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Coulanges, Fustel. A cidade antiga. São Paulo: Editora das Américas, 2006.
O fogo era a representação física dos antepassados que estavam mortos. Era um ser
moral, que precisava receber os devidos cuidados para manter sua chama acessa. As famílias
compartilhavam alimentos e bebidas com o fogo, e acreditavam que o fogo reagia aos
tratamentos que recebia. A criança, quando nascia era apresentada aos deuses domésticos;
uma mulher carregava-a nos braços, e, correndo, dava com ela várias voltas ao redor do fogo
sagrado.
O pai da família era considerado o sacerdote, intermediário entre o deus e a família.
Era o responsável por zelar pelos banquetes, sacrifícios aos deuses e pela manutenção do
fogo. Subordinava-se aos deuses aos quais estava submetido. Assim, o sacerdote zelava para
que a família cumprisse com os desígnios dos deuses. Faz-se oportuno destacar que o filho
mais velho assumia os poderes que o pai exercia sobre a família. O sacerdócio era passado de
pai para filho, após a morte do pai. A mulher não recebia o sacerdócio, ela cultuava um
antepassado do pai ou do marido. Os antepassados da mulher não eram cultuados. Ela se
ligava ao culto por intermédio do sacerdote, representado pelo seu pai, seu marido ou pelo seu
filho mais velho. Em relação ao casamento, este constituía uma cerimônia religiosa que
marcava a mudança de religião da mulher. A filha deveria abandonar a submissão à
autoridade de seu pai e aos deuses de seu pai, para prestar submissão aos deuses de seu
marido.
Os fenômenos da natureza também eram considerados deuses. Logo, os antigos
concebiam o mundo como uma grande república de deuses que não conviviam pacificamente,
ou seja, não entravam em acordo, mas lutavam entre si. Gregos e romanos estabeleciam três
sensações ao lidar com deuses: veneração, amor e o ódio. O culto aos fenômenos da natureza
surge com a expansão da família grega e romana, e essa expansão é chamada de gens. Dessa
forma, o que cria a ponte entre as famílias não é a religião doméstica, e sim, a crença nos
deuses naturais. Esta crença motivava a união entre as famílias.
Na Grécia, a união de duas ou mais famílias recebia o nome de Fátrias, enquanto os
romanos denominavam essa forma de união de cúrias. Essa união somente poderia ser
conquistada com a preservação da religião doméstica e com a realização de cultos comuns
entre duas ou mais famílias. O parentesco não se dava com base em laços sanguíneos, mas
pela existência do ato de cultuar os mesmos deuses. Assim, as pessoas se uniam em torno de
um culto, e os cultos não entravam em conflito com as religiões domésticas.
A sociedade passou para um novo estágio, no qual as pessoas passaram a conviver em
um maior número. Entretanto, o tipo de organização social não foi modificado. Com o passar
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dos anos, são criadas as tribos, cujos sacerdotes, cultos, comunhões e banquetes coletivos são
comuns aos integrantes. Preserva-se a autoridade da fátria ou curia e a autoridade da família.
Com a expansão das tribos, chegou-se a criação de uma grande confederação de mini
sociedades em torno de um culto comum - a cidade grega e romana. As cidades apresentavam
as mesmas instituições que a família, que a cúria e a fátria, e as mesmas instituições que a
tribo. Portanto, mais uma vez, as instituições antigas não são destruídas. A cidade, fundada
por tribos que se reuniam, não era apenas uma instituição política, constituía também o lar dos
deuses. É importante ressaltar que as cidades eram construídas com a consulta aos deuses. Os
antigos pediam a anuência aos deuses em relação ao local de construção das cidades. Além
disso, o homem não podia construir a cidade sem levar consigo os seus ancestrais. Para tanto,
recolhia um pouco da terra posta ao redor da sepultura de seu deus e a levava para o local
onde seria fundada a cidade. Dessa maneira, os deuses da cidade eram a ampliação dos deuses
da família.
O fundador da cidade era eleito entre os chefes de tribo. Toda cidade grega ou romana
tinha dois tipos de muralha: a muralha física e a muralha espiritual. Esta última indicava o
limite de influência dos deuses. A grande luta travada entre as cidades girava em torno da
conquista da bênção de deuses naturais para proteger a cidade.
