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Quanto vale a matemática para o Brasil?

Marcelo Viana – 03/03/2017

Napoleão Bonaparte, profundamente interessado por ciência, escreveu que "o avanço e a perfeição da matemática estão
intimamente ligados à prosperidade do Estado". Com essa visão, o imperador comandou a construção do Estado francês moderno,
após a Revolução de 1789, dotando o país com instituições científicas e universidades que contribuem para a grandeza e a
prosperidade da França até os dias de hoje.

A matemática tem valores que não podem ser quantificados. Ao lado da correta fluência da língua materna, o conhecimento das
ideias básicas da matemática é condição-chave para a realização da cidadania. O encanto de observá-la explicar os mistérios do
Universo, o entusiasmo das crianças resolvendo problemas das olimpíadas escolares, a imagem do brasileiro Artur Avila
ganhando a Medalha Fields 2014 –maior prêmio da matemática mundial–, nada disso tem preço.

Porém, é importante indagarmos qual é a contribuição efetiva da área e da ciência como um todo para a riqueza de um país, ainda
mais em tempos de escassez de recursos. Cientistas vivem lembrando que pesquisa e educação são investimento, não custo. Mas
como convencer as sociedades do século 21 e provar (matematicamente) que o resultado é concreto e tangível? Alguns países
desenvolvidos responderam a essa questão de forma contundente.

Em 2010, a agência nacional britânica de pesquisa EPSRC (Engineering and Physical Sciences Research Council) encomendou a
uma consultoria a avaliação do impacto da matemática na economia do Reino Unido. As conclusões do estudo surpreenderam até
os mais otimistas: a matemática gera diretamente 2,8 milhões de empregos (10% do total) e 208 bilhões de libras por ano, ou 16%
da economia do país. Mais ainda, a produtividade desses empregos é o dobro da média. A matemática contribui com trabalhadores
qualificados, para produtos de ponta e o desenvolvimento de processos de qualidade. Gera crescimento, com impacto nos setores
bancário, financeiro, farmacêutico, de computação, engenharia, construção, administração pública e defesa.

O exemplo britânico foi seguido por França, Holanda e Austrália. Com variações nos detalhes, a conclusão é sempre a mesma: a
matemática tem um peso notável, direto e indireto, na produção de riqueza. O estudo francês conclui ainda que 44% das
tecnologias mais importantes para o país são fortemente impactadas pelos avanços em matemática.

E quanto vale a matemática para o Brasil? Vamos fazer a conta: o PIB brasileiro é de R$ 6 trilhões anuais. Se o potencial de
impacto econômico é da ordem de 16%, como nos outros países, então a matemática vale quase R$ 1 trilhão por ano.

Infelizmente, as avaliações nacionais e internacionais de nosso sistema educacional mostram claramente que não formamos jovens
com capacitação matemática e científica para essas profissões –não na escala que o país necessita. A verdade deprimente é que
estamos deixando de produzir (e ganhar) boa parte desse R$ 1 trilhão.

Não há melhor momento para apostar no futuro do que este, em que o Brasil celebra o Biênio da Matemática 2017-2018, sediando
a Olimpíada Internacional de Matemática e o Congresso Internacional de Matemáticos, os mais prestigiosos eventos mundiais na
área. Aplicar recursos para mudar radicalmente esse quadro e assegurar aos nossos jovens a formação matemática e tecnológica
exigida pelo século 21 não é custo. É o melhor investimento possível, com taxa de rentabilidade superior a qualquer outro.

Napoleão Bonaparte sabia disso.

Meninas podem ser o que quiserem, inclusive matemáticas


Marcelo Viana – 10/03/2017

Fiz o pós-doutoramento em Princeton (EUA) nos anos 1990. Na época, professoras de matemática em uma universidade desse
nível eram novidade e raridade. Perguntei à respeitada Alice Chang se ela já havia se sentido discriminada na carreira por ser
mulher. Um colega se antecipou e respondeu por ela: "Quando discutíamos a possibilidade de contratar a Alice, vários colegas
disseram: 'Se vamos ter mesmo que aturar uma mulher aqui, então que seja ela'."

Emmy Noether (1882-1935), a mulher que foi um dos matemáticos mais notáveis do século 20, enfrentou muita dificuldade para
conseguir um emprego na universidade. Só conseguiu porque tinha um padrinho influente, o grande matemático David Hilbert,
também alemão. Ela foi, em 1932, a primeira mulher a dar uma palestra plenária (principal) no Congresso Internacional de
Matemáticos (ICM). O ICM acontece a cada quatro anos e cerca de vinte matemáticos recebem essa distinção em cada edição - a
próxima será em 2018, no Rio de Janeiro.

Mas a segunda mulher plenarista, a americana Karen Uhlenbeck, só seria convidada quase sessenta depois, em 1990. Eu estava lá.
Uhlenbeck mencionou ter contado a um colega que seria a primeira mulher a dar uma palestra plenária desde Emmy Noether.
Surpreso, o rapaz respondera que nem sabia que ela (Noether) tinha sido plenarista.

A russa Sofia Kowalevski (1850-1891) viveu situação parecida com a da alemã. No seu caso, o fiador foi o influente sueco Gösta
Mittag-Leffler. De Kowalevski se dizia que era demasiado bonita para ser matemática.
Muita coisa mudou, evidentemente, mas as mulheres continuam sendo minoria no mundo matemático, sobretudo nos escalões
superiores. Dos 56 ganhadores da Medalha Fields, a maior distinção da área, só um é mulher: a irano-americana Maryam
Mirzakhani, premiada em 2014. Até no magistério, tradicionalmente "feminino", a matemática é exceção: as turmas do mestrado
profissional em matemática (Profmat) são esmagadoramente masculinas.

A explicação não parece simples.

Claro que enquanto os homens forem maioria, tomarão as decisões e pode-se intuir que tendam a favorecer outros homens. De
fato, estudos mostram que dossiês idênticos recebem melhores avaliações quando o candidato é homem. Trocar o nome "João"
por "Maria" basta para que a nota piore! Mas o fenômeno é sutil e complexo: esses estudos também mostram que as notas de
candidatas do sexo feminino tendem a ficar ainda piores quando quem avalia são outras mulheres!

Depois, mulheres assumem parte desproporcional do trabalho doméstico. Quando perguntei a uma amiga professora universitária
se havia sido discriminada, disse: "Não, até o dia em que tive uma filha. Aí comecei a frequentar as reuniões de pais, que são
aqueles encontros no colégio a que só mães vão."

Outras barreiras são mais difíceis de decifrar, como no caso da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas,
organizada pelo Impa. Anualmente, 18 milhões de jovens, praticamente todos os alunos de escolas públicas a partir do 6º ano,
participam da 1ª fase. Os 5% com melhor nota de cada colégio passam à 2ª fase. A boa notícia é que aí há equilíbrio: metade dos
selecionados são meninas.

Mas na fase final, a paridade é quebrada: as meninas são uma minoria entre os medalhistas. Pior, o percentual cai com a idade.
Entre as medalhas de ouro de 2016, as meninas foram 30% no nível 1 (6º e 7º anos), 21% no nível 2 (8º e 9º anos) e apenas 14%
no nível 3 (ensino médio). Os resultados em anos anteriores foram semelhantes. Não sabemos porquê, mas as medalhistas
explicam que "os meninos são muito mais incentivados".

Está na hora de dizermos a nossas filhas que elas podem ser o que quiserem, inclusive matemáticas. A matemática precisa delas.

Voltei a Princeton anos depois para dar uma palestra sobre meu trabalho. No jantar que se seguiu, ao ouvir que vários de nós eram
casados com matemáticas, o anfitrião interveio, categórico: "Eu nunca casaria com uma matemática!" Ficamos mastigando em
silêncio constrangido, por longos minutos. Até que ele se explicou. "Afinal, supõe-se que esposas sejam pessoas agradáveis!"

Descobertas matemáticas nas praias do Rio


Marcelo Viana – 17/03/2017

Quando o matemático americano Steve Smale comprou um iate, nos anos 1980, seu primeiro passeio não foi uma volta perto de
casa, em Los Angeles, para ganhar traquejo. Saiu em um cruzeiro de milhares de milhas até o Pacífico Sul, na companhia de dois
amigos, um deles o saudoso Welington de Melo. De volta à Califórnia, vendeu o iate e nunca mais velejou: o que mais se pode
fazer depois de cruzar o maior oceano do planeta?

Esse é também o jeito como Smale faz matemática: visa o grande objetivo, prova o teorema (quase sempre) e passa para outro
tema, bem diferente. Desta forma, já deu contribuições importantíssimas em topologia, sistemas dinâmicos, economia matemática,
análise global, mecânica, teoria dos circuitos elétricos, programação matemática e teoria da computação.

Em sua tese, em 1956 na Universidade de Michigan, Smale provou o fato surpreendente de que é possível virar uma esfera do
avesso sem rasgá-la nem furá-la. Em seguida, começou a trabalhar em um dos problemas mais famosos de toda a matemática, a
Conjectura de Poincaré, que define o que é uma esfera. Muitos haviam atacado o problema sem sucesso desde sua formulação
pelo grande matemático francês Henri Poincaré, na virada do século 1920.

Por essa altura, Smale se tornou amigo do então jovem pesquisador brasileiro Elon Lages Lima, que fazia o doutorado na
Universidade de Chicago. Elon apresentou-o ao compatriota Maurício Peixoto, um dos fundadores do Impa (Instituto de
Matemática Pura e Aplicada), e convidou Smale a visitar o Brasil.

Em 1960, Smale e família chegaram ao Rio de Janeiro, onde ficaram hospedados em Copacabana. Em seu "escritório na praia",
entre mergulhos e muitos "jacarés" (body surfing), Smale encontrou a solução da Conjectura de Poincaré para as dimensões
maiores que 4. Embora Poincaré tivesse em mente esferas de dimensão 3, a originalidade da abordagem de Smale foi considerar a
questão em dimensões maiores (onde deveria ser mais difícil!) e resolvê-la. A pergunta original de Poincaré só foi resolvida em
2003, pelo russo Grigory Perelman.

Ainda em Copacabana, Smale descobriu um objeto matemático que chamou de "ferradura" e que está na base da teoria moderna
dos sistemas dinâmicos, ou teoria do caos. Duas descobertas matemáticas espetaculares, ambas feitas nas praias do Rio!

Por seu trabalho na Conjectura de Poincaré, Smale ganharia a Medalha Fields –maior distinção da matemática– em 1966. Nesse
ano, o Congresso Internacional de Matemáticos –onde a medalha é entregue– seria em Moscou. Nos Estados Unidos, a
controvérsia sobre a Guerra do Vietnam pegava fogo e Smale, muito ativo em política, tinha posição destacada nos protestos, o
que o fez ser intimado a depor perante o Committee for Un-american Activities do Congresso.

O tema da guerra agitou o Congresso de Matemáticos. Smale convocou uma entrevista com jornalistas vietnamitas, americanos e
soviéticos, na escadaria principal da Universidade de Moscou. Criticou tanto o envolvimento americano na guerra do Vietnam
como a invasão soviética da Hungria em 1956. Logo depois, foi conduzido por funcionários soviéticos para um passeio com
destino incerto em carro preto. Smale conta que foi tratado com o maior respeito e, finalmente, devolvido, sem entender o objetivo
do passeio forçado. O susto não foi pequeno, mas o pior estava por vir.

Os comentários sobre a guerra do Vietnam repercutiram muito mal nos Estados Unidos: como ousava criticar o governo em plena
União Soviética, ainda mais em viagem financiada com recursos públicos?! Em represália, a universidade suspendeu sua bolsa-
salário de pesquisa, alegando desvio de função. Na carta em que pede o restabelecimento do pagamento, Smale argumenta que
matemáticos trabalham o tempo todo, em quaisquer circunstâncias, e dá o exemplo que ficou célebre: "Meu trabalho mais famoso
foi feito nas praias do Rio de Janeiro!"

O pagamento foi retomado, mas até próprio conselheiro científico do presidente Nixon o atacou: "Esse espírito jovial faz os
matemáticos acharem seriamente que o contribuinte deveria aceitar que a criação matemática nas praias do Rio de Janeiro seja
financiada com recursos públicos!" O apoio inequívoco de diversas organizações à independência dos cientistas para
desenvolverem pesquisa como lhes parece melhor trouxe bom senso a tais reações.

Aos 86 anos e pesquisador honorário do Impa, continua ativo e já orientou muitos brasileiros, incluindo meus colegas Jacob Palis,
César Camacho e Aloísio Araújo. Smale voltou inúmeras vezes ao Brasil, a mais recente em novembro de 2016, para a
conferência em comemoração aos 70 anos de Welington de Melo. Foi uma imprevista despedida do velejador companheiro de
empreitada no iate, que morreria um mês depois.

Quando um planeta foi descoberto na ponta de uma caneta


Marcelo Viana – 24/03/2017

O movimento dos astros nos céus é um dos enigmas mais antigos e intrigantes na história da humanidade. Mesopotâmicos,
egípcios, chineses, persas, gregos, maias, todas as grandes civilizações do passado buscaram dar um sentido a esse movimento,
entender e prever a evolução do firmamento. Quase sempre apelando para a religião e o misticismo, na falta de outros
instrumentos.

Na Idade Média europeia, as esporádicas visitas de cometas eram vistas como prenúncio de desgraças. Com o Renascimento, vem
um passo fundamental: o abandono da hipótese geocêntrica –a ideia de que os corpos celestes giram em torno da Terra– em
proveito da heliocêntrica, que afirma que os planetas, incluindo a Terra, giram em torno do Sol. Não que a segunda fosse mais
correta que a primeira (não é!): mas torna as equações dos movimentos celestes mais simples e, por isso, mais transparentes para
serem entendidas. Assim, a contribuição de Nicolau Copérnico, Giordano Bruno e Galileo Galilei não é tanto a de descobrir "a
verdade" e sim a de facilitar o caminho para uma melhor compreensão do universo.

Com base na enorme quantidade de observações realizadas por Tycho Brahe, seu discípulo Johannes Kepler formula no início do
século 17 três leis matemáticas, que descrevem o movimento dos planetas em torno do Sol. As trajetórias são elipses, parábolas ou
hipérboles, e não círculos como preconizara o grego Ptolomeu no século 2.

Em seguida, vêm duas descobertas extraordinárias, ambas ligadas ao grande Isaac Newton: a lei da gravitação universal
("Philosophiae naturalis principia mathematica", publicado em 1687) e o cálculo matemático ("Methodus fluxionum et serierum
infinitarum", redigido em 1671 mas só publicado em 1736). A partir daí, uma única equação, amparada pelas poderosas
ferramentas do cálculo, permite descrever e prever de modo preciso o movimento dos diferentes corpos celestes. O céu funciona
como um relógio matemático!

É verdade que a equação da gravitação é difícil, muito mesmo. Mas os matemáticos dos séculos 18 e 19 –especialmente Joseph-
Louis Lagrange, Pierre-Simon Laplace e Urbain Le Verrier– desenvolveram métodos para resolvê-la com grande precisão.
Atualmente, com os refinamentos introduzidos pela gravitação relativística de Albert Einstein e a potência dos computadores
modernos, podemos simular a evolução do nosso sistema solar ao longo de períodos de bilhões de anos.

Mas o triunfo mais espetacular da matemática no domínio da astronomia continua sendo a descoberta do planeta Netuno. Os
astrônomos (e os astrólogos) antigos só conheciam seis planetas, de Mercúrio a Saturno. Urano foi descoberto em 1781 pelo
astrônomo britânico William Herschel, observando diretamente o céu. Algumas décadas depois, os dados acumulados já
mostravam que Urano não se movimentava como previsto pela lei da gravitação. Foi sugerido que isso seria devido à presença de
outro planeta, até então desconhecido.

Por dois anos, Le Verrier fez os cálculos (complicadíssimos!) para determinar a localização desse misterioso planeta a partir do
efeito que causava em Urano. Enviou as coordenadas ao astrônomo alemão Johann Galle, que, na noite de 23 de setembro de
1846, observou o planeta no exato lugar apontado pelo matemático francês! François Arago, diretor do Observatório de Paris,
escreveu orgulhoso: "Le Verrier descobriu um novo astro sem precisar olhar uma única vez para o céu; ele o viu na ponta de sua
caneta".

Lamentavelmente, a descoberta causou mal-estar do outro lado do Canal da Mancha. O britânico John Adams também vinha
fazendo esses cálculos. Muitos acusaram (injustamente, ao que tudo indica) o astrônomo real Sir George Airy de não ter reagido
com a devida prontidão ao trabalho de Adams, dando à França a chance de derrotar a Inglaterra numa questão tão importante. Um
lado bom da história é que a disputa nacionalista não contaminou as relações pessoais: Le Verrier e Adams se encontraram
pessoalmente no ano seguinte e se tornaram bons amigos.

Um efeito colateral destes avanços é que os astrólogos acrescentaram Urano, Netuno e, depois, Plutão à lista de planetas em seus
mapas astrais (suponho que Plutão esteja sendo retirado, face ao desprestígio que constituiu a sua reclassificação como planeta
anão). Não tenho ideia se esses ajustes tornaram a indústria dos horóscopos mais precisa. Afinal, atribuem ao sarcástico filósofo
francês Voltaire a afirmação de que "é muito difícil fazer previsões, ainda mais sobre o futuro".

A não ser que você saiba matemática, évidemment!, poderia dizer Le Verrier.

Pai de armas infernais e gênio matemático: redescubra Arquimedes


Marcelo Viana – 31/03/2017

Faz quase 200 anos que a pequena cidade de Roma iniciou a caminhada histórica que vai transformá-la em senhora do mundo.
Conquistando gradualmente os vizinhos, por meio de diplomacia, força, astúcia e, mais ainda, sua inquebrável tenacidade, a
jovem república já anexou praticamente toda a península itálica. Os romanos vencem, quase sempre. Eles também perdem, por
vezes. E até levam desaforo para casa.

Mas os romanos sempre voltam para dar o troco, com juros.

A marcha já os levou ao encontro de seu maior inimigo, a poderosa cidade africana de Cartago, fundada por colonos fenícios.
Roma venceu a primeira rodada, com dificuldade, mas o conflito não está resolvido. E agora, neste ano de 212 a.C. trava-se mais
uma batalha crucial nesta guerra que vai mudar a face da História. A pólis grega independente de Siracusa, na Sicília, havia sido
importante aliada de Cartago, depois de Roma. Quando os siracusanos ameaçam voltar ao partido de Cartago, Roma não hesita:
um poderoso exército é enviado, sob o comando do cônsul Marcus Claudius Marcellus, para atacar por terra e por mar. Siracusa é
poderosa, com fortes muralhas e um exército experiente. A conquista nunca seria fácil, nem mesmo para a implacável legião
romana.

Além disso, o rei de Siracusa conta com uma arma secreta: um velho matemático e cientista. Seu nome é Arquimedes.

Arquimedes teria nascido na Siracusa por volta de 287 a.C. e estudado em Alexandria, no Egito. O pouco que sabemos sobre ele
não deixa dúvida de que se trata de um dos maiores matemáticos de todos os tempos. Entre muitos feitos, foi o precursor do
cálculo matemático, que seria redescoberto quase 2 mil anos depois por Newton e Leibniz e está na base de todo o
desenvolvimento científico e tecnológico da era moderna. Galileu se referiu a ele como "sobre-humano" e Leibniz escreveu que
quem conhece os trabalhos de Arquimedes dá menos valor àqueles que o seguiram. Não é à toa que é dele a efígie que adorna a
Medalha Fields, o mais cobiçado prêmio da matemática.

Foi também um extraordinário cientista e engenheiro. Seu episódio mais famoso, embora talvez fictício, entrou no folclore
universal. O rei encomendou uma coroa de ouro e queria saber, sem estragá-la, se o metal havia sido adulterado. Arquimedes
descobre a solução do problema durante o banho e sai gritando "Eureka!" ("Descobri!", em grego). O chamado parafuso de
Arquimedes, que pode ser usado para elevar água e objetos para níveis superiores, também viria a ser redescoberto, quase dois
milênios depois, por ninguém menos que Leonardo da Vinci.

Mas os legionários romanos provavelmente estavam muito mais impressionados mesmo com as armas infernais desenvolvidas por
Arquimedes para a defesa de Siracusa. A famosa "garra de Arquimedes", uma espécie de guindaste de madeira, arrastava e
empurrava os navios romanos para baixo d'água ou os erguia e lançava de volta no mar, destruindo-os. Arquimedes também teria
usado seus conhecimentos de ótica para construir um sistema de espelhos capaz de focar os raios de sol sobre os navios romanos:
construídos em madeira com revestimento de alcatrão, rapidamente eram consumidos em chamas.

Os romanos conheciam perfeitamente o valor da matemática, ciência e tecnologia para o desenvolvimento da nação (ainda que
nesse caso significasse, sobretudo, para a guerra). Na tomada de Siracusa, Marcellus deu ordens explícitas para que a vida de
Arquimedes fosse poupada a todo o custo. Infelizmente, o legionário que encontrou o matemático meditando no jardim de casa
não reconheceu o velho, ou preferiu vingar os companheiros mortos no cerco, e o executou.
Um projeto para fazer alunos campeões
Marcelo Viana – 07/04/2017

Branquinha fica na região da mata alagoana, a 60 km de Maceió. Tem 13 mil habitantes e muitos problemas. No IDH do Censo
2010, ficou em 5.490º entre os 5.570 municípios brasileiros (96º entre 102 de Alagoas). Nesse mesmo ano, a enchente do rio
Mundaú varreu a cidade do mapa: 90% dos prédios destruídos.

Ouvi falar do local por causa do Profmat (Mestrado Profissional em Matemática). É o maior mestrado do Brasil, formado por uma
rede de mais de 70 universidades e institutos que atua em todos os Estados e é coordenada pela Sociedade Brasileira de
Matemática. Seus alunos são majoritariamente professores de matemática na rede pública. Classificado com a nota máxima da
Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), já formou mais de 3.000 mestres desde 2011.

O Profmat também é um instrumento para conhecermos melhor a nossa educação, permitindo contato com realidades de todo o
país. Aceitei com prazer o convite do professor Amauri Barros, da Universidade Federal de Alagoas, para participar da banca de
mestrado do seu orientando, Cícero Rufino de Goes, da rede municipal de Branquinha.

Cícero é um desses professores que fazem a diferença: vêm à mente Antonio Amaral (Cocal dos Alves - PI), Claudiene dos Santos
(Coité do Nóia - AL), Geraldo Amintas (Dores do Turvo - MG), Luiz Felipe Lins (Rio de Janeiro - RJ) e muitos outros. Frente a
tantos teóricos da educação, que nem sequer entram em sala de aula, na sua dissertação ele nos brinda com um diagnóstico lúcido,
em linguagem simples, com a legitimidade de quem sabe (e faz) o que diz.

O professor Cícero é um fã da Obmep (Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas). Afirma que "as olimpíadas de
matemática vêm, ao longo dos anos, transformando a maneira de ensinar e aprender os conteúdos da referida área nas escolas
públicas e particulares". Entre os benefícios da Obmep, destaca "melhorar a qualidade do ensino e aprendizagem de matemática,
resgatar o interesse pelos estudos e a autoestima dos alunos e professores".

Os alunos de Branquinha participam na Obmep desde que ela foi criada pelo Impa em 2005. Até 2014 não haviam ganhado nem
uma menção honrosa. Desinteresse de alunos, famílias, professores e escolas: "a simples pronúncia da sigla Obmep provocava de
imediato um semblante de desmotivação e incredibilidade, fazer a competição havia se tornado um fardo", conta. "Existe um
consenso comum entre a maioria deles de que a matemática, além de ruim, é chata".

Em 2015 tomou uma atitude: lançou "Desenvolvendo e aplicando a matemática: um projeto voltado para produzir vencedores na
Obmep e elevar os indicadores sociais do município de Branquinha". Com o apoio da prefeitura, mobilizou as 14 escolas e todos
os professores de matemática do município para oferecer capacitação aos professores e aos 1.800 alunos da rede. "Tinha-se que
mudar essa triste realidade e a Obmep com sua dinâmica de envolvimento, suas belas histórias de sucesso, seus desafios e seus
benefícios foi a ferramenta necessária e suficiente para tal feito", escreveu na dissertação.

Também criou a OBM (Olimpíada Branquinhense de Matemática), para alunos do 1º ao 9º ano. Segundo conta, "a realização da
OBM provocou uma verdadeira revolução no ensino de matemática do município, as escolas queriam ser campeãs e começaram a
preparar seus alunos". Acrescenta que "vários foram os relatos de pais e professores surpresos com a mudança de postura dos seus
filhos e alunos frente a buscar por novos conhecimentos e um aprendizado significativo". Quando comentei que o Impa planeja
estender a Obmep para os anos iniciais do ensino fundamental, respondeu com entusiasmo: "crianças dessas idades adoram
estudar matemática"!

Os resultados estão aparecendo. Em 2015, os alunos de Branquinha ganharam suas duas primeiras menções honrosas na Obmep.
Nesse ano o Ideb da cidade alcançou 4,8 nos anos iniciais (era 2,2 em 2005) e 3,6 nos anos finais (era 2,1 em 2005) do ensino
fundamental, acima da maioria dos municípios alagoanos. E em 2016 foram duas medalhas de bronze e seis menções honrosas.

Mas o mestre Cícero sabe que as conquistas vão muito além das condecorações: "Atingiram o ego de toda a comunidade escolar,
fizeram os pais acreditarem ainda mais nos seus filhos, os alunos terem mais estímulos para aprender e acreditarem ainda mais no
seu potencial enquanto estudantes e acima de tudo levaram os professores a acreditar no seu potencial enquanto profissionais". E
filosofa: "Independente das dificuldades sempre é possível se obter bons resultados quando se trabalha com foco e determinação".

Já pensou se essa moda pega?!

Número pi parece esquisitão, mas é fonte inesgotável de maravilhas


Marcelo Viana – 14/04/2017

O famoso físico Stephen Hawking conta em um dos seus livros um conselho que recebeu do editor: "Nunca use fórmulas
matemáticas! A cada fórmula, o número de leitores (e de compradores) do livro cai pela metade!"

Fosse porque desejava se comunicar com muitos leitores ou porque não queria arriscar sua renda, Hawking seguiu à risca a dica
recebida. Mas hoje acordei com vontade de falar sobre o misterioso número π. Espero que os leitores pouco familiarizados com o
tema se sintam intrigados e não intimidados.
Todos nós fomos apresentados ao π na escola, mas acredito que para muitos isso tenha sido mais motivo de desconforto que de
encantamento. Para a maioria, fica apenas a impressão de que se trata de um esquisitão, "um número que não acaba nunca". É
pena, porque o π é realmente uma fonte inesgotável de maravilhas.

Os gregos da antiguidade já sabiam que, quando desenhamos um círculo, o seu comprimento (que eles chamaram de perímetro, ou
circunferência) é proporcional à largura (melhor, ao diâmetro). Ou seja:

perímetro = constante vezes diâmetro

em que a constante é sempre a mesma, qualquer que seja o círculo. Uma constante assim merece ter nome: os gregos a chamaram
de π, que é a inicial da palavra "perímetro" em grego. Na verdade, tudo isto já era conhecido antes –os gregos aprenderam muitas
destas coisas com os egípcios e os babilônios, como por exemplo que π é um pouco maior do que 3.

Mas saber exatamente quanto ele vale é outra história. Manuscritos egípcios antigos contêm diferentes valores aproximados de π.
Para coisas práticas, os babilônios faziam como se π fosse igual 3, embora soubessem que 3,125 seria mais correto. Eles
influenciaram os hebreus: na Bíblia (Livro dos Reis) está escrito: "Fez o tanque de metal fundido, redondo, medindo quatro
metros e meio de diâmetro [...]. Era preciso um fio de treze metros e meio para medir a sua circunferência". Isto significa que eles
usaram π = 3, já que 13,5 é o triplo de 4,5.

Mas os gregos foram além dos antecessores, encontrando meios engenhosos para calcular o valor de π. O grande Arquimedes
(século 2 a.C.) desenvolveu um método que ainda é relevante hoje e usou-o para concluir que π está entre 3,1408 e 3,1429.
Ptolomeu (século 3 d.C.), o maior astrônomo da antiguidade, usou o método de Arquimedes para chegar a 3,1416. O indiano
Aryabhata (século 5 d. C.) chegou ao mesmo valor e, mais ou menos ao mesmo tempo, o chinês TsuCh'ungChih obteve o valor
ainda mais preciso 3,1415926. Hoje conhecemos mais de 22 trilhões de dígitos de π.

