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Questionamentos

filosóficos em sala de aula:


ou 27 teses para uma
necessária ignorância
do professor
Heinz Eidam*

1. Não existe o questionamento filosófico, mas todo o questionamen-


to é filosófico.
2. Perguntas que não são postas pelos próprios estudantes não são
perguntas também para eles.
3. Respostas que o professor dá a perguntas que os estudantes não
têm, também não são respostas.
4. Respostas podem ser procuradas quando perguntas são colocadas.
5. A tarefa da aula consiste, portanto, em encontrar perguntas, isto
é, permitir que os estudantes cheguem, acima de tudo, a questões,
para então se poder procurar respostas. (Não é somente desonesto,
mas também didaticamente tolo, partir de respostas já dadas para
estabelecer as perguntas ou então moldar estas de tal maneira que
se ajustem às respostas dadas. Quem molda, trapaceia: maiêutica
mal-entendida)
6. Quem pensa – especialmente como professor – conhecer já as res-
postas, não sabe o que é uma pergunta. (Ele irá, na verdade, trans-
mitir matéria, mas não irá ensinar. Ensinar é primariamente não a
transmissão de matéria de aprendizado – isso também as máquinas
podem fazer – mas, acima de tudo, a tarefa de tornar possível uma
tal transmissão. Se o saber é uma forma de resposta, então a existên-
cia de perguntas é a condição de possibilidade do saber em geral).

*
 Universidade de Kassel, Alemanha. Ensaio publicado originalmente no Zeitschrift für
Didaktik der Philosophie und Ethik (Heft 3/1993), periódico alemão especializado em
Didática da Filosofia e Ética. Tradução de Robinson dos Santos (UFPel).

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7. Cada pergunta que se responde antecipadamente é simplesmente o
arranjo de uma quantidade de informação (Por ex.: “Quando mor-
reu Goethe?”). Decisivo é para qual questionamento tais informa-
ções serão necessárias.
8. As perguntas sobre as quais somente uma resposta precisa ser pro-
curada também não serão respondidas através de informações (Por
ex.: “Quando morreu Otília?). Informações são componentes ma-
teriais de perguntas, não sua resposta.
9. Somente perguntas que permanecem presentes na resposta (Otília
morreu de Anorexia), na medida em que as respostas que se en-
contram para determinadas questões são palavras, tornam-se pro-
dutivas para situações de aprendizado – maiêutica compreendida
corretamente.
10. Uma situação de aprendizagem resulta somente, pois, quando alu-
no e professor se encontram na mesma situação: diante de um ter-
ceiro, o objeto.
11. Uma semelhante situação persiste somente quando ambos, aluno e
professor, estão igualmente na perspectiva do que deve ser aprendi-
do, isto é, colocam-se de acordo em relação a um questionamento
(Por ex.: Por quê Otília morreu de Anorexia?).
12. Na medida em que uma tal relação será impedida justamente pela
vantagem cognitiva do docente, uma situação de aprendizagem não
pode consistir na pura – desde o início estabelecida assimetrica-
mente – transmissão de conhecimento (informações).
13. Aluno e professor só estão postos na mesma situação na medida em
que ambos se encontram numa situação de não-saber, isto é, diante
de uma pergunta.
14. Com isto, o professor precisa tornar claro, para si, que ele é sempre
mais ignorante do que ele imagina saber e que os discentes sempre
mais inteligentes do que aquilo que não sabem. (Ou seja, está no
próprio interesse do professor ser um aprendiz).
15. Concretamente: uma situação de aprendizagem necessita conferir
o primado à pergunta e não à resposta, isto é, um professor precisa
poder retornar às respostas disponíveis atrás de si para, acima de
tudo, poder chegar às perguntas que possibilitam que uma situação
de aprendizagem se origine. Esta ignorância não é uma pseudo-in-
genuidade que se presume já em posse da resposta e, nesta medida,

