Você está na página 1de 7

Pandemia, racismo e necropolítica como agravantes na violência

contra a população negra e sua cultura no Brasil.

Andresa Cristina Silva Moreno

O ano de 2020 tem sido um ano de resistência às investidas de um feroz


conservadorismo neoliberal, que nos arrasta rumo ao aprofundamento das
desigualdades, violências e abandono do Estado, fazendo regredir anos de conquistas
sociais e políticas da maioria brasileira que é negra, pobre e trabalhadora. Fato é que nos
encontramos neste cenário bem antes da eleição de Jair Messias Bolsonaro, mas as
piores expectativas tem-se se cumprido com êxito tão logo ele assumiu como
presidente. Já vivíamos um avanço reacionário que atinge principalmente a população
negra, porém, desde a chegada da COVID-19, a ameaça crescente a essa parcela da
sociedade estende seus braços não apenas sobre os corpos negros, mas sobre a cultura, a
identidade e a subjetividade negra no Brasil.

Os acontecimentos do início do mês de agosto oferecem retrato perfeito do que


têm sido, para um país com dimensões continentais, enfrentar uma pandemia sob a
gestão de Bolsonaro e sua equipe. Já consolidado como um dos epicentros da
transmissão do vírus no mundo, o Brasil atingiu no dia 8 a marca de 100 mil mortos por
complicações da COVID-19. No mesmo dia, o presidente, que desde o início assumiu
posturas como: minimizar os efeitos da pandemia e defender o uso de medicamentos
sem atuação cientificamente comprovada, utilizou as redes sociais para criticar o
isolamento social e até mesmo responsabilizar a imprensa pelas consequências da
doença no Brasil: "O tempo e a ciência nos mostrarão que o uso político da Covid por
essa TV trouxe-nos mortes que poderiam ter sido evitadas.” (sic). Sob tais condições,
essa pandemia tem evidenciado as inúmeras desigualdades sociais do país e, sobretudo,
desvelado a estrutura racista que sustenta o Estado Brasileiro.

A trajetória do negro no Brasil foi marcada por 388 anos de escravidão e


desumanização; pela inexistência de políticas de reparação após a abolição; por leis que
indiretamente impediam o acesso à cidadania; por políticas oficiais de Estado para o
branqueamento da população; pela criminalização de suas manifestações culturais e
religiosas; por um projeto de nação forjado no Estado Novo sob ideais eugenistas; pelo
mito da democracia racial; pelo abandono do Estado que resultou em um povo vivendo
hoje como protagonista das estatísticas de violência e desigualdade.

Segundo pesquisa do IBGE de 2015, 54% da população se declara negra; da


parcela mais pobre do país, 3 em cada 4 são negros; apenas 12,8% dos negros concluiu
o ensino superior (antes da política de cotas eram apenas 6%), enquanto 27% da
população branca concluiu; o analfabetismo no país é 3 vezes maior entre negros;
negros representam dois terços da população carcerária; de 2003 a 2015 a violência
contra mulheres negras aumentou 54% ao passo que a violência contra as mulheres
brancas diminuiu 10,2%; o percentual de negros assassinados é 132% maior que o de
brancos assim como 71,5% dos jovens assassinados no Brasil são negros. Portanto,
pode-se concluir que, tirando a presença negra das estatísticas, talvez o Brasil nem seja
tão violento assim. Tais números delineiam o racismo como estrutura e sobre isso Silvio
Almeida (2018) diz:

“O racismo não é um ato ou um conjunto de atos e tampouco se


resume a um fenômeno restrito às práticas institucionais; é, sobretudo,
um processo histórico e político em que as condições de
subalternidade ou de privilégio de sujeitos racializados é
estruturalmente reproduzida”.

Em sua obra “O que é racismo estrutural?”, o autor faz uma análise profícua
deste fenômeno, desde suas raízes e processos históricos, passando pelas diferentes
concepções de racismo e suas dinâmicas estruturantes, através de uma observação
minuciosa das principais instâncias sociais, sejam elas: ideológica, política, jurídica e
econômica.

Compreender o racismo para além das práticas individuais e situá-lo como


elemento crucial para o surgimento da modernidade, do capitalismo e da cultura
ocidental é essencial para os debates sobre desigualdades sociais. Racismo estrutural
não se configura como uma patologia individual ou social, ou como uma anormalidade,
mas sim como uma forma de compreensão e normalização das relações desiguais,
engendradas nos alicerces definidos pelo Estado em diferentes esferas ao longo da
história e que organiza o modo de estrutura social, garantindo sistematicamente a
desigualdade entre grupos raciais no acesso à dignidade e cidadania.
Outro conceito que dialoga perfeitamente com a concepção de racismo estrutural
foi cunhado por Achille Mbembe (2016), intelectual camaronês, e nomeado de
necropolítica: uma política da morte onde, resumidamente, o Estado tem o poder de
decidir sobre a vida e a morte da população. Fazendo uma reflexão sobre soberania, o
autor propõe uma visão complementar aos conceitos de biopolítica e biopoder, de
Foucault (1997) e pressupõe que na necropolítica “deixar morrer” é aceitável e
praticado a partir das tecnologias de controle do biopoder. Quem morre, neste caso, são
aqueles que já se encontram em risco de morte permanente devido ao parâmetro
definidor primordial da raça. Em suas palavras:

(...) a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no


poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer.
Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania,
seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle
sobre a mortalidade e definir a vida como implantação e manifestação
de poder.

