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O bem é a vida, o desenvolvimento, o cresci-

mento, a plenitude, a felicidade. O mal é a morte, o


retrocesso, a decadência, o imobilismo, a falta de ho-
rizonte e de esperança. Segunda parte
O fracasso ético é a expressão do mal na vida.
Não é algo abstracto, é o negar-se a aceitar a própria PESSOA E DIGNIDADE: PERSPECTIV AS ÉTICAS
realidade da sua existência. O saudável sentimento
de culpa leva a corrigir erros, a mudar. Sem reconhe-
Pessoa e dignidade, problemática fundamen-
cimento da culpa não existiria possibilidade alguma
tal da ética, vai ser aqui desenvolvida em cinco alí-
de transformação nem de mudança.
neas: 1. Pessoa, quem és tu? 2. Pessoa e dignidade;
O mal ético é fundamentalmente uma ofensa à
3. "Quem" é pessoa? 4. A perspectiva cristã; 5. Pes-
pessoa, uma despersonalização, uma desumanização
soa, ética e técnica 29 •
(e não apenas uma transgressão de normas). Quando
o homem ou a mulher se nega a seguir o lento pro- 29
Bibliografia: Battista MONDIN, L'uomo: chi e? Ele-
menti di antropologia filosofica, Editrice Massimo, Milano, 7ª
cesso da sua própria construção pessoal comete uma
edição revista e aumentada, 1993 (trad. port.: O homem, quem
ofensa contra si mesmo. É uma espécie de ataque a é ele? Elementos de antropologia filosófica, Paulus, São Paulo,
8
1996: trad. da 2ª ed. ital., não inclui o capítulo sobre o homo
todo o humano, é um dano sério no processo de des- axiologicus, pp. 284-299: A pessoa humana); CONSELHO NACIO-
NALDEÉTICAPARAASCIÊNOASDA VIDA,Documento de traba-
envolvimento da pessoa na sua vertente individual lho 26/CNECV/99 - Reflexão ética sobre a dignidade humana
ou colectiva, de uma certa negação daquelas coisas (5.Janº1999), em http:/ /www.cnecv.gov.pt./pdfs/digh~m.p_df;
H. Tristram ENGELHARDT,The Foundations of Bwethzcs,
que podem constituir uma vida feliz. Oxford University Press lnc., New York, 21996 (trad. port.:
Fundamentos da bioética, Edições Loyola, São Paulo, 1998, pp.
169-196: O lugar especial das pessoas); Peter SINGER,Practical

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O bem é a vida, o desenvolvimento, o cresci-
mento, a plenitude, a felicidade. O mal é a morte, o
retrocesso, a decadência, o imobilismo, a falta de ho-
rizonte e de esperança. Segunda parte
O fracasso ético é a expressão do mal na vida.
Não é algo abstracto, é o negar-se a aceitar a própria PESSOA E DIGNIDADE: PERSPECTIV AS ÉTICAS
realidade da sua existência. O saudável sentimento
de culpa leva a corrigir erros, a mudar. Sem reconhe-
Pessoa e dignidade, problemática fundamen-
cimento da culpa não existiria possibilidade alguma
tal da ética, vai ser aqui desenvolvida em cinco alí-
de transformação nem de mudança.
neas: 1. Pessoa, quem és tu? 2. Pessoa e dignidade;
O mal ético é fundamentalmente uma ofensa à
3. "Quem" é pessoa? 4. A perspectiva cristã; 5. Pes-
pessoa, uma despersonalização, uma desumanização
soa, ética e técnica 29 •
(e não apenas uma transgressão de normas). Quando
o homem ou a mulher se nega a seguir o lento pro- 29
Bibliografia: Battista MONDIN, L'uomo: chi e? Ele-
menti di antropologia filosofica, Editrice Massimo, Milano, 7ª
cesso da sua própria construção pessoal comete uma
edição revista e aumentada, 1993 (trad. port.: O homem, quem
ofensa contra si mesmo. É uma espécie de ataque a é ele? Elementos de antropologia filosófica, Paulus, São Paulo,
8
1996: trad. da 2ª ed. ital., não inclui o capítulo sobre o homo
todo o humano, é um dano sério no processo de des- axiologicus, pp. 284-299: A pessoa humana); CONSELHO NACIO-
NALDEÉTICAPARAASCIÊNOASDA VIDA,Documento de traba-
envolvimento da pessoa na sua vertente individual lho 26/CNECV/99 - Reflexão ética sobre a dignidade humana
ou colectiva, de uma certa negação daquelas coisas (5.Janº1999), em http:/ /www.cnecv.gov.pt./pdfs/digh~m.p_df;
H. Tristram ENGELHARDT,The Foundations of Bwethzcs,
que podem constituir uma vida feliz. Oxford University Press lnc., New York, 21996 (trad. port.:
Fundamentos da bioética, Edições Loyola, São Paulo, 1998, pp.
169-196: O lugar especial das pessoas); Peter SINGER,Practical

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técnica (homofaber), ao divertimento (homo loquens),à
religião (homo religiosus) e à sua dimensão ética (homo
1. Pessoa, quem és tu? axiologicus)3°.
Para designar a singularidade e a excepciona-
A antropologia filosófica faz emergir a singu- lidade do ser humano, a antropologia filosófica utili-
laridade e a excepcionalidade do ser humano. O ho- za o termo pessoa.Ao contrário de todas as coisas que
mem supera todas as coisas que o cercam. Distingue- o circundam, o homem é pessoa.
-se do animal graças à forma como se relaciona com Battista Mondin, no capítulo da sua antropo-
o corpo que ele é (homo somaticus), à forma criativa logia acerca da pessoa humana, começa por estudar
como vive (homo vivens ), à forma como pensa e co- o problema da pessoa na história da filosofia. Sendo
nhece (homo sapiens); graças à liberdade (homo valens), estranho à filosofia grega, o conceito de pessoa como
31
à linguagem (homo loquens), à sociabilidade (homo individualidade é introduzido pelo cristianismo • O
socialis), à cultura (homo culturalis), ao trabalho e à primeiro exame rigoroso deste conceito foi realizado
2 por Santo Agostinho. Uma das mais célebres defini-
Ethics, Cambridge University Press, Cambridge, 1993 (trad.
port.: Ética prática, Gradiva, Lisboa, 2000, pp. 129-153: Tirar a ções de pessoa é a de Severino Boécio: a pessoaé uma
vida: os animais); CONCÍLIOVATICANOII, Constituição pasto-
ral "Gaudium et spes" sobre a Igreja no mundo actual (Roma, 7 substância individual de natureza racional.
de Dezembro de 1965) - nn. 12-22: A dignidade da pessoa
humana; nn. 23-32: A comunidade humana; CONSELHO 3(J Cf. B. MONDIN, L 'uomo: chi e? cit. (trad. port.: O
NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIASDA VIDA, Relatório- homem, quem é ele?).
-parecer (15/CNECV/95) sobre a experimentação do embrião, em 31
A introdução do termo pessoa na reflexão cristã
Documentação, vol. III, Presidência do Conselho de Ministros, deve-se a Tertuliano (cf. Giovanni LAURIOLA,La persona:
Lisboa, 1996, pp. 95-108. Esta é a bibliografia principal; utili- storia di un concetto, em LAURIOLAGiovanni, Diritti umani e
zaremos outros textos sempre que considerarmos oportuno e libertà in Duns Scoto, Editrice A. G. A., Alberobello, 2000,
até mesmo necessário. 131).

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técnica (homofaber), ao divertimento (homo loquens),à
religião (homo religiosus) e à sua dimensão ética (homo
1. Pessoa, quem és tu? axiologicus)3°.
Para designar a singularidade e a excepciona-
A antropologia filosófica faz emergir a singu- lidade do ser humano, a antropologia filosófica utili-
laridade e a excepcionalidade do ser humano. O ho- za o termo pessoa.Ao contrário de todas as coisas que
mem supera todas as coisas que o cercam. Distingue- o circundam, o homem é pessoa.
-se do animal graças à forma como se relaciona com Battista Mondin, no capítulo da sua antropo-
o corpo que ele é (homo somaticus), à forma criativa logia acerca da pessoa humana, começa por estudar
como vive (homo vivens ), à forma como pensa e co- o problema da pessoa na história da filosofia. Sendo
nhece (homo sapiens); graças à liberdade (homo valens), estranho à filosofia grega, o conceito de pessoa como
31
à linguagem (homo loquens), à sociabilidade (homo individualidade é introduzido pelo cristianismo • O
socialis), à cultura (homo culturalis), ao trabalho e à primeiro exame rigoroso deste conceito foi realizado
2 por Santo Agostinho. Uma das mais célebres defini-
Ethics, Cambridge University Press, Cambridge, 1993 (trad.
port.: Ética prática, Gradiva, Lisboa, 2000, pp. 129-153: Tirar a ções de pessoa é a de Severino Boécio: a pessoaé uma
vida: os animais); CONCÍLIOVATICANOII, Constituição pasto-
ral "Gaudium et spes" sobre a Igreja no mundo actual (Roma, 7 substância individual de natureza racional.
de Dezembro de 1965) - nn. 12-22: A dignidade da pessoa
humana; nn. 23-32: A comunidade humana; CONSELHO 3(J Cf. B. MONDIN, L 'uomo: chi e? cit. (trad. port.: O
NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIASDA VIDA, Relatório- homem, quem é ele?).
-parecer (15/CNECV/95) sobre a experimentação do embrião, em 31
A introdução do termo pessoa na reflexão cristã
Documentação, vol. III, Presidência do Conselho de Ministros, deve-se a Tertuliano (cf. Giovanni LAURIOLA,La persona:
Lisboa, 1996, pp. 95-108. Esta é a bibliografia principal; utili- storia di un concetto, em LAURIOLAGiovanni, Diritti umani e
zaremos outros textos sempre que considerarmos oportuno e libertà in Duns Scoto, Editrice A. G. A., Alberobello, 2000,
até mesmo necessário. 131).

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B. Mondin não faz referência ~ definição de porque nada nem ninguém a pode substituir na tare-
Ricardo de S. Vítor: existência incomunicável de nature- fa inadiável de responder por si mesma e pelos ou-
za intelectual. Foram as definições de Boécio e de Ri- tros. Todas as relações em que ulteriormente se ve-
cardo de S. Vítor que marcaram a reflexão filosófica e nha a comprometer, sejam elas de ordem psicológica,
teológica dos grandes autores da época escolástica: S. social, ética ou religiosa, todas as iniciativas de aber-
32
Boaventura, S. Tomás e Duns Escoto • Para S. Tomás, tura e comunicação a que se entregue no exercício
a pessoa significa o que de mais nobre há no universo, isto legítimo da sua inteligência e liberdade trazem a
é, o subsistente de uma natureza racional. marca da sua irredutível incomunicabilidade ontoló-

B. Mondin também não faz referência à defini- gica: em tudo quanto diz e faz, a pessoa é sempre

ção de Duns Escoto que entende a pessoa como subs- original ou incomunicável, quer dizer, única e irrepe-

tância incomunicável de natureza racional, e como "ul- tível. Existência relativamente absoluta, a pessoa é
33
tima solitudo". Entender a pessoa como incomunicável, insubstituível. Daí a sua eminente dignidade" •

significa considerá-la inédita, original, única e irrepe- B. Mondin continua as suas notas históricas
tível, não comum, independente: acerca do conceito de pessoa referindo-se a Descar-

"Sabendo-se independente e autónoma, se- tes, Kant, Mounier, Marcel, Nédoncelle, Ricoeur,

nhora de si mesma, a pessoa desperta para a sua Scheler, Guardini, Buber, Heidegger, entre outros.

condição ontológica de ultima solitudo. Ultima, por-


que topou o fundo, o limite de si mesma. Solitudo,

32
S. Boaventura e S. Tomás optam pela definição de Manue 1 Barbosa da Costa FREITAS, Natureza e fun-
33

Boécio, enquanto que Escoto prefere a de Ricardo de S. Vítor damento ontológico da pessoa em Duns Escoto, em Revista Portu-
(cf. G. LAURIOLA, La persona cit., 135). guesa de Filosofia 50 (1994) 162.

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B. Mondin não faz referência ~ definição de porque nada nem ninguém a pode substituir na tare-
Ricardo de S. Vítor: existência incomunicável de nature- fa inadiável de responder por si mesma e pelos ou-
za intelectual. Foram as definições de Boécio e de Ri- tros. Todas as relações em que ulteriormente se ve-
cardo de S. Vítor que marcaram a reflexão filosófica e nha a comprometer, sejam elas de ordem psicológica,
teológica dos grandes autores da época escolástica: S. social, ética ou religiosa, todas as iniciativas de aber-
32
Boaventura, S. Tomás e Duns Escoto • Para S. Tomás, tura e comunicação a que se entregue no exercício
a pessoa significa o que de mais nobre há no universo, isto legítimo da sua inteligência e liberdade trazem a
é, o subsistente de uma natureza racional. marca da sua irredutível incomunicabilidade ontoló-

B. Mondin também não faz referência à defini- gica: em tudo quanto diz e faz, a pessoa é sempre

ção de Duns Escoto que entende a pessoa como subs- original ou incomunicável, quer dizer, única e irrepe-

tância incomunicável de natureza racional, e como "ul- tível. Existência relativamente absoluta, a pessoa é
33
tima solitudo". Entender a pessoa como incomunicável, insubstituível. Daí a sua eminente dignidade" •

significa considerá-la inédita, original, única e irrepe- B. Mondin continua as suas notas históricas
tível, não comum, independente: acerca do conceito de pessoa referindo-se a Descar-

"Sabendo-se independente e autónoma, se- tes, Kant, Mounier, Marcel, Nédoncelle, Ricoeur,

nhora de si mesma, a pessoa desperta para a sua Scheler, Guardini, Buber, Heidegger, entre outros.

condição ontológica de ultima solitudo. Ultima, por-


que topou o fundo, o limite de si mesma. Solitudo,

32
S. Boaventura e S. Tomás optam pela definição de Manue 1 Barbosa da Costa FREITAS, Natureza e fun-
33

Boécio, enquanto que Escoto prefere a de Ricardo de S. Vítor damento ontológico da pessoa em Duns Escoto, em Revista Portu-
(cf. G. LAURIOLA, La persona cit., 135). guesa de Filosofia 50 (1994) 162.

46 47
Sublinhe-se o conceito de Kant: a pessoacomofim em si sas não o são: o homem é dotado de espírito, enquan-
mesma34• 36
to as coisas dele são carentes" •
No segundo momento do seu estudo, B. Mon- É pela autotranscendência e pela espirituali-
din refere-se à pessoa como princípio de autocons- dade que a pessoa coloca a questão do sentido dos
ciência, de comunicação e de transcendência: seus comportamentos (a questão ética). A propósito,
"A pessoa é constituída por quatro elementos diz Kant, na conclusão da Crítica da razãoprática:
principais: autonomia quanto ao ser, autoconsciên- "Duas coisas enchem o ânimo de admiração e
cia, comunicação e autotranscendência. Assim, po- veneração sempre novas e crescentes, quanto mais
demos definir a pessoa como um indivíduo dotado de frequentemente e com maior assiduidade delas se
autonomia quanto ao ser, de autoconsciência,de comuni- ocupa a reflexão: O céu estreladosobre mim e a lei moral
caçãoe de autotranscendência.(...) em mim. Não as hei-de procurar e simplesmente pre-
De todos esses elementos, o que ilustra melhor sumir a ambas como envoltas em obscuridades ou no
a grandeza da pessoa humana e faz entender mais transcendente, fora do meu horizonte; vejo-as peran-
profundamente as suas características é o último, a te mim e religo-as imediatamente com a consciência
5
a u totranscendência" 3 • da minha existência. A primeira começa no lugar que
A autotranscendência, a principal característi- eu ocupo no mundo exterior dos sentidos e estende a
ca da pessoa, "é sinal de espiritualidade e essa per- conexão em q~e me encontro até ao imensamente
tence somente ao homem. E aqui está, portanto, a grande, com mundos sobre mundos e sistemas de
razão profunda pela qual o homem é pessoa e as coi- sistemas, nos tempos ilimitados do seu periódico

34
Voltaremos aqui na alínea seguinte.
35 36
B. MONDIN, O homem, quem é ele? cit., 297. B. MONDIN, O homem, quem é ele? cit., 298.

48 49
4
Sublinhe-se o conceito de Kant: a pessoacomofim em si sas não o são: o homem é dotado de espírito, enquan-
mesma34• 36
to as coisas dele são carentes" •
No segundo momento do seu estudo, B. Mon- É pela autotranscendência e pela espirituali-
din refere-se à pessoa como princípio de autocons- dade que a pessoa coloca a questão do sentido dos
ciência, de comunicação e de transcendência: seus comportamentos (a questão ética). A propósito,
"A pessoa é constituída por quatro elementos diz Kant, na conclusão da Crítica da razãoprática:
principais: autonomia quanto ao ser, autoconsciên- "Duas coisas enchem o ânimo de admiração e
cia, comunicação e autotranscendência. Assim, po- veneração sempre novas e crescentes, quanto mais
demos definir a pessoa como um indivíduo dotado de frequentemente e com maior assiduidade delas se
autonomia quanto ao ser, de autoconsciência,de comuni- ocupa a reflexão: O céu estreladosobre mim e a lei moral
caçãoe de autotranscendência.(...) em mim. Não as hei-de procurar e simplesmente pre-
De todos esses elementos, o que ilustra melhor sumir a ambas como envoltas em obscuridades ou no
a grandeza da pessoa humana e faz entender mais transcendente, fora do meu horizonte; vejo-as peran-
profundamente as suas características é o último, a te mim e religo-as imediatamente com a consciência
5
a u totranscendência" 3 • da minha existência. A primeira começa no lugar que
A autotranscendência, a principal característi- eu ocupo no mundo exterior dos sentidos e estende a
ca da pessoa, "é sinal de espiritualidade e essa per- conexão em q~e me encontro até ao imensamente
tence somente ao homem. E aqui está, portanto, a grande, com mundos sobre mundos e sistemas de
razão profunda pela qual o homem é pessoa e as coi- sistemas, nos tempos ilimitados do seu periódico

34
Voltaremos aqui na alínea seguinte.
35 36
B. MONDIN, O homem, quem é ele? cit., 297. B. MONDIN, O homem, quem é ele? cit., 298.

48 49
4
movimento, do seu começo e da sua duração. A se- condições e limites desta vida, mas se estende até ao
37
gunda começa no meu invisível eu, na minha perso- infinito" •

nalidade, e expõe-me num mundo que tem a verda- B. Mondin refere-se ainda, no último parágra-
deira infinidade, mas que só se revela ao entendi- fo do seu estudo, à autotranscendência e à dinamici-
mento, e com o qual (e assim também com todos es- dade como propriedade da personalidade:
ses mundos visíveis) me reconheço numa conexão, "A pessoa não é um resultado já belo e adqui-
não simplesmente contingente, como além, mas uni- rido desde o nascimento, mas é, antes, uma mina
versal e necessária. O primeiro espectáculo de uma riquíssima de possibilidades, razão pela qual a pes-
38
inumerável multidão de mundos aniquila, por assim soa é, em larga medida, uma conquista" •

dizer, a minha importância como criatura animal que É de introduzir aqui a distinção entre pessoa e
deve restituir ao planeta (um simples ponto no uni- personalidade. A pessoa é a personalidade em po-
verso) a matéria de que era feita, depois de, por um tência, enquanto que a personalidade é a pessoa em
breve tempo (não se sabe como) ter sido provida de acto. Assim, pessoa é a substância, a estrutura ontoló-
força vital. O segundo, pelo contrário, eleva infinita- gica do homem, enquanto que a personalidade é o
9
mente o meu valor como inteligência por meio da exercícioactual dos actos pessoais3 •

minha personalidade, na qual a lei moral me desco-


bre uma vida independente da animalidade e mesmo
de todo o mundo sensível, pelo menos, tanto quanto 37
Immanuel KANT, Kritik der praktischen Vernunft
(trad. port.: Crítica da razão prática, Edições 70, Lisboa, 1997,
se pode inferir da destinação conforme a um fim da 183-184).
38
minha existência por essa lei, que não se restringe a B. MONDIN, O homem, quem é ele? cit., 298.
39
Cf. EDITORIALE,"Chi" e persona? Persona umana e
bioetica, em La Civiltà Cattolica IV (1992) 555.