Um episódio extraordinário ocorreu nos Estados Unidos em 1894, quando um amador apresentou à Assembleia Legislativa do
estado de Indiana uma proposta de lei definindo o valor legal de π. Entre outras barbaridades, ficava determinado que π seria igual
a 3,2! Incrivelmente, a proposta foi aprovada por unanimidade na Câmara estadual dos deputados! Só não chegou a ser lei
estadual porque o professor C. A. Waldo, da Universidade de Purdue, atuou junto ao Senado estadual para impedir o vexame.
Ainda incertos sobre o mérito da questão, os senadores concluíram que o Legislativo não tem poderes para mudar constantes
matemáticas, e adiaram a votação por tempo indeterminado...

Por volta de 2010, porém, circulou na internet a notícia de que o partido Republicano do estado do Alabama tinha apresentado um
projeto de lei estabelecendo que π=3, "para simplificar a matemática e melhorar o desempenho das crianças americanas". Mas
essa era trote, ninguém seria tão bobo. Certo?

Festival mostra como matemática transforma vidas e é divertida


Marcelo Viana – 21/04/2017

De família humilde, a carioca Alessandra Yoko Portella sempre foi cobrada para ter nota alta em todas as matérias –matemática
não era destaque no seu boletim. Na 8ª série, ganhou medalha de ouro na Obmep (Olimpíada de Brasileira de Matemática das
Escolas Públicas), participou de programas da Olimpíada e tomou uma decisão: seria engenheira. Estudou muito. Hoje é
engenheira de controle e automação numa empresa tecnológica. "Tenho o melhor trabalho do mundo. Eu me pego pensando o
quanto eu teria tomado a decisão errada se não tivesse tido essas oportunidades."

César Ilharco é brasiliense e foi duas vezes medalhista de ouro da Obmep. As portas do mundo se abriram para ele: concluiu a
graduação e o mestrado na famosa École Polytéchnique de Paris. Em seguida, uma carreira fulgurante: estagiou na Google da
Suécia, na Amazon da África do Sul e no Facebook, na Califórnia. Atualmente, trabalha na Google Research, na Suíça, focando
na compreensão e síntese de linguagem natural. "Um trabalho misto de pesquisa e engenharia", explica.

Tábata Amaral Pontes também ganhou duas medalhas na Obmep. O sucesso a levou da periferia de São Paulo à Universidade
Harvard, onde se graduou em 2016 com uma tese premiadíssima. De volta ao Brasil, é co-fundadora de ações que preparam
alunos de escolas públicas para as olimpíadas científicas, e defende que a educação seja prioridade na agenda política nacional.
"Meu sonho é ser uma gestora pública e contribuir para que o Brasil tenha uma educação pública de excelência."

Como todos os medalhistas da Obmep até 2016 –neste ano, mais de 4 mil escolas particulares também participarão–, Pietro Pepe
estudou em escola pública. Hoje faz graduação em engenharia da computação na PUC-Rio, com bolsa da Obmep para estudar
matérias do curso de matemática, e atua em laboratórios da universidade voltados para a pesquisa e desenvolvimento de jogos
digitais. Também dá aulas de matemática e física em pré-vestibulares comunitários. "O conhecimento matemático é um grande
diferencial em tudo que faço", afirma o jovem carioca.

Os quatro são testemunhos de como a matemática pode transformar trajetórias de vida. Têm outra coisa em comum: todos serão
protagonistas do Festival da Matemática, o primeiro no Brasil, no Rio de Janeiro, de 27 a 30 de abril, compartilhando suas
experiências de vida com o público. Parte importante das atividades do Biênio da Matemática 2017-2018, o Festival é uma ideia
ousada: um evento público e gratuito em que a disciplina estará no centro de diversão e entretenimento para todos. Crianças, pais,
alunos e professores serão recebidos pela mascote Aramat (uma arara matemática concebida por alunos de uma escola pública de
Uberaba) e convidados a conhecer a matemática como ela é: instigante, interessante, desafiadora e, sim, muito divertida.

A programação é rica: oficinas de arte e matemática, música, brincadeiras com números, jogos, capturas de Pokémon, charadas,
palestras, exposições, filmes, protótipos 3D, jogos eletrônicos e muitas outras atividades (veja a programação ). Tudo para
encantar os visitantes com o interesse, a importância e a diversão da matemática. Três dos nossos melhores matemáticos e
comunicadores científicos também estarão lá: Carolina Araújo, do Impa; Pedro Malagutti, da Ufscar (Universidade Federal de São
Carlos), e Ralph Teixeira, da UFF (Universidade Federal Fluminense).

Do exterior, outro time fora de série. Rogério Martins, celebridade em Portugal por apresentar em horário nobre de televisão o
programa de sucesso "Isto é matemática!"; o americano John Bush, pesquisador do MIT (Massachussets Institute of Technology),
que encontrou no futebol brasileiro a inspiração para aplicar seus conhecimentos matemáticos ao estudo do movimento da bola; o
brilhante jovem matemático senegalês Khadim War, especialista da teoria do caos, é prova de que talento não escolhe lugar; o
famoso comentarista de futebol na Argentina, Adrián Paenza também revolucionou, com seus programas de TV, livros e palestras,
o modo como os compatriotas veem a matemática; e o francês Etienne Ghys, brasileiro de coração e, simplesmente, o maior
comunicador científico do mundo na área, vencedor do Prêmio Clay, o principal no mundo para disseminação da disciplina.

O dia em que o Ceará comprovou a teoria da relatividade


Marcelo Viana – 28/04/2017

Naquele dia 29 de maio de 1919, a cidade de Sobral (CE) não apresentava a sua tranquilidade habitual. Rumores insistiam que o
eclipse solar anunciado para esse dia era prenúncio de desgraças. Para piorar o nervosismo, tinha chegado à pacata cidade de
2.000 habitantes uma comitiva com homens do longínquo Rio de Janeiro e até estrangeiros! Entre eles um matemático de 27 anos
chamado Lélio Gama que, muitos anos depois, seria o primeiro diretor do Instituto de Matemática Pura e Aplicada. O que fazia
essa gente estranha na pequena Sobral?

Em 1905, Albert Einstein havia publicado a teoria da relatividade. Partindo do princípio (formulado pelo matemático francês
Henri Poincaré) de que as leis da física devem ser as mesmas para todos os observadores em movimento uniforme, o quase
desconhecido físico alemão havia revolucionado as noções de tempo e espaço.

Era um defeito sério, porém, a teoria só valer para movimento uniforme. As leis da física devem ser as mesmas para todos os
observadores, sem exceção. Mas como contornar o fato evidente de que estar num carro sendo acelerado, ou freado, não era o
mesmo que rodar com velocidade constante? A resposta custou a Einstein dez anos de trabalho, embora fosse claro desde cedo
que o segredo residia no fenômeno da gravitação. Em 1915, ele publicou, enfim, a teoria da relatividade geral.

A essa altura, Einstein era um cientista consagrado, com inúmeras contribuições. Havia desvendado o efeito fotoelétrico (o
fenômeno por trás da tecnologia que abre portas e acende luzes quando eu passo), o que lhe daria o prêmio Nobel da física em
1921. Mas reputação não é argumento –não em ciência. As previsões da nova teoria precisavam ser testadas por meio de
experimentos.

Todos já vimos água saindo de uma mangueira: no lugar de seguir em linha reta, o jato curva-se na direção do chão, devido à
gravidade da Terra. A teoria da relatividade geral afirma que isso também acontece com a luz ao passar perto de um corpo
maciço: ela faz uma curva. Então bastaria observar estrelas ao redor do Sol: devido ao fato da sua luz ter percorrido uma trajetória
curva ao passar perto do Sol, essas estrelas teriam que aparecer em posições um pouco diferentes das verdadeiras.

Bom, não é tão simples assim. Para começar, o desvio é muito pequeno: apenas 1,75 segundos de grau, ou seja, 185 mil vezes
menos que a abertura de um ângulo reto! Pior: como podemos observar estrelas em volta do Sol, já que a luz intensa deste último
ofusca tudo ao seu redor? Precisaríamos de um anteparo capaz de tapar o Sol, mas não o que está em volta.

Tal anteparo existe: é a Lua! Por uma coincidência notável, o nosso satélite é 400 vezes menor que o Sol, mas também está cerca
de 400 vezes mais perto da Terra. Então, quando os três astros estão bem alinhados, o disco negro da Lua é um anteparo perfeito
para o disco solar. Infelizmente, esses eclipses totais do Sol são raros e só podem ser observados em certas regiões. Além disso,
em plena guerra mundial não havia espaço para a ciência da paz.

Tão logo terminou o conflito, em 1918, a Royal Astronomical Society da Inglaterra pôs mãos à obra. O primeiro eclipse total seria
em 29 de maio de 1919 e seria visível nas regiões equatoriais do Brasil e da África Ocidental. Duas expedições foram enviadas,
para Sobral e para a minúscula ilha do Príncipe, no golfo da Guiné.

A expedição no Brasil foi chefiada pelo diretor do Observatório Nacional (ON), Henrique Morize, e integrava pesquisadores do
ON, entre os quais o jovem Lélio Gama, na qualidade de "calculador". Na ilha do Príncipe, o mau tempo prejudicou o trabalho.
Em Sobral, o dia amanheceu nublado, mas logo abriu-se um clarão que proporcionou excelentes condições para observação. Ao
final não houve fogos de artifício: Morize pedira à população que evitasse tudo que pudesse atrapalhar as observações.

Com base nas fotos tiradas em 6 de novembro de 1919, a Royal Astronomical Society declarou que a experiência havia provado
que a teoria da relatividade geral estava correta. Em 1925, Einstein veio ao Brasil para visitar o Observatório Nacional e agradecer
a Sobral por sua contribuição à comprovação de seus estudos.

O famoso historiador britânico Paul Johnson escreveu em 1983: "O mundo moderno começou em 29 de maio de 1919, quando
fotografias de um eclipse solar, tiradas na Ilha do Príncipe, na África Ocidental, e em Sobral, no Brasil, confirmaram a verdade da
nova teoria do universo".

Desde 1999, o Museu do Eclipse assinala, no próprio local das observações, o dia em que uma pequena cidade entrou para a
história.

Festival prova o teorema: matemática é um barato!


Marcelo Viana – 05/05/2017

"Acorda, hoje tem mais matemática!" Foi assim que Bianca e Betina despertaram a mãe no domingo. Depois de passarem o
sábado no Festival da Matemática, as gêmeas de 8 anos queriam mais. "Estavam muito ansiosas para voltar. É realmente
maravilhoso isso aqui. Até quem não gosta [de matemática] acaba tomando gosto" explica a mãe, Rosângela do Carmo, auxiliar
de serviços gerais.

Em 2015, o National Math Festival, em Washington, nos EUA, com apoio da Google e da Amazon, recebeu 20 mil visitantes.
Dada a grande diferença de realidades, sonhávamos que o nosso Festival alcançasse 10 mil pessoas. Mas nem o dia de paralisação
nacional atrapalhou: quase 18 mil pessoas de todo o país visitaram a Nave do Conhecimento Cidade Olímpica e as escolas Eleva e
SESC, no Rio de Janeiro, e conferiram a prova do nosso teorema: a matemática é um barato!

Na abertura, o japonês Shigefumi Mori, presidente da União Matemática Internacional (IMU) contou que era mau aluno no
Ensino Fundamental e como o estímulo de professores o levou a se tornar matemático. Em 1990, ganhou a Medalha Fields, o
Nobel da matemática. "Incentivem seus alunos, sempre!" O secretário-geral da IMU, o norueguês Helge Holden, enfatizou a
perenidade da matemática. "A moda muda, a sociedade muda, mas o que os matemáticos gregos provaram 2.000 anos atrás
continua verdadeiro." Os dois gringos viraram celebridades e distribuíram autógrafos para meninos e meninas entusiasmados. A
mascote Aramat, a simpática arara azul que adora matemática, não deu autógrafos, mas roubou a cena, dançando, brincando e
tirando fotos com incontáveis baixinhos e grandinhos.

O sucesso começou antes, com a resposta da comunidade à nossa chamada a projetos de atividades: foram mais de 270 propostas,
das quais foram selecionadas 40. Contribuições de Animamundi, museu itinerante da UFMG, Museu da Vida e planetário
itinerante da Fiocruz, Projeto Fundão da UFRJ, Museu da Imagem e do Som, Cineclube de Matemática da UFF, SESI
Matemática, laboratório VISGRAF do IMPA e muitos outros enriqueceram a programação, tornando-a eclética.

O Festival proporcionou oficinas de origami, pipas tetraédricas, labirintos, música e matemática, robótica, lego, jogos, matemática
e magia, antigas máquinas de calcular, brincadeiras com a faixa de Möbius, atividades para cegos e surdos. Quem não se divertiu
com os malabarismos de famílias atadas por um cordão no desafio do barbante? Todo mundo com um sorriso no rosto,
descobrindo a matemática onde não imaginava. Meus próprios filhos voltaram para casa carregados de sólidos de Platão feitos
com canudinhos de refrigerante. E ainda tive que comprar mais canudos!

A bicicleta de rodas quadradas foi um êxito instantâneo. A orquestra de computadores do meu colega no IMPA Luiz Velho teve
de criar horários extras para atender à demanda. A exposição +Copacabana revelou a matemática escondida em imagens
nostálgicas do Rio. Curador do Cineclube, o professor Humberto Bortolossi da UFF discutiu o conteúdo dos filmes com as
crianças no palco.

Na exposição internacional Imaginary, crianças e adultos se maravilharam com protótipos 3D, jogos e vídeos interativos, belas
imagens e o espelho que muda a forma dos objetos, ao alcance da mão. As mães entravam avisando: "Não pode tocar!" Os
voluntários precisavam corrigir: "Pode sim, aqui é tudo para mexer com as próprias mãos!" Uma mulher de 40 anos espantada:
"Será que a matemática mudou tanto assim desde os meus tempos de escola?!"

Tivemos palestras memoráveis. Tábata Pontes emocionou o público ao contar como a matemática a levou da Vila Missionária, na
periferia de São Paulo, à Universidade Harvard, e de volta ao Brasil com projetos e ação para fazer a diferença. John Bush, do
MIT, explicou por que é mais difícil fazer gol no Maracanã do que na cidade do México. Carolina Araújo, do Impa, revelou as
impressões digitais da matemática na natureza: flocos de neve, flores, colmeias e muito mais. Pietro Pepe, Alessandra Yoko e
César Ilharco deram outros belos exemplos de como a matemática molda trajetórias de vida e está presente nas profissões que
conquistaram.
Ralph Teixeira, da UFF –primeiro brasileiro a ganhar medalha de ouro da Olimpíada Internacional de Matemática–, arrancou
gritos de susto quando "explodiu" a própria cabeça. Pedro Malagutti nos fez acreditar em magia e na matemática por trás dela. O
francês Étienne Ghys provou que a bola da Copa de 2014 na verdade é um cubo. E deu outro show explicando por que
matemáticos famosos se interessam pela alta costura. O argentino Adrián Paenza encantou com seu talento de showman, e alertou
contra o erro de ensinar a resolver problemas que o aluno não tem. Descolado, o senegalês Khadim War pulverizou o estereótipo
do matemático nerd, enquanto falava de sistemas caóticos. O simpático português Rogério Martins ensinou como calcular áreas
com uma bicicleta –com rodas redondas!

Ninguém ficou imune. Intrigados, funcionários da produção, segurança e alimentação fugiam para conferir os "Detetives dos
números" ou o "Circo da Matemágica". Crianças que visitaram com a escola regressaram depois com a família, fazendo questão
de explicar tudo aos pais com suas próprias palavras. Dois meninos que tinham perdido a última sessão do Cineclube perguntaram
se ano que vem vai ter Festival da Matemática de novo. O que você acha?

Elon Lages Lima foi o matemático que amava os livros


Marcelo Viana – 12/05/2017

Conheci Elon Lages Lima primeiro por seus livros, nos meus tempos de aluno de graduação na Universidade do Porto. Um dos
meus favoritos era "Espaços Métricos": difícil para um aluno do segundo ano do bacharelado, mas cheio de maravilhas
matemáticas. Um par de anos depois conheci "Grupo Fundamental e Espaços de Recobrimento", e o conjunto dos meus livros
favoritos aumentou. Elon escrevia com cuidado, aparente facilidade, sem fugir das dificuldades e, ao mesmo tempo, sem perder a
elegância jamais.

Alguns anos mais e tive a oportunidade de conhecer pessoalmente o autor dos livros quando ingressei no doutorado do Impa
(Instituto de Matemática Pura e Aplicada). Aproximou-nos, além da matemática, o gosto comum pela língua portuguesa e o prazer
que Elon tinha em falar da "terrinha".

Lembro do orgulho divertido com que me mostrou uma foto sua ao lado de uma placa de trânsito com a indicação Lima (seu
sobrenome): o rio Lima, no norte de Portugal, de cujas margens emigraram para o Nordeste brasileiro alguns de seus ancestrais.

Foi um dos matemáticos mais influentes que o Brasil já produziu. Pesquisador, dirigente, professor, autor, didata e mentor de
jovens talentosos. Domingo passado, Elon Lages Lima morreu no Rio de Janeiro, aos 87 anos. Deixa uma marca importante na
história do Impa e de toda a matemática brasileira. Manifestações de pesar têm chegado até nós de todas as partes do país e do
exterior: Espanha, Portugal e muitos países da América Latina.

O presidente da Real Sociedad Matemática Española transmite suas "más sinceras condolencias por la pérdida de un insigne
docente, investigador y emprendedor que ha contribuido al fortalecimiento de la comunidad matemática de Brasil".

Nossos colegas da Sociedade Portuguesa de Matemática escrevem: "O trabalho e o exemplo do professor Elon Lages Lima
tiveram uma profunda repercussão no nosso país. As suas obras didáticas de matemática avançada permitiram, como poucos
matemáticos conseguiram, a criação de uma literatura matemática em português, com rigor tanto conceitual como no uso –e
mesmo na criação de novos termos– de nossa língua comum."

Muito haverá ainda de ser escrito sobre seu pioneirismo e suas contribuições, mas não é essa a minha ambição aqui: apenas
compartilho reminiscências e impressões pessoais.

O rigor, na matemática e no idioma, era realmente prioritário no modo como Elon escrevia e, embora pudesse ser um pouco
dogmático, estava quase sempre certo. Dessa forma, exerceu grande influência sobre outros autores brasileiros. Uma superfície de
mais que duas dimensões é chamada "hypersurface", em inglês. É usual traduzir para hipersuperfície, mas o exagero de escrever
"hiper-super" repugnava Elon: nos seus livros sempre optou pelo neologismo hiperfície, que ele mesmo criou. Nesse particular
não conseguiu convencer os colegas, mas nunca desistiu de tentar.

Em um de seus livros, Elon aborda dois conceitos matemáticos designados em inglês pelas palavras "immersion" e "embedding",
que nunca antes haviam sido tratados numa obra em português. A tradução da primeira palavra é clara (imersão), mas a segunda é
mais complicada. No lugar de fugir da questão, Elon buscou cuidadosamente na nossa língua uma palavra adequada, acabando por
optar por mergulho (sem dúvida, motivado pelo francês "plongement"). Na época, isso provocou comentários sarcásticos do tipo
"esses cariocas só pensam em praia mesmo". Mas, hoje em dia, matemáticos dos dois lados do Atlântico usam a palavra mergulho
com toda a naturalidade, sem terem consciência de que ela foi "inventada" por Elon.

Já contei aqui como, ao final dos anos 1950, na Universidade de Chicago, Elon conheceu e tornou-se amigo do matemático
americano Steve Smale. Elon apresentou Smale ao colega Maurício Peixoto e também o convidou a visitar o Brasil. Para Smale, a
visita rendeu trabalhos científicos pelos quais foi distinguido alguns anos depois com a medalha Fields –maior premiação da
matemática.
Também conheceu aqui aquele que seria seu primeiro estudante de doutorado: Jacob Palis. E nesse tecido de relações pessoais,
das quais Elon foi o catalizador, estava nascendo uma das páginas mais brilhantes e duradouras da ciência brasileira.

Encerro falando mais uma vez de livros. Por décadas, Elon cuidou com enlevo da biblioteca do Impa, ajudando a torná-la uma das
melhores do mundo em matemática.

Sabendo do seu amor pelos livros, um amigo comum, espanhol, deu a Elon muitos anos atrás um presente que ele prezava muito:
um fac-símile do ameaçador regulamento medieval da biblioteca da Universidade de Salamanca, a mais velha da Península
Ibérica. "Será excomungada toda pessoa que roubar ou danificar algum livro ou pergaminho desta biblioteca". Elon prendeu o
cartão na entrada da nossa biblioteca, e continua lá.

O aviso em espanhol –antigo hoje– mais parece um alerta bem-humorado aos visitantes. Como os livros de Elon, vai à essência da
questão, de forma direta, e todos entendem.

A escola e seus problemas começaram há milênios


Marcelo Viana – 19/05/2017

A civilização da Suméria prosperou no terceiro milênio a.C. na região da Mesopotâmia, onde agora é o sul do Iraque. Entre os
seus grandes centros estava, por exemplo, a cidade de Ur, de onde sairia muito mais tarde o patriarca bíblico Abraão para dar
início à saga dos hebreus. Há consenso de que os sumérios foram os primeiros inventores da escrita, cerca de 3.300 a.C.. Foi tal o
brilho da Suméria que, muitos séculos depois de sua língua ter deixado de ser falada, continuou sendo usada por acadianos,
assírios e babilônios como idioma de prestígio, da ciência, do direito e da diplomacia, um pouco como aconteceu com o latim na
Idade Média europeia.

Mas a poeira do tempo tudo cobriu, e os sumérios foram esquecidos. Sua existência foi redescoberta no século 19. Primeiro de
forma indireta, a partir do estudo das línguas dos sucessores mesopotâmicos –um pouco como o planeta Netuno foi encontrado a
partir do seu efeito no movimento de outros planetas. Depois, a partir de 1880, escavações arqueológicas trouxeram à luz dezenas
de milhares de documentos (tábuas de argila e inscrições em monumentos), que comprovaram não só a existência dos sumérios
como a antiguidade de sua escrita.

A escrita suméria é muito complicada, mas foi possível decifrá-la, na primeira metade do século 20. E então os documentos
escavados revelaram um tesouro de informações sobre este povo extraordinário que viveu há cinco milênios. Poemas escritos mil
anos antes da Bíblia e da Ilíada de Homero atestam que uma literatura rica e criativa surgiu na alvorada da História. Uma das
tábuas de argila mais famosas contém o primeiro relato escrito da arca de Noé, e há muitos outros paralelos com a Bíblia. Através
dos séculos, os textos escritos pelos sumérios nos falam do seu dia a dia, seus governantes, sua mentalidade, seus sentimentos, sua
visão do mundo e... seu sistema educacional.

As escolas sumérias nasceram da necessidade de ensinar a escrita aos jovens que trabalhariam na administração do palácio real e
do templo, as duas grandes fontes de poder. Mas muitas outras matérias foram ensinadas, como teologia, matemática, geografia,
zoologia, botânica, geologia, gramática e linguística. As escolas se converteram em algo parecido com centros de pesquisa e de
criação literária.

Ao que sabemos, o ensino era pago e, portanto, estava essencialmente restrito aos filhos dos mais poderosos. Homens apenas. À
frente da escola estava um professor, auxiliado por alguns assistentes: "encarregado do sumério", "encarregado do desenho", não
sabemos se havia um "encarregado da matemática". Mas diversos documentos permitem entender os conteúdos curriculares da
matemática e demais disciplinas. O horário era integral: o aluno entrava na escola ao amanhecer e saía ao pôr-do-sol. A
aprendizagem era baseada na repetição e memorização. Quanto ao método pedagógico, bastará dizer que um dos assistentes era o
"encarregado do chicote"...

Na verdade, professores e assistentes eram mal pagos e, naturalmente, viviam com fome e mal-humorados –o que os tornava ainda
mais propensos ao uso do chicote. Numa das tábuas de argila encontradas, um estudante, cansado de apanhar, suplica aos pais que
convidem o professor para jantar em casa, sirvam uma boa refeição e lhe deem de presente uma túnica nova, para que fique feliz
com o desempenho do infeliz aluno na escola. É provavelmente o primeiro caso (documentado) de tentativa de corrupção na
história.

Em comentário a esta coluna, uma professora afirmou que "É fácil falar como deve ser a educação, mas tem que ver como vivem
os professores. Além disso, hoje em dia os alunos não querem aprender". Talvez ela ficasse surpresa em saber que sua queixa é do
tempo dos sumérios.

Em outro documento escavado por lá, um pai se aflige com o filho que não se esforça para aprender, não vai à escola e pensa
apenas em se divertir, vagabundear pelas ruas em bando e destruir os jardins públicos. Com muito sacrifício, o pai paga a escola
do filho em vez de destiná-lo a trabalhos pesados, como os outros jovens. E desespera-se com a possibilidade de o herdeiro
ingrato desperdiçar a oportunidade oferecida.
Evoluímos um pouco na organização escolar e nos métodos pedagógicos –afinal, o chicote e a palmatória foram banidos da sala
de aula há algumas décadas–, mas não tanto quanto precisamos: em quantas escolas a repetição e memorização continuam sendo
as principais técnicas didáticas?

Já a natureza humana, essa não mudou nada em cinco milênios.

Maioria dos calculadores prodigiosos é, na verdade, ruim de matemática


Marcelo Viana – 26/05/2017

A matemática costuma ser chamada "ciência dos números" e creio que a maioria das pessoas pensa que o trabalho e diversão do
matemático é fazer contas. Isso é uma simplificação grosseira e, aqui entre nós, costuma deixar os matemáticos um pouco
incomodados.

A disciplina lida com muitas noções fundamentais –forma, tamanho, movimento, conjunto, simetria, estrutura e outras–, o número
é apenas uma delas. Anos atrás, quando a declaração do imposto de renda ainda era no papel, e a gente mesmo tinha de fazer as
contas, ganhei o gentil convite de um vizinho para ajudá-lo. Acho que ele nunca entendeu por que não dei pulos de alegria.

Regularmente, surgem indivíduos com capacidade fenomenal para fazer, de cabeça e com grande velocidade, cálculos longos e
complicados: multiplicações e divisões de números com muitos dígitos, cálculo de potências, raízes e até logaritmos. A impressão
causada por essas proezas é tal que no passado muitos desses indivíduos eram apresentados publicamente como atrações
circenses. Eles costumam exibir outras habilidades, como identificar rapidamente o dia da semana de datas longínquas ou estimar
com precisão áreas e volumes só de olhar os objetos. É um talento raro, surpreendente e misterioso. E tem pouco ou nada que ver
com a matemática.

É verdade que alguns matemáticos famosos também foram calculadores excepcionais. Aos três anos de idade, Carl Friedrich
Gauss corrigia a contabilidade do pai. E André Marie Ampère, pioneiro da eletricidade, fazia longos cálculos mentais aos quatro:
tinha aprendido as regras das operações sozinho, brincando com pedrinhas. Mas não é por isso que foram grandes e, em todo caso,
não chegavam nem perto de muitos calculadores amadores.

Um dos primeiros casos registrados é o do africano Thomas Fuller, nascido em 1710. Sequestrado e levado como escravo para os
Estados Unidos, Fuller nunca aprendeu a ler ou escrever, mas era um calculador extraordinário. Multiplicava mentalmente, com
facilidade, números de nove dígitos. Quando tinha 70 anos, 17 dias e 12h, perguntaram-lhe quantos segundos já tinha vivido. A
resposta demorou um minuto e meio: 2.210.500.800 segundos. Alguém conferiu a resposta com papel e lápis e obteve um número
menor. Fuller esclareceu: "Sinhô esqueceu ano bissexto." Viveu até os 80 e seu exemplo foi usado pela causa abolicionista.

Aos seis anos, o americano Zelah Colburn, nascido em 1804, demonstrava poderes tão notáveis de cálculo mental que foi levado
em turnê pelos Estados Unidos e pela Inglaterra. Era capaz de dizer em poucos segundos quanto é 8 elevado à 16ª potência (dá
281.474.976.710.656) ou a raiz cúbica de 268.336.125 (645). Os amigos pagaram seus estudos no Liceu Napoleão, de Paris, e na
Westminster School, de Londres. No entanto, com a educação, seus poderes foram desaparecendo, e Colburn morreu no
anonimato aos 36 anos de idade.