Isto posto, é possível verificar que negros e negras, sob impacto do racismo
estrutural e da necropolítica, apresentam os piores indicadores sociais e de saúde,
figuram os maiores índices entre pessoas com enfermidades crônicas e padecem de
doenças derivadas do estresse e sofrimento psíquico causados pelo racismo.

Para amalgamar estes dois conceitos com a atual conjuntura, a melhor maneira é
nos voltarmos novamente para os dados estatísticos, neste caso da pandemia. Em nota
técnica assinada por 14 pesquisadores do NOIS (Núcleo de Operações e Inteligência em
Saúde) da PUC-RIO, após analisar 29.933 "casos encerrados" de covid-19 (com óbito
ou recuperação), dos 8.963 pacientes negros internados, 54,8% morreram nos hospitais.
Entre os 9.988 brancos, a taxa de letalidade foi de 37,9%. A maior diferença foi entre
pessoas de 30 a 39 anos, em que negros têm 2,5 vezes mais chances de morrer em uma
internação por SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) do que brancos internados.
O agravante de letalidade entre brancos se dá a partir dos 70 anos enquanto entre negros
isso já ocorre a partir dos 60 anos. Ainda de acordo com a nota técnica da PUC-Rio,
negros apresentam também maior índice de óbitos em todos os níveis de escolaridade,
negros sem escolaridade morrem quatro vezes mais do que brancos com nível superior.
Outro fator importante é a impossibilidade de cumprir com o devido isolamento social,
visto que negros e negras ocupam trabalhos subalternos que não podem parar,
necessitam se aglomerar no transporte público para se deslocarem ou estão
desempregados tentando ganhar a vida como autônomos em atividades nas ruas.

Já era de se esperar que uma crise global dessa proporção fosse incidir com
maior brutalidade nas camadas mais vulneráveis, que há muito vivem em situação de
emergência. Vidas negras são as que já se encontram continuamente ameaçadas, e são
essas que o Estado “deixa morrer” para que o projeto capitalista predatório siga seu
curso, mantendo o status quo. São sobre elas que Achille Mbembe se refere.

Ademais, podemos levar a discussão sobre pandemia e racismo um pouco além


das mortes de corpos negros. Para tanto é necessário falar sobre epistemicídio como
braço do racismo que representa a morte simbólica da presença africana no Brasil. A
filósofa Sueli Carneiro (2005), em sua tese de doutorado, define que epistemicídio se
configura:

“(...) pela negação aos negros da condição de sujeitos de


conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento
das contribuições do Continente Africano e da diáspora africana ao
patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do
embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão
escolar. A esses processos denominamos epistemicídio”.

A colonização, a escravidão negra e a propagação da cultura ocidental, do


capitalismo e da modernidade se deram, e se dá, sob o genocídio do povo negro, de sua
história, cultura, espiritualidade, saberes, identidade e subjetividade. A construção do
saber ocidental, da ciência moderna e do que é aceito como conhecimento válido, foi
feita sob apagamento dos diversos modos de produzir conhecimentos sobre o mundo,
sejam eles africanos, orientais ou indígenas. O epistemicídio é grande fator que mantém
a população negra brasileira ignorante de suas próprias raízes, das bases culturais que a
constitui e do legado deixado pelas culturas tradicionais africanas como referência de
mundo. A filosofia africana como sustentáculo de seu modo civilizatório é
diametralmente oposta à filosofia ocidental, e faz parte de uma unidade cultural da
grande maioria de povos tradicionais do continente, inclusive dos que foram trazidos
para terras brasileiras¹.

¹Para saber mais sobre filosofia africana e unidade cultural dos povos tradicionais africanos indico o autor
senegalês Cheik Anta Diop, a autora norte-americana Marimba Ani e os autores brasileiros Renato
Nogueira e Katiúsca Ribeiro.
Tais valores são latentes na nossa cultura, em nosso modo de existir. A África
está em nossa língua, em nossa arte, na dança, na intelectualidade, no futebol, na
música, na capoeira, no candomblé, no samba de roda, no maracatu, na alimentação, nos
hábitos de higiene, nos valores comunitários. Tudo isso, e muito mais, é resistência do
modo de ser e existir africano em território latino-americano. Porém, a perspectiva que
esteve por séculos na educação tradicional, e que ainda se faz presente no imaginário
brasileiro, é de que os africanos era selvagens, com hábitos primitivos, viviam sempre
em tribos que guerreavam entre si, e que graças ao homem branco pôde conhecer Deus,
a civilização e o progresso.

