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O CONCEITO DA RELIGIÃO HEGELIANA NA FENOMENOLOGIA DO

ESPÍRITO.
Lucas Soares da Silva1
RESUMO
Este trabalho tem por finalidade apresentar o conceito da religião Hegeliana na
Fenomenologia do Espírito, apresentando o processo da religião natural, religião
da arte e, por fim, a religião revelada, segundo o filósofo Hegel na obra já
mencionada. Para o desenvolvimento da pesquisa, realizou-se a leitura desta
obra, bem como dos estudiosos: Gilberto de Melo Caldat, Rogério Miranda de
Almeida e Guilherme Costa Fernandes, para uma melhor contribuição do
conceito da religião Hegeliana.
Palavras-chaves: Hegel. Religião. Natural. Arte. Revelada.

Introdução

Pretende-se, neste artigo, apresentar o conceito da religião com base na


obra Fenomenologia do Espírito de Hegel, na qual o conceito de religião,
segundo a visão do autor, se desdobra em três grandes momentos, religião
natural, religião da arte e religião revelada. Hegel destaca que a religião natural
traz em si suas características determinações que se desdobram em três pontos:
religião da luminosidade, plantas e animais e objetos manufaturados.

Hegel destaca que na religião da arte surge o artesão que começa a


afastar do comum trabalho instintivo e sintético vindo a executar uma atividade
consciente-de-si. Já, na religião revelada, se tem uma recuperação da
essencialidade universal, que transcorre pela via da suprassunção do si
individual no interior da essência universal.

1 A Religião natural

Pode-se dizer que as deliberações da religião na Fenomenologia do Espírito


hegeliana podem ser associadas com os momentos da consciência que
produzem, bem no começo da jornada do espírito, um ser para si, no qual a

1
Graduando em Filosofia (Bacharelado) pelo UNISAL/Lorena. Artigo orientado pela Profa. Marcilene
Rodrigues Pereira Bueno.
essência para a consciência é ainda um ser imediato, uma coisa objetiva. A
priori, a religião natural carrega em si suas particulares determinações. Nela se
fazem presentes: a religião da luz, que se apresenta em emanação e que se
presentifica nos seres; a religião dos animais e das plantas, que é comparada
com a percepção; e, por fim, a religião dos objetos manufaturados, que simboliza
seus deuses “a partir de características próprias do entendimento”2.

[...]Na religião natural, como o próprio nome já indica, a


consciência (o homem) tem a essência divina como um imediato
ser natural, a saber, como um dado, como um imediato sensível;
ou, em outras palavras, a consciência, aqui, neste momento da
dialética da religião, diviniza objetos naturais; isto é, os deuses
da religião natural ainda não são de fato permeados pela
mediação profunda do pensamento ele mesmo (apesar de o
limiar da universalidade deste já começar a despontar aqui): a
essência divina é representada aqui pela luz, pelas plantas e
animais e, enfim, por objetos manufaturados que ainda não
guardam em si a imagem da verdadeira mediação do espírito
para consigo mesmo (no entanto, estes mesmos objetos
manufaturados já apresentam de maneira irrefletida –
imediatamente - formas próprias ao entendimento)3.

Assim, na religião natural, o homem detém o âmago divino como um ser


natural, um imediato sensível, no qual a essência divina é espelhada pela luz,
pelas plantas, pelos animais e pelos objetos manufaturados, que não portam em
si a aparência da autêntica mediação do espírito para consigo mesmo, embora
tais objetos manufaturados já mostram, de certa maneira, irrefletidas formas
próprias ao entendimento. No entanto, para se situar historicamente, pode-se
dizer que o aspecto da religião natural é permeado por religiões orientais, no qual
o homem não é ainda consciente de si, como a particular manifestação do
espírito, verdade concreta, provindo a ser em si e para si mesmo.