Outro caso famoso é o do inglês George Parker Bidder, nascido em 1806. Também aprendeu aritmética sozinho, brincando com
bolas de gude. Uma das suas especialidades eram os juros compostos: com dez anos calculou de cabeça, em menos de dois
minutos, o juro de 11.111 libras aplicadas à taxa de 5% durante 11.111 dias. Mas em suas apresentações respondia a todo tipo de
perguntas do público. Qual é o número cujo cubo menos 19 multiplicado pelo seu cubo é igual ao cubo de 6? Resposta
instantânea: 3. Os amigos também financiaram os estudos de Bidder. Ao contrário de Colburn, foi bem sucedido, tornando-se um
engenheiro muito respeitado, e manteve os seus poderes de cálculo até a morte, em 1878. Tinha mais de 50 quando desenvolveu
um método para calcular logaritmos mentalmente: demorava menos de quatro minutos para tratar números de seis dígitos.

O professor John Wallis, da Universidade de Oxford, também já estava na meia idade quando decidiu treinar sua capacidade para
fazer cálculos complexos, por pura diversão. Algum tempo depois era capaz, por exemplo, de calcular a raiz quadrada de um
número de 53 dígitos: demorava um mês para fazer a conta de cabeça e então escrevia o resultado.

No Brasil, a Folha mostrou em 2000 o talento de Pedro Dão, 10 anos, do interior de Goiás, que fazia "as contas na parede da
cabeça". Era um dos 14 filhos de um casal de agricultores e convencia clientes a comprar seus picolés desafiando-os a responder
perguntas matemáticas. Calculava raízes quadradas e cúbicas e potências de números com até sete dígitos. Pedro cresceu e
avançou pouco nos estudos. Aos 23, era vendedor de sapatos no interior da Bahia, revelou o repórter Antonio Gois, o mesmo da
matéria de 2000.

Apesar de inúmeros estudos científicos, continua sendo um mistério o que está por trás destas proezas mentais. As próprias
pessoas que realizam cálculos tão complexos têm dificuldade para explicar como fazem. Fica claro que memorização tem um
papel fundamental: memória fora de série é uma das poucas coisas que essas pessoas têm em comum. Além disso, o desempenho
depende fortemente de treinamento constante e de foco total no cálculo mental. Talvez por isso, a educação formal tenda a destruir
esses poderes.
Uma das pessoas que pesquisaram estes temas no século 19, o reverendo H. W. Adams, conta em um artigo que em 1846 pediu a
Tomas Henry Safford, de 10 anos, que multiplicasse 365.365.365.365.365.365 por 365.365.365.365.365.365. O menino "começou
a rodopiar pela sala como um pião, puxando a bainha das calças até os joelhos, revirando os olhos, por vezes falando, outras vezes
sorrindo e, de modo geral, parecendo estar em grande sofrimento". Ao final de um minuto, Safford escreveu a resposta (correta):
133.491.850.208.566.925.016.658.299.941.583.255. Um computador moderno seria mais rápido, mas muito menos interessante
de assistir.

Em todo o caso, tais estudos pertencem ao domínio da psicologia e não da matemática. A maioria destes calculadores prodigiosos
é, na verdade, muito ruim de matemática: têm pouca ou nenhuma intuição para noções cruciais como espaço, forma ou estrutura e,
mesmo os números, eles manipulam sem realmente entenderem.

Do mesmo jeito, me entristece confessar que, quando se trata de fazer contas, os matemáticos não são muito melhores do que a
maioria das pessoas. Aliás, lembrando como alguns dos meus colegas se atrapalham na hora de dividir a conta do restaurante –
quase sempre em benefício próprio, o que constitui um grande mistério para mim –, talvez sejamos até um pouco piores que a
média.

Frações são as vilãs da matemática?


Marcelo Viana – 02/06/2017

Em 1858, o jovem antiquário escocês Alexander Henri Rhind comprou no Egito um papiro -documento escrito num tipo de papel
feito com o caule de uma planta aquática - que fora encontrado nas ruínas de Tebas, a antiga capital dos faraós. Rhind esperava
que o clima do país ajudasse a curar a sua tuberculose, mas não deu certo: morreu cinco anos depois, e o papiro foi vendido ao
British Museum, de Londres.

O papiro de Rhind contém uma coleção de problemas de aritmética, álgebra, geometria e outros temas. Datado de 1550 a.C., é um
dos mais antigos documentos matemáticos conhecidos. O autor, o escriba Ahmes, explica ali que é cópia de um texto ainda mais
antigo, que se perdeu. O texto contém alguns erros, mas não é possível saber se são obra de Ahmes ou se apenas os deixou passar.

Os primeiros problemas tratam de frações. Devem ter sido difíceis na época, porque os egípcios nunca desenvolveram uma boa
notação para frações. Tirando 2/3, que tinha direito a um símbolo especial, eles só reconheciam frações com numerador 1. Por
exemplo, o resultado da divisão de 31 por 51, que representamos como 31/51, para eles era 1/2 1/17 1/34 1/51
(porque 31/51 é igual a 1/2 mais 1/17 mais 1/34 mais 1/51). Dá para imaginar a loucura que seria fazer contas com tal notação!
Acho provável que os alunos egípcios não adorassem aulas de frações...

A notação moderna é muito melhor. Mas as frações continuam sendo um dos tópicos da matemática mais impopulares e difíceis
de ensinar. Por quê?

Para as crianças pequenas, nos primeiros anos de escolaridade, o "bicho papão" da matemática não existe: elas gostam da
disciplina e se divertem genuinamente com os seus mistérios. No livro What's math got to do with it? a pesquisadora Jo Boaler, da
Universidade Stanford, escreve que crianças são naturalmente curiosas e querem dar sentido às coisas, mas a escola elimina esse
tendência. "Crianças começam os estudos com talento inato para resolver problemas, mas muitos estudos mostram que elas são
melhores nisso antes de terem aulas de matemática", afirma.

As ideias matemáticas (contagem, forma, ordem etc) ensinadas nos primeiros anos da escolaridade estão naturalmente presentes
na vivência da criança. Isso muda ao final do primeiro ciclo escolar, quando os ensinamentos vão se tornando mais abstratos. A
relação com a vida real continua existindo, claro, mas passa a ser necessário evidenciá-la. A maior parte das vezes a escola falha
nessa tarefa, e é aí que perdemos a atenção dos jovens. Recentemente me foi apontado que isso coincide com o momento em que
as frações chegam à sala de aula. Uma observação intrigante!

Os problemas com o ensino de frações não são uma exclusividade brasileira. Em artigo publicado em 2011 na revista Notices da
Sociedade Americana de Matemática, o professor H. Wu da Universidade da Califórnia, Berkeley analisa as dificuldades com o
ensino de frações no sistema dos Estados Unidos, e elas são muito parecidas com as nossas.

A professora Boaler ilustra o problema com a seguinte questão, tirada de um estudo realizado nos Estados Unidos: qual dos
números 1, 2, 19 e 21 aproxima melhor o valor de 12/13 + 7/8? Observe que 12/13 é quase igual a 1 (se cortar uma pizza em 13
fatias e comer 12 delas, está comendo quase uma pizza inteira, certo?) e, do mesmo modo, 7/8 também é quase igual a 1. Portanto,
a resposta certa é 1+1, que é 2. Mas nesse estudo apenas 24% dos alunos de treze anos acertaram: a grande maioria escolheu as
respostas 19 ou 21, que são totalmente disparatadas. Para responder a esta questão é necessário entender o que as frações
significam. Não basta saber fazer contas, é preciso pensar!

Ouvi este exemplo de um diretor e professor de matemática, durante a reunião de pais numa escola. Foi muito interessante
observar a reação dos adultos. Alguns levantaram a mão, entusiasmados porque sabiam a resposta. Mas ficou claro que a maioria
nem sequer estava tentando pensar ("a escola é do meu filho e eu é que tenho que responder perguntas de matemática?!"), como se
saber responder a questões como esta fosse completamente inútil ou proibitivamente difícil. Não é. Chegando a casa depois da
reunião, fiz a pergunta ao meu filho. Ele não estudou frações, ainda não sabia o significado de 12/13 e 7/8. Mas expliquei com
fatias de pizza - tema que lhe interessa muitíssimo! - e ele chegou à resposta certa com naturalidade.

A professora Boaler também propõe o seguinte problema. Uma pessoa que está de dieta compra 6 fatias de presunto light que,
juntas, pesam 1/3 de um quilo. Mas a dieta só permite que ela coma 1/8 de quilo. Quantas fatias de presunto a pessoa pode comer?
Respostas pelo e-mail viana.folhasp@gmail.com são muito bem-vindas!

Pais podem diminuir ansiedade matemática dos filhos


Marcelo Viana – 09/06/2017

Um amigo chamou minha atenção para artigo recente no "The New York Times" sobre "ansiedade matemática. Eu não conhecia o
conceito, mas me parece bastante respeitável. Seu estudo remonta aos anos 1970 e continua muito ativo, envolvendo pessoas e
instituições sérias. No mínimo, conduz a algumas conclusões saudáveis, que é bom conhecermos.

Estou habituado a que as pessoas reajam com muita apreensão à simples menção da palavra "matemática". O mais recente foi um
taxista simpático, ex-professor de português, que, ao descobrir o que eu faço, apressou-se a dizer "eu nunca tive cabeça para
números". Será que alguém diz "eu nunca tive cabeça para leitura"?!

A apreensão que muita gente demonstra em relação à matemática pode bloquear o raciocínio, impedindo de realizar todo o seu
potencial. E é diferente de um simples nervosismo: observações já detectaram acelerações do ritmo cardíaco durante provas de
matemática que não existem para outras matérias.

Os psicólogos criaram um procedimento padrão para determinar o índice de ansiedade matemática, a partir das respostas a uma
lista de perguntas. O resultado é um número inteiro de 9 (nenhuma ansiedade) a 45 (nossa!!!). Se quiser, pode medir o seu: não
demora nem um minuto e deve mais útil do que a maioria dos questionários de autoconhecimento que encontramos na internet.

Em estudo recente, psicólogos da Universidade de Chicago e da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico) analisaram os dados da prova 2012 do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), que avalia o
desempenho de estudantes de 15 anos de mais de 60 países, inclusive o Brasil. Constataram que as notas estão fortemente
relacionadas com os respectivos índices de ansiedade matemática. Numa ponta do gráfico estão países como a Holanda, Finlândia
e Dinamarca, com os menores índices de ansiedade, e ótimas notas. Na outra ponta, Tailândia, Argentina e Brasil, com os maiores
índices de ansiedade, e notas ruins.

É verdade que os alunos dos países asiáticos, campeões em desempenho, apresentam índices de ansiedade relativamente altos,
talvez por razões culturais. Mas também dentro desse grupo vale a regra de que quanto maior a ansiedade matemática, pior a nota.
Aliás, o efeito nocivo da ansiedade matemática é ainda mais significativo entre os melhores alunos. E o estudo também detecta
outro impacto negativo, na direção contrária: baixo desempenho na disciplina também gera mais ansiedade matemática.

Não é fácil dizer o que está na origem desse círculo vicioso. Uma parte do problema é que muita gente acredita que não tem
"cabeça para números" e não há nada que possa ser feito. E a ideia generalizada, e estapafúrdia, de que "a matemática é para
gênios" só agrava o problema. A par de questões culturais como esta, que afetam todos os grupos humanos em praticamente todos
os países, existem fatores de natureza mais específica.

Um deles é a experiência escolar, evidentemente. Quase todas as pessoas entrevistadas com altos índices de ansiedade remontam o
seu problema a experiências penosas e métodos didáticos obsoletos na sala de aula. E diversos estudos indicam que,
frequentemente, professores da disciplina transmitem sua própria ansiedade matemática aos alunos.

Ao que parece, o efeito é ainda mais perverso entre as alunas. As mulheres apresentam índices mais elevados de ansiedade
matemática do que os homens, em média. E há razões para crer que ao menos parte disso seja o efeito de professoras que,
sofrendo elas mesmas de ansiedade, contribuem para perpetuar o mito de que meninas têm menos "cabeça para os números".

Nos Estados Unidos, onde existem escolas unissexo, há relatos de que o problema seria menor em estabelecimentos
exclusivamente femininos: na ausência de competição com os rapazes, as meninas teriam menos ansiedade matemática e melhor
desempenho. Mas essa interpretação é controversa, porque existem outros fatores: por exemplo, essas alunas tendem a desfrutar
de condições socioeconômicas acima da média.

Outro fator crucial é ambiente familiar. O potencial da família costuma ser muito subestimado, especialmente no que tange à
matemática: acredito que sejam muito mais os pais que leem para seus filhos, e incentivam a leitura, do que aqueles que tiram
proveito de situações do cotidiano para introduzir conceitos básicos da matemática, tais como forma, ordem ou probabilidade.

A influência familiar pode ser negativa: estudos também mostram que a ansiedade matemática pode ser transmitida de pais para
filhos, por exemplo, quando progenitores devotados, mas estressados, se esforçam demais para ajudar as crianças na lição de casa.
No entanto é um fato bem estabelecido que a matemática aprendida em casa nos primeiros anos de vida tem um efeito muito
salutar na trajetória escolar da criança.

O segredo é não permitir que a sua própria ansiedade contamine a interação matemática com a criança, fazer com que a interação
ocorra naturalmente e de forma lúdica. Inclusive, hoje em dia existe muito material –livros, jogos e até aplicativos– que ajudam os
pais nessa tarefa.

Então, que tal começar a alternar Chapeuzinho Vermelho com um pouco de "matemática para acalmar e ter sonhos felizes"?

Lógica matemática é a linguagem para falarmos com os extraterrestres


Marcelo Viana – 16/06/2017

Estamos no ano de 2710. Na sequência de inúmeras explorações espaciais, finalmente a humanidade encontrou uma espécie
inteligente extraterrestre: os Gödelianos do planeta X314. O contato é muito mais difícil do que previram os cientistas, e até os
autores de ficção científica, pois os Gödelianos são uma espécie muito, muito estranha. (*)

Para começar, eles têm quatro sexos: os Verdadeiros, que sempre dizem a verdade; os Mentirosos, que sempre mentem; os
Inconstantes, que tanto mentem quanto dizem a verdade; e os Doidos, os mais estranhos de todos, que não seguem as regras da
lógica. Uma coisa que complica muito é que, na aparência, os quatro são totalmente idênticos: o sexo de um Gödeliano só pode
ser identificado por meio de suas respostas a perguntas.

Lauralina, leitora assídua desta coluna, acaba de ser nomeada a primeira embaixadora da Terra em X314. A sua missão, ajudar na
comunicação entre os dois povos, é crucial para a paz na galáxia. Mas primeiro ela tem de ser aprovada pelos Gödelianos,
respondendo a uma série de perguntas. O governo alienígena prometeu que neste primeiro contato não participarão Doidos. No
mais, Lauralina precisa ter muitíssimo cuidado: os Gödelianos são muito, muito sensíveis em questões de lógica.

O primeiro entrevistador afirma: "Eu sou Mentiroso. Qual é o meu sexo?" Lauralina precisa pensar muito bem antes de responder!
Errar o sexo do seu interlocutor é uma ofensa gravíssima em X314: a vítima costuma reagir cuspindo ácido sulfúrico no ofensor.

Ela pensa: um Verdadeiro nunca diria isso, porque estaria mentindo. Um Mentiroso também não confessaria, pois estaria dizendo
a verdade, e isso eles nunca fazem. Os Gödelianos garantiram que não haveria Doidos, portanto só resta uma opção: ele é
Inconstante. Muito bem, Lauralina!

Agora são dois entrevistadores. Sabemos que um deles é Verdadeiro, mas não sabemos qual, nem o sexo do outro. O primeiro
entrevistador diz: "Eu sou Verdadeiro, e o meu amigo é Inconstante." O segundo contesta: "Eu sou Verdadeiro, e ele é
Inconstante." Novamente o primeiro: "Eu sou Inconstante e ele é Verdadeiro". E o segundo: "Um de nós já disse uma mentira."

Como saber qual é qual?

Lauralina observa: as duas afirmações do primeiro entrevistador são o contrário uma da outra. Portanto uma é verdade e a outra é
mentira. Então ele não pode ser Verdadeiro, porque estes nunca mentem, nem Mentiroso, porque nunca dizem a verdade. Logo, o
primeiro observador é Inconstante e, nesse caso, o segundo deve ser Verdadeiro.

Ufa!

Sabemos que no próximo par de entrevistadores não há Inconstantes (nem Doidos). O primeiro deles diz apenas: "Os dois somos
do mesmo sexo." O outro é mais tagarela: "Se sou Verdadeiro então o meu colega é Mentiroso. Se sou Mentiroso, então ele é
Verdadeiro." Agora complicou!...

Mas, com a preciosa ajuda dos nossos leitores e leitoras, Lauralina consegue entender a lógica da situação. Ela raciocina assim:
vamos supor que sejam do mesmo sexo. Então a afirmação do primeiro entrevistador é verdade e, portanto, ele é Verdadeiro.
Nesse caso, o outro também seria Verdadeiro, já que supomos que são do mesmo sexo. Mas o segundo diz que se ele for
Verdadeiro então o primeiro é Mentiroso. Se isso estiver certo, então o primeiro é Mentiroso, contradizendo a conclusão anterior.
Se for mentira, então o segundo entrevistador é Mentiroso, o que também contradiz a conclusão anterior. Não há saída: nos dois
casos chegamos a uma contradição. Portanto, eles não podem ser do mesmo sexo!

Então a afirmação do primeiro entrevistador é mentira, e ele é Mentiroso. Nesse caso, como já sabemos que eles são de sexos
diferentes, o segundo é necessariamente Verdadeiro.

Essa foi por pouco!

A fase final da entrevista é na presença do Líder Supremo dos Gödelianos. "Eu estou mentindo. O que pode dizer sobre o meu
sexo?" Lauralina recusa-se a responder e informa o seu governo. A Terra protesta com veemência, e os Gödelianos retiram a
pergunta e pedem desculpa. Por quê??? (Responda pelo e-mail viana.folhasp@gmail.com.)
Tudo termina bem: nossa embaixadora está credenciada oficialmente em X314, e a era das relações diplomáticas interplanetárias
está começando!

Com 5ª maior delegação em congresso matemático, Brasil ganha destaque


Marcelo Viana – 23/06/2017

Na abertura do primeiro Congresso Internacional de Matemáticos (ICM, sigla em inglês), em 9 de agosto de 1897, o holandês
Adolf Hurwitz afirmou: "Poder expressar-se e se comunicar com os seus colegas é vital para todo matemático. E cada um de nós
sabe por experiência pessoal como o relacionamento científico direto pode ser estimulante." Hoje, estas afirmações são mais
válidas do que nunca.

Não foi sempre assim. Até o século 19, havia muito poucos matemáticos –poucos cientistas em geral– e eles trabalhavam
isoladamente e, muitas vezes, em segredo. Isaac Newton descobriu o cálculo matemático em 1671, mas reservou essa poderosa
ferramenta para si mesmo, sem ter de enfrentar a concorrência. Assim, esse trabalho (Methodus fluxionum et serierum
infinitarum) só foi publicado em 1736, após a sua morte.

Mas o mundo mudou. A Revolução Francesa de 1789 pôs em marcha uma profunda reestruturação social, na Europa e além, com
a emergência de uma classe média cada vez mais interessada na aquisição e utilização do conhecimento. Ao mesmo tempo, a
Revolução Industrial britânica ampliou enormemente o papel da ciência e da tecnologia como motores do desenvolvimento.

Junto, veio uma importante mudança do papel das universidades: de meras instituições de ensino a centros de produção e
transmissão de conhecimento. Professores universitários tornaram-se também pesquisadores, aumentando em muito o número de
cientistas. Sociedades matemáticas nacionais proliferaram nos países mais desenvolvidos: Rússia em 1864, Reino Unido em 1865,
França em 1872, Itália em 1884, Estados Unidos em 1888 e Alemanha em 1890.

O longo período de paz na Europa que se seguiu às guerras napoleônicas, e os avanços tecnológicos nos transportes (linhas
férreas, indústria naval) e nas comunicações (telégrafo, telefone, rádio), também contribuíram para aproximar pessoas e povos.
Assim, ao final do século 19 surgiam apelos à cooperação internacional entre matemáticos.

Pretendiam contrariar a degradação da conjuntura política mundial: o "concerto das nações" imposto pelo Congresso de Viena de
1814-15 colapsava, e o mundo caminhava para a grande catástrofe da 1ª Guerra Mundial. Essa tentativa não estava restrita à
ciência: não é coincidência que a primeira edição dos Jogos Olímpicos –maior evento esportivo internacional– tenha ocorrido em
1896, um ano antes do primeiro ICM.

Também havia motivações específicas. À medida que a matemática crescia, era cada vez mais difícil para um único indivíduo
abarcar todo o seu escopo, como haviam feito Leonhard Euler ou Carl Friedrich Gauss. O grande matemático alemão Felix Klein
disse em 1893: "Uma diferença óbvia entre o passado e o presente é que aquilo que antes era o resultado de uma única mente
genial devemos agora buscar por meio de esforços conjuntos e cooperação."

Por volta de 1890, Georg Cantor, primeiro presidente da Sociedade Matemática Alemã, estava propondo a criação de um encontro
científico que servisse como fórum para os matemáticos de todo o mundo apresentarem e discutirem os seus trabalhos. Uma
conferência organizada pela Universidade de Chicago em 1893, com a presença de americanos e europeus, permitiu avançar essa
ideia. Felix Klein concluiu o seu discurso na conferência com a adaptação de um slogan famoso: "Matemáticos de todo o mundo,
uni-vos!" –parodiando Karl Marx e Friedrich Engels.

A cidade suíça de Zurique sediou o primeiro Congresso Internacional de Matemáticos, de 9 a 11 de agosto de 1897, com 208
matemáticos, de 15 países europeus mais os Estados Unidos. Quatro eram mulheres, mas esse fato foi completamente ignorado: os
anúncios oficiais, em alemão e francês, eram dirigidos apenas a "Mein Herr, Cher Monsieur", formas de tratamento masculinas.

O segundo ICM teve lugar em Paris em 1900. A partir daí prevaleceu o intervalo de quatro anos, com interrupções apenas durante
as duas guerras mundiais. Até hoje houve 27 edições do Congresso: três na América do Norte, quatro na Ásia e 20 na Europa.
Passados 120 anos, o ICM continua vigoroso e desempenhando papel central na evolução da pesquisa em matemática no mundo.

Como em tudo relacionado à ciência, o Brasil começou tarde. Aderimos à União Matemática Internacional em 1954 e os
primeiros brasileiros palestrantes no ICM foram Leopoldo Nachbin, em 1962, e Mauricio Peixoto, em 1974 –ambos do Impa
(Instituto de Matemática Pura e Aplicada), que hoje dirijo. A Sociedade Brasileira de Matemática foi fundada em 1969. Esse
atraso foi amplamente compensado pelo desenvolvimento notável da nossa matemática em décadas recentes, que alçou o Brasil a
posição de destaque no cenário internacional.

Um reflexo disso é a conquista do direito de organizarmos o próximo Congresso Internacional de Matemáticos, em 1 a 9 de agosto
de 2018, no Rio de Janeiro. A ocasião é histórica, porque este será o primeiro ICM no Hemisfério Sul. E o Brasil acaba de ganhar
mais uma razão para orgulhar-se de sua matemática. Foi publicada a lista oficial dos cerca de 200 matemáticos que terão a honra
de proferir uma palestra no ICM 2018, e o Brasil terá a quinta maior delegação científica, só atrás de Estados Unidos, França,
Reino Unido e Alemanha. Serão 13 palestrantes brasileiros, de sete instituições (Impa, UFRJ, USP, PUC-Rio, UFSC, UFF e
LNCC), incluindo quatro mulheres.

Não se trata de mero agrado aos donos da casa: na Coreia, em 2014, apenas quatro coreanos foram convidados. Deve, sim, ser
visto como reconhecimento internacional do valor da matemática praticada no Brasil, e da eficácia dos argumentos usados pela
Sociedade Brasileira de Matemática para promover nossos pesquisadores junto do Comitê Científico do Congresso.

Estas conquistas da matemática brasileira se devem à combinação de liderança científica lúcida com políticas públicas
consistentes de apoio à criação e consolidação de grupos e instituições de pesquisa. Resta alertar que a gravíssima crise atual no
financiamento da ciência põe em risco os êxitos alcançados: o que demorou 60 anos para se construir pode ser destruído em
menos de seis.

Brincadeiras e jogos aproximam crianças da matemática


Marcelo Viana – 30/06/2017

Alguns leitores me pediram sugestões de materiais – jogos, livros etc.– para interagir matematicamente com os filhos e melhorar
sua receptividade à matemática. Mencionarei alguns exemplos que eu mesmo testei, mas há muitas opções na internet, tanto
comerciais quanto de custo zero. A grande vantagem de muitas brincadeiras lógico-matemáticas é que o material pode ser
facilmente produzido em casa. E isso é parte da diversão: mais importante do que o jogo em si, é a participação dos pais,
apresentando a matemática de forma descontraída, como uma brincadeira em que todos se divertem.

Uma colega me contou do jogo dos dedos, brincadeira tradicional japonesa que usa apenas as mãos e pode ser feita em qualquer
lugar, com dois ou mais jogadores. Testei com os meus filhos (7 e 10 anos) e foi um sucesso! Os dois agora pedem para jogar na
sala, no carro, até na cama, na hora de dormir. O mais velho já ensinou os colegas da escola a jogar: está adorando ser o
especialista do pedaço!

Depois de se decidir quem começa, os jogadores apresentam as mãos com os dedos indicadores esticados e os demais dobrados. O
primeiro a agir toca com uma das mãos uma mão do adversário. A mão tocada passa a exibir a soma dos dedos dessas mãos dos
jogadores (se o jogador A usar uma mão com dois dedos esticados para tocar uma mão de B com um dedo esticado, B passa a
esticar três dedos). Ao chegar a cinco dedos esticados, a mão "morre" e sai do jogo. Ganha o último jogador com alguma mão
"viva". Há variações das regras que tornam o jogo ainda mais divertido.

Já o wali é originário da África Ocidental e popular em diferentes regiões do continente. É jogado com uma espécie de tabuleiro,
um pedaço de madeira com 12 cavidades escavadas e 48 pedrinhas. O tabuleiro pode ser substituído por uma dúzia de copinhos ou
até por covinhas na areia. Em vez de pedrinhas, podem-se usar bolas de gude, feijões, moedas etc. Comprei meu wali de um
artesão no Senegal. No lugar de pedras, ele pôs castanhas de uma árvore local, que catou na hora no chão do galinheiro: até hoje o
tabuleiro tem um leve aroma inconfundível...

Com dois jogadores, o jogo começa com quatro pedrinhas em cada buraco. A partir daí, alternadamente, cada um escolhe uma
cavidade, pega as pedras contidas nela e as distribui uma a uma, nos buracos seguintes, em sentido anti-horário. Se ao colocar a
última pedrinha a respectiva cavidade ficar com duas ou três, o jogador deve retirá-las do jogo. Ganha quem retirar mais
pedrinhas. O jogo muda de nome dependendo do país.

A torre de Hanói é uma base com três pinos, em torno dos quais estão colocados quatro ou mais discos perfurados, de tamanhos
diferentes, que crescem do topo até a base. O objetivo é deslocar todos os discos para outro pino: só pode ser movido um disco por
vez; não é permitido pôr um disco maior sobre outro menor.

Com quatro discos, o jogo é acessível a crianças pequenas, a partir de 3 anos. Quanto mais discos, mais complicado. Mas sempre
tem solução: pode provar-se matematicamente que com 'n' discos a transferência de todos os pinos pode ser feita em 2n-1
movimentos. É um belo exercício buscar o método de solução.

A torre de Hanói foi criada pelo matemático francês Édouard Lucas (1842-1941). Ele teria se inspirado em uma lenda sobre um
templo na Índia (ou China, ou Tailândia, ou Hanói –antigo nome da capital do Vietnã) onde existiriam três postes rodeados por 64
discos de ouro de tamanhos diferentes. A cada dia, os monges transferiam um disco para outro poste, segundo as regras
enunciadas anteriormente. E quando finalizassem a tarefa o mundo acabaria!

