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RESENHA

Coulanges, Fustel. A cidade antiga. São Paulo: Editora das Américas, 2006.

A obra “A cidade antiga”, elaborada por Fustel de Coulanges busca realizar um


profundo e consistente estudo das instituições e da mentalidade do povo grego e romano.
Fustel organiza seu estudo em uma linha diretiva, demonstrando que a base da sociedade
grega e romana foi consolidada a partir da religião primitiva dessas sociedades. A religião
constitui a base dessas instituições, influenciando o direito, as formas políticas, as formas de
conduta, a moral, a forma de pensamento. Havia dois tipos de crença nessas sociedades
antigas: o culto aos mortos e a sacralização do fogo. Em total discrepância em relação à
concepção cristã acerca da morte, as antigas civilizações gregas e romanas acreditavam que
após a morte, o espírito continuaria vivendo no mundo junto ao corpo. Dessa maneira, a morte
era apenas uma transformação, uma vez que a alma e o corpo continuavam compartilhando o
mesmo espaço após a morte. Acreditava-se que os mortos davam sequência a uma segunda
vida dentro do túmulo.
Para que a segunda vida continuasse dentro do túmulo, os antigos acreditavam na
necessidade de enterrar os mortos junto com os seus objetos pessoais. Cabia aos vivos, cuidar
adequadamente de seus ancestrais, ofertando aos mortos banquetes, rituais, entonação de
cantos e sacrifícios. Assim, a igreja desses povos era representada pelo túmulo de seus
antepassados. Acreditava-se que o morto se transformava em deus da família, e não havia a
concepção de um deus único. Os vivos e os mortos deveriam realizar acordos entre si. Os
familiares deveriam zelar pelos banquetes, rituais e sacrifícios em benefício dos seus
antepassados, em troca de proteção. Prevalecia a crença de que os mortos protegiam as
famílias, ajudavam nas chuvas, influenciavam nas colheitas, proporcionavam a sorte e
exerciam proteção. Dessa forma, os deuses eram particulares, de ordem doméstica.
Portanto, os mortos eram transformados em criaturas sagradas. Em Roma, eram
chamados de manés, gênios ou lares. Na Grécia, eram chamados de demônios ou heróis. É
importante ressaltar que os deuses não perdem as características humanas, pois podem trair e
perseguir os seus familiares. Nesse sentido, a função da família é cumprir com todos os rituais
previstos para apaziguar os seus deuses. Cada família apresentava os seus deuses, de modo a
não haver existência de comunicação entre deuses de diferentes famílias, já que o culto aos
antepassados não apresentava caráter público, mas de natureza privada. Além disso, as
sepulturas dos ancestrais eram postas em proximidade com as casas de seus familiares.
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O fogo era a representação física dos antepassados que estavam mortos. Era um ser
moral, que precisava receber os devidos cuidados para manter sua chama acessa. As famílias
compartilhavam alimentos e bebidas com o fogo, e acreditavam que o fogo reagia aos
tratamentos que recebia. A criança, quando nascia era apresentada aos deuses domésticos;
uma mulher carregava-a nos braços, e, correndo, dava com ela várias voltas ao redor do fogo
sagrado.
O pai da família era considerado o sacerdote, intermediário entre o deus e a família.
Era o responsável por zelar pelos banquetes, sacrifícios aos deuses e pela manutenção do
fogo. Subordinava-se aos deuses aos quais estava submetido. Assim, o sacerdote zelava para
que a família cumprisse com os desígnios dos deuses. Faz-se oportuno destacar que o filho
mais velho assumia os poderes que o pai exercia sobre a família. O sacerdócio era passado de
pai para filho, após a morte do pai. A mulher não recebia o sacerdócio, ela cultuava um
antepassado do pai ou do marido. Os antepassados da mulher não eram cultuados. Ela se
ligava ao culto por intermédio do sacerdote, representado pelo seu pai, seu marido ou pelo seu
filho mais velho. Em relação ao casamento, este constituía uma cerimônia religiosa que
marcava a mudança de religião da mulher. A filha deveria abandonar a submissão à
autoridade de seu pai e aos deuses de seu pai, para prestar submissão aos deuses de seu
marido.
Os fenômenos da natureza também eram considerados deuses. Logo, os antigos
concebiam o mundo como uma grande república de deuses que não conviviam pacificamente,
ou seja, não entravam em acordo, mas lutavam entre si. Gregos e romanos estabeleciam três
sensações ao lidar com deuses: veneração, amor e o ódio. O culto aos fenômenos da natureza
surge com a expansão da família grega e romana, e essa expansão é chamada de gens. Dessa
forma, o que cria a ponte entre as famílias não é a religião doméstica, e sim, a crença nos
deuses naturais. Esta crença motivava a união entre as famílias.
Na Grécia, a união de duas ou mais famílias recebia o nome de Fátrias, enquanto os
romanos denominavam essa forma de união de cúrias. Essa união somente poderia ser
conquistada com a preservação da religião doméstica e com a realização de cultos comuns
entre duas ou mais famílias. O parentesco não se dava com base em laços sanguíneos, mas
pela existência do ato de cultuar os mesmos deuses. Assim, as pessoas se uniam em torno de
um culto, e os cultos não entravam em conflito com as religiões domésticas.
A sociedade passou para um novo estágio, no qual as pessoas passaram a conviver em
um maior número. Entretanto, o tipo de organização social não foi modificado. Com o passar
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dos anos, são criadas as tribos, cujos sacerdotes, cultos, comunhões e banquetes coletivos são
comuns aos integrantes. Preserva-se a autoridade da fátria ou curia e a autoridade da família.
Com a expansão das tribos, chegou-se a criação de uma grande confederação de mini
sociedades em torno de um culto comum - a cidade grega e romana. As cidades apresentavam
as mesmas instituições que a família, que a cúria e a fátria, e as mesmas instituições que a
tribo. Portanto, mais uma vez, as instituições antigas não são destruídas. A cidade, fundada
por tribos que se reuniam, não era apenas uma instituição política, constituía também o lar dos
deuses. É importante ressaltar que as cidades eram construídas com a consulta aos deuses. Os
antigos pediam a anuência aos deuses em relação ao local de construção das cidades. Além
disso, o homem não podia construir a cidade sem levar consigo os seus ancestrais. Para tanto,
recolhia um pouco da terra posta ao redor da sepultura de seu deus e a levava para o local
onde seria fundada a cidade. Dessa maneira, os deuses da cidade eram a ampliação dos deuses
da família.
O fundador da cidade era eleito entre os chefes de tribo. Toda cidade grega ou romana
tinha dois tipos de muralha: a muralha física e a muralha espiritual. Esta última indicava o
limite de influência dos deuses. A grande luta travada entre as cidades girava em torno da
conquista da bênção de deuses naturais para proteger a cidade.
Em Roma, o altar da cidade se chamava templo de vesta; na Grécia, se chamava
pritaneu. O fundador da cidade se tornava o comandante, ganhando autoridade de sacerdote,
sendo chamado também de rei - a figura do pater ampliada para a cidade. Possuía poder de
administrar a cidade e de julgar atos e condutas. Com a destituição de alguns reis, os
magistrados passavam a assumir o poder nas cidades, eram escolhidos pelos deuses.
No que se refere ao estrangeiro, este jamais poderia participar dos cultos de outra
cidade. Não poderiam conhecer as leis de outra cidade. O plebeu, por exemplo, era um
estrangeiro que deveria ser desprezado, pois estava fora da lei, fora da religião, fora da
sociedade e da família. Portava, portanto, uma inferioridade moral.
Os antigos possuíam livros litúrgicos, mas os de uma cidade não se assemelhavam aos
de outra. Cada cidade tinha seu livro de rituais e práticas, que eram mantidos em segredo.
Poderiam comprometer a religião, e seu próprio destino, se os deixassem nas mãos de
estrangeiros. Os livros tinham prescrições morais, de conduta. Influenciavam diretamente na
construção de leis. Assim, o direito é fruto da religião antiga. A lei era inacessível ao
estrangeiro, sendo propriedade dos cidadãos das cidades. Portanto, apresentavam caráter

