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GERSON LIMA

A VOZ PROFÉTICA NA LUTA POR JUSTIÇA SOCIAL: UMA ANÁLISE DA


IMPORTÂNCIA DAS BOAS OBRAS NA VIDA DO POVO DE DEUS

Trabalho apresentado em cumprimento às


exigências do curso de Bacharelado em Teologia
da Faculdade Teológica Sul Americana sob
acompanhamento da Prof. Me. Silvio dos Santos.

LONDRINA
2021
2

UNIDADE I – DESCRIÇÃO E ANÁLISE DO PROBLEMA

1.1. Introdução
O presente trabalho tem como tema a justiça social, mais propriamente a importância
da voz profética do povo de Deus em denunciar as injustiças que ocorrem em seu contexto,
tomando como base o texto de Amós capítulo 5, versículos 10 a 15. Tendo como ponto de
partida oum texto bíblico de Amós, esste trabalho pertence aà área de bBíblia, mas também
dialogará com outras áreas da teologia, ou seja, a teologia bíblica, teologia sistemática e a
história da Igreja.
Ao criar o homem à sua imagem e semelhança, Deus considerou que não era bom que
ele estivesse só. Fez-lhe então uma companheira e ordenou ao casal se multiplicasse e
enchesse a Tterra. A necessidade de viver em sociedade é, pois, uma característica presente no
ser humano desde a criação.
Porém, desde o princípio, a injustiça social é um pecado presente nas diferentes
sociedades e, em todas as épocas. A ambição dos poderosos, o desejo de prosperar a qualquer
custo – mesmo que o preço seja a dignidade e até a vida do semelhante – a ganância que
conduz ao abandono da ética e da moral, transformando o homem em terrível predador doe
seu próximo, são características dos mais diversos sistemas políticos, econômicos e religiosos,
ao longo dos séculos.
Infelizmente o povo de Deus não está imune a estas condições pecaminosas, como
podemos observar no contexto vivido pelo profeta Amós.
A motivação para trabalhar este tema é proveniente da observação da aparente
ausência de preocupação com questões sociais na maioria dos ambientes cristãos evangélicos,
como se a única tarefa da igreja fosse anunciar o evangelho para a salvação das almas, sem
nenhum tipo de contestação aos sistemas injustos em que a comunidade de fé está inserida.
Em outras palavras, a voz profética da igreja somenteó é ouvida denunciando
pecados pessoais e quase nunca, com raríssimas exceções, denunciando pecados da e na
sociedade.
Como a igreja de Jesus Cristo pode compreender e praticar sua tarefa como voz
profética diante das injustiças, sobretudo as injustiças de cunho social, em nossos dias? Como
a igreja pode se tornar um modelo de sociedade justa, humana e fraterna?
3

1.2. Definição do problema


Desde a criação, o homem tem se deparado com duas realidades paradoxais, em
termos de convivência com o semelhante: a necessidade de viver em sociedade, e a extrema
dificuldade de relacionar-se com o próximo.
Os problemas decorrentes da coexistência humana não demoraram a aparecer. Já no
episódio da queda surgiu uma atitude individualista, pelo fato do homem não assumir a culpa
pelo pecado, transferindo-a para sua parceira. Em seguida, os primeiros filhos do casal não
conseguiram conviver pacificamente, a ponto de um irmão tirar a vida do outro (Gênesis 4:1-
16).
No decorrer da história, os problemas de relacionamento social multiplicaram-se, e
assim surgiu a exploração do mais forte em relação ao mais fraco, a violência em suas
múltiplas formas, a discriminação de sexo, raça e cor, a intolerância religiosa, a escravidão, a
opressão econômica e social, o abuso do poder político, econômico e religioso, e muitas
outras expressões de dominação que demonstram o quão difícil é para o ser humano conviver
pacifica e justamente em sociedade.
Deus não criou o homem para viver desta maneira. Ao escolher o povo que seria
conhecido como “povo de Deus”, ele lhe deu normas e instruções que visavam torná-los em
uma sociedade modelo, onde a justiça, a paz e a harmonia fossem vivenciadas e servissem de
paradigma para todas as nações.
Como uma agência proclamadora do reino de Deus, além de ser “povo de Deus” na
nova aliança, a igreja de Cristo continuou com essa tarefa de denunciar os pecados individuais
e sociais, pronunciar o juízo de Deus diante das injustiças humanas, e, acima de tudo,
anunciar o evangelho de Jesus Cristo, no qual não há lugar para nenhum tipo de injustiça, mas
onde justiça e paz devem se encontrar, pois o reino de Deus é “justiça, paz e alegria no
Espírito Santo.” (Rm 14:17).
Os primórdios da iIgreja primitivaCristã foram marcados pela solidariedade, em
que “ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém,
lhes era comum.” (Atos 4:32 - ARA).

1.3. Objetivo
Nosso objetivo, partindo do contexto do profeta Amós, é demonstrar como a voz
profética se faz necessária diante da injustiça, da exploração e da opressão. O profeta faloua
4

em nome do Senhor., Se, sendo assim, qual é a tarefa profética diante da sociedade em que ele
está inserido? O que o Senhor tem a dizer sobre a justiça social, no texto em tela?
Na continuidade, procuraremos analisar quais são as propostas de Deus em sua
palavra com relação aà atitude do homem para com o seu próximo. Olhando para a história do
povo de Deus no Aantigo e no Nnovo Ttestamentos, buscaremos os ensinos a respeito das
obras de justiça que, ao serem praticadas, colaborarão para o estabelecimento de uma
sociedade mais justa.
Relacionaremos a busca por justiça social com algumas doutrinas cristãs, aà procura
de princípios que possam orientar a prática correta das boas obras pelos hodiernos seguidores
de Cristo. Entendemos que uma práxis correta é fruto de um entendimento adequado da sã
doutrina. A saudável ortodoxia deve conduzir a uma justa ortopraxia.
Em seguida, pinçaremos alguns momentos históricos na vida da iIgreja cCristã, em
que a prática das boas obras e luta por justiça social foram enfatizadas. É importante
esclarecer que não pretendemos fazer um tratado histórico, mas e, sim, buscar testemunhos
históricos que venham corroborar nossa ideia. Há muitos momentos da história da igrejacristã
que não foram contemplados neste trabalho.
E, finalmente, traçaremos algumas aplicações práticas que entendemos serem
necessárias em nossos dias, para que a iIgreja assuma seu compromisso social, parte
integrante da missão confiada a ela pelo Senhor Jesus. O ministério diaconal, a visão integral
de missão e a voz profética da iIgreja serão discutidos, ainda que saibamos que são assuntos
amplos e que merecem trabalhos específicos, portanto, não temos nenhuma pretensão de os
esgota-losr.

UNIDADE II – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1. Fundamentação bBíblica

2.1.1. Delimitação do tTexto bíblico de Amós


O capítulo 5 de Amós contém três oráculos básicos. Os versículos 1 a 3 trazem uma
lamentação curta, anunciando o castigo; os versículos 4 a 17 apresentam um convite à bênção
e advertência quanto ao castigo, e os versículos 18 a 27 advertem com relação ao castigo
vindouro. Esstes dois últimos oráculos podem ser subdivididos, pois trazem assuntos
diferentes.
5

Os versículos 10 a 15, objetos desste artigo, contém advertências com relação à


injustiça social, revelando pecados estruturais de Israel e anunciando a necessidade do povo
reconhece-los e abandoná-los, voltando-se para Deus.
Os versículos 10 a 15 estão, portanto, bem delimitados, e neles o profeta:
a) Apresenta os pecados sociais do povo de Israel; (10 a 13).
b) Convida o povo a buscar a prática da justiça social, para que Deus torne a ter
compaixão do restante de José. (14 e 15).