Na consciência do homem tem-se a essência divina, como um ser


imediato, sensível, como lembra Hegel:

[...]Na primeira cisão imediata do espírito absoluto que se


sabe, sua figura tem aquela determinação que convém à
consciência imediata, ou seja, à certeza sensível. O espírito se
contempla na forma do ser; contudo não na forma do ser
carente-de-espírito, preenchido com determinações

2
CALDAT, Melo Gilberto. A Religião na Fenomenologia do Espírito em Hegel. Florianópolis, 2013, p. 87.
Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/103481.pdf. Acesso em: 07 setembro 21.
3
CALFAT, op. cit., p. 87.
contingentes da sensibilidade [e] que pertence à certeza
sensível; mas é o ser preenchido pelo espírito4.

Logo, a divisão do espírito tem a determinação que convém à consciência


imediata, à certeza sensível, de onde o espírito se aprecia na feição do ser.
Embora não na feição do ser carente de espírito, mas sim em um ser preenchido
pelo espírito. “Ele encerra igualmente dentro de si a forma que aparecia na
consciência-de-si do espírito imediata: a forma do senhor ante a consciência-de-
si do espírito que se retira de seu objeto”5. Este ser, que é repleto pela aura do
espírito, é o aspecto da relação simples do espírito para com ele mesmo.

A religião natural, como se sabe, guarda dentro de si as suas próprias


determinações, como já se mencionou no corpo do artigo, no qual se apresentam
a religião da luz, a religião das plantas e dos animais e a religião dos objetos
manufaturados. Vejamos como se apresenta a religião da luminosidade (luz):

[...]Na primeira das religiões naturais - a religião da


luminosidade - todas as criaturas são emanações da essência
divina, essência esta que é a luz; esta luz é aqui a própria
universalidade que permeia e preenche o real, é sua
sustentação divina e “sua sublimidade transparece assim na
criação”; esta luz é aqui o absoluto além da consciência, a
essência divina, representada pela luz, é o senhor que paira
sobre todas as criaturas, é o raiar do sol, uma substancialidade
amorfa que permeia todas as criaturas determinadas6.

Tal essencialidade, que é a luz, não guarda consigo a inteligência ou o


diminuto desenvolvimento de si mesmo, visto, pois, que sua essência ainda é
abstrata, um universal sensível, sem determinação; nela não há reais indivíduos.
“[...] tudo evapora, tudo são apenas nomes na luz, pois que “suas determinações
são atributos apenas (ou) nomes no Uno plurinominal”7. O espírito na religião da
luz ainda é abstrato, carente de determinação que só vai se desenvolver na
religião das plantas e dos animais.

4
HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses, com a colaboração de Karl-
Heinz Efken e José Nogueira Machado, SJ. 9° edição. Edição Vozes Ltda, Petrópolis. 2014 p. 456.
5
HEGEL, op. cit., p. 456.
6
CALFAT, op. cit., p. 88.
7
CALFAT, op. cit., p. 88.
Na pacífica religião das plantas e dos animais, pode-se averiguar que na
religião das plantas ou das flores se encontra uma religião da contemplação, da
inocência, “[...] aqui o divino é uma natura passiva que acaba sucumbindo ao si
nascente do novo momento da religião natural”8. Este novo movimento nada
mais é do que a religião dos animais, local onde a vida imperturbável se torna a
angústia pela destruição, vindo a ser a religião de deuses encarnados, que
perpassa da inocência das plantas para a culpabilidade das bestas. Aqui a
universalidade não se faz provável por causa do espírito de repulsões que
perpassa esta não-relação entre tribos: “Por meio delas, a dispersão em uma
multiplicidade de tranquilas figuras vegetais torna-se um movimento agressivo,
em que as faz inchar o ódio de seu ser-para-si”9.

Tal espírito é o mesmo espírito animal, um espírito devorador, que devora


os outros e, por conseguinte, acaba a destruir-se a si mesmo. Esta religião
animal se alimenta do ódio dos deuses, do ódio das tribos rivais, “Mas nesse
ódio desgasta-se a determinidade do ser-para-si puramente negativo, e, através
desse movimento do conceito, o espírito entra em uma outra figura” 10. Esta nova
figura é o ser-para-si suprassumido, sendo esta a forma do objeto que foi
frutificado por meio do Si; é o Si produzido, desgastando-se, tornando-se em
coisa. Este é totalmente diferente do espírito animal: “Acima desses espíritos
animais que só [se] dilaceram, o artesão mantém sua superioridade; sua ação
não é apenas negativa, mas sim tranquila e positiva”11.