50 51
movimento, do seu começo e da sua duração. A se- condições e limites desta vida, mas se estende até ao
37
gunda começa no meu invisível eu, na minha perso- infinito" •

nalidade, e expõe-me num mundo que tem a verda- B. Mondin refere-se ainda, no último parágra-
deira infinidade, mas que só se revela ao entendi- fo do seu estudo, à autotranscendência e à dinamici-
mento, e com o qual (e assim também com todos es- dade como propriedade da personalidade:
ses mundos visíveis) me reconheço numa conexão, "A pessoa não é um resultado já belo e adqui-
não simplesmente contingente, como além, mas uni- rido desde o nascimento, mas é, antes, uma mina
versal e necessária. O primeiro espectáculo de uma riquíssima de possibilidades, razão pela qual a pes-
38
inumerável multidão de mundos aniquila, por assim soa é, em larga medida, uma conquista" •

dizer, a minha importância como criatura animal que É de introduzir aqui a distinção entre pessoa e
deve restituir ao planeta (um simples ponto no uni- personalidade. A pessoa é a personalidade em po-
verso) a matéria de que era feita, depois de, por um tência, enquanto que a personalidade é a pessoa em
breve tempo (não se sabe como) ter sido provida de acto. Assim, pessoa é a substância, a estrutura ontoló-
força vital. O segundo, pelo contrário, eleva infinita- gica do homem, enquanto que a personalidade é o
9
mente o meu valor como inteligência por meio da exercícioactual dos actos pessoais3 •

minha personalidade, na qual a lei moral me desco-


bre uma vida independente da animalidade e mesmo
de todo o mundo sensível, pelo menos, tanto quanto 37
Immanuel KANT, Kritik der praktischen Vernunft
(trad. port.: Crítica da razão prática, Edições 70, Lisboa, 1997,
se pode inferir da destinação conforme a um fim da 183-184).
38
minha existência por essa lei, que não se restringe a B. MONDIN, O homem, quem é ele? cit., 298.
39
Cf. EDITORIALE,"Chi" e persona? Persona umana e
bioetica, em La Civiltà Cattolica IV (1992) 555.

50 51
pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equiva-
2. Pessoa e dignidade lente; mas quando uma coisa está acima de todo o
preço, e portanto não permite equivalente, então tem
42
A axiologia refere-se à dignidade da pessoa ela dignidade" •

como algo intrínseco: a pessoa é um protovalor(Sche- E porque a pessoa tem dignidade não pode ser
40
ler), o valor primeiro e fundamental • tratada simplesmente como meio, mas deve ser tra-
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências tada como fim:
da Vida (CNECV)41reflecte acerca do conceito de "Age de tal maneira que uses a humanidade,
dignidade humana nas suas componentes filosóficas, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer ou-
biológicas, psicológicas e nas suas implicações éticas. tro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
Na reflexão filosófica, é a Jr,tinanuel Kant que simplesmente como meio" 43•
se deve uma das contribuições mais decisivas para o Depois, o CNECV cita Roque Cabral comen-
conceito de dignidade humana: tando o pensamento de Kant: "Segundo (Kant), o ser
"No reino dos fins tudo tem ou um preço ou humano é um valor absoluto, fim em si mesmo, por-
uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, que dotadode razão. A sua autonomia, porque serra-

40
Cf. Feliciano BLÁZQUEZ CARMONA - Agustín
DEVESADELPRADO- Mariano CANO GALINOO,Diccionario de
términos éticos, Editorial Verbo Divino, Estella (Navarra),
1999, 157.
41
CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS 42
Immanuel KANT, Grundlegung zur Metafhysik der
CIÊNCIASDA VIDA, Documento de trabalho 26/CNECV/99 - Sitten (trad. port.: Fundamentação da metafísica dos costumes,
Reflexão ética sobre a dignidade humana (5.Jang1999), em Edições 70, Lisboa, 1997, 77).
http:/ /www.cnecv.gov.pt./pdfs/ dighum.pdf. 43
I. KANT, Fundamentação cit., 69.

52 53
pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equiva-
2. Pessoa e dignidade lente; mas quando uma coisa está acima de todo o
preço, e portanto não permite equivalente, então tem
42
A axiologia refere-se à dignidade da pessoa ela dignidade" •

como algo intrínseco: a pessoa é um protovalor(Sche- E porque a pessoa tem dignidade não pode ser
40
ler), o valor primeiro e fundamental • tratada simplesmente como meio, mas deve ser tra-
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências tada como fim:
da Vida (CNECV)41reflecte acerca do conceito de "Age de tal maneira que uses a humanidade,
dignidade humana nas suas componentes filosóficas, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer ou-
biológicas, psicológicas e nas suas implicações éticas. tro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
Na reflexão filosófica, é a Jr,tinanuel Kant que simplesmente como meio" 43•
se deve uma das contribuições mais decisivas para o Depois, o CNECV cita Roque Cabral comen-
conceito de dignidade humana: tando o pensamento de Kant: "Segundo (Kant), o ser
"No reino dos fins tudo tem ou um preço ou humano é um valor absoluto, fim em si mesmo, por-
uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, que dotadode razão. A sua autonomia, porque serra-

40
Cf. Feliciano BLÁZQUEZ CARMONA - Agustín
DEVESADELPRADO- Mariano CANO GALINOO,Diccionario de
términos éticos, Editorial Verbo Divino, Estella (Navarra),
1999, 157.
41
CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS 42
Immanuel KANT, Grundlegung zur Metafhysik der
CIÊNCIASDA VIDA, Documento de trabalho 26/CNECV/99 - Sitten (trad. port.: Fundamentação da metafísica dos costumes,
Reflexão ética sobre a dignidade humana (5.Jang1999), em Edições 70, Lisboa, 1997, 77).
http:/ /www.cnecv.gov.pt./pdfs/ dighum.pdf. 43
I. KANT, Fundamentação cit., 69.

52 53
cional, é a raiz da sua dignidade, pois é ela que faz razões reunidas em (c) são claramente de índole teo-

do homem fim de si mesmo" 44



lógica.
Querendo falar a todos os homens de boa von-
R. Cabral, depois de um estudo histórico acerca
tade, recorrer-se-á naturalmente aos argumentos (a) e
da dignidade da pessoa, ordena em três grupos os
argumentos encontrados (para fundamentar a digni- (b), racionais.

dade humana): Tendo por interlocutor irmãos na fé, mais força


45
11
A dignidade humana consiste em ou resulta: ou peso se reconhecerá aos incluídos em (c)" •

(a) da autonomia, da racionalidade, da espiri-


Em seguida, R. Cabral interroga-se acerca da

tualidade da pessoa. possível ordenação e hierarquização destes argumen-


tos e responde: "Sem desenvolver agora este ponto,
(b) da imortalidade da alma.
direi que me inclino para atribuir a posição radical,
(c) do facto de o ser humano ser imagem de
46
primeira, à espiritualidade" •
Deus, ter sido elevado à ordem s ,brenatural e ter
E conclui referindo-se ao facto de ser mais fácil
sido remido pelo Filho de Deus feito homem.
concordar na afirmação da dignidade de toda a pes-
Facilmente se vê que (a) e (b) são argumentos
soa humana do que fundamentá-la: "De modo intui-
racionais- alguns excluirão o da imortalidade, que
tivo, podíamos dizer, sentimos", diante de qualquer
11

pensam só por fé ser afirmável-, enquanto que as


ser humano, estar perante algo sagrado (como dizia
44
Roque CABRAL,A dignidade da pessoa humana, em
ARCHERL~s, etc., Poderes e limites da genética, Conselho Na-
cional de Etica para as Ciências da Vida - Presidência do
Conselho de Ministros, Lisboa, 1998, 33. E também R. 45
R. CABRAL,A dignidade, 1998, 35-36. E também R.
CABRAL,A dignidade da pessoa humana, em CABRALR., Temas
CABRAL,A dignidade, 2000, 279-280.
de ética, Publicações da Faculdade de Filosofia - Universida- 46
R. CABRAL,1998, 36. E também R. CABRAL,2000, 280.
de Católica Portuguesa, Braga, 2000, 277.

55
54
cional, é a raiz da sua dignidade, pois é ela que faz razões reunidas em (c) são claramente de índole teo-

do homem fim de si mesmo" 44



lógica.
Querendo falar a todos os homens de boa von-
R. Cabral, depois de um estudo histórico acerca
tade, recorrer-se-á naturalmente aos argumentos (a) e
da dignidade da pessoa, ordena em três grupos os
argumentos encontrados (para fundamentar a digni- (b), racionais.

dade humana): Tendo por interlocutor irmãos na fé, mais força


45
11
A dignidade humana consiste em ou resulta: ou peso se reconhecerá aos incluídos em (c)" •

(a) da autonomia, da racionalidade, da espiri-


Em seguida, R. Cabral interroga-se acerca da

tualidade da pessoa. possível ordenação e hierarquização destes argumen-


tos e responde: "Sem desenvolver agora este ponto,
(b) da imortalidade da alma.
direi que me inclino para atribuir a posição radical,
(c) do facto de o ser humano ser imagem de
46
primeira, à espiritualidade" •
Deus, ter sido elevado à ordem s ,brenatural e ter
E conclui referindo-se ao facto de ser mais fácil
sido remido pelo Filho de Deus feito homem.
concordar na afirmação da dignidade de toda a pes-
Facilmente se vê que (a) e (b) são argumentos
soa humana do que fundamentá-la: "De modo intui-
racionais- alguns excluirão o da imortalidade, que
tivo, podíamos dizer, sentimos", diante de qualquer
11

pensam só por fé ser afirmável-, enquanto que as


ser humano, estar perante algo sagrado (como dizia
44
Roque CABRAL,A dignidade da pessoa humana, em
ARCHERL~s, etc., Poderes e limites da genética, Conselho Na-
cional de Etica para as Ciências da Vida - Presidência do
Conselho de Ministros, Lisboa, 1998, 33. E também R. 45
R. CABRAL,A dignidade, 1998, 35-36. E também R.
CABRAL,A dignidade da pessoa humana, em CABRALR., Temas
CABRAL,A dignidade, 2000, 279-280.
de ética, Publicações da Faculdade de Filosofia - Universida- 46
R. CABRAL,1998, 36. E também R. CABRAL,2000, 280.
de Católica Portuguesa, Braga, 2000, 277.

55
54
Cícero), profundo (no dizer de Agostinho), com algo nós e nos transmitiram uma língua, uma cultura,
47
de divino" • uma série de tradições e princípios. Uma vez que
O CNECV faz a seguinte síntese: "Em resumo, fomos constituídos por esta solidariedade ontológica
o termo Dignidade Humana é o reconhecimento de da raça humana e estamos inevitavelmente mergu-
um valor. É um princípio moral baseado na finalida- lhados nela, realizamo-nos a nós próprios através da
de do ser humano e não na sua utilização como um relação e ajuda ao outro. Não respeitaríamos a digni-
meio. Isso quer dizer que a Dignidade Humana esta- dade dos outros se não a respeitássemos no outro".
ria baseada na própria natureza da espécie humana a Na reflexão biológica, o que está em causa é
qual inclui, normalmente, manifestações de raciona- se há uma fundamentação biológica para a dignida-
lidade, de liberdade e de finalidade em si, que fazem de humana. O documento do CNECV é claro a este
do ser humano um ente em permanente desenvol- respeito:
vimento na procura da realização de si próprio. Esse "Não há justificação biológica da dignidade
projecto de auto-realização exige, da parte de outros, humana. É certo que o substrato biológico é, sem dú-
reconhecimento, respeito, liberdade de acção e não vida, uma condição indispensável para a existência
instrumentalização da pessoa. Essa auto-realização da pessoa e, portanto, da sua dignidade: se os seus
pessoal, que seria o objecto e a razão da dignidade, mecanismos bioquímicos colapsam, a pessoa extin-
só é possível através da solidariedade ontológica gue-se, e com ela a sua dignidade. Mas não são esses
com todos os membros da nossa espécie. Tudo o que mecanismos bioquímicos (basicamente idênticos aos
somos é devido a outros que se debruçaram sobre dos animais) que justificam, especificam ou medem a
dignidade humana. E, por isso, talvez se possa dizer
47
R. CABRAL, 1998, 36. E também R. CABRAL, 2000, 280. que a qualidade biológica de uma vida humana não

56 57
Cícero), profundo (no dizer de Agostinho), com algo nós e nos transmitiram uma língua, uma cultura,
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de divino" • uma série de tradições e princípios. Uma vez que
O CNECV faz a seguinte síntese: "Em resumo, fomos constituídos por esta solidariedade ontológica
o termo Dignidade Humana é o reconhecimento de da raça humana e estamos inevitavelmente mergu-
um valor. É um princípio moral baseado na finalida- lhados nela, realizamo-nos a nós próprios através da
de do ser humano e não na sua utilização como um relação e ajuda ao outro. Não respeitaríamos a digni-
meio. Isso quer dizer que a Dignidade Humana esta- dade dos outros se não a respeitássemos no outro".
ria baseada na própria natureza da espécie humana a Na reflexão biológica, o que está em causa é
qual inclui, normalmente, manifestações de raciona- se há uma fundamentação biológica para a dignida-
lidade, de liberdade e de finalidade em si, que fazem de humana. O documento do CNECV é claro a este
do ser humano um ente em permanente desenvol- respeito:
vimento na procura da realização de si próprio. Esse "Não há justificação biológica da dignidade
projecto de auto-realização exige, da parte de outros, humana. É certo que o substrato biológico é, sem dú-
reconhecimento, respeito, liberdade de acção e não vida, uma condição indispensável para a existência
instrumentalização da pessoa. Essa auto-realização da pessoa e, portanto, da sua dignidade: se os seus
pessoal, que seria o objecto e a razão da dignidade, mecanismos bioquímicos colapsam, a pessoa extin-
só é possível através da solidariedade ontológica gue-se, e com ela a sua dignidade. Mas não são esses
com todos os membros da nossa espécie. Tudo o que mecanismos bioquímicos (basicamente idênticos aos
somos é devido a outros que se debruçaram sobre dos animais) que justificam, especificam ou medem a
dignidade humana. E, por isso, talvez se possa dizer
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R. CABRAL, 1998, 36. E também R. CABRAL, 2000, 280. que a qualidade biológica de uma vida humana não

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altera a sua dignidade. O demente, o doente terminal A dignidade humana é sentida e expressa atra-
que está inconsciente ou em estado vegetativo persis- vés do corpo humano como suporte biológico da
tente têm a mesma dignidade que eu. existência. Nem a pessoa é o seu corpo, nem tão pou-
Mas, por outro lado, o ser humano parece ser o co é proprietária do seu corpo. A pessoa é um siste-
único animal em que a realidade biológica foi intei- ma psicossomático que toda a vida humana nos tor-
ramente assumida e redimensionada pela integração na cada vez mais presente.( ...)
numa outra ordem, que é simbólica e cultural. Nesse À pergunta sobre se há uma fundamentação bi-
sentido, o corpo puramente biológico é uma abstrac- ológica da dignidade humana, teríamos que respon-
ção. O corpo real não é só biológico ou mecânico: é der sim e não. Sim, na medida em que os mecanis-
um corpo-assumido ou corpo-vivido ou corpo- mos biológicos constituem o suporte indispensável
-pessoal. Esse corpo constitui a mediação obrigatória do campo de acção de todas as actividades pensan-
da pessoa em todas as suas relações para dentro e tes, volitivas e relacionais da pessoa. Não, na medida
para fora de si mesma. Se pensa, se reflecte, se deci- em que as capacidades de auto-realização na linha de
de, se comunica com os outros ou se capta deles nova um projecto pessoal, as quais constituem a verdadei-
informação, é sempre e obrigatoriamente através do ra fundamentação da dignidade humana, não são, de
corpo e do seu mecanismo biológico. Neste sentido, modo nenhum, determinadas especificamente por
todo o biológico humano é assumido pela pessoa e, mecanismos biológicos conhecidos".
nessa medida, toda a violência contra o corpo bioló- Em relação ao ponto seguinte, aspectos psicoló-
gico se pode assumir como violência contra a pessoa, gicos, a questão é: "Poderá a reflexão sobre a psico-
e toda a instrumentalização do corpo biológico signi- logia dos humanos contribuir para nos aproximar
fica instrumentalização da pessoa. duma melhor compreensão da dignidade humana"?

58 59
altera a sua dignidade. O demente, o doente terminal A dignidade humana é sentida e expressa atra-
que está inconsciente ou em estado vegetativo persis- vés do corpo humano como suporte biológico da
tente têm a mesma dignidade que eu. existência. Nem a pessoa é o seu corpo, nem tão pou-
Mas, por outro lado, o ser humano parece ser o co é proprietária do seu corpo. A pessoa é um siste-
único animal em que a realidade biológica foi intei- ma psicossomático que toda a vida humana nos tor-
ramente assumida e redimensionada pela integração na cada vez mais presente.( ...)
numa outra ordem, que é simbólica e cultural. Nesse À pergunta sobre se há uma fundamentação bi-
sentido, o corpo puramente biológico é uma abstrac- ológica da dignidade humana, teríamos que respon-
ção. O corpo real não é só biológico ou mecânico: é der sim e não. Sim, na medida em que os mecanis-
um corpo-assumido ou corpo-vivido ou corpo- mos biológicos constituem o suporte indispensável
-pessoal. Esse corpo constitui a mediação obrigatória do campo de acção de todas as actividades pensan-
da pessoa em todas as suas relações para dentro e tes, volitivas e relacionais da pessoa. Não, na medida
para fora de si mesma. Se pensa, se reflecte, se deci- em que as capacidades de auto-realização na linha de
de, se comunica com os outros ou se capta deles nova um projecto pessoal, as quais constituem a verdadei-
informação, é sempre e obrigatoriamente através do ra fundamentação da dignidade humana, não são, de
corpo e do seu mecanismo biológico. Neste sentido, modo nenhum, determinadas especificamente por
todo o biológico humano é assumido pela pessoa e, mecanismos biológicos conhecidos".
nessa medida, toda a violência contra o corpo bioló- Em relação ao ponto seguinte, aspectos psicoló-
gico se pode assumir como violência contra a pessoa, gicos, a questão é: "Poderá a reflexão sobre a psico-
e toda a instrumentalização do corpo biológico signi- logia dos humanos contribuir para nos aproximar
fica instrumentalização da pessoa. duma melhor compreensão da dignidade humana"?