2.1.2. – Texto hHebraico1 (BHS)

10
‫דֹבר ָּת ִ ֖מים יְ תָ ֵעֽבּו׃‬ ֥ ֵ ְ‫֑יח ו‬ ַ ‫מוֹכ‬
ִ ‫ָׂש נְ א֥ ּו בַ ַּׁש ֖ עַ ר‬
11
‫ ֠לָ כֵ ן יַ ֣עַ ן וֹּבַׁש ְס ֞ ֶכם‬a ‫עַ ל־ָּד ֗ ל ּומַ ְׂש אַ ת‬b‫־ַּב ר ֙ ִּת ְקח֣ ּו ִמ ֶּ֔מ ּנּו ָּב ֵּת ֥ י גָזִ ֛ית‬
‫ל ֹא ִתְׁש ּת֖ ּו אֶ ת־יֵינָ ֽם׃‬ ֥ ְ‫י־ח֣מֶ ד נְ טַ ְע ֶּ֔ת ם ו‬ ֶ ֵ‫ֹא־תְׁ֣ש בּו ָב֑ם ַּכ ְרמ‬ ֵ ‫יתם וְ ל‬ ֖ ֶ ִ‫ְּב נ‬
12
֙ ‫יכ ֑ם צ ְֹר ֵר֤י צַ ִּד יק‬ ֶ ֵ‫ ַועֲצֻ ִ ֖מים חַ ֹּֽטאת‬a‫יכם‬ ֶ ֔ ֵ‫ִּכ ֤ י י ַָד ְ֙עִּת י ֙ ַרִּב ֣ים ִּפ ְׁש ע‬
‫יוֹנ֖ים ַּב ַּׁש ֥עַ ר ִה ּֽטּו׃‬ ִ ‫ֹ֣ל ְקחֵ י כֹ֔ פֶ ר וְ אֶ ְב‬
13
‫לָ ֗ ֵכן הַ ַּמ ְׂש ִּכ ֛ יל ָּב ֵע֥ת הַ ִ ֖היא יִ ֹּ֑ד ם ִּכ ֛ י ֵע֥ת ָר ָע֖ה ִ ֽהיא׃‬
a 14
‫י־צבָ אֹ֛ ות‬
ְ ‫ֱֹלה‬ ֽ ֵ ‫א‬a ‫י־כן יְ הוָ ֧ה‬ ֵ ֞ ‫יה‬ ִ ִ‫ל־רע ְל ַמ֣עַ ן ִּת ֽ ְחיּ֑ו ו‬ ָ֖ ַ‫ִּד ְרׁשּו־טֹ֥ וב וְ א‬
‫ִאְּת ֶכ֖ם ַּכ אֲֶׁש ֥ ר אֲמַ ְרֶּת ֽ ם׃‬
15
‫אּולי יֶ ֽחֱנַ ֛ן יְ הוָ ֥ה‬
ַ֗ ‫אּו־רע ֙ וְ ֶא֣הֱבּו ֹ֔טוב וְ הַ ִּצ ֥ יגּו בַ ַּׁש ֖ עַ ר ִמְׁש ָּפ ֑ט‬ ָ ְ‫ִׂש נ‬
‫יוֹסף׃ ס‬ ֽ ֵ ‫ ְׁש אֵ ִ ֥רית‬a‫י־צבָ אֹ֖ ות‬ ְ ‫ֱֹלה‬ ֽ ֵ ‫א‬a

2.1.3. - Tradução
10 – Odeiam na porta aquele que repreende, e aquele que fala honestamente detestam.
11 – Por isso, visto que pisais sobre o pobre, e dele exigis entrega de cereal, casas de
pedras lavradas edificastes, mas nelas não habitareis; vinhas desejáveis plantastes, mas não
bebereis seu vinho.
12 – Porque sei que são muitas as vossas rebeliões e numerosos os vossos pecados,
oprimindo o inocente, tomando suborno aos necessitados, na porta pervertem.
13 – Por isso, aquele que for prudente guardará silêncio naquele tempo, porque a
época será má.

1
Texto hebraico extraído da Bíblia Hebraica Stuttgartensia., 5ª Edição Revisada, SBB, 1997.
6

14 – Buscai o bem e não o mal, para que vivais. Estará assim Yaweh, Deus dos
Exércitos convosco, como dizeis.
15 – Odiai o mal e amai o bem. Estabelecei na porta a justiça. Talvez Yaweh, Deus dos
Exércitos, tenha misericórdia do restante de José.

2.1.5. – A vVoz Pprofética em Amós


A cena descrita pelo profeta Amós é lamentável. Diante de um tribunal, reúnem-se
dois personagens distintos: o primeiro é pobre, e busca uma solução justa para o conflito. O
segundo é rico, e está disposto a tudo para não perder a disputa. Os juízes estão inclinados a
dar ganho de causa àquele que pagar mais. Naturalmente, o pobre não tem recursos para
“comprar” a justiça.
Uma testemunha honesta, possivelmente o próprio profeta, intervém a favor do mais
fraco, porém, recebe ameaças por parte dos opressores, que o detestam por sua insistência em
falar a verdade. Os exploradores têm alcançado enorme sucesso aàs custas dos necessitados, e
não pretendem abrir mão de suas casas de pedras lavradas, nem de suas vinhas que produzem
uvas deliciosas e vinhos finos.
Por mais absurdo que pareça, o rico ganha a causa outra vez, mediante suborno, e a
injustiça prevalece. O profeta, que testemunhou o fato pessoalmente, ou ficou sabendo por
outrem, se revolta. Apesar de tudo isso, os “prósperos” comerciantes atribuem a sua fortuna
aà presença abençoadora de Yaweh, Deus dos Exércitos, que destruiu todos os inimigos e
permitiu que Israel experimentasse um período de paz e prosperidade somente comparável
aos dias de Salomão.
A sensação que eles têm, agora, é que não terão mais problemas com os Assírios e
outros povos, pois “Yaweh, Deus dos Exércitos está conosco, o Deus de Jacó é o nosso
refúgio” (Salmo 46:11).
Entretanto o profeta, falando em nome de Yaweh, faz sérias acusações contra a
classe exploradora. A opressão, o suborno, e todas as formas de injustiça social são
severamente condenadas pelo Senhor, e aqueles que cometem tais pecados são exortados a
reverem suas atitudes e converterem-se, sob pena de serem destruídos.
Se os opressores derem ouvidos à voz profética que fala em nome de Yaweh, a
promessa é que viverão e terão realmente a garantia da presença misericordiosa e abençoadora
de Yaweh, Deus dos Exércitos. A justiça precisa ser reestabelecida em Israel, a começar pelos
tribunais. O bem deve ser amado e buscado. O mal, odiado e deixado de lado. Somente assim,
7

“o restante de José” pode ter esperança de gozar verdadeira paz e prosperidade, frutos da
bênção do Senhor.

2.1.6. – A vVoz pProfética nas Escrituras do Antigo e Novo Testamentos 2.


O pobre, o estrangeiro, o órfão e a viúva são lembrados de uma maneira toda especial,
por Deus, na sua Llei. São muitas as referências ao cuidado e atenção que os israelitas
deveriam dispensar aos necessitados. Um exemplo significativo encontra-se em
Deuteronômio, capítulo 14, versículos 22 a 29, e capítulo 26, versículos 12 a 15, onde lemos a
respeito dos dízimos. Um dos propósitos de separar os dízimos era prover sustento para o
levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva. Os dízimos tinham uma função social, além da questão
da fidelidade ao Senhor.
A Torá incentivava a justiça social, ou seja, as bênçãos do Senhor deveriam ser
usufruídas por todos. Não existiria lugar para a opressão econômica, mesmo que alguns
prosperassem mais que os outros. Os menos favorecidos deveriam ser assistidos pelos mais
prósperos. Nascimento Filho afirma que: “oO propósito da Lei era manter a sociedade livre de
opressões, de forma que a experiência do povo no Egito nunca se repetisse.”3
Quanto aos profetas, não apenas Amós, mas os demais, tanto em Judá como em Israel,
condenaram as injustiças cometidas contra os pobres e necessitados. Alguns exemplos: Isaías,
no capítulo 1, versículo 23, afirma: “Seus líderes são rebeldes, amigos de ladrões; todos eles
amam o suborno e andam atrás de presentes. Eles não defendem os direitos do órfão, e não
tomam conhecimento da causa da viúva.”
Miquéias trata da opressão e exploração dos pobres, condenando os opressores,
conforme encontramos, por exemplo, no capítulo 2, versos 1 e 2: “Ai daqueles que planejam
maldade, dos que tramam o mal em suas camas! Quando alvorece, eles o executam, porque
isso eles podem fazer. Cobiçam terrenos e se apoderam deles; cobiçam casas e as tomam.
Fazem violência ao homem e à sua família; a ele e aos seus herdeiros.” E no capítulo 3, versos
de 1 a 4diz:: “Ouçam, vocês que são chefes de Jacó, governantes da nação de Israel. Vocês
deveriam conhecer a justiça! Mas odeiam o bem e amam o mal; arrancam a pele do meu povo
e a carne dos seus ossos. Aqueles que comem a carne do meu povo, arrancam a sua pele,

