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JO C ÉLIO TELES D O S SA N TO S

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daTerra
O CABOCLO
NOS CANDOMBLÉS DA BAHIA
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Rede SARAH de Hospitais do Aparelho Locomotor
Aloysio Campos da Paz Júnior
Cirurgião Chefe

Conselho Editorial
Arnaldo Antunes; Boris Schnaiderman; Carlos Nelson Coutinho;
Caetano Veloso; Darcy Ribeiro; Delfim Netto; Eduardo Viveiros de Castro
Elisaldo L. A, Carlini; Florestan Fernandes; Haroldo de Campos;
Jorge Amado; João José Reis; José Arthur Giannotti; José Mindiin;
Luiz Costa Lima; Leandro Render; Lívio Tragtenberg; Muniz Sodré

Coordenação Editorial
Antonio Risério

Capa
Luís Eduardo Resende

Foto
Eduardo Serrate

Santos, Jocélio Teles dos.


S237d O dono da terra : o caboclo nos
candomblés da Bahia / Jocélio Teles
dos Santos. - Salvador : SarahLetras,
1995.
162 p.

ISBN 85-85843-05-5

1. Candomblé - Bahia. 2. Cultos afro-


brasileiros. 3. Bahia - Vida e costumes reli'
giosos. I. Título

CDU 39(813.8)

Editora SarahLetras

Programa
A Cor da Bahia
Mestrado em Sociologia - UFBA

Apoio
Fundação Ford
"À memória de mãe Zinha”
AGRADECIMENTOS

Inúmeras pessoas contribuíram para a realização deste livro


apresentado, originalmente, como Dissertação de Mestrado ao
Departamento de Antropologia Social da Universidade de São Paulo.
Agradeço a Manuela Carneiro da Cunha, orientadora, por suas leituras
críticas, sugestões, e pelo incentivo durante todos esses anos. Maria
Lúcia Montes acompanhou o final do trabalho de campo lendo os
relatórios com carinho, atenção e dando idéias. Patrícia Birman pela leitura
atenta, criteriosa e discussões na defesa de tese.
Aos professores Paula Montero, Liana Trindade, José Guilherme C.
Magnani e Cannem C. Macedo pelas observações quando da elaboração
do projeto da dissertação.
Vivaldo da Costa Lima com sua aiguta críticafoi um constante amigo,
alertando-me para novos escritos, e cedendo livros, teses, artigos e
entrevistas.
Júlio Braga e Valdeloir Rego em diferentes fases do trabalho forneceram
pistas e fizeram ponderações a um neófito pesquisador.
João J.Reis e Michel Agier leram, respectivamente, o segundo e o
primeiro capítulo contribuindo para a versão final do texto.
Vagner Gonçalves, Rita de Cássia do A. Peixoto e Reginaldo Prandi
pela edificante amizade, sugestões de leituras, assim como por terem me
levado a conhecer os caboclos dos terreiros paulistanos.
Sérgio e Mundicarmo Ferretti pelo companheirismo, discussões sobre
o tema, e por terem, com o costumeiro jeito maranhense, emprestado
artigos, teses e livros sobre as religiões afro-brasileiras.
Maria do Rosário Carvalho leu a versão primeira do projeto e me
estimulou com suas sensíveis reflexões.
Roberto Albergaria viu este trabalho nascer, sob sua orientação, como
um projeto de iniciação científica e muito me incentivou. Ronaldo Sena
neste período me animou a prosseguir pesquisa.
Fundamental foi o apoio do CNPQ e da Fapesp que, através da
concessão de bolsas de estudos, tomaram essa pesquisa viável.
Os funcionários do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, e do
Arquivo Público do Estado da Bahia me ajudaram a encontrar jornais e
documentos.
Éber F. Simões pela ajuda constante no trabalho de campo, nos
relatórios de pesquisa e na versão final deste trabalho. Suas contumazes
observações foram valiosíssimas.
Caroline Crosbie e Roque Alcântara pela hospedagem em fases
distintas da pesquisa de campo. Mariete Paiva, Selma Lancman e Leo
Leskowicz por terem dividido além do espaço físico as inquietações na
paulicéia.
Mutá pela sugestão do tema, incentivo, apoio e esclarecimentos acerca
da vida do povo-de-santo.
Ralph Waddey deixou seu valioso material de pesquisa à minha
disposição e me enviou artigos encontrados em bibliotecas norte-
americanas.
Almerinda S.Gueneirofoi uma amiga inseparável em todas as fases,
esfuziantes ou angustiantes, que possui todo trabalho intelectual.
Luciano Diniz pela revisão final.
Inúmeros pais, mães e filhos-de-santo de Salvador me ajudaram. Com
eles muito aprendi.
SUMARIO

INIRQDUÇÃO 9
A Pesquisa 12

PAIXÕES EINTERPREIAÇÕES 13
Os Números da Questão 20
A Inserção no Sistema 24
Notas 28

ODOISDEJULHO 31
O Desfile 36
O Povo de Santo e o Desfile 43
Notas 52

O TERMOEASDEF1NIÇÕESDE CABOCLO 53
A Diferença na Identidade: Orixá e Caboclo 60
Os Espaços 65
Iniciação 67
AExigência 70
A Manifestação 73
Notas 76

CANDONBLÉDECABOCLO:UmCormto Delicado 78
Uma Leitura Sincrônica 82
Origem 87

A FESTA NO CANDOMBLÉ - A Matança 91


O Candomblé do Caboclo 94
A Invocação 100
A Chegada dos Caboclos 103
A Saída Paramentada 107
A Mesa de Jurema 113

ASSESSÕESDEGIRO 116
A Distinção com a Umbanda 118
Uma Sessão de Caboclo 119

CABOCLO ERU: 0 Canibalismo Simbólico 123


Marujo: Um Inebriado Mercúrio 126
Boiadeiro 132

SEMELHANÇAS E SIMETRIAS 135


Exu/Caboclo 139
Oxóssi/Caboclo 142

CONCLUSÃO 147

LISTADENOMESDECABOCLOS
ENCONTRADOSNOS CANDOMBLÉS BAIANOS 149

REFERÊNOASBffiUOGRÁFICAS 153
INTRODUÇÃO

Dois episódios que raê foram narrados ao longo da pesquisa ilustram


S o objetivo deste livro - compreender a inserção, nos candomblés, de uma
entidade denominada Caboclo que é identificada como sendo de origem
indígena.
O primeiro episódio refere-se a um índio que, levado por uma
antropóloga a um terreiro de candomblé, e vendo um Caboclo se
manifestar num adepto, pergunta em tom de surpresa e estranhamento
que Caboclo era aquele. O segundo episódio aconteceu num encontro
de indigenistas, em que uma jornalista afirmava categoricamente que
conhecia um índio. Quando indagada sobre este índio ela dizia tratar-se
de um índio que, semanalmente, descia numa sessão de candomblé.
Estes dois fatos, que a princípio poderiam ser tomados como anedotas,
X demonstram que nos cultos aífo-brasileiros existe um “índio’ e que este
assim é reconhecido não só pelos adeptos que o cultuam, como também
pelos ocasionais frequentadores dos terreiros. Vale ressaltar que, ao invés
da denominação índio, os adeptos o distinguem com a denominação
_ genérica Caboclo. Esta categoria tem a finalidade de dar conta dos
^ “índios” do candomblé, bem como englobar outras entidades que deles
se aproximam por ter caracteres semelhantes.
Nosso propósito foi entender a inserção do Caboclo no sistema
religioso afro-baiano, na sua relação com os orixás - deuses trazidos da
África no processo da escravidão-, pois como observa J.P.Vemant, “ um
panteão nos parece precisamente mostrar que no funcionamento mental,
diferenciação e associação constituem os dois aspectos solidários de
uma mesma atividade dassificatória” (1979:44). ^
A compreensão do Caboclo no sistema religioso afro-baiano passa
necessariamente pelo reconhecimento de que a maioria dos estudos

9
affo-brasileiros tem ressaltado, extraordinariamente, os aspectos mais
significativos da herança africana, e desprezado, sobremaneira, tudo
aquilo que poderia ser referido ao Caboclo, já que esse seria uma pedra
no caminho da legitimidade africana dos candomblés. Como veremos no
Capítulo 1, essa visão é resultado de uma passionalidade exemplar dos v-j
estudiosos para com os terreiros em que foram realizadas a maioria das
pesquisas, notadamente os de origem nagô, onde é ressaltado o discurso
tradicionalista. Essa postura, que carece de um distanciamento crítico,
deve, por um lado, ser diferenciada dos objetivos dos membros dos
terreiros que, afirmando a africanidade de seus terreiros, vêem não só a
sua legitimidade perante a sociedade global, como também a sua distinção
perante o cada vez mais concorrido mercado religioso (cf.Bourdieu, 1974).
Convém ressaltar que ao discurso de africanidade desses terreiros deve
ser associada uma “dissimulação” da presença dos Caboclos, no intuito 45$
de marcar sua “pureza”, “tradição”, etc. O interessante é assinalar que o
Caboclo encontrou “lugar” no panteão, o que nem sempre fica aparente,
porque além do sistema cosmológico há também o sistema sociológico
em que cada terreiro tem que delimitar seu campo, enfatizando suas
“diferenças”.
Essa “teia ideológica” fez com que o Caboclo fosse alijado da análise
dos candomblés, e privilegiado nas análises da umbanda, pois essa foi
desde os primórdios mais permissiva a influências externas. Entretanto,
vale ressaltar que o culto ao Caboclo nos candomblés baianos data da Y
segunda metade do séc.XIX, e, portanto, é anterior à formação da 7
umbanda. Nesse sentido, podemos aventar que o chamado candomblé
de caboclo foi a matriz inspiradora da umbandatanto pelo amálgama de
Influências “indígenas”, católicas e kardecistas, quanto pelo grau de
nacionalismo que se nota na existência do Caboclo. f
O segundo capítulo busca entender como se deu o processo de
glorificação do Caboclo nos candomblés baianos, como símbolo nacional,
após a Independência da Bahia, em 1823, e de que maneira o desfile
sócio-político do 2 de Julho se relaciona com as práticas religiosas dos
terreiros, pois tanto no espaço público - as ruas de Salvador - quanto no
privado - os terreiros, a religiosidade do povo-de santo ao Caboclo, em

1o
diferentes graus, se manifesta. J
Tendo como ponto de partida os escritos afro-brasileiros, busco, no (A I
cap.3, através de depoimentos dos adeptos, apreender as distinções
X entre o caboclo e o orixá. Essas diferenças, complexas e sutis, podem
também, espero, ajudar a compreensão do que se convencionou chamar ,^
de candomblé-de-caboclo (Cap.4). Expressão delicada na sua O-rf
conceituação, ela é mais um exemplo da classificação do sistema religioso
afro-baiano.
As práticas que envolvem o Caboclo nos candomblés constituem os
, 19
f,
capítulos 5 e 6. As festas na sua expressão dionisíaca e as sessões de
giro com seu caráter mais solene demonstram, de forma diferenciada, de
(A Á
que modo o “índio” nos candomblés é representado.
No capítulo 7, apresentamos uma tipologia de três caboclos mais (
populares da Bahia. Por fim, “ Semelhanças e Simetrias” corresponde a
uma interpretação, no nível simbólico, da inserção do Caboclo no panteão
afro-baiano e da sua relação com Exu e Oxóssi. A partir de uma narrativa,
verifica-se de que forma os terreiros criam uma história-pastiche da relação
X entre negros e índios ÜÓ período colonial" enTque se sublinha o
aprendizado e ajuda mútua entre os dois grupos subalternos, e omite-se
a utilização pelos portugueses de negros para caçar índios ou de índios
para ajudá-los na repressão aos quilombos e mocambos. A história
ressaltada é a história de êxitos, em que fúndamentalmente é acentuada a
relação de assimilação da invocação dos espíritos indígenas e dos orixás,
com a história sendo usada, a seu devido modo, para fins práticos e
utilitários. 0 problema está precisamente na forma como esse caráter
utilitário é exercido, o modo como os elementos adotados são
reinterpretados e remodelados para sua inserção numa tradição mística.

u
A PESQUISA

A pesquisa de campo envolveu terreiros baianos, na sua maioria da


nação angola, onde a presença do Caboclo é ressaltada. Por mais que
tenhamos priorizado esses terreiros, dirigimos nossas pesquisas também
para os terreiros da nação ketu que cultuam abertamente o Caboclo. A fj$
investigação sistemática nos permitiu ver que por mais que os terreiros
tenham uma filiação similar, ligada muitas vezes a terreiros tradicionais,
existe uma diversidade nas práticas, ou mesmo concepções, relacionadas
ao Caboclo. Há, portanto, que distinguir “a árvore da floresta” (cf.Geertz,
1978).
Inicialmente busquei verificar a presença do Caboclo nos terreiros
como o resultado de um possível sincretismo afro-ameríndio. Essa postura | |
refletia, num primeiro momento, as preocupações de autores1 que tentaram
entender o fenômeno. As suas análises refletiam, no plano teórico, a
premissa de que haveria um sincretismo, fosse ele católico ou ameríndio,
presente nas religiões afro-brasileiras.
Os dados coletados, e as pistas deixadas nos trabalhos de Vivaldo da
C.Lima (1977), Júlio Braga (1975) e Beatriz G.Dantas(1988) me fazem
argumentar que o Caboclo não deve ser visto como mero resultado de
contatos étnicos entre negros e índios, mas sim nos moldes de uma
representação que dá conta do índio como legítimo “dono da terra”.
Representação complexa que combina tanto elementos intrínsecos ao
próprio sistema religioso afro-baiano, quanto valores “indígenas” e
regionais - e porque não dizer nacionais - externos a esse mesmo sistema,
o Caboclo do candomblé baiano explicita visões contidas na sociedade
abrangente acerca do elemento autóctone. Afinal de contas, o índio que,
levado a um candomblé pela antropóloga, não se viu representado na
figura do Caboclo, e a jornalista que afirmava ser o Caboclo da sessão
um índio, estavam diante da mesma questão: a representação do outro.
} v. Valente, 1977; Querino, 1938; Ramos, ! 988(1934);Carneiro, 1981 ; Rodri­
gues, 1977(1938); Bastide(1974).

12
PAIXÕES E INTERPRETAÇÕES

Na literatura afro-brasileira, a presença do Caboclo é objeto de dois


tipos de interpretações. Ora aparece como o resultado de um processo
sincrético afro-ameríndio (v. Carneiro, 1981; Valente, 1977; Ramos, 1961),
t f ora ele é visto como uma variante do candombléjêje-nagô, ao qual seriam
incorporados elementos indígenas (v.Querino, 1938; Braga, 1975).
No primeiro caso, o sincretismo afro-ameríndio seria o resultado de
um processo, no qual a cultura religiosa dos negros ter-se-ia apropriado,
de m aneira seletiva, da cultura indígena. Deduz-se, por essa
argumentação, que necessário seria distinguir esse sincretismo do
sincretismo afro-católico , j á que a constituição do sincretismo
afro-ameríndio deu-se de modo diferenciado, na medida em que o
afro-católico ocorreu através de uma relação de dominação cultural
diretamente operada a partir da cultura ocidental hegemônica1
Mesmo se a apropriação do Caboclo pelo candomblé fosse direta,
como entende a teoria do “sincretismo afro-ameríndio”, dificilmente
poderíamos conceber sua inserção como o simples resultado de relações
étnicas passadas, cuja análise teria como parâmetro a chamada “cultura
de contato” e que teria produzido uma pura e autônoma fusão cultural.2
Na verdade, os elementos “ameríndios” dos candomblés afro-baianos
presentes no culto aos Caboclos não revelam uma “fusão” entre grupos
africanos e indígenas mas uma representação simbólica do que seria a
cultura indígena para esses terreiros.
O segundo modelo de interpretação, que vê no candomblé de caboclo
uma variante da estruturajêje-nagô, coloca uma série de problemas teóricos
e metodológicos que vamos abordar sucessivamente: etnocentrismo nagô
e valorização da África, relações entre intelectuais e adeptos do
candomblé, presença de homens e do homossexualismo no candomblé.

13
Sabemos que Edison Carneiro foi o primeiro a tentar um estudo
sistemático dos chamados povos bantus, pouco descritos até então.
Carneiro dizia que Nina Rodrigues não tinha dado ao negro bantu a
importância queele merecia, na medida em que, para esse último, a questão
do negro se reduzia ao negro sudanês e, mais específicamente, ao nagô.
Mesmo sendo o autor que se interessou pela análise do fenômeno e
que desejava fazer uma revisão crítica dos chamados candomblés de
caboclo (v. Costa Lima, 1987:83), Edison C arneiro não se
desvencilhou do etnocentrismo nagô em vigor desde os escritos de
Nina Rodrigues.5
Nessa linha de pensamento estabeleceu-se uma dicotomia entre os
terreiros de tradição africana( leia-se nagô), impermeáveis às influências
externas, e os terreiros de origem bantu, abertos a todas as influências,
em particular à influência ameríndia. Tudo isso implicando um discurso
mais motivado pela “pureza nagô” (cf.Dantas, 1988) do que por uma
verificação efetiva das afirmações. Isto é particularmente evidente no
caso do Caboclo no candomblé.
Estabeleceu-se, portanto, ao longo desse século, uma separação entre
as diferentes nações4 de origem africana ( e suas expressões religiosas),
em função de sua capacidade de conservar a cultura “originar’, e segundo
o maior ou menor grau de influência permitida. Esquecem-se os fatores
sociais que, inicialmente, provocaram a introdução de elementos
“estranhos” à cultura afro-baiana. A forte predominância dos nagôs na
Bahia se explicaria pela chegada massiva e recente desse povo, na última
fase do tráfico de escravos (entre 1813 e 1851). Quanto à sua resistência
a outras influências culturais, ela viria da presença, entre eles, de
numerosos prisioneiros de guerra oriundos de classes sociais elevadas,
além de sacerdotes conscientes do valor de suas instituições e firmemente
ligados aos preceitos de sua religião, (v.Verger, 1987:10)5
Ao contrário, a permeabilidade dos povos bantus às influências
externas seria devida ao fato de que eles foram os primeiros a chegar ao
Brasil no início da escravidão, a partir do século XVI, na condição de
escravo rural para o desbravamento e povoamento da terra (v. Bastide,
1985). Por consequência, as influências “ameríndias’’entre esses povos

14
sido mais visíveis. Eles encontraram, na cultura indígena da época,
1simbólicas que foram adotadas à sua nova realidade. Na medida

ia q u e os primeiros povos cativos (bantus) foram deslocados para a zona


rural, nós podemos levantar a hipótese de que os contatos entre índios e
«gros se estabeleceram e duvidar da tese segundo a qual os candomblés
d l caboclo seriam uma variante jêje-nagô. Reconhecemos que a questão
é delicada, próxima de uma “arqueologia” e de difícil precisão.
Isto dito, a hipótése da variante jêje-nagô coloca outras questões. Em
particular, ela revela uma opção metodológica, característica de uma série
dl eitudos clássicos, que consistiu em tomar por objeto o modelo ortodoxo
dos grandes terreiros baianos - Gantois, Casa Branca, Axé Opo Afonjá.
Os deslizes metodológicos presentes na literatura até os anos setenta
traduzem seus preconceitos contra a emergência de uma entidade
4Ébrasileira”, a saber o Caboclo, e uma valorização da África. Esse fato
gftú tem por única origem o meio intelectual. Por motivos distintos, como
indica Dantas (1988), houve a adesão dos intelectuais ao discurso
iTftdicionalista dos adeptos dp candomblé jêje-nagô. Nesse sentido, é
interessante notar o que alguns pais-de- santo pensavam sobre o
problemático candomblé-de-caboclo :

“Esse sujeito, Francisco da Roça Branca! Que cachorro!


Seus avós, que é que eles sabiam? Foram educados na
seita? Será que deixaram o cargo para ele? Não. Ele veio do
sertão e quer fimdar um candomblé. Aprendeu um pouco
do nagô, um pouco dessas coisas de índio e assim por
diante. Que mistura desgraçada!”
(Apud Pierson, 1971:305)

“Tudo é nagô puro; não há nada no meu candomblé da


mistura que esses centros novos tem hoje em dia. Há gente
que dá a essa bobagem de caboclo o nome candomblé.
Ora eles não sabem nada do jeito de fazer essas coisas da
Africa”.
(W .)