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Diz o texto: "É enquanto ser psicológico que o aspectos psicológicos da Dignidade Humana não são
ser humano adquire uma dimensão mais forte da sua valores absolutos em si, têm sempre critérios de rela-
própria dignidade. Os grandes valores do ser huma- tividade.
no, aqueles que lhe dão originalidade no quadro da Uma pessoa pode ser vista pela sociedade como
criação, são exactamente os aspectos da natureza psi- um ser indigno e sentir-se digno. Coloca-se de novo
cológica. a seguinte questão: o que é a Dignidade Humana? É
A Dignidade Humana situa-se ao nível psicoló- a sensação que os outros têm de nós ou a sensação
gico no qt• ,.dro de valores que cada pessoa possui. que nós próprios temos de nós?
As pessoas que não forem capazes de adquirir a Não se podendo pois falar propriamente de
autonomia têm dificuldade em afirmar a sua pró- fundamentação psicológica da dignidade humana,
pria dignidade. Respeitar a autonomia nos outros é a não ser, talvez, que se quisesse entender como
também uma forma de respeitar a dignidade de tal uma eventual fundamentação fenomenológica.
cada um. Como conceito ético, a dignidade não pode ter a psi-
Os aspectos psicológicos da Dignidade Huma- cologia, a montante, como fundamentação. Mas pode
na têm a ver com o que nós sentimos que somos e tê-la, a jusante, como corolário. Trata-se, então, da
com a percepção que os outros têm de nós. Ao mes- percepção subjectiva duma dignidade que é objecti-
mo tempo esta questão é influenciada pelo meio em va. Trata-se, não da dignidade como valor em si,
que se vive e pelo modo como se coexiste com ele: nem da sua compreensão racional por mim, mas da
pode-se ser visto como digno em determinado meio, sua conotação intuitiva e emocional em mim. E este
como p. ex. o meio familiar e ao mesmo tempo ser-se aspecto, menos essencialista mas mais existencialista,
considerado como indigno no meio profissional. Os não deve ser minimizado. Que significado pode ter

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Diz o texto: "É enquanto ser psicológico que o aspectos psicológicos da Dignidade Humana não são
ser humano adquire uma dimensão mais forte da sua valores absolutos em si, têm sempre critérios de rela-
própria dignidade. Os grandes valores do ser huma- tividade.
no, aqueles que lhe dão originalidade no quadro da Uma pessoa pode ser vista pela sociedade como
criação, são exactamente os aspectos da natureza psi- um ser indigno e sentir-se digno. Coloca-se de novo
cológica. a seguinte questão: o que é a Dignidade Humana? É
A Dignidade Humana situa-se ao nível psicoló- a sensação que os outros têm de nós ou a sensação
gico no qt• ,.dro de valores que cada pessoa possui. que nós próprios temos de nós?
As pessoas que não forem capazes de adquirir a Não se podendo pois falar propriamente de
autonomia têm dificuldade em afirmar a sua pró- fundamentação psicológica da dignidade humana,
pria dignidade. Respeitar a autonomia nos outros é a não ser, talvez, que se quisesse entender como
também uma forma de respeitar a dignidade de tal uma eventual fundamentação fenomenológica.
cada um. Como conceito ético, a dignidade não pode ter a psi-
Os aspectos psicológicos da Dignidade Huma- cologia, a montante, como fundamentação. Mas pode
na têm a ver com o que nós sentimos que somos e tê-la, a jusante, como corolário. Trata-se, então, da
com a percepção que os outros têm de nós. Ao mes- percepção subjectiva duma dignidade que é objecti-
mo tempo esta questão é influenciada pelo meio em va. Trata-se, não da dignidade como valor em si,
que se vive e pelo modo como se coexiste com ele: nem da sua compreensão racional por mim, mas da
pode-se ser visto como digno em determinado meio, sua conotação intuitiva e emocional em mim. E este
como p. ex. o meio familiar e ao mesmo tempo ser-se aspecto, menos essencialista mas mais existencialista,
considerado como indigno no meio profissional. Os não deve ser minimizado. Que significado pode ter

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uma dignidade humana que se possa provar em todas as razões, desde o poder económico à falta de
termos racionais, mas não tenha qualquer impacto amor".
nas minhas motivações reais? Em termos do meu Com este importante documento, o CNECV fica
viver existencial, ela não existe". com um sólido fundamento ético dos pareceres por
O último ponto refere-se à dignidade humana si elaborados. Trata-se de um texto que estava a faltar
das mulheres, porque quando se falava e fala acerca no nosso país. Pensamos que os pareceres anteriores
da dignidade humana muitas vezes as mulheres fo- do Conselho deverão ser entendidos à luz desta refle-
ram e são excluídas. O CNECV cita a Conferência xão ética sobre a dignidade humana. Os pareceres
Mundial sobre os Direitos Humanos (Viena, 1993) futuros fundamentar-se-ão, necessariamente, aqui.
que diz: "Os direitos humanos das mulheres e das
raparigas são uma parte inalienável, integrante e in-
divisível dos direitos humanos universais". 3. "Quem" é pessoa?
Nas reflexões finais, como conclusão, diz-se:" A
dignidade humana afirma que: todo o ser humano, Todas as éticas, actualmente, aceitam que é pre-
por o ser, é o maior valor, e este sobressai quando é ciso respeitar a pessoa. Mas, o problema liga-se com
mais agredido, violentado, ignorado ou negado. Des- a pergunta: "quem" é pessoa? Até há pouco tempo
te modo, os comportamentos que mais indignificam admitia-se facilmente que era pessoa cada ser huma-
o próprio são os que indignificam os outros, sobre- no, e apenas o ser humano; onde estivesse um ser
tudo os mais débeis e vulneráveis. Nomeadamente humano estava uma pessoa e só um ser humano po-
as crianças, os idosos, os doentes, os excluídos por dia ser considerado uma pessoa. Hoje, as coisas não

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uma dignidade humana que se possa provar em todas as razões, desde o poder económico à falta de
termos racionais, mas não tenha qualquer impacto amor".
nas minhas motivações reais? Em termos do meu Com este importante documento, o CNECV fica
viver existencial, ela não existe". com um sólido fundamento ético dos pareceres por
O último ponto refere-se à dignidade humana si elaborados. Trata-se de um texto que estava a faltar
das mulheres, porque quando se falava e fala acerca no nosso país. Pensamos que os pareceres anteriores
da dignidade humana muitas vezes as mulheres fo- do Conselho deverão ser entendidos à luz desta refle-
ram e são excluídas. O CNECV cita a Conferência xão ética sobre a dignidade humana. Os pareceres
Mundial sobre os Direitos Humanos (Viena, 1993) futuros fundamentar-se-ão, necessariamente, aqui.
que diz: "Os direitos humanos das mulheres e das
raparigas são uma parte inalienável, integrante e in-
divisível dos direitos humanos universais". 3. "Quem" é pessoa?
Nas reflexões finais, como conclusão, diz-se:" A
dignidade humana afirma que: todo o ser humano, Todas as éticas, actualmente, aceitam que é pre-
por o ser, é o maior valor, e este sobressai quando é ciso respeitar a pessoa. Mas, o problema liga-se com
mais agredido, violentado, ignorado ou negado. Des- a pergunta: "quem" é pessoa? Até há pouco tempo
te modo, os comportamentos que mais indignificam admitia-se facilmente que era pessoa cada ser huma-
o próprio são os que indignificam os outros, sobre- no, e apenas o ser humano; onde estivesse um ser
tudo os mais débeis e vulneráveis. Nomeadamente humano estava uma pessoa e só um ser humano po-
as crianças, os idosos, os doentes, os excluídos por dia ser considerado uma pessoa. Hoje, as coisas não

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são assim. Há autores que dizem que há seres huma- uma posição na comunidade moral secular. Essas
nos que não são pessoas e seres não humanos que entidades não podem acusar nem elogiar, nem são
48
são pessoas. É o caso de H. Tristram Engelhardt e dignas de acusação ou de elogio; não podem fazer
. 49
promessas, entrar em contratos ou chegar a um
Peter Smger .
Para Engelhardt, só é pessoa quem possui de- acordo de beneficência. Não são participantes prin-
terminadas características: autoconsciência, raciona- cipais na realização moral secular. Só as pessoas têm
lidade e sentido ético: "Nem todos os seres humanos essa condição" 50 •
são autoconscientes, racionais e capazes de conceber Segundo Singer, é pessoa todo o ser que possua
a possibilidade de acusar e elogiar. Os fetos, os be- racionalidade e autoconsciência, mesmo não fazendo
bés, os deficientes mentais e aqueles que se encon- parte da espécie homo sapiens; e não é pessoa qual-
tram em coma, sem possibilidade de recuperação, quer ser não racional nem autoconsciente, mesmo
são humanos, mas não pessoas. São membros da es- fazendo parte da espécie homo sapiens. Assim, são
pécie humana, mas não desfrutam, por si mesmos, pessoas alguns animais que são conscientes, que têm
uma linguagem e capacidade de pensar; e não são
48
Engelhardt é filósofo do Texas. É bem fruto desta
cultura. Sandro Spinsanti (La bioetica. Biografieper una disci- pessoas os seres humanos que não estão conscientes
plina, Franco Angeli, Milano, 1995, 80) afirma que quase que nem podem exercer a sua racionalidade: "Devemos
o Texas poderá ser a chave interpretativa da sua bioética. As
suas posições são de um liberalismo extremo. rejeitar a doutrina que coloca a vida dos membros da
9
~ Singer é filósofo aus tr aliano. Assume o utilitarismo

como prinópio ético . Além da obra Ética prática que agora é nossa espécie acima da vida dos membros de outras
editada em Portugal (Março, 2000) aparece também uma
50
outra - Libertaçãomúmnl, Via Óptima, Porto, 2000 (Maio), H. Tristram ENGELHARDT,The Foundations of Bio-
obra que na primeira edição de 1975 o tornou internacional- ethics, Oxford University Press Inc., New York, 21996 (trad.
mente conhecido sobretudo pela defesa dos direitos dos port.; Fundamentos da bioética, Edições Loyola, São Paulo,
animais. 1998, 174).

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s
são assim. Há autores que dizem que há seres huma- uma posição na comunidade moral secular. Essas
nos que não são pessoas e seres não humanos que entidades não podem acusar nem elogiar, nem são
48
são pessoas. É o caso de H. Tristram Engelhardt e dignas de acusação ou de elogio; não podem fazer
. 49
promessas, entrar em contratos ou chegar a um
Peter Smger .
Para Engelhardt, só é pessoa quem possui de- acordo de beneficência. Não são participantes prin-
terminadas características: autoconsciência, raciona- cipais na realização moral secular. Só as pessoas têm
lidade e sentido ético: "Nem todos os seres humanos essa condição" 50 •
são autoconscientes, racionais e capazes de conceber Segundo Singer, é pessoa todo o ser que possua
a possibilidade de acusar e elogiar. Os fetos, os be- racionalidade e autoconsciência, mesmo não fazendo
bés, os deficientes mentais e aqueles que se encon- parte da espécie homo sapiens; e não é pessoa qual-
tram em coma, sem possibilidade de recuperação, quer ser não racional nem autoconsciente, mesmo
são humanos, mas não pessoas. São membros da es- fazendo parte da espécie homo sapiens. Assim, são
pécie humana, mas não desfrutam, por si mesmos, pessoas alguns animais que são conscientes, que têm
uma linguagem e capacidade de pensar; e não são
48
Engelhardt é filósofo do Texas. É bem fruto desta
cultura. Sandro Spinsanti (La bioetica. Biografieper una disci- pessoas os seres humanos que não estão conscientes
plina, Franco Angeli, Milano, 1995, 80) afirma que quase que nem podem exercer a sua racionalidade: "Devemos
o Texas poderá ser a chave interpretativa da sua bioética. As
suas posições são de um liberalismo extremo. rejeitar a doutrina que coloca a vida dos membros da
9
~ Singer é filósofo aus tr aliano. Assume o utilitarismo

como prinópio ético . Além da obra Ética prática que agora é nossa espécie acima da vida dos membros de outras
editada em Portugal (Março, 2000) aparece também uma
50
outra - Libertaçãomúmnl, Via Óptima, Porto, 2000 (Maio), H. Tristram ENGELHARDT,The Foundations of Bio-
obra que na primeira edição de 1975 o tornou internacional- ethics, Oxford University Press Inc., New York, 21996 (trad.
mente conhecido sobretudo pela defesa dos direitos dos port.; Fundamentos da bioética, Edições Loyola, São Paulo,
animais. 1998, 174).

64 65
s
espécies. Alguns membros de outras espécies são do fundamento desses actos. A autoconsciência e a
pessoas; alguns membros da nossa espécie não o são. racionalidade indicam a pessoa, mas não se identifi-
Nenhuma avaliação objectiva pode apoiar a perspec- cam com ela. A pessoa é o sujeito desses actos. Não
tiva de que é sempre pior matar membros da nossa há identificação pessoa-actos. A pessoa não é o acto
espécie que não são pessoas do que membros de ou- da autoconsciência e da racionalidade, mas o princí-
tras espécies que o são. Pelo contrário, r.omo vimos, pio substancial e permanente a partir do qual surgem
há fortes argumentos para pensar que tirar a vida de esses actos. Quando ainda não há ou não há mais a
pessoas é, em si, mais grave que tirar a vida daqueles capacidade para exercer actos de autoconsciência e
que não são pessoas. De modo que matar um chim- de racionalidade, não significa que a pessoa deixe de
panzé, por exemplo, é pior que matar um ser huma- existir.
no que, devido a uma deficiência mental congénita, "Quem" é pessoa? Responde o Editorial da re-
51
não é nem pode vir a ser uma pessoa" • vista italiana La Civiltà Cattolica ao fazer uma apreci-
Que dizer acerca destas formas de pensar? Vol- ação crítica do pensamento de Engelhardt e Singer:
temos à pergunta inicial: "quem" é pessoa? Estes au- "É pessoa cada ser que pela sua estrutura física e
tores respondem: é pessoa quem possui em acto a mental é "capaz" de actos de autoconsciência, racio-
autoconsciência e a racionalidade, fazendo ou não nalidade e liberdade, mesmo que não os exerça por
52
parte da espécie humana. Note-se que o erro está no qualquer impedimento" •

definir a pessoa através dos seus actos e não através São pessoas todos os seres humanos. Não há
distinção entre seres humanos e pessoas. Não pode-
51
Peter SINGER, Practical Ethics, Cambridge Universi-
EDITORIALE, "Chi" epersona?Persona umana e bioeti-
52
ty Press, Cambridge, 21993 (trad. port.: Ética prática, Gradiva,
Lisboa, 2000, 137). ca, em La Civiltà CattolicaIV (1992) 555.

66 67
espécies. Alguns membros de outras espécies são do fundamento desses actos. A autoconsciência e a
pessoas; alguns membros da nossa espécie não o são. racionalidade indicam a pessoa, mas não se identifi-
Nenhuma avaliação objectiva pode apoiar a perspec- cam com ela. A pessoa é o sujeito desses actos. Não
tiva de que é sempre pior matar membros da nossa há identificação pessoa-actos. A pessoa não é o acto
espécie que não são pessoas do que membros de ou- da autoconsciência e da racionalidade, mas o princí-
tras espécies que o são. Pelo contrário, r.omo vimos, pio substancial e permanente a partir do qual surgem
há fortes argumentos para pensar que tirar a vida de esses actos. Quando ainda não há ou não há mais a
pessoas é, em si, mais grave que tirar a vida daqueles capacidade para exercer actos de autoconsciência e
que não são pessoas. De modo que matar um chim- de racionalidade, não significa que a pessoa deixe de
panzé, por exemplo, é pior que matar um ser huma- existir.
no que, devido a uma deficiência mental congénita, "Quem" é pessoa? Responde o Editorial da re-
51
não é nem pode vir a ser uma pessoa" • vista italiana La Civiltà Cattolica ao fazer uma apreci-
Que dizer acerca destas formas de pensar? Vol- ação crítica do pensamento de Engelhardt e Singer:
temos à pergunta inicial: "quem" é pessoa? Estes au- "É pessoa cada ser que pela sua estrutura física e
tores respondem: é pessoa quem possui em acto a mental é "capaz" de actos de autoconsciência, racio-
autoconsciência e a racionalidade, fazendo ou não nalidade e liberdade, mesmo que não os exerça por
52
parte da espécie humana. Note-se que o erro está no qualquer impedimento" •

definir a pessoa através dos seus actos e não através São pessoas todos os seres humanos. Não há
distinção entre seres humanos e pessoas. Não pode-
51
Peter SINGER, Practical Ethics, Cambridge Universi-
EDITORIALE, "Chi" epersona?Persona umana e bioeti-
52
ty Press, Cambridge, 21993 (trad. port.: Ética prática, Gradiva,
Lisboa, 2000, 137). ca, em La Civiltà CattolicaIV (1992) 555.

66 67
mos concordar com a afirmação de Engelhardt: "nem
4. A perspectiva cristã
todos os seres humanos são pessoas".
Convém ter presente a distinção entre pessoa
e personalidade. A pessoa é a personalidade em po- O pensamento cristão apresenta a dimensão

tência. A personalidade é a pessoa em acto. ética da pessoa realçando a sua grandeza e dignida-
54
de, e o seu carácter de absoluto •
A liberdade, a racionalidade e a autoconsciên-
cia são capacidades especificamente humanas, por- Sobre a dignidade da pessoa humana temos

que só o homem é um ser espiritual, aberto ao infini- um capítulo de grande importância na Constituição

to e à novidade. Não sendo seres espirituais, os ani- pastoral "Gaudium et spes", do Concílio Vaticano II

mais não têm capacidade de verdadeira autocons-


ciência, de verdadeira racionalidade e de verdadeira
liberdade. Por isso, se a autoconsciência, a racionali-
dade e a liberdade são os sinais da pessoa, só os ho- 54
Cf. Marciano VIDAL,Para conocer la ética cristiana,
53 Editorial Verbo Divino, Estella (Navarra), 1991 (trad. port.:
mens são pessoas •
Para conhecer a ética cristã, Editorial Perpétuo Socorro, Porto,
1997, pp. 93ss. Este autor afirma (p. 95): "Nas diversas for-
mas de pensamento humanista, existiu e continua a existir
actualmente, convergência para o reconhecimento da gran-
53
Cf. EDITORIALE, "Chi" e persona? cit., 557. Já na pri-
deza e da dignidade do homem. Cristãos, marxistas e pen-
meira alínea deste nosso estudo nos referimos à espirituali-
sadores em geral estão de acordo no facto de o homem cons-
dade como principal característica da pessoa. A propósito,
tituir o centro de todos os valores e de que é o homem que é
cf. Battista MONDIN, L 'uomo: chi e? Elementi di antropologia
preciso salvar. Os conceitos de grandeza e dignidade foram
filosofica, Editrice Massimo, Milano, 7ª edição revista e au-
utilizados, e continuam a sê-lo, como categoria moral para
mentada, 1993 (trad. port.: O homem, quem é ele? Elementos de
8 exprimir a dimensão ética da pessoa. Basta recordar o relevo
antropologia filosófica, Paulus, São Paulo, 1996, principalmen-
dado a esses conceitos pelo Concílio Vaticano II, ao estudar
te o capítulo I da segunda parte - Autotranscendência e es-
os problemas do homem actual".
piritualidade, 251-267).
69
mos concordar com a afirmação de Engelhardt: "nem
4. A perspectiva cristã
todos os seres humanos são pessoas".
Convém ter presente a distinção entre pessoa
e personalidade. A pessoa é a personalidade em po- O pensamento cristão apresenta a dimensão

tência. A personalidade é a pessoa em acto. ética da pessoa realçando a sua grandeza e dignida-
54
de, e o seu carácter de absoluto •
A liberdade, a racionalidade e a autoconsciên-
cia são capacidades especificamente humanas, por- Sobre a dignidade da pessoa humana temos

que só o homem é um ser espiritual, aberto ao infini- um capítulo de grande importância na Constituição

to e à novidade. Não sendo seres espirituais, os ani- pastoral "Gaudium et spes", do Concílio Vaticano II

mais não têm capacidade de verdadeira autocons-


ciência, de verdadeira racionalidade e de verdadeira
liberdade. Por isso, se a autoconsciência, a racionali-
dade e a liberdade são os sinais da pessoa, só os ho- 54
Cf. Marciano VIDAL,Para conocer la ética cristiana,
53 Editorial Verbo Divino, Estella (Navarra), 1991 (trad. port.:
mens são pessoas •
Para conhecer a ética cristã, Editorial Perpétuo Socorro, Porto,
1997, pp. 93ss. Este autor afirma (p. 95): "Nas diversas for-
mas de pensamento humanista, existiu e continua a existir
actualmente, convergência para o reconhecimento da gran-
53
Cf. EDITORIALE, "Chi" e persona? cit., 557. Já na pri-
deza e da dignidade do homem. Cristãos, marxistas e pen-
meira alínea deste nosso estudo nos referimos à espirituali-
sadores em geral estão de acordo no facto de o homem cons-
dade como principal característica da pessoa. A propósito,
tituir o centro de todos os valores e de que é o homem que é
cf. Battista MONDIN, L 'uomo: chi e? Elementi di antropologia
preciso salvar. Os conceitos de grandeza e dignidade foram
filosofica, Editrice Massimo, Milano, 7ª edição revista e au-
utilizados, e continuam a sê-lo, como categoria moral para
mentada, 1993 (trad. port.: O homem, quem é ele? Elementos de
8 exprimir a dimensão ética da pessoa. Basta recordar o relevo
antropologia filosófica, Paulus, São Paulo, 1996, principalmen-
dado a esses conceitos pelo Concílio Vaticano II, ao estudar
te o capítulo I da segunda parte - Autotranscendência e es-
os problemas do homem actual".
piritualidade, 251-267).
69
(cap. I da I parte, nn. 12-22)55.São estes alguns dos de esplendor. Estabeleceste-o sobre a obra de tuas
temas tratados: mãos, tudo puseste sob os seus pés' (Sl 8, 5-7)".