Bem longe da negatividade que ocupa toda a experiência da religião dos


animais, que se faz dilacerar, a religião do artesão mantém sua superioridade
comparada à religião das bestas, em uma ação que não é apenas negativa, mas
tranquila e positiva. Nela, a consciência da essência divina não se encontra mais
no ser-aí dado, mas sim em um objeto produzido, em um objeto manufaturado
pelo artesão.

[...]Assim o espírito aqui se manifesta como artesão,


e seu agir, por meio do qual se produz a si mesmo como
objeto – embora ainda não tenha captado o pensamento

8
CALFAT, op. cit., p. 88.
9
HEGEL, op. cit., p.458.
10
HEGEL, op. cit., p.458.
11
HEGEL, op. cit., p.458.
de si – é um trabalho instintivo, como as abelhas fabricam
seus favos12.

O fato aqui é que o entendimento suprassume o ser-aí meramente dado,


no qual, mesmo as obras feitas pelo artesão, pelas quais ele identifica a essência
divina, ainda se aludem apenas externamente ao espírito. Seu ofício, refere-se
muito mais ao trabalho manual do que ao trabalho do pensamento, como se pode
notar na passagem a seguir:

[...]O trabalho do artesão se refere mais ao trabalho


manual do que ao trabalho do pensamento posto em obra;
mesmo as obras mais suntuosas deste, só recebem ali um
espírito carente de si: são mausoléus de espíritos mortos13.

Assim, mostra-se que o labor do artesão está muito mais no árduo


trabalho manual do que ao trabalho do pensamento. Pode-se destacar que a
religião do artesão carece da essência absoluta da linguagem: “Além disso, o
que falta à religião do artesão é a expressão da essência absoluta pela
linguagem, que é onde o Si habita por excelência”14.

Ademais, a última fase da religião do artesão se elabora um deus-objeto,


que mescla duas formas, a forma humana com a forma animal; a esfinge, que
em si detém o segredo da linguagem, em cujo seu enigma a resposta virá a ser
o homem, como se destaca abaixo:

[...]A esfinge fala; lança o enigma cuja reposta será o


homem. Finalmente, quando o artesão passa, depois de um
lento e gradual processo, a representar a si mesmo, fazendo do
seu si o próprio objeto de sua obra, este deixa de ser artesão e
passa a ser artista. A religião então deixa de ser ‘religião natural’
e passa a ser ‘religião da arte’15.

2 A Religião da Arte

12
HEGEL, op. cit., p.459.
13
CALFAT, op. cit., p.89.
14
ALMEIDA, Miranda Rogério. FERNANDES, Costa Guilherme. Hegel e a Religião como Segundo Momento
da Marcha do Espírito. Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 2, n. 4, p. 61-84, jul./dez. 2020. p. 07.
Disponível em: https://fasbam.edu.br/pesquisa/periodicos/index.php/basiliade/article/view/239. Acesso
em: 08 setembro 21.
15
CALFAT, op. cit., p. 90.
A religião da arte surge na ocasião em que o artesão começa a arredar-
se do comum trabalho instintivo e sintético e executa uma atividade consciente-
de-si. “Destarte deposita em suas obras a sua essência e se torna um
trabalhador de ordem espiritual, ou intelectual”16. Neste momento, a essência
divina passa a ser retratada pelos aspectos do Si individual, a partir do âmago e
universal no espírito do artista, como se verifica abaixo:

[...]O artesão abandonou o trabalho sintético, o combinar


de formas heterogêneas do pensamento e do [objeto] natural:
quando a figura adquiriu a forma da atividade consciente-de-si,
o artesão se tornou trabalhador espiritual17.