2
Elencaremos apenas alguns textos das escrituras do Aantigo e do Nnovo Ttestamentos, uma vez que são muitos
os exemplos bíblicos.
3
NASCIMENTO FILHO, Antonio José do. O pPapel da aAção sSocial na eEvangelização e mMissão na
América Latina. Campinas: LPC Comunicações, 1999, p.36.
8

despedaçam os seus ossos e os cortam como se fossem para a panela, um dia clamarão ao
Senhor, mas ele não lhes responderá. Naquele tempo Ele esconderá deles o rosto por causa do
mal que eles têm feito.”
Em Lucas capítulo 10, versículos 25 a 37, Jesus é interpelado por um intérprete da lei,
com relação ao que fazer para herdar a vida eterna. A resposta de Jesus é interessante. Leva o
inquiridor refletir sobre o que diz a lei, perguntando-lhe como a interpretava. O intérprete da
lei resume os mandamentos em dois, ou seja, amar a Deus e amar ao próximo. Jesus o elogia
pela sua resposta, e, então, o desafia: “Faze isto e viverás.” (v.28).
O maior mandamento é o amor, segundo o Senhor Jesus. Amar a Deus e ao
próximo. Porém, se alguém diz que ama a Deus, mas odeia seu irmão, é mentiroso, como diz
João em sua primeira carta, capítulo 4, versículo 20. O intérprete da lei questionou: “Quem é
o meu próximo?” Para os judeus, o próximo era um amigo, um parente, um compatriota. Jesus
responde o questionamento contando uma história, sobre um homem que é assaltado e
deixado semimorto na margem da estrada.
A seguir Jesus narra a reação de algumas pessoas que por ali passaram. Dois
religiosos, um sacerdote e um levita, simplesmente o ignoraram, passando ao largo. Um
samaritano, um estrangeiro, desprezado pelos judeus, foi aquele que se mostrou
verdadeiramente próximo do homem caído. Foi ele quem demonstrou, na prática, o que
significa amar ao próximo.
A orientação de Jesus de Jesus ao intérprete da lei foi desafiadora: “Vai e procede tu
de igual modo.” (v.37). Nascimento Filho afirma:

A missão da igreja neste mundo é mais que proclamação verbal. É um serviço


sacrificial, para o qual Cristo envia seu povo redimido ao mundo, tal como o Pai o
enviou. Jesus Cristo é o modelo e norma para a igreja (João 20:.21) “O verbo se fez
carne e habitou entre nós” (João 1:14), e tomou a forma de servo (Filipenses 2:.5-
11). Este é o caminho de Deus, para comunicar seu amor a todas as pessoas: “Nisto
se manifestou o amor de Deus em nós, em haver Deus enviado o seu Filho
Unigênito ao mundo, para vivermos por meio dele” (1 João 4:.9) [...] Portanto, os
cristãos são motivados pelo amor de Jesus Cristo e por sua palavra, a tomar muito
seriamente o anúncio da boa nova de Jesus Cristo .[...] O Nnovo Ttestamento, de
modo nenhum, revoga o mandamento de Deus, para a justiça social, caridade e
amor. Antes, ele acrescenta uma nova dinâmica e uma nova dimensão àqueles
mandamentos.4

Jesus é o maior exemplo a ser seguido, ao pensarmos em uma voz profética, tanto na
prática das boas obras, quanto na luta por justiça. Nas palavras de César:

O exemplo mais perfeito e mais impressionante de solidariedade com o pobre e


miserável, é o exemplo de Jesus Cristo. Ninguém é tão alto, majestoso e glorioso

4
Ibidem.
9

quanto ele, e ninguém desceu de seu pedestal, tanto quanto o Senhor. A pessoa mais
empolgada com o exemplo de Jesus, certamente é o apóstolo Paulo. Aos coríntios, o
ex-fariseu escreve: “”Vocês conhecem a graça de nosso Senhor Jesus Cristo que,
sendo rico, se fez pobre por amor de vocês, para que por meio de sua pobreza vocês
se tornassem ricos” (2 Coríntios 8:.9 -NVI). E aos filipenses, o apóstolo propõe a
imitação do exemplo de Jesus: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus,
que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia
apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante
aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi
obediente até a morte, e morte de cruz!” (Filipenses 2:.5-8).5

Por toda a Bíblia, pois, observamos a condenação do uso indevido do poder


econômico, para oprimir e explorar os pobres e necessitados, e a certeza de que esses pecados
são tão graves quanto os individuais.

2.2. Fundamentação tTeológica

2.2.1. A dDoutrina de Deus e a jJustiça Social


Deus é soberano sobre toda a criação. Não devemos esquecer que ele é o Senhor a
quem pertence “a Tterra e tudo que nela se contém.” (Salmo 24:1). Os cristãos tem a
tendência de limitar Deus, como se fosse uma propriedade da Igreja. O fato de Deus ser
onipresente, onisciente e onipotente, nos lembra que sua presença enche a Tterra, ele conhece
tudo e todos, e seu poder está muito além do controle de qualquer pessoa ou instituição,
inclusive a igreja. O interesse de Deus é por todas as pessoas, não apenas por aquelas que
professam um credo religioso. Nossa relação com Deus precisa, pois, transcender os limites
da nossa religião. Stott declara:

O nosso Deus, por ser religioso demais, acaba sendo pequeno demais. Nós o
imaginamos essencialmente preocupado com religião: edifícios religiosos (templos e
capelas), atividades religiosas (cultos e rituais) e livros religiosos (Bíblia e Livros de
Oração). É claro que ele se interessa por estas coisas, mas somente se estiverem
relacionadas com o todo da nossa vida. De acordo com os profetas do Antigo
Testamento e os ensinamentos de Jesus, Deus é muito crítico quanto à “religião” que
se limita a cerimônias religiosas, divorciadas da vida real, do serviço em amor, e da
obediência moral, que brota do coração. “A religião pura e sem mácula, para o com
nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e a si
mesmo guardar-se incontaminado do mundo” (Tiago 1:27). O único valor dos cultos
religiosos, é que eles concentram em cerca de uma hora a atividade pública, vocal e
congregacional, a devoção de toda a nossa vida. Se isto não acontece, e ao invés
disso, dizemos e cantamos na igreja, coisas que nada tem a ver com a vida cotidiana
lá fora, em casa e no trabalho, então ir aos cultos é ainda pior do que fazer nada;
nossa hipocrisia provoca náuseas em Deus.6

5
CÉSAR, Elben M. Lenz, Quem leva a Bíblia a sério obriga-se a levar também a sério a justiça social.
Revista Ultimato, Jul/Ago 2004, p.26.
6
STOTT, John R.W. O cCristão eEm uUma sSociedade nNão cCristã. Tradução: Sileda S. Steuernagel.
Niterói: Ed. Vinde, 1989, p. 34.
10