O filósofo e professor da UFRJ Renato Nogueira, em entrevista ao canal Alma


Preta (2017), traz como exemplo prático de epistemicídio o apagamento do domínio e
manuseio do ferro por parte de alguns povos Bantu, trazidos para o Brasil: “No Rio de
Janeiro, muitas escravizadas e escravizados de origem Bantu é que construíram
aquedutos, que fizeram o trabalho de botânica na construção e na produção da
organização da Floresta da Tijuca. Mas eles não são vistos como capazes de fazer, mas
como a mão que executa”.

Se em tempos de pandemia negros estão entre os que mais morrem,


consequentemente, essas resistências culturais, filosóficas e civilizatórias negras
também estão sob ameaça afinal, os mestres e mestras da cultura popular, baluartes e
guardiões desses saberes, também estão sob ameaça, afastados das práticas culturais que
os mantinham e mais vulneráveis ao vírus e suas consequências. Em Goiânia é possível
encontrar mestres de Capoeira Angola trabalhando como entregadores de aplicativo,
distribuindo panfletos nos sinais, tendo que entregar academias e espaços ocupados pela
cultura, passando por inúmeras dificuldades em conseguir o auxílio emergencial
oferecido pelo Estado, sem mencionar todos os riscos de saúde já citados anteriormente.

A oralidade é um valor ancestral africano e é fundamento para sobrevivência da


subjetividade negra, assim, a preservação da cultura se dá pela transmissão oral e
vivencial, principalmente nas comunidades, onde a escuta, o fazer e o estar presente são
essenciais e se movimentam numa circularidade entre todos os sujeitos. Outro valor
importante é o da senhoridade, da sacralidade dos mais velhos e de sua experiência que
garante a perpetuação epistêmica negra, num diálogo constante e circular com os mais
novos, garantindo assim as atualizações necessárias de acordo com cada nova realidade,
sem nunca perder os valores fundantes.

Numa tentativa de aplacar os efeitos do abandono do Estado e do descaso pela


cultura popular, foi organizada pela comunidade envolvida com as manifestações
culturais em Goiânia, uma campanha chamada “IÊ TODOS OS MESTRES E
MESTRAS”, composta por diversas ações independentes com objetivo de arrecadar
fundos para compartilhar entre os mestres e mestras das tradições populares na cidade.
Isso expressa outro valor essencial africano, o da coletividade, em que cada indivíduo
não pode existir sozinho, é responsável por toda comunidade assim como a comunidade
é responsável por todos os indivíduos. UBUNTU, que quer dizer “sou porque nós
somos”.

Por fim, o racismo estrutural e a necropolítica operando durante a pandemia da


COVID-19 no Brasil não apenas põem em risco as vidas da população negra, mas
aumentam a necessidade de resistência em prol dos zeladores dos valores africanos e
preservação de suas manifestações culturais que, muitas vezes, dão sentido à existência
de pessoas negras em um país ainda tão profundamente racista. Tal resistência ocorre há
séculos, desde a chegada dos invasores em solo africano. O exílio e a colonização não
conseguiram extinguir a ancestralidade negra no Brasil, vide as centenas de quilombos
formados, as estratégias de perpetuação através de sincretismos e disfarces, entre outras
formas de resistência em tempos muito mais brutais. Porém, em atuais circunstâncias, o
isolamento social e a péssima gestão dos que detém o poder governamental tornam
ainda mais complicada essa resistência em tempos de agentes nocivos invisíveis como o
novo corona vírus.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte-MG:


Letramento, 2018.

AZEVEDO, Marcelise. Pandemia do coronavírus acentua o racismo estrutural no


Brasil. Carta Capital, 2020. Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/opiniao/pandemia-do-coronavirus-acentua-o-racismo-
estrutural-no-brasil/. Acesso em 04 de agosto de 2020.

BENÍCIO, Jeff. Bolsonaro culpa Globo por parte das 100 mil mortes por covid.
Terra, 2020. Disponível em:
https://www.terra.com.br/diversao/tv/blog-sala-de-tv/bolsonaro-culpa-globo-por-parte-
das-100-mil-mortes-por-covid,f04cfc32283866b910e665d00750757cwhs77dvv.html.
Acesso em 10 de agosto de 2020.

BORGES, Pedro. Epistemicídio, a morte começa antes do tiro. Alma Preta, 2018.
Disponível em: https://www.almapreta.com/editorias/realidade/epistemicidio-a-morte-
comeca-antes-do-tiro. Acesso em 05 de agosto de 2020.

FOUCAULT, M. L. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

GRAGNANI, Juliana. Por que o coronavírus mata mais as pessoas negras e pobres
no Brasil e no Mundo. BBC News, 2020. Disponivel em:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53338421. Acesso em 04 de agosto de 2020.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3 ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.

CARNEIRO, Aparecida Sueli; FISCHMANN, Roseli. A construção do outro como


não-ser como fundamento do ser. 2005.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

Você também pode gostar