Neste sentido, a religião da arte se encontra profundamente ligada com o


espírito ético, sendo está a substância efetiva e universal no espírito objetivo.
“Aqui, os sujeitos estão ligados entre si, podendo assim admitir sua
essencialidade num processo construído por todos”18. Neste estágio, foi-se
abandonado o aspecto da essência da luz (luminosidade), no qual foi
suprassumida a batalha violenta dos povos impiedosos e sanguinários.

Posteriormente, o labor do trabalhado do artesão é descobrir um meio


específico para imbuir unidade entre a obra que é elaborada e a consciência-de-
si que a produz. Como afirma Hegel: “Seu esforço ulterior deve tender a
suprassumir essa separação da alma e do corpo; a revestir e a modelar a alma
nela mesma; e, por sua vez, a infundir alma no corpo”19. Assim, ao conceder
alma a sua obra, o espírito atinge o feito notável de identificar-se no objeto, tal
qual ele é, embora isso aconteça apenas quando a convergência é perfeita.

Para Hegel, o meio mais favorável para a edificação dessa forma de


religião se encontra na civilização grega, que se via como um povo livre e artífice
das suas cidades marcadas por uma eticidade. Na pólis, os cidadãos
encontravam sua emancipação, a sua liberdade. Por conseguinte, ao se verem
livres, estes elaboram seus deuses de acordo com sua particular criatividade de
homem livre. Desse modo, pode-se perceber de forma tão evidente que a religião

16
ALMEIDA, op. cit., p. 9.
17
HEGEL, op. cit., p.462.
18
ALMEIDA, op. cit., p. 9.
19
HEGEL, op. cit., p. 459.
e a arte encontram muito mais a sua execução nos teatros gregos, no qual o
espírito universal individualizado é sempre retratado pela imagem do herói, como
se denota nesta passagem: “Todavia, mesmo se admitindo que a religião da arte
na expressão grega manifesta o Si individual e a figura humana em suas
divindades, ela ainda não é a mais espiritual das religiões”20.

A religião da arte expressa o âmago universal, inserida pela


individualidade do Si, e não a individualidade do Si inserida pelo âmago
universal, como ocorre na religião revelada. Todavia, a religião da arte apresenta
seu progresso dialético evoluindo cada vez mais para uma conjunção do espírito
humano e sua produção da essência divina, no qual ela busca reconhecer-se.
“Nela, Deus vai se tornando homem e passa a receber muitas características
antropomórficas”21. Logo, pode se observar, em um primeiro momento, que a
religião da arte mostra a essência absoluta pelo Si individual, na imagem imóvel
de uma estátua, visando encontrar-se na obra-da-arte-viva.

[...]Na perspectiva de Hegel, a primeira figura dessa obra


de arte abstrata é a obra plástica, na qual podemos incluir as
imagens dos deuses, as esculturas e até mesmo a arquitetura,
que em relação à consciência ativa é uma “coisa”. Na
arquitetura, os templos e edifícios possuem caráter de
universalidade e nas esculturas o de singularidade22.

Portanto, o artista, diferente do homem da religião animal, já começa a


estrear em sua obra, sinais da sua consciência, conferindo assim inúmeras
significações. Pode-se inferir que o estágio primordial da religião da arte
suprassumiu a religião animal, a essência divina natural aos poucos foi sendo
superada. Neste sentido, mesmo diante das figuras/obras dos deuses que o
artista produziu, encontra-se o constante combate vigente na consciência-de-si,
a ansiedade perante sua infinitude e sua natureza imutável. Embora, o artista
produza a figura da divindade, este não realizou a unidade entre o seu fazer e o
objeto representado, como se afirma nesta passagem: “Deste modo, essa obra
de arte ainda não é viva nem consciente de si”23.