15
“E os novos templos de nação caboclo... Meu Deus,
estão acabando com tudo, estão jogando fora as nossas
tradições!”
(Martiniano do Bomfim apud Landes, 1967)

Entre os pesquisadores, mais ainda que entre os adeptos, a existência


de Caboclos nos terreiros tradicionais de Salvador sempre foi objeto de
controvérsia. Falava-se em Caboclos naqueles terreiros, entretanto
insistia-se, ao nível da análise, no deslocamento das entidades para os
candomblés de caboclo. Constituiu-se, por conseguinte, um paradoxo.
Bastide (1974b :21) afirmava que os candomblés tradicionais (Engenho
Velho, Gantois, Opô Afonjá, Casa das Minas) continuam a repelir toda
interferência das religiões indígenas; contudo, sempre ouviu que todo
candomblé iorubá contém em seu seio um caboclo. Confrontado com o ^
que poderia ser um exemplo da “perda da pureza” das casas estudadas,
Bastide acreditava que o Caboclo assim chamado pelos pais e mães de
santo não seria outro senão o orixá Oxóssi.6 Essas informações,
corroboradas por Donald Pierson (“as seitas mais ortodoxas não escapam
à influência indígena” (1971:305)), apareciam sempre em segundo plano,
enpassant, de modo que nao pudessem contradizer o discurso oficial da
legitimidade africana e, do mesmo modo, revelam preconceitos.7
A imbricação entre o pensamento intelectual e a ortodoxia nagô nos
parece então clara. Ela oferece um belo exemplo de ligação passional e
orgânica. Parece que nenhum senso crítico havia na classificação dos &
terreiros, feita de um ponto de vista mais “êmico” que “ético”.
O mesmo etnocentrismo cultural provoca uma inteipretação de outro
tipo. No afa de provar sua teoria do matriarcado nagô, Ruth Landes
(1967) explica o número crescente de homens no candomblé pela
existência dos candomblés de caboclo. Ela qualifica esses homens de
homossexuais passivos do “sub-mundo” baiano (p.291), marginalidade
definida em oposição à um mundo baiano que seria dominado pelas
mulheres e pela tradição nagô.8 Segundo Landes - e, igualmente
Pierson( 1971 ) -, os homens, mais em contato com a cultura européia e,

16
^ portanto, sujeitos às idéias e sentimentos dos brancos, se oporiam às
mulheres, mais estreitamente ligadas às tradições e costumes africanos.
Por mais que Landes tenha o mérito de colocar problemas até então
ocultados, essas interpretações revelam problemas. A questão da
homossexualidade nos terreiros necessita de análises mais complexas
(cf.Fry, 1982), não podendo ser imputada simplesmente a um desvio do
modelo jêje-nagô caracterizado pela predominância das mulheres.9
Quanto ao crescente número de homens exercendo funções sacerdotais
no candomblé, deve-se ter em conta que nunca foi privilégio dos
candomblés de caboclo. Quase no mesmo período em que Landes realizou
suas pesquisas, Pierson indicava, na periferia de Salvador, a existência
de 18 terreiros: onze de origem nagô, seis da nação angola e um jêje. Dos
onze terreiros nagôs, quatro dos chefes eram homens, sete eram mulheres;
dos terreiros angolas, cinco eram homens e uma era mulher. E o dirigente
do terreiro jêje era uma mulher (1971:307). Por mais que os dados não
sejam totalizantes no que se refere à cidade do Salvador (o próprio autor
indica a existência de 70 a»100 terreiros a esta época), essa pequena
amostra aponta um quadro que, em termos relativos, se aproxima do
fornecido por Edison Carneiro e apresentado por Landes : 23 terreiros
nagôs dirigidos por 20 mães-de-santo e 03 pais-de-santo; 44 terreiros
caboclos dirigidos por 10 mães e 34 pais-de-santo.
É certo que os terreiros de origemjêje-nagô iniciaram mais homens no
curso das últimas décadas, e que os terreiros angolas e caboclos
continuam a iniciar tanto homens quanto mulheres. Entretanto, dados
de Costa Lima (1977) mostram que o número global de mulheres é supe­
rior ao dos homens.
Este fato é confirmado na pesquisa realizada, em 1983, pela SIC/ÍPAC
^ (Secretaria da Indústria e Comércio/Instituto do Patrimônio Artístico e
Cultural da Bahia), abrangendo 1.211 terreiros da Região Metropolitana
de Salvador, com o intuito de verificar os aspectos ocupacionais dos
membros do terreiros. É preciso ressaltar que nessa pesquisa a diversidade
dos terreiros e de suas nações respectivas, a partir das informações de
seus líderes, é importante, na medida em que encontramos as combinações
mais diversas; desde as classificações tradicionais - ketu, angola, ijexá,

17

Jhi.
jêje, caboclo - até classificações dando conta, com precisão, da influência
de várias nações - jêje/ijexá, nagô/ketu/angola; ketu/caboclo; caboclo/
angola/ijexá; angola/jêje/ijexá, etc.
De um modo geral, com exceção dos très terreiros ketu/jêje,
verifica-se uma predominância global das mulheres sobre os homens,
como podemos observar na tabela ao lado.
Curiosamente, o percentual de mulheres dos terreiros angola, angola/
ketu, ijexá e caboclo revela-se maior (74,48%, 75%, 80,85% e 82,93%) que
os da nação ketu (69,8%)
As explicações de Landes e Pierson não resolvem a questão
homossexualidade/candomblé, nem, por consequência, a questão do
Caboclo no candomblé. Primeiro, porque eles a colocam nos limites de
um etnocentrismo cultural estreito. E segundo, porque, restringindo-a à
uma simples divisão sexual interna, eles não dão conta do fato que a
participação masculina crescente no candomblé se inscreve no quadro
do reconhecimento e da legitimidade social progressiva à profissão de
pai-de-santo.
DISTRIBUIÇÃO DE PAIS E MÃES DE SANTO POR NAÇÃO
NAÇÃO HOMENS % MULHERES %

Ketu 135 30,20 312 69,80


Angola 98 25,52 286 74,48
Angola/Ketu 18 15 54 75
Ijexá 9 19.15 38 80,85
— Caboclo 7 17,07 34 82,93
Sessão de Giro 6 42,86 8 57.14
' Congo 0 1
Nagô 0 5
Almas 1 0
Nagô-Godô 0 1
Jêje 12 40 18 60
Malê 1 0
Eguns 2 0
Umbanda 1 0
Amburaxó 1 0
Abicum 1 0
Nagô Obá 2 0
Nagô Vodum 2 50 2 50
Caboclo e Giro 0 3
^^Angola e Giro d 3
Congo/Angola 0 3
Ketu/Caboclo 2 33,33 4 66,67
Angola/Caboclo 2 22.22 7 77,78
Angola/Ijexá 2 15 6 75
Ketu/Ijexá 3 42,86 4 57,14
Amburaxó/Angola 0 1
Jêje/Ijexá 0 1
Angola Mahungo 1 0
Nagô/Ketu/Angola 0 1
Angola/Ketu/Ijexá 1 0
Jêje/Angola 1 15 3 75
Caboclo/Ang/Ijexá 0 1
Jêje/Nagô/Angola 0 1
Ketu/Angola/Umband 0 1
Ketu/Efan 1 0
Nagô/Ketu 1 0
Jêje/Nagô 2 0
Ketu/Jêje 2 66,67 1 33.33
Angola/Jêje/Ijexá 0 1
Sém denominação 36 37,11 61 62,89
Total 350 28,90 861 71,10
Fort t e : S I C / 1 P A C -1 9 6 3

I 9
OS NÚMEROS DA QUESTÃO

A intensificação da presença do Caboclo nos candomblés de


Salvador é um fenômeno que podemos notar desde os primeiros
decênios deste século. Carneiro (1986) falando das nações inscritas,
em 1937, na União das Seitas Afro-Brasileiras, apresenta o seguinte
quadro :

candomblés Sudaneses_________ 30
candomblés bantus------------------- 21
^ candomblés ameríndios------------- 15
2 candomblés afro-ameríndios_____ 01
^ Total________________________67

Os registros da União das Seitas Afro-Brasileiras, se de início


fornecem uma amostra significativa da presença dos terreiros
declaradamente de influência ameríndia, tomam-se insuficientes para
termos maiores dados da presença do Caboclo no conjunto dos
terreiros de candomblé. Como nós já notamos, essa presença é
1 frequentemente atestada tanto nos terreiros de nações de origem
bantu quanto na maioria dos terreiros de tradição dita “sudanesa” .
Convém notar que esse fato dificilmente aparece nos dados
estatístico s, já que eles são colocados sob denom inações
aproximadas e simplificadas. Um outro dado importante é que o
número de terreiros que, segundo E. Carneiro (Op.Cit.), não eram
filiados à União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia está longe de
ser negligível (33, num universo em tomo de 100).
Para fornecer uma idéia da situação atual, dispomos de dados
das pesquisas efetuadas pelo Centro de Estudos Afro-Orientais
(CEAO) da Universidade Federal da Bahia, entre 1960 e 1969 (Lépine,
1978), e pela Federação Bahiana do Culto Afro-Brasileiro (Barbosa,
1984):

20
Ano Ketu Angola Caboclo Ijexá Jêje Congo Umbanda Total
1969 107 61 105 16 14 01 02 306
1981 660 350 271 14 04 - 50 1.349

Houve um crescimento dos terreiros de denominação ketu, angola,


caboclo e umbanda ocorrendo o inverso nos terreiros jêjes e ijexá. Isso
pode se explicar pela crescente tendência de fusão dos terreiros ketu e
terreiros jêjes, fenômeno constatado desde o fim do último século (v.
Costa Lima, 1977; Rodrigues, 1977(1935)).
As percentagens relativas aos candomblés ketu (34,9% em 1969 e
48,9%em 198l),edecaboclo(34,3%em 1969 e20,l%em 1981) indicam
que os terreiros ditos “de caboclo” apresentam uma taxa de crescimento
menor, enquanto que se produz o inverso nos outros terreiros.
O número de terreiros de origem dita sudanesa sempre foi crescente
em Salvador, o que se explicaria não somente pela presença massiva dos
iorubás a partir do final do século XVIIÏ e do início do século XIX, mas
também por uma busca de prestígio de parte dos terreiros, na medida em
que esses povos seriam os detentores da herança original africana. Isso
se revela na mudança de nação angola à nação ketu ( e raramente o
inverso), realizada por um grande número de adeptos. Segundo um
procedimento análogo, um bom número de terreiros que poderiam se
X considerar “de caboclos”, por terem seu nome ligado ao caboclo do pai
ou da mãe-de-santo, denominam-se “de nação angola”, mostrando assim
uma preocupação maior com a matriz africana.
De fato, nós notamos dois movimentos aparentemente inversos:
de um lado, uma diminuição do número de terreiros caboclos; de outro
lado, o crescimento massivo da presença do Caboclo em todos os
terreiros. Assim, a totalidade dos terreiros angola - que, em 1969 e
1981, correspondem respectivamente a 19,9% e 25,9% dos terreiros
pesquisados - pratica o culto aos caboclos. E nos terreiros ketu, de
acordo com a mãe Stella do Axé Opô Afonjá : “ o que mais dá é
caboclo” .10
Nessa direção é que transcrevemos um trecho de um artigo de
Deoscoredes M.dos Santos (1988):

21
‘Tor mais que alguns altos preservadores da tradição
dos orixás quisessem e até a data presente ainda queiram e *
afirmem que nos seus terreiros só existia a presença
exclusiva dos orixás, é inteiramente difícil e até impossível.
Para que atualmente, mesmo em Salvador-Ba., um
terreiro de orixá seja “puro”, cultuando exclusivamente os
orixás, é preciso que ele seja fechado e reaberto novamente
(...) Mesmo aqueles que se consideram da nação Nagô ou
Ketu, estão permeados por Obaluayé, Nanã, Oxumaré, e
mesmo Legba ou Elegbará, todos fortemente associados à
nação jeje, sem falar de assentamentos da nação Grunci e
de tradicionais terreiros que cultuam caboclos - donos da
terra-, nos quais muitos de seus filhas e filhos, indepen­
dentemente de seu orixá, têm um caboclo que se manifesta”

Aliás, nao são só os terreiros tradicionais que são permeáveis à presença


do Caboclo. Eles aparecem também nos terreiros onde se pratica o culto
aos eguns (ancestrais africanos, v.Elbein dos Santos, 1982), nos quais
reina a tradição nagô. Nesse sentido, vale aobservação de Antonio Risério:

“Mesmo numa sociedade secreta masculina vinda


diretamente da Africa, e aqui sobrevivendo no lessé-egum
da ilha de Itaparica, onde são cultuados os grandes
ancestrais do povo nagô, de Babá Alapalá a Babá Canã,
volta e meia aparece um babá Caboclo, o Babá Iaô, exibindo
um diadema de penas em suas danças coloridas, pra
perguntar se a roupa dele tá bonita, e ouvir o coro feminino,
de volta, responder entre palmas : Odara, Babá... Odara,
Babá...” (1981:70)

Esse egum-Caboclo, segundo observação de J.Braga (1988:214),


quase sempre encerra a festa, e, nesse momento, toda a assistência, K
j á do lado de fora do barracão, canta em português em homenagem a um
dos mais festejados eguns.

22
Do mesmo modo que na umbanda (v.Montero, 1985;Toop, 1972), a
difusão do Caboclo no candomblé é surpreendente. O que esses dados
indicam encontra-se nos julgamentos e análises dos adeptos e
pesquisadores sobre os candomblés de caboclo.
Os julgamentos, hoje, não são mais tão virulentos quanto no passado.
Os pais e mães-de-santo dos terreiros ortodoxos reconhecem a
importância da entidade Caboclo nos candomblés de Salvador.
Entretanto, por mais que eles não critiquem, como faziam nos tempos de
outrora, a presença do Caboclo nos candomblés nagôs, insistem sobre a
“pureza” de suas casas : como se fosse mais importante tomar uma firme
posição contra o sincretismo afro-católico e pela preservação das origens
africanas, do que contra a presença do “índio”.
Apesar dos julgamentos de valor persistirem (v.mais adiante), Claude
Lépine fornece informações interessantes sobre o Caboclo nos terreiros
ditos tradicionais. Ela afirma que “ nas casas ketu ortodoxas há pessoas
que possuem, além do seu santo, um caboclo” (1978:79). Adiante, ela
acrescenta a fala da mãe-de-santo do Axé Opô Afonjá (São Gonçalo):

“Se uma filha minha tem um caboclo, o que vou fazer?


Não vou matá-la, não é? Então a filha faz o orixá em São
Gonçalo e vai assentar seu caboclo em outro lugar. A iyá
kekerê (mãe pequena) do axé não quer caboclos na sua
casa, mas acredita piamente na existência dessas
entidades”

Ainda segundo Lépine, apropria Olga de Alaketo, mãe de santo de


um dos mais tradicionais terreiros de herança nagô,11tem um caboclo,
Jundiara, ao qual dedica uma festa todos os anos, em janeiro. Esta festa
é reservada a um grupo restrito de pessoas e os membros do terreiro
demonstram certa relutância em falar de tal caboclo, como se sua existência
fosse algo desabonador para o terreiro (v.p.79). Lopes dos Santos ( 1984),
numa pequena mas notável etnografia, narra a chegada do caboclo
Jundiara de Olga de Alaketo em uma missa de ação de graças na Igreja do
Mosteiro de São Bento, até a festa no terreiro.

23
A INSERÇÃO NO SISTEMA

As mudanças das práticas e julgamentos dos adeptos sobre o Caboclo


correspondem a uma evolução importante das pesquisas sobre o
candomblé. As escolhas metodológicas, os engajamentos e os
julgamentos passados foram, desde os anos setenta, o objeto de
numerosas críticas.12Desde então, as pesquisas começaram a se desviar
do modelo prevalecente e a se afastar de Salvador, onde estavam
concentradas,
A questão do Caboclo no candomblé sempre é, hoje, abordada pela
pesquisa através de dois grandes tipos de explicação, cujo ponto comum
é procurar a compreensão do Caboclo a partir de causas externas ao
candomblé.
Em primeiro lugar, a importância relativa dada a essa entidade na
estrutura religiosa provém mais das pesquisas efetuadas no universo da
umbanda do que no candomblé.13 Isso conduziu certos autores, mesmo
entre aqueles que se situam numa perspectiva crítica, a erros de
interpretação sobre o lugar do caboclo no candomblé. Ortiz (1978:66),
por exèmplo, quando transpõe sua análise da umbanda ao candomblé,
afirma que a integração do Caboclo se efetua de maneira periférica, pois
à diferença dos orixás não existe um dia da semana consagrado em par­
ticular ao Caboclo. Essa interpretação é discutível, pois no candomblé
baiano inúmeras festas e sessões são dedicadas aos caboclos. Se eles
não têm efetivamente um dia de consagração na semana, sua presença
nos terreiros é festejada em datas específicas (21 de abril, 02 de julho, 7
de setembro), ou em dias específicos para a realização de sessões, quando
não cotidianamente, no curso da execução de um trabalho, de um ebó, ou
de uma purificação espiritual.
Em segundo lugar, as abordagens situam, geralmente, a inserção do
Caboclo no universo afro-baiano no período correspondente ao
Romantismo e ao movimento para a independência da Bahia que elegeram
o índigena como símbolo nacional (v.Bastide,1974b; Carneiro, 1964).
Todos os trabalhos, portanto, sobre o Caboclo, seja na umbanda ou no
candomblé, são assim fiéis ao enunciado de Edison Carneiro:

f “os caboclos, tal como os conhecemos agora, são, por


um lado, a prova mais tangível da repercussão da revolução
da Independência (que tanto prestigiou o caboclo) na
mentalidade popular; e, por outro lado, denunciam a
vigorosa aceitação popular da literatura indianista, e
especialmente dos romances de Alencar” (1964:144s)

Esta interpretação constituiu um verdadeiro paradigma de inserção


do Caboclo no candomblé. Ele revela, parece-nos, algo já contido no
pensamento deTylor (1871) - a ação de eventos externos sobre amente
conduz não somente ao enunciado do fato, mas também à formação do
mito - e confirma certos pressupostos da filologia histórica: a análise
puramente literária dos textos e a consequente redução da análise mítica
à cronologia.
Seria o “índio” no candomblé uma adaptação da religiosidade dos
segmentos mais baixos da sociedade brasileira, utilizando o modismo
cultural de uma determinada época (vnessa direção Senna, 1984:79) para
conseguir aceitação na sociedade?
É provável que a partir da Independência da Bahia se tenha assistido
a um “boom” de Caboclos nos terreiros de candomblé; afinal de contas
4 os terreiros não são ilhas isoladas da dinâmica da sociedade. No entanto,
parece-nos simplificador estabelecer uma relação unívoca, afirmando que
a representação indígena nos cultos afro-brasileiros seria manifestada
exclusivamente a partir do Romantismo e do movimento de 1823.
Salientamos que se produziu, ao longo do século XIX, uma articulação
entre a conjuntura política e a representação simbólica do negro brasileiro
acerca do índio, esse sendo considerado como “dono da terra”. Essa
imbricação culmina com a imagem romântica do indígena. Necessário é,
pois, visualizar toda a diversidade da religiosidade popular a esta época,
marcada por movimentos espirituais e práticas mágicas características
das culturas africanas, ameríndias e européias..

25
Situar o Caboclo como simples reprodução e absorção da ideologia
emergente à época colonial, significa ver simplesmente as instâncias
culturais como tábuas rasas sempre prestes a serem mera construção da
ideologia dominante. Se, por um lado, o discurso religioso espelha e
incorpora valores presentes na sociedade, por outro lado, a prática efetiva
um certo espaço de atuação onde esses mesmos valores são rearranjados,
ganhando um sentido que, de certo modo, se contrapõe ao primeiro
(v.Montero, 1985). O que significa dizer que o processo de produção e
comunicação de significados não é unidirecional, do dominante para o
dominado (v.Zaluar, 1985).
Na umbanda, como sugere Brown (1986), foi necessária uma
valorização do caboclo, como uma das figuras centrais, no intuito de
integrar-se ao contexto estrutural da sociedade, posto que, ‘‘embora a
contribuição africana à cultura brasileira fosse expressamente valorizada,
ela era novamente menosprezada, desta vez em favor de uma imagem
nacionalista brasileira da umbanda” (Brown, 1986).
No candomblé o problema é um pouco diverso. Há ambiguidades na
presença do Caboclo. Além da imagem construída sob valores que são
também os oficiais, como o ágil, o guerreiro que não se deixou escravizar,
nota-se uma ampliação de significados. O Caboclo nos candomblés de
Salvador perde sua referência indígena quando toma os nomes de Martim
Pescador, Boiadeiro ou Capangueiro. Se há uma busca de identidade
pelo emprego de características regionais, isso não significa que a
existência dessas entidades tenha se transformado em uma forma de
integração à sociedade. Ao contrário, a busca de legitimidade do
candomblé é feita a partir de uma reafirmação dos valores ditos africanos.14
O problema do Caboclo no candomblé não pode ser reduzido a puros
aspectos ideológicos, ou a uma simples articulação cultura africana/cultura
ameríndia considerada fora de um contexto simbólico mais amplo. Nem
fusão perfeita afroameríndia, nem variante “impura' ’do modelo dominante
“ africano” (nagô), nem fenômeno periférico ou exógeno (transferência
da umbanda, refugio de homossexuais, recuperação ideológica da imagem
do bom selvagem), a presença do Caboclo no candomblé pode ser
analisada a partir de outras abordagens e hipóteses.
Parece-nos assim mais plausível avançar a hipótese segundo a qual
o processo de absorção de elementos “ameríndios” pela cultura religiosa
afro-baiana seria guiada pela lógica interna do simbolismo religioso do
candomblé. Trata-se de uma questão central que abordaremos num
primeiro momento. Logo, partiremos do estudo da posição da própria
figura do Caboclo no sistema simbólico do candomblé baiano, tentando
precisar as significações que lhe são atribuídas neste contexto específico.