Deus é amor. E o amor de Deus se estende a todos os homens, não apenas aos cristãos,
ou aos evangélicos. Até mesmo quem não o reconhece, ou duvida de sua existência, é alvo do
seu amor. O amor de Deus é abrangente, alcança a todos. O amor de Deus não é manifestado
em sentimentos ou palavras, mas de maneira muito prática. Ele nos amou e entregou seu
próprio Ffilho, para morrer em nosso lugar. “Deus prova o seu amor por nós, pelo fato de ter
Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores.” (Romanos 5:8).
Deus está interessado em cada ser humano deste planeta, e cabe a nós, sua igreja,
manifestar esta preocupação, não apenas evangelizando, ou seja, falando deste magnífico
amor., mMas demonstrando-o através de nossas obras, de nosso serviço, de nossas ações
concretas, em busca de jJustiça.
Nascimento Filho observa:

Os cristãos devem reconhecer que não possuem autoridade, nem poder, para fazer
todas as coisas que Deus faz. Entretanto, uma vez que as Escrituras Sagradas
mostram o tipo de Deus que ele é, e uma vez que suas intenções foram expressas nas
exigências de sua lei e dos profetas, é incontestável o tipo de pessoas que os cristãos
devem ser, buscando justiça, libertação e dignidade para todos, especialmente para
os impotentes, que não podem alcançá-los por si mesmos.7

A confissão de fé de Westminster, no capítulo que trata das boas obras, afirma:

Estas boas obras feitas em obediência aos mandamentos de Deus, são o fruto e as
evidências de uma fé viva e verdadeira; por elas, os crentes manifestam a sua
gratidão, robustecem a sua confiança, edificam os seus irmãos, adornam a profissão
do evangelho, fecham a boca aos adversários e glorificam a Deus, de quem são
feitura, criados em Jesus Cristo, para isso mesmo, a fim de que, tendo o seu fruto em
santidade, tenham no final a vida eterna.8

Ao realizar boas obras de serviço, mostramos que o Deus criador, soberano de todo o
universo, é o nosso Senhor, e, assim, glorificamos o seu nome, através de nossa vida prática.

2.2.2. A dDoutrina de Cristo e a jJustiça sSocial


A encarnação de Cristo nos desafia e confronta nossos conceitos missiológicos. De
maneira geral, entendemos que para cumprir a missão devemos evangelizar distribuindo
folhetos, realizar algumas “tardes evangelísticas”, ou conferências, impactos ou quaisquer
outros nomes que possamos dar aos eventos que pretendemos que sejam “missionários”; oOu

7
NASCIMENTO FILHO, Antonio José do. O pPapel da aAção sSocial na eEvangelização e mMissão na
América Latina. Campinas: LPC Comunicações, 1999, p.43.
8
MARTINS, Valter Graciano (Ed.), A Confissão de Fé de Westminster, Capítulo XVI, Parágrafo II, 1ª Edição
Especial. São Paulo,: CEP, 1991, p.82.
11

convidar amigos, parentes, vizinhos para virem aos nossos cultos evangelísticos. O maior
objetivo, via de regra, é salvar as “almas perdidas”, de preferência trazendo as pessoas para
nossa igreja local, com a finalidade de fazer nossa igreja crescer numericamente.
Esquecemos – ou ignoramos – que a missão é de Deus, e que para cumpri-la,
precisamos olhar para o nosso modelo maior e aprender com ele.
Mais uma vez citamos Stott:

Se a missão cristã é para ser modelada pela missão de Cristo, ela certamente
implicará – assim como ele o fez – penetrarmos no mundo das pessoas. Em se
tratando de evangelização, isso significa entrar no mundo de seus pensamentos, no
mundo da sua tragédia e solidão, a fim de compartilhar Cristo com eles, lá onde eles
estão. Socialmente falando, significa disposição para renunciar ao conforto e à
segurança de nossa própria formação cultural, a fim de nos doarmos em serviço a
indivíduos de outra cultura, de cujas necessidades quem sabe jamais tenhamos tido
conhecimento ou experiência. Uma missão encarnada, seja ela evangelística ou
social, ou mesmo ambas, exige uma custosa identificação com as pessoas, em sua
real situação. Jesus de Nazaré movia-se de compaixão ao ver as necessidades dos
seres humanos, fossem eles enfermos, enlutados, famintos, atormentados ou
desamparados. Não deveria a compaixão do seu povo nascer das mesmas
motivações? 9

Stott faz uma dicotomia entre evangelização e ação social. Ao nosso ver, ambas estão
de tal maneira entrelaçadas, que não é possível estabelecer uma linha divisória. Apesar dessa
ressalva, a análise que ele faz da missão encarnada, nos moldes de Cristo, é excelente.

2.2.3. A dDoutrina da iIgreja e a jJustiça sSocial


A Igreja de Jesus Cristo não é um clube, ou uma associação religiosa em que os
membros se reúnem, vez em quando, para se divertirem, ouvirem mensagens motivacionais,
esquecerem seus problemas lá fora e olharem para o alto, sonhando com o paraíso.
A Igreja é a noivaesposa e o corpo de Cristo, a família de Deus, composta de todos
aqueles que são alcançados pela graça de Deus em Cristo Jesus. A ela, “Cristo deu o
ministério, os oráculos e as ordenanças de Deus, para congregação e aperfeiçoamento dos
santos.”10
O ministério que Cristo confiou à Igreja pode ser entendido a partir do ministério do
próprio Cristo – “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio.” (João 20:21). A
missão confiada à Igreja é, antes de tudo, a de prosseguir a obra de Jesus Cristo, para a glória
de Deus.

9
STOTT, John R. W. O cCristão eEm uUma sSociedade nNão cCristã. Tradução: Sileda S. Steuernagel.
Niterói: Ed. Vinde, 1989, p. 41.
10
MARTINS, Valter Graciano (Ed.), A Confissão de Fé de Westminster., Capítulo XVI, Parágrafo II, 1ª
Edição Especial. São Paulo,: CEP, 1991, p.132.
12

Sobre isso diz Araújo Filho:

Se a igreja pretende ganhar a sua sociedade secular circundante, ela precisa


encarnar-se nela. Isto significa assumir Jesus de Nazaré em nossa vida, dentro de
nossa cultura concreta, a fim de que Ele se torne cidadão de cada uma das culturas
deste mundo. A igreja precisa ver as situações históricas e concretas, de modo
pertinente e participativo. Ela não pode ser, de modo algum, uma comunidade
paralela. Nós não somos sal do sal, nem luz da luz; somos sal da terra e luz do
mundo. A igreja tem que participar das situações históricas reais. 11

A Igreja é composta de pessoas que, primeiramente, são chamadas para fora do


mundo, restauradas e transformadas para a glória de Deus. Em seguida, são enviadas
novamente ao mundo, para proclamarem as virtudes de quem as chamou (1 Pedro 2:;9).
O mesmo Jesus quem convida: “Vinde a mim todos” (Mateus 11:28), ordena: “Ide por
todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16:15).
Para que esta proclamação tenha êxito, credibilidade e alcance seu objetivo, a Igreja
precisa seguir o modelo por excelência, Jesus Cristo, que anunciou o amor de Deus com
palavras e obras, com ensinamentos e serviço, entregando a própria vida em resgate de
muitos.
A Igreja de Jesus Cristo não pode negar a sua responsabilidade de proclamar a vida
abundante que somente encontramos Nnele. E esta vida em abundância inclui justiça, paz e
alegria no Espírito Santo. (Romanos 14:17).