20
ALMEIDA, op. cit., p. 9.
21
ALMEIDA, op. cit., p. 10.
22
ALMEIDA, op. cit., p. 10.
23
ALMEIDA, op. cit., p. 11.
Contudo, deve-se ressaltar o culto da religião da arte, que surge na
duplicação da religião da arte, esta ampara uma conformidade dentro da religião.
“O culto se apresenta deste modo como o caminho ou como o ponto de união
entre a essência divina – que plaina, por assim, numa espécie de além – e a
consciência humana”24. Como também nos afirma Hegel:

[...]No culto, o Si se proporciona a consciência da descida


da essência divina desde o seu além até ele; desse modo, a
essência divina que anteriormente é o inefetivo e somente
objetivo, adquire a efetividade própria da consciência-de-si.25

Logo, pode-se perceber que no culto se tem a convergência da


exterioridade das imagens/estátuas divinas, bem como a essência presente na
linguagem dos hinos. Este desenvolvimento do culto, na religião da arte, sinaliza
o começo de uma viva conformidade entre o divino e o humano; a essência
absoluta e a autoconsciência, precisamente porque, no culto, se depara com os
deuses olímpicos que envolvem os humanos, que se manifesta com esplendor
e poder, mas que só existem devido à aprovação, o reconhecimento do homem.
“O que temos aqui é sempre uma “via de mão dupla”, no sentido em que o divino
só se torna divino com a ajuda do homem e o homem somente se encontra a si
mesmo buscando o divino”26.

Em seguida, a obra da arte deixa de ser abstrata e passa a ser uma obra
de arte viva, que se concretiza na unidade entre o divino e o humano, no qual o
homem mesmo obtém consciência-de-si e ao mesmo tempo passa a ter
consciência de sua essência divina. Ademais, temos um terceiro estágio da
religião, a obra da arte espiritual. Nela se encontra:

[...]Os espíritos-dos-povos, que se tornam conscientes


da figura de sua essência e um animal particular, confluem em
um [espírito]; assim reúnem-se os peculiares belos espíritos-
dos-povos em um único Panteão, cujo elemento e morada é a
linguagem27.

24
ALMEIDA, op. cit., p. 12.
25
HEGEL, op. cit., p. 470.
26
ALMEIDA, op. cit., p.12.
27
HEGEL, op. cit., p. 477.
Neste sentido, a divindade é representada por figuras de homens heroicos
e valentes que se tornam importantes e decisivas para a vida de seu povo. Por
isso, a linguagem na religião da arte foi elevada a uma linguagem mais universal.

Na epopeia se tem uma maior aproximação entre o humano e o divino,


que unifica a essência absoluta e a essência-de-si do sujeito. “Nas epopeias, os
deuses tomavam o lugar dos homens ou assumiam o seu papel e a sua condição
de serem livres e agentes no mundo”28. No mesmo tempo, o homem incumbia-
se do papel da eternidade e imortalidade dos deuses. Nesta constante oposição
entre os deuses e os homens na epopeia há também uma oposição entre os
próprios deuses.

Neste sentido, toda tragédia tem como ferramenta principal os heróis,


numa dualidade entre a vontade dos deuses e a vontade dos homens, no qual
só se poderá encarnar apenas uma vontade, sendo ela a vontade divina ou a
vontade humana, as duas não podem ser concretizadas ao mesmo tempo.
“Portanto, cada tragédia tem sempre a presença de duas classes de heróis que
se embatem, ou se contrapõem”.29

Por fim, na comédia, os heróis cessam de ser heróis e se revelam como


homens comuns, sem máscara, demostrando sua nudez, revelando ser a
mesma coisa que o Si verdadeiro e ordinário. Neste sentido, as realidades
humanas, que antes estavam divididas tanto na epopeia como na tragédia, se
tornam únicas no homem sem máscara, sujeito às incertezas e contingências da
vida que ironiza. Contudo, a religião da arte apresenta o ‘si’ na figura da estátua,
depois no hino e no culto, na obra da arte viva e no final; na linguagem do ‘si’, na
epopéia, na tragédia e na comédia, como se vê abaixo:

[...]Concluindo, a religião da arte ela mesma, como não


podia deixar de ser, apresenta seu próprio desenvolvimento;
primeiramente, apresenta o “si” na forma da obra estanque da
estátua; depois, passa pelo hino e pelo culto, chegando então
até a obra de arte viva, nos mistério do culto ao deus do vinho e
da deusa feminina das colheitas e da fertilidade da terra; ainda
o faz na bela corporeidade dos atletas olímpicos (estes homens-
deuses que desfilam em glória louvados como deuses por outros

28
ALMEIDA, op. cit., p14.
29
ALMEIDA, op. cit., p 16.
homens); e, ao final, ganha a linguagem mais própria do “si”, na
epopéia, na tragédia e, por fim, na comédia30.

