitarem as instituições de-
mocráticas existentes como terreno legítimo de disputa não significa que
partilham de uma mesma compreensão do seu sentido. Pois, do ponto
de vista dessa nova esquerda, compreender as instituições democráticas
existentes como resultado da luta social mostra não apenas que elas são
produto histórico e, como tais, podem ser radicalmente transformadas,
mas também que não há contradição entre defender o seu estágio atual
e empurrá-las para além de sua configuração presente. É somente dessa
nova esquerda que passo a tratar agora.
Começo, entretanto, pela caracterização da direita. Considero im-
portante distinguir no interior desse campo posições simplesmente con-
servadoras e posições além disso xenófobas, discriminatórias, belicosas e
beligerantes. Mas acredito que, mesmo observadas essas importantes di-
ferenças, a caracterização pode ser aplicada, no geral, à direita atual em
seu conjunto.
A direita entende a democracia com base em um catálogo de direi-
tos determinado, fixo e previamente definido. Nessa lógica, a liberdade
tem precedência absoluta e é apresentada como conjunto de direitos
previamente definidos a serem preservados. Não apenas nisso essa posi-
ção se assemelha a um congelamento do velho projeto do Esclarecimen-
to (ou Iluminismo, como se queira chamá-lo). Também na sua concep-
ção de modernidade a direita mantém o modelo eurocêntrico de um
processo de modernização modelar, em que se repetem as etapas, as
instituições e os resultados de uma certa imagem do que sejam as insti-
tuições democráticas capitalistas. Com isso, também projeta como mo-
delar uma forma de vida determinada. A idéia tradicional de tolerância
que ela defende é insuficiente para fomentar o surgimento de novas

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formas de vida, já que as relega ao domínio do privado, sem mais. E esse


é um ponto importante que distingue as posições de esquerda: distinções
como essa entre público e privado não podem ser fixadas de antemão.
A esquerda não pode aceitar o congelamento de uma determinada
imagem de modernização que deveria ser repetida como único cami-
nho para a construção de uma sociedade democrática. Seu vínculo com
o Esclarecimento e com os ideais de igualdade e liberdade começa por
uma crítica radical da violência com que esse projeto se realizou por
sobre a cabeça de indivíduos e populações inteiras.3 Conseqüentemen-
te, a esquerda também não pode aceitar sem crítica a tese de que os
direitos de liberdade são condição para os direitos de igualdade, pois
isso definiria um modelo prévio de democracia que viria se sobrepor às
disputas políticas concretas. Muito menos pode aceitar a idéia de um
catálogo prévio de direitos, independentemente de sua discussão e deli-
beração em contextos sociais concretos.
Essa caracterização sumária não pretende concluir que a direita seja,
em sua totalidade, contra direitos sociais, contra a diminuição das desi-
gualdades ou a favor de atitudes discriminatórias, ainda que grandes
parcelas da direita se definam justamente por atitudes de segregação e
exclusão relativamente a um “outro” que recusam. (Isso é particular-
mente verdadeiro no caso dos “novos nacionalismos”, um fenômeno
xenófobo característico de movimentos de direita europeus e norte-
americanos, por exemplo). Se determinadas parcelas da direita não têm
essas atitudes excludentes e discriminatórias, isso também pode ser con-
siderado uma conquista das lutas sociais, que obrigaram a uma incorpo-
ração em alguma medida do discurso da igualdade, da solidariedade e
contra o preconceito, mesmo que, em muitos casos, isso se deva a moti-
vos meramente estratégicos.
Essa caracterização aponta também para a idéia de que hoje a igual-
dade é entendida pela esquerda em um sentido mais amplo, não mais
centrado exclusivamente na igualdade do atendimento às necessidades
e do desenvolvimento pleno das capacidades. E que, por mais diversifi-
cados que sejam os temas em disputa, as lutas sociais guardam ainda o
impulso inicial dos movimentos operários de superar as instituições exis-
tentes ao vincular suas reivindicações à busca da igualdade.
De um lado, pode-se dizer que esse movimento atesta a permanên-
cia de um traço distintivo da esquerda: a busca pela emancipação social.

