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A CASA GRANDE JÁ TEME O CAOS

ROBERTO AMARAL*

Uma vez mais o caminho é iluminado pelas ruas e pelo que este país tem de melhor: o “povão”, tão
bem representado pelas torcidas dos grandes clubes de futebol de São Paulo, que, lecionando o
que precisa ser feito Brasil afora, sem pedirem audiência a partidos recatados e a lideranças
cautelosas, tomaram para a democracia a Avenida Paulista, até este último domingo (31/5) o
santuário da elite bolsonarista, cantando de galo em terreiro abandonado pelas forças populares e
democráticas. Cantando de galo exatamente por isso, porque estava só: quando não divisa
adversário, todo covarde alardeia destemor.

Penso estar diante de fato histórico da maior importância para nosso destino imediato, certamente
o mais relevante dos tempos recentes: a entrada na cena política do povo brasileiro, este ator mal
querido pelos senhores do poder; ele chega em momento preciso, sem abre-alas, marcando seus
próprios passos e fazendo seu caminho, forçando espaço e impondo sua voz. Que amanhã possa
impor sua vontade. Que ao movimento espontâneo de hoje siga-se a ação organizada em plano
nacional. Se assim se der o desenrolar dos fatos, poderemos apostar que dias melhores virão.

Enfim descobrimos que a sociedade está viva e que o povo-massa não se acovarda.
O povo nas ruas – nas ruas como possível, em face da pandemia, e nas onipresentes redes sociais –
alterará substantivamente a correlação de forças do jogo político, e pode fazer malograr o acordo
de elites, a conciliação pelo alto, a velha solução prussiana tão presente em nossa História e já em
curso, agora em nome da “pacificação” nacional, codinome da conservação do statu quo, depois
que os direitos dos trabalhadores foram surrupiados. A casa grande já teme o caos; este não está
mais sob a batuta do capitão, suas milícias e seus celerados, pois já caminha livre, alimentado pelo
rotundo desastre da política econômica. Em face do imponderável, que são os riscos decorrentes
de qualquer explosão social, o “mercado”, antes indiferente à crise institucional buscada pelo
capitão (o IBOVESPA fechou a semana em alta) cuida agora de proteger seus ganhos e trata de
intervir e administrar a “saída”, assegurando-se de que, quaisquer que sejam as alternativas
conjuradas por um processo sem prévio controle, elas precisam estar escoimadas da contaminação
das pressões populares.

O acordo traficado pelas elites precisa ser denunciado para morrer na praia.

Em nome da “salvação nacional”, que a todos mobiliza, a casa grande propõe um pacto nacional
que deságua na preservação de um bolsonarismo bem comportado, confundindo, para melhor
fazer passar o contrabando, forma e conteúdo.

Com o risco de insistir no óbvio, é preciso lembrar que o que nos afeta, fundamentalmente, não são
os métodos do capitão; no caso presente a forma é o outro lado de sua natureza política.
Precisamos nos ver livres é de sua política, mais que de seus maus modos. O que se coloca como
necessidade urgente e ingente, agônica, é livrar o país da ameaça representada pela presença do
capitão na Presidência da República e comandante–chefe de Forças Armadas com larga tradição de
intervenção política e parca cultura histórica.

O que nos aflige, ademais do projeto golpista protofascista escancarado pelo capitão e seus
íntimos, é a desmontagem da economia nacional, levada a cabo passo a passo, peça por peça, com
imperturbável frieza, pelo agiota alçado ao posto de “superministro”. Por aí está sendo asfaltado o
caminho que inevitavelmente construirá o caos: a recessão, o desemprego e a fome têm encontro
marcado para o segundo semestre. O establishment, talvez escaldado pelas revoltas que
incendeiam os EUA de Trump, eriça as sobrancelhas, pois nem mesmo o capitão, nem mesmo as
Forças Armadas, nem mesmo o império, nem mesmo todos juntos, podem garantir que,
desencadeada a convulsão social perseguida pelos aprendizes de feiticeiros, seus interesses e
privilégios de classe serão mantidos irrigados como hoje são.

Mas nossas elites são mesquinhas, e agora se revelam tolas, elas que vêm sendo expertas em todos
os golpes de Estado que entulham a República. Propõem à democracia uma composição com os
inimigos da democracia, como se nós, os que sabemos o que significa a repressão, não
conhecêssemos a novela do sapo que tentou salvar o escorpião, condenando-se à morte.