3 A Religião Revelada

A religião revelada ou manifesta é o terceiro período da religião nesta


jornada do Espírito absoluto. No decorrer deste artigo se observa que, na religião
natural, o homem dispunha da divindade ou como um ser abstrato, no segundo;
na religião da arte, esbarramos com a essência absoluta humanizada e
espiritualizada no si individual que encarnava tais fatos nas estátuas, na
linguagem, epopeia, tragédia e comédia. Neste momento, na religião revelada
há uma recuperação da essencialidade universal.

[...]Essa encarnação [Menschwerdung] da essência


divina começa na estátua, que só tem nela a figura externa do
Si, enquanto o interior- sua atividade- incide fora dela. No culto,
porém, os dois lados tornaram-se um; no resultado da religião
da arte, essa unidade em sua plenitude passou também, ao
mesmo tempo, ao extremo do Si. No espírito, que é totalmente
certo de si na singularidade da consciência, toda a
essencialidade soçobrou. A proposição que enuncia essa leveza
soa assim: o Si é a essência absoluta31.

Assim, o percurso que a religião revelada perpassa é a via da


suprassunção do si individual no interior da essência universal. À vista disso, a
religião revelada supõe o declínio da essência absoluta para o ‘si’ individual, no
qual a religião da arte já executou em seu desenvolvimento, visto que ela fez
com que o ‘si’ ocupasse o lugar da essência absoluta; “[...] aqui a religião da arte
e o mundo ético grego encontram sua verdade e a sua ruína e dão lugar então
ao ‘si’ abstrato, à pessoa, do mundo do direito romano”32. No mundo romano o
‘si’ sofreu a perda do seu mundo exterior, adentrando na vida do pensamento,
lugar onde o ‘si’ desenvolveu sua independência que irá incidir na consciência
infeliz como destaca Hegel:

[...]No entanto este Si, por seu esvaziamento, libertou o


conteúdo: a consciência só é essência dentro de si; seu ser-aí
próprio, o jurídico ‘ser-reconhecido’ da pessoa, é a abstração

30
CALFAT, op. cit., p 92.
31
HEGEL, op. cit., p. 183.
32
CALFAT, op. cit., p. 103.
não preenchida; portanto, antes possui somente o pensamento
de si mesma, ou seja, tal como ‘é-aí’, e tal como se sabe como
objeto, é a [consciência] inefetiva. Por conseguinte, é somente a
independência estoica do pensar; e esta, atravessando o
movimento da consciência céptica, encontra sua verdade
naquela figura que foi denominada a consciência-de-si infeliz33.

Esta consciência infeliz, que era o reverso da consciência cômica, sente


o sofrimento da perda da essencialidade bem como do saber da essência como
‘si’. “É a dor que se expressa nas duras palavras: Deus Morreu”34, um emudecer
da confiança das leis eternas dos deuses, bem como nos oráculos que
procediam de conhecer o particular, “[...] esmagamento dos deuses e dos
homens, surgira a certeza de si mesmo”35. Este ‘si’ dilacerado, que repulsa a
essencialidade da sua particular existência.

A consciência infeliz mantém-se nesta negatividade, em que o caminho


da religião revelada virá suprassumi-la, positivá-la. Assim, na religião revelada a
consciência infeliz abjuga-se de si mesma, passando a ser o ‘si’ universal.
Contudo, ao término desta consciência infeliz, deve-se buscar a conformidade
com a essência, por um caminho positivo e não negativo, vendo a essência
encarnada em um ‘si’ determinado, num homem divino que aparecesse e que
passa a se crer, sendo está a essência da religião revelada, a encarnação da
essência divina.