<

27
NOTAS

1. Podemos dificilmente explicar esse sincretismo afro-católico como o


resultado de pura dominação cultural. Mesmo se admitirmos que a
preservação das divindades africanas tenha necessitado dissimular-se
sob o aspecto morfológico dos santos e de imaculadas virgens, é
necessário pensar que a existência tanto dos deuses quanto dos santos,
faz parte do campo das representações coletivas de um determinado
grupo, e que diversas operações simbólicas ( envolvendo múltiplas ^
“traduções ou recodificações” ) devem estar em jogo, simultaneamente.
Na Bahia, ao invés do sincretismo, firma-se a postura do “paralelisuio.
^eligigsp “ . A justificativa seria a de que, para as pessoas que praticam
as duas religiões (afro e católica), não existiria fusão de crenças, muito
menos de rituais. Os fiéis; conviveriam com as duas religiões nos seus
devidos espaços religiosos, sem qualquer conflito, sabendo portanto
das significações de cada um deles. Parece-nos que a noção de paralelismo ^
inspira-se no “princípio de corte” estabelecido por Bastide ( 1985) e que, f\
segundo Lépine (1978:6), renova a concepção do sincretismo, visto que
as concepções da fase pré-bastidiana eram marcadas pelas noções de
justaposição e fusão.

2. Um exemplo que poderia ilustrar uma “fusão cultural” é o dos Caraíbas


Negros, mestiços de índios Caraíbas com negros fugitivos de navios
espanhóis e ingleses. Segundo Bastide (1974a), houve uma transfonnação
em que é impossível discernir os elementos constitutivos.

3. A frase que lhe é atribuida por Ruth Landes (1967:188) - “Eu detesto
ver a tradição clássica ser corrompida” - é significativa.

4. Sobre o conceito de nação nos candomblés, ver o que diz Costa Lima
(1984:20) : “ a nação, portanto, dos primeiros africanos da Bahia foi aos
poucos perdendo sua conotação política, para se transformar num

28
conceito quase exclusivamente teológico. “Nação” passou a ser, desse
modo, o padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da Bahia,
estes, sim, fundados por africanos angolas, congos, jejes, nagôs,
sacerdotes iniciados de seus antigos cultos, que souberam dar aos grupos
que formaram a norma dos ritos e o corpus doutrinário que se vêm
transmitindo através os tempos e a mudança nos tempos “ .

5. Entretanto, como nota Verger (1987:10), o problema não é tão simples,


porque tal fenômeno não ocorreu nem no Rio de Janeiro, nem no resto do
país. A propósito dos iorubás escravos urbanos em Salvador, v. Carneiro
da Cunha (1985).

6. Abordaremos, mais adiante, as simetrias entre Oxóssi e o Caboclo.

7. Fazendo uma crítica a Frazier quanto ao desaparecimento da cultura


bantu no Brasil, Herskovits (1943) reconhecia a importância dos bantus
na formação da cultura affo-bahiana (v. a resposta de Frazier in American
Sociological Review, 8, n.4,1943:402-404). Curioso é que num trabalho
anterior (1939), Herskovits via nos haussás e iorubás a astúcia e a
inteligência, negando às outras nações essas mesmas qualidades. Claro
que a sua preocupação dava-se pela adaptação das tradições e crenças
africanas às novas instituições, pelo modo como podem ser conservadas
quando “aloj am profundos padrões de uma cultura” (p.510), indicando
as inquietações da escola culturalista.

8. O título de sua obra, A Cidade das Mulheres ( 1967), é, desse ponto de


vista, bastante significativo.

9 . Verificando que a maioria dos estudos representa a homossexualidade


como patológica e desriante, Matory (1988) tenta responder à questão,
dando conta de que os devotos “elasteceram as categorias iorubás
implícitas para acomodar as brasileiras explícitas” . A abordagem carece
de uma melhor precisão. Ao afirmar que os candomblés angola veneram
os deuses iorubás em grande proporção e que são esses terreiros que
ostentam o maior número de sacerdotes homossexuais, nâo estaria o
autor repetindo de modo inverso o propagado por Ruth Landes? Senão,
vejamos. Se em Landes os sacerdotes homossexuais estavam ligados ao
que opunha o modelo jêje-nagô, em Matory é esse modelo (medido pelo
grau de iorubanidade) que vai determinar a presença de sacerdotes
homossexuais, mesmo em candomblés de origem outra. A questão, então,
é frisada nos limites culturais, atendo-se à homossexualidade sacerdotal,
sem se levar em conta que a prática homossexual no candomblé nâo é
algo exclusivo dos seus dirigentes. (Sobre homossexualismo no
candomblé v.tambem Birman, 1988; Segato, 1989).

10. Segundo Frigerio (1988:22), no próprio terreiro da Mãe Stela, o Axé


Opô Afonjá, os caboclos são cultuados, embora o culto seja privado,
sem cerimônia pública.
/
11. Sobre esse terreiro, v.Costa Lima (1977:26ss/197)

12. É curioso encontrar ainda, nos trabalhos mais recentes, e que se


esforçaram para promover uma revisão dos estudos afro-brasileiros,
julgamentos que reproduzem o discurso de certos sacerdotes. Assim,
Lépine (1978:79) qualifica de jovens e mal instruídos os pais e mães de
santo das casas menos ortodoxas, que confundem os nomes dos orixás
com suas “qualidades” (isto é, suas expressões particulares) e introduzem
caboclos e outras “barbaridades” nos terreiros.

13. V. Brown, 1986; Montero, 1985; Magnani, 1986; Velho, 1977; Silva,
1976; Ortiz, 1978.
Ay
14. Sobre a reafricanização v. Prandi e Gonçalves(1989); Rocha
Ferretti(1990);pantas(1987); Teles dos Santos(1989)
2. 0 DOIS DE JULHO

Como observamos no capítulo precedente a presença do Caboclo no


candomblé baiano é dada como um resultado da repercussão do
movimento da Independência da Bahia, que tanto prestigiou o índio,
bem como da aceitação popular da literatura indianista, especialmente
dos romances de José de Alencar.1
Como nos parece pouco provável que o movimento indianista tenha
tido uma influência tão direta e decisiva na introdução do Caboclo nos
cultos affo-baianos, para tentar esclarecer sua origem nos debruçaremos
sobre as comemorações da data da Independência da Bahia, o 2 de
ju lh o ,popularmente conhecida como a “ Festa do Caboclo” , onde
este é a principal figura do desfile. Convém ressaltar que nesta
data, o povo-de-santo da Bahia cultua o Caboclo nos seus
candomblés com festas e oferendas, ao longo do dia e entrando pela
n o ite.
Como o Caboclo tomou-se afigura central das comemorações do 2
de julho?
Em 2 de julho de 1823, a Bahia tomou-se independente do jugo
português, com a entrada, na cidade de Salvador, do Exército Libertador
vindo do Recôncavo baiano. Um ano após este fato, o povo - em sua
maioria negros e mestiços - foi às mas comemorar:

“Lançaram mão de uma carreta tomada aos lusitanos


nos combates de Piraja, enfeiteram-na de ramos de café,
fumo, “folha brasileira”(croton) etc. e,sobre a carreta,
colocaram um velho mestiço descendente de indígenas. E
assim conduziram do Largo da Lapinha ao Terreiro de Jesus
o carro e emblema da ocasião, juntamente com o inolvidável

31
“carro da bagagem”, ao som de pandeiros, violas,
aclamações delirantes,fanfarras, etc. “ 2

O Dois de Julho de 1824 - que tinha caído num dia útil, uma sexta-feira
- tomou-se, com o passar dos anos, a data oficial das comemorações da
Independência da Bahia e, como tal, um feriado em Salvador e nas
cidades do Recôncavo.
Nos anos seguintes ocorre uma transfiguração da realidade em
imagem. Em 1826;os “patriotas” mandaram esculpiraimagem do Caboclo,
colocando-a sobrè a mesma carreta que desfila até hoje nas ruas de
Salvador. A imagem é em tamanho natural, de cor marrom viva, com
traços físicos característicos do ameríndio. Ela traz uma corrente no
pescoço e segura uma lança de madeira, cora a qual ataca um dragão,
símbolo da opressão colonial, que está sob seus pés. À sua frente
está uma armadura de estilo medieval, feita de ferro, sobre um canhão.
Dos lados esquerdo e direito do canhão, encontram -se très
baionetas. Há uma bandeira do Brasil no canto direito do carro. Este
é todo enfeitado de palmas e “folha brasileira” 1, com dois anjinhos
barrocos em cada lado, além das placas cora nomes dos heróis da
Independência, em sua maioria estrangeiros, entre os quais se destacam
Labatute Cochrane.
Os festejos do Dois de Julho nem sempre foram tranquilos. Os
“patriotas” saqueavam casas de portugueses, fossem eles naturalizados
ou não: erao“Mata-Maroto”. Segundo CidTeixeira(1985), “abriu-se uma
época de lusofobia raivosa e pitoresca, que ensanguentou as ruas da
Bahia em 1831 (...) Essa lusofobia tinha o caráter de uma luta social, de
pobres contra ricos, dado o virtual monopólio do comércio nas mãos dos
portugueses. Que se nacionalizasse, era a exigência dos liberais, que
abriram os trabalhos parlamentares de 1831 com mais projetos neste
sentido. Na Bahia, a população armada exigiu do presidente João
Gonçalves Cezimbra autorização para expulsar ou exterminar os
portugueses”.
O clima de lusofobia era tanto que “fervorosos idealistas”
alteravam seus sobrenomes lusitanos, mudando-os inteiramente ou

32
acrescentando-lhes apelidos, tanto indígenas quanto outros
den o tativ o s de sua coragem , de suas ações em favor da
Independência ou de sua fidelidade a ela. Este fenômeno perpassou
os funcionários públicos, militares, artesãos, o clero e proprietários
da grande lavoura. Surgiram assim, um alferes Caissara, um lapidário
Mandacaru, um Tigre de Borborema, um sargento Tupinambá, um
furriel Firme Independente, um Pitanga, um quartel-mestre Paraassu
Caxoeira e um João Acaroba Tibiriça que antes se chamava José
Pereira Galo (v. Azevedo, 1973, Edelweiss, 1981). Um trecho do ro­
mance O feiticeiro de Xavier Marques (1975) também ilustra este
fato: “numerosos Gamas, Vieiras, Cabrais, Albuquerques, Lisboas,
Monizes, Carvalhos, passaram a chamar-se pitorescamente Sicupiras,
Camaquans, Paraguaçus, Aratinguis, Caraunas, Ipirangas, Pirajás.
Um deputado à constituinte, depois estadista e grande do Império,
com um título de visconde, adotou esta beleza onomástica: Gê
Acaiobade Montezuma” (p. 11).
Em 2 de Julho de 1846, o tenente general José de Souza Soares de
Andrea, português naturalizado brasileiro, Presidente e Comandante de
Armas da Província da Bahia, declarou que não achava conveniente a
continuação do desfile com a estátua do caboclo, já que o considerava
uma humilhação imposta aos portugueses. Achava ele mais apropriado
que se fizesse uma estátua de uma cabocla representando Catarina
Alvares Paraguassu, esposa do legendário Caramuru e mãe mítica da
cidade da Bahia, vestida como índia, brandindo a bandeira nacional com
a mão esquerda e mostrando ao povo com a mão direita as palavras do
primeiro imperador, “Independência ou Morte”. Era preciso que o caboclo
desaparecesse de circulação. Entretanto, diversos veteranos da
Independência se reuniram e manifestaram seu descontentamento com
as disposições tomadas. Uma comissão se dirigiu ao Presidente da
Província e, depois das explicações, um exaltado declarou: “Olha, o
Caboclo pertence ao povo, não é do governo. Ele sai nem que tenha que
morrer alguém”. A solução encontrada foi o desfile tanto do Caboclo
quanto da Cabocla do presidente3, que foi assim retratada pelo poeta
baiano Francisco Moniz Barreto:

33
“Essa cabocla engraçada
Que traz a face tostada
Dos beijos que dá-lhe o sol...”4

O carro da Cabocla, semelhante ao do Caboclo, é feito de madeira e


possui a estátua de uma índia esbelta e ereta, com colares no pescoço,
segurando numa mão a bandeira brasileira e na outra um emblema, onde
está escrito “Independência ou Morte”.
O sentimento patriótico do povo baiano para com o Caboclo não se
esgotou como episódio da Cabocla. Diz Matos(1977) que, numa ocasião,
na noite de um primeiro de julho, o povo foi buscar o Caboclo. O dono do
palacete, onde a estátua fora guardada, não quis entregá-la, conservando
a porta fechada, a pretexto de que o governo, ou quem responsável fosse,
não havia pago o aluguel do cômodo. O povo se exaltou e, aos gritos de
“Morra o Maroto!”, arrombou a porta, conseguindo o dono escapar a muito
custo da ira popular. Presume-se que esse incidente foi a causa de, a 05 de
julho de 1860, transferirem-se os carros alegóricos do Caboclo e da
Cabocla, chamados de “carros triumphaes”, para um pavilhão no
Largo da Lapinha, construído pela Sociedade Dois de Julho, associação
instituída em 1835, para comemorar o evento histórico de 1823.
O apego nacionalista ao Caboclo era tão forte que, quando em 1870
surgiu a idéia de levantar-lhe um monumento num ponto histórico da
capital baiana, houve polêmicas quanto ao artista que iria executá-lo, por
se tratar de um italiano. As divergências que, inicialmenle, diziam respeito
ao local, passaram a concentrar-se no fato do escultor do Caboclo não
ser um brasileiro. O Diário da Bahia de 05 de julho de 1898, em sua
secção “Revista dos Jomaes”, dizia que o Jornal de Notícias do dia 01
“rende a sua homenagem de bahiano patriota à memorável e gloriosa
data do 2 de julho, e dá o programma dos festejos organizados pela
intendência e pela comissão dos parochianos de Santo Antonio que não
crêem no patriotismo do caboclo italiano do Campo Grande”.
De acordo com Vianna(1982), houve até quem escrevesse que
melhor seria que os “Papa-Mamões” - apelido que identificava os filhos
da freguesia de Santo Antonio - acabassem com a palhaçada do préstito,
reduzindo a cinzas os carros alegóricos. Estes deveriam ser colocadas
em umas especiais na base do monumento, pois tudo o que dissesse
respeito ao 02 de julho deveria caber no chão palmilhado pelos heróis
de 1823. Na época, o povo se vingou, não indo ao então Parque
Duque de Caxias, nem se lembrando do monumento, com “ seu caboclo
falsificado, encarapitado numa coluna alta, numa atitude de quem está
espiando o pé”.
Este monumento foi inaugurado em 02 de julho de 1895, e foi assim
descrito: “ (...) Encimando a columna ostenta-se garbosamente a figura
de um índio, com quatro metros e onze centímetros de altura, armado de
arco e flecha, symbolizando o Brazil na attitude de desferir tremendos
golpes sobre a serpente, alludida ao governo da métropole, a qual procura
esmagar debaixo dos pés (...) Do lado direito, encostada ao pedestal
figura sobre o plintho a estatua de uma mulher de colol erecto envolvida
em uma bandeira empunhada com vigor, que representa a Bahia
proclamando a sua liberdade.
Do lado opposto, uma estatua com cabellos soltos, corôa de louro e
braços de mulher varonil, figura Catharina de Paraguassu, tendo em uma
das mãos uma arma em posição de defeza e na outra um escudo em que
está gravado com Iettras de ouro aquellas memoráveis palavras
pronunciadas nas margens do Ypiranga: - Independência ou Morte.
Sobre essas columnas elevam-se trophéo de anuas e objectos
indígenas artisticamente combinados”.5
Na construção do monumento ao Caboclo foi acordado um “contracto
para execução dos trabalhos no estrangeiro” (seg. Jornal da Bahia),
mas com a exigência de fidelidade ao Caboclo original do desfile. E quem
não estivesse conformado, que fosse “chorar no pé do Caboclo”, como
se costuma dizer na Bahia para uma pessoa insatisfeita. Aliás, outras
expressões relacionadas a Festa do Caboclo constam do linguajar baiano:
“ fazer um Dois de Julho” designa alguma coisa festivamente popular;
“cara de Dois de Julho” se diz de alguém que não aparece sempre em
público, apresentando-se de vez em quando; “toque o carro pra Lapinha”
usa-se quando se quer dizer que algo precisa ser feito de qualquer forma
e que não pode parar.

35
0 DESFILE

0 cortejo da “Festa do Caboclo” era organizado e dirigido pelo povo.