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é um falso método. O professor precisa poder admitir para si que
sua ignorância (seu não-saber) não é um mero disfarce e que ele,
enquanto disfarce, será somente o engano do aluno.
16. Somente o não-saber do professor, o qual – socraticamente – está
acima do saber (doxa), pode se encontrar com as perguntas do alu-
no que, certamente a partir de sua perspectiva, ainda estão adiante
de seu saber.
17. Ponto de partida de uma situação de aprendizagem é, portanto, um
duplo não-saber: o ponto, no qual a ignorância do professor é cote-
jada com aquela do aluno.
18. Concretamente: um professor que acredita saber, por exemplo, o
que seja a linguagem (ou também a força, ou a luz ou a arte) só
porque ele pensa já ter encontrado a resposta, na forma de uma
teoria disponível, que seria válida para ser transmitida, justamente
porque partiu da resposta, nada entendeu de seu objeto. Trata-se,
muito mais, de partir segundo a pergunta sobre o que é linguagem,
ou seja, de um não-saber, para se poder procurar possibilidades de
respostas e, eventualmente, investigar as respostas já oferecidas.
19. Também teorias científicas são primeiramente apenas respostas pos-
síveis. Só respostas possíveis permanecem discutíveis.
20. Só naquilo em que algo permanece discutível, permanece também
viva a pergunta.
21. Somente quando a pergunta pode renascer, de novo, em cada res-
posta, pode também a resposta manter sua relação com a pergunta
e, com isso, com a situação de aprendizado.
22. Um método é o desvio não imediato sobre respostas possíveis. Dito
de outro modo, seu caminho é o círculo sobre respostas possíveis
para se chegar à pergunta sobre sua possibilidade.
23. A didática fundamenta-se no conhecimento de que também as gran-
des e últimas questões estão implicadas no banal. Isto é, ela ignora a
somente aparente conexão entre as perguntas fundamentais e pro-
fundas e as grandes respostas. Nenhuma pergunta é tão profunda
quanto aquela voltada para o banal (Por ex.: porque algo é algo e
não simplesmente nada?)
24. Para uma didática que faz seu método transparente serão tomadas
como ponto de partida e ponto crucial as perguntas (mal vistas pe-
las didáticas fixadas em avaliação): como? por quê? para quê?

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25. Seu mais alto objetivo é a origem geral da Pedagogia: colocar os alu-
nos na situação, respectivamente, incitá-los à coragem de pensarem
por si mesmos.
26. Somente aquele que pode perguntar, pode também pensar. Profes-
sores que presumem possuir respostas prontas já não pensam mais.
Alunos que recebem as respostas pré-estabelecidas – ainda que em
forma de pseudo-perguntas – não irão (de jeito nenhum!) apren-
der. (Para perguntas tolas responder da forma mais inteligente pos-
sível e, para respostas tolas perguntar da forma mais inteligente
possível é apenas uma e mesma coisa: a consumação do pensamen-
to filosófico.)
27. Nesta medida não existe o questionamento filosófico, mas todo o
questionamento, enquanto tal, é filosófico: a “recusa ao esforço de
permanecer ignorante” que, segundo Odo Marquard, nada mais é
do que a própria razão humana, começa com perguntas tolas.

COMENTÁRIO 1
SOBRE A NECESSÁRIA IGNORÂNCIA DO PROFESSOR:
algumas considerações sobre as teses de Heinz Eidam

Elisete M. Tomazetti*

A proposição de um exercício de pensamento sobre as teses do pro-


fessor e filósofo Heinz Eidam, Universidade de Kassel, Alemanha, acerca
da relação que ocorre em sala de aula entre professor, aluno e saber pode
significar uma gratificante forma de refletir sobre o ensinar e aprender
filosofia na Escola Básica.
No primeiro momento da leitura das teses de Eidam a lembrança
do livro de Jacques Ranciére O mestre ignorante foi imediata. Neste li-
vro, o autor anuncia a impossibilidade do mestre explicador ensinar e
aprender algo, pois não se coloca numa posição de igualdade em relação
aos seus alunos.
*
 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora Associada do De-
partamento de Metodologia do Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

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Vejamos uma das teses de Eidam:

Tese 17 – Ponto de partida de uma situação de aprendizagem é,


portanto, um duplo não-saber: o ponto no qual a ignorância do
professor é cotejada com aquela do aluno.

