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NORBERT ROULAND. ROMA, DEMOCRACIA IMPOSSIVEL? OS AGENTES DO PODER NA URBE ROMANA Tadugaio de Ivo Marunazzo eprrona UnB aot Direitos exclusvos para esta edge: EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASILIA CS Q.02 BlocoC N°78 Ed. OK 2° andar 770300-500 Brasilia DF Fax: (061) 225-5611 Copyright © 1981 by Actes Sud Titulo original: Rome, democratie impossible? “Todos os divetes reservados, Nethuma parte desta pablicagdo poder ser armazenada cu reprdivzda por qualquer meio stn 8 autor2a¢i0 por eserto do eitora Inpresso no Brasil surERvIsho EDITORIAL ‘ArToN LUGARINIIO PREPARAGAO DEORIGINAIS € REVISAO [REIANE DE MENESES EYANA PALANKOF EDITORAGAO GLETRONICA ‘MifetaM DE FRaN¢A MoResna [ACOMPANHAMENTO EDITORIAL, SOELITA DE FREITAS ARALSO cara Resa SUPERVISAO GRAFICA ELMANo RODRIGUES PINHEIRO ISBN: 85-230-0448. Ficha eatalogrfica elaborada pela Biblioteca Contra! ‘da Universidade de Brasilia Rowland, Nomber R859 ‘Roma, democracta impossivel?: os agentes do poder na urbe romana / Norbert Rouland; trad, de Ivo Maranazzo. — Brasilia : Editors Universidade de Bras, 1997, 4T7p. “Tentuedin de: Rome, demoeratie impossible? 1. Historia de Roma, 2, Historia antiga, 2. Demoerseia romana. I, Martins2z0, Ivo I. Titulo cpu 937 321.907) A meu mestre, L. R. Ménager, ea todos aqueles cwjo eto me ajudou a escrever este livro, 20 Roma, demacracia inmpossivel? totalidade dos lares franceses serve-se da cletricidade e goza dos seus benefictos. Quantos dentre eles seriam capazes de explicar exatamente o que é a energia elétriea? Seguramente muito poucos, © que no os impede de saber muito bem como utilizar as suas vantagens. O mesmo se passa com a histéra: sempre seriio neces- sirios os pesquisadores © 0s eruditos, mas é preciso também saber sair do laboratorio, Nao vejo por que a distingdo entre pesquisa pura © pesquisa aplicada ndo deva se impor também nas cigneras humanas. Ai reside a principal justificagao da disciplina. Essa é a razdo pela qual o presente livro apresenta um aparato cientifico reduzido a0 mintmo. Por igual razdo, optet por poupar a0 leitor os detalhes iaboriosos das demonstracdes, para oferecer- Ihe muito mais os resultados, deixando subsistirem dividas ¢ mter- rogagSes quando ainda nos falta a clareza. Se ao fechar este livro o leitor sentir 0 desejo de saber mais, te- ei como ganha a minha aposta, ¢ oferecido a minha modesta con- twibuigo a grande esperanga dos historiadores, com os quais compartitho a mesma fé, que é a de pertencer aos homens que con tibuem para a compreensio do nosso tempo. Norbert Rowand Aix-en-Provence, janeiro de 1981. Capitulo 1 “Os rebanhos e a cidade Deus determinou confiar 0 gado da terra a nés, os masais, por que os masais so os melhores ¢ as mais fortes. Somente os masais podent viver da gacdo, que & @ riqueza maror, enquanto os ouiros hioweram de se contentar em ywver dos fiutos da terra, pois eles ndo tém condigdes de errar 0 gado como os masais. Cultivar a terra & um pecado, é fender a Dens, que sobre ela fas crescer a erva part o gado, © gado é a vide dos masais (Cano tradicional dos Masai, povo pastor do Quénta). O universo mental dos pastores ‘Ao longo das margens do rio caminham os pastores. Caminhar adiante das vacas significa dar um sentido pleno as suas vidas. Assim como al agua, a terra e 0 fogo, o rebanho esté na origem do mundo, Cada anmal tem 0 seu nome, que compartilha com o nome de cada recém-nascido do homem. O pacto selado no come- 0 da vida permanecera peto tempo que durar a marcha pelos ca- minhos onde se misturam a poerra ¢ os mugidos. O rebanhio é luz ¢ vida, As gravuras rupestres dos tassilis saarianos dizem-nos isso na forma de um poema de pedra, 0 poema dos bois solares: o astro ardente britha entre os grandes chifres, que o orniam ¢ o compreen- dem, ¢ 0 formato desses contrasta com 0 esboco mais leve do cor- po do animal. Naquelas savanas esquecidas, soterradas pela solidio mineral da areia e da rocha, a pedra da testemunho do pacto antigo, n oma, democracia impossivel? Roma nio entra na historia sob 0 signo da Joba capitolina, € menos ainda como uma cidade poderosa, guamecida por suas logides © destinada pelos deuses a dominar o mundo. Novecentos anos antes do naseimento de Cristo, quatro séeulos antes do apare- cimento em outras plagas de um regime denommado “democracia”, Roma ainda ndo é nada, ou to pouco. Os que vivem na sua area pestilenta mais se parecem com os nossos masais. Os primeiros romanos so pastores, e as preces que dirigem a deuses pouco conhecidos sto no sentido de implorar que protejam ‘08 seus bois. Sabemos, por mtermédio de leis muito antigas, que matar um boi é mais grave do que atentar contra a vida de um ho- mem, E tio forte o poder das tradigdes pastoris que a ima bot, 0 seu simbolo, continua a se impor muito tempo depois de a cidade ter superado os rebanhos, No ritual simbélico da sua funda- @Ao, a cidade nasce sob o signo do bo.' O espago urbano do ho- mem delimta-se a partir de uma cova, o mundus, via de comunieagao entre o mundo dos mortos, o dos vivas e 0 dos deu- ses subterraneos. Cada homem que chega langa nessa cova um punhado de terra que recotheu antes de abandonar o seu soto natal para procurar fortuna alhures. Apropria-se entdo dessa cidade que acaba de ser fundada dizendo: “Onde esté a terra dos meus pais, ai sera a minha patria”. Naquela terra fresca sto langados gros, vi- rnho ¢ também gado mitido. Em seguida, o mundus & coberto para sempre. Sobre ele erige-se um altar em forma de colméia, no qual arderd 0 fogo sagrado, associando uma vez mais 0 gndo com o fogo € os deuses. A seguir jungem-se os bois, brancos como as vitimas oferecidas em sacrificio a Jipiter. Abrem um suilco na ter- ra, tragando um cireulo magico, 0 pomoermm. No ambito dessa cireunferéncia edificar-se-4 a cidade, abencoada por Jupiter ¢ pro- tegida por tuma série de tabus, pelos quais a macula da morte repelida para fora dos seus limites. E proibido sepultar ow incmerar um morto no reeinto do pomoerum, ¢ 0 catrasco deve morar fora da cidade, Nenhum soldado armado pode passar as suas portas, ols isso representava a motte, trazida pelo glislio. O sacerdote de Jipiter habita no Ambito “intrapomenial”, jamais devera presenciar 0 desfile de uma tropa armada, nem tocar um morto, nem aproxt~ mar-se de uma sepultura, E superfluo sublinhar a importincta do gado nesses ritos de fundagio. I ele que ¢ oferecido em ato propr- ciatério aos ancestrais ¢ aos deuses subterrineos do mundus; & por intermédio dos bois que se tragam os limites entre a cidade © 0 (0s rebSnhos e a cidade 23 mundo exterior e mais ainda entre a vida € a morte, Disporiamos de ciementos coneretos para avaliar @ quantidade daquele contin- gente de gado? Um cileulo aproximado leva a uma centena de rebanhos de porte medio, quantidade relativamente modesta. Estima-se que no inicio do século VIL a.C. 0 temtério romano abrangia uma super- ficie de mais ou menos 17,000 hectares (ou seja, uma area ligeira- mente anfetior a de dez comunas da Franga hoje). Nos nossos dias, nas regides mediterrineas, sio necessarios cinco hectares para satisfazer as exigéncias vitais de um boi, e um hectare para as de uum cameiro. Pode-se admitir que se trata de dados relativamente