2.3. Fundamentação hHistórica

2.3.1. A vVoz pProfética no pPeríodo dos Pais da Igreja


Por volta do ano 100 A.D. os cristãos, em sua maioria, eram pessoas pobres, muitos
escravos, embora houvesse alguns nas classes mais altas, especialmente na igreja de Roma. A
iIgreja tinha o cuidado de assistir os necessitados, conforme observa Nichols:

Em toda a parte, havia muita coisa que distinguia um cristão dos vizinhos pagãos.
Eles se tratavam, mutuamente, por irmãos em Cristo e realmente agiam como
irmãos. Cuidavam, desveladamente, dos órfãos, dos doentes, das viúvas, dos
desamparados. As coletas, e a administração dos fundos de caridade, constituíam
uma das partes importantes da vida dessas igrejas primitivas. Dentro da Igreja, todas
as distinções foram abolidas. Escravos e senhores foram nivelados. As mulheres
alcançaram uma posição de honra e de influência, que jamais conseguiram na
sociedade profana.12

11
ARAÚJO FILHO, Caio Fábio d’. Igreja: eEvangelização, sServiço e tTransformação hHistórica. Niterói:,
Ed. Vinde, 1987, pp. 47-48.
12
NICHOLS, Robert Hastings. História da iIgreja cCristã. 5ª Edição Revisada. Adaptação: J. Maurício
Wanderley. São Paulo: CEP, 1981, pp. 20-21.
13

As constantes perseguições serviram para moldar o caráter dos cristãos, o que os


levava a uma vida cristã, com alto nível ético e moral. E isto se revelava também na maneira
como eram assistidos os carentes, não apenas da iIgreja, mas também os de fora. Nichols
continua:

A fraternidade cristã, a pureza, a honestidade, a bondade eram os seus principais


característicos. O mundo ficou especialmente impressionado com a expressão de
amor fraternal desses cristãos, qualidade esta que era estranha para o mundo. Era
comum a necessidade entre eles, pois havia muitos pobres. As perseguições
deixavam muitas viúvas e órfãos e provocavam confiscação de bens. O amor cristão
supria essas necessidades. Mas esse amor não se limitava somente aos irmãos na fé.
Em épocas de calamidade, como pestilências, etc, os cristãos cuidavam dos
necessitados, sem distinção, numa era quando ninguém se atrevia a fazê-lo.13

Clemente de Alexandria trata da questão da riqueza e da pobreza, em sua exegese de


Mateus 19:24, em que Jesus afirma: “E lhes digo ainda: é mais fácil passar um camelo pelo
fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus” (NVI). A interpretação de
Clemente é alegórica: “O que ele (o rico), deve banir de sua alma, são suas noções sobre a
riqueza, seu apego a ela, seu desejo excessivo e excitação mórbida por ela, e suas ansiedades
– aqueles espinhos da existência, que sufocam a semente da verdadeira vida.”14
Ambrósio pensava de maneira igualdistinta, considerando que o rico deveria sim estar
disposto a abrir mão, de suas posses, em detrimento do necessitado. Ele convidava o rico a
pensar que sua riqueza é transitória e, diante do que está reservado no céu, é insignificante. E
vai mais além, condenando aqueles que se apegavam em demasia às suas propriedades:

Você reveste suas paredes, e deixa os homens à nudez. O nu clama diante de sua
casa, despercebido; seu concidadão está lá, nu e clamando, enquanto você se
deslumbra com a variedade de mármore para assentar em seu piso. Um pobre
homem pede dinheiro em vão; seu concidadão está lá, suplicando o pão, e seu cavalo
mastiga ouro (milho) entre os dentes. Outros homens são tem milho e sua fantasia
está presa por preciosos ornamentos. Que julgamento você chama sobre si! As
pessoas estão famintas, e você fecha o seu celeiro; estão gemendo, e você brinca
com a joia presa em seu dedo. Homem infeliz, com o poder, mas não com a vontade
para socorrer tantas almas da morte, quando o preço de um anel adornado pode
salvar a vida de toda uma população.15

Ambrósio propôs que se vendessem artigos preciosos dos altares de sua igreja, em
Milão, para arrecadar fundos, utilizados no resgate de prisioneiros. Ele declarou: “Há um
incentivo, que nos impele a todos para a caridade: é a misericórdia, em favor de nosso

13
Ibidem, p. 33.
14
Citado por HALL, Christopher A. Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja. Tradução: Rubens Castilho, 2ª
Reimpressão. Viçosa: Ed. Ultimato, 2002, p.160.
15
Ibidem, p. 163.
14

próximo, e o desejo de aliviar suas necessidades, com todos os meios ao nosso alcance, e de
outros mais.”16
A respeito deste período da história da iIgreja, escreve Nascimento Filho:

Embora os cristãos limitassem sua caridade mormente à sua própria comunidade,


eles também socorriam os órfãos, viúvas, feridos, doentes e forasteiros. [...] São
Basílio, bispo da Capadócia, e brilhante teólogo, tornou-se famoso por sua aplicação
do evangelho à sociedade. Ele via, em seu tempo, uma enorme distância entre ricos
e pobres. Estes eram tão desgraçados, que muitos vendiam seus filhos, para
escravagistas, a fim de poder sustentar a família. [...] São Basílio desenvolveu-se um
serviço social cristão coletivo, criando hospitais e abrigos para viandantes e pobres. 17

Tertuliano, outro pai da Igreja, incentivou a prática das boas obras em favor dos
necessitados. De acordo com ele, cada cristão deveria reservar uma pequena quantidade de
dinheiro, em certo dia do mês, de acordo com as suas posses, para ajudar os necessitados. O
dinheiro recolhido, seria utilizado para o sustento e enterro de pobres, para crianças órfãs, que
não tinham meios de subsistência, para os idosos que viviam em abrigos, e por qualquer um
nas prisões.18

2.3.2. O pPeríodo da Reforma – A vVoz pProfética em Lutero e Calvino


Entre os diversos fatores, que culminaram com a Reforma Protestante no século XVI,
destaca-se a opressão econômica e social. Os camponeses, os pobres operários das cidades, e
outras classes exploradas, revoltavam-se contra os exploradores. Sobre isso afirma Nichols:

Dois fatores religiosos estavam sempre presentes, nestes distúrbios sociais. Um


deles, era o ódio feroz aos sacerdotes, por causa das suas explorações (ou extorsões
de dinheiro), e a indiferença e recusa dos padres em fazer alguma coisa, para libertar
as classes oprimidas. O outro era um apelo aos princípios cristãos de justiça social.
Assim, nos últimos anos que precederam a Reforma – a Alemanha, particularmente
no sul, estava fervendo com o descontentamento amargo da pobreza, que muitas
vezes fez explodir o seu ódio em desesperadas rebeliões.19

Qual a visão de Martinho Lutero sobre as questões sociais? Ele entendia que o cristão
é um cidadão de dois reinos, o reino de Deus e o reino deste mundo. Desta forma, é
responsável diante de ambos. Ele acreditava que Deus pode usar o governo humano, para

16
Citado por NASCIMENTO FILHO, Antonio José do. O pPapel da aAção sSocial na eEvangelização e
mMissão na América Latina. Campinas: LPC Comunicações, 1999, p. 59.
17
Ibidem, p. 59.
18
Ibidem, p. 60
19
NICHOLS, Robert Hastings. História da iIgreja cCristã. 5ª Edição Revisada. Adaptação: J. Maurício
Wanderley. São Paulo: CEP, 1981, p. 123.
15

estabelecer a justiça social, e, portanto, entendia que o cristão deve submeter-se às autoridades
civis, pois estas são estabelecidas por Deus.20
Em 1523, Lutero escreveu o Estatuto para uma caixa comunitária, onde demonstrou
grande preocupação com os pobres, idosos, viúvas, órfãos, cidadãos endividados e forasteiros
interessados em morar em Wittenberg. Os fundos para a caixa comunitária eram provindos de
diversas fontes: doações, coletas, contribuições espontâneas, esmolas, heranças de pessoas
voluntárias, etc. Quem administrava esses recursos eram dez provedores, eleitos pela
assembleia geral da paróquia, com membros da nobreza (dois), do conselho paroquial (dois),
dos habitantes da cidade (três) e da zona rural (três) que exerciam o mandato por um ano, e
deveriam ser fiéis e zelosos com o dinheiro público.21
João Calvino, outro reformador, preocupou-se em buscar na Palavra de Deus, os
parâmetros para a construção de uma sociedade, onde a justiça social fosse estabelecida. Ele
foi, acima de tudo, um teólogo, um pastor e um estudioso das Escrituras Sagradas. Por isso,
seu pensamento a respeito da sociedade, assim como de todas as suas implicações, baseava-se
na sua compreensão teológica.
A raiz de todo problema social está na natureza corrupta do ser humano. Este é, para
Calvino, o ponto de partida para entender a miséria, a pobreza, a opressão econômica e social,
a perversão e corrupção da sociedade humana.
Calvino tinha consciência de que uma reforma perfeita e total na sociedade é algo
impossível, por causa do pecado e seus efeitos, que ainda perduram. Qualquer tentativa
sempre resultará em uma reforma parcial, que não consegue estabelecer a justiça, no mundo
presente. A total restauração das estruturas decadentes, somenteó terá lugar com a volta de
Jesus Cristo e o estabelecimento pleno do reino de Deus.
Para Calvino, a Igreja deve refletir os ideais do Reino de Deus, ainda que não o faça
perfeitamente. Mas deve antecipar o reino de justiça, que Jesus trará na sua vinda, servindo
como sinal do reino, no tempo presente.22