A questão da igualdade entre professor e aluno aparece, nos dois


autores, como central em suas reflexões sobre a relação pedagógica.
Retomando Sócrates para caracterizar o mestre explicador, recusa-
do por Jacotot, Ranciére1 afirma:

Quem estabelece a igualdade como objetivo a ser atingido, a par-


tir da situação de desigualdade, de fato a posterga até o infinito.
A igualdade jamais vem após, com resultado a ser atingido. Ela
deve sempre ser colocada antes [...]. Não há ignorante que não
saiba uma infinidade de coisas, e é sobre este saber, sobre esta ca-
pacidade em ato que todo o ensino deve se fundar. Instruir pode,
portanto, significar duas coisas absolutamente opostas: confirmar
uma incapacidade pelo próprio ato que pretende reduzi-la ou in-
versamente, forçar a capacidade que se ignora ou se denega a se
reconhecer e a desenvolver todas as consequências desse reconhe-
cimento. O primeiro ato chama-se embrutecimento e o segundo
emancipação (2004, p.11-12).

Heinz Eidam, por sua vez, defende a tese de que o ponto de partida
da aprendizagem é um duplo não-saber: do aluno, que já é desde sempre
considerado o ignorante da relação, mas também, e principalmente, do
professor. Nesse caso importa compreender tal afirmação desestabiliza-
dora para os moldes tradicionais do ensinar.
Primeiramente lembramos que institucionalmente há a exigência
de uma formação para tornar-se ensinante, constituída no interior dos
cursos de licenciatura das instituições de ensino superior. Nelas, o futuro
ensinante deve se apropriar dos conhecimentos de sua área, deve se mo-
vimentar como investigador no campo e se propor a pensar e a efetivar
a transposição dos saberes aprendidos para o universo da Escola Básica,
para alunos ainda ignorantes. Se o professor é o responsável pelo ensino
e o aluno é quem aprende, está definida a relação entre o que sabe e o
que ainda não sabe, mas que deverá se capacitar a dominar tais saberes.
1
 RANCIÉRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual.
Trad. Lílian do Valle. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

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Ora, é sobre esta equação que residem as teses desestabilizadoras de
Eidam. Ele destitui de sentido a afirmação de que, em uma aula, o obje-
to da relação pedagógica que une professor e aluno é o chamado “con-
teúdo”, que tanto pode ser uma informação, uma teoria, uma fórmula,
uma ideia. Ele coloca sob suspeita a relação direta que se impõe entre o
professor que detém esse “conteúdo” e que deve, então, “ensiná-lo” aos
alunos, ou seja, “explicá-lo”.
Poderíamos pensar ainda que antes de acessar tal “conteúdo” há ope-
rações fundamentais que precisam ser realizadas em sala de aula, as quais
se iniciam pela pergunta. Bem, mas aí poder-se-ia objetar que o professor
já detém a resposta e apenas realiza um caminho indireto para que o alu-
no chegue ao saber pelo seu exercício de pensamento. Ou seja, o ponto
de chegada já estaria previamente pensado e determinado pelo professor,
apenas ele não o oferece de forma imediata para o aluno. Este caminho
de construção das respostas, de um saber, vai sendo constituído no pro-
cesso de sala de aula com a direção do professor.
Sobre esse caminho já pensado pelo professor, Eidam contrapõe-se
em sua tese 15, quando afirma: “[...] Esta ignorância não é uma pseudo-
ingenuidade que se presume já em posse da resposta e, nesta medida, é
um falso método. O professor precisa admitir para si que sua ignorância
(seu não-saber) não é um mero disfarce e que ele, enquanto disfarce, será
somente o engano do aluno”.
Na mesma direção, Ranciére considera que Sócrates, embora cons-
titua seu método a partir de perguntas, na verdade é ele quem conduz o
processo e leva o escravo a aprender aquilo que ele considerou previa-
mente necessário saber.

Há um Sócrates adormecido em cada explicador. É preciso admi-


tir que o método Jacotot – isso é, o método do aluno – difere ra-
dicalmente do mestre socrático. Por suas interrogações, Sócrates
leva o escravo de Mênon a reconhecer as verdades matemáticas
que nele estão. Há aí, talvez, um caminho para o saber, mas ele
não é em nada o da emancipação. Ao contrário, Sócrates deve to-
mar o escravo pelas mãos para que esse possa reencontrar o que
está nele próprio. A demonstração de sei saber é, ao mesmo tem-
po, a de sua impotência: jamais ele caminhará sozinho e, aliás,
ninguém lhe pede que caminhe, senão ilustrar a lição do mestre.
Nela Sócrates interroga um escravo que está destinado a perma-
necer como tal (2004, p. 51-52).