invaridveis. Aplicados a Roma primitiva, eles nos permitem avaliar agueles rebanhos areaicos em cerca de 3.400 bois ¢ 17.000 carnei- ros, aos quais convém acrescentar algumas centenas de pastores, classificados pelos donos dos bois como “gado mediano”, ¢ 1850 até o fim da Republica... Relativamente pouco numerosos os bois € os camizos, & a cles que os romanos mais prezam. isso explica por que, muitos séculos depois, quando a socie- dade arcaica ¢ pastoril deu lugar & Reptiblica, ainda persistem as referéncias ancestrais do boi. Catiio, no século II antes da nossa era, ao implorar a Marte, recorre ao seu gado: Marte, Pai, suplicote e rogo que sejas benevolent © propicio para comigo, minha casa e meu povo. For isso € que ordenct le assem um porco, uma ovelha e um novilho a percorrer os lin tes dos meus campos, terras ¢ dominios; para que detenhas, vechaces ¢ espulies todas as douncas vsivels € invsiveis, 2 co- restia e a desolagio, as calamidades e as intemperies, fim de aque permitas aos trigas e as sementeiras recentes se desenvol erem e chegarem # boa colheita, que conserves os pastores Sios e salvos, e que assim concedas a mim, a minha casa © a0 ‘meu povo uma boa saude, Dessa forma, a fim de purificar meus Campos, minhas terrae e dominios, seas servide como sarifcio dlste leitao, deste cordeiro e deste bezerro..® Os proprios juristas romanos no escapans a essa influéneia, ‘Ao classificarem os seus bens. eles empregam o termo res pecuniae para designarem as coisas de valot econémico importante.” Ora, rebanho em latin ¢ pecus. © proprio mito original de Roma encer~ 12.0 testemunho da primitiva cultura pastoril. Como se sabe, a loba ‘ocuipa ai um lugar de destaque, pois apresenta-se como a mie nu- triz dos fundadores da cidade, Rémulo e Remo. O valor que se the ey Roma, democracia impossivel? atribui é de ordem apotropica. O lobo & venerado porque temido: os rebanhos padem ser dizimados pelos seus ataques. E esse 0 ‘motivo da busca da reconciliagao com ele, 0 que explica 0 lugar de honra que Ihe € reservado no mito. Um iltimo argumento, ¢ taive © mais forte de todos, Certos dias eram reservados aos deuses; toda agio humana era dissuadida, e tabus sancionavam aqueles que violassem esse tempo sacro. Alguns desses tabus se referem a um passado, transfigurado miticamente em dade de ouro.’ So permi- ‘udas somente as atividades da cothetta e da eaga, banmdo-se toda, atividade agricola, pois era vedado “rasgar o solo, semeat, cortar 0 feno, vindimar, irrigar os campos e fazer cercas, lavar os cameiros, tosquiar as ovelhas, atrelar as mulas, tocar a terra com instrumen= tos de ferro”. Naquela idade de ouro, a riqueza no provinha da cultura do solo: a0 mencioné-la, fazia-se a exclusio de tudo 0 que se relacionava com a agricuitura. Isso € prova de que. & época em que a cidade anda nfo existia, 0 que contava era umicamente a ‘ertagdo de animais, ¢ que a agricultura, como haveremos de ver, surgiu em Roma s6 mats tarde, quando os etruscos a transformaram de fato numa cidade, Mas por que, em relagdo aos romanos, & importante demorar- se tanto sobre 0 boi? A resposta é simples. No intuito de procurar compreender a sociedade romana arcaica, ¢ mais ainda as razdes pelas quais a msiauragao do regime republicano foi o contrario do evento de uma democracia (que surgia naquele momento nas pia- gas da Grécia), todo o esforgo permanece vao, a menos que nos compenetremos profundamente da idéia de que os primeiros roma- nos sii pastores semindmades, para os quais a vida urbana e seus valores serio fendmenos importados e impostos, As sociedades pastoris conservam tradigSes, forjadas por ne- cessidades seculares e fortalecidas por uma economia de subsis. téncia, Antes de tudo, prevalece o desprezo pelos sedentirios ¢ pelos comerciantes. As condigdes em que nasceu a cidade romana iio testemunho desse desprezo por parte dos pastores patricios. Dos pAntanos & cidade dos quirites Péntanos, cujo solo esponjoso s6 permite a vegetaciio de sal- guelros magros ¢ Juncos raquiticos; um rio lamacento, de Aguas turvas, que ao satr das florestas invade por vezes aquelas margens 0s rébanhos ¢ a cidade 25 desoladas ¢ desérticas em enchentes tumultuosas; apos a desigua, ros campos tnistes cinzentos, levanta-se uma neblina to espessa {que 05 romanos darao ao vale 0 nome de Velabre (velartum sign'- fica véu); algumas colinas, cujas rampas ingremes sustentam a custo uma vegetagao magra e iimida, acima da cloaca, No alto das colinas, os homens. Homens que, para nés, em nada Jembram Roma € os romanos. Pastores conduzindo os seus rebanhos num semino- madismo, eujo itinerario apenas se altera pelas variagdes do lima. Nao ha palicios, ndo ha monumentos nem arcos do triunfo — esses pastores estio tio distantes de Roma quanto os campénios mero- vingios da Paris de Voltaire, Eram cabanas primitivas, de paredes de adobe c argila, cuja lembranga oito séculos mais tarde ainda no se havia apagado.** Os rebanhos so venerados por aqueles que ali habitam. Mas constituiriam eles a imica fonte de recursos dos habi- tantes do sitio de Roma, naquele longinquo século IX? As escava- ges arqucologicas trouxeram a luz alguns gris. Mas 1sso no contraria o fato de que a agricultura era inexistente, ou pelo menos muito pobre. Quase a totalidade da campanha romana (ager romanus) & am- propria para a cultura agricola,” A atvidade do cinturgio vuleanico da Itélia central eobriu o solo original de profundos sedimentos de tufo. Essa materia ortunda das erateras em erupgao era muito per- meavel. Mas as erupgées nfo eram continuas: nos intervalos de sossego, 0 solo sofria a influéncia dos agentes atmosféricos, tor- fel antes de ser mais uma vez recoberto de tufo, de chiio nando-se impermed a ocasifio das novas erupgdes. Essa amdlgama estratificnd: permedvel e de chio impermeavel impedia a circulacio das ‘iguas. Com efeito, a terra marrom e argilosa da superficie, endurecida pela insolagdo, absorve naturalmente a agua das chuvas de outono. Mas, ressentindo-se de modo geral da falta de fixagio, ela se-esvar quando das chuvas do inverno, sempre muito fortes no Mediterri- neo. A agua entio penetra profuncamente no mfo, que a absorve, A superficie argilosa volta rapidamente ao estade compacto € res- sequido, desencorajando qualquer miciativa de uticultura, Na me dida em que a agua absorvida pelos uff ndio consegue alravessar as camadas mais duras, mantém-se uma umidade subjacente e insalu- bore. Esse misto paradoxal de secura da superficie ¢ de umidacle sublerrinea constitu: um singular obstaculo, seno a vida, pelo ‘menos a sua radicagio e expansiio, Se existe um lugar que se afi- guraria 0 menos predestinada de todos a ter um destino glorioso, ¢ 6 Roma, democracia impossivel? cortamente esse. Certo & que os homens primitives que o habitam sio acima de tudo criadores de animais. O fato & perfeitamente com- provado pelas numerosas ossadas descobertas pelos arquedlogos: os, bovinos, os caprinos. os porcos ¢ os camneiros daquelas colinas nao silo apenas os companieiros do homem, mas também o seu meio de subsisténcia, Nio hii nenhuma divida de que, no psiquismo daqueles homens, os animats guardam a mesma importineia que a dos auroques, fixada na rocha das cavemas por mos pré-historicas. Na realidade, os rebanhos no permanecem