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Ao contrário da direita, a esquerda busca a libertação do indivíduo, mas


não considera que isso seja possível sem a emancipação do conjunto da
sociedade. Os projetos de realização social da direita dizem sempre res-
peito ao indivíduo e são marcados ainda por esse individualismo.
De outro lado, entretanto, há aqui novidades no que diz respeito ao
projeto de emancipação propugnado o pela esquerda. A partir do mo-
mento em que deixou de ser plausível a idéia de que a lógica do capital
domina sem mais todas as esferas da vida social, a idéia mesma de eman-
cipação teve de se ampliar também para englobar não apenas a emanci-
pação em relação à dominação do capital, mas igualmente em relação a
modelos de sociedade previamente fixados.
Se não há mais como simplesmente reduzir a complexidade da vida
social e política à valorização e à acumulação, há que pensar os termos
em que formas societárias determinadas são impostas por sobre a cabeça
de indivíduos e grupos, que são excluídos sistematicamente de sua constru-
ção coletiva. É nesse sentido que devem estar em questão os modelos de
modernização abstratos postos como padrões normativos a serem seguidos.4
A meu ver, a complexificação da idéia de emancipação mostra que
as lutas por liberdade não só não podem mais ser separadas das lutas por
igualdade como também não podem ser mais reduzidas a estas, que con-
ferem à igualdade uma primazia prévia e de princípio. As duas frentes
de disputa têm lógicas próprias e têm de ser perseguidas concomitante-
mente. Só assim se torna possível questionar em seu conjunto o modelo
de modernização imposto como único: porque ele é desigual, sem dúvi-
da; mas também porque emudece, segrega e impede o aparecimento de
novas vozes que apontam para o desenvolvimento de novas formas de vida.
Não é essa, entretanto, a autocomprensão de importantes parcelas
do que chamei aqui de nova esquerda. Muitas das disputas atuais ten-
dem a reduzir as questões de liberdade a uma noção inflada de igualda-
de. Creio que os movimentos sociais não apenas podem dispensar essa
noção inflada de igualdade para justificar suas bandeiras como ganha-
riam muito em deixá-la para trás, passando a operar no duplo registro
de demandas por igualdade e por liberdade.
Segundo a caracterização proposta aqui, no jogo em que liberdade
e igualdade passam a operar, a prioridade de uma em relação à outra
depende sempre do contexto de ação. O critério de prevalência no
âmbito de uma disputa determinada não pode ser outro senão o do fo-

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mento da autonomia de cidadãs e cidadãos, como indivíduos ou como


grupos organizados em vista de uma luta concreta.
Um bom exemplo das dificuldades a que leva uma noção inflada de
igualdade me parece estar na incorporação de elaborações teóricas for-
muladas originalmente no campo da direita. É o caso, por exemplo, da
utilização de uma noção geral de igualdade sob o guarda-chuva da “igual-
dade de oportunidades”. Formulada nesses termos, a igualdade acaba
por permanecer atrelada a um catálogo de direitos de liberdade que é
entendido como fixo, colocado como condição para os demais direitos.
Nessa formulação liberal mais refletida, a dependência da igualdade em
relação à liberdade limita a ação política de antemão e veda a delibera-
ção sobre questões de igualdade que não podem ser postas a não ser
colocando em causa a configuração atual dos direitos de liberdade.
De um ponto de vista de esquerda, a extensão da idéia de igualdade
para outros domínios que não o econômico pode ter por resultado não
o fomento da autonomia, mas a imposição de formas determinadas de
igualdade social e cultural exteriores às suas próprias destinatárias, au-
toras e participantes. Isso mostra a importância de distinguir a cada vez
os aspectos de liberdade e de igualdade em questão. Também mostra
que, do ponto de vista da teoria, não há uma ligação automática entre
movimentos sociais e emancipação, muito embora não haja emancipa-
ção sem movimentos de contestação e de transformação social.
Está claro que essa é uma posição arriscada em vários sentidos. Pode
ser trivial dizer que tomar uma posição de esquerda sempre envolve ris-
cos. Mas é a partir da análise desses riscos e do seu balanço relativamente
aos possíveis ganhos emancipatórios que é possível apontar as linhas de
ação a empreender. No sentido desse balanço necessário, o momento
atual é ambíguo em vários sentidos.
A queda do socialismo real e o declínio do capitalismo de regulação
estatal ocorreram simultaneamente ao surgimento de uma nova forma
de Estado. Em um primeiro momento, o Estado procurou manter sua
lógica planejadora ao mesmo tempo que aceitava os novos movimentos
sociais como interlocutores legítimos, procurando negociar alternativas
sem abrir mão de seu poder, vale dizer, de sua posição tecnocrática. Ao
longo dos anos 1990, entretanto, o que se viu foi o nascimento de uma
nova relação entre Estado e sociedade, uma relação em que os movi-
mentos organizados da sociedade civil alcançaram em muitas áreas posi-