Todavia, a imagem do encarnado reflete a confiança do que será a


autenticidade do espírito, verdade esta que já se faz ouvir na religião revelada:
velando o divino com aquilo que se fez o ‘si’ vivo nele mesmo, a existência
tornada atual em um ‘si’ decidido, um ‘si’ que se é capaz de ser visto, tocado,
ouvido, um ser espiritual. Nesta perspectiva, a união entre ambas as naturezas,
humana e divina, é, enfim, intuída.

Pode-se ressaltar que a religião aqui é a confiança imediata e sensível do


absoluto no homem particular, individual, que encarou o âmago divino, este que
tinha a substância abstrata e a consciência de si efetiva. Este ‘si’ que quando
morre só é capaz de ser remido pela recordação do crente que nele acredita.

33
HEGEL, op. cit., p. 491.
34
HEGEL, op. cit., p. 492.
35
HEGEL, op. cit., p. 492.
Contudo, pode-se dizer que três são os momentos que perpassam a religião
revelada, a saber:

[...]Em outras palavras, três são os momentos nos quais


se desenrola o vir-a-ser da ‘religião manifesta’, momentos estes
que, se não fosse o caráter de representação desta, já
manifestariam o absoluto ele mesmo; estes momentos são: o
momento da essência abstrata; o momento do ser outro para si;
e, enfim, o momento que “sabe a si mesmo no outro” - momento
este que indica que o em si mesmo da essência é aquele que
vem a ser conhecido tão somente a partir do para si da
consciência, seu outro, seu negativo36.

Aqui, o terceiro momento é a comunidade, que não compreende o vir-a-


ser em sua carência; o segundo momento é o adentrar em ‘si’ do saber em geral
que se converte na mediação do pensamento, pensamento este do bem e do
mal, desembocando no primeiro momento, visto que quem sabe do bem e do
mal é o homem: “Este que sabe o bem e o mal é o homem, o homem é aquele
que perdera a “igualdade-consigo-mesmo”, é aquele que por comer do fruto do
bem e do mal fora expulso do “jardim dos animais”37. Assim, o homem desigual
a si mesmo é o ‘mal’, logo o ‘bem’ é oposto. Pode-se destacar que o vir-a-ser do
pensamento do mal é o vir-a-ser-aí, sendo este ser-aí natural que, conhecedor
do mal, é capaz da própria abnegação do mesmo para o louvor do bem
(universal), vindo a converter-se numa sapiência de ‘si’, desagregada da
essência, para uma consciência de ‘si’, ligada à essência que se doa para o
universal.

Tudo isso se atingirá na universalidade da consciência de ‘si’ daquele ser


que sabe o seu ‘si’ individual como a essência universal: Cristo que aclarará a
comunidade religiosa, que sabe de si e busca agir conforme o bem, no qual esta
comunidade religiosa vem para anunciar o reconciliar da essência com a
consciência de ‘si’. Para a consciência religiosa, a reconciliação está em seu
coração e não em sua efetividade, como afirma Hegel: “Por conseguinte, sua
reconciliação está em seu coração, mas ainda cindida com sua consciência; e

36
CALFAT, op. cit., p. 108.
37
CALFAT, op. cit., p. 109.
ainda está rompida sua efetividade”38, logo, a sua reconciliação está sempre num
além, tanto no passado como no futuro e nunca no seu presente efetivo.

[...]Consequentemente, na religião revelada, o Absoluto


ainda está sempre se evadindo e resistindo. Porém, seu
momento é de grande relevância dentro da marcha do Espírito,
que busca incessantemente fazer com que o Absoluto retorne
refletido em si mesmo. Tal feito, ela já o realiza de forma
contingente, pois apresenta ao homem a sua essência universal
que se faz presente também em seu interior. Todavia, ela o incita
e o estimula para que ele se aproxime cada vez mais dela.39

Assim, a consciência religiosa, neste sentido, se desprende da sua


comunidade efetiva, dizendo que o absoluto ainda não chegou; porém, sua
importância tem grande pertinência entre o movimento do espírito em seu vir-a-
ser, mas que compete à consciência religiosa expor ao homem sua aparência
universal e associar o ‘si’ singular da essência universal, embora ela o faça de
forma velada.