Tanto que, só em 1871 a “tropa de linha” participou do desfile.
Teixeira(1985) afirma que, à época, o conflito sobre a participação no
desfile foi tamanho que resultou na morte do porta-estandarte de um dos
“batalhões patrióticos”. A oficialização do desfile veio do decreto de 12
de agosto de 1831 do governo geral que, com sua habilidade, dava uma
satisfação às inquietudes populares da Bahia. Estávamos em plena época
da lusofobia.
A festa era de natureza espontânea. E este fato a imprensa sempre
ressaltou, na medida em que, com o passar dos anos, o desfile começou
a perder o “enthusiasmo tradicional que agitava a alma bahiana nesta
data gloriosa” faltando “a comemoração o ardor comunicativo, que em
outros tempos sem distinção de classes nem selecçao de categorias,
fazia extravasar por praças e ruas desta capital a onda delirante do povo.
Tempos que lá se foram... Preocupada com “as indiferenças das glórias
pátrias7, ou com “uma certa indefferença criminosa que se vae mostrando
por tudo que se diz respeito a civismo e a sentimento patriótico”8, a
imprensa do fim do século demonstrava o seu saudosismo.
O poder público limitava-se a fechar as repartições e a comparecer,
por meio de seus representantes, às festas. Entretanto, a organização
destas, os convites, a liderança, continuava a cargo de comissões e
sociedades de veteranos.
De acordo com a tradição local, herdada das procissões religiosas
da colônia, os moradores do distrito de Santo Antonio colocavam
colchas, toalhas ou pano bordado nas janelas, enfeitadas com
candelabros e castiçais reluzentes e palmeiras vistosas (v.Vianna,
1982). As ruas eram embandeiradas e por onde tinham de passar os
emblemas da nossa emancipação política, raríssima era a casa não
paramentada 9 . Faziam-se arcos com palmas verdes à entrada das
ruas, plantavam-se crotons gigantescos em barricões dispostos à beira

36
das fachadas e “ ... o transeunte que reparava no cuidado e capricho que
presidiu ao preparo das galas destes festejos, passava sob abobadas de
bandeirinhas, entre aléas de ticuns, de palmas, de bambus, transpondo
arcos triumphaes levantados em diversos pontos” .10
A convocação para a Festa do Caboclo se dava através de um
“Aviso Patriótico”, como o publicado pelo jornal O Alabama :

O abaixo assignado Commandante do Regimento


Patriótico - União Brazileira convida a todos os Brazileiros
para que se reúnam no largo do Terreiro de Jesus no dia 09
(domingo) as duas horas da tarde vestidos de calça palitot
branco, gravata prete e chapéu de palha da terra enfeitados
com folhas nativas para acompanharem os carros -
Emblemas da Independência.
Bahia 3 de julho de 1865 11

Altemativamente, a convocação viria com o pedido da comissão


organizadora dos festejos nò distrito de Santo Antonio para que os
moradores ornamentassem as ruas por onde o desfile passaria:

“A comissão pede aos moradores das ruas por ondè


passam os carros o obséquio de embandeirai-as illumi-
narem-nas, afim de abrilhantar a festa da freguesia” 12

Vale salientar que, embora o desfile seguisse sempre o mesmo itinerário,


havia comemorações que se estendiam em diversos bairros por todo o ano.
Com a diminuição, no decorrer dos anos, da participação popular, o
“préstito cívico” chegou ao final do século com uma estrutura rígida e
hierárquica, como podemos notar através da descrição do Diário da
Bahia áe 5 de julho de 1898.0 desfile, iniciado às 2 horas mais oumenos,
abria com um “Esquadrão de lanceiros da cavallaria com bandeirolas
vermelhas”. Seguiam a este “ Muitos cavalleiros” e vários carros; os do
Caboclo e da Cabocla - “carros allegoricos”, “os carros da comissão dos
festejos conduzindo uma côroa de louros rica, circunscrevendo as armas

37
da Republica feitas em setim, e destinada a ser depositada no
monumento”, e “os carros com o intendente, com membros do conselho,
comissão da assemblea, com familias, etc.” . Um outro bloco era
constituído de “Banda de música do 5’de artilharia puchando os
aprendizes marinheiros”, e de um “Arsenal de guerra com a respectiva
banda empunhando os menores flamulas estriadas de vermelho e
branco”, cores da bandeira da Bahia. Logo depois, vinham “orphãos
de S. Joaquim, levando flamulas verdes e amarei las e pequenas
bandeiras, tendo á frente a sua bem organizada banda”. Por fim,
fechando o cortejo, “ Músicos do 27e 3' corpos de policia”, “ Músicos
do 9 ’de infantaria com um batalhão de populares” ecavalleiros” Segundo
o Diário da Bahia, “o préstito foi sempre recebido com chuva de con­
fetti e flores percorrendo as ruas principaes da freguezia, indo até o
campo do Barbalho, em cuja fortaleza o exercito libertador plantara
pela primeira vez o pavilhão nacional, saudando-o com dois tiros de
peças que foram desencravados nesse momento memorável” . O
desfile chegava ao final às dezesseis horas, quando os carros
chegavam ao largo de Santo Antonio “numa atmosfera deenthusiasmo,
em que se ouviam os vivas dos populares, o bimbolhar dos sinos da
matriz, o espoucar de muitos foguetes e hymno da independencia tocado
por todos os músicos” .
Por mais que houvesse, por parte da imprensa e, por inferência, das
elites baianas, uma preocupação com a participação popular na Festa do
Caboclo, convém notar que a solicitada participação deveria ocorrer num
clima “cívico” e nos moldes de um desfile oficial. Neste sentido, a
participação de negros e mestiços no desfile era algo incômodo para as
elites, j á que comemoravam o Dois de Julho de forma deveras diferente.
Quando do desfile do “immortal Dous de Julho”, ocorriam batuques de
negros em lugares por onde o desfile passava, algo considerado
intolerável em 1868:

“ A policia o que devia fazer era acabar com os batuques


no Terreiro, por ser um logar improprio, e acabar sempre
em bordoada.- Admira como certos senhores consentem

38
seus escravos pernoitarem fora para andarem rasgados e
irem no outro dia de cabeça quebrada para casa. ”13

Os batuques continuaram e, em 1877, um grupo de indivíduos


“desfarçados, isto é, pintado o corpo de preto e vestidos indecentemente
(...) seminus percorrerão ao som de cinco atabaques e dançaram samba
em frente a efígie do Imperador” 14. 0 que foi considerado um ultraje à
“Augusta Pessoa de Sua Magestade o Imperador”, cuja efígie tinha sido
inaugurada em 1823, após a Independência da Bahia.15 Ao que tudo
indica, portanto, havia concepções acerca do desfile. De um lado, as
elites insistiam na manutenção de uma “ ordem”, através de uma
reafirmação solene da festa. Esta “ordem”, instaurada a partir da
apropriação do desfile popular, revelava a imagem que as elites tinham
do processo da Independência; a imagem do desfile era a imagem que a
elite fazia de si própria : ordeira e cívica. Na outra margem, a comemoração
da “negada” expressava ao mesmo tempo uma “subversão” da “ordem”
e a tentativa de instalação de uma nova ordem simbólica. Para eles, a
celebração estaria no âmbito do evento imprevisto, tal como definido por
Da Matta(1983), ao notar a separação nítida entre o domínio dos eventos
cotidianos e o dos acontecimentos extraordinários. Nestes universos
estariam contidos, respectivamente, os eventos previstos, dominados
pelo planejamento e respeito, e os imprevistos, expressos pela brincadeira,
pela diversão, enfim, situações em que o comportamento é dominado
pela liberdade decorrente da suspensão temporária das regras de uma
hierarquia repressora. Os negros, que tinham participado das lutas no
processo da Independência (v.Reis, 1987; Ferraz, 1939) e tomado parte na
constituição da Festa do Caboclo, eram alijados da festa oficial. Quando
participavam, seja através de batuques ou levando os “carros
emblemáticos”, eram sempre discriminados. O Jornal O Alabama de 09
de julho de 1868, assim se pronunciou sobre o fato da comissão dos
festejos não ter aparecido para levar os carros de volta para a Lapinha, o
que ocorre após os carros do Caboclo e da Cabocla ficarem expostos ao
público durante sete dias, anteriormente na Praça da Piedade, atualmente
no Largo do Campo Grande:
“ Pois é la patriotismo consentir que os
carros fossem puchados por moleques descalços, e
africanos esmulambados, ás escuras até a Lapinha! “

Paralelo à discriminação da participação negra, acontecia um fato


curioso que era a libertação de escravos, na maioria das vezes menores,
pela comissão dos festejos, ao final do desfile, conforme se registra no
Jornal da Bahia em quatro de julho de 1870:

“ Concluída a solemnidade religiosa, dirigio-se S.Ex. o


Sr. Vice-Presidente com a Camara Municipal, e mais
funcionários, que haviam assistido ao Te Deum, e muito
povo, ao palacete construído em frente da Cathedral, e no
qual se achavam os retratos de alguns heroes da
Independencia, e encobriam a effigie de S.M. o Imperador,
e dar os vivas de estylo, que jforam enthusiasticamente
correspondidos pelo povo que enchia a praça, entregou
très cartas de liberdade ás menores Paula, Rachel e Maria
Paula, alforriados pela commissão dos festejos, que não
poupou o menor esforço para abrilhantar a solemnidade
patriótica.a16

Este fenômeno não se limitava a Salvador. Repetia-se em cidades


como Cachoeira, onde há registro, em 1870 , da libertação de uma criança
de 4 anos, ou em Nazaré, onde a “ Sra. D. Antonia Carolina de Jesus
libertou oito escravos” 17. Note-se que nesse exemplo a libertação de
escravos foi um gesto pessoal e não da comissão de festejos. O que
indica que muitas vezes a libertação de escravos no 2 de julho
ultrapassava à mera festa da comissão.
É particularmente relevante um diálogo entre um negro e um capitão
publicado em OAlabama, em quatro de de julho de 1865, onde se discorre
sobre o desfile e a escravidão:

"-Essafessa de Dói deJuUia, qui ê?

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Fessa de liberdare
Mai liberdare ni nome só.
Quim trabalha ni liberdare anani dize que ta negro,
qui quéforra parente; liberdare um diasô.
-Masaquevens
-Iô ja recrama um vez a ossincellence contra esse
barbarismo de changé; mai agora sicandolo cresceu
Iô pensa qui bahiano tem vergonha, mai non tem :
ossicellencehade crê?
Bahiano ni dia 2 de Julho bota changé ni rua; e
changé passa ni cruze de Passichoá, um sem corrente ni
pescoço, ni frente de cavalleiro que precede carro
liberdara, que traze caboçapisando serpente!
Que acha ossincellence desse coinsedenciamento?
-Nada de mais; éfácil ir a escravidão defacto, isto é
homens captivos e agrilhoados apasseio pelas mesmas
ruas por onde passa a liberdade de pau.
E uma verdadeira realidade; o Brazil subjugou a
escravidão, sacudiujugos appressivos, masfoi in mente;
teve desejos, mandoufazer um quadro. E realmente bo­
nito, apesar de anachronico, de ridiculo.
-E frangera qui ve essaféssa; qui vê corxa nijanella,
arco ni rua,flor nipeito e armamento de sodado, frangera
Jaze um trisse desse pobre tera aqui é tudo cheia de
contradiziamento
• Misera! 18

Assim, pode-se depreender da matéria, que havia uma percepção do


negro acerca das contradições da Festa do Caboclo, na qual se ressaltava
a liberdade para a Bahia, mas não para os escravos. Mesmo percebendo
essas contradições os negros de alguma forma comemoravam o desfile.
Diz-nos Mello Morais Füho(1979:84) que “a crioulada e a mulataria, aos
magotes, cantando quadrinhas patrióticas e em serenatas locais,
desfrutavam a noite, preliberando os prazeres da festança” .

41
A Festa do Caboclo, que atravessou o Império sem interrupções,
foi suspensa em 1919. Os “carros emblemáticos” não mais desfilaram,
apenas ficavam expostos à visitação pública, no Pavilhão do Largo da
Lapinha. Em 1942, um coronel, Edgar da Cruz Cordeiro e o secretário
geral do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Francisco da Conceição
Menezes, resolveram recuperar o tradicional desfile. A partir de 1959,
houve uma transferência de responsabilidades por atividades para a
Prefeitura, por exemplo, a recuperação da pintura dos carros e do Pavilhão
onde são guardados, e o pagamento das pessoas que puxam os carros
ao longo do cortejo. (v.Nunes, 1989; Teixeira, 1989).
Atualmente, o desfile acontece num clima bastante peculiar, no
qual os partidos políticos tendem a se enfrentar.19 E, nestes últimos
anos eleitorais há uma tendência de os partidos políticos se apropriarem
da Festa do Caboclo,em termos de uma camavalização, após o carro do
Caboclo, em que samba, aplausos, vaias e palavras de ordem se misturam
no cortejo. É comum ouvirem-se palmas para o Caboclo e a Cabocla e
expressões dirigidas a eles como, por exemlo, “Batam palmas para o seu
povo”, “ Ele é lindo”, “Olha o índio” (dita por uma criança), ou, numa
forma jocosa, “O Caboclo é viado” Tudo isso entremeado de muito
samba, gritos e aplausos das sacadas. Curiosamente, nos últimos anos
chove durante o final do desfile, o que faz as pessoas dizerem “a Cabocla
quer chuva”.
0 POVO DE SANTO E O DESFILE

A participação popular continuou a ocorrer, apesar de, em 1989/90, os


“ índios” não terem desfilado, em razão da falta de apoio público. Os
“índios” eram populares que se vestiam com cocar, tangas de palha,
colares e braçadeiras. A sua presença marca o desfile há bastante tempo.
Sobre as comemorações de 1916, ojomalÀ Tarde dizia que “os índios
tomaram parte do desfile, como todos os anos, tendo o sr. Raimundo
esclarecido que a presença dêles também é história, pois na Ilha de
Itaparica houve lutas acirradas, por isso alguns moradores da Liberdade,
espontaneamente, representam êsses heróis quase anônimos” .20
A maioria dos “indios” era constituída de adeptos de candomblés
que cultuavam caboclos. Antes do início do desfile, eles ficavam em
fiente à Igreja da Lapinha, ajoelhados numa posição semi-circular, rezando
numa linguagem dita cabocla, com algumas palavras em português, outras
dadas como de origem tupi. Às rezas possuiam uma melodia lenta em
tom de lamento. Após as rezas, a “aldeia de índios”- como era referida
pelós populares - dava gritos, como se seus membros fossem guerrear.
Homens, mulheres e crianças formavam o grupo. Muitos vinham da Ilha
de Itaparica, onde existe até hoje um número acentuado de candomblés
que cultuam o Caboclo.
Quando o cortejo do desfile se iniciava, eles dançavam como se fossem
guerrear. Ao final do desfile, enquanto se realizava o Te Deum na Catedral
d* Sé, õs “índios” sambavam na Praça da Sé na área onde ainda,
atualmente, os carros do Caboclo e da Cabocla ficam expostos ao público.
O samba que ali se ouvia era o mesmo “samba de caboclo” dos
candomblés. Esta forma de celebração constituía o ápice da participação
dopovo-de-santo. Tocando atabaques, os “índios” ficavam durante todo
Odia nesse lugar, até o momento de irem para o Campo Grande,juntamente
Com os carros do Caboclo e da Cabocla. O percurso até o Campo Grande
era feito ao som de atabaques.
A participação do povo-de-santo no desfile da Independência há

43
algum tempo se faz notar. Seja vestidos de “índios”, ou com roupas
próprias dos candomblés, a sua presença é marcante. Alguns desfilam
há décadas, outros começaram há poucos anos. D.Maria José dos Santos,
fiiha-de-santo do pai-de-santo Joãozinho da Gomeia, disse desfilar há 50
anos. Vestida a rigor, com colares e anáguas, ela faz questão de comparar
a festa de “antigamente” e a de hoje:

“A festa tá muito diferente. Tudo muda, né?Muda o


governo. Em algum tempo, isto aqui tava cheio. Olhe como
aqui tá tudo vazio(refere-se à área da Praça da Sé em que
os índios ficavam sambando). Tinha muito índio, tocava
aqueles candomblés, os índios dançavam, e eu no meio
deles. Tinha pessoal de candomblé, com atabaques, tudo
vestido de indios. Era muito bonito. O ano passado teve,
este ano não teve. Eles (as autoridades) não querem ajudar.
Com certeza não mandaram condução pros indios. “
(02.07.1989)

Os poucos “índios” que ainda desfilam também possuem ligação


com o candomblé. O sr. João Batista dos Santos diz ser da nação ketu, de
um candomblé da cidade de Cachoeira, filho de Oxum, tendo um caboclo
por nome Ouro Preto. Participando do cortejo há 32 anos, “desde garoto”,
ele frisa possuir ascendência indígena: “Minha mãe, meu pai, tudo era
índio”. Ele começou a desfilar por achar bonito e, referindo-se à sua
posição de destaque no desfile, chama o Caboclo de “santo”, de forma
semelhante a que os adeptos de candomblé falam dos orixás: “é porque
o santo vai na frente e eu vou com eles”
A indumentária “indígena” dos poucos “índios” que restam éfeita
por eles mesmos:

“ Desfilo há 10 anos. A roupa é comprada. Quem me


ajuda é Deus, às vezes vendo umas besteirinhas”

Os colares de contas, que parecem ser de candomblé, muitas vezes

44
não o são. Ou seja, não foram lavados no axé do santo e, portanto, não
Mtão carregado do sagrado. Há uma distinção entre as contas de orixá,
que só devem ser usadas nas cerimônias dos terreiros, e as que nada
mais são que adornos para o desfile. O uso daquelas no desfile pode
constituir uma violação ritual, ocasionando reações inesperadas por parte
do orixá, conforme João Batista dos Santos:

“As contas de candomblé não podem ser usadas no


desfile. E pra enfeitar, né? Nós de candomblé, não pode
sair assim. É proibido botar. Eu botei, a minha quebrou. A
do santo é uma, a do caboclo e outra. Eu botei a do santo,
quebrou, ficou tudo no meio da rua.”

Os devotos de candomblé que se vestem como índios estão


localizados logo após os “carros triumphaes”. A sua presença não
Constitui problema para os organizadores. Afinal são populares, que
vestidos de branco ou como “índios” nada mais fazem do que dar um
caráter popular ao cortejo.
O que ocasiona repulsa à ideologia “oficial” do desfile é a relação do
Caboclo do Dois de Julho com o Caboclo do candomblé: “pena que, com
sólidas pilastras que ainda garantem a sua semelhança na consciência de
: uma certa camada de cidadãos que não deixam a tradição morrer, apareça
!• uma impensada campanha de enfatizar um suposto sincretismo entre o
Caboclo esculpido com intenções patrióticas e ingênuos orixás dos
candom blés de caboclo. O fato tem causado celeum a e
aborrecimentos”(v.\Íanna, 1982)
Consequentemente, o fato de os adeptos de candomblé fazerem
oferendas aos Caboclos nos “carros emblemáticos”, “deformando o
sentido cívico da festa”, também é motivo de indignação:

“... todos os anos (vinte anos contando para trás),


indivíduos incentivados por determinadas crenças
colocam “despachos” no interior do carro do Caboclo, ao
correr do periodo de 2 a 5 dejulho. A coisa é de tal maneira

45
que, passada a festa, quando os Em blem as da
Independência retomam ao pavilhão da Lapinha, os
funcionários do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia
têm uma canseira tremenda para limpar e desinfetar tudo. É
pipoca, é farofia de azeite, é acarajé, é charuto, é milho
cozido, é feijão com azeite, é vela de várias cores, é acaçá,
todo um arsenal de coisas que possam compor um
despacho caprichado. O cairo fica de fazer nojo. Detergente
haja para tirar os vestígios de gordura e eliminar o
mau-cheiro da fermentação”.
(Vianna, 1990)

Os atos explícitos dos devotos do Caboclo do 2 de Julho nâo se


resumem a deixar oferendas ou ebós, os quais, por sinal, têm desaparecido
devido à presença ostensiva de policiais ao redor dos carros. Esse
policiamento junto aos carros emblemáticos é reflexo das queixas
manifestadas por aqueles que querem limitar a reverência aos símbolos
da Independência da Bahia a um mero ato de civismo. A reverência )(
religiosa dos devotos seria um ultraje ao Caboclo patriótico.
Quando os carros ficam estacionados na Praça da Sé, a presença dos
cultuadores do Caboclo é muito significativa. Eles se colocam em frente
dos carros e os saúdam, da mesma forma que saúdam os objetos sagrados
ligados às divindades nos candomblés: levam os dedos médio e indicador
até o carro, tocando-o, e depois os mesmos dedos são tocados na fronte,
no lado direito da cabeça e na nuca. Este gesto na maioria das vezes não
é feito no carro da Cabocla. Isto se explica de duas formas. Primeiro, o
Caboclo é bem mais popular que a Cabocla, devido à própria história do
desfile. Como vimos, a introdução do carro da Cabocla se deu por
imposição oficial, vinte e três anos após a comemoração de 1824. Em
segundo lugar, a imagem da Cabocla é marcada por concepções de que
“o índio sai para caçar, e as índias ficam em casa” (E.E.S.). Logo, quem
pode ser invocado para a resolução dos problemas é justamente aquele
que‘"trabalha mais”. Nãoé àtoa que, no candomblé baiano, são raríssimas
as caboclas.

46
Há pessoas que tocam a fita que ornamenta o carro e rezam
itircunspectamente. Alguns jogam flores e outros tentam levar as que
decoram os carros como se fossem fontes de poderes especiais. A
propósito, este gesto está presente desde o século XIX. O jornal O Ala­
bama assim se pronunciou sobre a exposição pública dos “carros
Jriumphaes”:

(...) não e a primeira vez que por ficarem desamparados


naquella grande praça da Piedade se tem dado sinistros:
arracam os cravos dos caboclos e muitas vezes tem elles
escapados de cahir.”
(O Alabama, 7 de julho de 1866, a70)

Além da relação de sacralidade com o Caboclo, toda uma espécie de


•vismo genuinamente popular se desenvolve em tomo desse símbolo
terra.
As pessoas conversam ao redor dos carros, tiram fotos, levam seus
•filhos para ver de perto o Caboclo e a Cabocla, e comentam sobre o
:fApel relevante dos índios no processo da Independência. Uma
' tenhora negra falava para uma outra: “os portugueses queriam tomar
A Bahia, Quer dizer, a gente ia ser escravo deles. “ A associação do
Colonialismo com a escravidão faz parte do mito da Independência
: baiana, como se a memória popular não registrasse que a escravidão
4 ie prolongou por mais sessenta e cinco anos após a emancipação
f, política.
Quando os carros são levados para o Campo Grande e por là ficam
durante uma semana, a reverência continua. Além dos pedidos e
laudações já notados na Praça da Sé, há a colocação de cédulas de
dinheiro nos carros. Esse gesto reveste-se de uma simbologia que dá
conta da esperança popular de que melhores dias virão. Não á toa que a
Cada cédula de baixo valor colocada há um pedido de ajuda ao Caboclo.
0 volume de cédulas é impressionante. O carro do Caboclo exibe uma
maior quantidade de cédulas do que o da Cabocla, pelos mesmos motivos
expostos com relação às saudações.