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ções de co-gestão, na medida em que passaram a participar diretamen-


te da elaboração, implementação e gestão de diversas políticas públicas.
No que diz respeito a movimentos sociais por liberdade e igualda-
de, essa nova porosidade do Estado relativamente ao ativismo da socie-
dade civil não pode ser reduzida à mera cooptação. Mas é certo que
envolve o risco permanente de que os horizontes de reivindicação se
rebaixem à lógica do “possível”, definido previamente nos termos da
lógica da administração. Para que isso não paralise a imaginação de es-
querda, é preciso fomentar uma relação com as instituições existentes
em que a esquerda não se intimide diante da falsa alternativa de partici-
par pontual e ativamente da elaboração e implementação de políticas
públicas e de, ao mesmo tempo, exercer a crítica sobre esses mesmos
processos de que participa, apontando suas deficiências e lacunas.
Claro está que esse movimento não inclui hoje os mecanismos de
regulação econômica direta. Pelo contrário, a única influência visível
aqui é a dos grandes grupos de interesse. Ainda assim, é de se notar que
lutas específicas por igualdade tenham tido reflexos importantes na
regulação econômica, como foi o caso da jornada de 35 horas semanais
na França. Isso mostra, pelo menos em tese, que movimentos
reivindicatórios por maior igualdade e liberdade podem ter conse-
qüências macroeconômicas relevantes.
Mais que isso, a “blindagem” – para ficar no vocabulário beligeran-
te do liberalismo atual – da regulação econômica deslocou as principais
polarizações entre esquerda e direita para o campo “cultural”. Também
aqui a esquerda não se deve deixar levar pela idéia de que a cultura
constituiria um problema menor, que não diria respeito ao “essencial”,
isto é, a acumulação capitalista. As lutas políticas se dão em condições
concretas e os potenciais de emancipação têm de ser perseguidos onde
quer que se mostrem. E isso não apenas porque as lutas atuais envolvam
já disputas por igualdade e liberdade que não estão restritas, inevitavel-
mente e por princípio, a questões “culturais”, mas também porque não
existe receita que possa dizer que as lutas “culturais” de hoje não venham a
se transformar em disputas pelo cerne da lógica de acumulação amanhã.
Por fim, é igualmente necessário considerar, de maneira mais am-
pla, que defender o objetivo de fomentar a autonomia de indivíduos e
grupos em um contexto de declínio da posição paternalística do Estado
pode lançar sobre estes indíviduos uma sobrecarga de responsabiliza-

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ção. A contestação do e paternalismo e da tecnocracia pode produzir


uma situação na qual a responsabilização coletiva dê lugar a uma volta à
lógica liberal de responsabilização individual. Mas, se esse risco é real,
não deve por isso encobrir o potencial de fomento de igualdade e de
liberdade que a nova configuração Estado-sociedade libertou: que indi-
víduos e grupos produzam as condições para construir instituições de-
mocráticas que respeitem suas formas de vida e garantam ao mesmo
tempo a possibilidade de seu desenvolvimento concreto. Se esses poten-
ciais emancipatórios presentes hoje serão ou não realizados, é assunto
para as lutas concretas dos movimentos sociais.