Em Roma, o altar da cidade se chamava templo de vesta; na Grécia, se chamava
pritaneu. O fundador da cidade se tornava o comandante, ganhando autoridade de sacerdote,
sendo chamado também de rei - a figura do pater ampliada para a cidade. Possuía poder de
administrar a cidade e de julgar atos e condutas. Com a destituição de alguns reis, os
magistrados passavam a assumir o poder nas cidades, eram escolhidos pelos deuses.
No que se refere ao estrangeiro, este jamais poderia participar dos cultos de outra
cidade. Não poderiam conhecer as leis de outra cidade. O plebeu, por exemplo, era um
estrangeiro que deveria ser desprezado, pois estava fora da lei, fora da religião, fora da
sociedade e da família. Portava, portanto, uma inferioridade moral.
Os antigos possuíam livros litúrgicos, mas os de uma cidade não se assemelhavam aos
de outra. Cada cidade tinha seu livro de rituais e práticas, que eram mantidos em segredo.
Poderiam comprometer a religião, e seu próprio destino, se os deixassem nas mãos de
estrangeiros. Os livros tinham prescrições morais, de conduta. Influenciavam diretamente na
construção de leis. Assim, o direito é fruto da religião antiga. A lei era inacessível ao
estrangeiro, sendo propriedade dos cidadãos das cidades. Portanto, apresentavam caráter
sagrado.
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A maior punição destinada aos antigos era o exílio, principal punição diante do
cometimento de crimes muito graves. O exílio representava o desligamento dos cultos,
fazendo com que o homem ficasse a mercê de outros deuses. Já os crimes de menor
gravidade, eram punidos com a morte.
Com um expressivo temor em relação aos deuses, constata-se que o homem suprimia a
sua liberdade em favor da religião. A religião esmagava o homem sob o receio da existência
de deuses contrários. Esse temor que lhe arrancava toda a liberdade de ação caminhava junto
com sacrifícios diários em casa, mensais na cúria ou fátria, e várias vezes por ano em sua gens
ou tribo. Além de todos esses deuses, deveriam ainda cultuar os deuses da cidade.
O antigo regime da família será destruído, e quem vai buscar destruí-lo é a parte
marginalizada. Patrícios, clientes e a plebe empreendem revoluções que minam as bases do
poder da antiga família. Assim, a primeira revolução envolveu patrícios do ramo mais novo e
patrícios do ramo mais velho. Estes últimos condensavam sua autoridade no rei – expressão
do antigo pater. A figura do rei opôs-se à aristocracia. A partir de então, o rei perde o direito
de primogenitude, mas a antiga moral religiosa é mantida. Dessa forma, a revolução é iniciada
com a luta entre rei e a aristocracia. Quando o rei alia-se a plebeus e clientes, os aristocratas
temem a destruição da antiga moral.
A segunda revolução ocorre entre aristocracia (proprietária de terras, de clientes e
escravos) e clientes, que estavam em busca de propriedades e de direitos, e contra a sua
escravização. Os clientes exigem receber parte do fruto de seu trabalho, no entanto, mesmo
conquistando tal direito, são taxados com pesados tributos por parte dos patrícios. E na
Grécia, com o legislador Sólon, os clientes conquistam a propriedade definitiva de terra e a
redução dos tributos.
A terceira revolução, a que mais irá interferir no direito familiar, ocorre entre patrícios
e plebeus. Resulta na inclusão da plebe na cidade, a partir de concessões realizadas por
aristocratas, tais como, terras, títulos de propriedade, sobretudo, quando a plebe ajudava os
aristocratas a eleger tirânicos. É importante suscitar que os plebeus enriqueceram por meio do
comércio, logo, ascende ao poder uma classe que não é fundada na base religiosa, mas no
poder econômico. Faz-se oportuno mencionar também que os plebeus que conseguem entrar
na cidade são aqueles que enriquecem com o comércio e com a indústria, e exigem direitos.
Na Grécia os patrícios perdem a propriedade com as reformas de Sólon, que altera o
fundamento da propriedade. Cristaliza-se que o poder de propriedade não está mais fundado
no poder religioso, e sim no poder político. Destarte, o culto torna-se universal, não mais
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cristianismo. Para o autor, as crenças antigas não mais combinavam com o nível intelectual do
povo.
Para o Coulanges, a ascensão do cristianismo representou uma verdadeira revolução
na história do pensamento. A chegada do cristianismo representa um novo conceito de deus,
de modo a dissociar deus do universo. O deus do cristianismo é cosmopolita e universal,
admite o acolhimento do estrangeiro e ressalta a separação entre religião e Estado.