Não há razão para preocupações no curto prazo: de acordo com a fórmula no parágrafo anterior, a tarefa dos monges demoraria ao
menos
264^-1 (ou 18.446.744.073.709.551.615) dias, ou pouco mais de 50 quatrilhões de anos. Como a idade atual do Universo, desde o
Big Bang, não chega a 14 bilhões de anos, há tempo para terminarmos a maioria das tarefas pendentes...

O livro "Mágicas com Papel, Geometria e Outros Mistérios" dos professores Pedro Malagutti e João Carlos Sampaio, da editora
da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), está recheado de belos truques, paradoxos, desafios e mágicas, que
proporcionam descobertas surpreendentes em aritmética e geometria.
Outra opção que estará disponível em breve, gratuitamente, é o aplicativo do Biênio da Matemática Brasil para dispositivos
móveis: terá um problema por dia, com grau de dificuldade escolhido pelo usuário. Enquanto esperamos, nos Facebooks do
Biênio da Matemática e do Impa já há desafios lógico-matemáticos, propostos inclusive pela mascote Aramat.

Este aqui a Aramat pegou no site da Obmep (Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas): João possui 30 barras de
chocolate com os seguintes pesos: 2, 3 ou 4 quilos. A soma dos pesos das barras é 100 quilos. João possui mais barras de 2 quilos
ou de 4 quilos?

Memorização tem lugar na sala de aula


Marcelo Viana – 07/07/2017

O filme "The Wall", do diretor Alan Parker, lançado em 1982, é uma dramatização do álbum homônimo da banda de rock
britânica Pink Floyd. Numa das cenas, o professor humilha um aluno que "se acha um poeta". Descartando os escritos do menino
como "absoluta porcaria", o mestre ordena que a classe volte ao trabalho, repetindo com ele "Um acre é a área de um retângulo
cujo comprimento é um furlongue e cuja largura é uma cadeia. Um acre é a área de um retângulo...".

A cena, que já foi comum em muitos países, é uma caricatura mordaz da didática da memorização, que dispensa a compreensão e
reduz o aluno a um mero receptor. A frase em si é incorreta: uma superfície com área igual a um acre não tem por que ser um
retângulo, muito menos esse. Mas o ponto principal é que ela é incompreensível se você não conhece os conceitos e palavras: O
que são furlongue e cadeia? E o que área tem que ver com comprimento e largura afinal? Assim, a "definição" é apenas uma
fórmula vazia, sem sentido para aqueles que ela deveria instruir.

Foi assim que eu e meus coleguinhas aprendemos que 2 vezes 6 doze, 2 vezes 7 catorze etc, sem sabermos o que é "vezes".
Lembro a primeira ocasião em que vi uma tabuada no quadro-negro e pensei que a professora devia estar distraída: estava
escrevendo o sinal de "mais" todo inclinado, chamando-o de "vezes" e, mais incrível ainda, errando quase todas as contas! Tudo
isso com o maior carinho, pois a professora era a minha mãe.

Esses exageros conduziram, em décadas recentes, a uma grande desvalorização do papel da memória na aprendizagem da
matemática. Não há dúvida de que a abordagem tradicional era errada e ineficiente, mas até onde devemos ir na eliminação da
memorizacão do ambiente escolar? Essa é uma das questões abordadas no livro "Ten questions for mathematics teachers and how
Pisa can help answer them" (Dez questões para professores de matemática e como o PISA pode ajudar a respondê-las, em
tradução livre) publicado em 2016 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O Programa Internacional para Avaliação de Estudantes (Pisa é a sigla em inglês) é uma avaliação de desempenho em três áreas –
leitura, matemática e ciências– realizada pela OCDE a cada três anos, com estudantes de 15 anos de mais de 60 países, incluindo o
Brasil. Os testes não estão diretamente ligados aos currículos escolares. Pelo contrário, focam em tentar medir a capacidade do
estudante para aplicar seu conhecimento e talento a problemas da vida real.

O Pisa não é isento de críticas. Em alguns países mais avançados, é acusado de criar metas (como ficar bem colocado no ranking
do Pisa) que não são realmente prioritárias para o objetivo maior da educação. Acredito que essa crítica tem algum fundamento,
mas que tem mais que ver com o uso inadequado e simplista dos resultados, e não dos fundamentos do programa em si.

No Brasil, o Pisa incomoda alguns segmentos do nosso ambiente escolar, talvez por escancarar o que todos sabemos: que o rei
está nu e mudanças estruturais são necessárias e urgentes. Entre outras, já ouvi de um educador que "os resultados não se aplicam
ao Brasil, pois não treinamos nossos alunos para resolver problemas". Com o perdão da pergunta, treinamos para que mesmo?

Um dos méritos de programas internacionais como o Pisa é fornecerem parâmetros de avaliação independentes, que não podem
ser manipulados ao sabor das conveniências políticas locais. Outro ponto forte é a capacidade de gerar uma grande quantidade de
dados sobre o panorama educacional que, se usados de maneira inteligente e ponderada –indo além do imediatismo e apelo
midiático dos rankings de países–, podem orientar, sim, todos os atores da questão educacional: autoridades, escolas, professores e
famílias.

É isso a que se propõe fazer o livro que mencionei: a partir de dados do Pisa 2012, oferece respostas a dez perguntas de interesse
para professores de matemática em qualquer país. Ele ainda não foi traduzido para o português (no entanto, confira Brasil no Pisa
2015), mas já contatamos a OCDE para expressar o interesse do Impa e da Sociedade Brasileira de Matemática em traduzi-lo. As
repostas são sucintas, mas bem fundamentadas, e nem sempre o que seria de se esperar.

No Capítulo 4, "O que sabemos sobre memorização e aprendizagem de matemática?", descobrimos que alunos com pior atitude
em relação à matemática (ansiedade, baixa motivação e perseverança) são mais propensos a apelar para a memorização como
única técnica de aprendizagem. E que isso acarreta pior desempenho em todos os níveis de dificuldade, embora a diferença seja
pequena (apenas) quando se trata de resolver problemas muito fáceis e rotineiros.
A questão é que o modo como a memorização é usada faz diferença. Treinamento repetitivo de certas capacidades é, sim, uma
técnica útil, desde que também abra caminho para a compreensão do assunto, pois ele libera a mente para tarefas superiores de
raciocínio. E repetição não precisa ser sinônimo de tédio. Meu filho mais velho está muito empolgado para memorizar a tabuada,
pois a escola soube transformar a coisa toda numa brincadeira. Como ele já está craque na tabuada do 8, acredita que os meninos
vão ganhar "facinho" das meninas!

Talvez por isso, o grau de uso da memorização no ensino de matemática parece ter pouco que ver com a qualidade do sistema
educacional do país. Ela é importante em países como Austrália, Jordânia e Holanda, e pouco usada na Dinamarca, Cazaquistão e
México, entre outros. O Brasil está no grupo intermediário, perto da Finlândia e da Turquia, por exemplo.

Para terminar, qual foi a conta que a minha professora não "errou" na tabuada naquele dia? Usei essa lembrança muitos anos
depois para resolver um problema na faculdade.

Olimpíada internacional traz ao Brasil os jovens craques da matemática


Marcelo Viana – 14/07/2017

Já estão chegando ao Rio de Janeiro as delegações vindas de todo o mundo para participar na Olimpíada Internacional de
Matemática. Organizadores internacionais, membros do júri e outros responsáveis chegaram antes para preparar os detalhes da
prova que será aplicada em 18 e 19 de julho. E em 22 de julho teremos a grande festa da entrega das medalhas.

A IMO (International Mathematical Olympiad, em inglês), é a maior, mais antiga e mais prestigiosa olimpíada científica para
alunos do ensino médio. Ser escolhido para a delegação do seu país é uma distinção tão grande para um jovem matemático quanto
para um jogador de futebol estar na seleção nacional.

A IMO é organizada anualmente, sempre em um país diferente. A primeira aconteceu na Romênia em 1959, com 52 alunos de
sete países. A mais recente foi em Hong Kong em 2016, com 602 alunos de 109 países. A edição 2017 está sob a responsabilidade
do Impa e da Sociedade Brasileira de Matemática e é a primeira no nosso país. Com 623 alunos, de 111 países, já é a maior da
história da competição.

Cada país participa com seis alunos, embora seja permitido excepcionalmente que países com pouca tradição enviem delegações
menores. Também integram o time dois professores: o líder, que tem um papel fundamental "defendendo" as respostas dos alunos
para obter a melhor pontuação possível, e o vice-líder, responsável por acompanhar a equipe e tratar de todas as questões práticas.

A delegação brasileira foi apresentada publicamente em 13 de junho: André Hisatsuga (São Paulo-SP), Bruno Meinhart (Fortaleza
- CE), Davi Sena (Recife - PE), George Lucas Alencar (Fortaleza - CE), João César Vargas (Passa Tempo - MG) e Pedro
Henrique de Oliveira (Campinas - SP), com os professores Krerley Oliveira (Maceió - AL) e Frederico Girão (Fortaleza - CE)
como líder e vice-líder, respectivamente. João César, Pedro Sacramento e George Lucas são "veteranos" da IMO 2016, na qual os
dois primeiros ganharam prata e George Lucas bronze, respectivamente.

A prova consiste de seis questões, elaboradas pelo júri internacional, três em cada dia. Os desafios costumam focar temas com
poucos requisitos teóricos –geralmente da aritmética, geometria ou combinatória– para serem compreensíveis para alunos do
ensino médio. Mas isso não quer dizer que sejam fáceis. Pelo contrário! As questões da IMO exigem enorme concentração e uma
centelha mágica de inspiração para encontrar a resposta rapidamente.

Isso é muito diferente da prática da pesquisa na área, que costuma exigir conhecimentos teóricos muito sofisticados, em áreas
diferentes, e um trabalho de reflexão em períodos muito longos. Por exemplo, o matemático inglês Andrew Wiles precisou pensar
por mais de sete anos para encontrar a demonstração do famoso teorema de Fermat, em 1993.

Assim mesmo, a IMO é extraordinariamente eficaz para identificar brilhantes futuros pesquisadores. Por exemplo, 13 dos
ganhadores da medalha Fields –o mais prestigioso prêmio da matemática– começaram suas carreiras como medalhistas de ouro na
IMO. Entre eles, o brasileiro Artur Avila IMO em 1995 e medalha Fields 2014.

As edições 2015 e 2016 da IMO foram vencidas pelos Estados Unidos, mas há uma hegemonia da China: de 1999 para cá os
chineses sempre alcançaram o pódio, 13 vezes como vencedores. Rússia e Coreia do Sul também são fortes candidatas às
melhores colocações.

O Brasil começou a participar em 1979 –um ano depois da criação da Olimpíada Brasileira e Matemática– e não parou mais. Na
primeira vez ficamos em 22º lugar entre 23 países. Em 2016 obtivemos o nosso melhor resultado: 15º lugar entre 109 países, com
cinco medalhas de prata e uma de bronze. Ao longo dos anos, o Brasil acumulou nove ouros, 41 pratas e 72 bronzes.

Nosso primeiro medalhista de ouro foi Nicolau Saldanha, em 1981. Ele também teve a "pontuação perfeita", 42 pontos, pois
gabaritou a prova. Só mais um brasileiro repetiu essa façanha até hoje: Ralph Teixeira, que também é o nosso maior campeão,
com duas medalhas de ouro, em 1986 e 1987, a segunda com "pontuação perfeita". Rodrigo Angelo e Henrique Pinto ganharam
uma medalha de ouro e duas de prata cada um. Já Rui Viana e Gabriel Bujokas trouxeram para casa um ouro e uma prata cada um.
Carlos Gustavo Moreira, o meu colega e amigo Gugu, foi bronze na IMO de 1989, aos 16 anos. Nesse mesmo ano foi ouro na
Olimpíada Iberoamericana, em Cuba: o único desapontamento foi não ter podido conhecer pessoalmente o herói Fidel Castro. Em
1990, Gugu ganhou mais uma medalha na IMO, desta vez de ouro. Ainda participou na Iberoamericana daquele mesmo ano, mas
foi desclassificado –depois que a prova já estava corrigida!– por já ter sido laureado na Olimpíada Internacional. Assim mesmo,
ganhou o computador destinado ao candidato com melhor pontuação. Em uma época em que ninguém tinha essa mordomia, dá
para imaginar a inveja dos colegas... Ainda mais que o Gugu usava o computador com a maior seriedade, para jogar videogames
no Impa enquanto os demais trabalhavam e estudavam.

Os registros da IMO são incompletos quanto ao gênero dos alunos, mas é evidente que a presença de meninas é minoritária, em
torno de 10% ou menos. Uma delas foi a iraniana Maryam Mirzakhani, ouro na IMO em 1994 e 1995 e primeira mulher a ganhar
a medalha Fields, em 2014.

Para ajudar a mudar esse cenário, o Brasil propôs a criação de um troféu especial –intitulado Olympic Girls Impa Award– que irá
distinguir as equipes que obtenham mais pontos "femininos", isto é, nas provas das alunas. Essa ideia foi aceita pelos
organizadores internacionais da IMO e deverá ser replicada nas edições seguintes. Além disso, promoveremos uma mesa redonda
sobre a mulher na ciência. Espera-se que estas iniciativas chamem a atenção para a importância da diversidade, incentivando o
aumento da presença feminina.

Paradoxos estão por toda parte


Marcelo Viana – 21/07/2017

A frase "Estou mentindo", numa coluna anterior, intrigou muitos leitores. Se a pessoa estiver realmente mentindo então a frase é
verdadeira, ou seja, a pessoa não está mentindo. Se a pessoa não estiver mentindo então a frase é falsa, ou seja, a pessoa está
mentindo. Então, é verdadeira ou é falsa?

Muitos leitores escreveram que é um paradoxo, mas sem explicarem o que significa. Na verdade, não é fácil explicar, até porque
há muitos tipos. Neste caso, trata-se de um paradoxo lógico. Nos nossos raciocínios habituais usamos uma lógica baseada em duas
regras: terceiro excluído –toda afirmação é verdadeira ou falsa– e não contradição –uma afirmação não pode ser, ao mesmo
tempo, verdadeira e falsa. Já a frase "Estou mentindo", ou é simultaneamente verdadeira e falsa, ou não é nem uma coisa nem
outra.

Isso mostra que o autor da frase, o Líder Supremo dos Gödelianos de X314 (citado nessa coluna anterior), não segue as regras da
lógica e, portanto, é um Doido. Sorte que é só no planeta deles que o líder supremo é doido!

Neste exemplo, o paradoxo lógico resulta de que a frase contém uma autorreferência: ela fala sobre si mesma. Essa é uma ideia
muita antiga, remonta pelo menos à Grécia antiga, e admite muitas variações. "Esta frase contradiz a si mesma, só que não!" O
comandante no quartel: "Não faça o que eu estou mandando!" Ou até em duplas: "A próxima frase é falsa. A frase anterior é
verdadeira."

Uma aplicação séria da autorreferência é o paradoxo de Russel, formulado pelo matemático, filósofo e escritor britânico Bertrand
Russell (1872 - 1970), ganhador do Prêmio Nobel de literatura em 1950. Visando resolver as contradições da teoria matemática
dos conjuntos, Russel propôs considerar o "conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmos". A questão de
saber se esse conjunto é membro de si mesmo ou não leva ao mesmo tipo de dificuldade que encontramos antes com "Estou
mentindo". A conclusão de Russel é que temos que ser muito mais cuidadosos no modo como definimos um conjunto, para evitar
autorreferências.

O matemático austríaco Kurt Gödel (1906 - 1978) fez um uso ainda mais importante da mesma ideia para provar, em 1931, um
teorema espetacular: a matemática ou é contraditória –significando que existem afirmações falsas que podem ser demonstradas
matematicamente– ou é incompleta –existem afirmações verdadeiras que não podem ser demonstradas. A demonstração rigorosa
desse teorema é bem sutil, mas a ideia pode ser explicada em poucas palavras.

Gödel mostrou que é possível escrever uma expressão matemática que significa "Eu não posso ser demonstrada". Se ela puder ser
demonstrada então ela é falsa: é a primeira alternativa do teorema. Caso contrário, ela é verdadeira e estamos na segunda
alternativa do teorema.

Gödel também provou que não é possível decidir matematicamente entre as duas possibilidades, contradição ou incompletude. Na
verdade, ninguém acredita que a matemática seja contraditória, pelo que somos obrigados a aceitar que ela é incompleta: nem tudo
que é verdade pode ser demonstrado matematicamente! Mas isso não é um fato isolado da matemática, existem paralelos em
outras disciplinas. Os mais importantes são o princípio da incerteza de Heisenberg, na mecânica quântica, e o teorema de Arrow,
na teoria da decisão. Espero poder falar sobre eles aqui um dia.
Mas o que é um paradoxo afinal? A Wikipédia define como "declaração aparentemente verdadeira, mas que leva a
uma contradição lógica, ou a uma situação que contradiz a intuição comum". Na linguagem usual usamos a palavra em sentido
mais amplo: por vezes apenas parece haver contradição, ela resulta de suposições preconcebidas e não explicitadas.

Um dos meus exemplos favoritos é o seguinte. Há um acidente muito sério na estrada envolvendo duas pessoas. O pai morre na
hora, o filho é levado em estado grave para o hospital. Quando chega ao bloco operatório, o chefe dos cirurgiões exclama: "Eu não
posso operar esse rapaz, ele é meu filho!" Como pode ser, se o pai morreu no acidente?! Resposta: o chefe dos cirurgiões é
mulher...

Mas há paradoxos para todos os gostos e em todos os domínios. São uma fonte inesgotável de encantamento e um instrumento
para aprimoramos o raciocínio. No direito: se o Supremo Tribunal Federal for processado por uma ação ilegal, a quem cabe dar a
sentença final? Na política: como a descoberta de uma grande riqueza, por exemplo, petróleo pode levar um país à miséria? Na
teologia: se existe um ser que tudo sabe, como podemos ter livre arbítrio? No urbanismo: porque a abertura de uma nova rua pode
piorar o trânsito? Nas viagens no tempo: o filme "O Predestinado" dá um exemplo espetacular.

Até na matemática, claro. Um dos meus preferidos é a demonstração matemática de que eu sou o Líder Supremo! Considere dois
números iguais x e y. Multiplicando os dois lados da igualdade x = y por x obtemos x² = yx. Subtraindo y² dos dois lados, x² - y² =
yx - y². Fatorando, (x + y)(x - y) = y(x - y). Removendo o fator comum (x - y), vem que x + y = y. Como x e y são iguais, segue
que y + y = y, ou seja, 2y = y. Removendo novamente o fator comum y, obtemos 2 = 1. Então, o Líder Supremo e eu, que somos
duas pessoas, somos uma pessoa só. Demonstrado!

Tomar decisões é difícil, mas a matemática pode ajudar


Marcelo Viana – 28/07/2017

O documentário "Edifício Master", dirigido por Eduardo Coutinho e lançado em 2002, relata o cotidiano de um prédio em
Copacabana, Rio de Janeiro. Com 12 andares e 500 moradores em 276 apartamentos conjugados (23 por andar!), o Master é um
microcosmo da Princesinha do Mar, com suas glórias e misérias. A equipe morou três semanas no prédio, filmando e
entrevistando moradores. Alguns depoimentos são hilários, outros dramáticos. Todos são profundamente humanos.

Uma das entrevistas é com o síndico, que resgatou o prédio de um longo período de degradação. Quando perguntado como faz
para gerir todos os problemas, responde com um leve sorriso: "Eu uso muito Piaget. Quando não dá certo, eu parto para o
Pinochet". São referências ao psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), pioneiro do estudo do desenvolvimento da criança, e ao
ditador chileno Augusto Pinochet (1915-2006), autor do pior período de repressão dos direitos humanos em seu país.

Fico imaginando como serão as reuniões de condomínio do Master, e como a matemática poderia ajudar. Suponhamos a seguinte
situação, que não parece muito complicada. O condomínio precisa eleger uma comissão de três pessoas para redigir o novo
regimento. Há exatamente três candidatos, o que simplifica as coisas. Mas a chapa precisa ser ordenada, porque o primeiro será o
presidente da comissão –muito prestígio!–, o segundo será um mero vice-presidente, e o terceiro será o secretário –que terá todo o
trabalho.

Esse é um tipo de problema que ocorre em muitas outras situações, claro. Por exemplo, no Impa (Instituto de Matemática Pura e
Aplicada) precisamos lidar com situações como essa quando contratamos pesquisadores ou decidimos sobre prêmios ou bolsas
para os alunos.

O síndico do Master sugere que cada um dos 276 condôminos vote indicando a sua ordem de preferência entre os três candidatos,
e assim é feito. Agora é preciso transformar as 276 ordenações propostas pelos moradores em uma ordenação coletiva,
representativa de todo o condomínio. Se todo o mundo tivesse indicado a mesma preferência, seria muito fácil: decisão por
unanimidade e todo mundo volta cedo para casa. Mas quando é que reunião de condomínio tem unanimidade?!?

Nessa hora de dificuldade, o nosso dinâmico síndico faz o que todo administrador esclarecido faria: chama um matemático para
ajudar, claro. A tarefa é definir uma regra justa, imparcial e impessoal para encontrar a preferência de todo o condomínio a partir
daquelas que foram expressas pelos moradores. O matemático imediatamente propõe que se adotem os seguintes princípios.

Primeiramente, se por acaso um certo candidato, X, estiver na frente de outro, Y, nas preferências de todos os moradores, então X
tem que aparecer na frente de Y na ordenação final. Essa proposta –que chamaremos Princípio 1– é aceita imediatamente.
Acredito inclusive que terá contribuído para consolidar a reputação dos matemáticos como pessoas sensatas e ponderadas.

Em seguida, o especialista propõe que a posição relativa (quem fica à frente de quem) de dois candidatos quaisquer, X e Y, na
lista final, dependa apenas das suas posições relativas nas preferências dos condôminos. Em outras palavras, ela não deverá
depender das opiniões sobre o outro candidato, Z. Após alguns esclarecimentos, esta proposta –o Princípio 2– é igualmente
aprovada. A assembleia de condomínio sorri, confiante de que a questão está em boas mãos.

Mas é aí que cai a bomba: o matemático informa que a única maneira de resolver a questão obedecendo aos Princípios 1 e 2 é
escolhendo um dos condôminos –não importa como– e adotando a preferência dessa pessoa. Em outras palavras, eles precisam de
um ditador! E é claro que o matemático pode provar o que diz: ele está apenas usando o famoso teorema da impossibilidade de
Arrow.

Em tempo: em momento algum o matemático diz que o ditador precisa ser o síndico. Pode ser qualquer condômino. Não vá o
leitor desconfiado suspeitar de um conchavo, a que nem o valoroso gestor nem o competente cientista se prestariam jamais!

Kenneth Joseph Arrow (1921-2017) foi um economista, cientista político e escritor americano, vencedor do prêmio Nobel da
economia em 1972. Os seus principais trabalhos tratam da teoria do equilíbrio geral, da economia da informação e da teoria da
decisão. O teorema da impossibilidade de Arrow tem inúmeros desenvolvimentos. Juntamente com o teorema da incompletude de
Gödel, da lógica, e o princípio da incerteza de Heisenberg, da mecânica quântica, constitui um dos mais intrigantes alertas sobre
os limites daquilo que podemos conhecer. E também é um desafio instigante a que busquemos contornar esses limites.

O livro "Geometry of voting", do americano Donald Saari, desenvolve a teoria matemática das eleições, explicando como
podemos tomar decisões matematicamente mais justas e imparciais apesar das limitações impostas pelo teorema de Arrow. O livro
ficou muito popular nos Estados Unidos por ocasião da eleição presidencial Bush-Gore de 2000, com suas inacreditáveis
trapalhadas de (re)contagens de votos. Infelizmente, lá preferiram não chamar os matemáticos para ajudar.

Agora está na hora de testarmos o talento da leitora e do leitor para tomar decisões. O seguinte tipo de questão remonta ao grande
economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946).

Numa urna fechada existem 10 bolas vermelhas e mais 20 bolas brancas ou pretas –só que não sabemos quantas de cada uma
dessas cores. Vai ser retirada uma bola. Você prefere apostar nas vermelhas (ganha R$ 100 se sair bola vermelha) ou nas pretas
(ganha R$ 100 se sair bola preta)?

Quando gênios conversam: Poincaré e a origem dos 23 problemas de Hilbert


Marcelo Viana – 04/08/2017

A matemática do final do século 19 e início do século 20 foi dominada por duas figuras gigantescas: o francês Jules Henri
Poincaré (1854 - 1912) e o alemão David Hilbert (1862 - 1943). Como pensadores e cientistas, os dois não poderiam ser mais
diferentes.

Poincaré era o intuitivo curioso, com interesses universalistas. Trabalhou na maioria das áreas da matemática, bem como em
física, engenharia, filosofia e muito mais. Para ele, a descoberta sempre foi muito mais importante que o rigor. Deixou vários
resultados sem demonstração e também algumas "demonstrações" não convincentes.

Em praticamente todos os casos, as demonstrações acabaram sendo dadas ou corrigidas posteriormente por outra pessoa, provando
que a fantástica intuição de Poincaré estava correta.

Hilbert era o formalista metódico, para quem o rigor era prioritário. Liderou o esforço realizado nas primeiras décadas do século
20 para assentar os raciocínios matemáticos em bases lógicas sólidas, evitando as contradições e paradoxos que surgiam em áreas
como a teoria dos conjuntos.

O "Programa de Hilbert" é um plano formulado em 1920 para tentar provar que todas as afirmações matemáticas podem ser
deduzidas de um pequeno número de sentenças intuitivamente verdadeiras, chamadas axiomas, usando argumentos lógicos que
nunca conduziriam a contradições.

Os dois homens encontraram-se pela primeira vez em 1886, durante uma visita de Hilbert a Paris. Em carta ao colega Felix Klein
(1849 - 1925), ele deixou registrada sua opinião sobre o francês: "Ele dá a impressão de ser muito jovem e nervoso. Mesmo
depois de termos sido apresentados, não parece ser muito amigável. Mas acredito que isso seja devido à sua aparente timidez, que
ainda não pudemos ultrapassar devido às nossas dificuldades com os idiomas."

Tanto quanto sabemos, o encontro seguinte só teria lugar 14 anos depois, no segundo Congresso Internacional de Matemáticos
(ICM, na sigla em inglês), em Paris, em 1900. Até hoje, é o mais falado de todos os ICMs. Ocorreu durante a Exposição
Universal, enorme exibição dos avanços da civilização, da ciência e da tecnologia na capital francesa, de abril a novembro de
1900. Talvez por isso, o congresso tenha tido uma atmosfera muito relaxada, com bastante tempo livre para que os participantes
pudessem apreciar as maravilhas da Exposição.

A essa altura, os dois homens já tinham se convertido nas maiores lideranças mundiais da matemática e, somado às fortes tensões
entre os seus países na época, é provável que isso tenha conduzindo a uma certa rivalidade entre eles. Nenhum dos dois havia
participado do primeiro ICM, em Zurique em 1897. No caso de Poincaré, a ausência deveu-se à morte de sua mãe. Mas ele
preparara o artigo "Sobre as relações entre a análise pura e a física matemática", no qual discutia como as suas disciplinas se
ajudam reciprocamente –que foi apresentado por outra pessoa.
Em 1900, Poincaré seria conferencista plenário do ICM e eleito presidente do Congresso. Em sua palestra falou sobre "O papel da
intuição e da lógica em matemática". Hilbert também foi convidado para ser conferencista plenário, mas demorou tanto para
responder que perdeu o lugar. Quando finalmente enviou o trabalho, só havia vaga na seção de Bibliografia e História, muito
menos nobre do que uma palestra plenária. Como explicar um atraso tão estranho?

A verdade é que Hilbert havia lido o artigo de Poincaré no ICM de 1897 e queria aproveitar o segundo congresso para lhe dar uma
resposta, fazendo uma apologia da matemática pura por si mesma. Tendo pedido a opinião do colega alemão Hermann Minkowski
(1864 - 1909), este respondeu: "O mais atraente seria tentar olhar o futuro e elaborar uma lista de problemas que os matemáticos
possam tentar resolver ao longo do próximo século. Dessa forma, você poderá fazer com que as pessoas falem da sua palestra
durante décadas."