sagrado.
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A maior punição destinada aos antigos era o exílio, principal punição diante do
cometimento de crimes muito graves. O exílio representava o desligamento dos cultos,
fazendo com que o homem ficasse a mercê de outros deuses. Já os crimes de menor
gravidade, eram punidos com a morte.
Com um expressivo temor em relação aos deuses, constata-se que o homem suprimia a
sua liberdade em favor da religião. A religião esmagava o homem sob o receio da existência
de deuses contrários. Esse temor que lhe arrancava toda a liberdade de ação caminhava junto
com sacrifícios diários em casa, mensais na cúria ou fátria, e várias vezes por ano em sua gens
ou tribo. Além de todos esses deuses, deveriam ainda cultuar os deuses da cidade.
O antigo regime da família será destruído, e quem vai buscar destruí-lo é a parte
marginalizada. Patrícios, clientes e a plebe empreendem revoluções que minam as bases do
poder da antiga família. Assim, a primeira revolução envolveu patrícios do ramo mais novo e
patrícios do ramo mais velho. Estes últimos condensavam sua autoridade no rei – expressão
do antigo pater. A figura do rei opôs-se à aristocracia. A partir de então, o rei perde o direito
de primogenitude, mas a antiga moral religiosa é mantida. Dessa forma, a revolução é iniciada
com a luta entre rei e a aristocracia. Quando o rei alia-se a plebeus e clientes, os aristocratas
temem a destruição da antiga moral.
A segunda revolução ocorre entre aristocracia (proprietária de terras, de clientes e
escravos) e clientes, que estavam em busca de propriedades e de direitos, e contra a sua
escravização. Os clientes exigem receber parte do fruto de seu trabalho, no entanto, mesmo
conquistando tal direito, são taxados com pesados tributos por parte dos patrícios. E na
Grécia, com o legislador Sólon, os clientes conquistam a propriedade definitiva de terra e a
redução dos tributos.
A terceira revolução, a que mais irá interferir no direito familiar, ocorre entre patrícios
e plebeus. Resulta na inclusão da plebe na cidade, a partir de concessões realizadas por
aristocratas, tais como, terras, títulos de propriedade, sobretudo, quando a plebe ajudava os
aristocratas a eleger tirânicos. É importante suscitar que os plebeus enriqueceram por meio do
comércio, logo, ascende ao poder uma classe que não é fundada na base religiosa, mas no
poder econômico. Faz-se oportuno mencionar também que os plebeus que conseguem entrar
na cidade são aqueles que enriquecem com o comércio e com a indústria, e exigem direitos.
Na Grécia os patrícios perdem a propriedade com as reformas de Sólon, que altera o
fundamento da propriedade. Cristaliza-se que o poder de propriedade não está mais fundado
no poder religioso, e sim no poder político. Destarte, o culto torna-se universal, não mais
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eupátrida e as tribos são transformadas em autoridades administrativas (demos). A nova forma