constantemente presos aquele solo ingrato. De juno a outubro, os pastores conduzem-nos para engordar no aito dos Apeninos centrais, de onde somente sero afastados pelas primeiras geadas. Adguiriram entio as reservas hecessarias para pussar os meses de inverno na atmosfera adversa das sete colinas das margens do Tibre. Aquele ambiente afigura-se grandemente marcado pela forea das tradigdes e pelo vigor dos tragos wnpregnados por wma educa- Gio. Nas sociedades que s6 se movimentam devagar, ao ritmo das varragdes elimaiticas, ¢ onde os bens matertais sio 190 escassos a Ponto de tomar sem sentido a usurpagio ou 0 monopélio, a tradi- G40 representa para o individuo como que o reflexo, no mundo dos homens, da quase tmobilidade do tempo. A compreensio dese fendmeno € sndispensavel para quem deseja entender a tenacidade da artstocracia da Roma republicana ¢ sua recusa de qualquer parti- tha efetiva do poder: uma recusa, portanto, da democracia, A an- fropologia das soctedades pastoris e seminémades mostra-nos efetvamente que suas estruturas politicas permanecem 0 mais das Vezes a-estatars. As exigéncias dessas sociedades e os seus modos de vida sao tais que 0 Estado nfo tem razio de ser, pois no tera sustentagdo sociolégica ou econémica. Com efeito, no obstante a presenga de fortes ¢ de fracos, a precariedade dos bens é de tal ordem que no comporta a formagio de grupos sociais espectficos € de interesses divergentes, © portanto o estabelecimento de uma entidade investiga do poder de organizagio: a Fetada, Certos etndlogos chegaram inclusive ao ponto de afirmar que as socieda- des primitivas ndo mstituem 0 Estado por pressentirem o virtual perigo contido no seu bojo. A verdade é mais simples: se nio 0 ceria, é porque nio sentem a sua necessidade, Mas 29 mesmo tempo nao é tio ingénua: ndo ¢ Estado, qual modemo demiurgo, gue eria os antagonismos socioeconémicos, mas so estes que o osreMbnhos eo cidade » engendram, De qualquer maneira, € exatamente isso que parece mostrar a historia das origens de Roma. (Os autores mais antigos consideravam 0 Palatino como a coli- na sagrada por exceléncia, Segundo eles, Rémulo havia fundado Roma estabelecendo ali o primeiro vilarejo de pastores, em 754 a.C. As escavagées, com efeito, trouxeram a hz vestigios de caba- nas ¢ de sepulturas. Por muito tempo, aqueles autores antigos fo- ram taxados de mentirasas. Mas as descobertas que se fizeram no inicio do século XX os redimem. As escavagSes mais recentes no Palatino ¢ no Férum vio mais tonge ainda, fazendo recuar em um século as datagdes daqueles autores." No século IX, as tumbas de adultos so mumerosas, no século seguinte porém encontramos apenas sepulturas infantis. Parece entdo bastante ligico deduzw que 0 século VIII (fixemos a data de 754, cara aos antigos) conhe- ceu um fendmeno de expansio demogrifica. O lugar toma-se muita precioso, a ponto de ser disputado pelos mortos, © passa a ‘guardar no seu Seto somente aqueles que tiveram um fim particu- larmente eruel, porquanto prematuro. E com certeza nessa época {que as conviegdes ¢ 0s ritos imutavers dos pastores comecam a ser abalados por forgas cuja amplitude uitrapassa singularmente o am- biente acanhado das sete colinas ¢ dos paludes que banham 0 sew sopé. [Até esse momento, as aldetas estabelecidas no alto das colinas no sentiam a necessidade de uma unio entre si, como atesta a permanéneia de cemitérios separados, No entanto, 0 perigo sabino as levard a fundar, sen’io uma cidade ou um Estado, pelo menos uma associagio de defesa, a Liga das Sete Colinas. Uma vez mais, & argueologia parece reabiltar os esertores antgos, no tovante verdade da presenga dos sabinos nas proximidades de Roma. Fot exumado recentemente em Tivoli! um necrotério cujas oitenta se- pulturas, esealonadas ao longo de todo o século VIII, so construi- das segundo 0 tipo de jazigo de cova, desconhecido no Lacio, mas iuito ficyficnte na zona eseo-umbriana, como na regifo etrusea ¢ falisca. Com toda certeza, esse povo estranho ao Lacio era consti tuido pelos sabinos, contra os quais foi formada a Liga das Sete Colinas. Mas nfo ¢ apenas aos sabinos que se deve 0 surgimento de Roma, Ela também ¢ obra dos etruscos. 28 Roma, democracia impossivel? ‘O nascimento da cidade e os etruscos Pelo ano 700 a.C., enquanto os pastores latinos, no seu trajeto tmutivel, conduzem suas manadas de bois das alturas dos Apes 0s para as insalubridades tiberianas, uma eivilizagio incompara- velmente mats evoluida se prepara para se assenhorear da Walia Qs etruscos — ¢ deles que aqui se trata — so antes de tudo o- merciantes ¢artesios. As suas relagBes com a Grecia € com o One te, absolutamente claras por meio das formas de arte que introduziniam em Roma, no decurso do séeulo VI, s2o profundas ¢ duradouras. Eles vivem em cidades dotadas de estruturas estas Trata-se do regime de exdade-Estado, que compartilham com os sregos, Suas sociedades sio muito diferenciadas em comparagao coma dos pastores iatinos, pois sio divididas em classes de senho- res, dependentes e escravos. Portanto, os pastores do alto Tibre ¢ 6s etruscos pertencem a dois mundos opostos. Roma nasee quando mio dos deuses providencia o seu encontro No decurso do século VII, o dinamismo mercante das metrd- poles da Ftraria central voltae para o sul da Itilia, visando 208 ‘mereados da opulenta Campinia. As caravanas dos eomereiantes atravessam constantemente a campanha romana, Proporexoman-the © surto de uma vida nova tazendo para as populagdes préximas dos seus sitios de pouso as novidades de mundos antenormente estranhos, e que aprendem aos poucos a conhecer: a Grécia € 0 remoto Oriente. Desses encontres nascem comunidades urbanas. Baixelas finas, j6ias, tecidos de luxo, obras de arte, moedas: um mundo de riquezas desconhecidas dos nossos pastores tudes € ddesprovides. Sabe-se que ficavam fascinados por elas. A partir do inal do seculo VIN, 0 conteddo das suas tumbas muda radicalmen- I. Alé entdo, 0s jazigos so pouco diferenciadas, ¢ nao conten mais do que objetos pobres ¢ rudimentares. Pelas anos 700, toda- Via, a arte tumular mostra os primeiros sinais da desigualdade sou cial, vaie dizer, da riqueza de alguns poueos que encontraram os retos de ampliar as terra ¢ os rebanhos. Reputam de grande util dade cerear-se, na sua morada ita, de objetos nuierosas e pre. 1050s. A scu modo, os autores antigos atestam essas mudangas, 20 datarem a fundago de Roma em torno de meados do século VItL atribuindo a Rémulo a diviso dos romanos numa aristocracia (08 Patricios) e uma massa popular (a plebe). Jd estavam ali os primet- ros sinais anunciadores de um traumauisiio profundo que kavera v Os rebanhos e a cidade 29 de se instalar. Por aquela época, as caravanas dos mercadores pas- savam ao largo da Roma propriamente dita, contornando-a a uma distancia de aproximadamente cinco a sete quilémetros, a0 norte € a leste. A barcaga de Fidenes possibilita-Ihes transpor 0 obsticulo do Tibre. Mas nos altimos anos do século VI, 0 seu itmeririo altera-se. Duas cidades etruscas, Vulei e Cerveter, haviam sobre- pujado as suas rivais, Chiusi e Orvieto, na lideranea dos fuxos comerciais na diregio da Campania. O centro de gravidade da eco- nomia etrusca desloca-se para ovste. Para as caravanas € para os scus Sécios comanditirtos