2.3.3. A vVoz pProfética no rReavivamento wWesleyano

20
NASCIMENTO FILHO, Antonio José do. O pPapel da aAção sSocial na eEvangelização e mMissão na
América Latina. Campinas: LPC Comunicações, 1999, pp.64-65.
21
CÉSAR, Elben M. Lenz, Os dDois Martin Luther: O Martin Luther do sSéculo 16. Revista Ultimato,
Julho/Agosto 2004, p.31.
22
LOPES, Augustus Nicodemus. O eEnsino de Calvino sSobre a rResponsabilidade sSocial da iIgreja.
Disponível em: <http://www.seminariojmc.br/index.php/2018/01/04/o-ensino-de-calvino-sobre-a-
responsabilidade-social-da-igreja/> ,. Aacesso em: 27 de aAgo.sto de 2021.
16

Ao lado de Charles Wesley e George Whitefield, John Wesley foi o grande evangelista
do século XVIII, na Inglaterra. Sua evangelização itinerante, e suas pregações ao ar livre, até
hoje são lembrados, como características de seu frutífero ministério.
Em meio à revolução industrial, o reavivamento Wesleyano contribuiu de forma
decisiva, para a transformação da sociedade, através do evangelho. A iIgreja na Inglaterra
atravessava uma tremenda crise religiosa, e, consequentemente, a sociedade experimentava
um momento de injustiça social, e graves pecados morais, conforme escreve Nichols:

O espírito geral da religião na Inglaterra, era apenas de formalismo e de frieza. As


formas exteriores da religião eram comumente observadas, mas era raríssimo o
entusiasmo religioso oriundo de uma fé sincera. Havia grande necessidade de um
cristianismo prático, de vida real, abundante, para extirpar os males grosseiros da
vida nacional. Os vícios que dominavam a alta sociedade, desde os tempos da
Restauração, atingiram também outras classes. Era baixo, o nível moral. A
embriaguez tornou-se muito comum na primeira metade do século XVIII. A pobreza
seguiu-lhe os passos e se espalhou ainda mais; os impostos, que recaíam sobre os
pobres foram triplicados entre 1714 e 1750. Os crimes e as desordens, eram muito
comuns nas cidades, apesar da severidade das penas legais. Um dos piores aspectos
da situação, era a ignorância das classes mais altas da sociedade e a indiferença
desta, quanto às classes menos favorecidas. 23

Foi neste contexto que surgiu Wesley, pregando ao ar livre, em março de 1739, no
primeiro trabalho que realizou e que o firmou como líder do reavivamento. É interessante que,
esta primeira pregação, já foi dirigida para “um grupo de gente humilde e desprezada.”24
O despertamento espiritual, que ocorreu na Inglaterra nos dias de John Wesley, não
transformou apenas as “almas” das pessoas reavivadas, nem apenas aproximou as pessoas de
Deus, mas causou um impacto na vida cotidiana de cada cristão que procurava viver o amor a
Deus e ao próximo de maneira prática.
Neste período também é digno de nota o surgimento de um homem chamado Robert
Raikes25, em Gloucester, na Inglaterra, que em 1780 criou uma escola aos domingos para
crianças pobres, que cresciam sem oportunidade alguma de serem educadas, não fosse a
iniciativa deste servo de Deus. A iniciativa de Raikes é a origem do que hoje chamamos
“Escola Bíblica Dominical”, e que teve seus objetivos modificados ao longo do tempo, vindo
a se transformar em uma escola voltada apenas para o ensino bíblico, mormente para os
crentes, distanciando-se no tempo e no propósito de suas origens.
Assim, como na história bíblica, os demais períodos históricos do povo de Deus são
repletos de exemplos que nos servem de base para afirmar, com toda a certeza, que lutar pela
23
NICHOLS, Robert Hastings. História da iIgreja cCristã. 5ª Edição Revisada. Adaptação: J. Maurício
Wanderley. São Paulo: CEP, 1981, pp. 189-190.
24
Ibidem, p. 191.
25
Ibidem, p. 195.
17

justiça e dedicar a vida ao serviço do próximo, é parte essencial da Missão de Deus confiada à
sua Igreja.

UNIDADE III – APLICAÇÃO PRÁTICO-MISSIOLÓGICA

3.1. Constatações e conclusões


Tendo como ponto de partida um episódio narrado pelo profeta Amós, em que ele
denuncia um flagrante desrespeito à justiça e equidade entre irmãos de uma mesma nação,
com o agravante desse povo ser aquele que Deus escolheu entre as nações para ser o povo que
deveria refletir a justiça e a santidade do seu Deus, passamos por alguns textos bíblicos do
Aantigo e do Nnovo Ttestamentos, nos quais apontamos a importância e relevância das boas
obras, na luta por uma sociedade mais justa e humana.
Nosso objetivo foi demonstrar que desde o princípio o plano do Criador era que
houvesse condições de igualdade e justiça para todos, algo que podemos constatar já na
narrativa da criação do homem e da mulher, pois ambos foram criados para se completarem, e
não para que houvesse qualquer tipo de dominação de um para com o outro. Ambos estavam
nus e não se envergonhavam, como afirma Menezes:

Estavam nus, e não se envergonhavam” (Gn 2:25), pois viam-se como iguais,
sabiam exatamente quem eram e para que eram. Não havia um padrão a alcançar,
não havia um status a buscar, não havia disputa, hierarquia, nem bem, nem mal.
Eram apenas humanos, que se aceitavam em suas condições e, portanto, aceitavam o
outro em suas condições também.26

Com a queda este estado de coisas é prejudicado, de tal forma que logo os mais fortes
passam a subjugar os mais fracos, os poderosos se tornam opressores, e o resultado,
lamentavelmente, é o prevalecimento da injustiça, desigualdade, iniquidade entre aqueles que
foram criados coiguais.
Em seguida vimos que o tema da busca por justiça, manifestada pela prática de boas
obras, está presente também em diversas doutrinas expostas pela teologia denominada
“sistemática”, e para exemplificar pinçamos alguns conceitos exarados na doutrina de Deus,
na doutrina de Cristo e na doutrina da Igreja.

26
MENEZES, Jonathan. Apostila da dDisciplina tTeologia cContemporânea. Londrina:, FTSA, 2021, p. 50.
18

E ainda resgatamos alguns exemplos retirados da história do cristianismo, mostrando


que a preocupação com os mais fracos, com os excluídos, com os marginalizados não é
novidade, mas está presente desde os primórdios, desde os chamados “pais da Igreja”, entre os
quais citamos Clemente de Alexandria, Tertuliano e Ambrósio de Milão.
Vimos também os exemplos dos reformadores Martinho Lutero e João Calvino,
finalizando com os avivalistas, mencionando, ainda que brevemente, o trabalho social de John
Wesley e do fundador da Escola Bíblica Dominical, Robert Raikes.
Concluímos que não se pode separar a pregação do evangelho das ações em prol da
justiça e da prática de obras de justiça e misericórdia, pois se restringirmos o anúncio do
evangelho apenas às palavras, ao discurso religioso, e ainda por cima recheado de
proselitismo irrefletido, não estaremos cumprindo com fidelidade e integridade a ordem de
nosso Senhor Jesus de sermos suas testemunhas até os confins da terra. Não seremos sal e luz,
não seremos verdadeiramente a voz profética em nosso tempo.
E desta forma, deixaremos de agir como o profeta Amós, que denunciou a injustiça,
pronunciou uma terrível sentença, mas também anunciou esperança de salvação:

Busquem o bem, não o mal, para que tenham vida. Então o SenhorENHOR, o Deus
dos Exércitos, estará com vocês, conforme vocês afirmam. Odeiem o mal, amem o
bem; estabeleçam a justiça nos tribunais. Talvez o SenhorENHOR, o Deus dos
Exércitos, tenha misericórdia do remanescente de José.27

3.2. Implicações práticas e missiológicas


Apontamos, a partir de agora, algumas possibilidades práticas de se fazer ouvir a voz
profética da iIgreja, na busca por uma sociedade mais justa, conforme a Palavra de Deus.
Vamos refletir sobre três dimensões da prática da Igreja: A Visão, a Palavra e a Ação.