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0 ato de colocar dinheiro aos pés do Caboclo não é algo restrito aos
carros cívicos, isto também ocorre nas festas dos caboclos nos
candomblés, que têm um espaço denominado “aldeia”. Esta é feita dentro
ou fora do barracão, dependendo do terreiro, sendo decorada com frutas,
bandeirolas, charutos, imagens de “índios” e palmeiras. Há terreiros em
que a “ aldeia”, localizada externamente, é também chamada de
assentamento do Caboclo. Neste espaço, as pessoas reverenciam os
Caboclos, colocando cédulas de dinheiro.
Nota-se, portanto, um sentido de continuidade entre um desfile
político-social, uma festa cívico-popular, que se realiza anualmente, e o
cotidiano dos adeptos de candomblé. Estamos, assim, no campo da
circularidade de níveis culturais, no sentido de Guinzburg( 1987), Ou seja,
se as elites reelaboraram o sentido inicial do desfile de 1824, dando ao
/
Caboclo, e posteriormente à Cabocla, um caráter meramente alegórico, o
povo-de-santo, por sua vez, fez destas mesmas imagens objetos sagrados.
Entretanto, devemos observar que as representações religiosas
do Caboclo no candomblé baiano não podem ser caracterizadas como
mera reprodução de um acontecimento sócio-político. Por certo há
valores e noções que reduzem a diversidade das etnias a uma
concepção única de indígena, e que ressaltam o caráter heróico do
autóctone. Afinal de contas, as representações religiosas, como há
muito foi notado por Durkheim(1968), são representações coletivas
e, portanto, passíveis de terem uma relação profunda com a
sociedade.
A construção simbólica do Caboclo no candomblé traduz uma
referência àqueles que aqui estavam antes da chegada dos portugueses
e dos próprios negros, ou seja, aos índios, e o aprendizado que com eles
fizeram. A referência ao “índio” do Dois de Julho é factual, inscrevendo-se
no tempo recorrente, da memória político-social do Estado, enquanto o
“índio” do candomblé reporta-se a um outro tempo, primordial. Apesar
de haver uma diferença conceituai entre o Caboclo da Independência e o
Caboclo do candomblé há um parentesco simbólico entre ambos, na
medida em que o sentido de continuidade entre os índios da *
Independência e o “dono da terra”, como é expresso no espaço litúrgico,

48
adquire uma dimensão política.
O povo-de-santo não apenas reverencia as imagens do Caboclo e da
Cabocla no desfile do Dois de Julho, mas também faz festas, no mesmo
dia, em seu louvor nos terreiros. Contudo, os Caboclos ali
homenageados não são os do desfile, mas sim os do pai ou mãe-de-santo
dos respectivos terreiros.
Essas festas paralelas não se resumem aos-terreiros de candomblé.
No Parque de São Bartolomeu, em Pirajá, as homenagens aos Caboclos
ocorrem por todo o dia. Palco de uma batalha decisiva contra os
portugueses, o parque é um local onde os cultos afro-baianos se misturam.
Um barracão próximo à cachoeira de Oxum serve às necessidades da
homenagem a esta divindade. É comum os Caboclos “descerem” e depois
banharem-se nessa cachoeira. As oferendas são colocadas em lugares
onde o mato é cerrado, simbolizando um espaço próprio dessas
divindades. A área é ocupada tanto por membros dos candomblés quanto
por adeptos da umbanda, que também vão prestar reverências aos
Caboclos no Parque São Bartolomeu.
No 2 de Julho, em pleno Parque, ocorre a festa do Caboclo Angorou,
que para os umbandistas é o mesmo Oxumaré. Segunde matéria do jornal
A Tarde, em 1977 a festa atraiu para o local centenas de pessoas que
foram confundidas com os integrantes da romaria cívica àquele local,
marcando o encerramento dos festejos do Dois de Julho no Pantheon a
Labatut, general francês que comandou o exército brasileiro contra os
portugueses.
Na cachoeira do Parque, ao mesmo tempo em que espoucavam os
foguetes e eram pronunciados os discursos cívicos, o samba de roda,
descontraído, marcava a festa popular, com dezenas de barracas que
vendiam cerveja e iguarias baianas No parque, que é considerado “a
grande aldeia”, eram feitas as “obrigações”, preparadas com abóbora,
inhame vermelho, azeite de dende, flores matizadas e mel e acondicionadas
em um alguidar - prato de barro. Durante todo o dia o samba de caboclo
eclode por todo o São Bartolomeu.
As festas dos Caboclos no dia 02 de julho muitas vezes são
anunciadas nos jornais da cidade:

49
CANDOMBLÉS
“As festividades e obrigações de candomblé serão
realizadas, neste fim de semana, nos seguintes terreiros:
O terreiro Omrnidê na Rua Getúlio Vargas, 177 em
Escada bate hoje, a “Festa do Caboclo”.
O terreiro Tengo Lemba, na Praça Raimundo Flecheira
n.9, Liberdade, comemora hoje e amanhã, a “Festa do
Caboclo”.
O terreiro Pena Branca, no Vale do Bonocô, 49 fundos
(próximo à casa Flor do Vale), comemora amanhã “Jurema
do Caboclo Pena Branca e Festa do Marujo ” 21

r
j'\ \ f As festas para os caboclos no dia 02 de julho acontecem não só em
Salvador. Em cidades como Cachoeira e São Félix, elas também se concentram
nesta data. Mesmoem Ilhéus,cidade localizada no sul da Bahia, há umafesta
grandiosa no Terreiro de Odé, do babalorixá Pai Pedro, sacerdote que foi
iniciado no candomblé em 1942, em Salvador e em 1946 retomou à Ilhéus para
fundar o Terreiro de Odé. A festa do Caboclo é amaior do terreiro pois, além
de aludir à data histórica da Independência baiana, também comemora o
nascimento do “dono da terra”, o nativo brasileiro. A festa do Caboclo,
segundo Pai Pedro, é uma homenagem aos Tupinambás - chamados de
caboclos - que tiveram “grande participação na expulsão dos portugueses
na luta pela libertação da Bahia”. Ele lembrou que “os caboclos saíam da
ilha de Itaparica de canoa para atacar os navios portugueses que queriam
sitiar a Bahia” .22
Afirmando que suas festas não têm patrocinadores, mas que a própria
comunidade do candomblé programa e banca sua organização, Pai Pedro
conclui : “se o socialismo chegar ao Brasil, nós não vamos sentir nenhuma
diferença”. Assim explicou o caruru de 40 mil quiabos e a profusão de
comidas e bebidas típicas servidas em sua Festa do Caboclo, produto
de um rateio entre os próprios filhos-de-santo, como acontece em todas
as festas que o terreiro realiza ao longo do ano.
Na festa do Caboclo, o terreiro é todo decorado em verctee amareio e
rodeado de palhas de coqueiro, significando as matas. No banquete, há

50
a distribuição de “jurema”, bebida feita de seiva da árvore do mesmo
nome, com mel de abelha e vinho branco, seguida da distribuição de
abóbora cozida com mel.23
Apesar do Dois de Julho ser a data por excelência para as festas de
Caboclos nos candomblés, elas também acontecem em datas posteriores
e anteriores, também anunciadas nos jornais:

“Homenagem ao Sultão das Matas


Dona Nenem prepara a sua festa afro-brasileira em
louvor ao Caboclo Sultão das Matas, que será realizada
hoje. A cerimônia vai ser celebrada na rua do Brejal, número
nove, aberta aos amigos e seguidores da seita “ 24

Nesse sentido, apesar da observação de uma data-base de homenagem


aos Caboclos, o 2 de Julho, isso não significa que as reverências a estes
$e restrinjam a um único dia do ano, pois o que importa para os devotos
é reverenciar, em alguma data, os verdadeiros donos da terra - “os índios”.

51
NOTAS

1. v. Cameiro(1964: Í44s); Bastide(1974b)


2. Cf. Teixeira(19B5) v.tambemem Querino(1946:401)
3. Cf Viana(1982); Vetger(1981:209s)
4. Cf Querino(1946:47)
5. Jornal de Notícias, 03 de julho de 1895.
6. CoiTeio de Notícias, 04 de julho de 1900
7 .0 Alabama, 06/07/1871
8. Diário da Bahia, 05/07/1898
9. Id.
10. Ibid.
ll.OAlabama, 08/07/1865
12. Correio de Notícias, 01/07/1898
13.0 Alabama, 07/07/1868
14. In Arçuivo do Estado da Bahia(AEBa), Maço 3049.
15. v. carta da Câmara Municipal de29/10/1823.
16. Jornal da Bahia, 04/07/1870.
17. Jornal da Bahia, 05/07/1870. v. também O Alabama, 02/07/1869 e Morais
Filho (1979:88)
18.0Alabama,04/07/1865.
19. Sobre a configuração do desfile ver o excelente artigo de Laran-
jeiras(1988).
20. ATarde,01 a31/07/1916
21.Id.,01/07/1978.
22. Tribuna da Bahia, 04/07/1984.
23. Id.
24. Diário de Notícias, 18 e 19/07/1976.

52
, 0 TERMO E AS DEFINIÇÕES DE
CABOCLO

O termo caboclo apresenta uma variedade de sentidos que encontra


eco na sua própria etimologia, bastante controvertida.
Para Cunha( 1982), admitindo-se que proceda desse étimo tupi, a cadeia
evolutiva poderia ser assim estabelecida: 1)cariboca 2)coriboca 3)coriboco
4)cobocoro 5)cabocoro 6)cabocolo 7)caboclo. Ele nota que as formas
(2),(3),(5),(6),(7) estão todas documentadas on textos portugueses, embora
não obedeçam, rigorosamente, à cronologia. Assim é que coriboca e
coriboco já se documentam, ambos, em textos de 1687(curiboca),
cobocono ocorre em 1757e cabocolo em 1648(cauacolo em 1645); a forma
atual(7),caboclo, data de 1781, com o significado de índio mestiço de
branco com índia, homem do sertão, de hábitos rurais e de pele queimada
pelo sol.
Ainda segundo Cunha, os autores dos séculos XVII e XVIII
designavam o caboclo, em principio, como o índio em geral e, mais
particularmente, o que já estava semi-aculturado, o que já convivia com
0 branco, que morava na casa do branco. Os textos do séc.XVII aludem
aos índios semi-aculturados a serviço dos holandeses nas lutas travadas
contra os portugueses, razão porque o termo caboclo assumiu o sentido
pejorativo a que se referem os autores do século XVII. Em meados do
século XIX adquire a acepção ainda viva hoje, de homem do sertão,
caipira, roceiro.1
Deve-se acrescentar ainda o fato de que caboclo vai ser uma das
categorias de indivíduos que compõem a população dopais no séc.XIX.
Campos(1946) diz que em 1872 a população da Bahia era de 129.089
habitantes, dos quais 2.998 caboclos, e Ramos(1961) mostra que, em
1830, 71,31% da população brasileira era constituída de brancos e
caboclos2. Assinala também que percentagens encontradas, em 1922,

53
por Roquette Pinto revelam a estimativa de Brancos(51%), Mulatos(22%),
Caboclos(Jl%), Negros(14%), Indios(2%) para uma população de
40.000.000.
Na bibliografia afro-brasileira, o sentido do termo caboclo aparece de
forma diversa.
Artur Ramos( 1961 ),falando das misturas entre raças, cita o cruzamento
do branco com o indio, que deu no mameluco, ou mamaluco também
chamado, em vários pontos do país(p.361). A mais importante contribuição
de Artur Ramos ao tema encontra-se na seguinte afirmação: “a expressão
caboclo ou caboco, do tupi cáaboc, tirado ou procedente do mato segundo
T.Sampaio, é empregada em muitos lugares como sinônimo de Mameluco,
tem na realidade vários sentidos, empregado pelo povo e por diversos
autores”(Op.cit.:362)
Edison Carneiro, nos très momentos de sua obra(1964,1981,1986)em
que procura definir o que sej a o caboclo no candomblé, oscila entre “os
orixás novos”, “os deuses indígenas”, “espíritos familiares a certas tribos
^ indígenas”, “os encantados caboclos” que “são os mesmos deuses dos
nagôs e dos jêjes, já modificados pela influência dos negros de Angola e
do Congo, e mais recentemente, pela influência espírita”.
Um reducionismo aparece em Clouzot(1951:12): “caboclos e orixás
são os mesmos deuses batisados de dois nomes diferentes”.
A definição do Caboclo como um “encantado” , que
Campos(1946)identifica no see. XIX como o nome do santo protetor do
pai ou mãe de santo será frisado por vários autores (v.Mendonça, 1982;
Dantas, 1988; Sena, 1984) como sendo aquele que depois de morrer se
/ encantou3. Em contrapartida, há os que definem o caboclo como os
^ espíritos dos índios brasileiros (v. Landes, 1967; Yoshiaki, 1986; Magnani,
1986; Monteiro, 1985; Montero, 1974; Ortiz, 1978) presentes tanto na
umbanda quanto no candomblé.
No caso da umbanda, é grande a ênfase na influência do kardecismo,
pois os Caboclos vão ser vistos como entidades de luz dos nossos
antepassados de luz (v.Montero, 1974; Ortiz, 1978). Contudo, há os que
destacam as duas acepçoes(v.Mendonça, Op.cit.) e aqueles que os vêem
como deuses e semi-deuses nacionais (v.Trindade-Serra, 1978; Lody,
1977; loop, 1972), índios ou pessoas do campo (v.Velho, 1977), genie do
interior diferente do índio (v.Vandezande, 1975).
Mesmo que esses desencontros se façam notar nas diferentes regiões
em que as religiões afro-brasileiras foram analisadas4, convém notar que
a referência ao caboclo se dá em maior grau ligando-o ao indígena
brasileiro, por mais que haja Caboclos de origem outra, como mostra
Brown(1986) ao notar um João índio, da India e não do Brasil.
Não é por simplesmente estarem situados num panteão de origem
africana que os Caboclos identificados cora a Africa vão ser confundidos
com os de origem brasileira ou mesmo com os orixás, mas justamente pela
compreensão do que seja o indígena, popularmente identificado pelo
uso de enfeite de penas:

“O caboclo verdadeiro é só indio.


Porque na realidade o caboclo mesmo
é aquele que veste penas”
(R.S.D )
4

Uma observação feita por Mendonça( 1982), a partir da investigação


de um terreiro na ilha de Itaparica, ilustra o fato de que o Caboclo constitui
uma espécie de imagem das condições em que vivem os povos das
chamadas sociedades simples:

“ O lugar de moradia é a Amazonia, mas também existem


caboclos da Bahia e da Africa; e tanto se manifestam
^ espíritos de índio morto como de índio vivo; os vivos, “os
de matéria”, vem porque gostam, querem receber luxos e
gostam da seita; os da Amazonia vestem pena, como pano
também, que hoje o governo já está dando roupa pra eles;
os da África são caboclos tisnados isto é, bem escuro,
preto, sobrancelhas fechadas, corpo coberto de cabelos”

A afirmação de que há caboclos africanos é, por vezes, contestada


em muitos terreiros de Salvador:
“Tem pessoas que dizem que ele veio da Africa. É enro-
^ lação. Caboclo é orixá típico do Brasil”.
(M.B.dos S.)

A associação entre cor e condições de vida que ultrapassa áreas


geográficas, pois compara-se Africa e Brasil, ou mesmo Europa,5 é
siginificativo, pois nos terreiros baianos predomina sua definição como
“o dono da terra” :

“Caboclo são os donos da terra, da matas.


São os primeiros habitantes da terra ”
(R.S.D.)

Tudo indica que esta expressão atravessa o século, pois Landes, na


década de 30, transcreve um depoimento no qual uma mãe de santo,
Sabina, diz “salvamos os caboclos, porque foram os primeiros donos da
^ terra em que vivemos. Foram os donos e, portanto, são agora os nossos
guias, vagando no ar e na terra”(1967:196). Isto levou a autora a supor
que uma das suas origens se encontra na prática dos povos de origem
bantu, de cultuar os ancestrais e antigos donos da terra(Op. Cit;p.290).
De resto diríamos que a confusão é tamanha que no Dictionary o f
Folklore(}949) o verbete caboclo designa deidades indígenas
autóctones que podem ser associadas à Ingi Winti da Guiana Holandesa
e a loa créole do Haiti6
A alusão ao Caboclo como um espírito indígena encantado encontra
ressonância nas histórias dos caboclos nos candomblés, como, por
exemplo, o famoso Caboclo Neive Branco do pai-de-santo Manoel
Rodrigues Soares, que era popularmente conhecido como Neve
Branco. Neive Branco, segundo o babalorixá, foi um índio
antropófago da tribo dos Charruas(ou Xarruas?), do Rio Grande do
Sul, que viveu no século passado, e morreu com quase 80 anos {y.Diário
de Notícias, 12 e 13/08/73).
Esse fato poderia indicar uma simples definição da entidade Caboclo
V como egun, espíritos, almas de mortos que são cultuados em terreiros da
nação ketu. Entretanto, essa identificação do caboclo como sendo um
egun deve ser entendida no campo das diferenças entre terreiros que
não cultuam abertamente os caboclos, e os demais terreiros que o cultuam
e ressaltam a sua importância no panteão afro-baiano, ao lado dos orixás.
Temos, portanto, duas posturas. Na primeira, o caboclo é considerado
um espírito de um morto ancestral. Na segunda, o caboclo é definido
, dl
X SfA ,-A
’O
como uma deidade a ser cultuada nos moldes do culto aos orixás. ? \ r, *
Quando os membros de terreiros tradicionais definem o caboclo como ^ if ^
egun eles estão ressaltando o caráter africano dos seus terreiros bem
como as práticas que envolvem os caboclos nesses terreiros. Nesse
sentido, vale apena notar a observação de Afra G. Portugal (1986:35):

“ Apesar de ser o Gantois uma das casas mais


tradicionais do Brasil, é constante a presença de Caboclos /
(encantados), oriundos de nossa civilização indígena que A
não vão ao Barracão em virtude de serem Eguns (espíritos
de antepassados), dando-se o Toque em outros lugares da
Roça, sem festas públicas. Os*Caboclos das Ébomins do
Gantois são assentados, e raramente aparecem no Axé.”

Curiosamente, os adeptos que não definem o Caboclo como eguns.


Utilizam-se do que dizem os caboclos de si próprios, Estamos, pois, diante
de uma auto-defmição :

“ Eles, os Caboclos, não se consideram eguns. Os


Caboclos e os orixás se consideram coisas vivas. Se for
pensar que é egun vai se considerar todos os orixás. Não
é o Caboclo uma coisa morta.”

A entidade Caboclo, como resultante de um espírito indígena, é


enfatizada pelos adeptos do candomblé quando se trata de falar daqueles
que “dão sessão”. Estes são classificados, “de acordo com o seu astral
e estágio”, como “deseducados, desenvolvidos e não desenvolvidos”,
expressando a influência kardecista presente nas mesas de caridade das

57
sessões de caboclo. Vale notar que esta classificação não se resume a
uma transposição pura e simples do kardecismo, mas significa uma
tradução, por parte dos membros do candomblé, de concepções acerca
do indígena. Nesse sentido, os índios “civilizados ou selvagens” designam
os caboclos “desenvolvidos e não desenvolvidos” .
Apesar de ser na maioria das vezes caracterizado como índio - “o
verdadeiro caboclo é o índio”- algumas entidades como Boiadeiro, Ogum
Marinho e outros, que não têm, explícitamente, uma ligação com alguma
“tribo”, são chamadas de caboclos, ou são vistas como tendo parte de
Caboclo.

“Apesar de Marujo, Ogum Marinho, Martim Pescador


V responderem como caboclo, são entidades de agua. Não
são censuradas por responderem como caboclo. O
verdadeiro caboclo é o índio”.
(C.R.P.S.)

“Então, Boiadeiro pertence a que aldeia? Pode ser um


Boiadeiro menino ou Boiadeiro velho. Ele tem aldeia dele.
Ogum Marinho é uma energia vinculada a alguma coisa
marítima. Tem a aldeia dos Jequiriçá, dos Tupinambás, dos
Kariris. Dentro das aldeias tem vários caboclos. Tem Ogum
Marinho, que é da aldeia do ayucá. Tem Ogum kariri, que é
da terra, de outra aldeia. Boiadeiro é um caboclo.”
(J.B.dos S.)