• o homem centro e termo de tudo quanto existe • o homem unidade corpo-alma (nº 14): "O homem,
sobre a terra (nº 12): "Tudo quanto existe sobre a ser uno, (composto)56de corpo e alma, sintetiza em
terra deve ser ordenado em função do homem, si mesmo, pela sua natureza corporal, os elemen-
como seu centro e seu termo: neste ponto existe
56
um acordo quase geral entre crentes e não- Estamos a seguir a tradução: CONCÍLIOECUMÉNICO
VATICANOII, Constituições - Decretos - Declarações e Documen-
-crentes". 10
tos Pontifícios, Editorial A. O., Braga, 1987. O texto latino
diz: "Corpore et anima unus, homo per ipsam suam corpora-
• o homem criado à imagem de Deus (nº 12): "A lem condicionem elementa mundi materialis in se colligit, ita
Sagrada Escritura ensina que o homem foi criado ut, per ipsum, fastigium suum attingant et ad liberam Crea-
toris laudem vocem attollant". O termo "composto" da tra-
'à imagem de Deus', capaz de conhecer e amar o dução portuguesa não expressa aquilo que o Concílio quer
dizer, deturpando mesmo o autêntico sentido do texto. É
seu Criador, e por este constituído senhor de todas uma tradução dualista - "o homem, ser uno, composto de
corpo e alma". O texto diz apenas: "Uno em corpo e alma, o
as criaturas terrenas, para as dominar e delas se
homem ...". A propósito deste texto, diz o teólogo Philippe
'I servir, dando glória a Deus. 'Que é, pois, o ho- DELHAYE,A dignidade da pessoa humana, em BARAÚNAGui-
lherme (dir.), A Igreja no mundo de hoje, Vozes, Petrópolis,
mem, para que dele te lembres? ou o filho do ho- 1967, 277: "Saudemos a vitória conquistada pelo Concílio
sobre o dualismo neoplatónico, que, eliminado da escolásti-
mem, para que te preocupes com ele? Fizeste dele ca, sobreviveu na teologia espiritual. Em quantas obras pie-
pouco menos que um anjo, coroando-o de glória e dosas, vemos o corpo considerado como entidade separada e
a fonte de todas as fraquezas humanas. Na exposição conci-
liar, o corpo é imediatamente apresentado em sua dupla
dimensão espiritual e corporal: corpore et anima unus". Acerca
de alguns aspectos relacionados com a ética da corporeida-
55
CONCÍLIOVATICANOII, Constituição pastoral "Gau- de, ver: Hermínio ARAÚJO,O corpo humano em questão. Algu-
dium et spes" sobre a Igreja no mundo actual (Roma, 7 de De- mas reflexões b{blico-teológicas e éticas, em Itinerarium 159
zembro de 1965). (1997) 441-492.

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(cap. I da I parte, nn. 12-22)55.São estes alguns dos de esplendor. Estabeleceste-o sobre a obra de tuas
temas tratados: mãos, tudo puseste sob os seus pés' (Sl 8, 5-7)".

• o homem centro e termo de tudo quanto existe • o homem unidade corpo-alma (nº 14): "O homem,
sobre a terra (nº 12): "Tudo quanto existe sobre a ser uno, (composto)56de corpo e alma, sintetiza em
terra deve ser ordenado em função do homem, si mesmo, pela sua natureza corporal, os elemen-
como seu centro e seu termo: neste ponto existe
56
um acordo quase geral entre crentes e não- Estamos a seguir a tradução: CONCÍLIOECUMÉNICO
VATICANOII, Constituições - Decretos - Declarações e Documen-
-crentes". 10
tos Pontifícios, Editorial A. O., Braga, 1987. O texto latino
diz: "Corpore et anima unus, homo per ipsam suam corpora-
• o homem criado à imagem de Deus (nº 12): "A lem condicionem elementa mundi materialis in se colligit, ita
Sagrada Escritura ensina que o homem foi criado ut, per ipsum, fastigium suum attingant et ad liberam Crea-
toris laudem vocem attollant". O termo "composto" da tra-
'à imagem de Deus', capaz de conhecer e amar o dução portuguesa não expressa aquilo que o Concílio quer
dizer, deturpando mesmo o autêntico sentido do texto. É
seu Criador, e por este constituído senhor de todas uma tradução dualista - "o homem, ser uno, composto de
corpo e alma". O texto diz apenas: "Uno em corpo e alma, o
as criaturas terrenas, para as dominar e delas se
homem ...". A propósito deste texto, diz o teólogo Philippe
'I servir, dando glória a Deus. 'Que é, pois, o ho- DELHAYE,A dignidade da pessoa humana, em BARAÚNAGui-
lherme (dir.), A Igreja no mundo de hoje, Vozes, Petrópolis,
mem, para que dele te lembres? ou o filho do ho- 1967, 277: "Saudemos a vitória conquistada pelo Concílio
sobre o dualismo neoplatónico, que, eliminado da escolásti-
mem, para que te preocupes com ele? Fizeste dele ca, sobreviveu na teologia espiritual. Em quantas obras pie-
pouco menos que um anjo, coroando-o de glória e dosas, vemos o corpo considerado como entidade separada e
a fonte de todas as fraquezas humanas. Na exposição conci-
liar, o corpo é imediatamente apresentado em sua dupla
dimensão espiritual e corporal: corpore et anima unus". Acerca
de alguns aspectos relacionados com a ética da corporeida-
55
CONCÍLIOVATICANOII, Constituição pastoral "Gau- de, ver: Hermínio ARAÚJO,O corpo humano em questão. Algu-
dium et spes" sobre a Igreja no mundo actual (Roma, 7 de De- mas reflexões b{blico-teológicas e éticas, em Itinerarium 159
zembro de 1965). (1997) 441-492.

70 71
tos do mundo material, os quais, por meio dele, reconhecer, pois, em si uma alma espiritual e
atingem a sua máx \ma elevação e louvam livre- imortal, não se ilude com uma enganosa criação
mente o Criador. Não pode, portanto, desprezar a imaginativa, mero resultado de condições físicas e
vida corporal; deve, pelo contrário, considerar o sociais; atinge, pelo contrário, a verdade profunda

seu corpo como bom e digno de respeito, pois foi das coisas".
criado por Deus e há-de ressuscitar no último dia. • a dignidade do entendimento humano (nº 15):
Todavia, ferido pelo pecado, o homem experimen- "Participando da luz da inteligência divina, com
ta as revoltas do corpo. É, pois, a própria dignida- razão pensa o homem que supera, pela inteligên-
de humana que exige que o homem glorifique a cia, o universo. Exercitando incansavelmente, no
Deus no seu corpo, não deixando que este se es- decurso dos séculos, o próprio engenho, conse-
cravize às más inclinações do próprio coração". guiu ele grandes progressos nas ciências empíri-
• o homem superior às coisas materiais (nº 14): cas, nas técnicas e nas artes liberais. Nos nossos
"Não se engana o homem, quando se reconhece dias, alcançou notáveis sucessos, sobretudo na in-
por superior às coisas materiais e se considera vestigação e conquista do mundo material. Mas
como algo mais do que simples parcela da nature- buscou sempre, e encontrou, uma verdade mais
za ou anónimo elemento da cidade dos homens. profunda. Porque a inteligência não se limita ao
Pela sua interioridade, transcende o universo das domínio dos fenómenos; embora, em consequên-
coisas: tal é o conhecimento profundo que ele al- cia do pecado, esteja parcialmente obscurecida e
cança quando reentra no seu interior, onde Deus, debilitada, ela é capaz de atingir com certeza a
que perscruta os corações, o espera, e onde ele, realidade inteligível. Finalmente, a natureza espi-
sob o olhar do Senhor, decide da própria sorte. Ao ritual da pessoa humana encontra e deve encon-

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tos do mundo material, os quais, por meio dele, reconhecer, pois, em si uma alma espiritual e
atingem a sua máx \ma elevação e louvam livre- imortal, não se ilude com uma enganosa criação
mente o Criador. Não pode, portanto, desprezar a imaginativa, mero resultado de condições físicas e
vida corporal; deve, pelo contrário, considerar o sociais; atinge, pelo contrário, a verdade profunda

seu corpo como bom e digno de respeito, pois foi das coisas".
criado por Deus e há-de ressuscitar no último dia. • a dignidade do entendimento humano (nº 15):
Todavia, ferido pelo pecado, o homem experimen- "Participando da luz da inteligência divina, com
ta as revoltas do corpo. É, pois, a própria dignida- razão pensa o homem que supera, pela inteligên-
de humana que exige que o homem glorifique a cia, o universo. Exercitando incansavelmente, no
Deus no seu corpo, não deixando que este se es- decurso dos séculos, o próprio engenho, conse-
cravize às más inclinações do próprio coração". guiu ele grandes progressos nas ciências empíri-
• o homem superior às coisas materiais (nº 14): cas, nas técnicas e nas artes liberais. Nos nossos
"Não se engana o homem, quando se reconhece dias, alcançou notáveis sucessos, sobretudo na in-
por superior às coisas materiais e se considera vestigação e conquista do mundo material. Mas
como algo mais do que simples parcela da nature- buscou sempre, e encontrou, uma verdade mais
za ou anónimo elemento da cidade dos homens. profunda. Porque a inteligência não se limita ao
Pela sua interioridade, transcende o universo das domínio dos fenómenos; embora, em consequên-
coisas: tal é o conhecimento profundo que ele al- cia do pecado, esteja parcialmente obscurecida e
cança quando reentra no seu interior, onde Deus, debilitada, ela é capaz de atingir com certeza a
que perscruta os corações, o espera, e onde ele, realidade inteligível. Finalmente, a natureza espi-
sob o olhar do Senhor, decide da própria sorte. Ao ritual da pessoa humana encontra e deve encon-

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trar a sua perfeição 'la sabedoria, que suavemente problemas morais que surgem na vida individual
atrai o espírito do homem à busca e amor da ver- e social. Quanto mais, portanto, prevalecer a recta
dade e do bem, e graças à qual ele é levado por consciência, tanto mais as pessoas e os grupos es-
meio das coisas visíveis até às invisíveis. tarão longe da arbitrariedade cega e procurarão
• a dignidade da consciência moral (nº 16): "No conformar-se com as normas objectivas da mora-
fundo da própria consciência, o homem descobre lidade. Não raro, porém, acontece que a consciên-
uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual cia erra, por ignorância invencível, sem por isso
deve obedecer; essa voz, que sempre o está a cha- perder a própria dignidade. Outro tanto não se
mar ao amor do bem e fuga do mal, soa no mo- pode dizer quando o homem se descuida de pro-
mento oportuno, na intimidade do seu coração: curar a verdade e o bem e quando a consciência se
faz isto, evita aquilo. O homem tem no coração vai progressivamente cegando, com o hábito do
uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade pecado".
está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. • a grandeza da liberdade (nº 17): "É só na liberdade
A consciência é o centro mais secreto e o santuário que o homem se pode converter ao bem. Os ho-
do homem, no qual se encontra a sós com Deus, mens de hoje apreciam grandemente e procuram
cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. com ardor esta liberdade; e com toda a razão.
Graças à consciência, revela-se de modo admirável Muitas vezes, porém, fomentam-na dum modo
aquela lei que se realiza no amor de Deus e do condenável, como se ela consistisse na licença de
próximo. Pela fidelidade à voz da consciência, os fazer seja o que for, mesmo o mal, contanto que
cristãos estão unidos aos demais homens, no de- agrade. A liberdade verdadeira é um sinal privile-
ver de buscar a verdade e de nela resolver tantos giado da imagem divina no homem. Pois Deus

74 75
trar a sua perfeição 'la sabedoria, que suavemente problemas morais que surgem na vida individual
atrai o espírito do homem à busca e amor da ver- e social. Quanto mais, portanto, prevalecer a recta
dade e do bem, e graças à qual ele é levado por consciência, tanto mais as pessoas e os grupos es-
meio das coisas visíveis até às invisíveis. tarão longe da arbitrariedade cega e procurarão
• a dignidade da consciência moral (nº 16): "No conformar-se com as normas objectivas da mora-
fundo da própria consciência, o homem descobre lidade. Não raro, porém, acontece que a consciên-
uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual cia erra, por ignorância invencível, sem por isso
deve obedecer; essa voz, que sempre o está a cha- perder a própria dignidade. Outro tanto não se
mar ao amor do bem e fuga do mal, soa no mo- pode dizer quando o homem se descuida de pro-
mento oportuno, na intimidade do seu coração: curar a verdade e o bem e quando a consciência se
faz isto, evita aquilo. O homem tem no coração vai progressivamente cegando, com o hábito do
uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade pecado".
está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. • a grandeza da liberdade (nº 17): "É só na liberdade
A consciência é o centro mais secreto e o santuário que o homem se pode converter ao bem. Os ho-
do homem, no qual se encontra a sós com Deus, mens de hoje apreciam grandemente e procuram
cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. com ardor esta liberdade; e com toda a razão.
Graças à consciência, revela-se de modo admirável Muitas vezes, porém, fomentam-na dum modo
aquela lei que se realiza no amor de Deus e do condenável, como se ela consistisse na licença de
próximo. Pela fidelidade à voz da consciência, os fazer seja o que for, mesmo o mal, contanto que
cristãos estão unidos aos demais homens, no de- agrade. A liberdade verdadeira é um sinal privile-
ver de buscar a verdade e de nela resolver tantos giado da imagem divina no homem. Pois Deus

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quis 'deixar o homem entregue à sua própria deci-
solução do corpo que atormentam o homem, mas
são', para que busque por si mesmo o seu Criador
também, e ainda mais, o temor de que tudo acabe
e livremente chegue à total e beatífica perfeição, para sempre. Mas a intuição do próprio coração
aderindo a Ele. Exige, portanto, a dignidade do
fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar
homem que ele proceda segundo a própria consci- a ruína total e o desaparecimento definitivo da sua
ência e por livre adesão, ou seja movido e induzi-
pessoa. O germe de eternidade que nele existe, ir-
do pessoalmente desde dentro e não levado por
redutível à pura matéria, insurge-se contra a mor-
cegos impulsos interiores ou por mera coacção ex-
te. Todas as tentativas da técnica, por muito úteis
terna. O homem atinge esta dignidade quando, li-
que sejam, não conseguem acalmar a ansiedade do
bertando-se da escravidão das paixões, tende para
homem: o prolongamento da longevidade biológi-
o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e
ca não pode satisfazer aquele desejo duma vida
com diligente iniciativa os meios convenientes. A
ulterior, invencivelmente radicado no seu coração.
liberdade do homem, ferida pelo pecado, só com a
Enquanto, diante da morte, qualquer imaginação
ajuda da graça divina pode tornar plenamente
se revela impotente, a Igreja, ensinada pela revela-
efectiva esta orientação para Deus. E cada um
ção divina, afirma que o homem foi criado por
deve dar conta da própria vida perante o tribunal
Deus para um fim feliz, para além dos limites da
de Deus, segundo o bem ou o mal que tiver
miséria terrena. A fé cristã ensina que a própria
praticado".
morte corporal, de que o homem seria isento se
• a imortalidade e o enigma da morte (nº 18): "É em
não tivesse pecado - acabará por ser vencida,
face da morte que o enigma da condição humana
quando o homem for pelo omnipotente e miseri-
mais se adensa. Não é só a dor e a progressiva dis-
cordioso Salvador restituído à salvação que por
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quis 'deixar o homem entregue à sua própria deci-
solução do corpo que atormentam o homem, mas
são', para que busque por si mesmo o seu Criador
também, e ainda mais, o temor de que tudo acabe
e livremente chegue à total e beatífica perfeição, para sempre. Mas a intuição do próprio coração
aderindo a Ele. Exige, portanto, a dignidade do
fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar
homem que ele proceda segundo a própria consci- a ruína total e o desaparecimento definitivo da sua
ência e por livre adesão, ou seja movido e induzi-
pessoa. O germe de eternidade que nele existe, ir-
do pessoalmente desde dentro e não levado por
redutível à pura matéria, insurge-se contra a mor-
cegos impulsos interiores ou por mera coacção ex-
te. Todas as tentativas da técnica, por muito úteis
terna. O homem atinge esta dignidade quando, li-
que sejam, não conseguem acalmar a ansiedade do
bertando-se da escravidão das paixões, tende para
homem: o prolongamento da longevidade biológi-
o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e
ca não pode satisfazer aquele desejo duma vida
com diligente iniciativa os meios convenientes. A
ulterior, invencivelmente radicado no seu coração.
liberdade do homem, ferida pelo pecado, só com a
Enquanto, diante da morte, qualquer imaginação
ajuda da graça divina pode tornar plenamente
se revela impotente, a Igreja, ensinada pela revela-
efectiva esta orientação para Deus. E cada um
ção divina, afirma que o homem foi criado por
deve dar conta da própria vida perante o tribunal
Deus para um fim feliz, para além dos limites da
de Deus, segundo o bem ou o mal que tiver
miséria terrena. A fé cristã ensina que a própria
praticado".
morte corporal, de que o homem seria isento se
• a imortalidade e o enigma da morte (nº 18): "É em
não tivesse pecado - acabará por ser vencida,
face da morte que o enigma da condição humana
quando o homem for pelo omnipotente e miseri-
mais se adensa. Não é só a dor e a progressiva dis-
cordioso Salvador restituído à salvação que por
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sua culpa perdera. Com efeito, Deus chamou e Criador. Porém, muitos dos nossos contemporâ-

chama o homem a unir-se a Ele com todo o seu ser neos não atendem a esta íntima e vital ligação a

na perpétua comunhão da incorruptível vida di- Deus, ou até a rejeitam explicitamente; de tal ma-

vina. Esta vitória, alcançou-a Cristo ressuscitado, neira que o ateísmo deve ser considerado entre os

libertando o homem da morte com a própria mor- factos mais graves do tempo actual e submetido a

te. Portanto, a fé, que se apresenta à reflexão do atento exame".


homem apoiada em sólidos argumentos, dá uma • Cristo, o homem novo (nº 22): "Na realidade, o
resposta à sua ansiedade acerca do seu destino fu- mistério do homem só no mistério do Verbo en-
turo; e ao mesmo tempo oferece a possibilidade de carnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o
comunicar em Cristo com os irmãos queridos que primeiro homem, era efectivamente figura do fu-
a morte já levou, fazendo esperar que eles alcança- turo, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão,
ram a verdadeira vida junto de Deus". na própria revelação do mistério do Pai e do seu

• o homem convidado a dialogar com Deus (nº 19): amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe

"A razão mais sublime da dignidade do homem a sua vocação sublime. Não é por isso de admirar

consiste na sua vocação à união com Deus. É des- que as verdades acima ditas tenham n'Ele a sua

de o começo da sua existência que o homem é fonte e n'Ele atinjam a plenitude. 'Imagem de

convidado a dialogar com Deus: pois, se existe, é Deus invisível' (Cl 1, 15), Ele é o homem perfeito,

só porque, criado por Deus por amor, é por Ele que restitui aos filhos de Adão semelhança divina,

por amor constantemente conservado; nem pode deformada desde o primeiro pecado. Jáque, n'Ele,

viver plenamente segundo a verdade, se não reco- a natureza humana foi assumida, e não destruída,

nhecer livremente esse amor e se entregar ao seu por isso mesmo também em nós foi ela elevada a