apresenta-se umta evidéncia: a passagem do Tibre realizar-se-ia com maior ptoveito se se abandonasse 0 velho passo de Fidenes, que dora em diante se situava demasia- damente a leste, e que de qualquer maneira era precario. Uma ilha providencial medeia 0 Tibre, no seu curso inferior, possibilitando a sua passagem através de uma ponte. Essa particularidade geografi- ca sela 0 destino da eidade, que a partir de agora podemos chamar de Roma, Entretanto, a ponte que permitit a criagdo da cidade no pociena franquear esta aos inimigos. Para poder desmonti-la rapi- damente, em caso de ataque, foi construida com pegas de madeira rejuntadas por cavilhas. A par disso, um tabu religioso proibiré por ‘muito tempo que a ponte seja consolidada por meio de cravos de metal, 0 que impediria a montagem des pegas atticuladas. Da mesma forma como 0 bol, a ponte reveste-se de um significado simbélico, cuja importdncia so a custo saberiamos avaliar. Um nto, ‘que para nos ainda permanece obscura, determinava o langamento do alto da ponte, a cada primavera, de 27 bonecas de vime represen- tando homens. Pode ser que se trate da lembranga de antiqiiissimos sacrificios humanos. A ponte possu, no mais, um valor religioso: a palavra latina que designa sacerdote, pontifex, significa exatamente, em termos etimoldgicos, o fazedor de ponte. E 0 proprio nome Roma evoca o mesmo. Ble provem do etrusco r07, Ho. Seja como for, a construgdo daquela ponte determinou para os rnossos pastores o inicio de uma série de aflicdes ¢ o enfrentamento Uy fenduieno que os antropdlogos denominam aculturagio. Obri- gados a conyiverem lado a lado com formas de vida ¢ de desen- volvimento econémico que se apresentavam com um vigor € com uma proximidade nunca dantes experimentados, os pastores latinos sujettam-se a aceitar certas transformagdes radicais, esforgando-se todavia em resguardar suas tradigdes das conseqiiéncias mais gra- ves dessas mutagdes. Poucos povos na historia podem oferecer 0 Roma, democracia impossivel? exempio de uma resisténcia tio determmnada, tio diutumna e to inteligente a uma cultura estrangeira, dotada de atrativos materiais © de uma tecmecidade ncomparavelmente superiores aos seus pro- prios. Veremos ainda como essa fidelidade aos valores, que cles desejavam imutiveis, explica por que os descendentes da anisto- cracia gentilicra rechagavam sempre, e vigorosamente, o regime democratico que porventura thes era oferecido pela Grécia, por :ntermédio dos etruscos. Esses, em todo caso, marcam indubitavelment em Roma, no iiltmo quartel do século VIT, Numericamente inferio- Fes aos latinos € mais preocupados com 0 comércio do que com aventuras militares, ndo procuram destruir pela forga os primitivos inabitantes da localidade que escolheram coma passagem no rnho da Campania. Efetivamente, Roma nfo tem para eles mais do ‘que essa importineta relativa: se acabam por transformar um acaso fem destino, € algo que fazem meonscientemente. Pars eles & api nas cémodo beneficiar-se de uma comunidade urbana semelhante as que ji haviam fundado em toda regio, sem qualquer ambigzio de centrar em Roma um objetivo mats glorioso. Descle esse mo- ‘mento, tudo evoluira rapidamente, Em apenas alguns decénios, a aglomeragdo urbana avoluma-se, a vida desce das colinas para espratar-se ao longo das ribaneeiras do Tibre, recuperadas median- te um labor paciente ¢ engenhoso. A cidade substitut 05 vilatejos. A pedra ¢ os tijolos transfor- mam as cabanas em casas. A pedra assegura uma fundamentagio imais s6lida para sustentar uma superestrutura, Os muros protegem melhor o interior das casas, pois as ramagens entrelagadas e cober~ tas de terra sio substituidas por tijolos compactos e amparadas por montantes de carvalho. © teto recobre-se de telhas, e o interior adquire um luxo novo, representado pelo estuque pintado. Essa verdadetra revolugdio efetua-se em menos de duas gera- gbes, entre 625 e 575 a.C., enquanto o periodo das cabanas havia durado diversos seculos, A arqueologia confirma, uma vez mats, 68 relatos das antares antigas. Com efeitn, ela consigna a escas ‘modificagSes uma data que se situ em torno dos anos 600. Ora, os antigos referem que 0 primeiro tet greco-etrusco, Tarquimo, 0 Antigo, reinou em Roma de 617 a 579 a.C. Essa coincidéneia cro- noldgica inclina-nos a pensar que Roma deve justamente ao di- namisino etrusco 0 seu nascimento como cidade. 4 primera revolueo romana é urbana.’ Os romanos lembrar-se-Ao disso para a sua present ~ Os rebanhos e a cidade sempre. Ao mvés de Roma, eles usam freqiientemente o termo urbs, a cidade, Roma é a cidade por exceléncia ¢ por definigio. ‘Nao so apenas as moradias que se modificam, Aparecem também 6s sinais concretos de uma apropriagao coletiva do espaco, bem como as referéncias a uma comunhio de destino ¢ de tomada de decisdes. A vida organiza-se pela primeita vez is bordas do Tibre, endo mais sobre as colinas, gragas a abertura de um canal de dre= yem. Nasce assim o Forum, simbolo da vocago comercial da nova cidade, A cada nove dias, instala-se ai o mercado: 05 produ- tos da terra so intercambiados com objetos fabricados por arte- stios da eidade ou trazidos pelos mercadores procedentes do norte, do sul ou do oriente. Mas a vida da eidade também paipita por meio das organizagbes responsavets pela elaboracio da sua politi- ca, ¢ as quais se destinam locats bem precisos. Sempre no Férum, 6 Comitium & 0 lugar onde se realizam as assembléias populares, (05 comicios. A drea recebe uma pavimentagdo em pedra, realizada naqueles mesmos anos deeisivos do fim do século VII. A assem= biéia anstocratica, 0 Senado, reime-se no longe dali, num edificio denommado Ciiria, Por fim, a residéncia do rex sacrorum, a Regia, ‘cujo carter religioso guarda a reminiseéncia da época em que Roma vivia sob reis “feiticeiros”, guardifes da magia e intéxpretes, Junto aos homens, da vontade dos deuses. Efetivamente, a Regia ‘comporta um capitel onde se guardam broquéis sagrados, acredi- tando-se que pelo menos um deles tenha provindo do céu; € eles ‘garantem a salvagio de Roma. Essa pequena capela é consagrada a Marie, deus da juventude © da primavera, Outra prova sacral da realeza primitiva é a proximidade da Regia e do templo de Vesta, onde arde © fogo sagrado de Roma, A forma circular do templo perpetua a do altar primitive que encimava o munclus original. No entanto, a percepgo dos deuses por meio da intermediagao real € apenas um reflexo. O mator desses deuses tem a sua residéncia na elevagio que domina o Férum, 0 Capitélio. E ali que impera “Sépiter altissimo e protector”, deus-iuz mdo-europeu, Ele domina a cidade, mantendo-a unida 90 sua protegio ¢ sua autoridade. © templo que o abriga (chamado “Jdpiter Capitotino”) & de feitura decididamente elrusca, e os scus motives calcados na arte jénia comprovam as ligagdes dos etruscos com a Grécia, Na sua ctipula suporta uma carruagem de quatro cavalos; no seu interior, ornamentos de terra- cota, A estatuia do deus & de argila vermelha ¢ revestida do manto bordado do trunfador. 32 Roma, democracia impossivel? Mas a protegiio dos deuses convém também acrescentar a pre- caugdo dos homens. 