O “responder” como caboclo que aproxima entidades diversas, sejam


^ elas de origem “indígena” ou não, significa que a manifestação e o
comportamento de todas elas é similar. Ou seja, quando alguma dessas
entidades “desce”, seu relacionamento com o público presente acontece
de forma verbal. Nota-se de imediato que o caboclo, ou quem esteja
“respondendo” como caboclo, logo após a incorporação, começa a entoar
cânticos sem esperar pelo ogã, pai ou mãe-pequena do terreiro, como
ocorre geralmente nas festas dos orixás. Além de cantar, todas essas

58
entidades podem conversar claramente com as pessoas, provocando-as
à vista geral, através da pergunta “como vai seu moço(a)?” Uma outra
semelhança é o ritmo das músicas: é mais frenético que nas festas para os
orixás, e pode rapidamente transformar-se num samba de caboclo.
Numa visão de conjunto das entidades que são identificadas como
Caboclos, “indígenas” ou não, podemos observar que a categoria
caboclo, incialmente adotada pelos cultos afro-baianos para identificar
entidades nas sociedades indígenas brasileiras, alargou-se, tomando uma
amplitude de significações que dão conta de elementos autóctones:

“Na minha vidência, eu vejo os caboclos tanto de penas


quanto vestidos de couro. A fisionomia é como uma
pessoa. Os índios a gente vê com cara de índio, as feições
mais grosseiras. Tem caboclo que a gente vê com uma
feição fina, tem uns parecem crianças”
(U SD .)

Nesse sentido, é possível entender a definição do caboclo como “o


dono da terra”, encontrada nos candomblés, espelhando esse complexo
de entidades emolduradas na categoria caboclo. Assim, parece-nos que
houve uma espécie de “totemização” da categoria caboclo, em que se
classifica e se associa todas aquelas entidades que mantêm um parentesco
próximo entre si, através de caracteres que já observamos antes, como,
por exemplo, origem, formas de comunicação e manifestação. Por outro
lado, a contínua criação de nomes de entidades (v.em anexo relação de
nomes de caboclos )que se encontra nos candomblés baianos, e seu
enquadramento nesta categoria, serve também para colocá-la em oposição
a outra categoria - orixá - categoria esta que abarca todas as divindades
de origem africana (Oxóssi, Xangô, Oxum, Oxalá, etc ), portanto, não
brasileiras.

59
\S A DIFERENÇA NA IDENTIDADE:
^ ORIXÁ ECABOCLO

Há uma tendência nos escritos afro-brasileiros em ver o problema da


identidade nos candomblés afro-baianos no campo meramente mítico,
onde, na verdade, os modelos do universo religioso se restringiriam à
existência dos orixás (nessa direção, v.Augras, 1983; Lépine, 1978),
resumindo-se, portanto, a identidade dos membros dos terreiros a algo
tradicional e, consequentemente, imutável.
Sem sombra de dúvida, a identidade dos agrupjfmentos afro-baianos
se constrói reportando-se à existência das deidades africanas,
mesclando-se e vinculando-se diretamente ao sistema cosmológico.
Contudo, seu corpus mitológico não é algo que, por si só, daria conta da
identidade dos grupos já referidos, pois, paralelamente à existência dos
orixás, encontra-se o Caboclo, considerado como uma entidade no mesmo
nível dos orixás e com características peculiares. Embora o que marque a
identidade dos terreiros afro-baianos, de uma forma global, seja a adoção
do universo africano, lembramos que a presença de elementos oriundos
de cultura “estranha” não desfaz a identidade específica, ou seja, a
presença do Caboclo no candomblé não faz com que os traços tradicionais
que marcam a cultura religiosa afro-baiana se descaracterizem, na medida
em que tanto o caboclo como os orixás vão ser concebidos de modo
V diferenciado. Como nos disse um pai-de-santo, “cada qual no seu cada
qual”.
A relação caboclo-orixá nos candomblés de Salvador dá-se de forma
bastante singular. De imediato, não haveria linhagens de caboclos que /
se subordinariam aos orixás, como mostra o exemplo ao lado da Umbanda:

60
Linhal Linha 2 Linha 5
Chefe da Linha Oxalá Yemanjá Oxóssi
Primeiro Astral
Plano:
Chefe de Legiões Caboclos Caboclas Caboclos
Sub Legiões Ubiratão Iara Arranca Toco
Falanges Ubirajara Indaya Jurema
Sub Falanges Ubiratan NanaBurucu Araribóia
Aymoré Estrela do Mar Guiné
Guarcti Qxnn Arruda
Guarani Inbassa Pena Branca
Tupi Sereia do Mar Cobra Coral

Segundo Astral
Plano:
Guias Caboclos Caboclas Caboclos

Grajaúna Estrela Dalva Pena Azul

Graúna Jupira Pena Dourada


Agua Branca Jupiara Tupinambá
Tupan Jandira Guaraná
Rompe Nuvem da Praia Tabajaras
Yarina Jucana 7 Flechas
Tamoio Tupiara
Guaraná Tupaibo
Iamocutara Turiaçu
Gira Sol MataVngem
Rei da Mata
Rei do Oriente
Rompe Folha

(Brow, 1986:60s)

61
No candomblé, há uma profunda distinção das duas entidades. O
caboclo é visto como uma entidade mais movimentada, “firme, ligada ao
chão, uma coisa que tem mais ação”. Por ser o orixá, ou inkice, como
frisavam os pais de santo da nação angola, “o dono da cabeça, a energia
que rege, que dirige seu corpo”, haveria um sentido de hierarquia entre
eles, que se traduz na realização de trabalhos, ebós, com o fim de ajuda
material:

“ O inkice é a parte mais sensível, a ponto de, eu falo


de sensibilidade a nível de não poder trabalhar com a
matéria enquanto as necessidades físicas dela, as
necessidades materiais. Ela é sensível a esse ponto, a esse
nível. Enquanto que o caboclo não, ele trabalha, a ação
dele é em cima do espírito-matéria. Ou seja, você trabalha
seu espírito também, você trabalha aquilo que você deseja
em termos de materialização. O caboclo dentro dessa ação
ele lhe ajuda a conseguir coisas, bens materiais que você
deseja. Então, ele também é veículo ligado ao orixá, porque
eu acredito que, para o candomblé você conseguir bens
materiais, você tem que cuidar primeiro de seu espírito. E o
caboclo lhe ajuda a chegar também ao seu espírito, porque
ele vai cuidar da sua matéria. “ ( J.B.dos S. )

A hierarquia observada não significa uma mera subordinação. Ao


afirmar que o caboclo “vem para lhe indicar o seu caminho, clarear ou até
mesmo indicar o seu novo caminho”,algo que o orixá não vai fazerjá que
é “o seu próprio caminho”, os adeptos do candomblé estão a fazer
distinções tanto na compreensão do que sejam as entidades, como também
nos seus níveis de atuação

“Orixá é uma coisa muito fina. Não pode tá se chaman­


do toda hora e todo o instante, e nem todo minuto”
(R.S.D.)

62
“A pessoa que recebe orixá, se a pessoa adoecer, e se
for caso espiritual, o orixá vem, diz o que tem que fazer,
pode até pegar e a pessoa melhorar. Mas o orixá em si ele
não vem para pegar um cliente, ou um filho de santo numa
casa, para conversar, dizer “você tá com problema” você
tem que cuidar. Não, ele deixa essa parte para ser colocada
pelo caboclo.”
(J.B.dosS.)

A atuação das entidades no sentido da consecução de trabalhos


seria, portanto, diferente dos dois casos. Do ponto de vista da resolução
de problemas de qualquer ordem, seja econômica, afetiva, saúde, haveria
um certo “desnível” entre o caboclo e o orixá:

“ Eu acho uma grande força, uma grande


mão-de-obra na vida do candomblé. Ele que pega mais
o pesado. Vocêjá viu um orixá tirar um Exu de alguém?
Só Ogum. Xangô mesmo tem medo de muitas coisas.
Caboclo enfrenta qualquer parada.”
(R.S.D.)

É corrente entre o povo-de-santo a afirmação de que “o caboclo pega


mais embaixo que o orixá” e que “aquilo que o caboclo faz, o negro não
desfaz”. Corroborando esta visão, Edison Cameino(1981:135) transcreveu
em junho de 1936 um depoimento sobre os candomblés da Bahia: “o jeje
chega e arranca o toco. Vem o angola, tira as foia. O caboclo, mais forte,
leva logo a raiz”. Afirmando isto, o povo-de-santo está expressando o
que seria, para ele, a força do índio brasileiro. Segundo os adeptos do
candomblé, a força advinda dos trabalhos dos índios - leia-se caboclos -
provém deles saberem o segredo das folhas que os negros não conhecem,
já que os negros quando aqui chegaram encontraram os índios:

“Embora os negros já aprendessem a trabalhar com


ervas, eles são também filhos do mato, aqui os índios
tinham um grande conhecimento do mato. Então, nós
aprendemos muito com os índios. “
(J.B.dos S.)

Frisando sempre as diferenças entre as entidades caboclo e orixá,


algo corriqueiro nos candomblés, notamos uma outra característica que ) \
os distingue - a identificação com reações do ser humano. De um lado,
teríamos o caboclo, “mais próximo da gente: sente raiva, diz que está
zangado, pode pedir uma oferta, como, por exemplo, um galo”, no outro
pólo, o orixá, que é “muito distante da gente, pode tá mordido, demonstrar
insatisfação, mas só uma pessoa bem próxima pode dizer, pois geralmente
o orixá só fala ao pai ou mãe de santo, ogã ou ekede. Ou manda recado
pelo erê.” (E.E.S.)
OS ESPAÇOS

; Os espaços dos orixás e dos caboclos também são distintos. O do


' caboclo fixa-se na área externa do terreno, onde se encontram
asssentamentos de orixás como Oxóssi, Ogum, Tempo, Catendê, mas
numa localização própria, já que o caboclo não deve ser assentado dentro
«y de casa, e sim ao ar livre. Entretanto, há pequenos terreiros que, por não
ï terem espaço externo, não possuem outra alternativa senão assentar no
j espaço interno. Esta situação sempre era ressaltada como sendo
I desagradável.
* Em alguns terreiros, o espaço sagrado do caboclo localiza-se próximo
; ao de Exu. Entidades percebidas distintamente, Caboclos e Exus teriam
l em comum o caráter da exterioridade, bem como o encargo da execução
de trabalhos, ebós, com relação a determinados fins, e da intermediação
I cornos orixás,
í I.C.L. afirma que “os espaços do orixá e do caboclo são diferentes,
í eles são assentados separados. O caboclo tem a cabana, “come” diferente
f do orixá. O assentamento do caboclo é feito depois de 1 ou 3 anos, no
j mato, nunca dentro de casa.”
í O espaço efetiva-se, desse modo, de uma forma estruturada pela
\ evidência de um valor, de uma legitimação, para cada uma das entidades
\ ali presentes, e essa caracterização no pensamento mítico requer de
: imediato a imagem de uma separação espacial (cf.Cassirer, 1972).
- O assentamento do caboclo, que significa a representação da sua
força e dos elementos revestidos do que lhe é sagrado, tem basicamente
arco, flecha, com a seta feita de ferro, moringa, uma quartinha(vasinho de
baíro) com a jurema (Mimosa hostilis), milho branco com fumo de corda,
verduras como cenoura, batata inglesa (batatinha), frutas, charutos,
garrafa de cerveja, uma imagem de um índio e/ou um quadro com a figura
de um índio. Em muitos terreiros, o assentamento está localizado na
chamada cabana, que tem uma forma retangular ou oval com
predominância das cores verde e amarela.

65

I,
No “assentar” do caboclo, os cânticos são em português, apesar
de haver palavras em línguas bantu e “indígenas”. Não há rigidez no
horário, contudo o assentamento não pode ser feito ao meio dia ou à
meia noite.
Buscamos entender essa distinção na medida em que, a princípio,
as características do orixá e do caboclo pareceriam idênticas, sendo assim
compreendidas por alguns autores (v. Carneiro, 1964; Bastide, 1974b).
Contudo, a própria observação nos terreiros visitados nos fez ver que,
para os agentes envolvidos, não há nenhuma contradição no fato de
existirem várias entidades de origens diversas num mesmo plano do
religioso. Muito pelo contrário, são nítidas as suas distintas concepções,
aí incluídas as diferenciações quanto ao espaço.

66
INICIAÇÃO

Um outro componente de extrema significação para a compreensão


da relação orixá-caboclo na estrutura simbólica do candomblé baiano é a
feitura ou iniciação.
yL
A feitura do orixá passa por todo um processo que dá conta da
herança de valores africanos. O caboclo, pelo contrário, não necessita de
iniciação Ele se enquadra menos numa herança do que em algo adquirido
que represente uma ligação à cultura ameríndia. Isto pode ser comprovado
jfr a v é s de um diálogo entre Edison Carneiro e Sabina, mãe de santo
Ipabocla, transcrito por Landes(1967:178), em que Carneiro resolve
.questionar a legitimidade do titulo da mãe de santo. Esta era uma questão
muitos sacerdotes do candomblé nagô sempre colocavam, como
Jqrma de controverter o poder dos pais e mães de santo dos terreiros
Spaboclos:
P •
“Quem a fez, dona?
-Ninguém. - O tom era cauteloso - O sr. sabe que nós,
e as mães caboclas, não somos tocadas por mão humana.
Quem me fez foi o espírito de um índio que veio a mim em
sonho. Ele morreu há centenas de anos e é o meu
anjo-de-guarda”

te, O problema da feitura mostra-se, portanto, como um sinal de


legitimidade no universo afro-brasileiro, servindo de marca para a distinção
íaboclo-orixá.
-j;, Este fato veio a ser motivo de acirrados debates no I Congresso
ro-Brasileiro, realizado em março de 1980, na cidade de Salvador,
■jpefínindo o “candomblé-de-caboclo” como essencialmente brasileiro e,
por conseguinte, sem trazer raízes da Africa, os participantes do
jCongresso demonstravam dúvidas se um iniciado poderia ou não
“receber” o caboclo e se era possível iniciação de iaôs em caboclos, já

67
que ele não se constituía em um orixá. A plenária decidiu que não se
podiam iniciar filhos(as) de santo em caboclo, com a justificativa de que
ele “é simplesmente um guia, espécie de orientador, necessário num
terceiro, mas não podendo agir como um orixá”, como transcreveu a
Tribuna da Bahiaem 29/03/80. Explicava Miguel Ferreira que “toda ialorixá
e todo babalorixá tem um caboclo, que deve ser preservado, pois ele faz
parte de nossa cultura, mas caboclo não é orixá. Ele tem que ter um
padrinho ou uma madrinha (um orixá homem ou uma mulher).
Apesar dos terreiros afirmarem que não há necessidade de se iniciar
caboclo, como se inicia um orixá, pois “caboclo não dá nome, tem nome )(
(J.B.dos S.)”, verificamos que, em alguns terreiros, predominantemente
da nação Angola ou, para usar uma classificação “nativa” mais precisa,
Angola-Caboclo, fazem rituais para o caboclo que servem de substituição
para a iniciação. Num terreiro. Terreiro de Ogum Yemanj á Té, a mãe de
santo, M. S, dos S., nos informa que o caboclo “não se raspa, faz-se uma
coroa”, e que havia muita diferença, pois ao invés de saia, vestia-se
saeta, calçolão e capa - “Eu vim vestir saia depois de feita”. As distinções
chegavam aos animais para a matança, pois eles eram vestidos com uma
capa enfeitada com fitas, “tudo com as cores dos caboclos (verde e
amarelo)”. Outra distinção básica é que havia padrinho e madrinha e “ a
orquestra era muito bonita, tinha flauta, viola, pandeiro, ganzuá,
harmônica”.
Em contraposição à “feitura” do “santo africano”, há terreiros que y
“batizam “ os caboclos. Importa salientar que, neste batismo, há elementos ^
comoo sangue sacrificial, a lavagem, o banho de nèd(infusãode folhas
maceradas) e a reverência è cabeça, que se encontram dentro do sistema |
afro-baiano através da cerimônia chamada bori ou “dar de comer à |
cabeça”. 7
Segundo A.M.C., nação Angola, “a gente passa três dias na “roça”
(terreiro), mas não é recolhido não; em vez de contas, a gente usa uma
corrente grossa, ou prata pura ou com alguma coisa pendurada, que fica
três dias no sangue; não raspa nem pinta, não se pode levar sol nem
carregar peso na cabeça porque se botou sangue aqui no meio da cabeça
também; a vestimenta é a mesma dos iaôs; a gente também toma banho j

68
abô, e tem que beber desse banho enquanto estiver na roça; a gente
>tem nome de santo, como no lado africano; não posso usar a corrente
pra conversar com meu noivo e eu só uso ela na segunda e sexta
iparanão sujar”
Após o “batismo”, os caboclos são levados ao Parque S.Bartolomeu,
iftntuário e palco de batalhas entre portugueses e baianos, no processo
4a Independência da Bahia, para toda uma homenagem especial. No
]pcal, são oferecidos aos caboclos pratos de salada, milho branco ou
COCO com milho vermelho, mel e fumo, a depender do caboclo. Depois
;4os caboclos “descerem”, cantarem e dançarem, eles vão tomar banho
na cachoeira do Parque. Esta mesma mãe de santo informa que, no dia
•eguinte, “tem que ir também no “milagre de São Lázaro” (uma pequena
tlocalizada na Praia de Ondina), se entra no “milagre”abaixadinho,
leva pipoca e vela, e acende dentro do “milagre”. O velho Obaluaê, que
Corresponde São Lázaro, desce e tem vezes que não desce.” 8

69
A EXIGÊNCIA

Se o ritual do batismo nâo é obrigatório para a existência do caboclo


nos terreiros, pois há alguns que não o fazem, a necessidade de se
“cuidar” dele passa a ser uma regra, na medida em que a transgressão
aos desejos dessa entidade implica em sanções graves. Não é à toa que
os membros dos candomblés de certa forma temem não acatar os pedidos
que lhes faz o caboclo. Inúmeros são os episódios narrados nos
candomblés que dão conta de sua intransigência :

“Eu tenho 23 anos de feita. Ele (Rufino do Beira) veio


fazer meu santo aqui em minha casa. Ele sempre viajava
para o Rio, mas o caboclo disse a ele se ele demorasse
muito no Rio, ele (o caboclo) tirava a vida dele. Meu pai
Rufino é da Oxum.”
(M.S.L.)

“ Sou casada pela terceira vez. Meu marido é muito


calmo, ele não se mete com caboclo, por isso está vivo.
Quando me casei, ele era guarda civil e bebia muito, mas o
caboclo disse que não queria ninguém de farda nem
cachaceiro. Agora ele é detetive e não bebe mais. Ele se
chama F.T.R., não faz parte da seita. Durante a festa, ele
fica lá em cima, só desce quando o caboclo chama.”
(M.E.R.)9

Esta mãe de santo que seus dois primeiros maridos, por não y
acreditarem no caboclo nem obedecer-lhe, haviam m orrido/
repentinamente.
Um outro depoimento que ilustra a questão é o relacionado a
Joãozinho da Goméia, famoso pai de santo baiano da nação Angola10,
que se instalou no Rio de Janeiro. Dona Neném, remanescente do terreiro

70
Goméia localizado no bairro de São Caetano, no qual viveu 39 anos,
d a, em entrevista ao Jornal da Bahia de 03/04/80, que a extinção da
?a deu-se pelo “desgosto que o caboclo de “seo” João (o Pedra
Preta)tevecom ele”., pois não estava cumprindo com as obrigações devidas:
“até para fazer os trabalhos do dia 02 dejulho, ele estava pondo dificuldades”.
‘Segundo ela, Joãozinho da Goméia foi advertido pelo caboclo Pedra Preta de
ÿ g seu fim estava próximo - “o aviso foi mn acidente de carro antes de
l ttorrer”. A dissensão entre o pai de santo e o seu caboclo era porque a
entidade queria que o babalorixá voltasse a residir em Salvador e ele se
fecusava tenninantemenle a sair do Rio de Janeiro.
Os episódios que os adeptos do candomblé narram servem para
reforçar o discurso acerca da força de uma entidade que até então era
considerada como periférica na estrutura simbólica do candomblé baiano.
Esta constatação parece-nos importante de ser ressaltada, pois se, como
ívimos, há uma hierarquia na própria definição das entidades orixá e
Caboclo, com relação às suas determinações e vontades há uma inversão.
O depoimento a seguir ilustra esse fato:

“O caboclo é muito forte na religião. Se um pai de santo,

x como aconteceu na minha casa, vai iniciar uma pessoa, e


de repente existe um caboclo que precisa ser assentado
primeiro... Se você não fizer isso, tudo antes pro caboclo,
como ele quer, pode se preparar que, na hora do nome,
quem vai dar é o caboclo, o orixá pula fora. Você veja aí
como o caboclo tem uma força muito grande em cima do
orixá Podeexistir guerra. Por exemplo, você levar um tempo
sem dar comida ao seu caboclo e só dando ao santo. De
repente, você vai dar comida ao santo, o caboclo bota o pé
a n cima.”
(J.B.dos S.)