Considerações Finais

A partir da obra Fenomenologia do Espírito, pode-se perceber que a


religião para Hegel se apresenta em três grandes momentos; religião natural,
religião da arte e, por fim, a religião revelada. No que cabe à religião natural
poder-se-á dizer que o homem detém a essência divina como ser natural, no
qual a essência divina é refletida na luz, nas plantas, nos animais e nos objetos
manufaturados. Nela, o homem ainda não é consciente de si. Na primeira das
religiões naturais, a religião da luz; se denota um espírito abstrato, sem
determinação e que só virá a se desenvolver na religião das plantas e dos
animais.

Na religião das plantas, se encontra um espírito de contemplação, já na


religião dos animais se encontra um espírito de destruição, de angústia e
devoração, religião esta, dos deuses encarnados, que se sacia do ódio dos
deuses, do ódio pelas tribos rivais. Contudo, nesse ódio desgasta-se a

38
HEGEL, op. cit., p. 515.
39
ALMEIDA, op. cit., p. 23.
determinidade do ser-para-si puramente negativo, e, através desse movimento
o espírito entra em uma outra figura; a figura do artesão. Este é completamente
oposto do espírito animal, sendo sua ação tranquila e positiva. Na religião do
artesão, a essência divina se encontra em um objeto produzido, manufaturado,
e que carece da essência absoluta da linguagem.

Já na religião da arte nota-se uma ligação com o espírito ético, sendo está
a substância universal do espírito objetivo. Nela, o artesão busca descobrir o
meio específico para infundir a unidade da obra que é criada e a consciência-de-
si que a produz. Nessa religião se expressa a essência universal inserida pela
individualidade do Si, e não a individualidade do Si inserida pela essência
universal, como acontece na religião revelada. Contudo, a religião da arte
apresenta o ‘si’ na figura da estátua, no hino, no culto, na obra da arte viva, na
linguagem do ‘si’, na epopéia, na tragédia e na comédia.

Por fim, na religião revelada ou manifesta, que é o terceiro período da


religião na jornada do Espírito absoluto, se tem uma recuperação da
essencialidade universal, que perpassa a via da suprassunção do si individual
no interior da essência universal. Nela, a confiança imediata e sensível do
absoluto no homem particular/individual encara a essência divina, que detinha a
substância abstrata e a consciência de si efetiva. Ela perpassa por três grandes
momentos nos quais se desenrola o vir-a-ser da ‘religião revelada’: o momento
da essência abstrata; o momento do ser outro para si; e, enfim, o momento que
‘sabe a si mesmo no outro’ que aponta que o em si mesmo da essência é aquele
que vem a ser considerado a partir do para si da consciência, seu outro, seu
negativo. Contudo, o espírito assume uma forma absoluta, livre em si e para si
mesma, com o início da suprassunção da representação religiosa.

Referências Bibliográficas

GEORGE, Wilhelm Friedrich Hegel. Fenomenologia do Espírito. Tradução de


Paulo Meneses, Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado, SJ. 9° edição.
2014.

CALDAT, Melo Gilberto. A Religião na Fenomenologia do Espírito de Hegel.


Florianópolis 2013. Disponível em:
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/103481.pdf. Acesso em: 24.
setembro.21.

ALMEIDA, Miranda Rogério/ Fernandes Costa Guilherme. Hegel e a Religião


Como Segundo Momento da Marcha do Espírito. Basilíade-Revista de
filosofia, Curitiba, v. 2, n. 4, p, 61-84, jul./dez. 2020. Disponível em:
https://fasbam.edu.br/pesquisa/periodicos/index.php/basiliade/article/view/239.
Acesso em: 24. setembro.2021.

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