Assim, em 8 de agosto de 1900, Hilbert apresentou na Universidade Paris-Sorbonne aquela que ainda é a mais famosa de todas as
palestras proferidas em ICMs: "Problemas matemáticos".

Hilbert listou 23 problemas que, na sua opinião, seriam importantes para o desenvolvimento da matemática no século que se
iniciava. No longo preâmbulo, fez uma reflexão sobre o conhecimento matemático, culminando na exclamação "In der
Mathematik gibt es kein Ignorabimus!" (em tradução livre: "Em matemática tudo pode ser sabido!").

Como vimos em coluna anterior, o teorema da incompletude de Gödel viria mostrar que tal otimismo não era realmente
justificado.

Na ocasião, a palestra de Hilbert não teve tanto impacto quanto talvez ele esperasse. Mas, ao longo do tempo, foi ficando cada vez
mais conhecida e a grande maioria dos 23 problemas acabou realmente tendo um papel muito importante no modo como a
matemática evoluiu ao longo do século 20.

O terceiro ICM foi em 1904 na bela cidade de Heidelberg, sede da mais antiga universidade da Alemanha. Hilbert apresentou o
trabalho "Sobre os fundamentos da lógica e da aritmética", no qual lançou as bases do "Programa de Hilbert". Poincaré não
participou nessa ocasião. Mas no quarto ICM, em 1908, em Roma, daria uma resposta às apresentações do alemão nos eventos
anteriores, por meio da palestra "O futuro da matemática".

Em 1909, foi a vez de Poincaré visitar o colega na sua universidade de Göttingen, que o prestígio de professores como Gauss,
Riemann, Noether, Klein, Minkowski e do próprio Hilbert, entre muitos outros, havia transformado numa das mais brilhantes do
mundo. Poincaré proferiu seis palestras, cinco delas em alemão, o que mostra que havia evoluído muito no idioma.

Esse foi o último encontro entre os geniais matemáticos. Três anos depois, Poincaré morreu em Paris, vítima de uma embolia.
Hilbert lhe sobreviveu por três décadas, mas os seus últimos anos foram muito entristecidos pela doença e pela ascensão totalitária
em seu país. Quando perguntado pelo ministro da educação nazista se a expulsão dos judeus havia afetado o Instituto de
Matemática de Göttingen, respondeu: "Afetado? Ele não existe mais, existe?!"

Segunda constante matemática mais famosa, número 'e' só perde para o Pi


Marcelo Viana – 11/08/2017

A querida leitora Cândida juntou R$ 1.000, fruto de muito trabalho, e agora quer investir. Fala com o gerente bancário, que lhe
propõe aplicação financeira por um ano com juros de 100%. Isto é, daqui a um ano ela terá mais R$ 1.000, totalizando R$ 2.000.
Uma proposta muito tentadora, sem dúvida.

Mas Cândida tem dúvidas, quer pensar mais, e o gerente fica com receio de perder a freguesa. Então, propõe uma alternativa:
dividir o ano em dois períodos iguais, com juros de 50% em cada um. A primeira reação dela é achar que o gerente está tentando
lhe passar a perna, trocando seis por meia dúzia: duas vezes 50% é o mesmo que 100%, certo?

Mas não é bem assim, explica o gerente. A partir do investimento inicial de R$ 1.000, em seis meses Cândida ganharia 50% (a
metade) desse montante, ou seja, ficaria com mais R$ 500. Em seguida, mantendo esses R$ 1.500 investidos por mais meio ano,
ganharia mais 50% desse montante, R$ 750. Desta forma, concluiria o ano com R$ 1.500 mais R$ 750, ou R$ 2.250. É bem
melhor do que na opção anterior, constata, satisfeita.

O gerente tenta convencê-la a assinar o contrato logo, mas agora ela está com a pulga atrás da orelha: se foi vantagem dividir o
período de investimento em dois semestres, como será se dividirem em três quadrimestres, cada um com juro de 33,33%? O
resultado final será R$2.370. Muito bom!

O bancário já está arrependido de ter proposto a alternativa. Cândida está desconfiada de que quanto mais períodos houver, mais
vantajoso será o investimento, e não vai parar até ter a certeza. Por exemplo, se dividirem o ano em quatro trimestes, em cada um
deles Cândida ganhará 25% (ou seja, um quarto) do valor investido. Então, começando com R$ 1.000, após três meses terá R$
1.000 vezes (1+1/4); após seis meses terá R$ 1.000 vezes (1+1/4)^2; após nove meses terá R$ 1.000 vezes (1+1/4)^3; e ao fim do
ano estará com R$ 1.000 vezes (1+1/4)^4. Faz a conta e verifica que o valor subiu sim: agora dá R$ 2.441. Ahá!!
A esta altura, Cândida já percebeu a regra geral: se dividirem o ano em N períodos iguais, ao final terá R$ 1.000 vezes (1 + 1/N)N.
Quando tiver um tempinho livre, Cândida vai tentar provar matematicamente que o valor sempre aumenta quando N aumenta (até
aqui, só verificou isso para alguns valores). Mas neste momento está mais interessada em outra questão: até onde dá para ir com
esta técnica? Será que se considerarem um número N grande chegam a R$ 3.000?

Muito antes dela, o matemático suíço Jacob Bernoulli (1605-1705) também se interessou por este tipo de questões. Isso nada tem
de surpreendente: na Suíça, calcular juros compostos é esporte nacional! Em 1683, Bernoulli observou que, embora o dinheiro vá
crescendo quando N aumenta, os incrementos são cada vez menores. Se usar um regime de juros semanais (com N=52), Cândida
terminará com R$ 2.692. Já se os juros forem diários (N=365), terminará com R$ 2.714, só R$ 22 a mais. Também é possível
mostrar matematicamente que à medida que N aumenta o valor da expressão (1+1/N)^N se aproxima de um certo número

2,718 281 828 459 045 235...

tanto quanto quisermos.

É a segunda constante mais famosa da matemática: só perde para o número π (Pi), e costuma ser representado pela letra e. Atente
para os pontinhos ao final: a expressão do número e continua indefinidamente! É outro daqueles números esquisitões (e muito
interessantes!) cujos dígitos não se repetem nem seguem nenhuma regra aparente. Parecem ir surgindo ao acaso.

Na verdade, este número já tinha aparecido bem antes, em um trabalho sobre logaritmos do matemático escocês John Napier
(1550-1617), publicado em 1618. Por essa razão, costuma ser chamado constante de Napier, constante neperiana. Só que nesse
trabalho o e estava apenas implícito, Napier nunca escreveu seu valor.

Em 1668, o alemão Nicolaus Mercator (1620-1687) publicou livro em que usou, pela primeira vez, a expressão "logaritmo
natural" para se referir aos logaritmos na base e. Mas Mercator também não escreveu o valor de e: o primeiro a se preocupar com
a questão foi mesmo Bernoulli. Em particular, Bernoulli observou que e está entre 2 e 3; mas não percebeu que e tivesse algo que
ver com logaritmos.

O primeiro a chamar o número de e foi Leonhard Euler (1707 - 1783), em 1731 (parece que o fato de ter usado a inicial do próprio
nome foi pura coincidência). No livro "Introductio in analysin infinitorum", de 1748, Euler provou vários fatos importantes sobre
este número, inclusive a seguinte igualdade:

e = 1 + 1/(1!) + 1/(2!) + 1/(3!) + 1/(4!) + ˑˑˑ + 1/(N!) + ˑˑˑ

onde N! representa o fatorial de N, ou seja, o produto de todos os números inteiros de 1 até N. Usando esta fórmula, Euler
conseguiu calcular o valor de e com quinze dígitos corretos. Hoje, com o uso de computadores, é possível calcular trilhões de
dígitos.

Cândida me escreveu há pouco para dizer que já resolveu a questão do investimento e agora tem outra curiosidade: quem é maior,
e^π ou π^e?

A olimpíada de matemática no Brasil e por que o rabo não abana o cachorro


Marcelo Viana – 18/08/2017

Um colega, professor da New York University, escreveu-me para parabenizar o IMPA e a SBM pelo êxito da Olimpíada
Internacional de Matemática (IMO, na sigla em inglês), em julho, no Rio de Janeiro.

Contou que a delegação norte-americana voltou elogiando a realização impecável. Cidadãos de países desenvolvidos não
costumam pensar no Brasil como modelo de organização. Um cartoon que vi uma vez no exterior explicava por que o inferno é
tão ruim: "Lá os amantes são suíços e os administradores são brasileiros".

Nos dias que precederam a IMO, jornalistas queriam saber por que ter um evento como este no Brasil. Sempre listei duas razões:
consolidar a reputação do país no palco internacional e, ainda mais importante, contribuir para melhorar o cenário da matemática
no Brasil.

Organizar a IMO 2017 foi resultado do trabalho sério feito partir da criação da Olimpíada Brasileira de Matemática, em 1978.
Desde 2005, também temos a maior competição escolar do mundo, a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas,
com 18 milhões de participantes.

Precisávamos provar a capacidade de executar um evento internacional complexo, com centenas de adolescentes de todas as
culturas. Não poupamos esforços: da segurança à alimentação, da montagem dos locais à programação das atividades, tudo foi
planejado. É gratificante receber elogios e começo a acreditar nos que disseram que foi "a melhor IMO de todos os tempos!"
Mas o grande objetivo sempre foi tirar proveito do encanto da Olimpíada para desmontar a imagem negativa da matemática na
sociedade brasileira. Olimpíadas motivam para a aprendizagem, revelam jovens talentosos e têm impacto de longo prazo no
ensino e na pesquisa do país.

Além de desmistificarem a ideia de que a disciplina é chata. Os que viram a alegria das cerimônias de abertura e encerramento da
IMO 2017, pessoalmente ou nas diversas mídias, sabem do que falo.

Por essa razão também traremos ao Brasil o Congresso Internacional de Matemáticos, de 1 a 9 de agosto de 2018, e estamos
promovendo o Biênio da Matemática 2017-2018. Os resultados de um esforço como este não são imediatos e talvez nunca
possamos mensurá-los. Mas as reações também me encorajam a pensar que estamos fazendo diferença.

Peraí!!! Mas o objetivo não era ganhar medalhas?!? Na IMO 2016 foram seis e ficamos em 15°. Desta vez, apenas três medalhas e
37° lugar. Isso não significa que a equipe fracassou, que o treinamento não deu certo? Seria, como alguém escreveu, mais uma
prova do colapso da nossa educação?

Poderia responder observando que a França, segunda maior potência mundial da matemática, ficou em 39º lugar. Ou que a
Finlândia, cujo sistema educacional é a inveja do planeta, terminou em 84º, logo atrás de El Salvador. Mas prefiro passar a palavra
a Artur Avila, ouro na IMO de 1995 e ganhador da Medalha Fields, maior prêmio da matemática mundial, em 2014.

Numa rede social ele postou: "Ok, vamos falar seriamente. O resultado foi aquém do esperado? Foi. Isso significa que o programa
de Olimpíadas que vem sendo realizado esteja indo pelo caminho errado? Não. Há certamente muito que pode ser melhorado, mas
diria que estamos indo na direção certa.

O que o resultado de uma IMO reflete? Muita coisa, inclusive a capacidade de um país motivar crianças a fazer Olimpíadas,
identificar aquelas com mais potencial, treiná-las. Também depende de sorte e de fatores emocionais –que podem ter sido a
diferença em relação a 2016: outros fatores não mudaram tanto. A prova foi atípica, e havia obviamente uma pressão inevitável, e
não usual, sobre os adolescentes."

Para Artur, o objetivo de Olimpíadas não deve ser apenas ficar entre os primeiros colocados, mas trazer benefícios educacionais,
"com consequências em pesquisa. Mostrar que a matemática pode ser divertida, criar certa disciplina e foco, identificar talentos a
serem observados com cuidado nas melhores instituições do país."

Segundo ele, "medalhas são um bom chamariz, a natureza humana faz com que a competição seja um bom incentivo. Mas existe
uma expressão em inglês, 'wag the dog': é quando questões secundárias se tornam o foco, em vez das fundamentais. Maximizar
medalhas é deixar o rabo abanar o cachorro."

Voltando à organização da IMO 2017. Sabia que a tarefa não seria fácil e que haveria surpresas no caminho. Mas nunca imaginei
nada parecido com a notícia que recebi em junho: o filho e provável sucessor do ditador Bashar Al-Assad, da conflagrada Síria,
integraria a delegação nacional!

Dei instruções para tratar a informação com o máximo de discrição e informei as autoridades brasileiras, serviços de inteligência e
a Polícia Federal, com quem construímos ótima parceria. Sem ninguém perceber, agentes da PF patrulharam a IMO e cercanias
durante o evento, atentos a todo e qualquer indício de problemas.

Mas nem a PF pode impedir adolescentes de serem... adolescentes: o jovem Al-Assad adora entrevistas, contar ao mundo de quem
é filho, mostrar que é "um sujeito igual a qualquer outro". Ignorando nossos apelos, jornalistas publicaram a notícia sensacional,
que poderia aumentar o risco de segurança para centenas de jovens e adultos do evento.

Felizmente, nada grave aconteceu até o último dia, quando a delegação síria embarcou de volta e eu pude, enfim, voltar a dormir.

Beleza da matemática de Maryam Mirzakhani e Marina Ratner é eterna


Marcelo Viana – 25/08/2017

Três anos atrás, no centro de convenções Coex em Seul, preparava-me para assistir a uma palestra do Congresso Internacional de
Matemáticos quando se sentou ao meu lado uma jovem matemática de cabelos curtos, parecendo muito cansada. Trocamos frases
de cortesia, e ela deu mostras de me conhecer. Eu certamente sabia quem era ela: Maryam Mirzakhani, da Universidade Stanford,
nascida no Irã em 1977 e primeira mulher a ganhar a medalha Fields, a distinção mais prestigiosa da matemática.

Num ano em que as Fields se destacaram pela diversidade –um brasileiro, um indiano, uma iraniana e um austríaco–, no Brasil
focávamos em destacar a façanha de Artur Avila, o primeiro laureado na história a realizar todos os estudos em um país em
desenvolvimento. Para o resto do mundo, era ainda mais notável que só então, pela primeira vez desde sua criação, em 1936, a
medalha Fields tivesse ido para uma representante da metade feminina da humanidade.
Acompanhada pelo marido e pela filha de três anos, Maryam estava visivelmente feliz. O esforço para participar nas atividades,
porém, era igualmente evidente. Sabíamos que lutava contra um câncer de mama, que quase a impedira de participar no
Congresso. Não conseguiu apresentar sua palestra, mas os organizadores optaram por só anunciar o cancelamento após a sua
partida, para evitar questionamentos inoportunos.

Do outro lado do mundo estava Marina Ratner. Judia nascida na União Soviética em 1938, ela emigrou nos anos 1970 para Israel
e os Estados Unidos, onde se tornou professora na Universidade da Califórnia em Berkeley. Eu a conheci pessoalmente cerca de
dez anos atrás, em uma conferência em Los Angeles. O também russo Vladimir Arnold afirmava que em seu país os alunos eram
ensinados a "trabalhar duro e a provar teoremas que se tornarão pedras fundamentais da ciência". Marina foi um exemplo dessa
magnífica tradição.

Ao contrário da maioria dos matemáticos, que produzem seus melhores resultados muito jovens, Marina já tinha mais de 50 anos
quando provou os espetaculares "teoremas de Ratner". Eles afirmam que certos objetos matemáticos –os fechos das órbitas de
fluxos unipotentes em espaços homogêneos– são extraordinariamente bem comportados. Os matemáticos usam a palavra "rigidez"
para se referir a afirmações desse tipo.

Essa descoberta tornou-se uma ferramenta poderosa para resolver problemas em muitas áreas, da teoria dos números aos sistemas
dinâmicos. Mas Marina nunca foi tão famosa quanto merecia. Sua personalidade reservada e o fato de trabalhar sozinha, sem
colaboradores nem alunos, talvez ajudem a explicar. Em um belo artigo no jornal "New York Times", minha colega Amie
Wilkinson, da Universidade de Chicago, conta que Marina a recusou como orientanda de doutorado, por achar que tinha
fracassado com outro aluno anteriormente.

Diferentemente de Marina, o talento de Maryam foi reconhecido muito cedo. Com 17 e 18 anos participou nas Olimpíadas
Internacionais de Matemática de 1994 e 1995, tendo obtido medalha de ouro nas duas. Meu colega Hossein Movasati, do Impa,
foi "treinador" da equipe iraniana nesses dois anos. "Percebi que seria tarefa muito difícil encontrar problemas desafiadores para
manter alunos como a Maryam pensando por um tempo. Eles resolviam tudo muito rapidamente, e logo fiquei sem questões para
propor."

Em 1998, quando Hossein já iniciava o doutorado no Impa, um acidente com um ônibus da Universidade Sharif, de Teerã, matou
sete alunos e dois motoristas. Maryam estava no ônibus, mas sobreviveu. Pouco depois, completou a graduação e mudou-se para
os Estados Unidos, onde fez o doutorado na Universidade Harvard, dando início a sua carreira meteórica.

Seu trabalho mais famoso pode ser resumido como um "teorema de Ratner para fluxos de Teichmüller". Também trabalhei nessa
área, e os especialistas acreditavam que esse tipo de resultado ainda não estava acessível, que muita matemática teria de ser feita
antes de chegar a um teorema tão potente. A União Matemática Internacional, ao conceder a medalha Fields a Maryam, destacou
que "é extraordinário descobrir que a rigidez dos espaços homogêneos tem um eco no mundo não-homogêneo".

Mas esse não foi o único elo comum entre Marina e Maryam. Amie Wilkinson explica ainda no artigo no "New York Times" por
que a carreira é tão difícil para as mulheres. "Há uma quantidade surpreendente de pressões sociais contra tornar-se uma
matemática. Quando você está em minoria, precisa de força e persistência acima do normal para resistir." E destaca o papel de
Mirzakhani e Ratner como modelos inspiradores. "As estudantes me dizem que o fato de eu ser professora as faz acreditar que a
matemática também é para mulheres. Fui inspirada dessa forma pela professora Ratner. Espero ter tido esse papel para a
professora Mirzakhani. E ela inspirou toda uma geração de jovens mulheres."

Marina Ratner morreu em 7 de julho, vítima de um ataque cardíaco. Maryam Mirzakhani sucumbiu ao câncer sete dias depois. A
magia de suas vidas persistirá por muito tempo. A beleza de sua matemática é eterna.

A matemática que pode derrotar monstros e cortar cartas


Marcelo Viana – 01/09/2017

No grande clássico grego "Odisseia", de Homero, concluída a guerra de Troia, o herói Ulisses inicia uma longa de viagem de
regresso à sua cidade, Ítaca. São dez anos de aventuras pelo Mediterrâneo, que vêm se somar aos dez anos da guerra. Em casa,
Ulisses já era dado como morto, e a beleza e riqueza de sua esposa, Penélope, atraem pretendentes cada vez mais atrevidos.
Acreditando sempre na volta do marido, ela inventa um pretexto astucioso para não casar com nenhum deles: antes, precisa
terminar de tecer a mortalha de seu sogro. Mas tudo o que Penélope tece durante o dia, desfaz à noite. E assim se passam duas
décadas.

Esta é uma situação fora do comum. Normalmente, o que queremos é terminar as tarefas logo que possível e isso requer esforço.
"Enrolar" para não acabar costuma ser mais fácil, inclusive há pessoas que são ótimas nisso. Como o meu filho, quando o assunto
é comer a sopa... Mas existem situações em que não terminar a tarefa pode ser impossível.

Suponha uma caixa com certa quantidade (finita) de bolas de sinuca, cada uma com um número (1, 2, 3...). A tarefa é retirar as
bolas da caixa, uma a uma. Você –lembre que não quer acabar a tarefa!– só tem o direito de substituir cada bola retirada por uma
quantidade qualquer de bolas, desde que todas tenham números menores. Por exemplo, se tirar da caixa uma bola 5 pode colocar
lá a quantidade que quiser de bolas 1, 2, 3 ou 4. Quando tira uma bola 1 não pode colocar nenhuma de volta, já que não existe bola
com número menor.

Terminar esta tarefa pode demorar muito tempo: afinal, a cada vez é possível colocar na caixa quantas bolas quiser.

No entanto, a matemática garante que, faça o que fizer, mais cedo ou mais tarde a caixa será esvaziada! Consegue entender e
explicar por quê?

Em tempos longínquos, o semideus Hércules precisou realizar doze tarefas, para mostrar o seu valor e ser recebido na morada dos
deuses. Uma delas era matar a Hidra de Lerna, um monstro com sete ferozes cabeças de serpente. O problema era que cada vez
que cortava uma cabeça surgiam duas novas! Hércules acabou vencendo. Mas descobrimos recentemente que isso não resolveu o
problema, pois a Hidra deixou filhotes! Precisamos encontrar um novo herói, uma leitora ou leitor com braço forte e coração
valente, para livrar a humanidade deste novo flagelo.

Os filhotes são muito piores do que a hidra original: podem ter qualquer número (finito) de cabeças e, além disso, de cada cabeça
podem nascer pescoços que sustentam mais cabeças, de onde nascem mais pescoços etc. Francamente, cara leitora, estimado
leitor, não ouso apresentar neste jornal de família uma foto dessa aberração! Apenas observe o diagrama e use a imaginação. Se
tiver coragem...

Para enfrentar tal monstro, o leitor dispõe de uma espada, com a qual pode cortar qualquer cabeça do "topo", ou seja, que não
tenha pescoço nascendo nela. Ao fazer isso, o pescoço que sustenta essa cabeça também morre. Infelizmente, o pescoço
imediatamente abaixo e todas as cabeças que sustenta duplicam-se instantaneamente, conforme descreve o diagrama.

Será que os coloquei em situação ainda mais desesperada que a de Hércules? Claro que não!

Os leitores desta coluna dispõem de uma arma que o herói nem imaginava (a educação básica dos semideuses deixava muito a
desejar, infelizmente): a matemática. Ela garante que, não importa como vá cortando as cabeças da hidra, mais cedo ou mais tarde
vai acabar com todas. Isto é mais difícil de provar do que no problema anterior, mas pode confiar na matemática: no final, o
monstro morre e o herói vence!

(Bom, na dúvida, talvez valha a pena começar praticando com os diagramas, antes de enfrentar as hidras de carne e osso).

Para terminar, vou dar uma tarefa mais simples, que os leitores podem realizar no conforto e segurança de seus lares. Só precisa
de um baralho –são 52 cartas no total, mas só vamos usar 45 e não importam quais. Separe as 45 cartas em pilhas, como preferir.
Por exemplo, podem ser quatro pilhas, com 3, 20, 9 e 13 cartas. Pode até ser uma pilha só, com 45 cartas, ou 45 pilhas, cada uma
com uma carta. A escolha é toda sua.

Em seguida, retire uma carta de cada pilha e forme com essas cartas uma nova pilha. Repita essa operação até chegar à situação
em que há exatamente nove pilhas, com 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 cartas. Nesse momento a tarefa acaba, já que, a partir daí, mais
nada muda na operação que descrevi.

Não esqueça que o seu objetivo é não acabar a tarefa nunca. Consegue? Caso contrário, qual é o número máximo de rodadas que
consegue fazer antes de terminar? O que muda se no lugar de 45 cartas usar outro número?

Estes problemas foram estudados por diversos matemáticos. Aprendi sobre eles, muito tempo atrás, com o grande divulgador da
matemática Martin Gardner.
Matemáticos ajudaram a ganhar a batalha do Atlântico
Marcelo Viana – 08/09/2017

Detesto admitir, mas matemáticos não costumam ser pop. Atores, esportistas, cantores, líderes religiosos, até alguns políticos o
são, mas, para os matemáticos, é muito mais difícil que se tornem conhecidos e apreciados pelo grande público. No entanto, há
exceções.

As crianças francesas do início do século 20 colecionavam figurinhas de celebridades da época, entre as quais Henri Poincaré.
Vinham nas caixas de chocolate Guérin-Boutron e o grande matemático era a figurinha 469. É comovente imaginar as
negociações ansiosas no recreio da escola: "Você tem o Poincaré? Dou o almirante Makaroff e dois reis da Inglaterra pelo
Poincaré!".

É difícil conceber isso nestes nossos dias de Neymar e Cristiano Ronaldo

Os outros exemplos que vêm à mente são figuras cuja trajetória de vida foi marcada pela tragédia. O genial matemático indiano
Ramanujan (1887-1920), protagonista do filme "O Homem que viu o Infinito", morto aos 32 anos na sequência de problemas de
saúde que o perseguiram durante toda a vida e que estavam muito ligados à pobreza.

Outro é o americano John Nash (1928-2015), matemático, economista, pioneiro da teoria dos jogos e celebrizado pelo filme de
grande circulação "Uma Mente Brilhante". A pesquisa notável, o drama da loucura, a incrível cura, e o trágico acidente que
causou a sua morte e de sua esposa. Tudo compõe uma história além do que a ficção poderia ter concebido.

Na época do filme, o jornal "Corriere de la Sera" perguntou a um colega italiano se a matemática poderia ter contribuído para a
loucura de Nash, ao que ele respondeu que sim. Quando questionei se ele acreditava mesmo nisso, o colega matemático
respondeu: "Claro que não. Mas o jornalista acreditava e ficaria desapontado se eu respondesse outra coisa."

Outro matemático conhecido do grande público é o inglês Alan Turing (1912-1954), considerado o criador da ciência da
computação e da inteligência artificial. Em seu trabalho "On computable numbers, with an application to the Entscheidungs
problem" (em tradução livre: "Sobre os números calculáveis, com uma aplicação ao Problema da Decisão"), publicado em 1936,
propôs um modelo simples –que atualmente chamamos "máquina de Turing universal"– e mostrou que tal máquina poderia
calcular tudo o que um ser humano pode calcular.

Os primeiros computadores modernos (programáveis) foram construídos uma década depois, com base nas ideias de Turing.

Foi com essas credenciais que Turing foi convocado às instalações do serviço secreto britânico em Bletchley Park, em 1938, para
participar na tentativa de quebrar o código Enigma, usado pelas forças armadas alemãs, especialmente a Marinha, em suas
comunicações secretas. Esse importante episódio da história da Segunda Guerra Mundial é tratado em diversos filmes recentes:
"U-571", "Enigma" e "Jogo de Imitação" –mais recente e que destaca o papel de Turing.

Vamos deixar bem claro: esses filmes estão cheios de erros históricos e omissões tendenciosas.

Não foram os britânicos os primeiros a quebrar o código Enigma: foram os poloneses que, inclusive, construíram uma cópia da
máquina codificadora Enigma e a forneceram ao serviço secreto britânico depois que a Polônia foi ocupada pela Alemanha e pela
União Soviética. Quando os alemães substituíram por uma máquina mais complicada, o trabalho do serviço secreto polonês
deixou de ser suficiente, mas continuou sendo extremamente útil.

E o Enigma não foi o único código importante quebrado na guerra: o matemático sueco Arne Beurling (1905-1986) quebrou o
código Geheimfernschreiber, considerado ainda mais complicado que o Enigma, e foi assim que o serviço secreto sueco ficou
sabendo com antecedência da operação Barbarossa, o plano dos alemães para invadir a União Soviética. Apesar de oficialmente
neutros, os suecos repassavam informações aos aliados. Mas o líder soviético Stalin recusou-se a acreditar que o amigo Hitler se
voltaria contra ele, e não preparou o seu país para a invasão.

Além disso, todo o brilhante trabalho dos matemáticos em volta de Turing teria sido em vão se não fosse o heroísmo dos
marinheiros britânicos (e não americanos, como quer nos fazer crer o filme "U-571") que caçavam submarinos alemães para
confiscar máquinas Enigma e livros de códigos, necessários para recalibrar a decodificação a cada vez que os alemães mudavam
as configurações das máquinas. A tarefa era perigosíssima, pois os oficiais alemães tinham ordens de afundar as embarcações com
todo mundo dentro, em caso de captura: mais de um bravo marujo britânico afundou junto em sua tentativa heroica de coletar o
material.

Dito tudo isto, Turing realmente revolucionou o ataque ao problema do Enigma. Uma das suas maiores contribuições foi uma
máquina eletromecânica chamada "bombe" que permitia analisar rapidamente as possíveis configurações da máquina Enigma
usadas pelos alemães. Isto era crucial para poder interpretar as mensagens enquanto as informações ainda eram úteis, pois os
alemães mudavam as configurações o tempo todo.