79
78
sua culpa perdera. Com efeito, Deus chamou e Criador. Porém, muitos dos nossos contemporâ-

chama o homem a unir-se a Ele com todo o seu ser neos não atendem a esta íntima e vital ligação a

na perpétua comunhão da incorruptível vida di- Deus, ou até a rejeitam explicitamente; de tal ma-

vina. Esta vitória, alcançou-a Cristo ressuscitado, neira que o ateísmo deve ser considerado entre os

libertando o homem da morte com a própria mor- factos mais graves do tempo actual e submetido a

te. Portanto, a fé, que se apresenta à reflexão do atento exame".


homem apoiada em sólidos argumentos, dá uma • Cristo, o homem novo (nº 22): "Na realidade, o
resposta à sua ansiedade acerca do seu destino fu- mistério do homem só no mistério do Verbo en-
turo; e ao mesmo tempo oferece a possibilidade de carnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o
comunicar em Cristo com os irmãos queridos que primeiro homem, era efectivamente figura do fu-
a morte já levou, fazendo esperar que eles alcança- turo, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão,
ram a verdadeira vida junto de Deus". na própria revelação do mistério do Pai e do seu

• o homem convidado a dialogar com Deus (nº 19): amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe

"A razão mais sublime da dignidade do homem a sua vocação sublime. Não é por isso de admirar

consiste na sua vocação à união com Deus. É des- que as verdades acima ditas tenham n'Ele a sua

de o começo da sua existência que o homem é fonte e n'Ele atinjam a plenitude. 'Imagem de

convidado a dialogar com Deus: pois, se existe, é Deus invisível' (Cl 1, 15), Ele é o homem perfeito,

só porque, criado por Deus por amor, é por Ele que restitui aos filhos de Adão semelhança divina,

por amor constantemente conservado; nem pode deformada desde o primeiro pecado. Jáque, n'Ele,

viver plenamente segundo a verdade, se não reco- a natureza humana foi assumida, e não destruída,

nhecer livremente esse amor e se entregar ao seu por isso mesmo também em nós foi ela elevada a

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sublime dignidade. Porque, pela sua encarnação, nova do amor. Por meio deste Espírito, 'penhor da
Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada herança' (Ef l, 14), o homem todo é renovado inte-
homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou riormente, até à 'redenção do corpo' (Rm 8, 23):
com uma inteligência humana, agiu com uma 'Se o Espírito d' Aquele que ressuscitou Jesus de
vontade humana, amou com um coração humano. entre os mortos habita em vós, Aquele que ressus-
Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeira- citou Jesus de entre os mortos dará também a vida
mente um de nós, semelhante a nós em tudo, ex- aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que
cepto no pecado. Cordeiro inocente, mereceu-nos em vós habita' (Rm 8, 11). É verdade que para o
a vida com a livre efusão do seu sangue; n'Ele nos cristão é uma necessidade e um dever lutar contra
reconciliou Deus consigo e uns com os outros e o mal através de muitas tribulações, e sofrer a
nos arrancou da escravidão do demónio e do pe- morte; mas, associado ao mistério pascal, e confi-
cado. De maneira que cada um de nós pode dizer gurado à morte de Cristo, vai ao encontro da res-
com o Apóstolo: o Filho de Deus 'amou-me e en- surreição, fortalecido pela esperança. E o que fica
tregou-se por mim' (Gl 2, 20). Sofrendo por nós, dito, vale não só dos cristãos, mas de todos os
não só nos deu exemplo, para que sigamos os seus homens de boa vontade, em cujos corações a graça
passos, mas também abriu um novo caminho, em opera ocultamente. Com efeito, já que por todos
que a vida e a morte são santificados e recebem morreu Cristo e a vocação última de todos os ho-
um novo sentido. O cristão, tornado conforme à mens é realmente uma só, a saber, a divina, deve-
imagem do Filho que é o primogénito entre a mul- mos manter que o Espírito Santo a todos dá a pos-
tidão dos irmãos, recebe 'as primícias do Espírito' sibilidade de se associarem a este mistério pascal
(Rm 8, 23), que o tornam capaz de cumprir a lei por um modo só de Deus conhecido. Tal é, e tão

80 81

6
sublime dignidade. Porque, pela sua encarnação, nova do amor. Por meio deste Espírito, 'penhor da
Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada herança' (Ef l, 14), o homem todo é renovado inte-
homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou riormente, até à 'redenção do corpo' (Rm 8, 23):
com uma inteligência humana, agiu com uma 'Se o Espírito d' Aquele que ressuscitou Jesus de
vontade humana, amou com um coração humano. entre os mortos habita em vós, Aquele que ressus-
Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeira- citou Jesus de entre os mortos dará também a vida
mente um de nós, semelhante a nós em tudo, ex- aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que
cepto no pecado. Cordeiro inocente, mereceu-nos em vós habita' (Rm 8, 11). É verdade que para o
a vida com a livre efusão do seu sangue; n'Ele nos cristão é uma necessidade e um dever lutar contra
reconciliou Deus consigo e uns com os outros e o mal através de muitas tribulações, e sofrer a
nos arrancou da escravidão do demónio e do pe- morte; mas, associado ao mistério pascal, e confi-
cado. De maneira que cada um de nós pode dizer gurado à morte de Cristo, vai ao encontro da res-
com o Apóstolo: o Filho de Deus 'amou-me e en- surreição, fortalecido pela esperança. E o que fica
tregou-se por mim' (Gl 2, 20). Sofrendo por nós, dito, vale não só dos cristãos, mas de todos os
não só nos deu exemplo, para que sigamos os seus homens de boa vontade, em cujos corações a graça
passos, mas também abriu um novo caminho, em opera ocultamente. Com efeito, já que por todos
que a vida e a morte são santificados e recebem morreu Cristo e a vocação última de todos os ho-
um novo sentido. O cristão, tornado conforme à mens é realmente uma só, a saber, a divina, deve-
imagem do Filho que é o primogénito entre a mul- mos manter que o Espírito Santo a todos dá a pos-
tidão dos irmãos, recebe 'as primícias do Espírito' sibilidade de se associarem a este mistério pascal
(Rm 8, 23), que o tornam capaz de cumprir a lei por um modo só de Deus conhecido. Tal é, e tão

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grande, o mistério do homem, que a revelação a vida social algo de adventício ao homem, este

cristã manifesta aos que crêem. E assim, por Cris- cresce segundo todas as suas qualidades e torna-se

to e em Cristo, esclarece-se o enigma da dor e da capaz de responder à própria vocação, graças ao

morte, o qual, fora do Seu Evangelho, nos esma- contacto com os demais, ao mútuo serviço e ao di-

ga. Cristo ressuscitou, destruindo a morte com a álogo com seus irmãos".

própria morte, e deu-nos a vida, para que, torna- • a promoção do bem comum (nº 26): "A interde-

dos filhos no Filho, exclamemos no Espírito: pendência, cada vez mais estreita e progressiva-

Abba, Pai". mente estendida a todo o mundo, faz com que o


bem comum - ou seja, o conjunto das condições

Também no capítulo sobre a comunidade hu- da vida social que permitem, tanto aos grupos

mana (cap. II da I parte) encontramos elementos de como a cada membro, alcançar mais plena e facil-

particular importância: mente a própria perfeição - se torne hoje cada vez


mais universal e que, por esse motivo, implique
• a pessoa centro das instituições sociais (nº 25): "A
direitos e deveres que dizem respeito a todo o gé-
natureza social do homem torna claro que o pro-
nero humano. Cada grupo deve ter em conta as
gresso da pessoa humana e o desenvolvimento da
necessidades e legítimas aspirações dos outros
própria sociedade estão em mútua dependência.
grupos e mesmo o bem comum de toda a família
Com efeito, a pessoa humana, uma vez que, por
humana. Simultaneamente, aumenta a consciência
sua natureza, necessita absolutamente da vida so-
da eminente dignidade da pessoa humana, por ser
cial, é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de
superior a todas as coisas e os seus direitos e deve-
todas as instituições sociais. Não sendo, portanto,
res serem universais e invioláveis. É necessário,

83
82
grande, o mistério do homem, que a revelação a vida social algo de adventício ao homem, este

cristã manifesta aos que crêem. E assim, por Cris- cresce segundo todas as suas qualidades e torna-se

to e em Cristo, esclarece-se o enigma da dor e da capaz de responder à própria vocação, graças ao

morte, o qual, fora do Seu Evangelho, nos esma- contacto com os demais, ao mútuo serviço e ao di-

ga. Cristo ressuscitou, destruindo a morte com a álogo com seus irmãos".

própria morte, e deu-nos a vida, para que, torna- • a promoção do bem comum (nº 26): "A interde-

dos filhos no Filho, exclamemos no Espírito: pendência, cada vez mais estreita e progressiva-

Abba, Pai". mente estendida a todo o mundo, faz com que o


bem comum - ou seja, o conjunto das condições

Também no capítulo sobre a comunidade hu- da vida social que permitem, tanto aos grupos

mana (cap. II da I parte) encontramos elementos de como a cada membro, alcançar mais plena e facil-

particular importância: mente a própria perfeição - se torne hoje cada vez


mais universal e que, por esse motivo, implique
• a pessoa centro das instituições sociais (nº 25): "A
direitos e deveres que dizem respeito a todo o gé-
natureza social do homem torna claro que o pro-
nero humano. Cada grupo deve ter em conta as
gresso da pessoa humana e o desenvolvimento da
necessidades e legítimas aspirações dos outros
própria sociedade estão em mútua dependência.
grupos e mesmo o bem comum de toda a família
Com efeito, a pessoa humana, uma vez que, por
humana. Simultaneamente, aumenta a consciência
sua natureza, necessita absolutamente da vida so-
da eminente dignidade da pessoa humana, por ser
cial, é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de
superior a todas as coisas e os seus direitos e deve-
todas as instituições sociais. Não sendo, portanto,
res serem universais e invioláveis. É necessário,

83
82
portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coi- to de Deus, que dirige o curso dos tempos e reno-
sas de que necessita para levar uma vida verda- va a face da terra com admirável providência, está
deiramente humana: alimento, vesLuário, casa, di- presente a esta evolução. E o fermento evangélico
reito de escolher livremente o estado de vida e de despertou e desperta no coração humano uma ir-
constituir família, direito à educação, ao trabalho, reprimível exigência de dignidade".
à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, • o respeito da pessoa humana (nº 27): "Vindo a
direito de agir segundo as normas da própria conclusões práticas e mais urgentes, o Concílio re-
consciência, direito à protecção da sua vida e à jus- comenda a reverência para com o homem, de ma-
ta liberdade mesmo em matéria religiosa. A or- neira que cada um deve considerar o próximo,
dem social e o seu progresso devem, pois, reverter sem excepção, como um 'outro eu', tendo em con-
sempre em bem das pessoas, já que a ordem das ta, antes de mais, a sua vida e os meios necessários
coisas deve estar subordinada à ordem das pesso- para a levar dignamente, não imitando aquele
as e não ao contrário; foi o próprio Senhor quem o homem rico que não fez caso algum do pobre
insinuou ao dizer que o sábado fora feito para o Lázaro. Sobretudo em nossos dias, urge a obriga-
homem, não o homem para o sábado. Essa ordem, ção de nos tornarmos o próximo de todo e qual-
fundada na verdade, construída sobre a justiça e quer homem, e de o servir efectivamente quando
vivificada pelo amor, deve ser cada vez mais des- vem ao nosso encontro - quer seja o ancião, aban-
envolvida e, na liberdade, deve encontrar um donado de todos, ou o operário estrangeiro injus-
equilíbrio cada vez mais humano. Para o conse- tamente desprezado, ou o exilado, ou o filho
guir, será necessária a renovação da mentalidade e duma união ilegítima que sofre injustamente por
a introdução de amplas reformas sociais. O Espíri- causa dum pecado que não cometeu, ou o indi-

84 85
portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coi- to de Deus, que dirige o curso dos tempos e reno-
sas de que necessita para levar uma vida verda- va a face da terra com admirável providência, está
deiramente humana: alimento, vesLuário, casa, di- presente a esta evolução. E o fermento evangélico
reito de escolher livremente o estado de vida e de despertou e desperta no coração humano uma ir-
constituir família, direito à educação, ao trabalho, reprimível exigência de dignidade".
à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, • o respeito da pessoa humana (nº 27): "Vindo a
direito de agir segundo as normas da própria conclusões práticas e mais urgentes, o Concílio re-
consciência, direito à protecção da sua vida e à jus- comenda a reverência para com o homem, de ma-
ta liberdade mesmo em matéria religiosa. A or- neira que cada um deve considerar o próximo,
dem social e o seu progresso devem, pois, reverter sem excepção, como um 'outro eu', tendo em con-
sempre em bem das pessoas, já que a ordem das ta, antes de mais, a sua vida e os meios necessários
coisas deve estar subordinada à ordem das pesso- para a levar dignamente, não imitando aquele
as e não ao contrário; foi o próprio Senhor quem o homem rico que não fez caso algum do pobre
insinuou ao dizer que o sábado fora feito para o Lázaro. Sobretudo em nossos dias, urge a obriga-
homem, não o homem para o sábado. Essa ordem, ção de nos tornarmos o próximo de todo e qual-
fundada na verdade, construída sobre a justiça e quer homem, e de o servir efectivamente quando
vivificada pelo amor, deve ser cada vez mais des- vem ao nosso encontro - quer seja o ancião, aban-
envolvida e, na liberdade, deve encontrar um donado de todos, ou o operário estrangeiro injus-
equilíbrio cada vez mais humano. Para o conse- tamente desprezado, ou o exilado, ou o filho
guir, será necessária a renovação da mentalidade e duma união ilegítima que sofre injustamente por
a introdução de amplas reformas sociais. O Espíri- causa dum pecado que não cometeu, ou o indi-

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gente que interpela a nossa consciência, recordan- cem injustamente; e ofendem gravemente a honra

do a palavra do Senhor: 'toJas as vezes que o fi- devida ao Criador".

zestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, • a igualdade essencial entre todos os homens

a mim o fizestes' (Mt 25, 40). Além disso, são in- (nº 29): "A igualdade fundamental entre todos os

fames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à homens deve ser cada vez mais reconhecida, uma

vida, como seja toda a espécie de homicídio, geno- vez que, dotados de alma racional e criados à

cídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo imagem de Deus, todos têm a mesma natureza e

o que viola a integridade da pessoa humana, como origem; e, remidos por Cristo, todos têm a mesma

as mutilações, os tormentos corporais e mentais e vocação e destino divinos. Sem dúvida, os homens

as tentativas para violentar as próprias consciên- não são todos iguais quanto à capacidade física e

cias; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa forças intelectuais e morais, variadas e diferentes

humana, como as condições de vida infra-huma- em cada um. Mas deve superar-se e eliminar-se,

nas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escra- como contrária à vontade de Deus, qualquer for-
vidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jo- ma social ou cultural de discriminação, quanto aos

vens; e também as condições degradantes de tra- direitos fundamentais da pessoa, por razão do

balho em que os operários são tratados como me- sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião.

ros instrumentos de lucro e não como pessoas li- É realmente de lamentar que esses direitos fun-

vres e responsáveis . Todas estas coisas e outras damentais da pessoa ainda não sejam respeitados

semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que em toda a parte. Por exemplo, quando se nega à

corrompem a civilização humana, desonram mais mulher o poder de escolher livremente o esposo

aqueles que assim procedem, do que os que pade- ou o estado de vida ou de conseguir uma educa-

87
86
gente que interpela a nossa consciência, recordan- cem injustamente; e ofendem gravemente a honra

do a palavra do Senhor: 'toJas as vezes que o fi- devida ao Criador".

zestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, • a igualdade essencial entre todos os homens

a mim o fizestes' (Mt 25, 40). Além disso, são in- (nº 29): "A igualdade fundamental entre todos os

fames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à homens deve ser cada vez mais reconhecida, uma

vida, como seja toda a espécie de homicídio, geno- vez que, dotados de alma racional e criados à

cídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo imagem de Deus, todos têm a mesma natureza e

o que viola a integridade da pessoa humana, como origem; e, remidos por Cristo, todos têm a mesma

as mutilações, os tormentos corporais e mentais e vocação e destino divinos. Sem dúvida, os homens

as tentativas para violentar as próprias consciên- não são todos iguais quanto à capacidade física e

cias; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa forças intelectuais e morais, variadas e diferentes

humana, como as condições de vida infra-huma- em cada um. Mas deve superar-se e eliminar-se,

nas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escra- como contrária à vontade de Deus, qualquer for-
vidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jo- ma social ou cultural de discriminação, quanto aos

vens; e também as condições degradantes de tra- direitos fundamentais da pessoa, por razão do

balho em que os operários são tratados como me- sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião.

ros instrumentos de lucro e não como pessoas li- É realmente de lamentar que esses direitos fun-

vres e responsáveis . Todas estas coisas e outras damentais da pessoa ainda não sejam respeitados

semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que em toda a parte. Por exemplo, quando se nega à

corrompem a civilização humana, desonram mais mulher o poder de escolher livremente o esposo

aqueles que assim procedem, do que os que pade- ou o estado de vida ou de conseguir uma educa-

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ção e cultura igua~ ~ às do homem. Além disso, O Concílio, na declaração Dignitatis humanae,
embora entre os homens haja justas diferenças, a dá também grande ênfase à dignidade da pessoa:
igual dignidade pessoal postula, no entanto, que "Os homens de hoje tornam-se cada vez mais consci-
se chegue a condições de vida mais humanas e entes da dignidade da pessoa humana e, cada vez em
justas. Com efeito, as excessivas desigualdades maior número, reivindicam a capacidade de agir se-
económicas e sociais entre os membros e povos da gundo a própria convicção e com liberdade respon-
única família humana provocam o escândalo e são sável, não forçados por coacção mas levados pela
obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade consciência do dever. Requerem também que o po-
da pessoa humana e, finalmente, à paz social e in- der político seja delimitado juridicamente, a fim de
ternacional. Procurem as instituições humanas, que a honesta liberdade das pessoas e das associa-
privadas ou públicas, servir a dignidade e o desti- ções não seja restringida mais do que é devido. Esta
no do homem, combatendo ao mesmo tempo va- exigência de liberdade na sociedade humana diz res-
lorosamente contra qualquer forma de sujeição peito principalmente ao que é próprio do espírito, e,
política ou social e salvaguardando, sob qualquer antes de mais, ao que se refere ao livre exercício da
regime político, os direitos humanos fundamen- religião na sociedade" 57

tais. Mais ainda: é necessário que tais instituições


se adaptem progressivamente às realidades espiri- Acerca do carácter absoluto da pessoa, o pen-
tuais, que são as mais elevadas de todas; embora samento cristão fundamenta-se nas atitudes de Cris-
por vezes se requeira um tempo razoavelmente
longo para chegar a esse desejado fim. 57
CONCÍLIO V A TICANO II, Declaração "Dignitntis hu-
manae" sobre a liberdade religiosa (Roma, 7 de Dezembro de
1965) nQ1.