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Novamente, Eidan e Ranciére aproximam-se ao afirmarem a radi-
cal condição de ignorância do professor, que pode encaminhar a eman-
cipação do aluno. O primeiro, em suas teses, defende a não existência de
um caminho previamente pensado. Propõe a abertura para o aprender,
a partir da pergunta que envolve a ambos, professor e aluno, e os enca-
minha para o exercício de pensamento e não para uma explicação do
professor, com o objetivo de dar a resposta. Com esta configuração da
aula não há como prever o que ocorrerá a partir das perguntas feitas, da
entrada em cena do banal e do óbvio. Pela pergunta é possibilitada a en-
trada do aluno nas teias da vida e não nas grades dos saberes já sabidos.
O banal que adentra a aula de Filosofia pela voz do aluno não pode
ser desprezado pelo professor, pois ele deve ser considerado o ponto de
partida para o pensar filosófico. Nesse caso, o professor coloca-se numa
posição de caminhar junto com o aluno na construção do saber, aceitan-
do os desafios de pensar com ele, elaborando ideias no contexto da aula,
redirecionando sua perspectiva de professor, admitindo sua ignorância.
Destaca-se, então, a necessidade de o aluno vir a pensar por si mes-
mo e, assim, emancipar-se pelo processo de aprendizagem, o mais alto
objetivo da Didática, como diz Eidam, em sua tese 25.
O professor que reconhece no ponto de partida uma condição de
igualdade com o aluno em relação ao não-saber oferece condições para
que o aluno explore suas capacidades, coloque-as em ação para pensar
filosoficamente.
Com a presença de um mestre/professor explicador fica estabele-
cida a incapacidade do aluno servir-se de sua própria inteligência para
aprender. “Explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, de-
monstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só” (RANCIÉRE, 2004,
p. 23). Possibilitar que o aluno pense por si mesmo é considerar que o
método não é o do professor, mas sim dele, o do aluno.
Tomada a pergunta, que indica a ignorância em relação a algo como
central numa relação pedagógica, Eidam está consolidando, radicalmen-
te, a atividade de pensar do próprio aluno. Este exercício de pensamento,
exercício de inteligência, realizado pelo aluno é que abre a possibilidade
de sua emancipação. O pensar por si mesmo, então, não resulta do en-
sino do professor, das suas respostas e suas explicações, mas fundamen-
talmente, do seu ato desafiador, como professor, de forçar o aluno a fazer
uso de sua própria inteligência, não principiando pela resposta, mas pela
pergunta.
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Qual seria, então, a função do professor, considerando as teses de
Eidam? Ora, este professor está muito mais preocupado com a aprendi-
zagem dos alunos do que com o seu método de ensino. Ele constitui a
relação pedagógica sob o primado da liberdade ao instituir a ignorância
como um valor e não como um erro ou deficiência e sua tarefa de pro-
fessor é, mais propriamente, colocar o aluno na situação de dúvida, de
busca, levando-o a “pensar por si mesmo”.
As 27 teses de Heinz Eidam “para uma necessária ignorância do
professor” não foram aqui abordadas em sua totalidade. Destaquei ape-
nas algumas, procurando fazer uma aproximação com as ideias de Ja-
cques Ranciére, que certamente ultrapassam essa pequena abordagem.
Em ambos os autores, no entanto, salienta-se a presença das expressões
ignorância e ignorante, associadas à questão do ensino e do mestre/pro-
fessor. Talvez, como nos sugere Eidam, tenhamos que enfrentar antes de
respostas, uma pergunta: quanto de ignorância precisamos, como pro-
fessores, para possibilitarmos a emancipação e não o embrutecimento de
nossos alunos?