A descoberta do código Enigma foi importantíssima para neutralizar a ameaça dos submarinos alemães, contribuindo para a virada
da batalha do Atlântico em favor dos aliados e salvando milhares de vidas. Entre elas, as vidas de muitos brasileiros: entre maio de
1942 e julho de 1944 os submarinos alemães afundaram 31 navios com a nossa bandeira, causando mais de 1.050 mortes, o que
obrigou o governo Vargas a declarar guerra à Alemanha nazista.

A condição de cientista respeitado e herói de guerra não livraria Turing das amarguras que a vida lhe reservara. Condenado por
"atos homossexuais" em 1952, Turing aceitou um "tratamento" de castração química para evitar a prisão. Cometeu suicídio por
envenenamento dois anos depois, dias antes do seu 42° aniversário.

Em 2009, o governo britânico apresentou desculpas formais e a condenação de 1952 foi anulada pela rainha Elizabeth em 2013.

Uma nação que pretende ser forte precisa de ciência, dizia Napoleão
Marcelo Viana – 15/09/2017

Napoleão Bonaparte foi um dos maiores generais e estrategistas da história. Foi também o governante e estadista que reconstruiu o
estado francês dos escombros da revolução de 1789, fazendo da França a maior potência do seu tempo. O que é menos sabido é
que Napoleão também foi um matemático e cientista praticante, imerso nos avanços científicos de sua época e totalmente
consciente de sua importância para o desenvolvimento do país.

As anedotas do seu tempo na escola militar o descrevem como excelente aluno e extremamente ambicioso. Uma delas conta que o
professor e grande matemático Laplace passou o "Traité de mathématiques" de Bézout, com seus 4 espessos volumes, para os
alunos estudarem em dois anos. Sabendo que a matemática era indispensável nos exames para promoção, Napoleão focou-se
totalmente nessa tarefa, deixando de lado matérias como o latim, o alemão, a gramática e a ortografia.

Valeu a pena: apenas um ano depois, aos 16 anos, já era oficial de artilharia. Aos 24, seria general.

Napoleão manteve o interesse pela matemática e pela ciência ao longo da vida. É um raríssimo caso de governante que também
foi membro da academia de ciências de seu país (o Institut de France), participando ativamente nas sessões.

Apenas dois dias após tomar o poder na França, por meio do golpe de estado de 18 de Brumário, compareceu normalmente à
academia para apresentar um trabalho intitulado "Memória sobre as equações às diferenças misturadas". Para evitar
constrangimentos assinou, simplesmente, como cidadão Bonaparte.

Continuou apaixonado pela matemática e participando nos trabalhos da academia por um longo período, embora a frequência
fosse diminuindo à medida que aumentavam suas responsabilidades como governante.

Em 1802, escreveu a seu ex-professor Laplace: "Vivo a tristeza de não poder dedicar [ao estudo da Matemática] o tempo e a
atenção que ele merece. É mais uma ocasião para me afligir com a força das circunstâncias que me conduziram para outra
carreira, onde me encontro tão longe da carreira das ciências".

Outra história conta que, nas noites precedendo as grandes batalhas, Napoleão relaxava resolvendo problemas de geometria. Para
mim, faz todo o sentido: já fiz exatamente o mesmo, ainda que em circunstâncias menos dramáticas.

Talvez o lindo Teorema de Napoleão seja o resultado de uma dessas vigílias antes da batalha; não sabemos: ignoramos até se ele é
realmente de autoria do imperador ou lhe foi atribuído por alguém que queria tornar o teorema mais "interessante". Seja como for,
os leitores merecem conhecer essa pequena maravilha matemática.

Considere um triângulo qualquer ABC. Desenhe 3 triângulos equiláteros (com três lados de igual comprimento), como indicado
na figura: cada um deles tem um lado em comum com o triângulo ABC. Agora considere o triângulo LMN formado pelos centros
desses três triângulos ACY, BAZ e CBX. O Teorema de Napoleão diz que esse triângulo LMN é sempre equilátero: não importa a
escolha do triângulo ABC, os três lados do triângulo LMN têm o mesmo comprimento.

Em outra carta a Laplace, de 1812, em plena invasão da Rússia, Napoleão escreveu que "o avanço e a perfeição da matemática
estão intimamente ligados à prosperidade do Estado".
As campanhas napoleônicas viraram a Europa de pernas para o ar, causaram milhares de mortes e foram determinantes até para a
história do Brasil. Para alguns, ele foi um agressor sanguinário e um tirano, para outros um gênio militar e um estadista sem igual.

De todo o seu legado, talvez o mais importante seja a ideia –nova no seu tempo– de que uma nação que se quer forte e próspera
precisa de uma verdadeira política científica.

Duzentos anos depois, é hora de o Brasil aprender essa novidade.

Formação é calcanhar de Aquiles dos professores de matemática do Brasil


Marcelo Viana – 22/09/2017

Acabo de receber material muito interessante do meu colega Humberto Bortolossi, da Universidade Federal Fluminense,
intitulado "Formação de professores de matemática: O que é realmente necessário e prioritário?", que recomendo vivamente aos
leitores.

Humberto fez mestrado no Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada) e doutorado em matemática na PUC-Rio, com uma
excelente tese sobre otimização de redes de produção e distribuição energia.

Ele combina cultura acadêmica e tecnológica fora de série com uma diversidade de interesses de estudo igualmente invulgar:
educação em matemática, popularização da ciência, formação de professores e muito mais. Humberto tem mais uma grande
qualidade: ao contrário de tantos teóricos da educação que "pesquisam" o tema em seus gabinetes sem jamais chegarem perto da
sala de aula, ele põe a mão na massa e submete suas ideias e experiências ao duro julgamento da realidade.

A formação de professores é o calcanhar de Aquiles da nossa educação básica. O professor é elemento crucial da cadeia educativa
e, no entanto, a formação oferecida na maior parte das nossas licenciaturas em matemática é totalmente inadequada, além de
obsoleta. No Brasil, a esmagadora maioria dos licenciados da área é egressa de faculdades particulares com controles de qualidade
duvidosos. Muitas dessas instituições não têm jeito, precisam ser fechadas. Para outras, um efetivo controle por parte das
autoridades poderia fazer uma grande diferença. Mas nossas melhores universidades públicas também não estão isentas de
críticas.

Em artigo publicado em março de 2011 na revista "Notices", da American Mathematical Society (Sociedade Americana de
Matemática), o professor emérito Hung-Hsi Wu da Universidade da Califórnia, em Berkeley, pergunta: "Para formarmos bons
professores de francês, deveríamos exigir que eles aprendam latim, no lugar de francês? Afinal, latim é a língua mãe do francês e,
sendo um idioma mais complicado, aqueles que conseguirem aprendê-lo deverão estar bem habilitados para o francês."

Claro que é uma ironia mas, segundo Wu, tem muito a ver com o que fazem as licenciaturas em matemática em seu país. No
Brasil não é diferente.

Humberto cita outra observação de Wu: na formação do professor de matemática, em contraste com outras disciplinas que apenas
"olham para a frente", para o que será visto na pós-graduação, é indispensável devotar tempo considerável a "olhar para trás", isto
é, a analisar tópicos elementares de um ponto de vista avançado.

Ensinamos na escola que raiz cúbica de 2 é o número que elevado ao cubo dá 2. Mas nunca gastamos tempo para mostrar ao
licenciando que tal número existe. Para dividir duas frações devemos multiplicar a primeira pela inversa da segunda. Por quê?

Também não explicamos ao futuro professor de matemática o que significa realmente a expressão decimal de um número: porque
é que 0,99999999999999... é o mesmo que 1? Não ensinamos essas coisas porque supõe-se que elas são simples e o estudante já
aprendeu no ensino médio –as duas suposições estão erradas– e que na faculdade deve aprender coisas avançadas.

Deve-se aprender latim, para ensinar francês.

Mais de cem anos atrás, o grande matemático e educador alemão Felix Klein (1849-1925), outro que colocava as mãos na massa,
já criticava o fato de que "por muito tempo [] os homens da universidade preocuparam-se exclusivamente com as suas ciências,
sem considerarem as necessidades das escolas, nem mesmo se preocupando em estabelecer uma conexão com a matemática
escolar".

O resultado é o que Klein chamou "dupla descontinuidade na formação do professor": ao chegar à universidade, o futuro professor
é confrontado com ensinamentos avançados sem conexão aparente com os temas da escola básica; e, ao final dos estudos, quando
volta à escola como professor, vê-se na posição de ter que ensinar a matemática elementar tradicional, do mesmo modo de
sempre.

Nas palavras de Klein "seus estudos universitários permaneciam apenas uma lembrança mais ou menos agradável, que não tinha
nenhuma influência sobre o seu ensinar". Embora Klein escrevesse no pretérito, pensando na Alemanha, no Brasil tal situação
perdurou até o século 21.
Mudanças começaram a acontecer a partir do Projeto Klein em Matemática, realizado entre 2008 e 2012 pelas sociedades
científicas da área, com o apoio da Capes. O Mestrado Profissional para Professores de Matemática (Profmat) nasceu em 2011,
sob a influência das ideias de Klein, Wu e outros. Não é surpresa que o mestrado tenha sido "acusado" por alguns educadores de
valorizar demais o conteúdo matemático, e por alguns matemáticos de omitir tópicos avançados ensinados em muitas
licenciaturas.

A coleção de livros "Matemática para o Ensino" e a revista eletrônica "Professor de Matemática On-line", ambas da Sociedade
Brasileira de Matemática (SBM), são também produtos diretos do Projeto Klein.

Outra importante iniciativa em curso, com o apoio do Impa, é o Projeto Livro Aberto de Matemática, um esforço de professores –
universitários e da escola básica– para produzir, de maneira colaborativa, livros didáticos de matemática com excelência
acadêmica e licença aberta. Confira no site como colaborar.

Muito mais é necessário, evidentemente. Não tenho dúvida de que a "saída" passa pelo envolvimento cada vez maior da
comunidade matemática universitária nas questões do ensino da disciplina, em colaboração com a comunidade de professores da
escola básica e levando em conta os mais recentes avanços na pesquisa na área do ensino da matemática.

Nesse sentido, é urgente repensar as nossas licenciaturas em matemática. Existe um ótimo ponto de partida: o estudo de diretrizes
curriculares que a SBM vem aprimorando há alguns anos.

A criptografia moderna não existiria sem os números primos


Marcelo Viana – 29/09/2017

Em 1770, o matemático inglês Edward Waring (1736-1798) escreveu o livro "Meditationes Algebricae" ("Meditações sobre a
Álgebra"), onde se lê a seguinte afirmação: "Se p é um número primo, a quantidade 1 x 2 x 3 x ... x (p-1) + 1 dividida por p dá um
número inteiro. Esta elegante propriedade dos números primos foi descoberta pelo eminente John Wilson, um homem muito
versado em assuntos matemáticos".

Esta homenagem entusiasmada não é para ser tomada a sério: além de ser amigo e ex-aluno, Wilson apoiara a controversa escolha
de Waring como sucessor de Isaac Newton na Universidade de Cambridge. Havia um favor político a pagar...

Essa propriedade dos primos já havia sido mencionada pelo matemático e filósofo muçulmano Ibn al-Haytham, que viveu no
Egito em torno do ano 1000. Outro que fizera a descoberta antes de Wilson foi Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), embora
não a tivesse publicado. Mas nenhum deles provou a sua veracidade, eles apenas verificaram alguns casos.

Waring tentou justificar: "Teoremas deste gênero serão muito difíceis de provar por causa da falta de uma notação para
representar números primos". Ao ler isso, o grande Carl Friedrich Gauss (1777-1855) exclamou depreciativamente "Notationes
versus notiones!", querendo dizer que em matemática as noções são muito mais importantes que as notações.

Aliás, o teorema foi demonstrado logo em 1771, por Joseph-Louis Lagrange (1736-1813), o qual também provou a recíproca: se p
não é primo, então o quociente de 1 x 2 x 3 x ... x (p-1) + 1 por p não é um número inteiro. Talvez devesse ser chamado teorema
de Lagrange. Mas ficou "teorema de Wilson" mesmo.

A definição é simples, todo mundo aprende na escola: um número inteiro maior que 1 é primo se ele não pode ser escrito como
produto de dois números inteiros maiores que 1. Mas a teoria dos primos é rica e sofisticada. Euclides mostrou por volta de 300
a.C. que existe uma quantidade infinita de primos. Atualmente, o maior conhecido é 2^(274.207.281 – 1), que tem 22.338.618
dígitos.

Euclides também provou o teorema fundamental da aritmética: "todo inteiro maior que 1 pode ser escrito como produto de primos
e essa escrita é única, a menos da ordem dos fatores". Assim, os primos são as peças básicas com que são construídos todos os
números inteiros. A propósito, é por isso que eles são chamados desse jeito: "primus" é "primeiro", em latim.

Dois é o único primo par e no começo todos os ímpares são primos: 3, 5, 7. Mas a partir do 9 = 3 x 3 começam a aparecer lacunas
–por exemplo, de 114 a 126 não há um único primo– e fica muito difícil prever quando surgirá o próximo.

O teorema dos números primos, provado pelo francês Jacques Hadamard (1865-1963) e pelo belga Charles-Jean de la Vallée
Poussin (1866-1962), afirma que "a fração dos números menores que um dado N que são primos é aproximadamente 1/log N",
onde log N representa o logaritmo natural. Portanto, a percentagem de primos entre 1 e N vai diminuindo à medida que N cresce.

O alemão Don Zagier, especialista em teoria dos números, escreveu uma vez que "os primos surgem como ervas daninhas entre os
números inteiros, parecendo não obedecer a nenhuma regra a não ser a do acaso, mas também apresentam uma regularidade
impressionante e há leis governando o seu comportamento, às quais eles obedecem com precisão quase militar".
Os matemáticos Ben Green, britânico, e Terence Tao, australiano, conseguiram avançar muito no estudo do comportamento
"aleatório" dos primos, o que lhes permitiu provar em 2004 que existem progressões aritméticas m + r, m + 2r, m + 3r, ..., m + kr
de primos com "comprimento" k tão grande quanto se queira. Esse resultado espetacular valeu a Tao a Medalha Fields, prêmio
mais prestigioso da matemática, em 2006. A progressão aritmética de primos mais longa que se conhece atualmente tem
comprimento 26.

Em geral, pode ser muito difícil verificar se um dado número é primo ou não: claro que sempre podemos tentar dividir por todos
os números menores que ele, mas isso demora muito se o número for grande. O melhor método conhecido foi descoberto em 2002
pelos indianos Manindra Agrawal, Neeraj Kayal e Nitin Saxena, mas mesmo ele é pouco eficaz para ser usado na prática.

Ainda mais difícil é, dado um inteiro qualquer, encontrar a sua fatorização em números primos dada pelo teorema fundamental da
aritmética. Essa dificuldade tem um lado muito positivo: está na origem da principal aplicação prática dos números primos, a
criptografia moderna.

Nós matemáticos estamos habituados a que nos perguntem para que serve o que fazemos, e nem sempre é fácil responder. Fico
imaginando um matemático do Egito antigo pedindo financiamento para sua pesquisa sobre primos.

"Mas isso é matemática pura, para que serve?", questiona o faraó. "É muito bonito, majestade", responde o colega, "e também vai
ser muito importante quando inventarem a tecnologia da informação, daqui a 4.000 anos".

Será que conseguiria o dinheiro?

Para terminar, proponho um debate polêmico. O número 1 costumava ser considerado primo, mas no século 20 foi excluído da
lista.

Outros animais têm o sentido do número, mas só a humanidade conta


Marcelo Viana – 06/10/2017

No grande clássico "Número, a linguagem da ciência", publicado pela primeira vez em 1930, o historiador da matemática Tobias
Dantzig (1884 - 1956) conta o seguinte episódio.

Um proprietário estava determinado a matar um corvo que fizera o ninho numa torre da sua casa. O problema é que de cada vez
que entrava na torre o pássaro fugia, ficava observando e só voltava depois que o homem saía da torre.

O dono recorreu a um estratagema: entraram dois homens juntos na torre e só saiu um. Mas o pássaro não se deixou enganar: só
voltou ao ninho depois que o segundo homem saiu. Nos dias seguintes repetiram o truque, sucessivamente com dois, três e até
quatro homens, mas sempre sem sucesso.

Finalmente, entraram cinco homens na torre e saíram quatro. Dessa vez deu certo: incapaz de distinguir entre quatro e cinco o
corvo voltou ao ninho.

Existem outras evidências de que algumas espécies de animais têm um "sentido do número". Dantzig também menciona um
inseto, a vespa solitária, que põe os ovos em células individuais nas quais armazena, para cada ovo, lagartas vivas que servirão de
alimento ao recém-nascido.

O que é notável é que o número de lagartas em cada célula é sempre exatamente o mesmo, embora varie segundo a espécie da
vespa: algumas espécies colocam 5 lagartas em cada célula, outras 12, algumas chegam a colocar 24.

Como é que a vespa faz? Mais incrível ainda, existe uma espécie em que o macho é bem menor que a fêmea. De algum modo, a
mãe adivinha se nascerá um macho ou uma fêmea e coloca 10 lagartas para os ovos femininos e apenas 5 para os masculinos.

Há outros exemplos, mas o sentido do número parece mesmo estar restrito a algumas espécies de aves e de insetos. É
surpreendente que nunca tenha sido observado em mamíferos, nem sequer nos primatas superiores, com exceção dos humanos.
Aliás, a maioria de nós também não consegue distinguir números maiores do que quatro "no olho", ou seja, sem contar.

A técnica da contagem é a grande descoberta da humanidade para lidar com os números de modo muito mais potente do que
qualquer outra espécie. Ninguém sabe quando começamos a contar, como nem por quê. Nem sequer sabemos se começamos a
contar com números cardinais (um, dois, três...) ou ordinais (primeiro, segundo, terceiro...).

A primeira teoria é a mais popular entre os especialistas. Motivada por necessidades práticas, a humanidade teria sido levada a
representar certos objetos (ovelhas, pessoas, mercadorias) por meio de outros objetos (pedras, entalhes em pedaços de madeira,
nós em cordas).
Até o dia, que provavelmente se repetiu em inúmeros locais e civilizações, em que alguém percebeu que existe algo em comum
entre "três ovelhas" e "três pedras", que é o conceito abstrato de "três". Nesse dia nasceu o conceito de número.

Algumas línguas preservam vestígios do período anterior. Por exemplo, no idioma das ilhas Fiji a palavra para 10 é "koro" se
estivermos falando de cocos e "bolo" se o assunto for barcos. E o povo Tauade da Nova Guiné usa palavras diferentes para falar
de pares de machos, pares de fêmeas e pares mistos. Talvez seja por isso também que, em português, falemos de "alcateia de
lobos", mas nunca de "alcateia de ovelhas".

Mais recentemente, alguns antropólogos têm sugerido que a principal motivação para a descoberta da contagem teria sido a
realização de certos rituais religiosos, que precisam ser executados em ordem bem definida. Isso teria conduzido a humanidade,
inicialmente, a contar em números ordinais.

Seja como for, está claro que a descoberta da técnica da contagem foi difícil e complexa. O fato de termos duas mãos, dois olhos
etc. certamente facilitou o acesso ao conceito abstrato de número 2 (o 1 é um caso à parte: os próprios gregos da era clássica não
consideravam 1 um número!). Mas o passo seguinte é muito mais recente do que se poderia imaginar.

Na língua dos sumérios, o povo da Mesopotâmia que inventou a escrita cinco mil anos atrás, a palavra "es" significa tanto "três"
quanto "muitos". Certas línguas africanas que sobreviveram até os nossos dias têm palavras apenas para "um", "dois" e "muitos".

A palavra inglesa "thrice" pode significar "três vezes" ou "muitos". Em francês, a semelhança entre "trois", três, e "très", muito,
também pode ser um indício semelhante de um estágio primitivo da técnica da contagem.

Os nativos das ilhas do estreito de Torres, próximo da Austrália, foram um passo adiante: "urapun" significa 1, "okosa" significa 2
e então "okosa-urapun" é 3 e "okosa-okosa" é 4. Certas línguas da Amazônia brasileira, da África e da Austrália usam construções
idênticas.

O famoso matemático e economista americano David Gale (1921-2008) conta a seguinte história em um de seus artigos, que
afirma ser verdadeira –e eu acredito.

Era uma vez uma menininha de três anos chamada Clara, que tinha acabado de aprender a contar. Ela conseguia contar as cadeiras
da sala e os degraus da escada. Um dia o pai decidiu testá-la. "Filha, aqui estão quatro pirulitos para você". Mas só entregou três.
Clara pegou os pirulitos e contou obediente: "Um, dois, quatro". Mas então, confusa: "Cadê o terceiro, papai?"

A matemática pode contribuir para uma vida amorosa mais feliz


Marcelo Viana – 13/10/2017

Todo mundo conhece: "João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não
amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história."

Será que a matemática poderia ter ajudado os personagens de Carlos Drummond de Andrade a terem finais mais felizes?

O problema do casamento pode ser formulado da seguinte forma, na versão clássica (mencionarei outra daqui a pouco).

Temos dois grupos de pessoas: "homens" e "mulheres". Cada homem tem uma lista de mulheres com quem aceitaria se casar,
ordenada pela sua preferência. Do mesmo modo, cada mulher tem uma lista de homens aceitáveis, elencada na ordem de sua
preferência.

Como emparelhar os homens e as mulheres de modo a melhor atender essas preferências? Será que existe sempre algum
emparelhamento estável ("à prova de divórcio"), que não deixe separada nenhuma dupla (formada por um homem e uma mulher)
que prefeririam ficar juntos do que com seus cônjuges?

Pois bem, a resposta é sim! Mais ainda, um emparelhamento estável pode ser obtido usando o seguinte método.

Inicialmente, cada mulher pede em namoro seu homem preferido, o primeiro na sua lista. Cada homem rejeita as mulheres fora de
sua lista de mulheres aceitáveis; caso tenha recebido pedidos de aceitáveis, aceita temporariamente aquela em melhor posição na
lista e rejeita as demais.

Isto encerra a primeira rodada, com alguns homens e mulheres comprometidos temporariamente, e outros ainda solteiros.

Em seguida, cada mulher que permanece solteira pede em namoro seu homem preferido dentre os aceitáveis que não a rejeitaram.
Caso não exista mais nenhum nessas condições, fica solteira até o final.
Novamente, cada homem nega os pedidos das indesejadas e, se tiver recebido um ou mais convites das aceitáveis, une-se àquela
em melhor posição, rejeitando as demais. Pode até dispensar a namorada aceita antes, se for o caso, e trocá-la por outra que esteja
fazendo o pedido e que ele prefira.

Este procedimento vai sendo repetido até que nenhuma mulher seja rejeitada. Nesse ponto todas ou estão comprometidas ou foram
rejeitadas pelos seus homens aceitáveis. No primeiro caso, o compromisso torna-se definitivo e o casamento é celebrado. No
segundo, fica solteira. Homens sem pedidos também ficam solteiros.

Este método foi proposto em 1962 por David Gale (1921-2008), matemático americano, e Lloyd Shapley (1923-2016),
matemático e economista britânico.

Em trabalho publicado na revista "American Mathematical Monthly", provaram matematicamente que este método sempre produz
um emparelhamento estável num número finito de etapas.

Além disso, o resultado é o emparelhamento ótimo para as mulheres, ou seja, dentre todos os estáveis o que melhor atende as suas
preferências.

Claro que podemos trocar os papéis de homens e mulheres e, nesse caso, obteremos o emparelhamento estável ótimo para os
homens. Mas o que é melhor para as mulheres é pior para os homens e vice versa: quem sai ganhando é sempre o sexo que tem a
iniciativa de fazer o pedido.

Nesse mesmo artigo "College admission and the stability of marriage" (em tradução livre, "Entrada na universidade e a
estabilidade do casamento"), Gale e Shapley também resolvem outro problema relacionado, relativo ao processo seletivo para
universidades.

De um lado, universidades, cada uma oferecendo certo número de vagas para alunos. Do outro, candidatos com uma lista de
instituições onde aceitaria se matricular, ordenadas por preferência. Cada universidade também tem sua lista de alunos que
aceitaria receber, ordenada por sua preferência.

O problema é como alocar os candidatos às vagas para melhor atender às preferências das duas partes.

Em particular, deseja-se que essa correspondência seja estável, isto é, que não exista nenhuma dupla formada por uma
universidade U e um estudante E tal que E prefere U à universidade que o admitiu (ou está sem nada e prefere U a ficar sem
nada), e U prefere E a algum estudante que admitiu (ou prefere dar uma vaga a E do que ficar sem preenchê-la).

Mais uma vez, Gale e Shapley provam existir sempre um emparelhamento estável.

A prova é simples, mas engenhosa: consideram cada vaga como se fosse uma universidade diferente e então o processo seletivo
transforma-se num "casamento" dos candidatos com as vagas. Desta forma, o problema fica reduzido ao problema anterior, que
explicamos como resolver. Esta observação ajuda a entender por que a matemática é tão poderosa: como estuda padrões, ou seja,
características profundas que são comuns a diferentes situações, ela é capaz de aplicar ideias de um problema (casamento) a outro
que parece completamente diferente (vestibular).

Embora na época do artigo os autores desconhecessem aplicações, este modelo se adequa perfeitamente à situação em que a
preferência das universidades se baseia na nota de um exame, como é o caso do Brasil e outros países.

O algoritmo de Gale-Shapley, com os candidatos fazendo as propostas às universidades, assegura aos alunos a distribuição estável
ótima das vagas universitárias. Não haveria impedimento a usá-lo no Sisu (Sistema de Seleção Unificada), mas, até onde sabemos,
isso não é feito.

Questionados sobre a natureza de seu trabalho, Gale e Shapley sempre se declararam matemáticos. Aliás Gale dizia que "qualquer
argumento que seja usado com suficiente precisão é matemático". Por suas contribuições, em 2012 Shapley recebeu o prêmio
Nobel da Economia, partilhado com o americano Alvin Roth, nascido em 1951, que liderou a aplicação da teoria do
emparelhamento aos mercados da vida real. A essa altura, Gale já havia falecido.

Marilda Sotomayor, da FGV/RJ, pesquisadora pioneira da teoria do emparelhamento, colaborou muitos anos com Gale e também
com Roth, com quem escreveu o livro "Two-sided matchings. A study in game theoretic modeling and analysis".

Em seus trabalhos, ela menciona muitas outras aplicações da teoria, por exemplo na alocação de médicos residentes em hospitais
universitários, na admissão de estudantes em universidades brasileiras, nos mecanismos de leilões ou no alojamento de estudantes
em dormitórios.

Este último, conhecido como problema do companheiro de quarto ("roommate problem"), pode ser visto como uma versão
flexível do problema do casamento em que não há "homens" e "mulheres", apenas pessoas que serão agrupadas em duplas
segundo as suas preferências. Gale e Shapley provaram que este problema nem sempre tem solução estável.
Impa celebra 65 anos de contribuições à matemática e ao Brasil
Marcelo Viana – 20/10/2017

"O Presidente do Conselho Nacional de Pesquisas, usando das atribuições que lhe confere o artigo 8o da Lei 1.310, RESOLVE
criar o Instituto de Matemática Pura e Aplicada". Com esta fórmula simples, em portaria datada de 15 de outubro de 1952, o
contra-almirante Álvaro Alberto (1889-1976), cientista e presidente fundador do CNPq, deu existência a uma das instituições mais
destacadas da ciência brasileira, que tenho o privilégio de dirigir.

À época, o Impa não tinha sede: foi alojado temporariamente numa sala do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, fundado três
anos antes. E seu corpo científico era diminuto: além do diretor, o astrônomo Lélio Gama (1892-1981), também responsável pelo
Observatório Nacional, o novíssimo instituto contava apenas com os jovens matemáticos Leopoldo Nachbin (1922-1993) e
Maurício Peixoto, nascido em 1921 e, aos 96 anos, pesquisador emérito do Impa.

Eram poucos, mas bons: Nachbin e Peixoto viriam a ser os primeiros brasileiros convidados a proferir palestras no Congresso
Internacional de Matemáticos, uma das maiores distinções na carreira de um matemático. Os pesquisadores do Impa também não
tinham salário: a remuneração permaneceu precária até os anos 1970, quando a carreira foi regulamentada.