de organização administrativa passa a envolver os plebeus.
Em Roma ocorreu uma drástica divisão entre as cidades – patrícios e plebeus tinham
assembleias separadas. Em Roma a plebe exigiu que as leis romanas fossem aplicadas a ela
também. Os patrícios não aceitavam que os plebeus escrevessem leis, consideradas sagradas.
Para resolver a questão, os patrícios escolheram dez entre eles (descênviros). Estes
escreveram códigos de leis que valeriam para todos e o submeteram à aprovação da plebe, que
o aprovou. Esse código de lei ficou conhecido como Código das 12 tábuas (de fundamentos
políticos e sociais, não religiosos), que colocou pela primeira vez na história romana patrícios
e plebeus sob a autoridade da mesma lei.
As 12 tábuas transformaram o direito em algo público. Dessa forma, a religião passou
a ser fundada na vontade popular. Pela primeira vez na história de Roma, a lei é elaborada em
favor da população. Não predomina mais a autoridade religiosa, mas o interesse mútuo. Os
homens deixam de entregar o destino nas mãos de deuses para governar-se. A forma de eleger
representantes não é hereditária e nem através de sorteio, mas através do sufrágio (o voto).
A aristocracia religiosa perde forma e dá lugar à aristocracia de riqueza (formada pelos
plebeus mais ricos – passam a controlar o poder político).
A plebe conquistou o direito político de participar das decisões. Os plebeus criaram
censos para se perpetuar, no poder, mas sensos restritivos. Os pobres, por sua vez, lutaram
para conquistar direitos políticos (ser eleitos, acessar cargos públicos, votar, participar de
assembleias) e econômicos. Quando os plebeus destroem a república censitária instaurada
pela aristocracia de riqueza, inauguram a democracia (forma de governo onde todos podem
participar), não incluindo mulheres e escravos.
Com o desaparecimento do regime municipal, ou seja, das instituições que
organizavam a vida das pessoas, da força moral que as antigas tradições exerciam para
delimitar a conduta das pessoas, gradualmente o cristianismo entrou em ascensão. O que
impulsionou a decadência das antigas crenças foram as revoluções e a gradual destruição dos
fundamentos das crenças dos antigos povos. Quando a autoridade estrangeira de Roma
destruiu o fundamento da organização social das cidades, a ideia da crença em um deus
universal começou a vigorar.
Na Grécia, o filósofo Anaxágoras defendia a existência de um deus universal, e
negava o endeusamento da lua, associando-a a um pedaço que se desprendeu da terra.
Diferentemente do que é ensinado nas escolas tradicionais, Fustel de Coulanges não associa a
morte da sociedade antiga com a queda do Império Romano, mas com a forte ascensão do
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cristianismo. Para o autor, as crenças antigas não mais combinavam com o nível intelectual do
povo.
Para o Coulanges, a ascensão do cristianismo representou uma verdadeira revolução
na história do pensamento. A chegada do cristianismo representa um novo conceito de deus,
de modo a dissociar deus do universo. O deus do cristianismo é cosmopolita e universal,
admite o acolhimento do estrangeiro e ressalta a separação entre religião e Estado.

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