'No decorrer do século VI a.C., Roma conhece uma expansio demogeéfica ¢ econdmica sem precedentes: tanto no sentido pri prio como no figurado, sua primeira idade de ouro. Riquezas até entio mimaginaveis acumulam-se no seu interior, e seis caminhos convergem para ela, viabilizando um tréfego intenso, O comércio de Roma ¢ essencialmente o de um mercado absorvedor. De 625 a 580, crescem nitidamente as importagdes de cerémica grega. Entre 530 ¢ 500, a cidade importa maior quantidade dessas ceramicas que as mais ativas pracas comerciais italianas. Mas a riqueza atrat a cobiga. Essa é a raz3o pela qual, em meados do século VI, a ct- dade cerca-se de muralhas que a protegem e a delimitam geograf camente: trata-se do “muro sérvio”, cua construcio € atribuida pelos antigos ao rei Sérvio Tiilio. Em menos de um século, portan fo, nasceu uma cidade de primeita grandeza, no lugar em que pas- tavam alguns rebanhos sobre colinas dominando um vale banhado de pintanos ¢ recoberto de brumas. Nao apenas uma cidade, mas uum Estado, pois a urbe enriqueceu-se de instituicdes politicas, de que 0 tijolo ¢ a pedra dao testemunho. Os deuses enfim habitam no seu sei0, para conduzi-la a um destino grandioso. O saneamento do terreno Mas o surgimento da cidade desencadeia outros fendmenos, Os etruscos conseguem vencer, em parte, a adversidade do solo. Somente a aplicagio de uma tecnologia avancada poderia resolver esse problema, Com efeito, as drenagens devem ser profundas, sob pena de ser o remédio pior do que o mal; a abertura de canais a ce aberto s6 conseguiria captar parte das aguas, sem diminuir a umi- dade do subsolo; sulcaria um pouco mais o terreno, favorecendo assim 0 escoamento superficial. Ao contranio, a abertura de gale~ ring profundas proparcianaria 0 seeamenta dng mifos ensnpadins de gua e produziria uma circulagao de ar. O admuiravel trabalho dos engenheiros eiruscos foi-nos plenamente revelado, a partir de 1957, pelas escavacdes da Escola Britimca de Roma. As galerias ceram abertas a partir de pocos verticais, distantes uns trinta metros uns dos outros, e com a profundidade média de cineo metros, se- guindo um tragado continuo, por vezes superior a quatro quiléme- ~ Os rebanhos e a cidade 33 tros. Os mestres elruscos mostram-se excelentes nessas obras de envergadura, As galerias, que eram cavadas por dois homens, um perfurando em direga0 ao outro, coineidiam quase perfeitamente no ponto de encontro. A dificuldade porém era acrescida pelo fato de que nenbum tinel era aberto na horizontal: 0 declive necessario para o escoamento das aguas variava de 1,2% a 2,6%, segundo as necessidades do perfil a ser drenado. Pela primeira vez, a agricul- ‘ura torna-se possivel sobre uma parte do terntério romano. Aqui, mals uma vez, os pastores so obrigados aceitar mudaneas, que todavia jamais encaram como inelutavers. Mas ¢ preciso acentuar que 0 essencial ainda néo foi dito. Até agora sO fale de modificagdes econémices arquiteturais, que determinaram drasticas mudangas a Roma primitiva, em menos de um século, O cenario, porém, anima-se verdadeiramente quan- ddo se Ihe acrescenta toda a sua dimensio humana, O nascimento da cidade s6 for possivel gragas ao afluxo de populagdes, constituindo sem diivida alguma, para os pastores, o traumatismo mator a set enirentado; a determinagio deles & 1mediata ¢ firme, no sentido de dominar esas populagdes. Veremos mais adiante que o grande conflito politico ¢ social, opondo plebe e patrictado, durante os primeiros séculos da Repiiblica, for um fendmeno diretamente ligado aquele afluxo. Quem so pors esses arrivistas? Os recém-chegados Podemos perguntar-nos, com efeito, quem sto os habitantes daquelas casas em que a pecira substituiu o adobe, que se aglome- ram sobre as lajes do Férum ¢ que abrem sulcos em uma terra nova? A despeito do papel preponderante que desempenham.na fundagio de Roma, og etruscos jamais constituem uma etmia nu mericamente dommante. E muito dificil admitir também que as familias arcatcas dos vilarejos dos pastores, estabelecidas no alto das colinae de Rome. tenham abandonado em bloco.o seu antigo habuat, explicando assim 0 volume da populagao da cidade. Ao contrario, como haveremos de ver, tuco leva a admitir que eles nfo se convertem de forma alguma aos valores urbanos ¢ aos novos deuses do comercio, ¢ que s6 toleram o cultivo das suas antigas pastagens na convicgio de que sera uma miciativa efémera, Se 05 etruseos fundam a cidade, se 0s pastores atmos so obrigados a cay Roma, democracia impossivel? acomodar-se a0 novo evento, nem uns nem outros todavia repre- sentam explicagio suficiente para a massa dos seus habitantes. ‘A plebe, resultante da fortuna de Roma, vem portanto de fora." Progressivamente, grupos de pessoas cada vez mais nume- rosos confluem para ela em busca, sendo da riqueza, pelo menos de um relativo bem-estar que nig puderam adquirir na sua terra ou em suas aldeias natais. Em ritmo crescente, em razio do aprofut ‘damento cada vez maior dos lagos comerciais que uniam as gran- des metropoles etruscas do norte da Ttélia a Campana ¢ ds colénias gregas, numerosas ¢ florescentes, das regides do sul (nfio levam elas 0 nome de “Magna Grécia), a Itilia central passa a ser niio sO um lugar de passagem, mas também de fixagdo, mvejado pelas ‘outras comunidades urbanas fundadas pelos etruscos. As possibili- dades de ganho rapido sio abundantes. O desenvolvimento do coméreio ¢ o dinamismo da construgdo civil proporcionam empre- gos, chances, esperangas... ¢ riscos. Numa ¢poca em que no exis- tua qualquer upo de “protego social” para os riscos da vida profissional, ndo podia ser raro o fato de que um individuo tivesse de recomegar mais de uma vez a sua vida. Por outro lado, toda cidade nascente, ¢ com uma prosperidade tao rapida como a de Roma, aparece como um “espetho de calhandras"," cujos reflexos promussores atraem muttos. Para melhor compreendermos 0 fend- meno, por que no evocar os fervilhamentas de Nova York, que atrairam as conhecidas ondas de smigeantes? testemunho dos autores antigos no desmente essa compa- ago, ¢ em todo caso eles insistem sobre a origem estrangeira daguelas primeiras massas romanas. E isso, no meu entendimento, niio se explica a nfo ser pela expansdo econdmica, impulsionada por esse afluxo demogrifico, Mas deixemos a palavia aos antigos. Denite eles, os que mais se debrugaram sobre 0 estudo das onigens da sua cidade concordam certamente num ponto, Os pri meiros dinigentes de Roma team instittido um verdadeiro direito de asilo, resultando em que a urbe atraisse a st uma multidio de individuios das mats variadas condigdes percebendo que muitas cidades da Ilia eram mal governadas tanto por tiranos como por oligarcas, ele (REmulo) empenhou- se em acolher com benevoléncia ¢ em atrair os widviduos dese josos de abandonar suas eidades, individuos esses que constitu am grande numero, rio reparando minimamente nos seus = (Os rebanhos ¢ a cidade 35 infortunios nem no seu nivel de riqueza, cuidando tao-somente que se tratasse de homens livres."* Dionisto de Halicamasso continua dizendo-nos que, a fim de atrair mais imigrantes, R6muto promete conceder-lhes o direito de cidadania ¢ de compartilhar com eles as terras conquistadas, 0 que representa como que o resgate de uma divida publica," Tito Livio faz alusio a esse afluxo de estrangeiros.'