COMENTÁRIO 2
SOBRE A MAIÊUTICA COMO DIDÁTICA DA FILOSOFIA:
considerações sobre as teses de Heinz Eidam

Robinson dos Santos*

O tema Ensino de Filosofia ganhou progressivamente espaço no âm-


bito das discussões filosófico-pedagógicas no Brasil, sobretudo na última
década. Isso é atestado não apenas pelo número de eventos sucessivos
em torno do tema, mas também pelas respectivas pesquisas, publicações
de ensaios e livros, bem como na organização de grupos interdisciplina-
res e inter-institucionais de pesquisa. A inclusão da Filosofia no Ensino
Médio aumentou a demanda por cursos de Licenciatura e isso propiciou
a retomada da questão – já historicamente posta em debate – da ensinabi-
lidade da Filosofia. No entanto, o interesse sobre este tema não é uma pe-
*
 Doutor em Filosofia pela Universidade de Kassel, Alemanha. Professor Adjunto do
Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

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culiaridade da atividade filosófica no Brasil. Na Alemanha isso tem sido
objeto de discussão sistemática há pelo menos três décadas. O periódico
Zeitschrift für Didaktik der Philosophie und Ethik é um dos pioneiros na
iniciativa de sistematizar o debate sobre o referido tema.2
O texto de Heinz Eidam, filósofo e docente na Universidade de Kassel,
foi publicado originariamente no periódico supracitado. As teses de Eidam
oferecem, sem sombra de dúvida, muitos elementos para pensarmos, tan-
to sobre o ensino de filosofia, quanto sobre a necessidade de uma didática
para o mesmo. No presente texto eu gostaria de destacar alguns aspectos
que considero relevantes para a continuidade do diálogo em torno do
tema. A partir das teses desenvolvidas pelo professor Eidam eu gostaria
de enfatizar, portanto, os seguintes aspectos.

1. O primado da pergunta sobre a resposta

Se o desenvolvimento do conhecimento, considerado de modo geral


– incluindo-se aí também o filosófico –, não visa outra coisa que ofere-
cer respostas às grandes e pequenas interrogações humanas e, com isso,
também resolver problemas de toda espécie, teóricos e práticos, de cará-
ter particular ou universal, podemos afirmar que sua razão de ser são as
próprias perguntas ou interrogações que tornaram tal desenvolvimento
possível. A certeza satisfaz e, portanto, cessa o apelo ou aquilo que nos
impulsiona na direção do desconhecido. A dúvida nos deixa com uma
sensação de estarmos sem solo sob os nossos pés e num estado de pro-
fundo desconforto. A dúvida nos incomoda e nos leva à atitude filosófica
primordial: ao perguntar. Entendo que não apenas no processo de ensi-
no de Filosofia, isto é, em sala de aula, mas também fora dela há uma ne-
cessidade de revalorizarmos e retomarmos a arte de perguntar. Ela é que
pode propiciar o “parto da verdade”, como Sócrates definia seu próprio
método. Neste sentido, a Filosofia é essencialmente maiêutica.

2
 O periódico é editado desde 1979. Na primeira fase entre 1979 e 1992 seu título era
Zeitschrift für Didaktik der Philosophie e, a partir de 1993 passou a se chamar Zeitschrift
für Didaktik der Philosophie und Ethik. Atualmente são responsáveis pela sua edição os
professores Ekkehard Martens (Hamburg), Johannes Rohbeck (Dresden), Volker Ste-
enblock (Münster).

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2. A distinção entre “banal” ou trivial e o “importante” se torna
supérflua

Talvez um dos grandes paradoxos da Filosofia consiste justamente


em que as perguntas mais difíceis de se responder são, na verdade as
perguntas mais simples de se fazer. O que é a verdade? O que é o bom?
O que é o belo? Verdade, bondade e beleza são, de fato, questões com as
quais os grandes pensadores se ocuparam ao longo da história e sobre as
quais, no entanto, nosso saber é ainda provisório, mesmo que tenhamos
uma razoável quantidade de respostas válidas para o problema. Aquele
que quiser estabelecer uma lista dos assuntos importantes em Filosofia
se verá enredado em uma série de dificuldades e provavelmente terá que
recorrer a argumentos falaciosos. Um exemplo de perguntas inocentes
ou tomadas como ingênuas são, normalmente, aquelas feitas pelas crian-
ças. Explicar se e em que sentido a cegonha existe, quem é Deus ou onde
estão as crianças antes de virem ao mundo, colocam em apuros qual-
quer pai, mãe ou professor(a), mesmo aquele(a) que se considera seguro
e hábil no trato com elas. Serão tais perguntas banais? Absolutamente
não. Elas propiciam os pequenos passos da grande descoberta que cada
educando faz ao longo de seu desenvolvimento. E, no entanto, o que faz
o adulto? Não raro, trata de “dar um basta” às incômodas perguntas. Ao
invés de fomentá-las, de alimentar a curiosidade do educando, inibe o
que há de mais importante: a curiosidade.