Os termos do acordo fatal são propostos pelo inefável O Globo em editorial (“Os democratas
precisam conversar”) do último domingo. Sua importância está não apenas em suas letras; elas se
tornam relevantes quando sabemos que as Organizações Marinho se orgulham de expressar os
interesses das classes dominantes.
O editorial diz que “a sociedade precisa encontrar a saída de uma situação em que as crises
provocadas pelo presidente se sucedem”. Ninguém discorda. Temente do caos (mais precisamente:
temente que do caos se louvem as forças populares), pede a “reaproximação [na defesa das
liberdades] das forças políticas que têm diferenças no campo da economia, na área social e outras,
mas compartilham zonas de intercessão”. Dentre as forças chamadas não se encontram os mais
interessados – os trabalhadores. Mas indica o objetivo do ajuntamento: a pacificação nacional. Em
torno de quê? Ora vejam! Do bolsonarismo: “Esta via política não deve excluir Bolsonaro, que
precisa fazer um gesto pelo entendimento”. Para quê? Para que, diz o editorial, o presidente possa
“executar sua agenda”. Mas que agenda? Exatamente a agenda que precisa ser defenestrada, essa
que desestrutura o Estado, abre as portas ao autoritarismo e aspira ao fascismo. Trata-se da
agenda que destrói nossa economia, o neoliberalismo paleontológico do “Posto Ipiranga” que já
levou o país da estagnação à recessão e agora nos está levando da recessão à depressão, com a
qual nos depararemos antes do final do ano e de cujas funestas consequências não nos livraremos
antes de meados da década, ainda que não demoremos a nos livrar do bolsonarismo.

Para quem tem o mando o que interessa é sua conservação. Tanto faz se o regime é monárquico ou
republicano, democrático ou autoritário, de esquerda ou de direita, corrupto ou não. O
fundamental é a conservação do poder, se possível sem riscos. Nossas carcomidas elites, que
prepararam a ascensão do capitão (conhecendo-o de perto), que fizeram do ex-juiz e ex-ministro
um regra dois para 2022, que já admitiram mesmo trocar o capitão sem modos pelo general mais
comedido, nem isso admitem: querem mesmo que nada mude. A “saída” da vez propõe o
concubinato da democracia, das liberdades e da “governabilidade” exatamente com quem detona
a democracia, investe contra as liberdades e inviabiliza, por método, a governabilidade – o capitão,
coiteiro de criminosos, cúmplice de milicianos, o pivô aglutinador da súcia que tomou de assalto
nossa história. Implícito está, na proposta veiculada pelo O GLOBO, que todos os crimes – delitos
penais, civis, administrativos, políticos – cometidos pela horda bolsonarista serão varridos para
debaixo do tapete, e tudo permanecerá como dantes no castelo de Abranches.

Esta “saída” pode até ser aceita tanto pelo Congresso quanto pelo Judiciário – pois o papel histórico
de ambos, nas crises institucionais, tem sido homologar as soluções traficadas pelas elites civis,
empresariais e militares com a assessoria dos procuradores do império; assim foi sempre e nesses
termos é que se deu o pacto da redemocratização de 1985. Com o povo nas ruas cobrando a
redemocratização, a sociedade mobilizada pela campanha das Diretas Já, a casa grande, um
grupelho de auto nomeados príncipes, meia dúzia de políticos conservadores e meia dúzia de
generais, negociaram a “transição”, de que resultou a morte da constituinte autônoma e da revisão
da anistia, com a consequente impunidade dos militares acusados dos crimes de tortura e
assassinato. De que resultou a tutela militar sobre o primeiro governo da “Nova República”. Deu no
que deu: a emergência, tantos anos passados, da escória dos porões da ditadura. O ícone dos
fardados no poder e fora dele não é o general Geisel, mas Sílvio Frota, quando não o facínora Ustra.

Não há e não pode haver negociação com o crime. Com a corrupção, com a traição aos interesses
do país. Não há negociação possível, muito menos coabitação com o banditismo, com as milícias,
com o armamentismo, com a tragédia social, com a dilapidação de nossas reservas, com a
destruição de nossa riqueza ambiental. O adversário não é o capitão, essa execrável pessoa física,
mas sua política, seu projeto e o que ele representa como atraso ideológico: a emergência dos
valores políticos da extrema-direita com a qual a democracia não dialoga.
O pacto proposto é espúrio. A única esperança que nos resta de vê-lo abortado é a reação das
grandes massas, os 70% de brasileiros que se opõem ao bolsonarismo e que, aos poucos, e
animados pelos torcedores antifascistas, começam a sair da zona de conforto – espremida entre a
pandemia e a ameaça fascista – e descobrir que a ação não apenas é necessária e inadiável, como,
principalmente, é possível.

O que o clã Marinho nos oferece é o acordo das elites, para salvarem-se na crise que elas mesmas
ajudaram a criar, inclusive com seus jornais e a manipulação política e ideológica que tem seu
ponto de partida na desestabilização do governo Dilma Rousseff, seguida pela posse do perjuro
Temer, a eleição e o governo Bolsonaro, a consolidação do regime de golpe de Estado permanente.
Ninguém – imprensa, Judiciário, Congresso, Forças Armadas – pode hoje posar de inocente.

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* Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência&Tecnologia

www.ramaral.org 02/06/2020

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