? Segundo esse autor, tal agiomerado de individuos, de procedéncia mais ou menos duvido- si, no esta de forma alguma preparado para um regime republica~ no, € menos ainda democritico, felicitando-se entio pelo fato de estar 0 governo de Roma, nessa epoca, confiado a reis. Ha um fato que deve ser sublinhado: essa plebe ¢ a prior sus- peita. Na sua maior parte, nao se compde de elementos honrados, ‘mas muito mais de vagabundos sem credo ¢ som lei. (Pelo menos & isso que dizem as fontes de que dispdem, sob Augusto, Dionisio € Tito Livio para escrever a historia da sua cidade... Contudo, esas fontes, na sua grande matorta, emanam das antigas familias aristo- criticas, das genes, ¢ evidentemente refletem acima de tudo 0 ponto de vista dos circulos tradicionais ¢ conservadores, No seu esforgo para provar que Roma ¢ de orgem grega, Dionisio faz indireta alusio a esse estado de espirito.'°) O discurso que Dionisio atribut a Mettus Fufetius,"“" dirigindo-se ao rei de Roma, Tullus, tmerimina abertamente sem contemplagao esse tipo de individuos: és tendes alterade a pureza do vosso corpo politico, admitindo estrangeiros, sabinos e outros individuos sem patria, vagabun- os e barbaros, e isso em tio grande numero que os elementos bem nascidos da populacio (..) passam a ser reduzidos, esque- léticos, em relaglo aos novos arribados de racas estrangeiras (.) e no podets dizer entre vés que nao tendes permitido que essa turba de imigrantes exercesse um controle sobre 0s hege- ‘10s piiblicos, e que vos mesmos, nascidos nesta cidade, sejais os Senhores e conselheiros wnicos da mesma (.J.!7 8 vossa cidade continua sem ordem e sem disciplina, pois que, fundada ha pou- fo tempo, abriga um conglomerade das mais diferentes racas.3* © que devemos reter de todas essas opinides? Certamente um fato fundamental, valido para todo o resto da historia romana, reve lando 0 quanto, desde © principio, as camadas anstocraticas so rebeldes a qualquer idéia de democracia. Aquoia plebe que aflui 2 Roma na esperanga de participar do surto de riqueza comporta Roma, democracia impossivel? certamente em seu meio aquefes aventureiros de que nos falam os textos. Mas dai a afirmar que ela, na sua totalidadc, no passa de uma turba de bandoleiros vai grande distancia. Acima de tudo, os autores, influenciados pelos preconcettos aristocraticos, esquecem de dizer-nos que essa plebe nao é de forma alguma uma populagzio de assistidos, beneficiando-se passivamente cdo novo mana, AS regalias da cidade, o pio e 0 circo, so um fendmeno que ocorrera muito mais tarde. Naquele momento, ¢ em larga medida a plebe que gera as riquezas de que Roma se pode orgulhar, conquanto seja devido aos etruscos 0 impulso inicial. Com efeita, a tradigao atribur ao rer Numa a organizagio dessa plebe em corporagbes de oficios.” Pouco importa que tenha sido ele ou outro rei o autor dessa micativa, O que conta € que o.elenco daquelas profissées nos mostra uma piebe que ndo ¢ de forma alguma constituida de disoceupati, mas si de trabalhiadores: ourives, carpintetros, tnt reir0s, sapateiros, curtidores, ferveiros, oleiros, flauteitos. O des piezo que thes vota a anistocracia pastoril € apenas o reflexo dos traumatismos que Ihe foram inflingidos pelo aparecimento da c1- dade ¢ de um Estado. Possuimos muitas provas inquestionaveis desse desprezo e da firme vontade de dominagiio que 0 acompa- nha, E esse processo que nos cabe instruir agora, Os fatores econdmicos no explicam tudo. As atitudes men- tals, mesmo que abstratas, nfo deixam de constituir fatos que € preciso levar em conta. Os fillios dos pastores tatinos nfo com- partitham com a picbe ¢ com a minoria etrusca a mesma vistio do universo ¢ da vida. A verdade € que eles nio dispdem de meios proprios para rechacar por completo o mundo que acaba de sureit aos seus pés. A cidade € a plebe estio ai, mas entio trata-se de atenuar os efeitos mais nocivos dessa presenga, ¢ aguardar dias melhores para poder voltar 4 esinta observancia das tradigies pastoris. Preservar sua imtegridade mental, reivindicar um papel dingente no governo da nova comunidade que se estabeleceu as margens do Tibre, assegurar a sua parte na riqueza gerada dentro dos muras da evdade sem confiindir-se com os vagabundos que a integram: ets ai o desafio que se apresenta, de imediato, a uristo- cracia patricia. Para servir de guia na psicanditise da mentalidade pastoril, no hha nenhum fio de Ariadne melhor do que 0 estudo da linguagem politica original.”” Falamos dos patricios e da plebe. Mas 0 que significa isso exatamente? Os rebanhos e a cidade Plebe, povo e protetirios Quando os hustoriadores do fim da Repiiblica tentam definir a onigem do grupo aristocritico dos patricios, dio-nos uma explica- io no minimo obscura: o termo “patrictos” (patric) viria de pa- trem ciere (designar o pai). Dever-se-ia entio imaginar, a contrario, que os individuos da plebe romana permaneciam na ignordincia da identidade dos seus gemitores? Evidentemente, essa Inpétese nfo pode ser levada a sério. Na realidade, a afirmagio constititi um refinado testemunho do apego da aristocracia pastoril 8 perpetuagio dos seus habitos mentais. Patricio niio é aquele que pode indicar quem é 0 seu pat (a matoria dos plebeus também pode fazer 1380). Mas é antes aquele individuo que tem condigdes de invocar a pertnéncia a uma gens, i familia “grande”. A familia, grupo mats restrito que constitut 0 quadro de vida dos piebeus, € algo que nao existe aos ollios dos patrictos. Por isso € que somente eles, 0 patticios, se julgam no dirento de poder “designar o seu pai” (Bsse raciocinio ndo & nico no seu genero. Ele ainda se ve~ rifica hioje em dia no meio dos pastores beduinos da Cirenaica. Ali, nobres sio aqueles que podem provar que descendem de um dos ancestrats fundadores das grandes tribos eirenaicas; 9s que néo 0 conseguem pussam a ser seus subaiternos, ou clientes."*) [Em relagdo a plebe, portanto, nao se faia de familia. Como o seu nome sugere (em grego, plémhos significa massa, populaga), ela mo é mais do que uma multidio desordenada, um aglomerado de vadios ¢ desordeiros de que nos falam os relatos transmaitidos pela ‘meméria artstocritica, Esse pesado juizo de valor encerra conse- qléneias praticas. Os que o sustentam yulgam-se autorizados a exercer 0 papel daquilo que se pode chamar verdadeiramente de classe dommante.” Como ensinam a psicologia e a historia social, s6 se procura dommar aquilo de que se tem medo, mais ou menos inconseiente- ‘mente, Quanto ao mais, a aristocracia tem ainda outra coisa a ce surar a plebe, além do seu género de vide hizarro. A massa que & compde & ameagadora, porque atinge uma cifra que se eleva 20 tripio em relagio a dos cidadios.”* O raciocinio dos patricios ¢ um raciocinio que jé for mutas vezes utilizado, e que conhecemos mutto bem. Assim como no existe uma familia entre os plebeus, rio podem existir, ontre esses imigrantes, profissdes honradas.”