3.2.1. A vVisão: aA mMissão de Deus é iIntegral


Alcançar todas as pessoas com o evangelho e. E alcançar a pessoa toda. Creio ser essa
a visão. Eis o desafio que se nos impõe. Há muitos que entendem a evangelização como
“ganhar almas” para Cristo, resgatando-as deste “mundo” e preparando-as para a eternidade.
A tarefa precípua da iIgreja, então, seria conduzir pessoas a Cristo para que elas deixem de se
preocupar com o aqui e agora, e passem a “pensar no lar do céu” e no que devem fazer para
chegar lá.

27
Ibidem, p. 50.
19

Sabemos, porém, que o ser humano não é constituído apenas de alma ou espírito. Ele
possui necessidades físicas, emocionais, sociais e espirituais. E por isso é vital
compreendermos que a Missão de Deus para a qual a iIgreja é convocada a participar é
integral, visando atingir a pessoa toda, além de todas as pessoas.
Um risco que podemos correr é o de se transformar a missão em aAssistência ou
mesmo aAção sSocial.
Benedito Gomes Bezerra elaborou um esquema28 para demonstrar que é possível cair
em extremos quando se procura cumprir a tarefa missionária, e, via de regra, há dois grupos
que pendem ou para um lado, ou para o outro:

Evangelização Responsabilidade Social


Ação de Deus na iIgreja e através desta; Ação de Deus no mundo, independente da
iIgreja;
Interpretação “vertical” do Evangelho; Interpretação “horizontal” do Evangelho;
Busca de Deus pela justificação Busca de Deus pela justiça nas nações e
dos pecadores; entre estas;
Redenção; Providência;
Salvação da alma; Aperfeiçoamento da sociedade;
Estereótipo: espiritualização do Evangelho. Estereótipo: politização do Evangelho.

De acordo com Bezerra esta dualidade não é admitida por nenhum dos grupos, porém,
embora não a aceitem, acabam praticando-a, quase que inconscientemente.
Precisamos cuidar para não cometer este mesmo equívoco. “Toda prática social da
iIgreja é, de alguma forma, evangelizadora. Por outro lado, toda ação evangelística da Igreja
é, em maior ou menor grau, parte de sua responsabilidade social”.29
Marcondes Filho faz a seguinte afirmação:

A missão da Igreja não é nem evangelizar, nem realizar a ação social, mas ser serva
de Deus. Quando o contexto clama por algum tipo de interesse, a Igreja, como serva
de Deus, deve responder com total dedicação. Se o caso exige proclamação, a Igreja
irá anunciar a salvação em Cristo. Se a situação implica em atendimento de
necessidades básicas, a Igreja não deve furtar-se a demonstrar o serviço a Deus no
mundo.30

28
BEZERRA, Benedito Gomes. Cidadania e mMissão iIntegral: fFundamentos bBíblico-tTeológicos. InEm:
ANDRADE, Sérgio [et al]. Saúde, vViolência e gGraça: aA mMissão iIntegral e os dDesafios para a iIgreja.
Viçosa: Ed. Ultimato, 2003, p. 77.
29
Idem
20

A iIgreja necessita de sensibilidade e discernimento espiritual, para servir aàs pessoas


de acordo com suas reais necessidades. A missão integral será cumprida, quando a Igreja
compreender seu papel de serva e colocar em prática o ensino de Jesus, e de toda a Bíblia
Sagrada, a respeito do amor ao próximo.
É certo que é preciso ter prudência, discernimento e bom senso, ao realizar as boas
obras e cuidar dos necessitados. Não praticar “assistencialismo”, o que causa mais males do
que bens. Marcondes Filho define assistencialismo como: “a atitude supridora de anseios
imediatos, mas que não se consumam num projeto estrutural, que beneficie o indivíduo e a
coletividade de maneira abrangente.”31
De qualquer modo, tomando todos os cuidados para não nos tornarmos
assistencialistas, precisamos refletir e encontrar maneiras práticas de cumprir a nossa tarefa
missionária, resgatando vidas inteiras para a glória do Senhor, que nos convoca a participar da
sua missão.

3.2.2. A Palavra: oO rResgate da vVoz pProfética da iIgreja


O que queremos dizer com “voz profética”? Nossa intenção é nos remetermos aos
profetas do Antigo Testamento, que surgiram pregando uma mensagem de arrependimento e
retorno aos princípios da Lei de Deus, denunciando a idolatria e a injustiça social, na vida do
povo de Deus.
O alvo de sua denúncia era, principalmente, a monarquia decadente de Israel, e,
depois, também de Judá. Os reis de Israel e Judá, e com eles toda a nobreza, afastaram-se do
Senhor, prostituindo-se ao se curvarem diante dos ídolos das nações, fazendo o povo pecar. E
não apenas por causa da idolatria, mas porro promoverem a opressão e a injustiça de maneira
exacerbada.
O quadro geral de nossa sociedade contemporânea não é diferente dos dias dos
profetas de Israel. Opressão, injustiça, má distribuição de riquezas e renda, corrupção
generalizada, exploração dos mais fracos, violência de toda espécie, entre tantos outros
pecados estruturais.
Algumas palavras dos profetas do Antigo Testamento caberiam perfeitamente nas
páginas dos jornais e das mídias eletrônicas atuais. Como por exemplo, Isaías: “Ai de vocês
que adquirem casas e mais casas, propriedades e mais propriedades até não haver mais lugar
para ninguém e vocês se tornarem os senhores absolutos da terr a.” (Isaías 5:8 – NVI).
30
MARCONDES FILHO, Juarez. Amar e cCrescer: o fFator cComunhão no cCrescimento da iIgreja. Curitiba:
Descoberta, 1999, p. 86.
31
Ibidem, p. 87.
21

Jeremias: "Ai daquele que constrói o seu palácio por meios corruptos, seus aposentos, pela
injustiça, fazendo os seus compatriotas trabalharem por nada, sem pagar-lhes o devido
salário.” (Jeremias 22:13 - NVI). Ezequiel: “Em seu meio há homens que aceitam suborno
para derramar sangue; você empresta visando lucro e a juros e obtém ganhos injustos,
extorquindo o próximo [...] Mas você me verá bater as minhas mãos uma na outra contra os
ganhos injustos que você obteve e contra o sangue que você derramou.” (Ezequiel 22:12-,13
-NVI).
São alguns entre tantos exemplos que podemos encontrar nos profetas. Resgatar a
voz profética é uma necessidade, pois a Igreja também é enviada ao mundo para apregoar a
justiça e denunciar a injustiça. Como afirma Ferreira de Melo:

A proclamação do Evangelho da salvação inclui a denúncia profética, denúncia


essa, que faz parte da anunciação do reino de Deus. O Senhor Jesus não somente
multiplicou pães para alimentar os famintos, como também denunciava os
poderosos, os corruptos e os exploradores dos menos favorecidos. Grande parte da
mensagem dos profetas veterotestamentários era denunciando a injustiça social e a
corrupção dos governantes e dos juízes corruptos. Mesmo a doação de comida a
quem tem fome sendo uma grande obra, ainda não é o suficiente. A igreja, além de
proclamadora de uma nova vida em Cristo, é também a voz dos que não têm. 32