3. A natureza das respostas (elaboradas ou previamente


estabelecidas) é essencial para o aprendizado

O aprendizado não deixa de ser uma espécie de resultado, de sínte-


se, de absorção. Ora, esta ideia remete a um processo anterior, que pode
ser dividido em etapas relacionadas entre si, a partir do qual se construiu
o resultado. É justamente por se tratar de uma aquisição, de uma apro-
priação do conhecimento, que não se pode dispensar a interação com
o mesmo. Interação que será, sim, mediada pelo docente. Entretanto,
somente aquilo que é propiciado pela própria experiência, pela própria

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busca, pela auto-atividade, da criança, do jovem ou do adulto, é que
é verdadeiramente assimilado e permanece. Há uma diferença crucial
entre o que nós próprios elaboramos, experienciamos e construimos e
aquilo que nos é dado de forma artificial ou nos é “anexado” sem uma
relação fundamental com nosso interesse ou desejo de conhecer.

4. Ensinar filosofia não é transmissão de matéria (por exemplo,


de História da Filosofia)

No tocante à matéria ou conteúdo, como sabemos, as máquinas pro-


piciam sua transmissão de modo muito mais interessante, combinando
imagens, conceitos e textos na forma de hipertextos ou hiperlinks. Elas
abrem um universo multi-relacionado, que reduz a quase nada as dife-
renças de tempo e espaço. O professor, neste sentido, é inferior à máqui-
na. Mas o professor não é e nem pode ser comparado a uma máquina
de transmissão de matéria. Há, no entanto, alguma coisa que a máqui-
na ainda não faz e, tanto quanto considero, nem saberá fazer, por mais
avançada que um dia ela seja: captar e compreender as dificuldades reais
do aluno, influenciar de modo positivo em suas atitudes, fomentar sua
curiosidade e educar o seu caráter ou, dito de outro modo, educá-lo nos
valores. Estes e outros aspectos escapam a uma relação mecânica sujeito-
objeto e de passividade por parte do aluno.

5. Sem a possibilidade de submeter tudo (de novo) ao livre exame


da razão, não se pode aprender a filosofar

No processo de ensino-aprendizagem em filosofia, na medida em


que se confere o primado à pergunta e onde a dúvida é valorizada em lu-
gar da certeza, é necessário que se desenvolva uma postura de tolerância.
Isso significa nos aproximarmos, por meio de perguntas, das respostas
possíveis com abertura e interesse em compreendê-las em sua gênese e
estrutura. Neste sentido, o preceito kantiano de submeter tudo ao crivo
da razão, assim como ele procedeu com a razão mesma na sua Crítica

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da razão pura, deveria ser aqui levado em consideração. Via de regra os
estudantes desenvolvem desde cedo, junto com a curiosidade, esta quase
sempre atrofiada e sufocada pela aversão à perguntas por parte dos adul-
tos, uma forte tendência a querer concluir logo sobre as coisas. A filoso-
fia, ao demonstrar por meio da lógica que a conclusão não pode conter
além do que aquilo que as premissas autorizam, permite o exercício e
o aprimoramento da faculdade de julgar. Este exercício é indispensável
para o aprendizado em filosofia.

6. O bom mestre é aquele que se torna gradativamente dispensável

Autodidaxia é o ápice do processo de ensino-aprendizagem. É a ca-


pacidade de conhecer e aprender por conta própria. Na irônica e pro-
fundamente filosófica definição de Millôr Fernandes, o autodidata é um
“ignorante por conta própria”. Isto é, ele não deixa de ser ignorante como
os demais mas, ao menos, o faz de maneira autônoma, não de modo tu-
telado. Neste sentido, bom mestre é aquele que ao educar oferece grada-
tiva e sucessivamente o espaço para o estudante ser sujeito de sua própria
formação, até que sua presença se torne dispensável.

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