88 89
ção e cultura igua~ ~ às do homem. Além disso, O Concílio, na declaração Dignitatis humanae,
embora entre os homens haja justas diferenças, a dá também grande ênfase à dignidade da pessoa:
igual dignidade pessoal postula, no entanto, que "Os homens de hoje tornam-se cada vez mais consci-
se chegue a condições de vida mais humanas e entes da dignidade da pessoa humana e, cada vez em
justas. Com efeito, as excessivas desigualdades maior número, reivindicam a capacidade de agir se-
económicas e sociais entre os membros e povos da gundo a própria convicção e com liberdade respon-
única família humana provocam o escândalo e são sável, não forçados por coacção mas levados pela
obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade consciência do dever. Requerem também que o po-
da pessoa humana e, finalmente, à paz social e in- der político seja delimitado juridicamente, a fim de
ternacional. Procurem as instituições humanas, que a honesta liberdade das pessoas e das associa-
privadas ou públicas, servir a dignidade e o desti- ções não seja restringida mais do que é devido. Esta
no do homem, combatendo ao mesmo tempo va- exigência de liberdade na sociedade humana diz res-
lorosamente contra qualquer forma de sujeição peito principalmente ao que é próprio do espírito, e,
política ou social e salvaguardando, sob qualquer antes de mais, ao que se refere ao livre exercício da
regime político, os direitos humanos fundamen- religião na sociedade" 57

tais. Mais ainda: é necessário que tais instituições


se adaptem progressivamente às realidades espiri- Acerca do carácter absoluto da pessoa, o pen-
tuais, que são as mais elevadas de todas; embora samento cristão fundamenta-se nas atitudes de Cris-
por vezes se requeira um tempo razoavelmente
longo para chegar a esse desejado fim. 57
CONCÍLIO V A TICANO II, Declaração "Dignitntis hu-
manae" sobre a liberdade religiosa (Roma, 7 de Dezembro de
1965) nQ1.

88 89
to que coloca cada uma das pessoas no centro da sua nismo e o imperativo kantiano como regra basilar da
missão. Todo o pensamento ético cristão se expressa bioética 59 •
a partir da "regra de ouro": "O que quiserdes que os O filósofo e teólogo cristão Hans Küng tam-
outros vos façam, fazei-lho vós também" (Lc 6, 31; cf. bém se refere à relação entre a regra de ouro e o im-
Mt 7, 12); e também no "mandamento novo": "Que perativo de Kant: «Esta "regra de ouro" já havia sido
vos ameis uns aos outros assim como eu vos amei" comprovada por Confúcio - "Aquilo que não desejas
(Jo 13, 34). para ti, não o faças aos outros" (Confúcio, ca. 551-489
O pensamento ético de Kant traduz muito cla- a.C.) - , bem como pelo judaísmo - "Não faças aos
ramente esta centralidade da pessoa: "Age de tal outros aquilo que não queres que os outros te façam
maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa a ti." (Rabi Hillel 60 a.C. - 10 a.C.) - e, finalmente,
como na pessoa de qualquer outro, sempre e simul- também pelo cristianismo: "O que quiseres que os
taneamente como fim e nunca simplesmente como homens vos façam, fazei-lho vós também." O impe-
meio" 58 • rativo categórico de Kant poderia ser entendido
Joseph Ratzinger, Cardeal Perfeito da Congre- como uma modernização, racionalização e seculari-
gação para a Doutrina da Fé, ao pensar acerca da zação desta regra de ouro: "age de tal modo que a
possibilidade de uma bioética cristã, refere-se exac- máxima da tua vontade possa valer sempre ao mes-
tamente à relação entre a regra de ouro do cristia- mo tempo como princípio de uma legislação univer-
sal" ou: "age de modo tal que utilizes a humanidade,
59
Joseph RATZINGER, La bioetica nella prospettiva a-isti-
58
Immanuel KANT, Grundlegung zur Metafhysik der ana, em La Civiltà Católica III (1991) 472; J. RATZINGER, Bioéti-
Sitten (trad. port.: Fundamentação da metafísica dos costumes, ca "cristiana ", em Russo Giovanni, etc., Bioetica fondamentale e
Edições 70, Lisboa, 1997, 69). generale, Società Editrice Internazionale, Torino, 1995, 328.

90 91
to que coloca cada uma das pessoas no centro da sua nismo e o imperativo kantiano como regra basilar da
missão. Todo o pensamento ético cristão se expressa bioética 59 •
a partir da "regra de ouro": "O que quiserdes que os O filósofo e teólogo cristão Hans Küng tam-
outros vos façam, fazei-lho vós também" (Lc 6, 31; cf. bém se refere à relação entre a regra de ouro e o im-
Mt 7, 12); e também no "mandamento novo": "Que perativo de Kant: «Esta "regra de ouro" já havia sido
vos ameis uns aos outros assim como eu vos amei" comprovada por Confúcio - "Aquilo que não desejas
(Jo 13, 34). para ti, não o faças aos outros" (Confúcio, ca. 551-489
O pensamento ético de Kant traduz muito cla- a.C.) - , bem como pelo judaísmo - "Não faças aos
ramente esta centralidade da pessoa: "Age de tal outros aquilo que não queres que os outros te façam
maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa a ti." (Rabi Hillel 60 a.C. - 10 a.C.) - e, finalmente,
como na pessoa de qualquer outro, sempre e simul- também pelo cristianismo: "O que quiseres que os
taneamente como fim e nunca simplesmente como homens vos façam, fazei-lho vós também." O impe-
meio" 58 • rativo categórico de Kant poderia ser entendido
Joseph Ratzinger, Cardeal Perfeito da Congre- como uma modernização, racionalização e seculari-
gação para a Doutrina da Fé, ao pensar acerca da zação desta regra de ouro: "age de tal modo que a
possibilidade de uma bioética cristã, refere-se exac- máxima da tua vontade possa valer sempre ao mes-
tamente à relação entre a regra de ouro do cristia- mo tempo como princípio de uma legislação univer-
sal" ou: "age de modo tal que utilizes a humanidade,
59
Joseph RATZINGER, La bioetica nella prospettiva a-isti-
58
Immanuel KANT, Grundlegung zur Metafhysik der ana, em La Civiltà Católica III (1991) 472; J. RATZINGER, Bioéti-
Sitten (trad. port.: Fundamentação da metafísica dos costumes, ca "cristiana ", em Russo Giovanni, etc., Bioetica fondamentale e
Edições 70, Lisboa, 1997, 69). generale, Società Editrice Internazionale, Torino, 1995, 328.

90 91
quer a tua própria condição de pessoa humana quer mento bem diferentes quanto a esta questão. Diz o
a de outrem ... sempre como fim e nunca como um CNECV:
60
mero me10. • 11
» . "Desde as que defendem que a partir da con-
cepção nos encontramos em presença de uma pessoa,
com plena dignidade e consequentes direitos, até às
5. Pessoa, ética e técnica que entendem que o processo é diverso, só se verifi-
cando a 'hominização' com o início da vida extra-

A relação entre a pessoa, a ética e a técnica não -uterina. Mais difundida que esta última (e extrema)

está isenta de dificuldades. Toda a problemática rela- posição é a de conceder respeito ao embrião desde as

cionada com a experimentação do embrião é exem- primeiras fases do desenvolvimento, por ser de ori-

plo disso mesmo. O Conselho Nacional de Ética para gem humana e pessoa potencial, mas de estabelecer

as Ciências da Vida (CNECV) tratou este tema no limites a este mesmo respeito, que, no entender dos

Rela tório-parecer 15 / CNE CV/ 9561 • que assim pensam, não pode ser tão completo ou

Uma das questões que se coloca diz respeito à absoluto como aquele que merece uma pessoa já
62
natureza do embrião. Existem correntes de pensa- nascida" •

Mais adiante, continua o documento acerca do


embrião, vida e pessoa humana:
60
Hans KÜNG, Projekt Weltethos (trad. port.: Projecto "A questão crucial é (...) a natureza do embri-
para uma ética mundial, Instituto Piaget, Lisboa, 1996, 111).
61
CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS ão humano, da qual dependerá o seu estatuto. Que
DA VIDA, Relatório-parecer (15/CNECV/95) sobre a experimenta-
ção do embrião, em Documentação, vol. III, Presidência do Con- 62
CNECV, Relatório-parecer sobre a experimentação
selho de Ministros, Lisboa, 1996, 95-108. cit., 96-97.

92 93
quer a tua própria condição de pessoa humana quer mento bem diferentes quanto a esta questão. Diz o
a de outrem ... sempre como fim e nunca como um CNECV:
60
mero me10. • 11
» . "Desde as que defendem que a partir da con-
cepção nos encontramos em presença de uma pessoa,
com plena dignidade e consequentes direitos, até às
5. Pessoa, ética e técnica que entendem que o processo é diverso, só se verifi-
cando a 'hominização' com o início da vida extra-

A relação entre a pessoa, a ética e a técnica não -uterina. Mais difundida que esta última (e extrema)

está isenta de dificuldades. Toda a problemática rela- posição é a de conceder respeito ao embrião desde as

cionada com a experimentação do embrião é exem- primeiras fases do desenvolvimento, por ser de ori-

plo disso mesmo. O Conselho Nacional de Ética para gem humana e pessoa potencial, mas de estabelecer

as Ciências da Vida (CNECV) tratou este tema no limites a este mesmo respeito, que, no entender dos

Rela tório-parecer 15 / CNE CV/ 9561 • que assim pensam, não pode ser tão completo ou

Uma das questões que se coloca diz respeito à absoluto como aquele que merece uma pessoa já
62
natureza do embrião. Existem correntes de pensa- nascida" •

Mais adiante, continua o documento acerca do


embrião, vida e pessoa humana:
60
Hans KÜNG, Projekt Weltethos (trad. port.: Projecto "A questão crucial é (...) a natureza do embri-
para uma ética mundial, Instituto Piaget, Lisboa, 1996, 111).
61
CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS ão humano, da qual dependerá o seu estatuto. Que
DA VIDA, Relatório-parecer (15/CNECV/95) sobre a experimenta-
ção do embrião, em Documentação, vol. III, Presidência do Con- 62
CNECV, Relatório-parecer sobre a experimentação
selho de Ministros, Lisboa, 1996, 95-108. cit., 96-97.

92 93
se trata de um estado i· licial da vida humana, não é briões que não chegam a implantar-se, o que traduzi-
lícito duvidar: garantidas as necessárias condições, e ria que a natureza dispõe dos embriões com manifes-
se vencidos os escolhos que se põem à sua implanta- ta prodigalidade; c) por só com a formação da placa
ção e crescimento intra-uterino, o embrião não pode neutral (pelos 14 dias) estar garantido o esboço do

deixar de dar origem a um representante da espécie sistema nervoso, indispensável às funções cognitivas,
humana, e nunca desembocará num indivíduo de sensitivas e de relação que encerram a essência da
qualquer outra espécie. pessoa humana.

Vida humana, sem dúvida. Mas pessoa hu- Não se vislumbra a possibilidade de obter

mana? Aqui a resposta é mais difícil, já que não estão consensos entre estas posições doutrinais . Certo é o
em causa apenas conhecimentos e factos biológicos, princípio de que uma nova vida humana é marcada
mas também conceitos filosóficos, atitudes culturais, pela fecundação, devendo entender-se por esta a sin-
crenças religiosas, e, porventura, definições jurídicas . gamia, ou seja, a fusão dos dois pronúcleos (de ori-

Pessoa, sim, desde a fecundação porque dota- gem materna e paterna) e não a penetração do es-

da de identidade genética, única e irredutível na sua permatozóide no óvulo. (...)

natureza - dizem muitos. Outros dirão: pessoa po- Na impossibilidade de obter consensos, e sa-
tencial, porque tem em si a potência de vir a ser pes- bendo-se da adopção de atitudes diversas a até opos-
soa, mas destituída de personalidade: a) por poder tas por significativos estratos da comunidade plural,
originar não um mas dois, três ou mais indivíduos parece aconselhável não atribuir para este efeito de-
(gémeos univitelinos) e porque, ao invés, dois ou masiada importância à questão da natureza pessoal
mais embriões no estado de mórula podem agregar-
-se num único; b) por ser elevado o número de em-

94 95
se trata de um estado i· licial da vida humana, não é briões que não chegam a implantar-se, o que traduzi-
lícito duvidar: garantidas as necessárias condições, e ria que a natureza dispõe dos embriões com manifes-
se vencidos os escolhos que se põem à sua implanta- ta prodigalidade; c) por só com a formação da placa
ção e crescimento intra-uterino, o embrião não pode neutral (pelos 14 dias) estar garantido o esboço do

deixar de dar origem a um representante da espécie sistema nervoso, indispensável às funções cognitivas,
humana, e nunca desembocará num indivíduo de sensitivas e de relação que encerram a essência da
qualquer outra espécie. pessoa humana.

Vida humana, sem dúvida. Mas pessoa hu- Não se vislumbra a possibilidade de obter

mana? Aqui a resposta é mais difícil, já que não estão consensos entre estas posições doutrinais . Certo é o
em causa apenas conhecimentos e factos biológicos, princípio de que uma nova vida humana é marcada
mas também conceitos filosóficos, atitudes culturais, pela fecundação, devendo entender-se por esta a sin-
crenças religiosas, e, porventura, definições jurídicas . gamia, ou seja, a fusão dos dois pronúcleos (de ori-

Pessoa, sim, desde a fecundação porque dota- gem materna e paterna) e não a penetração do es-

da de identidade genética, única e irredutível na sua permatozóide no óvulo. (...)

natureza - dizem muitos. Outros dirão: pessoa po- Na impossibilidade de obter consensos, e sa-
tencial, porque tem em si a potência de vir a ser pes- bendo-se da adopção de atitudes diversas a até opos-
soa, mas destituída de personalidade: a) por poder tas por significativos estratos da comunidade plural,
originar não um mas dois, três ou mais indivíduos parece aconselhável não atribuir para este efeito de-
(gémeos univitelinos) e porque, ao invés, dois ou masiada importância à questão da natureza pessoal
mais embriões no estado de mórula podem agregar-
-se num único; b) por ser elevado o número de em-

94 95
ou não do emhrião, limitando-a, antes, ao princípio cional que é moralmente devido ao ser humano na
63
assegurado" • sua totalidade e unidade corporal e espiritual: O ser
Com o CNECV pensamos que não importa humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa
tanto a discussão teórica acerca do carácter pessoal desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo
ou não do embrião, mas o posicionamento ético, a momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da
forma como nos relacionamos com ele do ponto de pessoa, entre os quais e primeiro de todos, o direito
64
vista prático. Torna-se praticamente impossível um inviolável de cada ser humano inocente à vida" •

acordo do ponto de vista teórico. A resposta a esta Depois, o CNECV interroga-se: um estatuto
questão será fundamentalmente prática. para o embrião? E afirma: "A vida humana é invio-
A ética católica situa-se exactamente nesta lável, estatui exemplarmente a Constituição da Re-
perspectiva. Não se diz que o embrião deve ser res- pública Portuguesa no seu Artigo 24º. Sendo assim, e
peitado porque é pessoa, mas como pessoa. Num im- desde que se afigura impossível negar a existência de
portante documento sobre a bioética, o Papa João uma nova vida humana no embrião, desde a singa-
Paulo II afirma: "Independentemente dos debates mia, o embrião não poderá ser objecto de qualquer
científicos e mesmo das afirmações filosóficas com os experimentação que conduza, ou possa conduzir, à
65
quais o Magistério não se empenhou expressamente, sua destruição" •

a Igreja sempre ensinou - e ensina - que tem de ser


garantido ao fruto da geração humana, desde o pri-
64
JOÃO PAULO II, Carta encíclica "Evangelium vitae" so-
meiro instante da sua existência, o respeito incondi-
bre o valor e a inviolabilidade da vida humana (Roma, 25 de Mar-
63
ço de 1995), nº 60.
CNECV, Relatório-parecer sobre a experimentação 65
CNECV, Relatório-parecer sobre a experimentação
cit., 98-99. cit., 100.

96 97

7
ou não do emhrião, limitando-a, antes, ao princípio cional que é moralmente devido ao ser humano na
63
assegurado" • sua totalidade e unidade corporal e espiritual: O ser
Com o CNECV pensamos que não importa humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa
tanto a discussão teórica acerca do carácter pessoal desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo
ou não do embrião, mas o posicionamento ético, a momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da
forma como nos relacionamos com ele do ponto de pessoa, entre os quais e primeiro de todos, o direito
64
vista prático. Torna-se praticamente impossível um inviolável de cada ser humano inocente à vida" •

acordo do ponto de vista teórico. A resposta a esta Depois, o CNECV interroga-se: um estatuto
questão será fundamentalmente prática. para o embrião? E afirma: "A vida humana é invio-
A ética católica situa-se exactamente nesta lável, estatui exemplarmente a Constituição da Re-
perspectiva. Não se diz que o embrião deve ser res- pública Portuguesa no seu Artigo 24º. Sendo assim, e
peitado porque é pessoa, mas como pessoa. Num im- desde que se afigura impossível negar a existência de
portante documento sobre a bioética, o Papa João uma nova vida humana no embrião, desde a singa-
Paulo II afirma: "Independentemente dos debates mia, o embrião não poderá ser objecto de qualquer
científicos e mesmo das afirmações filosóficas com os experimentação que conduza, ou possa conduzir, à
65
quais o Magistério não se empenhou expressamente, sua destruição" •

a Igreja sempre ensinou - e ensina - que tem de ser


garantido ao fruto da geração humana, desde o pri-
64
JOÃO PAULO II, Carta encíclica "Evangelium vitae" so-
meiro instante da sua existência, o respeito incondi-
bre o valor e a inviolabilidade da vida humana (Roma, 25 de Mar-
63
ço de 1995), nº 60.
CNECV, Relatório-parecer sobre a experimentação 65
CNECV, Relatório-parecer sobre a experimentação
cit., 98-99. cit., 100.