Ao tratar destes sérios problemas sociais, a iIgreja tem optado, inúmeras vezes, pela
omissão, por uma atitude alienada e alienante. Lembra-se de política em épocas de
campanhas eleitorais, ora pelas autoridades, salvo raras exceções, apenas em tempos de
feriados pátrios; o envolvimento político é visto como incompatível com a fé.
Marcelo Smargiasse faz a seguinte afirmação:

A Igreja não pode ficar alheia ao que acontece, bem como não pode continuar com
o infeliz discurso alienado e alienante, que assevera que a Igreja nada pode fazer
para minimizar o problema. Nossos esforços paliativos como comunidade tem sido
um assistencialismo pouco eficaz. Preferimos, muitas vezes, nos calar diante do
que presenciamos [...] Não somos intrépidos e corajosos [...] O perigo é que,
talvez, pensemo-nos como estrangeiros e extraterrestres neste mundo, nesta
sociedade, então vivemos alheios a ela. 33

A voz profética da iIgreja precisa ser despertada. Denunciar as injustiças, clamar


contra os pecados sociais, conclamar o povo ao arrependimento. A começar pela própria
comunidade cristã, que vive, muitas vezes, preocupada demais com as regiões celestiais e

32
FERREIRA DE MELO, Expedito. Perspectivas de uma iIgreja de aAlto iImpacto: Perspectivas Bíblica,
Teológica e Pós-Moderna. Londrina-Pr: Descoberta:, 2017, pp. 190-,191.
33
SMARGIASSE, Marcelo. O pProfeta e a sSociedade. InEm: Revista Teológica do Seminário Presbiteriano
do Sul. (Vol 64) Campinas-Sp: Jan-Jun de 2004, p. 25.
22

esquece do chão onde pisa, de ouvir o clamor dos oprimidos, acomodando-se ao seu gueto
denominacional.
Uma característica de nossa era é o individualismo, em que cada um cuida de si, é
egoísta, busca apenas seus próprios interesses e não os da sociedade. Assim pensando,
buscam a Deus esperando ser atendidos em suas necessidades e desejos individuais apenas.
Pensam que os problemas da sociedade não lhes dizem respeito, sendo problemas do estado.
Olham para a igreja como um refúgio, um lugar onde as pessoas podem se esconder
do mundo e dos seus problemas. Mesmo entre membros da comunidade não há interação,
quase ninguém se conhece a um nível mais profundo de intimidade.
Com relação aos problemas sociais, tomam a atitude de Pilatos – lavam as mãos.
Dentro dessa perspectiva, uma vez que “o mundo inteiro jaz no maligno” , de nada adianta
lutar por mudanças estruturais. O mundo está condenado.
O resgate da voz profética da iIgreja é, diante de tudo isso, uma necessidade urgente,
e um desafio para aqueles que são chamados para proclamar o eEvangelho do reino de
Deus. Despertar a consciência dos cristãos é o primeiro passo nesse processo. Motivá-los a
clamar contra as injustiças é outro, bem mais trabalhoso. Convencê-los da importância do
envolvimento cristão com a sociedade, com o propósito de transformá-la, é o objetivo a ser
buscado, contando, evidentemente, com a graça de Deus e a ação do Espírito Santo.

3.2.3. A aAção: aAmar e sServir, desenvolvendo o mMinistério dDiaconal


Durante muito tempo, no século passado, o envolvimento social foi descartado por
medo de uma pretensa associação com ideologias políticas e filosóficas, como o comunismo,
o socialismo e o marxismo. Correntes como o “evangelho social”, de Walter Rauschenbush (e
outros) e a “teologia da libertação” de Leonardo Boff (e outros), foram consideradas
perniciosas, e rechaçadas, principalmente,e pelas alas mais conservadoras da igreja brasileira.
Sem entrar nos méritos desses e outros movimentos, observamos que a igreja, ao
reagir contra os diversos grupos que procuravam trabalhar o tema da justiça social, perdeu de
vista a importância do ministério diaconal, tão valorizado e incentivado em outras épocas,
como, por exemplo, pelo reformador João Calvino.
Se perguntarmos a qualquer membro da igreja o que ele entende por “diaconia”, a
resposta, salvo raras exceções, será alguma coisa como: “é o trabalho desenvolvido pelos
diáconos”. Mesmo aqueles que são eleitos para o ofício de diácono não tem uma compreensão
mais ampla, e por vezes nem mesmo conhecem suas atribuições. Em algumas igrejas, os
diáconos se limitam a agir como porteiros ou, no máximo como zeladores.
23

O ministério diaconal não é exclusividade da junta diaconal, embora seja esta, em tese,
que tem o condão de coordenar e administrar o trabalho diaconal. Todo cristão deve exercer a
função diaconal, pois não devemos esquecer que “diácono” significa “servo”, e, neste sentido,
todos somos diáconos.
O resgate do ministério diaconal deve começar, portanto, pela conscientização dos
diáconos e de toda igreja sobre o valor, o significado e as possibilidades que se abrem diante
da igreja se esta colocar em prática sua função diaconal.
Cremios que podemos começar com a escolha de pessoas que demonstrem ser
possuidoras de dons como misericórdia, socorro, contribuição. Pessoas que reconhecidamente
sejam interessadas no bem do próximo e em lutar por uma comunidade mais humana e justa.
Pessoas que tenham facilidade em arrecadar fundos e habilidade com logística, e que saibam
como distribuí-los com eficiência, para quem realmente precisa.
E que este ministério seja composto de pessoas influenciadoras, motivadoras, que
possam movimentar os demais membros da iIgreja para ações que possam abençoar famílias
necessitadas.
Cada igreja local pode olhar o seu contexto, o bairro ou vila em que está inserida, e
fazer um diagnóstico das principais demandas. E aí oferecer seu serviço diaconal aà
comunidade. Pode ceder seus espaços, na maioria das vezes ociosos durante a semana, para
que se realizem atividades que sirvam a todos. Entre tantas possibilidades, podem ser
disponibilizados oficinas de artes, cursos profissionalizantes, exercícios físicos leves para
idosos (com acompanhamento de profissionais de educação física).
Além disso, sob a liderança dos diáconos, os irmãos podem visitar as casas mais
carentes do bairro, e observar algumas necessidades específicas. Telhas e vidros quebrados,
por exemplo, podem ser trocados sem muito custo. Muitas pessoas vivem em cômodos
precários, e há algumas demandas que não são tão difíceis de suprir, mas que podem
representar um salto de qualidade para muitas famílias.
Uma última sugestão de um serviço simples, mas importante, que a igreja pode
oferecer: todo bairro possui um ou mais postos de saúde, que atendem a população e
geralmente é preciso chegar muito cedo para conseguir uma consulta. O ministério diaconal
da igreja pode oferecer um lanche simples, composto de chá com biscoitos ou um pãozinho
com manteiga, por exemplo.
Com criatividade é possível idealizar e realizar muitos projetos. Mas é necessário que
a igreja compreenda e pratique a sua verdadeira função diaconal.
24

Um breve olhar panorâmico sobre as implicações prático-missiológicas desste trabalho


nos indica o seguinte:
- A missão de Deus, confiada aà iIgreja, não é apenas evangelizar, alcançando “almas
perdidas”, nem tampouco é somente praticar obras de caridade, solucionando os problemas
materiais das pessoas. A iIgreja deve servir a pessoa integralmente, suprindo suas carências
físicas, emocionais, sociais e espirituais.
- A iIgreja não pode se calar diante das injustiças, diante da opressão do sistema
socioeconômico e político dominante. A voz profética da iIgreja deve ecoar nos palácios dos
governantes, nos parlamentos, nos tribunais, onde quer que se encontrem injustiças.
Denunciando a injustiça e conclamando ao arrependimento e aà conversão ao justo Deus.
- O ministério diaconal da Igreja é importante para que esta possa cumprir sua missão
de servir aà comunidade em geral. Os diáconos podem atuar na coordenação deste ministério,
mas toda a Igreja precisa se envolver.

3.3. Referências bibliográficas

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