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CAIM – José Saramago’s

Esta obra foi a última escrita por Saramago, e foi publicada no segundo semestre de 2009, alguns
meses antes da própria morte do autor.

Caim conta-nos uma história, cujo princípio coincide com o início da Bíblia. Nos dois primeiros
capítulos, encontramos Adão e Eva, às voltas com a incipiência do existir. Ganham a fala, comem
o fruto proibido e perdem o direito a permanecer no paraíso. Uma vez expulsos são informados
por um querubim, que não são os únicos humanos na Terra.
Apenas no terceiro capítulo aparece Caim. Após breves referência à sua infância, chegamos ao
assassinato de Abel, e dá-se o primeiro de vários encontros de Caim com Deus. Em todos estes
encontros deparamo-nos com um profundo desentendimento entre ambos, resultado de uma
profunda diferença de pontos de vista. Deus indigna-se com o acto de Caim, mas este defende-se
partilhando com Deus a responsabilidade pela morte de Abel.
Ao longo de toda a obra, Caim tem um constante confronto ideológico com Deus. Enquanto Deus
é o tirano/vingador, capaz de aniquilar populações inteiras, Caim é o “leitor” cético dos tempos
bíblicos.
Depois de assassinar Abel, Caim de Saramago é condenado a vaguear pelo tempo e pelo espaço
até morrer. Parte montado num burro por um deserto estéril, uma espécie de deserto metafísico
onde a humanidade habita numa atmosfera surreal. Não há passado nem futuro para Caim,
apenas um presente em constante mudança. É assim que Caim testemunha os principais
episódios do Antigo Testamento: a terra de Noh, Abraão (sacrifício do próprio filho), a destruição
de Sodoma, o encontro com Moisés, a arca de Noé, etc., obviamente revisitados pela visão
cáustica e muito própria de Saramago.
No último episódio do livro encontramos Noé, Caim e Deus e a arca será o surpreendente palco
da vingança de Caim sobre Deus.

Esta obra modificou completamente a minha opinião sobre Saramago e até sobre as suas obras.
Apenas tinha lido o “Memorial do convento”, que achei de leitura difícil e cansativa. Mas com
Caim, encontrei uma obra que captou a minha atenção do início ao fim. O humor, e uma visão
completamente humana, dos episódios bíblicos e da violência gratuita dos atos de Deus, captou-
me e prendeu-me até à última palavra do livro.
A título de exemplo do sentido de humor corrosivo, gostaria de ler uma pequena passagem do
livro – a forma como Adão e Eva ganham o umbigo – pag. “… O que ali o tinha levado for a o
propósito de emendar uma imperfeição de fabrico que, desfeava seriamente as suas criaturas, e
que era, imagine-se, a falta de um umbigo. A superfície esbranquiçada da pele dos seus bebés,
que o suave sol do paraíso não conseguira tostar, mostrava-se demasiado nua, demasiado
oferecida, se a palavra já existisse então. Sem detença, não fossem eles acordar, deus estendeu
o braço e, levemente, premiu com a ponta do dedo indicador o ventre de adão, logo fez um rápido
movimento de rotação e o umbigo apareceu. A mesma operação, praticada a seguir em eva, deu
resultados similares, ainda que com a importante diferença de o umbigo dela ter saído bastab«nte
melhorado no que toca a desenho, contornos e delicadeza de pregas. Foi esta a última vez que o
senhor olhou uma obra sua e achou que estava bem.”

Quem gosta de ler, gosta de imagens, de metáforas, analepses e prolepses, narrativas de


idealismos míticos e messiânicos, de mundos com Deus e diabo, de esperança e desespero. E
nesta obra, nesta “pílula de livro, mas muito concentrada”, nas palavras do próprio Saramago,
está tudo isto lá. E a nível literário, Saramago é um mago de imagens e metáforas.

Caim é uma obra que não deve ser lida por pessoas que não são capazes de tolerar críticas à sua
própria fé. Mas é preciso que fique BEM CLARO Saramago não pretendeu humilhar, ofender
nenhum praticante de nenhum tipo de fé. Saramago reconhece a liberdade de cada um em
professar a sua própria fé.
Ao escrever Caim, Saramago está a exercer a sua liberdade intelectual para reinterpretar esta
história bíblica, que lhe fora “imposta” durante a sua infância.

Saramago é um autor inteligente, caústico e irredutível nas suas convicções éticas. O que de
passional pode haver nas discussões a respeito deste romance é fruto certamente da escrita
apaixonada e apaixonante de José Saramago.

Recomendo vivamente a leitura desta obra.

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