96 97

7
E mais adiante: "A vida humana merece res- Tais princípios são inaplicáveis ao embrião
peito, qualquer que seja o seu estádio ou fase, devido humano, sendo óbvia a impossibilidade de obtenção
à sua dignidade essencial. O embrião é em qualquer do consentimento informado, bem como de benefício
fase e desde o início, o suporte físico e biológico in- para o sujeito, dado que toda a experimentação reali-
dispensável ao desenvolvimento da pessoa humana zada no embrião é, actualmente, de natureza destru-
e nele antecipamos aquilo que há-de vir a ser: não há, tiva, por si mesmo ou pelas suas consequências, visto
pois razões que nos levem a estabelecer uma escala haver consenso universal no sentido de nenhum em-
66
de respeito" • brião sujeito de experimentação poder vir a ser im-
Depois destas reflexões, o CNECV conclui em plantado. O consentimento informado prestado pela
forma de parecer: mãe ou pais também não serve, já que nem ética nem
"Sendo a experimentação no e com o Homem legalmente os progenitores poderão dispor da vida
indispensável para o progresso da Medicina, com daquele a quem deram origem.
suas benéficas consequências para a comunidade em Sendo assim, só seria de admitir a liceidade da
geral, tal experimentação só pode ser praticada experimentação no embrião, de cujo interesse cientí-
quando sejam respeitadas normas de natureza ética, fico não se duvida, se houvesse prova bastante de
entre as quais sobressaem o respeito pela vida e di- que a estrutura embrionária não é pessoa nem ser
gnidade humanas, o consentimento informado do humano. Conhecendo embora as dificuldades con-
sujeito e a possibilidade de benefício para o mesmo. ceptuais e terminológicas existentes, não pode deixar
de aceitar-se que o embrião é sede de vida humana, e

66
inexoravelmente evolui para a plenitude de um
CNECV, Relatório-parecer sobre a experimentação
cit., 102. membro da espécie humana, se sobreviver aos mui-

98 99
E mais adiante: "A vida humana merece res- Tais princípios são inaplicáveis ao embrião
peito, qualquer que seja o seu estádio ou fase, devido humano, sendo óbvia a impossibilidade de obtenção
à sua dignidade essencial. O embrião é em qualquer do consentimento informado, bem como de benefício
fase e desde o início, o suporte físico e biológico in- para o sujeito, dado que toda a experimentação reali-
dispensável ao desenvolvimento da pessoa humana zada no embrião é, actualmente, de natureza destru-
e nele antecipamos aquilo que há-de vir a ser: não há, tiva, por si mesmo ou pelas suas consequências, visto
pois razões que nos levem a estabelecer uma escala haver consenso universal no sentido de nenhum em-
66
de respeito" • brião sujeito de experimentação poder vir a ser im-
Depois destas reflexões, o CNECV conclui em plantado. O consentimento informado prestado pela
forma de parecer: mãe ou pais também não serve, já que nem ética nem
"Sendo a experimentação no e com o Homem legalmente os progenitores poderão dispor da vida
indispensável para o progresso da Medicina, com daquele a quem deram origem.
suas benéficas consequências para a comunidade em Sendo assim, só seria de admitir a liceidade da
geral, tal experimentação só pode ser praticada experimentação no embrião, de cujo interesse cientí-
quando sejam respeitadas normas de natureza ética, fico não se duvida, se houvesse prova bastante de
entre as quais sobressaem o respeito pela vida e di- que a estrutura embrionária não é pessoa nem ser
gnidade humanas, o consentimento informado do humano. Conhecendo embora as dificuldades con-
sujeito e a possibilidade de benefício para o mesmo. ceptuais e terminológicas existentes, não pode deixar
de aceitar-se que o embrião é sede de vida humana, e

66
inexoravelmente evolui para a plenitude de um
CNECV, Relatório-parecer sobre a experimentação
cit., 102. membro da espécie humana, se sobreviver aos mui-

98 99
não se podem deduzir os critérios de orientação so-
tos obstáculos, _ue na sua diferenciação e crescimento
mente da eficiência técnica, da utilidade que podem
se lhe podem deparar.
trazer a alguns em prejuízo ou, pior ainda, das ideo-
Daqui se conclui que, à luz de princípios éti-
logias dominantes. A técnica exige o respeito incon-
cos consensuais e tendo em conta a natureza humana
dicionado aos critérios fundamentais da eticidade:
do embrião, se deve interditar toda e qualquer expe-
isto é, deve estar ao serviço da pessoa humana, dos
rimentação sistemática e planeada no embrião, pese
67 seus direitos inalienáveis e do seu bem verdadeiro e
embora ao custo científico de tal proibição" •
68
integral •
A problemática relacionada com a experimen-
Actualmente, são muitas as possibilidades da
tação do embrião é apenas um exemplo das dificul-
técnica. Mas, será que, tudo o que é tecnicamente
dades existentes na relação entre a pessoa, a ética e a
possível, é eticamente aceitável? Pensamos que não.
técnica .
A técnica é um precioso recurso da pessoa
quando é posta ao seu serviço e promove o seu des-
envolvimento integral em benefício do bem comum.
É na pessoa e em seus valores éticos que a técnica vai
buscar a indicação da sua finalidade e a consciência
dos seus limites.
Seria ilusório pensar numa neutralidade ética
68
Cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA da Fé, Ins-
da pesquisa científica e das suas aplicações. Também
trução "Donum vitae" sobre o respeito à vida humana nascente e
a dignidade da procriação (Roma, 22 de Fevereiro de 1987),
67
, .
CNECV, Rel atono-parecer sobre a experimentação
Introdução, 3.
cit., 107-108.
101
100
não se podem deduzir os critérios de orientação so-
tos obstáculos, _ue na sua diferenciação e crescimento
mente da eficiência técnica, da utilidade que podem
se lhe podem deparar.
trazer a alguns em prejuízo ou, pior ainda, das ideo-
Daqui se conclui que, à luz de princípios éti-
logias dominantes. A técnica exige o respeito incon-
cos consensuais e tendo em conta a natureza humana
dicionado aos critérios fundamentais da eticidade:
do embrião, se deve interditar toda e qualquer expe-
isto é, deve estar ao serviço da pessoa humana, dos
rimentação sistemática e planeada no embrião, pese
67 seus direitos inalienáveis e do seu bem verdadeiro e
embora ao custo científico de tal proibição" •
68
integral •
A problemática relacionada com a experimen-
Actualmente, são muitas as possibilidades da
tação do embrião é apenas um exemplo das dificul-
técnica. Mas, será que, tudo o que é tecnicamente
dades existentes na relação entre a pessoa, a ética e a
possível, é eticamente aceitável? Pensamos que não.
técnica .
A técnica é um precioso recurso da pessoa
quando é posta ao seu serviço e promove o seu des-
envolvimento integral em benefício do bem comum.
É na pessoa e em seus valores éticos que a técnica vai
buscar a indicação da sua finalidade e a consciência
dos seus limites.
Seria ilusório pensar numa neutralidade ética
68
Cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA da Fé, Ins-
da pesquisa científica e das suas aplicações. Também
trução "Donum vitae" sobre o respeito à vida humana nascente e
a dignidade da procriação (Roma, 22 de Fevereiro de 1987),
67
, .
CNECV, Rel atono-parecer sobre a experimentação
Introdução, 3.
cit., 107-108.
101
100
Terceira parte

Para aprofundar os temas estudados, apresen-


tamos agora, com a devida vénia, em dois anexos,
alguns textos de apoio: no anexo I, três textos de
carácter filosófico sobre a responsabilidade, a cons-
ciência moral, e a historicidade das normas morais;
no anexo II, cinco textos, que inicialmente foram
publicados nas páginas do Diário de Notícias e só
depois recolhidos em livro, são artigos de opinião
com um estilo e uma profundidade que merece a
nossa atenção.

103
Terceira parte

Para aprofundar os temas estudados, apresen-


tamos agora, com a devida vénia, em dois anexos,
alguns textos de apoio: no anexo I, três textos de
carácter filosófico sobre a responsabilidade, a cons-
ciência moral, e a historicidade das normas morais;
no anexo II, cinco textos, que inicialmente foram
publicados nas páginas do Diário de Notícias e só
depois recolhidos em livro, são artigos de opinião
com um estilo e uma profundidade que merece a
nossa atenção.

103
ANEXO! radicalmente da possibilidade que o Homem tem de se
comprometer, isto é, a capacidade de habitualmente
assumir um compromisso. A raiz - sponsa, de onde

1. Responsabilidade 69
veio também o vocábulo esposa - revela já esta carac-
terística: os (esposos) responsáveis são aqueles que

A capacidade de assumir responsabilidades e de assumem um perante o outro uma forma definitiva de


responsabilidade, a qual remete para o mistério onto-
a elas se obrigar é um dos traços mais característicos da
lógico que na responsabilidade de um ser humano por
condição humana, ao menos na sua idade adulta. Esta
responsabilidade tem que ver com a liberdade e por- outro se esconde. Os esposos são aqueles que têm

tanto com a possibilidade de escolher entre o bem e o condições para fazer um ao outro uma promessa de
fidelidade. Essa promessa compromete um e outro.
mal, levando cada homem a assumir de forma consci-
Compromisso e responsabilidade estão assim mutua-
ente a autoria do seu agir em todas as suas consequên-
cias. A responsabilidade e a liberdade têm, por sua vez, mente implicados.

que ver com a racionalidade do homem, a qual exem- Toda e qualquer forma de responsabilidade

plarmente se manifesta não só ao nível do agir como ao pressupõe na sua estrutura uma tripla remissão: quem,

nível do dizer. O Homem é concomitantemente racio- por (quê), perante (quem). A estrutura de responsabili-

nal, livre e responsável. dade exige necessariamente um sujeito, o qual se res-

Responsabilidade significa etimologicamente ca- ponsabiliza por algo perante uma instância reconhecida
como capaz de exigir responsabilidades. O sentido das
pacidade de responder, a qual por sua vez resulta mais
responsabilidades - na sua estrutura psicológica tanto
69
Joaquim Cardoso DUARTE, Responsabilidade,em Po-
como na sua densidade ontológica - supõe quer a pos-
lis - EnciclopédiaVerbo da Sociedadee do Estado, Editorial Ver-
bo, Lisboa/São Paulo, 1987, vol. 5, 462-463.

104 105
ANEXO! radicalmente da possibilidade que o Homem tem de se
comprometer, isto é, a capacidade de habitualmente
assumir um compromisso. A raiz - sponsa, de onde

1. Responsabilidade 69
veio também o vocábulo esposa - revela já esta carac-
terística: os (esposos) responsáveis são aqueles que

A capacidade de assumir responsabilidades e de assumem um perante o outro uma forma definitiva de


responsabilidade, a qual remete para o mistério onto-
a elas se obrigar é um dos traços mais característicos da
lógico que na responsabilidade de um ser humano por
condição humana, ao menos na sua idade adulta. Esta
responsabilidade tem que ver com a liberdade e por- outro se esconde. Os esposos são aqueles que têm

tanto com a possibilidade de escolher entre o bem e o condições para fazer um ao outro uma promessa de
fidelidade. Essa promessa compromete um e outro.
mal, levando cada homem a assumir de forma consci-
Compromisso e responsabilidade estão assim mutua-
ente a autoria do seu agir em todas as suas consequên-
cias. A responsabilidade e a liberdade têm, por sua vez, mente implicados.

que ver com a racionalidade do homem, a qual exem- Toda e qualquer forma de responsabilidade

plarmente se manifesta não só ao nível do agir como ao pressupõe na sua estrutura uma tripla remissão: quem,

nível do dizer. O Homem é concomitantemente racio- por (quê), perante (quem). A estrutura de responsabili-

nal, livre e responsável. dade exige necessariamente um sujeito, o qual se res-

Responsabilidade significa etimologicamente ca- ponsabiliza por algo perante uma instância reconhecida
como capaz de exigir responsabilidades. O sentido das
pacidade de responder, a qual por sua vez resulta mais
responsabilidades - na sua estrutura psicológica tanto
69
Joaquim Cardoso DUARTE, Responsabilidade,em Po-
como na sua densidade ontológica - supõe quer a pos-
lis - EnciclopédiaVerbo da Sociedadee do Estado, Editorial Ver-
bo, Lisboa/São Paulo, 1987, vol. 5, 462-463.

104 105
sibilidade quer a existência desta capacidade como um reconhecendo embora a finitude do Homem e mesmo o
habitus, isto é, uma certa habituação à responsabilidade. seu pecado, claramente afirmam não só a capacidade
A habituação à responsabilidade implica não a queda como a consequente obrigação de este, na sua maturi-
na rotina mas antes "um misterioso crescimento e con- dade e em condições normais, responder pelos actos
solidação espiritual", a qual assim manifesta a estrutu- que praticar e suas consequências. O Homem é intenci-
ra ontológica do Homem. (...) onal no seu agir e por isso deve responder por ele.
A humanização do Homem ( ...) será assim en- A responsabilidade do Homem estende-se natu-
tendida como o seu crescimento nesta capacidade de se ralmente às suas palavras. Algumas destas são mesmo
comprometer, isto é, a afirmação da sua necessária pos- "acções" como quando eu faço uma promessa. Essa pa-
sibilidade de se tornar cada vez mais homem. A even- lavra é mais do que uma simples descrição: ela implica
tual declaração de alguém como irresponsável constitu- um compromisso. Essa palavra torna-se, em certo
irá a suprema injúria e a recusa de se lhe reconhecer o modo, sacramental, isto é, sinal de algo que, sem ser
estatuto de homem. visível, está presente e dá sentido.
As teorias éticas que, em detrimento da afirma-
ção da autonomia do Homem, privilegiam factores ex-
teriores e estranhos ao Homem e a sua vontade - socio-
logismo, psicologismo, marxismo, estruturalismo, psi-
canálise e outras - levam a uma "diluição" da respon-
sabilidade do Homem, afirmando-o como um ser irre-
mediavelmente dependente, recusando-lhe a dignidade
de ser responsável. Diferente é a posição daqueles que,

106 107
sibilidade quer a existência desta capacidade como um reconhecendo embora a finitude do Homem e mesmo o
habitus, isto é, uma certa habituação à responsabilidade. seu pecado, claramente afirmam não só a capacidade
A habituação à responsabilidade implica não a queda como a consequente obrigação de este, na sua maturi-
na rotina mas antes "um misterioso crescimento e con- dade e em condições normais, responder pelos actos
solidação espiritual", a qual assim manifesta a estrutu- que praticar e suas consequências. O Homem é intenci-
ra ontológica do Homem. (...) onal no seu agir e por isso deve responder por ele.
A humanização do Homem ( ...) será assim en- A responsabilidade do Homem estende-se natu-
tendida como o seu crescimento nesta capacidade de se ralmente às suas palavras. Algumas destas são mesmo
comprometer, isto é, a afirmação da sua necessária pos- "acções" como quando eu faço uma promessa. Essa pa-
sibilidade de se tornar cada vez mais homem. A even- lavra é mais do que uma simples descrição: ela implica
tual declaração de alguém como irresponsável constitu- um compromisso. Essa palavra torna-se, em certo
irá a suprema injúria e a recusa de se lhe reconhecer o modo, sacramental, isto é, sinal de algo que, sem ser
estatuto de homem. visível, está presente e dá sentido.
As teorias éticas que, em detrimento da afirma-
ção da autonomia do Homem, privilegiam factores ex-
teriores e estranhos ao Homem e a sua vontade - socio-
logismo, psicologismo, marxismo, estruturalismo, psi-
canálise e outras - levam a uma "diluição" da respon-
sabilidade do Homem, afirmando-o como um ser irre-
mediavelmente dependente, recusando-lhe a dignidade
de ser responsável. Diferente é a posição daqueles que,

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2. Consciência moral'º A consciência moral propriamente dita é um
acto que se exerce na aplicação dos princípios gerais às
Juízo de valor acerca da moralidade dos própri- circunstâncias particulares. Como tal, situa-se no termo
os actos. Inclui a faculdade de apreender os valores e as de um processo discursivo (implícito ou explícito), o
leis morais (consciência habitual) ao mesmo tempo que qual, partindo de uma maior universal, conclui, medi-
a sua aplicação aos casos concretos (consciência propri- ante uma menor particular, pela conveniência ou não
amente dita ou consciência actual) . conveniência de um acto a realizar (juízo de consciên-
A consciência habitual compreende um conjunto cia) ao qual a consciência moral decide submeter-se ou
de elementos intelectuais, afectivos e dinâmicjs (juízos, eximir-se (juízo de eleição). Enquanto o juízo de consci-
sentimentos e inclinações), através dos quais apreende ência pertence à inteligência, a decisão última entra no
e exprime os valores morais. Inicialmente reduzida aos domínio da vontade. Para além da simples percepção
primeiros princípios da acção (sindérese dos escolásti- dos seus actos internos (consciência psicológica}, a
cos) consubstanciados na máxima bonum faciendum ma- consciência moral submete-os a urna norma segundo a
lum vitandum (deve-se praticar o bem e evitar o mal), só qual os aprecia e julga. Enquanto aquela é uma teste-
gradualmente se vai desenvolvendo e enriquecendo munha que se limita a registar os acontecimentos, esta
graças à educação e experiência no seio da família e da é não só um legislador que prescreve e proíbe, mas so-
sociedade. bretudo um juiz que censura e aprova.
Mediadora entre a lei geral e a acção particular,
a consciência moral desempenha simultaneamente as
70
Manuel da Costa FREITAS, Consciência moral, em mais diversas funções: antes da acção (consciência
Verbo - Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (Edição do
Século XXI), Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 1998, antecedente) é legisladora e guia; durante a acção
vol. 7, 962-963.

108
109
2. Consciência moral'º A consciência moral propriamente dita é um
acto que se exerce na aplicação dos princípios gerais às
Juízo de valor acerca da moralidade dos própri- circunstâncias particulares. Como tal, situa-se no termo
os actos. Inclui a faculdade de apreender os valores e as de um processo discursivo (implícito ou explícito), o
leis morais (consciência habitual) ao mesmo tempo que qual, partindo de uma maior universal, conclui, medi-
a sua aplicação aos casos concretos (consciência propri- ante uma menor particular, pela conveniência ou não
amente dita ou consciência actual) . conveniência de um acto a realizar (juízo de consciên-
A consciência habitual compreende um conjunto cia) ao qual a consciência moral decide submeter-se ou
de elementos intelectuais, afectivos e dinâmicjs (juízos, eximir-se (juízo de eleição). Enquanto o juízo de consci-
sentimentos e inclinações), através dos quais apreende ência pertence à inteligência, a decisão última entra no
e exprime os valores morais. Inicialmente reduzida aos domínio da vontade. Para além da simples percepção
primeiros princípios da acção (sindérese dos escolásti- dos seus actos internos (consciência psicológica}, a
cos) consubstanciados na máxima bonum faciendum ma- consciência moral submete-os a urna norma segundo a
lum vitandum (deve-se praticar o bem e evitar o mal), só qual os aprecia e julga. Enquanto aquela é uma teste-
gradualmente se vai desenvolvendo e enriquecendo munha que se limita a registar os acontecimentos, esta
graças à educação e experiência no seio da família e da é não só um legislador que prescreve e proíbe, mas so-
sociedade. bretudo um juiz que censura e aprova.
Mediadora entre a lei geral e a acção particular,
a consciência moral desempenha simultaneamente as
70
Manuel da Costa FREITAS, Consciência moral, em mais diversas funções: antes da acção (consciência
Verbo - Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (Edição do
Século XXI), Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 1998, antecedente) é legisladora e guia; durante a acção
vol. 7, 962-963.

108
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(consciência concomitante), força estimulante e mode- to, porque referido a uma ordem absoluta de valores e
radora; depois da acção (consciência consequente), pronunciado pelo mais íntimo de si mesma, é definitivo
testemunha e juiz. e irrevogável. Ela mesma se constitui primeira sanção:
Testemunha, a consciência moral reconhece-se a obediência ou desobediência às suas prescrições cria
autora dos seus actos e deles responsável enquanto por o sentimento da pacificação ou divisão interior (boa ou
ela livremente postos. Juiz, porque sanciona, aprovan- má consciência).
do ou condenando. As prescrições da consciência mo- Juiz das nossas acções, a consciência moral pode
ral obrigam incondicionalmente, são imperat;vos cate- ser verdadeira ou errónea conforme concorda ou não
góricos (Kant) porque falam exclusivamente em nome com a norma objectiva (lei). A consciência errónea pode
da verdade - o bem moral impõe-se por si mesmo, não ser ainda vencível (culpável) ou invencível (inculpá-
pode ser meio para um outro fim. vel). Como disposição geral, pode ser laxa ou escrupu-
Convergência e unificação de toda a vida interi- losa, segundo minimiza ou exagera a importância das
or pela orientação e sentido que lhe confere, a consciên- obrigações e a gravidade das faltas; farisaica, se apenas
cia moral é irredutível a um mero sentimento de admi- se preocupa com o acessório e secundário.
ração (Rousseau) ou respeito pelo dever (Kant). Os Relativamente à firmeza com que pronuncia os
próprios sentimentos através dos quais se exprime (pe- seus juízos, a consciência moral é certa ou duvidosa
sar, remorso e arrependimento) a revelam como pro- conforme os pronuncia sem temor ou com temor de
motora e salvaguarda vigilante de uma ordem que a errar. Norma próxima das nossas acções, a consciência
transcende e ao mesmo tempo a constitui. moral deve ser bem formada, isto é, recta e delicada, de
Interiorização do próprio dever, e, por isso modo a poder formar juízos certos e verdadeiros.
mesmo, instância última, juiz inapelável: o seu veredic-

110 111
(consciência concomitante), força estimulante e mode- to, porque referido a uma ordem absoluta de valores e
radora; depois da acção (consciência consequente), pronunciado pelo mais íntimo de si mesma, é definitivo
testemunha e juiz. e irrevogável. Ela mesma se constitui primeira sanção:
Testemunha, a consciência moral reconhece-se a obediência ou desobediência às suas prescrições cria
autora dos seus actos e deles responsável enquanto por o sentimento da pacificação ou divisão interior (boa ou
ela livremente postos. Juiz, porque sanciona, aprovan- má consciência).
do ou condenando. As prescrições da consciência mo- Juiz das nossas acções, a consciência moral pode
ral obrigam incondicionalmente, são imperat;vos cate- ser verdadeira ou errónea conforme concorda ou não
góricos (Kant) porque falam exclusivamente em nome com a norma objectiva (lei). A consciência errónea pode
da verdade - o bem moral impõe-se por si mesmo, não ser ainda vencível (culpável) ou invencível (inculpá-
pode ser meio para um outro fim. vel). Como disposição geral, pode ser laxa ou escrupu-
Convergência e unificação de toda a vida interi- losa, segundo minimiza ou exagera a importância das
or pela orientação e sentido que lhe confere, a consciên- obrigações e a gravidade das faltas; farisaica, se apenas
cia moral é irredutível a um mero sentimento de admi- se preocupa com o acessório e secundário.
ração (Rousseau) ou respeito pelo dever (Kant). Os Relativamente à firmeza com que pronuncia os
próprios sentimentos através dos quais se exprime (pe- seus juízos, a consciência moral é certa ou duvidosa
sar, remorso e arrependimento) a revelam como pro- conforme os pronuncia sem temor ou com temor de
motora e salvaguarda vigilante de uma ordem que a errar. Norma próxima das nossas acções, a consciência
transcende e ao mesmo tempo a constitui. moral deve ser bem formada, isto é, recta e delicada, de
Interiorização do próprio dever, e, por isso modo a poder formar juízos certos e verdadeiros.
mesmo, instância última, juiz inapelável: o seu veredic-

110 111
aceitação ou recusa das normas que regulam estas vári-
71
3. As normas morais e a sua historicidade as esferas nas quais a nossa existência se desenrola.
As normas morais operam a cristalização deon-
No universo multifacetado das normas - nor- tológica dos valores éticos. Os valores éticos têm uma
mas psicológicas, técnicas e industriais, administrativas existência conjuntamente mais ampla e mais flexível
ou jurídicas - limitamo-nos às normas morais. Consi- que as normas nas quais se exprimem. Mas as normas
deradas na sua generalidade, as normas têm uma visi- obrigam, de tal modo que a sua autoridade aparece
bilidade social, uma vez que se encontram coj.ificadas como independente do agir de qualquer um. Elas apa-
em documentos legais, administrativos, etc. Quanto às recem assim como externas à consciência moral, como
normas morais, elas constam dos tratados de ética, das se não estivessem à espera nem do seu consentimento
leis relativas à convivência social ou das atitudes taci- para se imporem a ela. Relativamente às normas mo-
tamente aceites por um grupo, grupo social (por exem- rais, o problema dos filósofos contemporâneos reside
plo, a proibição da ofensa ao bom nome), político (a então mais na obtenção de um consenso intelectual e
disciplina de voto), cultural (pensemos na cultura do social a seu respeito que numa fundamentação dos va-
canabis na Holanda), religioso (por exemplo, a activa lores éticos. É fácil então discursar sobre a sua relativi-
participação nas celebrações do culto), etc. As normas dade histórica; por definição, poderíamos dizer, as
morais cruzam deste modo as normas que regulam o normas morais são a transcrição cultural, historicamen-
comportamento das múltiplas esferas da existência, te marcada, dos valores éticos. Se já estes se revelavam
num jogo de espelho: existe uma dimensão moral na como afectados pela sua vivência histórica, a fortiori o
serão as normas morais. Mas o erro intelectual consisti-
71 ria em desligar as normas morais da sua fundamenta-
Michel RENAUD, A historicidade das normas mornis,
em Brotéria 151 (2000) 199-201.