Hoje, o Impa é um dos centros de pesquisa em matemática mais reconhecidos do mundo. A qualidade do trabalho realizado por
seus pesquisadores está no nível das melhores instituições internacionais. Também graças a esse prestígio, conquistamos a honra
de realizar o Congresso Internacional de Matemáticos de 2018, no Rio de Janeiro. Em mais de um século de história, será a
primeira vez que o principal evento mundial da disciplina terá lugar ao sul do equador.

O Impa ostenta ainda a distinção de ter "produzido" um ganhador da maior distinção da matemática: seu pesquisador Artur Avila,
doutor pelo Impa, é o primeiro laureado da Medalha Field que não só nasceu como cresceu e fez todos os seus estudos em um país
em desenvolvimento.
Por que o Impa deu tão certo? Vejo três razões principais:

1) Intransigência quanto à qualidade em todas as atividades, especialmente na contratação de pesquisadores, por meio de
chamadas internacionais e tendo o mérito como critério fundamental. Em 2016, foram 47 candidatos de 23 países, para duas
vagas.

2) Flexibilidade de regras e procedimentos, especialmente na admissão de alunos, de modo a abrir as portas aos melhores: com
alguma frequência, alunos brilhantes concluem o doutorado no Impa antes de terem terminado a graduação, ou até o segundo
grau.

3) Abertura ao exterior, colaborando com as melhores instituições internacionais e recebendo visitantes de todo o mundo. Hoje, 20
dos 47 pesquisadores são estrangeiros.
E a sorte, não teve um papel? Claro que teve. É como me explicou um colega escocês que gosta de jogar golfe: "Quanto mais eu
treino, mais sorte tenho!"

Em 1957, ocorreu o primeiro Colóquio Brasileiro de Matemática, que o Impa realiza a cada dois anos desde então. Muito da
matemática brasileira foi construída em torno dele. No mesmo ano, o instituto mudou para uma sede na rua São Clemente, em
Botafogo. Em 1962, começaram os programas de mestrado e doutorado. Em 1967, o Impa mudou novamente, dessa vez para a rua
Luís de Camões, no centro do Rio.

No ano seguinte, Lélio Gama foi substituído na direção por Lindolpho de Carvalho Dias. Por 22 anos, com sua sabedoria
tranquila, Lindolpho pilotou a consolidação do instituto, com destaque para o crescimento do corpo científico e a construção da
sede própria, inaugurada em 1981 no Jardim Botânico, imersa na mata atlântica da Floresta da Tijuca.

Elon Lages Lima foi eleito diretor para o período de 1989 a 1993. Ele colocou seu enorme prestígio acadêmico a serviço da causa
da educação: o PAPMEM (Programa de Aprimoramento de Professores do Ensino Médio) - que criou em 1990 e continua ativo -
abriu uma importante frente de atuação do instituto, por onde já passaram mais de 73 mil profissionais.

Em 1993, assumiu Jacob Palis, que ocuparia o cargo de diretor por dez anos. Foi um período de extraordinário crescimento do
prestígio mundial do instituto - o qual, inclusive, foi sede da União Matemática Internacional de 1991 a 1998, quando Jacob era o
secretário-geral da entidade. Outro fato marcante do seu mandato foi a qualificação do Impa como Organização Social, em 2001.

A tendência de internacionalização continuou na gestão de César Camacho, de 2004 a 2015, marcada também pela renovação do
quadro científico, com a contratação de jovens pesquisadores. A criação da OBMEP (Olimpíada Brasileira de Matemática das
Escolas Públicas) reiterou o compromisso do Impa com a disseminação do conhecimento matemático. É a maior competição
acadêmica do mundo, com 18 milhões de participantes, de mais de 53 mil escolas, cobrindo 99% dos municípios brasileiros.

Os últimos dois anos vêm sendo marcados pela organização de dois eventos maiores, a Olimpíada Internacional de Matemática
2017 e o Congresso Internacional de Matemáticos 2018, e pelo enorme esforço de popularização científica que representa o
Biênio da Matemática 2017-2018, com suas inúmeras atividades, entre as quais o Festival da Matemática, aproximando a
matemática da sociedade brasileira.
Aos 65 anos de idade, o Impa continua um jovem cheio de sonhos e ambições por realizar. Algumas de nossas metas são estender
a Olimpíada de Matemática para o Ensino Fundamental I; construir o novo campus, em terreno adquirido por meio de doação
privada; contribuir para melhorar o ensino básico do Brasil; ajudar o país a alcançar o grupo de elite da matemática (grupo 5) na
União Matemática Internacional; e colaborar para que o Brasil ganhe Medalhas Fields com regularidade. Há ainda muitos outros
desafios a vencer.

Não há matemática que explique orçamento irrisório para a ciência


Marcelo Viana – 27/10/2017

Fui à Fundação Oswaldo Cruz quarta-feira dar uma palestra a meninas e meninos de escolas da periferia do Rio de Janeiro. O
Museu da Vida da Fiocruz comemora a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia e o que vi lá foi comovedor: crianças de todas
as idades, com uniformes das redes municipais e estadual de ensino, sorrisos nos lábios e brilho no olhar, descobrindo segredos do
Universo, da vida e do homem que só a ciência pode revelar.

No prédio da antiga cavalariça da Fundação, no meio de tantas atividades e animação, vi o futuro do Brasil sendo tecido.

Mas o futuro é, na melhor das hipóteses, incerto.

Na véspera, no Pavilhão do Parque da Cidade em Brasília, o ministro Gilberto Kassab (do Ministério de Ciência, Tecnologia,
Inovações e Comunicações, o MCTIC) conclamava a comunidade científica e a sociedade a sensibilizar a área econômica do
governo e o Congresso Nacional para a importância da ciência para o Brasil.

Apenas algumas décadas atrás, o Brasil era um país cronicamente subdesenvolvido, vítima da baixa produtividade e das doenças
da pobreza, e condenado a importar o conhecimento e a tecnologia necessários a sua subsistência.

É à ciência, acima de tudo, que devemos o avanço alcançado. Instituições como o Observatório Nacional –que comemora 190
anos– a Fiocruz, a Escola de Agricultura Luiz de Queiroz, o Instituto Butantã, entre outras introduziram o Brasil na era do
conhecimento. Embrapa, Petrobrás, Embraer e suas congêneres mostraram como o conhecimento científico pode ser incorporado
aos processos produtivos, e mudaram o país.

Todo esse investimento com evidentes contribuições ao país corre sério perigo. O orçamento do MCTIC aprovado na Lei do
Orçamento Anual 2017 era de R$ 5 bilhões. Mas esse valor foi reduzido para R$ 2,8 bilhões, o mais baixo na série histórica, com
impacto brutal nas ações do ministério, de suas agências –como o CNPq e a Finep– e de seus institutos, entre os quais o Impa, que
dirijo.

Alguns dirão que é uma consequência lógica do estado da nossa economia, da mera falta de recursos. Mas esse argumento não se
sustenta face à desproporção entre os relativamente pequenos valores de que necessita a ciência brasileira –e o comprovado
retorno econômico e social do investimento– e o tamanho do gasto do estado nacional.

Outros alegarão que precisamos mudar o modelo de financiamento de pesquisa, que em outros países a ciência é bancada pela
iniciativa privada. Vamos deixar bem claro: isso não é verdade. Em qualquer país do mundo, a ciência básica é financiada pelo
poder público.

A lei do teto de gastos (Emenda Constitucional 95), aprovada em dezembro de 2016, prevê que o orçamento federal só pode
aumentar de acordo com a inflação. Mas, incrivelmente, a proposta em discussão no Congresso Nacional prevê para o MCTIC um
orçamento menor em 2018, quando comparado a 2017. Não há matemática que explique esse absurdo.

A ser confirmada, esta previsão orçamentária terá efeito devastador na pesquisa em curso no país e, de forma ainda mais direta,
nos institutos do MCTIC, que ocupam posição central no sistema científico nacional.

No caso do Impa, por exemplo, a atual proposta orçamentária põe em risco a realização no próximo ano de atividades
fundamentais do instituto, com grande impacto no nível básico, como a bem-sucedida OBMEP (Olimpíada Brasileira de
Matemática das Escolas Públicas). A OBMEP envolve anualmente mais de 18 milhões de crianças e 53 mil escolas, em
praticamente todos os municípios brasileiros, com custo inferior a R$ 3 por aluno e comprovada melhora no desempenho escolar
de todos os alunos.

Para piorar, 2018 é um ano-chave do Biênio da Matemática 2017-2018, iniciativa em prol da Matemática protagonizada pelo Impa
e referendada pelo Congresso Nacional por meio da Lei 13.358. Inúmeras atividades estão previstas ao longo do ano, tendo como
foco disseminar a Matemática na sociedade brasileira e contribuir para a melhora do ensino no país.

Entre 1º e 9 de agosto de 2018, o Rio de Janeiro abrigará o Congresso Internacional de Matemáticos, o mais importante evento
mundial da área, que remonta ao século 19 e que nunca foi realizado no hemisfério sul. Será o culminar de décadas de trabalho
para colocar a matemática brasileira entre as melhores do mundo.
Além da ciência, a reputação do nosso país está em jogo.

A produção de boa cerveja revolucionou a estatística matemática


Marcelo Viana – 03/11/2017

Pesquisas eleitorais são feitas por meio de entrevistas a eleitores. Sejam pessoalmente, por telefone, e-mail ou outro meio, essas
enquetes custam tempo e dinheiro. Está fora de questão entrevistar todo mundo, os pesquisadores precisam se contentar com uma
pequena amostra de 1.000 ou 2.000 pessoas ou até menos. Como escolher esse grupo, de modo que o resultado seja
representativo? E como avaliar quão representativo ele é, para um dado tamanho da amostra, como determinar a margem de erro
da pesquisa?

Problemas semelhantes surgem o tempo todo nas mais diversas áreas de atividade. Ao longo de pouco mais de cem anos, foram
desenvolvidas diversas ideias e técnicas que fazem desta área da estatística uma ferramenta poderosa, com aplicações bilionárias
em todo o setor produtivo: controle de qualidade industrial, desenho eficaz de testes e muito mais. O que poucos sabem é que tudo
começou motivado pelo nobre objetivo de produzir boa cerveja.

Ao final do século 19, a famosa Guiness, de Dublin, capital da Irlanda, era a maior cervejaria do mundo. Era também um
fantástico local de trabalho: contratava os mais brilhantes jovens cientistas e lhes dava total liberdade para desenvolver suas ideias
em proveito da empresa. Era a Google da época. Foi assim que William S. Gosset (1876 - 1937), recém-formado da Universidade
de Oxford, foi contratado em 1889.

A Guiness estava expandindo a produção, tentando cortar custos, e a preocupação era manter a qualidade de sua lendária cerveja,
densa, escura e amarga. A essa altura, a fábrica já consumia mais de 2.000 toneladas de lúpulo por ano –usado para perfumar a
cerveja– e era impossível verificar a qualidade de todo o fornecimento. Os técnicos testavam por amostragem, mas não havia
modo seguro de saber se as amostras eram suficientes, nem de interpretar os resultados. Se uma amostra dá resultado um pouco
melhor do que outra, como saber se a diferença é significativa ou um mero acaso?

Gosset foi convidado a ajudar. A escolha parece ter sido pelo fato de que –por ter estudado um pouco de matemática em Oxford
com o astrônomo real Sir George Airy (1801 - 1892) e outros professores– ele deveria ter "menos medo" desse tipo de tarefa que
seus colegas químicos

De modo empírico, por experimentação, Gosset foi avaliando o grau de confiabilidade dos resultados de uma amostragem, duas
etc. Deste modo, desenvolveu uma série de ideias que viriam a transformar esta área da ciência, chamada inferência estatística, em
um instrumento bilionário. Seus chefes estavam eufóricos: as ideias de Gosset conferiam à Guiness uma grande vantagem
competitiva sobre a concorrência.

Mas ele queria mais: ir além da experimentação e entender a matemática por trás das observações. Pediu e conseguiu da empresa
o direito a passar um ano estudando e pesquisando com Karl Pearson (1857 - 1936), professor do renomado University College de
Londres.

Ao final, Gosset estava ansioso para publicar seus resultados científicos, partilhá-los com todos. Mas a Guiness não queria abrir
mão da vantagem estratégica. Após muita argumentação, consentiu em deixá-lo publicar os aspectos matemáticos do trabalho,
desde que o fizesse sob pseudônimo: não sabendo que o autor era funcionário da Guiness, as outras cervejarias não se dariam
conta do potencial comercial da matemática.

Modestamente, Gosset escolheu o pseudônimo Student ("estudante").

Tenho certeza que eu e os meus colegas de faculdade teríamos apreciado ainda mais a "distribuição t de Student" do curso de
estatística se soubéssemos, então, da sua importância para a sublime ciência e arte da boa cerveja!

A genialidade e o potencial das ideias de Gosset foram reconhecidos por Sir Ronald Fisher (1890 - 1962), considerado juntamente
com Pearson um dos fundadores da estatística. Fisher divulgou, desenvolveu e aprofundou muito essas ideias, mas Gosset
continua muito menos conhecido do que merece. Até porque foi um sujeito muito legal: testemunhos o descrevem como "um
gentleman", "muito agradável" e "humilde, com ótima personalidade". Gosset conseguiu até a façanha de ser amigo tanto de
Pearson quanto de Fisher, dois senhores com egos gigantescos e que se detestavam profundamente.

Hoje em dia, os meios de comunicação estão cheios de informações estatísticas que, supostamente, tornam as notícias mais
objetivas e confiáveis. Mas será que o público, e os próprios jornalistas, compreendem o significado dessas informações? Confira
esta manchete de um jornal norte-americano: "Estatística mostra que gravidez na adolescência cai significativamente após os 25
anos de idade"...
O famoso escritor inglês H. G. Wells (1866 - 1946), autor de clássicos como "A máquina do tempo", "O homem invisível" e "A
guerra dos mundos", escreveu que "o pensamento estatístico um dia será tão necessário para o exercício eficiente da cidadania
como a capacidade de ler e escrever".

Uma das novidades mais refrescantes da Base Nacional Comum Curricular em discussão no Conselho Nacional da Educação é o
reforço substancial do papel da estatística na nossa educação. Em pouco mais de um século, esta disciplina tornou-se a ciência
matemática que se relaciona mais diretamente com o nosso quotidiano. Só por isso, ela já merece lugar de destaque nas nossas
salas de aula, desde os primeiros anos do ensino fundamental.

Fibonacci ensinou europeus a contar


Marcelo Viana – 10/11/2017

Viveu na cidade italiana de Pisa, aproximadamente entre 1170 e 1250 e foi o maior matemático da Europa medieval. Os
contemporâneos o conheceram como Leonardo Pisanus –não confundir com o Leonardo Fiorentino, ou da Vinci, que viria quase
trezentos anos depois– e ele mesmo assinava Leonardo Bigollo, que significa "viajante" no dialeto da Toscana.

Mas, em livro publicado em 1838, o historiador da matemática Guillaume Libri referiu-se a ele como Leonardo Fibonacci –"filius
Bonacci", ou seja, filho da família Bonacci– e o apelido pegou.

Entre as muitas contribuições de Fibonacci à matemática, a de maior impacto foi certamente ter introduzido na Europa o "sistema
indiano" de numeração, isto é, o sistema posicional decimal que utilizamos até hoje.

A Pisa em que nasceu era uma próspera cidade portuária –desde então, a costa italiana deslocou-se e agora o mar fica a mais de
dez quilômetros– que comerciava com todo o mundo conhecido.

Às margens do rio Arno, a cidade também ostentava uma indústria pujante: couros e peles, metais, construção de navios. A
famosa Torre de Pisa inclinada começou a ser construída em sua juventude. Filho de um homem de negócios e funcionário do
governo, o jovem Leonardo Fibonacci cresceu num meio vibrante em que catalogar mercadorias e preços era uma atividade
constante e fazer contas uma necessidade cotidiana.

Mais de oito séculos depois da queda de Roma, as elites educadas da Europa ainda escreviam em latim e representavam os
números pelo sistema romano, usando as letras M, D, C, L, X, V e I.

Numeração romana pode até ficar bonita na fachada de monumentos, mas é um pesadelo para fazer contas: experimente somar
MMCDLXVIII com MCCCXLIV. Pior ainda, tente multiplicar esses números!

Os mercadores europeus contornavam as dificuldades usando o ábaco, instrumento notável cuja origem remonta à antiguidade –o
mais antigo conhecido foi usado na Suméria no terceiro milênio a.C.– e cuja utilidade persiste praticamente até os nossos dias.

O ábaco consiste em um certo número de hastes, tradicionalmente em madeira ou metal, suportadas por uma moldura e nas quais
deslizam pequenas contas. Movimentando as contas nas respectivas hastes é possível realizar adições e subtrações com bastante
facilidade. Multiplicações e divisões são mais complicadas, mas usuários experientes conseguem calcular até raízes quadradas. Só
que não é fácil e requer um treinamento especializado.

Numa viagem ao norte da África, Fibonacci tomou conhecimento do sistema indiano, por meio dos ensinamentos de um professor
árabe: "Os dígitos indianos são 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2 e 1. Com esses dígitos e o símbolo 0, todo número pode ser representado, como
é demonstrado a seguir", explicou.

O que faz o sistema posicional decimal tão conveniente é que ele usa o mesmo dígito para representar quantidades distintas,
dependendo da posição que o dígito ocupa. Por exemplo, em 2702 o primeiro dígito 2 significa "dois milhares" enquanto o
segundo representa apenas "duas unidades". Isso também torna as operações aritméticas muito mais fáceis, ao alcance de todos.

Para tornar este sistema viável, os indianos precisaram inventar um novo dígito: o zero. A explicação de Fibonacci deixa claro que
para ele o zero ainda era diferente dos demais: não era um número de verdade, apenas uma marca para assinalar uma posição
vazia ("sem dezenas" no caso do 2702).

Na volta a casa, publicou o seu primeiro e mais importante livro, intitulado "Liber abaci" ("Livro do ábaco", em latim), no qual
explica meticulosamente o novo sistema de numeração e como usá-lo para fazer contas.

Além de explicações teóricas, "Liber abaci" contém inúmeros exemplos e aplicações a questões práticas do seu tempo. Esse livro
foi o grande responsável pela introdução do sistema posicional decimal no cotidiano dos europeus e tornou Fibonacci muito
famoso. A ponto de, na década de 1220, ele ter sido convidado a comparecer perante o imperador romano-germânico Frederico II,
cognominado "Maravilha do Mundo".
O delicioso problema a seguir ilustra bem o estilo, cuja influência sobre o nosso Malba Tahan é evidente.

Um homem idoso chamou os seus filhos e disse: "Dividam o meu dinheiro da seguinte forma". Ao mais velho disse: "Leve uma
moeda de ouro e um sétimo do restante". Ao segundo disse: "Leve duas moedas de ouro e um sétimo do restante". E assim
continuou com os demais filhos, dando a cada um deles uma moeda de ouro a mais do que ao anterior, e um sétimo do restante.
Ao final, os filhos verificaram que todos tinham recebido exatamente o mesmo.

Quantos filhos tinha o idoso e qual era o total da herança?

Respostas são bem-vindas pelo e-mail vianafolhasp@gmail.com.

Hoje em dia, Fibonacci é famoso, sobretudo, por causa de um pequeno parágrafo sobre criação de coelhos que escreveu no mesmo
"Liber abaci": "Um homem colocou um casal de coelhos num recinto fechado. Quantos casais de coelhos podem ser produzidos a
partir desse, durante um ano, supondo que cada casal gere outro por mês a partir do seu segundo mês de vida?"

Mas esse assunto vai ter que ficar para outra oportunidade.

A matemática molda trajetórias de vida


Marcelo Viana – 17/11/2017

O cearense Ricardo Oliveira nasceu em 17 de fevereiro de 1989 em Várzea Alegre, a mais de 400 km de Fortaleza. Ainda bebê,
foi diagnosticado com amiotrofia espinhal, doença neurológica que afeta a medula. Numa extraordinária trajetória de superação da
enfermidade e das dificuldades inerentes a sua origem humilde, Ricardo tornou-se sete vezes medalhista da Olimpíada Brasileira
de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP), o que também lhe abriu o caminho para o ensino superior: ao final de 2016
formou-se no curso de Tecnologia em Mecatrônica Industrial, com excelentes notas.

Filho de agricultores da zona rural de Várzea Alegre, até o acesso à educação era um problema. Além de morar longe da escola,
era quase impossível uma cadeira de rodas trafegar pelas esburacadas estradas de terra batida: muitas vezes o pai teve que levá-lo
em um carrinho de mão. Por essa razão, seus pais, Francisca e Joaquim, acabaram optando por educarem o filho em casa, apesar
de eles próprios terem poucos anos de escolaridade. Foi Francisca que alfabetizou Ricardo, além de lhe ter ensinado as operações
fundamentais da matemática.

Em 2005, a professora Erileuza Jerônimo, diretora da escola municipal Joaquim Alves de Oliveira, soube da sua situação e
empenhou-se para que Ricardo pudesse ter acesso ao ensino formal. A solução para vencer o problema do deslocamento foi que
os professores dessem aulas na casa dele. Foi assim que, aos 17 anos de idade, Ricardo se tornou aluno do 6º ano do ensino
fundamental, depois de ter sido aprovado numa prova de validação de conhecimento.

Nesse mesmo ano, o irmão Ronildo participou na primeira edição da OBMEP, tendo conquistado medalha de bronze. Empolgado,
Ricardo decidiu tentar também no ano seguinte, e foi ouro! "Simplesmente não acreditei Como um garoto deficiente físico, vindo
de família humilde, morando em um sítio isolado do interior do Ceará e que praticamente não teve acesso a uma sala de aula
poderia conquistar uma medalha de ouro em uma competição de nível nacional?"

Em 2007, foi bicampeão na OBMEP. A façanha mereceu destaque na cerimônia nacional de premiação, no Theatro Municipal do
Rio de Janeiro: foi convidado a subir ao palco para receber uma homenagem especial das mãos do então presidente da República,
Lula. Mas Ricardo não parou aí: no total foram cinco medalhas de ouro (2006, 2007, 2008, 2009 e 2012) e duas de prata (2010 e
2011), além de outras tantas em competições escolares de astronomia e língua portuguesa.

O sucesso abriu algumas portas. Com o apoio da prefeitura, em 2008 a família mudou-se para o centro de Várzea Alegre, e
Ricardo matriculou-se na escola municipal Presidente Castelo Branco, onde pode finalmente frequentar a sala de aula e onde viria
a concluir a educação básica.

Junto com as medalhas da OBMEP, veio o direito de frequentar o Programa de Iniciação Científica (PIC), durante sete anos. "Foi
muito treinamento!", brincou, bem-humorado, em conversa que tivemos por telefone esta semana.

A bolsa de Iniciação Científica Júnior do CNPq (R$ 100/mês) certamente ajudou no orçamento familiar. E todo esse estudo foi
muito útil quando entrou no Instituto Federal do Ceará (IFCE), para a sonhada graduação em Tecnologia em Mecatrônica
Industrial: "Como estava muito avançado em matemática, não tive nenhuma dificuldade ao longo do curso", explica.

O ingresso no IFCE implicou em mais uma mudança, para Cedro, a 50 km de Várzea Alegre. Mais uma vez, a família toda foi
junto para apoiá-lo. Como sobreviveram nesse tempo? "Complicado...", responde. Joaquim, o pai, complementava com "bicos" o
benefício que Ricardo recebe do INSS.
Concluiu a graduação em menos de quatro anos, com ótimo aproveitamento. Ao telefone me contou que é a primeira pessoa da
família do pai a concluir um curso superior. Acrescentando com óbvio orgulho: "Ronildo é o próximo!". O irmão cursa Ciência da
Computação na Universidade Federal do Ceará, e deve concluir a graduação em 2018.
Perguntei: "E o futuro? Qual é o seu próximo sonho?" Ricardo quer fazer concurso público, devolver à sociedade o conhecimento
adquirido. Como medalhista da OBMEP ele adquiriu o direito a bolsa de estudos da CAPES para fazer mestrado em matemática, e
isso também está nos seus planos. Como a todos nós, preocupa-o a atual instabilidade do país. Mas ele mantém a esperança e a
vontade de seguir em frente.

A trajetória de Ricardo Oliveira ilustra de forma extraordinária um dos meus "teoremas" favoritos: o talento está distribuído de
forma equânime em todo o território nacional e em todos os estratos da sociedade. Mas as oportunidades não. "Às vezes, fico
pensando na quantidade de talentos escondidos por esse nosso Brasil que nunca tiveram a oportunidade de se revelarem para o
mundo. A escola tem um papel importante na formação do estudante, mas é muito deficitária em detectar e potencializar talentos
individuais", pondera Ricardo.

Poucas políticas públicas têm a capacidade comprovada da OBMEP para ajudar a corrigir essa distorção, levando oportunidades
aonde elas não existem.

A matemática pode ajudar a combater o crime


Marcelo Viana – 24/11/2017

O grande naturalista inglês Charles Darwin (1809 - 1882) lamentava não ter estudado matemática na juventude pois, dizia,
"pessoas com esse conhecimento parecem ter um sentido extra", veem coisas que mais ninguém vê.

Anos atrás tive um aluno de doutorado que encontrou uma aplicação prática para essa ideia: dizia aos colegas que estavam
acabando a tese que só com o olhar ele já conseguia descobrir os erros, não precisava nem ler o trabalho.

Era mito, claro, mas deixava os outros nervosos –será que era essa a intenção?– e quero crer que os terá motivado a escrever com
mais cuidado.

Mas é um fato que matemáticos conseguem mesmo descobrir erros e fraudes em documentos sem precisar lê-los com atenção.

Foi isso que descobriu em 1993, da pior maneira, o funcionário Wayne J. Nelson da secretaria de fazenda estadual do Arizona. Ele
vinha desviando dinheiro por meio de notas frias e era muito bom nisso: todas as contas estavam corretas e ele só falsificava
valores pequenos, para passarem despercebidos.

Assim mesmo, quando os matemáticos olharam os valores dos cheques dele perceberam na hora que algo estava errado. O assunto
foi investigado: descobriu-se que Nelson tinha roubado mais de US$ 2 milhões. Ele foi julgado e condenado.

A mágica que os matemáticos usaram é chamada lei de Benford, em homenagem ao engenheiro e físico americano Frank A.
Benford (1883 - 1948), embora tenha sido descoberta bem antes pelo astrônomo e matemático canadense Simon Newcomb (1835
- 1909).

Em 1881, Newcomb notou que as tabelas de logaritmos que usava estavam muito manuseadas nas páginas com números que
começavam com 1 e 2, e cada vez menos à medida que o primeiro dígito dos logaritmos ia aumentando. Num livro de ficção se
poderia pensar que os leitores iam perdendo interesse na história, e desistiam de ler. Mas numa tabela de logaritmos?

Para explicar o fenômeno, Newcomb sugeriu que logaritmos começando com dígitos pequenos são mais prováveis, e propôs a
seguinte tabela:

Na época isto deve ter parecido uma esquisitice, e o assunto foi esquecido por meio século, até ser redescoberto em 1938 por
Benford, que lhe deu fama.

Mais uma vez, foram as tabelas de logaritmos que chamaram a atenção, mas Benford foi mais longe e analisou muitas outras listas
de números, para todos os gostos: pesos atômicos de elementos químicos, preços de ações na bolsa de valores, calores específicos
de substâncias, resultados das ligas de beisebol, voltagens de aparelhos de raio-X, taxas de mortalidade etc.

O que ele descobriu é extraordinário: em praticamente todas as listas com que lidamos na vida real, há muito mais números
começando com 1 do que com 9, obedecendo à tabela acima.
Veja por exemplo, a distribuição do primeiro dígito na lista das populações dos municípios brasileiros em 2017, que acabo de
calcular, e compare com a previsão da lei de Benford:

Se este exemplo não o convence, sugiro que anote todos os números que aparecem na edição de hoje da Folha: aposto que cerca
da metade começa com os dígitos 1 ou 2.

O que despertou as suspeitas no caso do fraudador Nelson foi que 90% dos cheques dele começavam com os dígitos 7, 8 ou 9. É
difícil falsificar uma planilha de tal forma que as contas estejam certas e também valha a lei de Benford, e é isso que torna esta
observação tão útil no combate à fraude.

Aliás, existem versões mais refinadas da lei de Benford, que testam os dois ou três primeiros dígitos, e tornam o trabalho do
fraudador ainda mais difícil.