Pelas críticas e sugestões (sem qualquer imputação de responsabilidade, en-


tretanto), agradeço a Sérgio Costa, Marta Rodriguez de Assis Machado, José Rodrigo
Rodriguez, Ricardo Terra, José Carlos Estêvão, Vinicius Torres Freire e Felipe Gon-
çalves Silva.

Notas

1
Sendo que, nos dois casos, havia uma relação de dependência entre centro e periferia,
o que é particularmente importante para a consideração do assim chamado nacional-
desenvolvimentismo brasileiro.
2
A referência à “juridificação de relações sociais” me permite esclarecer também como
utilizo aqui o termo “capitalismo regulado”. Não se trata simplesmente de verificar a
presença do Estado no processo mais geral de produção, distribuição e consumo. Isso
ocorreu, de diferentes maneiras, em todos os momentos do desenvolvimento capita-
lista, ainda que a relação entre Estado e capital tenha suas especificidades no período
pós-guerra. Este capitalismo regulado tem como marca distintiva a amplitude da sua
intervenção. A lógica planejadora estatal (com sua ideologia tecnocrática) não atin-
giu apenas a esfera econômica, mas todos os domínios da vida social, instituindo uma
série de novos mecanismos de controle social (pretensamente impessoais, burocráti-
cos). E o direito foi o principal instrumento dessa intervenção, que atingiu esferas
antes impensáveis, como foi o caso das profundas transformações no direito de famí-
lia, por exemplo. A marca intervencionista permanece hoje em boa medida presente,
ainda que tenha perdido o lastro ideológico da “neutralidade da técnica” que lhe deu
inicialmente sustentação (e que perdura no caso da regulação macroeconômica, por
exemplo). No momento atual, diversificaram-se as justificações das diferentes formas
de intervencionismo estatal. A chamada “ameaça terrorista”, por mais significativa
que seja, é apenas uma dentre muitas outras.

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Para tirar apenas uma das muitas conseqüências possíveis dessa posição, isso significa,
por exemplo, afastar a idéia de que só se pode entender o Brasil pelo negativo, ou
seja, por aquilo que o país ainda não é (em comparação com um padrão abstrato e
fixo que lhe seria externo).
4
Vale aqui fazer mais uma breve anotação histórica: se boa parte da direita e da
esquerda partilham hoje da idéia de que as disputas no Estado Democrático de Direi-
to são legítimas, o que partilharam no passado foi exatamente um modelo de moder-
nização único. Compreendem de maneira bastante diversa a natureza da legitimidade
democrática hoje, como compreendiam de formas diferentes o modelo único de
modernização que partilharam no passado. Se a esquerda se moveu na direção de
colocar em questão esse paradigma da modernização, a direita permaneceu aferrada
a ele.

Abstract – Arguing against any form of dogmatism and sectarianism in the


discussion, the paper takes as its starting point the idea that the distinctive feature
of the Left-Right divide has always been the priority given either to liberty or to
equality. The paper argues further that this is still the major divide today, with
the important distinction nevertheless that the Right sticks to the priority of
liberty as the Left moved to a position in which the priority cannot be decided
beforehand, but should be the decided in concrete disputes following the
principle of which one promotes the autonomy of citizenship the most in each
particular case. This is presented as the result of the acceptance by the Left of
the Rule of Law not only as a common ground for the political disputes with the
Right but also as presenting emancipatory potentials to be fulfilled.
Keywords – Left, Right, Rule of Law, liberty, equality, emancipation

Recebido e aprovado para publicação em outubro de 2007.

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