A partir do que já foi dito, receber as duas entidades significa


elevá-las no espaço e no tempo rituais; é uma obrigação, uma regra do

71
sistema religioso afro-bai ano, cujo não cumprimento traz em si
consequências imprevisíveis para o indivíduo - consequências estas
que se mostram em níveis diferenciados, já que “os caboclos são mais^v
exigentes que os orixás. Quando querem, querem mesmo”. (R.D.S.)

72
A MANIFESTAÇÃO

Vimos nas partes precedentes, como os adeptos do candomblé


distinguem os orixás dos caboclos. Interessa-nos neste momento focalizar
I descrição que esses mesmo adeptos fazem da possessão de cada uma
das entidades, e como eles próprios sentem essas diferenças.
Tomando-se o conjunto dos terreiros, observa-se que há uma
predominância de pessoas que “receberam” o orixá em primeiro lugar e,
após algum tempo (que pode variar de 1 a 3 anos), o caboclo veio a se
manifestar. Entretanto, isto não pode servir de regra geral, pois inúmeros
fbram aqueles que diziam terem recebido o caboclo antes do orixá:

“Meu caboclo veio de berço, desde os sete anos de


idade que ele começou a se manifestar. Uma vez, eu fugi de
minha casa, em Itaparica, fui pro mato, voltei depois de 21
dias. Voltei toda pintada, com pulseirinhas nos braços e
nas pernas. Ninguém em minha casa tinha esperanças de
me achar mais”
(M.E.R.)

“Andava sempre doente, caindo pelas ruas; fui a muitos


médicos, mas nenhum conseguiu descobrir a doença.
Então, uma pessoa entendidanessas coisas descobriu que
era um caboclo. E continuou a me pegar até que um dia fui
levado à casa de minha mãe Daintalá, por intermédio do
meu padrinho. Neste dia o meu santo caiu nos pés de
Daintalá”.
(apud Lima, 1977:64)

Note-se que este último depoimento ilustra o fato de que a


manifestação inicial do caboclo serviu de sinal para uma posterior
manifestação do orixá e, consequentemente, um enquadramento no

73
sistema simbólico religioso.
A manifestação do caboclo anteriormente à do orixá ou, no outro
extremo, num intervalo em tomo de um ano após o descer do orixá, deve
ser entendida pela representação simbólica que os adeptos fazem do que
seja o caboclo. Ao dizerem que “um caboclo não gosta de descer numa
pessoa de cabeça raspada”, ou seja, num(a) iniciado(a), eles estão
distinguido as duas entidades, já que caboclo não se inicia, “nasce feito”, X
e por isso não se manifesta no corpo de um(a) iniciado(á). Por outro lado,
estão também a traduzir simbolicamente a idéia de que o índio usa cabelo
comprido e que raspar é coisa de africano: “Nas tribos, eles não raspam
o cabelo, eles cortam de forma oval”.
Procuramos saber como eles sentiam essas manifestações. O momento
inicial foi sempre narrado da seguinte forma - “um desmaio a gente sente,
A Você tá querendo correr e não consegue. É como se tivesse um buraco na
sua frente e você fosse cair”. Apesar dessas sensações serem as mesmas
para as duas entidades, há diferenças do “receber” caboclo e orixá, que
se mostram como oposições:

“O chegar do caboclo é mais rápido, como uma corrente


de 220 volts. Não tem tempo de dar um suspiro. É como se
eles já conhecessem o caminho. O orixá você sente
proporcionalmente, lentamente. É mais ameno.”
(E.E.S.)

“O que difere (orixá e caboclo) é a leveza do encontro


da energia com seu corpo. \bcê, por exemplo, quando recebe
um inkice você sente uma coisa cada vez mais leve, a
depender do orixá. A sensação é a mesma, um
formigamento no corpo, é como se voê fosse cair num
buraco. E incontrolável e insustentável. O caboclo é a
mesma coisa, só que ele é uma coisa mais forte, mais
agitada, mais movimentada, mais de ação. Então, você sente
um vento maior que lhe arrebata”
(J.B.dos S.)

74
“A sensação é bem diferente, o orixá é bem mais calmo,
o caboclo é bem mais bravo. A diferença do orixá é que o
orixá vem mais lento, é uma coisa mais suave, e o caboclo
não, o caboclo, quando vem, ele vem de vez, dando
bairavento mais forte do que o orixá”
(C.R.P.S.)

O término da manifestação também é sentida de maneira diferente,


I; apesar das pessoas apresentarem, nas manifestações das duas entidades,
: algo similar - a taquicardia. Esta taquicardia, segundo E.E. S., desaparece
■ no caso do orixá, quando, logo após o orixá “ir embora”, manifesta-se o
j erê, entidade infantil, cujo transe é suave. Além da taquicardia, os reflexos
í demonstram lentidão e “há uma sensação de que a boca está seca, sem
saliva”.
Todo o quadro que os adeptos compõem para diferenciar a possessão
:: pelas duas entidades nada mais é que parte de um todo explicativo que
dá conta da “lógica” intrínseca que permeia a existência do caboclo e do
orixá. Ao dizer que o “receber” orixá é mais leve que o caboclo, já que
este é “mais de ação”, eles estão exemplificando o comportamento e
determinação de entidades definidas anteriormente pelo grau de exigência,
sensibilidade e ação. Ao distinguir entidades, colocando-as de modo
hierárquico ou, por vezes, invertendo essa mesma hierarquia, o
povo-de-santo está gerando siginificados que se articulam e fazem sentido
em relação uns aos outros.
NOTAS

1. Se, inicialmente, o termo caboclo foi criado pela elite nacional, mais
tarde o seu uso, já com toda a carga negativa, vai ser motivo de proibição
numa das leis do Diretório de Pombal (v.Gomes, 1985). O Alvará de 04/04/
1755 fala de caboucolo em lugar de caboclo, e proibe o seu uso, como
nome injurioso dado aos portugueses casados com índios, aos que
nascerem destes matrimônios (v.Beaupaire-Rohan, (1889)1956).

2. Em 1872, de acordo com Mattoso( 1988:23) a categoria índio foi


substituída por caboclo. Entretanto, esta observação choca-se com a
informação de Schwartz(1974) de que havia 33 pessoas caboclas no
recenseamento.

3. Curioso é que a concepção de encantado encontra respaldo entre os


kiriris, índios localizados em Mirandela, interior da Bahia. Segundo eles,
X “encantado é todo aquele espírito de índio que volta. Toda quanto tribo
tem encantado. Até hoje quem tem o terreiro chama... “ (Carvalho,
1982:182).

4. Ferretti( 1986:110) assinala a família de Dambirá do panteão de Odã na


Casa das Minas do Maranhão como sendo reis caboclos. Rocha
Ferretti( 1985:53) evidencia que caboclo, na Casa das Minas, é todo
invisível que não pertence ao panteão africano e que não pode ser
incluído nas categorias de vodum ou orixá. Na Casa Fanti-Ashanti, embora
se apresentem como brasileiros, são muitas vezes turcos, franceses,
egípcios, portugueses, e mesmo africanos. V. também Yoshiaki(1986) sobre
as limitações do modelo caboclos = espíritos desencarnados de índios
brasileiros.

^ 5, O caboclo da ialorixá Olga de Alaketo chama-se Jundiara e é da Hungria.


VLopes dos Santos( 1984).

76
Até onde nossas pesquisas puderam chegar, não encontramos no
:plo do Haiti a entidade correspondente. Rigaud(l953)fala dos loas -
stere, esprit des ancêtres, invisible ovoudoo” e diz haver divisões.
Contudo, o loa creole não é mencionado.

;7. Sobreo bon, v.Verger(1981:33-56).

IjL Entrevista concedida por Vivaldo da Costa Lima, e realizada por Z.D. e
A P em 17/10/68.

9. Id., e realizada em 05/12/65 por Júlio Braga.

10. Sobre esse pai de santo, e seu terreiro, v. Binon-Cossard, Giselé.


“Contribution à l’étude des Candomblés au Brésil - Le Candomblé
Angola”, Paris, Faculté des Lettres et Science Humaines, 1970.

77
CANDOMBLÉ DE CABOCLO :
Um Conceito Delicado

A expressão candomblé de caboclo aparece pela primeira vez nos


escritos afro-brasileiros em Nina Rodrigues. Frisando a pobreza m íticaX
dos negros bantus dizia ele : “ A propósito de animismo indígena farei
notar que, se os nossos supostos candomblés de caboclo ou indígenas
são, de fato, candomblés africanos, em todo o caso ainda hoje aderem à
feitiçaria africana dominante na Bahia esparsos fragmentos das crenças
tupi guaranis” (p.221s).
Se Nina Rodrigues foi, portanto, o primeiro autor a falar da existência
desses candomblés, Edison Carneiro (1981:133) foi quem deu uma
definição, apesar de controversa, mais precisa; “convém notar, de início,
que a designação geral “candomblés de caboclo”, empregada para indicar
aqueles candomblés onde se nota, mesmo à primeira vista, pronunciadas
influências bantus, é uma designação arbitrária, que só sejustifica por
visar a maiorfacilidade possível de estudo”(grifo nosso) Acrescentava:
“há que distinguir, com efeito, entre os candomblés puramente bantus e
os chamados “de caboclo”, onde a mítica bantu se encontra mesclada
cora a ameríndia. O que distingue estes últimos é a vestimenta dos orixás,
quase todos fantasiados de selvagens com arco, flecha, cocar, etc., e o
aparecimento sempre crescente de novos orixás”. Por fim dizia ele que
“talvez só haja na Bahia, um candomblé afro-banto, não caboclo, - o
candomblé de Santa Bárbara, do pai-de-santo Manoel Bernardino da
Paixão, no Bate-Folha. Daí adesignação geral de “candomblés de caboclo”
por mim adotada para todos os candomblés bantos existentes na Bahia”.
Não podemos saber de onde Edison Carneiro retirou essa informação
sobre o Terreiro do Bate-Folha, já que pudemos verificar a existência de
um assentamento de um caboclo na entrada do terreiro. Além desse fato,
segundo membros do Bate-Folha, o terreiro sempre cultuou Caboclos,

78
que o Caboclo do pai-de-santo Bernardino da Paixão era muito
Gonhecido, e até hoje, há festas para os caboclos nesse terreiro que é o
mais conhecido da nação Angola.
A designação candomblé-de-caboclo cobrindo exclusivamente os
candomblés bantos apresenta um outro problema. Edison Carneiro sabia
da existência de caboclos em candomblés denominados de origem
sudanesa. Não é à toa que em Candomblés da Bahia (1964:29) irá
reconhecer que “no Engenho Velho e no Gantois, duas casas onde a
tradição keto exerce uma verdadeira tirania, pude ver dançar e cantar para
encantados caboclos. É verdade que, nos candomblés nagôs, isto
raramente acontece, mas é uma deferência a que não podem fugir nem
mesmo esses candom blés” . No entanto não os denom inava
candomblés-de-caboclo preferindo, sim, englobar todos os candomblés
bantus nessa expressão e alijar os candomblés nagôs da influência
cabocla. É possível que à época, como ainda acontece , houvessem
terreiros bantus e Sudaneses que anualmente rendessem homenagens
aos caboclos com festas e oferendas, mas, sem influência visível, no seu
cotidiano, de elementos “ameríndios” . Se essa hipótese é procedente
por que somente os candomblés Sudaneses estariam isentos de serem
classificados como candomblés de caboclo?
Tudo leva a crer que o que estava em jogo na caracterização do que
seria candomblé de caboclo era, portanto, o nível de influência “externa”
permitida pelos candomblés de origem bantu, os quais, além disso, não
tinham, segundo Carneiro, a complexidade dos candomblés de nagô ou
de africano ( 1964):70), e a sua extrema simplicidade ritual possibilitava,
de acordo com o autor citado, o mais largo charlatanismo.
Em Artur Ramos, a preocupação na definição do candomblé de caboclo
dá-se ao nível de um suposto sincretismo religioso afro-ameríndio:

“Há uma modalidade de syncretismo religioso que só


agora vem tomando grande incremento, o que prova que a
sua apparição é relativamente recente. E o chamado
^ “candomblé de caboclo”, na Bahia, ou “linha de caboclo”
no Rio de Janeiro. Trata-se, ao que pude verificar da

79
intromissão de entidades da mythica ameríndia nas práticas
fetichistas dos negros; dahi a denominação de candomblé
de “caboclo” (mestiço de índio). O material existente é
enorme. No culto de caboclo (lei de caboclo, religião ou
linha de caboclo, como chamam os negros), ha também
curioso syncretismo dos orixás fetichistas com as
divindades dos mythos ameríndios e elementos do folk-lore
branco.
O ritual différé pouco das práticas de procedência
bantu, que já descrevem os, ou dos candomblés
gêge-nagôs, muito deturpados. A dififerença está nas
apparições dos santos que, nesse caso, são de origem
tupy-guarani”.
(1988:122)

Por certo que nem Nina Rodrigues, muito menos Artur Ramos e Edison

X
Carneiro inventaram a expressão candomblé de caboclo. O que eles fizeram
q foi usar uma expressão j á vigente na Bahia do século XIX e reforçar a
visão do povo de santo nagô acerca dos terreiros que explicitamente
cultuavam os caboclos.
O uso que ainda se faz da expressão candomblé de caboclo tem por
finalidade dois objetivos que não são excludentes. Primeiro, um objetivo
“didático”, ou seja, permite uma identificação à primeira vista dos terreiros
que têm uma prática de culto aos caboclos. Segundo, um interesse por
parte dos candomblés ditos de origem africana em marcar, ao nível do
campo religioso afro-baiano, suas diferenças e posições em relação
àqueles candomblés, onde além do culto aos orixás, se realiza culto aos
caboclos. Não é à toa que ao longo da pesquisa de campo fomos
informados por membros desses candomblés de que haveria candomblé
de caboclo em determinados bairros de Salvador. Sempre que chegávamos
no terreiro indicado nos deparávamos não com um “candomblé de
caboclo” mas com terreiros da nação Angola que estavam “batendo”
para algum Caboclo. A expressão candomblé-de-caboclo usada, portanto,
por membros de terreiros da nação keto tinha uma conotação política

80
iras importante, na medida em que serviria de marco distintivo no
mundo dos candomblés baianos.
Por outro lado, muitos terreiros denominam-se de nação caboclo/
angola, ketu/caboclo, ketu/angola/caboclo, ijexá/caboclo ou mesmo de
nação caboclo. O fato de o caboclo vir a ser denominado como mais uma
nação existente em Salvador explica-se também por uma postura política
desses candomblés em relação às outras nações, cujo objétivo é marcar
diferenças, bem como reafirmar a importância da divindade caboclo no
campo religioso afro-baiano:

“ Realmente, todos nós sabemos que existe a


nação-de-caboclo, apesar de muitos dizerem que “caboclo
não é nação”, mas o caboclo é brasileiro, nasceu no Brasil.
Ali, na Lapinha (bairro), tem a casa-de-caboclo. Aqui, no
Largo 2 de Julho, tem o caboclo. São Bartolomeu (parque)
é uma originalidade do caboclo. (...) Caboclo tem as suas
obrigações, tem seu fundamento, tem o seu preceito e tem
a sua terra”.
(Ferreira, 1984:59)

O trecho supracitado ilustra de que maneira é definida uma nação, a


partir de uma entidade e de elementos identificadores dos rituais - “caboclo
tem suas obrigações, tem seu fundamento, tem seu preceito” - e da sua
implicação numa ideologia classificatória que visa a distinção, pois “...
caboclo é brasileiro, nasceu no Brasil”.
UMA LEITURA SINCRÔNICA 1 j

Apesar de muitos terreiros denominarem-se de nação caboclo,


caboclo/ketu, angola/ketu/caboclo, é comum os adeptos, principalmente
os mais velhos, afirmarem que não existe mais o candomblé de caboclo X
de outrora. Melhor dizendo, aqueles candomblés - fossem eles nagô, jêje
ou angola - em que não haveria simplesmente a presença do caboclo - -
mas sim candomblés em que a estrutura simbólica, fosse ela de ordem
material, linguística ou ritual, estaria ligada exclusivamente aos “índios”
brasileiros.
Com o intuito de termos uma idéia do que devem ter sido estes
candomblés, faremos uma reconstituição a partir de esparsos escritos e
de depoimentos dos adeptos.
Num artigo de duas páginas elaborado a partir da apreensão pela
polícia, em 1919, de objetos e músicas manuscritas pertencentes a um
candomblé de caboclo e entregues ao Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia, Manuel Querino (1919) nota que très são as entidades dirigentes
que os sacerdotes e praticantes acreditavam: Jesus Cristo, São João
Evangelista e São João Batista, sendo que Jesus Cristo possuía o nome
de Caboclo Bom. Dizia ainda que adoravam com grande respeito o símbolo
da cruz, ao mesmo tempo que acreditavam nas revelações dos ciganos
quanto ao presente e ao futuro. A iniciação, nesses candomblés, era feita
numa choupana, na mata virgem, num espaço de trinta dias. Se a influência
católica era notada não só pelo símbolo da cruz como pela celebração de
missas, a influência africana também o era pela forma como os encantados
chegavam “à cabeça das mulheres”. O preparo das ervas diferia do
candomblé tradicional pela “quantidade e qualidade7- eram empregadas
duas ervas, com destaque para a Jurema. Os atabaques seriamos mesmos
do candomblé tradicional.
Os objetos e músicas manuscritas foram catalogados por Raul Lody(1985),
e ainda se encontram no IGHBa., dando-nos mais elementos de que se
constituíam os chamados candomblés de caboclo. Além de objetos

82
,:cionais dos candomblés, como por exempo atabaques, abebê (peça que
Indui na roupa tradicional deOxum), oxê de Xangô (machado em madeira),
ia objetos de identificação exclusiva dos candomblés de caboclo:

01 vaso de cerâmica com algas coladas sobre o barro


01 cabaça para conter líquidos ou pós
70 1 fornilho de cachimbo
01 quarta(peça de cerâmica) c/pigmentos verde e amarelo
Conjunto de oito flechas em madeira em que algumas apresentam
fitas de cetim verde e amarela
02 esculturas em perfis de rostos de Caboclos em madeira com laços
de fitas de cetim amarelo
02 cabacinhas para pós
01 caramujo
02 esculturas de de caboclo
01 capanga com a inscrição “O gentio raio de lus”
01 cocar
01 barrete em veludo verde com aplicações douradas
01 lança
01 cuia coité
01 pandeiro
01 triângulo de ferro
Olganzá
01 capa em veludo verde com franjas douradas
Olcaxixi
01 quartinha pintada de verde e rosa
01 cocar
01 adê-cocar
01 saiote
01 quadro apresentando a pintura de um Caboclo atirando num
coqueiro e a inscrição Cangorou

Com saudosismo, os adeptos que conheceram estes candomblés


'dizem que hoje “existe caboclo em outro qualquer candomblé, mas não é

83
candomblé de caboclo”. Fazendo esta afirmação eles reconhecem um y
fato notório, que é a presença do caboclo em todas nações a que pertencem
os terreiros baianos, assim como estão a notar nesses mesmos candomblés
a falta de uma “identidade cabocla”. Nesses terreiros, pelo que podemos
depreender, havia uma representação própria que abarcava objetos - e o
exemplo da apreensão policial em 1919 é expressivo - rituais e termos
específicos, como por exemplo:

“preparar” - diz-se “preparar caboclo”; serve como contraponto ao


fazer o orixá” dos candomblés de herança africana.
“ acatu” - refere-se ao momento em que o caboclo vai dizer a que
tribo pertence.
“ijeampei” -restos mortais
“atacafuquê” - faixa de pano colorido que se usa na cintura quando o
caboclo se manifesta; semelhante ao ojá. V.também atacã.
“congaçuba” - auxiliar masculino que exerce as funções de cozinhar e
enxugar o caboclo quando este está suado de tanto dançar.
“cambono de caboclo” - auxiliar masculino que tem a função de acender
charutos e entregá-los aos caboclos, servir-lhes bebidas, enfun ajudá-los.
“panzau, panossau” - galo
“elezangeze” - galinha
“muruganbu” -terra
“ingambu” - mulher solteira
“mureta” - minha mulher
“mucubandé” - grande
“ecutá” - pedra
“niabumiani” -fonte
“mutata” -pai
“poranga” - burro
“mupariá” -faca
“nuture” - colher
“gangofim” -benção
“apuim” - farinha
“afojé” - cabelo

84
^cudiamena” - comer
“dakis” - atabaque

Pelas informações do povo-de-santo, podemos deduzir que havia


candomblés de caboclo elementos substitutivos dos candomblés
origem africana. Nas adivinhações, ao invés dos búzios ou do obi,
ra-se o caroço de abacate ou de jaca e a lubassa (cebola). A pemba,
zinho branco usado para tirar malefícios, era feito de arenoso branco,
úo e tabatinga. A pintura dos caboclos nos dias de festa simbolizava
“Índio” sempre pronto para guerrear, e os atabaques usados nessas
s, ao contrário dos tradicionais rum, rumpi e lé feitos de madeiras,
de barro cobertos de couro de veado. Acompanhavam os atabaques
aças, pandeiro, ganzá, berimbau, triângulo e caxixi.
Simbolizando o contra-egun, trança de palha da costa com a finalidade
de afastar os espíritos dos mortos, eguns, havia o contra-egun feito de
palha de dendê, içanga.
A representação simbólica desses candomblés incluía também uma
correspondência de encantados com os orixás. É importante notar que
essa relação muitas vezes se dava com o uso de denominativos de origem
das línguas bantus, como podemos notar no quadro abaixo, fornecido
por Marinalva Bispo dos Santos:

Orixás Encantados

Nanã MinNanáKaolokai
Qom Janaina,Kicimbá
Xangô ZaziQmano
Iansã OiáQuitanba
Iemanjá Maré Ici Maré
Oxalá Maçangana, Kaigonga
Oxóssi JecoEdé
Ogum Unicombe Rouxo Uricombe
Ossãe Adomana
Obaluaê HipongaAmatomba

85
Os trabalhos feitos nesses terreiros incluíam a observação das
fases da Lua, da maré, do Sol e da chuva, tidos como referências centrais
dos índios brasileiros. Além disso, a consulta aos membros mais velhos
dos terreiros era obrigatória. Este fato é explicado pela visão que os
adeptos tinham da figura do Pajé, tido como o mais velho, o “rei” das
sociedades indígenas brasileiras. Nesse sentido, havia uma transposição
simbólica do Pajé das sociedades indígenas para o grupo de pessoas de
“maior grau” dos candomblés de caboclo, fazendo com que houvesse
uma espécie de “gerontocracia” na “feitura dos trabalhos” .