112 113
8
aceitação ou recusa das normas que regulam estas vári-
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3. As normas morais e a sua historicidade as esferas nas quais a nossa existência se desenrola.
As normas morais operam a cristalização deon-
No universo multifacetado das normas - nor- tológica dos valores éticos. Os valores éticos têm uma
mas psicológicas, técnicas e industriais, administrativas existência conjuntamente mais ampla e mais flexível
ou jurídicas - limitamo-nos às normas morais. Consi- que as normas nas quais se exprimem. Mas as normas
deradas na sua generalidade, as normas têm uma visi- obrigam, de tal modo que a sua autoridade aparece
bilidade social, uma vez que se encontram coj.ificadas como independente do agir de qualquer um. Elas apa-
em documentos legais, administrativos, etc. Quanto às recem assim como externas à consciência moral, como
normas morais, elas constam dos tratados de ética, das se não estivessem à espera nem do seu consentimento
leis relativas à convivência social ou das atitudes taci- para se imporem a ela. Relativamente às normas mo-
tamente aceites por um grupo, grupo social (por exem- rais, o problema dos filósofos contemporâneos reside
plo, a proibição da ofensa ao bom nome), político (a então mais na obtenção de um consenso intelectual e
disciplina de voto), cultural (pensemos na cultura do social a seu respeito que numa fundamentação dos va-
canabis na Holanda), religioso (por exemplo, a activa lores éticos. É fácil então discursar sobre a sua relativi-
participação nas celebrações do culto), etc. As normas dade histórica; por definição, poderíamos dizer, as
morais cruzam deste modo as normas que regulam o normas morais são a transcrição cultural, historicamen-
comportamento das múltiplas esferas da existência, te marcada, dos valores éticos. Se já estes se revelavam
num jogo de espelho: existe uma dimensão moral na como afectados pela sua vivência histórica, a fortiori o
serão as normas morais. Mas o erro intelectual consisti-
71 ria em desligar as normas morais da sua fundamenta-
Michel RENAUD, A historicidade das normas mornis,
em Brotéria 151 (2000) 199-201.

112 113
8
ção nos valores. A obediência às normas é, do ponto de te de uma sociedade constitui um acontecimento ético,
evolução ontogénica do ser humano, anterior à assun- eventualmente uma revolução na ordem da ética. Raros
ção dos valores; noutros termos, a criança obedece às são de facto estes acontecimentos . A historicidade das
regras morais que lhe são impostas antes de as assumir normas, por sua vez, está na fonte de mutações mais
mediante a compreensão dos valores éticos que elas frequentes e mais perceptíveis. Por exemplo, os pro-
veiculam. Quando esta passagem não se realiza, o adul- blemas da bioética ou da ética empresarial reflectem
to ainda não goza da sua autonomia ética, mas está oscilações que presidem à mutação das normas morais.
simplesmente em conformidade com as normas morais, Sob o impacto de factos novos, os vários valores ineren-
o que não exclui que, de modo ético e sem saber por- tes e ou subjacentes às normas articulam de modo tal
quê, ele esteja de acordo com os valores éticos que sub- que a norma tem que ser alterada em função do respei-
jazem às normas morais. to dos próprios valores. Por exemplo, a norma da in-

A historicidade das normas é contudo mais per- violabilidade do segredo bancário será alterada em
ceptível que a historicidade dos valores. Uma vez que função de um maior respeito das pessoas às quais o
existe uma multiplicidade de valores impõe-se a tarefa dinheiro sujo provocou e provoca danos. Neste caso a
da sua hierarquização, a qual está sempre presente, norma moral e social muda não somente em função da
mesmo quando é explicitamente recusada; são com evolução aleatória da sociedade, mas porque surgiu
efeito as decisões efectivamente tomadas que indicam a uma atenção mais cuidadosa na aplicação concreta do
hierarquização implicitamente operada. Ora, a histori- valor do "respeito pela pessoa". É então um progresso

cidade dos valores manifesta-se nas variações desta na intuição da presença dos valores éticos que exige a
hierarquização. Toda a mudança feita numa hierarqui- evolução das normas. Que as normas estejam em per-

zação dos valores por parte de uma pessoa ou por par- manente evolução, quase ninguém hoje o negará; o
problema mais complexo reside na questão (de saber)

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ção nos valores. A obediência às normas é, do ponto de te de uma sociedade constitui um acontecimento ético,
evolução ontogénica do ser humano, anterior à assun- eventualmente uma revolução na ordem da ética. Raros
ção dos valores; noutros termos, a criança obedece às são de facto estes acontecimentos . A historicidade das
regras morais que lhe são impostas antes de as assumir normas, por sua vez, está na fonte de mutações mais
mediante a compreensão dos valores éticos que elas frequentes e mais perceptíveis. Por exemplo, os pro-
veiculam. Quando esta passagem não se realiza, o adul- blemas da bioética ou da ética empresarial reflectem
to ainda não goza da sua autonomia ética, mas está oscilações que presidem à mutação das normas morais.
simplesmente em conformidade com as normas morais, Sob o impacto de factos novos, os vários valores ineren-
o que não exclui que, de modo ético e sem saber por- tes e ou subjacentes às normas articulam de modo tal
quê, ele esteja de acordo com os valores éticos que sub- que a norma tem que ser alterada em função do respei-
jazem às normas morais. to dos próprios valores. Por exemplo, a norma da in-

A historicidade das normas é contudo mais per- violabilidade do segredo bancário será alterada em
ceptível que a historicidade dos valores. Uma vez que função de um maior respeito das pessoas às quais o
existe uma multiplicidade de valores impõe-se a tarefa dinheiro sujo provocou e provoca danos. Neste caso a
da sua hierarquização, a qual está sempre presente, norma moral e social muda não somente em função da
mesmo quando é explicitamente recusada; são com evolução aleatória da sociedade, mas porque surgiu
efeito as decisões efectivamente tomadas que indicam a uma atenção mais cuidadosa na aplicação concreta do
hierarquização implicitamente operada. Ora, a histori- valor do "respeito pela pessoa". É então um progresso

cidade dos valores manifesta-se nas variações desta na intuição da presença dos valores éticos que exige a
hierarquização. Toda a mudança feita numa hierarqui- evolução das normas. Que as normas estejam em per-

zação dos valores por parte de uma pessoa ou por par- manente evolução, quase ninguém hoje o negará; o
problema mais complexo reside na questão (de saber)

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se, nesta mutação, as normas contêm ainda urna di- aparentemente objectivas, aparentemente impostas à
mensão de validade que as faz escapar à mobilidade da consciência moral do agente é a liberdade do próprio
cultura. agente, que encontra a sua identidade precisamente no
É somente pela articulação das normas morais carácter externo e frio das normas. Mas, tal corno já
com a liberdade entendida no seu sentido mais rico que disse Bergson na sua análise das "duas fontes da mo-
as normas podem ser apreendidas corno porta-vozes de ral e da religião" em 1932, é preciso voltar a encontrar
urna dimensão ela também anhistórica. Esta zrticulação sob a frieza das normas morais a palpitação de uma
passa contudo pela mediação dos valores em jogo nas liberdade viva que se apoia nelas para as transfigurar
normas e inerentes à autoconfiguração da liberdade. É pelo agir.
então o carácter absolutamente válido dos valores que
se comunica às normas, embora de um modo especial;
tudo se passa corno se as normas consideradas não na
sua textualidade, mas no seu esforço de transcrever em
proposições normativas os valores fundamentais da
existência, fossem atravessados pelo dinamismo que
procura dar aos valores urna existência concreta. O ca-
rácter absoluto das normas não provém portanto da
letra da sua enunciação - esta é sempre susceptível de
correcção, de melhor adequação -, mas do espírito que
as anima. O espírito é a realização de urna identidade
pessoal numa alteridade; o que se realiza nas normas

116 117
se, nesta mutação, as normas contêm ainda urna di- aparentemente objectivas, aparentemente impostas à
mensão de validade que as faz escapar à mobilidade da consciência moral do agente é a liberdade do próprio
cultura. agente, que encontra a sua identidade precisamente no
É somente pela articulação das normas morais carácter externo e frio das normas. Mas, tal corno já
com a liberdade entendida no seu sentido mais rico que disse Bergson na sua análise das "duas fontes da mo-
as normas podem ser apreendidas corno porta-vozes de ral e da religião" em 1932, é preciso voltar a encontrar
urna dimensão ela também anhistórica. Esta zrticulação sob a frieza das normas morais a palpitação de uma
passa contudo pela mediação dos valores em jogo nas liberdade viva que se apoia nelas para as transfigurar
normas e inerentes à autoconfiguração da liberdade. É pelo agir.
então o carácter absolutamente válido dos valores que
se comunica às normas, embora de um modo especial;
tudo se passa corno se as normas consideradas não na
sua textualidade, mas no seu esforço de transcrever em
proposições normativas os valores fundamentais da
existência, fossem atravessados pelo dinamismo que
procura dar aos valores urna existência concreta. O ca-
rácter absoluto das normas não provém portanto da
letra da sua enunciação - esta é sempre susceptível de
correcção, de melhor adequação -, mas do espírito que
as anima. O espírito é a realização de urna identidade
pessoal numa alteridade; o que se realiza nas normas

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ANEXO II ensina. Há 2000 anos que os princípios cristãos chocam
continuamente com as práticas humanas do dia-a-dia.
Por isso, a crítica furiosa e indignada que os nossos

1. O esplendor da verdade 72 dotados comentadores, nacionais e internacionais, fa-


zem à nova encíclica é, apenas, a verificação de uma
constante histórica.
O papa João Paulo II publicou recentemente
uma encíclica sobre moral católica. Essa encíclica gerou Mas, é preciso dizê-lo, existe uma diferença de

uma grande polémica. A principal crítica centrou-se no tom entre os comentadores actuais e os de outras eras.

facto de a moral que esse texto apresenta estar desajus- Em todos os tempos se notou a divergência entre dou-

tada das práticas da sociedade de hoje. trina e comportamento. Só que, até hoje, sempre se de-
duziu dessa discrepância que o comportamento estava
Olha que grande novidade! Será que a moral ca-
errado. Esta é a primeira vez que as análises vêem aí o
tólica esteve alguma vez de acordo com as práticas de
erro da doutrina.
uma qualquer sociedade da História? Do império ro-
Esta novidade não deixa de ser muito revelado-
mano à Idade Média, do Renascimento ao século XIX,
houve algum período em que os costumes se combi- ra. Não sobre a doutrina cristã. Essa, como não podia

nassem sem problemas deixar de ser, limita-se a manter os seus princípios,


com os princípios da moral
católica? para lá dos gostos ou preferências de cada época. Cons-
tantes e sólidos, como quaisquer princípios, eles estão
Em todas as épocas, o que as pessoas praticaram
acima do tempo. É por isso que não podem ser consi-
na sua vida foi sempre desajustado daquilo que a Igreja
derados "antiquados", como tantos os classificam. Se
A
12
J-oao C'
. esar d as NEVES,Não há almoços grátis. Co-
lectanea de artigos de opinião, Editorial Notícias, Lisboa
1994, 47-50. '

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ANEXO II ensina. Há 2000 anos que os princípios cristãos chocam
continuamente com as práticas humanas do dia-a-dia.
Por isso, a crítica furiosa e indignada que os nossos

1. O esplendor da verdade 72 dotados comentadores, nacionais e internacionais, fa-


zem à nova encíclica é, apenas, a verificação de uma
constante histórica.
O papa João Paulo II publicou recentemente
uma encíclica sobre moral católica. Essa encíclica gerou Mas, é preciso dizê-lo, existe uma diferença de

uma grande polémica. A principal crítica centrou-se no tom entre os comentadores actuais e os de outras eras.

facto de a moral que esse texto apresenta estar desajus- Em todos os tempos se notou a divergência entre dou-

tada das práticas da sociedade de hoje. trina e comportamento. Só que, até hoje, sempre se de-
duziu dessa discrepância que o comportamento estava
Olha que grande novidade! Será que a moral ca-
errado. Esta é a primeira vez que as análises vêem aí o
tólica esteve alguma vez de acordo com as práticas de
erro da doutrina.
uma qualquer sociedade da História? Do império ro-
Esta novidade não deixa de ser muito revelado-
mano à Idade Média, do Renascimento ao século XIX,
houve algum período em que os costumes se combi- ra. Não sobre a doutrina cristã. Essa, como não podia

nassem sem problemas deixar de ser, limita-se a manter os seus princípios,


com os princípios da moral
católica? para lá dos gostos ou preferências de cada época. Cons-
tantes e sólidos, como quaisquer princípios, eles estão
Em todas as épocas, o que as pessoas praticaram
acima do tempo. É por isso que não podem ser consi-
na sua vida foi sempre desajustado daquilo que a Igreja
derados "antiquados", como tantos os classificam. Se
A
12
J-oao C'
. esar d as NEVES,Não há almoços grátis. Co-
lectanea de artigos de opinião, Editorial Notícias, Lisboa
1994, 47-50. '

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são alguma coisa, é "avançados", pois que no passado É claro que o facto de, ao fim de séculos de evo-
ninguém os aceitou. lução, a liberdade de escolha, económica e política, ter
O que se deduz da diferente interpretação que sido erigida em critério de orientação da vida social é
hoje se faz da doutrina é, antes, um facto muito curioso uma das grandezas do nosso tempo. Finalmente, nas
sobre o nosso tempo. A atitude fa.::e à encíclica resulta decisões que devem caber estritamente ao critério de
de, nos dias que correm, se ter tomado costume usar cada um, abandonaram-se imposições, dogmatismos e
uma forma nova e simples de distinguir o bem do mal : restrições. Mas se o nosso tempo mostra bem as extra-
a opinião pública. Quaisquer outros critérios deixaram ordinárias potencialidades da liberdade de escolha, ele
hoje de contar. O que determina se uma coisa é certa ou revela também as suas limitações. A vontade individu-
errada é, simplesmente, a escolha da maioria . al e social deve ser soberana em todas as decisões que
A origem desta opção é fácil de detenninar. ela pode tomar e onde a escolha é legítima. Mas exis-
Cada um de nós, continuamente, seja como consumi- tem muitos casos e realidades na vida onde essa esco-
dor ou como eleitor, vê todos os dias a sua opinião ser lha não existe, e o sufrágio é extemporâneo. Mas, sis-
erigida em critério de verdade. Os anúncios das marcas tematicamente apaparicado e continuamente convida-
mostram bem como o nosso prazer é o elemento deter- do a decidir pela publicidade, comercial e eleitoral, o
minante. Sondagens, inquéritos, campanhas eleitorais, nosso cidadão convenceu-se que a arbitrariedade da
mais não fazem do que idolatrar, bajular e seduzir essa sua opinião é o critério para tudo. E quando algo não
opinião. O mercado e a democracia são centrados num coincide com a opinião pública, o erro tem de ser dessa
único soberano: o consumidor-cidadão, senhor absolu- ideia, porquanto a opinião, essa, é absoluta .
to da vida e felicidade de produtores e políticos deste Numa sociedade onde a opinião pública é sobe-
mundo. rana não existe verdade independente dessa opinião.

120 121
são alguma coisa, é "avançados", pois que no passado É claro que o facto de, ao fim de séculos de evo-
ninguém os aceitou. lução, a liberdade de escolha, económica e política, ter
O que se deduz da diferente interpretação que sido erigida em critério de orientação da vida social é
hoje se faz da doutrina é, antes, um facto muito curioso uma das grandezas do nosso tempo. Finalmente, nas
sobre o nosso tempo. A atitude fa.::e à encíclica resulta decisões que devem caber estritamente ao critério de
de, nos dias que correm, se ter tomado costume usar cada um, abandonaram-se imposições, dogmatismos e
uma forma nova e simples de distinguir o bem do mal : restrições. Mas se o nosso tempo mostra bem as extra-
a opinião pública. Quaisquer outros critérios deixaram ordinárias potencialidades da liberdade de escolha, ele
hoje de contar. O que determina se uma coisa é certa ou revela também as suas limitações. A vontade individu-
errada é, simplesmente, a escolha da maioria . al e social deve ser soberana em todas as decisões que
A origem desta opção é fácil de detenninar. ela pode tomar e onde a escolha é legítima. Mas exis-
Cada um de nós, continuamente, seja como consumi- tem muitos casos e realidades na vida onde essa esco-
dor ou como eleitor, vê todos os dias a sua opinião ser lha não existe, e o sufrágio é extemporâneo. Mas, sis-
erigida em critério de verdade. Os anúncios das marcas tematicamente apaparicado e continuamente convida-
mostram bem como o nosso prazer é o elemento deter- do a decidir pela publicidade, comercial e eleitoral, o
minante. Sondagens, inquéritos, campanhas eleitorais, nosso cidadão convenceu-se que a arbitrariedade da
mais não fazem do que idolatrar, bajular e seduzir essa sua opinião é o critério para tudo. E quando algo não
opinião. O mercado e a democracia são centrados num coincide com a opinião pública, o erro tem de ser dessa
único soberano: o consumidor-cidadão, senhor absolu- ideia, porquanto a opinião, essa, é absoluta .
to da vida e felicidade de produtores e políticos deste Numa sociedade onde a opinião pública é sobe-
mundo. rana não existe verdade independente dessa opinião.

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