* Encontraremos na pena de Cicero, muitos séculos mais tarde, um 38 Roma, democracia impossivel? desptezo vagamente atenuado em relaglo as atividades do comér- 10, sinal evidente da excepcional longevidade daquelas atitudes mentais. Notemos bem que nio se afirma serem essas attvidades profissionais desprovidas de qualquer proveito material apreciavel: € muito mais a sua natureza que se torna objeto de restrigdes. Elas sio por demais e ostensivamente ligadas a0 lucro e a0 comércio, muito distanciadas da terra, prineipaimente da pecuaria, Os ganhos que elas proporcionam siio to desprezivers, tio grave & a poluigao ue provocam, que chegam a criar obsticulos ao proprio reconhie- eimento da exisiéneia de uma fortuna plebéia, Uma vez mais, os Patricios levam efetivamente a légica do seu raetoeinio aos limites do absurdo, ¢ inventam a nogio de “proletirias”. que no futuro remoto tera 0 sucesso que bem conhecemos. Desses proletarios parecia que nada mais (...), de certa maneira, podiamos esperar Co, aus Ss fos (roe) to & a progentura da cidade” a dia € realmente absurda: se a plebe nio tivesse outra fortuna a ndo ser os seus fillios, ninguem hoje falaria de Roma, Compreende-se, por outro lado, que esse singular ponto de vista é coerente com 0 desprezo que 0s patricios votam a plebe Mas nio os taxemos precipitadamente de cegos ¢ aberrantes. Por acaso, hoje em dia, no existem aqueles que dizem das eategorias Socials iuiniides ou dos povos em vias de desenvolvimento que 30 sabem fazer filhos”? Tal expressfo faz. eco aos proferarit dos primeiros romanos : __ Degenerescéncia moral, inferioridade social, indignidade de fortuna ede familia, quando nto su simples mecstenea, a & 9 conceito que pesa sobre a plebe. $6 falta ainda eoroar esse inglitio adit com sus resultant poles: neapacidad civic. Eso de fo seontee vem o menor eseripui, e dentro de uma lia per Contrariamente a0 que em geral se pensa, 03 romanos estio bem longe de considerar © offeio das armas somente como uma honra moral: se aceitam o risco da vida é tambem para proteger os seus bens. Mas que bers? Acabamos de ver que as posses dos ple- bbeus so consideradas nulas pelos patricios. Certo & que, em caso de um ataque, ser-thes-ia relativamente ficil meter as suas comsas de mars valor numa carviola e fugit. Essa alternativa ni existe para ‘0s pastores: como poderiam eles abandonar as suas pastagens © os seus rebanhos? E por que motivo os plebeus lutariam em defesa deles? Dado que nao se pode contar com os plebeus para defender ‘0s rebanhos e a cidade 2” a cidade, assim pensam 0s patricios, aio faz 0 menor sentido Ihes reconhecer 0s direitos politicos decorrentes do stars de cidadio. ‘a cidadania advém do fato de poder ser guerreiro, ¢ nil 0 mverso, ‘como muttas vezes ainda se afirma...° Esse pont nil comporta ‘especulagdes: 0s textos so absolutamente claros.””* ‘A referéncia aos aspectos militares fornece-nos também a have para uma outra distingo de grande importéncia: a distingao fentre povo {popuitis) & plebe. Contrariamente ao que se possa imaginar, as civilizagdes antigas no confundiam jamats povo com populagéio. Na propria Atenas democritiea, 0 povo era apenas uma fragio minonitaria da popwlagio. 4 fortiont, a Roma primitiva, for- temente discriminatorta, no iria misturar 2s duas nogdes. A etimo~ iogia de populus tem sua razz no verbo populor, que significa “assolar, devastar”, aludindo portanto a atividades militares. Além disso, a formula oficial utilizada pelos mats antigos atos juridicos para designar 0 populus era a de populus romans quiritinm, 0 que quer dizer povo romano dos quirites. Eo que significa quir- tes? O termo indo-europeu “viro” designa o homem combatente. Os combatentes juntam-se e formam “Co-vinia”, de que provém cima e quirites. O populus é, portanto, 0 contrario da plebe. Com- poe-se exclusivamente da aristocracia patricia, © sO para esta a fsuerra tem um sentido. Os seus membros sfo os finicos aptos a0 servigo das armas. Se a 150 tudo acrescentarmos a proibigo, imposta aos ple- bus, do casamento com filhos de patricios, perceberemos melhor ainda a amplitude do preconcesto da aristocracia. Tal reptidio en- cama a resposta em face dos transtomos que the foram impostos pelo surgimento da cidade. Essa arstocracta, passando por cima de todo direito privado ¢ pitblico, reyeita aquela massa — aquela n sa primeira — que construu Roma. ‘Mas, a bem da verdade, € preciso dizer que os patricios nfo Joram tio cegos como até aqui pAde parecer. A sua reststéncia nlo se confunde com uma atitude de repiidio sumario, Se por um lado, coma vimos, afirmam a superioridade da sua propria cultura, ¢ no fadmitem dersar 0 governo da cidade nas miios dos soberanos etrus- ‘cos ¢ da plebe, por eies aliciada, de outro lado tampouco desdenham 09s lucros reais, prometidos pela nova niqueza de Roma. © que real- mente importa, em nome de uma etica secular, € que de forma flguma tomem parte na produgio dessas riquezas. Quanto a tirar proveito dessa opuléncia, & algo bem diferente, Nesse contexto, 40 Roma, democracia impossivel? éentram em jogo lutas sociopoliticas, com sua particular expresso institucional, a par da criago de novas formas de dependéneia Pessoal, as assim chamadas relagdes de clientela, Vejamos mais de perto de que se trata Lutas politicas e reformas institucionais: a democra houve que no © periodo em que a cidade conheceu, pela primeira vez, um enorme desenvolvimento, constitut o e:xo em tomo do qual giram as lutas politicas daquele tempo, Prova disso & que os antigos situam 0 inicto do governo dos reis etruscos no ano 616. Ora, sabemos que # cidade nasceu em tomo dos anos 600, Até 0 advenio dos reis ctruscos, portanto, ¢ perfeitamente legitimo falar do dominio dos guintes. Os pastores reinam na qualidade de senhores; os primeiros reis sHo latinos. Duas sio as assembléias quiriirias: os comicios curiats ¢ 0 Senado. Os comicios reiinem os guerreiros em ‘cimas”. compreendendo elementos até a idade limite de 45 anos. Pronunciam-se sobre todas as questées de mteresse maior da vida colettva das familias da aristocracia nativa. Nas sociedades arcat- cas, de instituigdes estatais débers ou mexistentes, os grupos fami= liares sabidamente desempenham o papel de érgios politicos, Isso explica por que, nesses sistemas, atos que para nos simplesmente S€ insereveriam no ambito do direito privado passam a ser fatos politicos. Isso se aplica ao caso da perfilhagio, bem como do tes- tamento, passiveis de modificar o equilibria desses grupos. E por '880 que 05 comicios curiats tém poder de decistio em tais caso: As relacdes que mantém com o ret so de natureza mais sutil, A rea” Jean romana desorienta um pouco o leitor habituado aos ritos de transmissio do poder na historia das monarquias européias. Em Roma nfo existe a apropriagdo familial do trono, nem mesmo uma apropriagdo étnica: latinos, sabinos e etruscos substituem-se natu ralmente ao longo dos séculos. De fato, Roma nao efetuow a jun- fo entre direito divino e direrto dindstico, O termo rev bem como © vocabulirio relativo a fungao real evocam a idéia de uma divegio que deve ser estabelecida corretamente: o rei, antes de exercer o sett poder, deve primewamente determinar o que € direito, A ele compete delimmtar 0 espago sagrado da cidade ¢ proclamar a justi- ga, Somente a existéncia de uma ligagao privilegiada com os deu- 4B osrebanhos ea cde a ses permute-lIhe desempentar esse papel. Por ocasiio do triunfo, semelhantemente @ estitua de Jiptter, ele se faz transportar em carro, vestido de pirpura, com o rosto tingide de sangue, empu- hnhando © cetro de marfim. A evocagtio dos reis carolingios aqui nao ¢ desprovida de sentido. Lembremos uma das suas particulani- dades: so ao mesmo tempo