Quando escolhemos números ao acaso, todos os dígitos de 1 a 9 são igualmente prováveis, mas a descoberta de Newcomb e
Benford mostra que isso não é realístico.

Muitos matemáticos tentaram, com pouco êxito, explicar o paradoxo. Uma dificuldade é que existem algumas listas de números
que não seguem essa lei, por exemplo, o catálogo telefônico. Outro mistério é que a lei de Benford é válida para muitas listas
"artificiais" de números, tais como a sequência de Fibonacci (1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, 233, 377 etc) ou as potências
de dois (1, 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128, 256, 512, 1024, 2048, 4096, 8192 etc).

A primeira explicação matemática da lei de Benford foi dada só em 1995, pelo matemático americano Theodore Hill (nascido em
1943), do Georgia Institute of Technology. Seu ponto de partida foi uma propriedade importante chamada invariância de escala.
Ela significa que a validade da lei não depende da unidade utilizada.

Por exemplo, mesmo que Nelson tivesse conseguido ajustar os valores dos cheques –em dólar– à lei de Benford, a fraude ainda
poderia ter sido descoberta convertendo tudo para reais ou euros e testando nas novas moedas.

Aliás, a lei também não depende da base numérica: os investigadores ainda tinham a opção de passar os valores dos cheques da
base decimal para outra base qualquer e testar os primeiros "dígitos" nessas bases. Nelson não sabia no que estava se metendo,
comprando briga com os matemáticos.

Em tempo: embora eu tenha de ler as teses dos meus alunos para saber se estão certas, não quer dizer que não seja capaz de pegar
um trapaceiro. Caso o leitor duvide, sugiro o seguinte: lance uma moeda ao ar 200 vezes seguidas, anote os resultados (1 é cara, 2
é coroa) na ordem obtida e envie para mim por email. Se achar a tarefa chata, pode trapacear: invente da sua cabeça uma lista com
200 uns e dois e envie. Só que eu vou saber se é trapaça... Duvida?

Lógica matemática para compreender as famílias deste mundo e de outros


Marcelo Viana – 01/12/2017

Lentamente, dolorosamente, a consciência vai voltando. Abrir um olho, depois o outro, esforço hercúleo. As luzinhas LED
piscando na penumbra do quarto. O barulho insuportável do despertador iônico. Os robôs domésticos olhando em silêncio, com
expressões de censura. A dor aguda comprimindo as têmporas, extinguindo toda alegria de viver...

A adaptação à vida fora da Terra não tem sido fácil para Lauralina, nossa embaixadora no planeta X314, e seu companheiro
Valeriano. É fundamental que se relacionem com os habitantes locais, os Gödelianos, mas estes falam uma língua complicada e
são muito susceptíveis: quando se sentem ofendidos, cospem ácido sulfúrico no interlocutor. Todo cuidado é pouco!

Por outro lado, quando estão felizes os Gödelianos gostam de comemorar com os amigos tomando muitos drinques perfumados à
base de silicato de lítio. Ontem à noite, de mãos dadas à luz das sete luas coloridas de X314, até que pareceu uma boa ideia. Mas
agora pela manhã, ressaca de silicato de lítio ninguém merece!

Mas difícil mesmo é compreender a cultura local. Os Gödelianos têm quatro sexos: os Verdadeiros, que sempre dizem a verdade;
os Mentirosos, que sempre mentem; os Inconstantes, que tanto mentem quanto dizem a verdade; e os Doidos, que não seguem as
regras da lógica. Assim, a maioria das famílias consiste de quatro progenitores e um número variável de filhos. O direito de
Família em X314 não é brincadeira. E os casos de divórcio são os mais complexos da galáxia!

Lauralina e Valeriano não medem esforços para aprender o mais rápido possível. Além de diversos cursos de ciências gödelianas,
eles fazem tudo que podem para interagir com os nativos. Hoje mesmo, serão babás de uma encantadora família com dezenove
filhos, todos adoravelmente adolescentes.
Nossos heróis já aprenderam que os adolescentes gödelianos sabem qual sexo terão quando se tornarem adultos. Até lá, os que se
tornarão Verdadeiros só dizem a verdade e os demais dizem frases que são alternadamente verdadeiras e falsas. Por exemplo, um
futuro Mentiroso pode dizer: O número π é inteiro. O número π não é inteiro. O número 9 é primo. Dois mais dois é igual a
quatro.

O primeiro passo será conhecer as crianças, estabelecer um clima afável. AA, o filho mais velho, apresenta-se e faz
sucessivamente as seguintes afirmações: (AA) Eu serei Louco. (AA) Eu serei Mentiroso. (AA) Eu serei Inconstante. Qual será o
futuro sexo de AA?

Em seguida, apresentam-se outros dois adolescentes, chamados BB e CC. Os pais revelam que um deles será Mentiroso e o outro
será Inconstante. Eles afirmam sucessivamente: (BB) Eu serei Inconstante. (CC) Eu serei Inconstante. (BB) Eu serei Louco. (CC)
Eu serei Mentiroso. Qual deles será Mentiroso?

O próximo grupo está formado por três adolescentes, DD, EE e FF. Um deles será Verdadeiro, outro será Mentiroso e o outro será
Inconstante. Eles afirmam: (DD) Eu não serei Inconstante. (EE) Eu não serei Inconstante. (FF) Eu não serei Mentiroso. (DD) EE
não será Inconstante. (EE) DD não será Inconstante. (FF) DD não será Mentiroso. Quem será o Inconstante?

Terminadas as apresentações, os quatro pais saem para uma merecida noite de diversão no Festival Interplanetário da Matemática,
e os nossos intrépidos heróis assumem sua função de babás.

Logo Valeriano está testando um jogo que três dos adolescentes acabam de inventar. Funciona assim: se ele não conseguir
adivinhar o sexo de um deles, as doces crianças vão furar o traje espacial dele. A ideia da atmosfera de sulfeto de hidrogênio a
300º entrando lentamente pelos orifícios deixa Valeriano muito emocionado.

Os adolescentes afirmam: (GG) Eu não serei Louco e HH não será Verdadeiro. (HH) Eu não serei Mentiroso e II será Louco. (II)
GG será Mentiroso e HH será Inconstante. (GG) HH não será Mentiroso e II será Mentiroso. (HH) GG não será Inconstante e II
não será Verdadeiro. (II) Serei Verdadeiro e GG será Mentiroso. Rápido, qual será o sexo de II?!

Na outra ponta da casa, Lauralina está com um problemão: quatro adolescentes, todos futuros Mentirosos, se juntaram e um deles
bebeu água potável, que é um veneno mortal para os Gödelianos. Ela precisar dar logo o antídoto –arsênico dissolvido em ácido
sulfúrico– ao pirralho, só que não sabe qual deles é. Eles informam: (JJ) Quem bebeu a água não foi o KK. (KK) Não foi o LL.
(LL) Não foi o MM. (MM) Não foi o JJ. (JJ) Foi o KK ou o LL. (KK) Não fui eu nem o MM. (LL) Foi o KK ou o MM. (MM) Foi
o JJ ou o KK. Quem bebeu a água?

Ou será melhor Lauralina tomar o arsênico ela mesma, e acabar com o problema de uma vez?!

Respostas são bem vindas pelo e-mail vianafolhasp@gmail.com. Todos e todas que acertarem as cinco respostas até o final de
2017 ganharão brindes digitais e ainda vão concorrer ao sorteio de uma pelúcia da Aramat, a simpática mascote do Biênio da
Matemática. Não perca!!

(Baseado em ideias dos franceses Jean-Claude Baillif e Pierre Christin)

Matemática dos cassinos resolve muitos problemas práticos


Marcelo Viana – 08/12/2017

Suponha a leitora que é proprietária de um terreno retangular com 80 metros de comprimento e 40 metros de largura. Aprendemos
na escola que a área do retângulo é igual ao produto do comprimento pela largura: neste caso, 80 vezes 40 igual a 3200 metros
quadrados.

Agora, nesse terreno há um lago, que valoriza a propriedade, pelo que seria útil conhecer a sua área também. O problema é que
lagos costumam ter formas complicadas, muito diferentes daquelas que vimos na escola: fórmulas de área da aula de geometria
não vão ajudar. Mas isso não quer dizer que a matemática não possa resolver o problema.

Aqui vai uma ideia um pouco mirabolante.

Pode-se experimentar lançar um monte de pedrinhas ao acaso em todo o terreno. Algumas cairão no lago e estarão perdidas.

Suponhamos que lance 1000 pedrinhas e ao final consiga recuperar 750, que caíram em terra. Então 250 pedrinhas, um quarto do
total, terão caído no lago. Supondo que o lançamento realmente tenha sido ao acaso, isso sinalizaria que a área do lago é um
quarto da área do terreno, ou seja, 3200/4 = 800 metros quadrados.

Certo, esta ideia não parece fácil de executar (nem muito ecológica). Mas com alguns ajustes é realmente possível transformá-la
numa solução prática muito eficaz para o problema.
Por exemplo, no lugar de ir ao terreno, a leitora pode mandar fazer uma foto aérea, fornecê-la a um computador e fazer com que
este simule o lançamento de pedrinhas, escolhendo 1000 pixels ao acaso na foto: se o pixel for azul então "a pedrinha caiu no
lago".

Isso é um exemplo de uma técnica matemática chamada método de Monte Carlo, que hoje é utilizada nas mais diversas situações.
Por exemplo, ela está na base do modo como o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) monitora o desmatamento da
Amazônia a partir de fotos de satélite: queimadas podem ser identificadas pela mudança de cor e, apesar de terem formas
complicadas, as suas áreas podem ser estimadas do jeito que descrevi.

A ideia geral do método de Monte Carlo é que mesmo questões que têm respostas determinísticas, dadas por fórmulas exatas,
muitas vezes são mais fáceis de responder usando amostragem aleatória. Esse princípio foi descoberto na segunda metade dos
anos 1940 por matemáticos trabalhando nas pesquisas secretas dos Estados Unidos para desenvolver armas nucleares.

Stanislaw Ulam (1909-1984) nasceu na Polônia e emigrou para os Estados Unidos em 1939, poucas semanas antes de Hitler
invadir seu país. Quatro anos depois, integrou o Projeto Manhattan, a iniciativa do governo americano para construir a bomba
atômica. Em 1946, voltou ao famoso laboratório de Los Alamos para trabalhar em outro projeto ultrassecreto: a bomba de
hidrogênio.

Os cientistas precisavam conhecer a frequência de colisões dos nêutrons para chegarem à energia liberada em cada colisão. Os
cálculos eram complicadíssimos, e fazer muita conta não era o estilo de Ulam. Nessa hora, lembrou de um problema que resolvera
nas horas vagas.

Os aficionados pelo jogo Paciência sabem que, dependendo da ordenação inicial das cartas no baralho, pode ser impossível
terminar a partida. O número total de ordenações é fácil de calcular: supondo que se use um baralho de 52 cartas, é 52! = 52 x 51
x 50 x ... x 2 x 1 (que chamamos "52 fatorial").

Ulam queria saber quantas dessas são favoráveis, ou seja, quantas permitem que a partida termine. Mas as contas eram
complicadas e ele optou por um jeito mais prazeroso: jogou Paciência um monte de vezes, anotou a percentagem de partidas que
conseguiu terminar e, multiplicando por 52 fatorial, obteve uma boa aproximação do número de ordenações favoráveis!

Ulam propôs essa ideia ao colega húngaro-americano John von Neumann (1903-1957), um dos matemáticos mais brilhantes do
século 20.

Von Neumann percebeu imediatamente o enorme potencial da proposta e, com o físico greco-americano Nicholas Metropolis
(1915-1999), desenvolveu um modo de utilizá-la para fazer as contas no computador programável que havia acabado de ser
construído em Los Alamos.

Como a pesquisa era secreta, precisavam de um nome de código para o novo método. "Monte Carlo" foi sugestão de Metropolis,
em homenagem ao famoso cassino do principado do Mônaco, onde um tio de Ulam "torrava" o dinheiro da família.

O método de Monte Carlo tem inúmeras aplicações nas mais diversas áreas de atividade. Por exemplo, quando a polícia calcula o
número de pessoas num ato público –no Brasil pararam de fazê-lo parar evitar controvérsias com os organizadores– é claro que
não é por meio de contagem. São usadas fotos aéreas e o método de Monte Carlo é usado para estimar o número de cabeças.

Anos atrás, durante o meu pós-doutorado na universidade de Groningen, na Holanda, assisti a uma palestra onde a mesma ideia
era usada para calcular as populações de tatuís nas praias do país, sem ter que incomodar os bichinhos para contá-los: os
pesquisadores aplicavam o método de Monte Carlo a partir do número de furinhos que os tatuís fazem na areia.

Para dar certo, o método de Monte Carlo tem dois requisitos. A amostragem –o número de "pedrinhas"– precisa ser bastante
grande e precisa ser genuinamente aleatória: as "pedrinhas" têm que estar bem distribuídas. Isto era um problema nos anos 1940,
porque não se conheciam bons métodos para simular números aleatórios em computador.

A ideia de fazer essa simulação ao vivo, com um monte de pessoas jogando moedas e dados, não era praticável, pelo que von
Neumann teve que trapacear, lançando mão de números "pseudo-aleatórios". Apesar do grande avanço alcançado desde então,
este continua sendo um tema de pesquisa muito ativo.

Para encerrar, deu para notar que todos os heróis da história de hoje eram americanos, sem que nenhum tivesse nascido nos
Estados Unidos? É o resultado de uma política inteligente para atrair os melhores cérebros do planeta, que eles mantêm até hoje.
Em prejuízo daqueles, como nós, que ainda precisam aprender essa lição.
Olimpíada de matemática também descobre professores de excelência
Marcelo Viana – 15/12/2017

A Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep), criada pelo Impa em 2005, movimenta a cada ano mais de
18 milhões de jovens em praticamente 100% dos municípios brasileiros. Isso faz dela a maior competição escolar do mundo. Em
2017 ficou ainda maior, com a adesão das escolas particulares.

A Obmep tem como metas incentivar o estudo da matemática e descobrir talentos, em todo o território nacional e em todos os
estratos sociais.

O impacto da Olimpíada e dos programas de formação que a acompanham –Programa de Iniciação Científica (PIC), Programa de
Iniciação Científica e Mestrado (Picme), Polos Olímpicos de Treinamento Intensivo (Poti) e Obmep na Escola– nos estudantes
está amplamente comprovado por estudos independentes.

Uma avaliação conduzida em 2014, por Francisco Soares (UFMG e ex-presidente do Inep), comprovou que escolas com
envolvimento ativo na Obmep apresentam uma melhora média de 26 pontos na Prova Brasil.

É como se oferecessem a seus alunos 1,5 ano extra de escolaridade!

O mais importante: esta melhora diz respeito a todos os alunos dessas escolas, não apenas aos premiados.

Esse mesmo ponto é ressaltado na tese de doutorado defendida recentemente na renomada Universidade Harvard pela professora
Diana Moreira, da Universidade da Califórnia.

Diana descobriu que o efeito de ser premiado na Obmep beneficia o desempenho não apenas do ganhador, mas também de seus
colegas de turma.

Comparando ao longo do tempo os resultados globais de turmas com alunos premiados a outras de estudantes com perfil e notas
muito próximas, mas não premiados, ela constatou que o desempenho dos colegas dos ganhadores melhora consideravelmente.

Em particular, suas chances de virem a ingressar em um curso superior dos mais disputados são até 10% maiores, na comparação
com aqueles de turmas sem premiados da Obmep.

Por outro lado, o papel da Olimpíada como ação de capacitação de professores tem sido muito menos destacado e merece uma
análise cuidadosa.

Dado que a formação do professor é, possivelmente, o maior calcanhar de Aquiles de nossa educação, como a Obmep contribui
para melhorar a qualidade dos docentes, somando-se a iniciativas como o Profmat (mestrado profissional para professores de
matemática)?

Perguntei a um grupo de professores de diferentes partes do país como seu envolvimento com a Obmep influenciou o ambiente de
trabalho e sua atuação.

Com resultados comprovados na Olimpíada, eles são representativos de centenas de professores brasileiros que encontram na
Obmep um instrumento de aprimoramento profissional.

Antônio Amaral dá aulas na escola Augustinho Brandão, no município piauiense de Cocal dos Alves (6 mil habitantes e IDH
0,497, um dos 50 piores do país). Alcançou celebridade nacional por ter transformado sua escola num celeiro de campeões da
Obmep.

A Augustinho Brandão tem a mais alta relação premiação/aluno participante entre todas as escolas do país e, em 2017, realizou
mais uma façanha: todos os seus 23 estudantes que participaram na fase final foram premiados (22 medalhas e uma menção
honrosa).

Com IDEB de 6,2 no segundo ciclo do Ensino Fundamental, é a prova de que é possível construir excelência em qualquer ponto
do território nacional.

"Em Cocal dos Alves os estudantes sabem que a Obmep não é só uma prova para resolver problemas de Matemática. São todos
cientes das oportunidades criadas pela participação na Olimpíada", afirma. "Com a escola e os professores preparados para atendê-
los bem, os estudantes vivem intensamente os desejos de conquistas."

Segundo ele, a competição o levou a buscar materiais "com abordagem mais verdadeira da matemática" do que a da maioria dos
livros didáticos e a fazer uma "imersão em assuntos que precisavam de aprofundamento em sala".

Isso trouxe a consciência de como é importante uma abordagem didática que "valorize a invenção e estimule a curiosidade, dando
lugar ao esforço daqueles que persistem na busca de soluções para problemas novos e desafiadores".
Questionado sobre como a Obmep o mudou pessoalmente, Amaral responde: "Foi o maior programa de formação continuada para
mim como professor de matemática".

Geraldo Amintas é professor na escola Terezinha Pereira, na pequena Dores do Turvo (4,5 mil habitantes), na zona da Mata
Mineira. Não esconde o orgulho pelos 38 anos de magistério, exclusivamente em escolas públicas.

Os resultados notáveis da Terezinha Pereira na Obmep –são 105 medalhas e 184 menções honrosas– "geraram um grande
reconhecimento da comunidade e dos órgãos de governo e enorme destaque nos meios de comunicação", afirma.

Para Amintas, "tudo isso foi canalizado, por professores e gestores para a melhoria e o desenvolvimento da instituição". O Ideb
subiu de 4,0 para 5,6 no segundo ciclo do Ensino Fundamental. Em sua opinião, "o sucesso alcançado na Obmep exerceu uma
pressão positiva sobre os profissionais da escola em outras áreas, que buscaram também reciclar suas práticas pedagógicas".

E contribuiu decisivamente para a melhora da autoestima e confiança de seus alunos, que agora buscam as grandes universidades
públicas para darem sequência aos estudos.

Ele considera que a Obmep foi um marco em sua vida profissional, que o tornou um professor mais bem preparado e interessado
em ver o crescimento dos alunos. "Em 2005, com mais de 25 anos de carreira, o caminho normal teria sido iniciar um período de
acomodação e uma preparação para a aposentadoria". Mas "a descoberta da Obmep e as mudanças que percebi que poderia trazer
para o ensino de matemática em minha escola trouxeram um novo estímulo".

(Continuaremos na próxima semana).

Olimpíada de matemática também descobre professores de excelência - 2


Marcelo Viana – 22/12/2017

A mineira Maria Botelho deu aulas por mais de 30 anos na rede pública, a maior parte na escola Messias Pedreiro, em Uberlândia
(MG), e foi premiada em todas as edições da Obmep (Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas) em que
participou.

Foram 303 medalhas e menções honrosas de 2005 a 2014. Após se aposentar, passou a comandar um grupo de resolução de
problemas no Facebook e promove aulas e encontros entre antigos e atuais alunos do Ensino Médio do colégio, aos sábados. "A
Obmep fez a escola abrir as portas e janelas das salas de aula, aprendendo a valorizar as interações aluno-aluno, aluno-professor e
aluno-pais-escola", diz.

A partir de 2012, motivado pelos resultados do colégio, um grupo empresarial da cidade criou o projeto "Maratona de
Aprendizagem", oferecendo bolsas de estudo para que os alunos envolvidos na Obmep deixassem de trabalhar para se dedicar
exclusivamente à escola. Desde então, a iniciativa se estendeu a outros colégios da região.

Criada pelo IMPA em 2005 para incentivar o estudo da matemática e descobrir talentos, a Obmep tem contribuído
substancialmente para o ensino da disciplina no país. Como escrevi semana passada, o impacto da Olimpíada e de seus programas
de formação sobre os estudantes já foi comprovado em estudos, mas seu efeito como inspiração para os professores tem tido
menos destaque.

E são eles, na maioria das vezes, que criam e multiplicam iniciativas de êxito pelo Brasil. Citei aqui Antônio Amaral (Cocal dos
Alves, Piauí) e Geraldo Amintas (Dores do Turvo, MG) e hoje conto a história de Maria Botelho e mais dois professores com
contribuições igualmente notáveis.

A Obmep foi "um marco" na carreira de Maria e a fez "estudar e se capacitar mais". Precisou aprender tecnologia e criar e adaptar
metodologias para atender tanto os alunos mais avançados quanto aqueles com déficit de aprendizagem. "As oportunidades que
tive minimizaram o desgaste de 40 aulas semanais, a indignação com os baixos salários, minhas deficiências de formação, a
carência por cursos de aperfeiçoamento, além de camuflarem a falta de melhores condições de trabalho", afirmou. "Os dez anos de
experiência com a Obmep me fazem defender a olimpíada como ferramenta pedagógica para ser usada com todos os estudantes,
em sala de aula e em outros ambientes de aprendizagem."

O pequeno município de Branquinha, com 10.586 habitantes, fica na Zona da Mata alagoana, a 60 km de Maceió, e tem um dos
piores IDH do Brasil, 0, 513. Até 2014, suas 16 escolas acumulavam maus resultados em avaliações como o Ideb, Obmep e Enem.
Os alunos as faziam "por pura obrigação, sem interesse nem expectativa alguma", de acordo com o professor Cicero Rufino.

A situação mudou radicalmente em 2015, quando Cicero lançou a iniciativa "Desenvolvendo e aplicando a matemática: um
projeto voltado para produzir vencedores na Obmep e elevar os indicadores sociais do município de Branquinha", de que já falei
nesta coluna. Nesse primeiro ano, já foram duas premiações; em 2016, mais oito; e, em 2017, o recorde foi batido novamente: 3
medalhas e 7 menções honrosas.
"O efeito da Obmep na comunidade escolar tem proporcionado benefícios antes inimagináveis até mesmo para mim, que sempre
fui um sonhador", afirma Cicero. "Entre meus colegas de trabalho, há o consenso de que a Obmep despertou o município em geral
para o aprendizado. Os pais estão mais presentes no cotidiano escolar; os professores cada vez mais empenhados em preparar os
alunos; e os meninos agora têm motivos reais para estudar". Ele destaca o PIC (Programa de Iniciação Científica), que seus alunos
medalhistas fazem na Universidade Federal de Alagoas, com bolsa de R$ 100, que também incrementa a renda familiar de
famílias pobres.´

"A Obmep transformou minhas abordagens em sala de aula. Antes, eu cumpria uma grade curricular que simplesmente não
atendia as necessidades dos alunos. Hoje tenho instigado os alunos a pensar, raciocinar, traçar estratégias e definir caminhos
lógicos para chegar às soluções."
Outro campeão é Luiz Felipe Lins, professor na escola Francis Hime, no bairro carioca de Jacarepaguá, que tem cerca de 100 mil
habitantes. Sua escola alcançou 214 premiações para alunos e 20 para professores. "A Obmep me transformou!"

Por sua atuação, Luiz Felipe já foi até capa de revista de circulação nacional. "Desde 2005, quando participamos da primeira
Obmep, a escola tem uma nova relação dos estudantes com a Matemática, da Matemática com a comunidade e da comunidade
com a perspectiva de uma melhor formação", afirma. "Temos inúmeros ex-alunos que passaram a vislumbrar uma formação
acadêmica depois da Obmep e perceberam que poderiam construir um futuro promissor através da educação."

O sucesso fez Luiz Felipe aprimorar sua formação. "Os alunos estavam ficando melhores do que eu, eu precisei acompanhar o
ritmo deles", justifica, bem-humorado. Como Amaral e Cicero, Luiz Felipe formou-se no Profmat (Mestrado Profissional em
Matemática em Rede Nacional) e agora busca aprofundar seu conhecimento da literatura em educação matemática. "Desde minha
formação, nunca acreditei na matemática ensinada nas escolas do nosso país. Os problemas da Obmep vêm ao encontro da
matemática em que acredito, que constrói conhecimento, valoriza diferentes estratégias de resolução e mostra a aplicação dos
conceitos matemáticos em situações cotidianas e reais."

Grafos permitem entender a matemática por trás dos jogos


Marcelo Viana – 29/12/2017

Acho que eu estava no ensino primário quando ouvi esta história pela primeira vez: um homem precisa atravessar o rio com uma
onça, uma cabra e uma alface. Terá que fazer várias viagens porque o barco só permite que leve um passageiro de cada vez. Ele
não pode deixar a onça sozinha com a cabra, nem a cabra sozinha com a alface: em qualquer desses casos, a primeira come a
segunda. Como fazer?

Há uma variante ainda mais interessante deste problema, um jogo que chamarei "humanos e klingons" (o nome habitual é
"missionários e canibais", mas está baseado em preconceitos culturais que não me agradam). É possível jogar on-line aqui
http://game-game.com/18394/.

Três humanos e três klingons (espécie alienígena muito agressiva) precisam atravessar um rio, usando um barco no qual cabem no
máximo dois passageiros. Se em algum momento os klingons forem maioria, em qualquer das margens, vão dominar os humanos
e matá-los. Como fazer para transportar os seis para a outra margem, sem risco de massacre?

Brincadeiras como esta podem ser resolvidas matematicamente usando um conceito muito simples, chamado grafo. Um grafo é
um conjunto de pontos, os vértices, alguns dos quais estão ligados por curvas, as arestas. Os vértices são usados para representar
as diferentes situações do jogo, e as arestas para descrever as possíveis passagens de uma situação para a outra.

No caso de "humanos e klingons", cada situação pode ser descrita indicando o número H de humanos e o número K de klingons
na margem direita, digamos (os demais estão na margem esquerda, não é necessário especificar).
A tabela acima exibe todas as situações possíveis: são 10 vértices. Os retângulos em branco correspondem aos casos em que os
klingons estariam em maioria, em uma das margens, e teríamos um massacre de humanos.

Também precisamos acrescentar as possíveis passagens de uma situação para outra, lembrando que o barco pode levar e trazer um
ou dois passageiros. Isso está feito na tabela abaixo: são 17 arestas.

Agora basta procurar neste grafo um caminho que vá dos pontos H=3 e K=3 (ambos na margem direita) para os pontos H=0 e
K=0 (ambos na margem esquerda) e que esteja formado, alternadamente, por movimentos para a esquerda ou para baixo e
movimentos para a direita ou para cima. Esta regra corresponde ao fato de que o barco se desloca, alternadamente, de uma
margem para a outra.

Pode-se verificar que existem exatamente quatro soluções para o problema. Uma delas está representada na figura abaixo: são
necessárias 11 viagens do barco, mas todos passam para a outra margem, sãos e salvos.

Há muitas variações divertidas das regras. Numa delas, os passageiros são três casais (humanos): os maridos, ciumentos, não
permitem que suas esposas fiquem sozinhas com outro homem. E o meu filho (10 anos) me mostrou outra, em que os passageiros
são três adultos e três crianças: as crianças não podem ficar nunca desacompanhadas. Como fazer para atravessar todo mundo?

Também podemos variar o número de passageiros. Por exemplo, com quatro humanos e quatro klingons o problema fica
impossível. Mas torna-se novamente possível se o barco puder levar até três passageiros por vez, com a regra de que os klingons
também não podem ser maioria no barco. Nesse caso fica possível atravessar cinco humanos e cinco klingons. Mas com seis
humanos e seis klingons continua impossível, mesmo com esse barco maior. Agora, se o barco puder levar quatro passageiros, é
possível fazer atravessar N humanos e N klingons, para qualquer número N.

Será que o leitor é capaz de utilizar a técnica de grafos para resolver o problema da onça, da cabra e da alface? Soluções são bem-
vindas pelo e-mail: viana.folhasp@gmail.com.

Aproveito para desejar a todos um ótimo ano de 2018, com muita matemática!

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