reis ¢ saccrdotes. Essa tradigiio prace- de de uma.pratica biblica, imitando os reis hebreus do Antigo Testamento, Mas podem-se discermr ai também as marcas de outra heranga. © rei romano, como os sacerdotes, € um augure: para dizer 0 que ¢ dircito, deve poder mterrogar os deuses, pedir-lhes sinais, para em seguida interpreti-los. Tais similitudes, com o afastamento de mais de um milhar de anos, niio so acasos. A con- cepgio da realeza, no Ocidente, filia-se a um legado comum da cultura indo-curopéia. Ao rev latino e cristo correspondem 0 raj sinserito, 0 rix celta e 0 rig iriandés, Essas semelhangas termmo- légicas nao so outta corsa senio 0 reflexo de uma visio cosmica comum a todos os povos mdo-europeus. Contudo, se goza dos favores dos deuses, 0 ret romano depende também dos homens. Depende em particular da aristocracta pastoril, a qual exeree um poder sobre ele. Ela toma assento no Senado, uma assembléia ain- ‘da mais conservadora do que os comicios. Seus membros s8o pes- 028 de idade; mais idosos certamente do que 0s participantes dos ‘comicios, onde a idade limite, como vimos, € de 45 anos. Ser se- dor podia inclusive representar um feito de natureza fistea, pots, segundo certos arquedlogos, a expectativa de vida ndo ultrapassa- ra ento os quarenta anos.”” Uma estimativa que deve ser encarada com caulela, pois que se apdia na anilise de vestigios humanos extremamente fragmentarios (uma centena no maximo), sem diivi- da insuficientes para constitu uma amostra representatva, Relati- vamente vellios, os senadores S80 parém homens ainda enérgicos, ‘0 que ajuda a explicar o vigor da resisténcia que opéem a mudan- cas. Entre suas importantes prerrogativas, a da stia intervengio na escolha do rei, mediate a ereatio, devera reter a nossa atengdo. Em que ponia esse ato se msere no procedimento complexa da nomeagio do rei? A ocasizio da vacdneia do trono, cada senacor, pelo espago de cinco dias, assegura 0 poder do interregno, © con- sulta os auspicios para que os deuses déem a conhecer a sua von~ tade. Depois 0 Senado “cria” 0 rei, conferindo-lhe um poder soberano, que a nenhum outro pertencia até esse momento. Apos 1550, reitnem-se 0s comicios para votar a lei sobre o mpertum. Os 2 Roma, democracia impossivel? ddouses intervém peta iitima vez, a fim de ratificar o procedimento e selar o destino do rei, 0 que ocorre durante a cenménia final da inauguratio. Um augure coloca sua mio direita sobre a cabega do rel, invoca Jipiter para que confirme a escolha realizada; em se- guida, 0 préprio rei invoca os auspicios para que o fortalegam na sua fungi, Tudo 1850 nos mostra que o poder real depende em grande ‘medida da vontade dos pastores. Eles so os iinicos a participar nas assembléias em que se realizam os atos religiosos e civis que pre- sidem a constituigio desse poder. Eles comandam 0 proceso da unvestidura, que se desdobra em seqiiéncias suficientemente nume- rosas para que 0 candidato eleito nao seja mvestido, de uma vez so, de um poder excesstvamente absoluto. Enfim, pode-se depreender que eles sabem utilizar, de acordo com os seus interesses, a mar- gem de manobra implicita na parte oficialmente reservada aos deuses — de fato ao acaso ¢ 4 incerteza —, parte essa contida nos diversos rituais de consulta aos auspicios. Uma vez instalado no trono, 0 ret nem por isso esti livre da influéneia do poder dos pastores. O Senado € ouvido em todas as questdes que the devem ser submetidas pelo rei; os costumes das gentes possuem valor juridico, ¢ 0 ret nfo pode transgredi-los; 0 Senado, por fim, deve aprovar as declaragdes de guerra, Essa aris- tocracia pastoril portanto imprime a marea do seu poder sobre as esiruturas potiticas da Roma que se confronta com a cidade, utili- zando em proverto proprio a conotagdo religiosa do poder real, Asociados em duas assembléias, que se baseiam no eritério de nivel de idade, os pastores detém a parte essenctal dos poderes. O surgi- mento da cidade e 0 advento dos reis etruscos introduzirio para eles um periodo de turbuléncias politicas, nas quais deixarao 1m- pregnada a sia determinagao de manter intatos os seus privilégios, ‘As futas politicas engendram as reformas, Elas sio abundantes no século VI. Ao longo de todo 0 periodo do remado etrusco (616- 509 a.C.), 2 aristoeracia pastoril tentaré, num clima resolutamente \gressivo, conservar 0 pavter que ameagava the ser arrebataco pela piebe e pelos novos monarcas. O primeiro ret etrusco, Tarquiinio, 0 Antigo, transformou aqueles reczios em certezas, Introduzit no Senado, templo das tradigdes ancestrais, os representantes da clas- se remediada da nova burguesia resultante do desenvolvimento econémico de Roma. Esses Os rebanhos e a cidade a3 um cufemismo que certamente ofende os ouvidos dos pastores: “os pais das gentes menores” Inicialmente abalada por esse choque sem precedentes, a velha aristocracia chega a uma formula de compromisso com o segundo ret ettusco, Sérvio Tilio. O reinado deste se estende de $78 a 534, tum perfodo em que Roma conhece um desenvolvimento econdmi- co inaudito,-O afluxo de imigrantes € consideravel, eo papel por eles desempenhado nessa expansio ¢ decisive, Continuar 2 exclui- los totalmente das assembieias politicas equivaleria a wr de encon- tro a mais elementar prudéncia. A aristocracia dos pastores & ainda suficrentemente poderosa para impedir que as veformas reais avan- cem além da aparénema de uma democratizagio do regime. Para integrar essas massas perigosas, Sérvio resolve criar uma nova assembléia popular, a dos comicios ditos “centuriais” As suas atribuigdes adequam-se a0 novo regime da cidade-Estado ¢ compe- tem com as dos antigos comicios curiats, traduizindo-se em partici- pagio nas decisées cm matéria de deciaragio de guerra, na assinatura de tratados, votaco de leis, etc. Essa nova assembléia possur uma conotaggo fortemente militar: os cidados devem apre- Sentar-se em armas, ¢ a convocagao é feita ao som da cometa. De acordo com 0s tabus antigos, tais comictos porém devem realizar se fora do espago sagrado do pomoerinm, em um lugar consagrado ‘a0 deus da guerra: 0 Campo de Marte, Sendo soldados, os mem- bros desses novos comictos so automaticamente cidadiios, em virtude do raciocinio que vimos acima. Tal incorporagio s6 foi possivel mediante uma concessto dos pastores diante de uma nova realidade: a constderagio da fortuna plebéia, cuja existéncra jd nto era mais possivel negar. Os comicios centuriais so formados so- bre uma base censitarta, sto é, sobre 0 fundamento de uma avalia- cdo da fortuna de cada cidadio, Essa inovagio poderia ter Geterminado o inicio da democracia romana, Se ela nfo ocorrey, € porque houve um empenho em fimitar-Ihe severamente os efeitos. Aparentemente, todavia, 0 golpe infligido a aristocracia pastor purecit iiemediavel, O edleulo da fortuna doz eidadios, que for~ rece a base para determinar a posigfio de cada um na assembléia censitiria, ndo feito em cabecas de bots ow de earneiros, mas em peso de metal. Ja nfo & mais necessirio possuir rebanhos para ter direitos politicos. Teriam entio os pastores decidido abandonar o poder a esses individuos sem classe e som familia, por eles since- Famente execrados? De forma alguma! Diversos mecanismos ©

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