86
ORIGEM

it:-
É intricada a fundação dos candomblés de caboclo. De acordo com
Edison Carneiro:

“A origem desses candomblés, pelo menos na Bahia,


traz a data muito vaga de fins do século XIX. Segundo as
recordações do prof.Martiniano do Bomfim, o primeiro
candomblé de caboclo da Bahia foi o de Naninha, uma
mulata que dirigia um “terreiro5’no Moinho da antiga roça
do Gantois. Era ela, então, a única. Depois da sua morte, a
Y negra Silvana, de Periperi, se esforçou por imitá-la. Daí,
desses dois “terreiros”, de caboclo, nasceram todos os
candomblés que estamos estudando. (1981:135)

Por mais que a informação imputada a Martiniano do Bomfim seja


importante para termos mais precisão sobre a origem dos candomblés de
caboclo, há dados contidos em Nina Rodrigues e Ruth Landes que nos
fazem refletir sobre o problema.
Ao que parece, a primeira referência a um candomblé de caboclo
conjsta em uma matéria do Correio da Tarde de 18/11/1901 transcrita por
Nina Rodrigues (1977:244) que diz haver um “candomblé da Cabocla ao
porto dos saveiros”. Posteriormente o Diário de Noticias de 09/05/1905,
protestando sobre a crendice da “massa ignara, que já a não cultiva nos
pontos distantes do perímetro urbano, por isso que os candomblés
funcionam no próprio centro da cidade” (Ibid.), diz que na “Estrada das
Boiadas, por exemplo existem uns três desses antros de corrupção. Por
muito tempo esteve ali na berra o candomblé, denominado de caboclo, de
um tal Bernardino, por morte do qual passou o terreiro à propriedade de
Manuel, vulgo Maneta, um indivíduo que passa o tempo, que podia
aproveitar em um trabalho dignificante, a cevar a ociosidade, que lhe
proporciona o seu papel de intérprete de santos, curador de malefícios,

87
proporcionador de ventura. ”
O que é interessante observar é que este candomblé do “pajé” Manuel
Maneta, como é denominado numa outra matéria do Diário de Notícias
de 09/05/1905, a partir da invasão da polícia, era um candomblé
“jéje-iorubano”, como o definiu Nina Rodrigues (Ibid., p.244). Ou seja,
estamos diante de um candomblé que não era sómente de culto aos
caboclos, mas também pertencia à nação jêje-nagô. O que só faz reforçar
o nosso argumento de que o culto aos caboclos nunca foi privilégio dos
candomblés de origem bantus, e que a sua conceituação, tal como
elaborada a partir de Edison Carneiro, é por demais delicada. Mas, de que
forma esse fato colocaria em xeque a origem dos candomblés de caboclos
propagada por Carneiro a partir da informação de Martiniano do Bonfim?
Vamos ao que diz Ruth Landes. Falando sobre os conflitos nas casas de
culto nagô e a cisão daí proveniente com o surgimento de novas casas e
pequenas variações de ritual, ela nos diz:
“ O rompimento mais importante se produziu há cerca de uma geração,
quando uma mãe nagô, chamada Silvana, instalou o chamado culto
caboclo. Naquela região caboclo significa uma mistura de sangue índio
e branco; Silvana se apossou do têrmo porque alegava ter visões dos
antigos índios brasileiros. Ela organizou o culto aos primitivos habitantes
da terra, os índios (...). As idéias cismáticas de Silvana, de êxito imediato
dado o seu prestígio de filha nagô, deram em resultado, hoje, dezenas de
casas de culto caboclo na Bahia. Os deuses nagôs ainda são os principais
no ritual caboclo e somente depois que são cultuados se invocam os
novos seres sobrenaturais” (1967:289s)
Estamos, pois, segundo as transcrições, diante do fato do surgimento
dos candomblés de caboclo a partir de um cisma dos candomblés
nagôs. Mas, o que nos garante que o culto aos caboclos não tenha
também se originado nos candomblés de origem bantu? Não estariam
os autores citados privilegiando os terreiros nagôs que tinham
“virado pra caboclo”, em detrimento daqueles terreiros bantus que
j á cultuavam caboclo? Convém lembrar que os terreiros bantus não eram
objetos de investigação dos pesquisadores. Além do mais qual era a
nação de Naninha que Edison Carneiro citava como tendo estabelecido

88
■ w rim eiro candomblé de caboclo?
H A questão é tão complexa que se formos observar o culto aos caboclos
n a sua essência, ele nos revela básicamente elementos dos candomblés
p e origem bantu e uma quase ausência de elementos dos candomblés
Rnagôs. Os atabaques são tocados com as mãos, bem como nas músicas
■cantadas em português aparecem termos das línguas bantus (kicongo e
I lámbundo), e os nomes dos inkices ( divindades dos candomblés
poongo-angola) é uma constante.
! Outros elementos bantus sobressaem. A forma do caboclo fumar o
charuto, com a ponta acesa dentro da boca, comum entre as mulheres do
v,Zaire, é lembrada por descendentes dos povos bantus em vários estados
. brasileiros, como MG, SP, e RJ (v. Lopes, 1988:193s). O samba de caboclo
que acontece no final das festas, e que é uma resultante do samba de
roda, que por sua vez descende das antigas danças de roda de Angola e
Congo, tem como contraponto à umbigada das rodas de samba a
inclinação das pernas do caboclo em direção à pessoa escolhida para ir
ao centro do terreiro substituí-lo. Uma outra influência bantu, a capoeira,
• é observada no samba de caboclo através de movimentos corporais da
I dança do caboclo. Em contrapartida, tanto no samba de roda tradicional,
quanto na capoeira angola aparecem cânticos de caboclos presentes
' nos candomblés denotando uma interpenetração de influências de origem
’ bantu.
\ Outro exemplo da influência bantu é a forma do caboclo falar. As
' alterações fonéticas produzidas pelas línguas bantus no português do
ï; Brasil, como também a sacralizaçao de um léxico próprio dos terreiros
angolas tomam-se visíveis a partir do momento em que o caboclo se
1 manifesta e começa a falar. Isto acontece mesmo nos terreiros da nação
! iorubá, ditos puros, que cultuam os caboclos.
Por todos esses elementos apresentados é que nos parece
questionável a afirmação do surgimento dos candomblés de caboclo a
partir da cisão de um candomblé iorubá. Se isso fosse possível, como se
explicaria a presença de tantos elementos dos terreiros da nação angola?
Vale lembrar que a rivalidade entre as nações na cidade do Salvador é
secular, e não seria o simples aparecimento do culto aos “índios” que

89
faria com que os candomblés de origem nagô adotassem toda uma
simbologia da nação angola. Aceitar a interpretação da presença do
caboclo nos candomblés baianos a partir de um “cisma”, implicaria em
vermos o fenômeno no âmbito de um certo difusionismo cultural: um
determinado terreiro irradiando para todos os outros uma representação
“indígena”. Parece-nos, portanto, que essa representação constituiu-se
não a partir de um polo irra d ia d o r, mas, de uma maneira global em
inúmeros terreiros baianos, predominantemente os de nação angola.
A elaboração dessas representação teve como referência
elementos bantus, como ressaltamos acima, mas atendeu a objetivos
aparentemente bem definidos no processo de transformação dos
candomblés afro-baianos. Ou seja, o caboclo introduziu, no âmbito do
universo religioso afro-baiano, um discurso de valorização do elemento
autóctone que implica, ao nível do discurso dos adeptos, em uma
valorização da cultura indígena:

“Eu acho que é uma questão de ter consciência, que se


pode cultuar o caboclo. Que se tem que mostrar essa parte
brasileira em cima da cultura negra. (...) E como eles ( os
v índios) tiveram maiores oportunidades de segurar a sua
crença a sua religiosidade. Eles sumiram, né? “
A FESTA NO CANDOMBLÉ
Á M atança

\ Em geral, o sacrifício para os orixás, comumente denominado


matança, é feito na madrugada do dia da festa.
O tipo de animal a ser sacrificado depende do orixá. Pode ser de dois
ou quatro pés. Os animais devem ficar presos na véspera e, antes de
-entrarem para o local de sacrifício, devem ter lavados os pés, o focinho
cu o bico.
O sacrifício do animal é feito pelo axogum, auxiliar do pai ou
mãe-de-santo, cuja função específica é sacrificar os animais que serão
, oferecidos aos orixás. O sacrifício é acompanhado por cânticos em língua
' iorubá, para os candomblés de origem ketu, ou na língua quicongo ou
quimbundo para os candomblés de origem bantu.
O sacrifício para a festa do Caboclo é feito de modo diverso. Apesar
i de muitos terreiros fazerem a matança antes do sol nascer, há terreiros
' que a realizam à tarde, num horário que não ultrapasse as dezessete
I horas.
I As músicas que acompanham todo o ritual são cantadas em português,
I independentemente da nação do candomblé a que pertença o pai ou a
mãe-de-santo. No sacrifício para os orixás, canta-se não somente para o
íj orixá para o qual está sendo feita a matança, mas também para Exujá que,
ï: qualquer que seja o orixá a ser homenageado, Exu deve ser o primeiro a
• receber um animal sacrificado. Faz-se, primeiro, o sacrifício de um “ani-
) mal de duas patas” para Exu e, a seguir, dependendo das condições
materiais do terreiro, um “animal de quatro patas” para o orixá que será
/ homenageado com a festa. Na matança para o Caboclo, não se sacrifica
nem se canta para Exu. Todo o rito é dirigido única e exclusivamente para
o próprio Caboclo.
A figura do axogum, necessária no sacrifício ao orixá, é substituída

91
pelo próprio Caboclo, o qual, manifestado no pai ou na mãe-de-santo,
pega o animal, geralmente um galo, e, após, torcer o seu pescoço, crava
os dentes nele, bebendo o seu sangue. Não há necessidade de
intermediários : o próprio Caboclo é o imolador e o receptor do sacrifício. X
Segundo uma mãe-de-santo, “é muito difícil o Caboclo conceder o direito
de cortar o animal. Ele tem o orgulho de dizer “Não tenho pai, não tenho ^
mãe”, e não se curva a ninguém, mesmo sendo mãe-de-santo ou ogã”.
A separação das partes do animal que vão ser colocadas no
assentamento do Caboclo, já que estão carregadas de axé - força vital- é
feita pelo próprio Caboclo ou por um ogã.
Um traço distintivo do Caboclo com relação aos orixás é o tratamento
dado na matança às partes do animal sacrificado. Existem partes do corpo
impregnadas de axé - como, por exemplo, coração, fígado, moela, pés,
asas, cabeça e o sangue - que pertencem aos deuses (v.Elbein dos Santos,
1982:42, Bastide: 1961 ;21). Uma parte do que restou do animal sacrificado
é cozida e colocada em alguidás nos assentamentos dos orixás, e a outra
parte será consumida no fim da festa pelos presentes.
No que tange ao Caboclo, as partes do animal sacrificado não devem
ser cozidas. Para o povo-de-santo, há uma regra básica: comida de Caboclo
é crua, não se usando, portanto, azeite de dendê. As partes do animal,
quando não são cruas, são assadas na brasa. Em festas que observamos/X
as partes do animal foram assadas, tanto as que foram destinadas ao
assentamento do Caboclo, quanto as consumidas pelos presentes, no
final da festa.
Nesses dois tipos de rito temos, então, de um lado, as partes do
animal sacrificado cozidas para serem colocadas aos pés do orixá e, de
outro, as partes do animal sacrificado mantidas cruas ou sendo assadas
para serem postas no assentamento do Caboclo. Lévi-Strauss(1973)
mostrou que categorias empíricas como o “cru” e o “cozido” podem
servir de conceitos para distinguir noções abstratas. E, neste sentido, o
cru estaria para o cozido, assim como a natureza estaria para a cultura.
Desta perspectiva, é que no candomblé se constituiu uma proposição - a
imagem do Caboclo é a do ameríndio que come cru ou assado, mas
nunca cozido. E ntretanto, estas posições cru e cozido (e,

92
juentemente, natureza e cultura) não podem ser vistas de forma
ie, pois há Caboclos que, dependendo, de sua qualidade, poáom y
•carne crua oucõzidaT Assim se estabelece uma distinção no inte- ^
’do próprio universos dos Caboclos, entre aqueles restritos ao nível
tnatureza - ao que parece, a maioria deles - e aqueles poucos, cuja
idade faz com que tenham uma proximidade com os orixás e que, por
io, estão ao nível da cultura.

93
0 CANDOMBLÉ DO CABOCLO

As festas para os Caboclos acontecem à noite, apesar de haver


candomblés que as realizam no final da tarde.
A reaíizaçao de uma reverência, seja através de festas ou de uma
oferenda, é uma exigência da própria entidade:

“Meu caboclo, é exigente um bocadinho. Sempre eu


faço assim - amo uma salada, muita fruta, tipo assim uma
cabana pra ele (...) Se não for festa grande, ele prefere não
fazer.”
(R.S.D.)

Nem todos os terreiros de candomblé realizam festas para os


Caboclos. Os terreiros tradicionais, por exemplo, fazem reverências e
oferendas de forma deveras privada. O acesso a estes ritos é difícil.
Muitas vezes, nem os membros desses terreiros deles participam. Eles
são feitos, em um dia não divulgado, pela alta hierarquia do terreiro. A
sua divulgação colocaria em xeque a pretensão de “pureza nagô”
(cf Dantas, 1988) do terreiro e, consequentemente, a sua legitimidade
enquanto transmissor da herança africana.
Em compensação, os terreiros que dão festa, fazem-no de forma
bastante pública. Mesmo a matança, que constitui para muitas pessoas
de fora dos terreiros algo chocante, pela forma como se processa todo o
ritual, é feita em alguns terreiros à vista do público.
Os terreiros são ornamentados em estilo “brasileiro”. O teto do
barracão onde irá ocorrer a festa costuma ser enfeitado de bandeirolas
nas cores verde, azul e amarela, criando uma imagem semelhante à
bandeira do Brazil. Olhando para cima,é como se visse abandeira brasileira
cobrindo o barracão.
As paredes do barracão também são decoradas. Na festa do Caboclo
Rompe Nuvens, no Terreiro de Maramatamba, da nação Angola, havia
s de índios atacando animais - urso, cavalo, búfalo, veado - e

Í
ie diversos pássaros, destacando-se o tucano. Em outra festa
da, a do Caboclo Boiadeiro, no Terreiro de Xangô, da nação
desenhos eram do próprio Caboclo Boiadeiro, ou seja, a figura
iqueiro, de tez acoboclada, tangendo um touro,
omina na decoração a presença de frutas como por exemplo,
tçãs, bananas, melancias, abacaxis, laranjas, mangas. Elas são
idas por todo o barracão em pequenos arranjos,
as de palmeiras dão um certo destaque ao barracão,
n. i.csta começa com oPadê para Exu, obrigatório em toda festa de 1}

Cartiomblé, qualquer que seja o orixá a ser homenageado, e que também


'lia festa para os Caboclos se faz presente.
! O Padé, como j á referido, constitui o rito a ser celebrado para Exu.
Nenhum orixá pode agir sem seu Exu. Exu é o único capaz de transportar
tfa z e r aceitar as oferendas a seus respectivoso destinatários, mantendo
t relação harmoniosa entre os seres e as entidades sobrenaturais, o
equilíbrio entre os dois planos da existência e entre todos os componentes
do sistema religioso (v. Elbeindos Santos, 1982).
Convém ressaltar que alguns candomblés, nas suas festas de
i Caboclo, não fazem este ritual à vista do público presente no barracão.
Ele acontece num momento em que não haj a audiência.
Enquanto nas festas dedicadas aos orixás as músicas para Exu são
; cantadas na língua a que pertença o terreiro, na festa para os Caboclos
' elas são cantadas em português ou em língua bantu, seja qual for a
■ nação do terreiro. Este fato é deveras interessante, pois até os terreiros
: de origem ketu, considerados “puros”, cantam numa língua que não a
iorubá. Um fato curioso ocorreu numa festa para o Caboclo Boiadeiro,
em julho de 1990, num candomblé da nação ketu. A mãe-de-santo,
descendente direta da Casa Branca, uma das tradicionais casas de origem
ketu da Bahia, que não cultua explicitamente Caboclo, no momento em
que começou a cantar em língua bantu, mostrou que o seu repertório era
limitado, sendo necessária a ajuda de outras mães-de-santo que se
encontravam no barracão. As pessoas acompanham o ritmo dos
atabaques com palmas, repetindo os cânticos para Exu:

95
9 Bombôjira j a mu conguê
Yayâorerê
Bombôjiraja mu conguê
Yayâorerê
Bombôo gira cum dodô

Sai-te daqui aluvià


Aqui não é o seu lugar
Eu não quero ver-te aqui
Aqui é lugar de Apanaiá

Timbiriri v á tomar xoxô


Bombogira v á tomar xoxô, xô

Tendo a ekédi ou o ogã, auxiliares do p á ou da mãe-de-santo, levado


o despacho de Exu, passa-se ao rito do incensar o barracão.
O incenso é colocado numa pequena vasilha cheia de carvões em
brasa. A mãe ou o pai-de-santo começa incensando os atabaques e os
quatro cantos do barracão, e depois passa a vasilha com o incenso por
todos os presentes. As pessoas colocam as mãos sobre a fumaça, no
intuito de tirar as maus fluidos. Há terreiros em que se passa o incenso
pela sola dos pés, nas costas e na frente do coipo. As músicas refletem
a influência católica no rito:

Estou lavando
Estou incensando
^ A casa do Bom Jesus da Lapa

Incensa Incensador
A casa do meu avô

Nossa Senhora incensou o seu altar


Para o seu bendito cheirar
Dá licença nessa ádeia mãe santíssima
Pro mal sair e a felicidade entrar

96
*

Em muitos terreiros, após o incensar começa-se a cantar para


:Ogum, Oxóssi e Catendê (Ossãe):

Ogumdilê
Edeamoracê
Vira tatá
Viramungangaê
Éumxetruá

Oxóssi tales munzanguê


Oxóssi tales no ariê
Oxóssi tales munzanguê
Oxóssi tales no ariê

Catendê aiê
Catendê Catendê
ganga Catendê
Aruandaê

Cantar para orixá em festa de Caboclo é um marco nas diferenças


entre os terreiros de candomblés da cidade do Salvador:

“Eu não vejo porque cantar pra orixájá que é uma festa
de Caboclo. Na minha festa não tem porque cantar. E uma
irreverência cantar pro santo.. ”
(E.doE.S.)

Os terreiros que não cantam para os orixás, e nem mesmo para Exu,
são considerados por muitos adeptos do candomblé como aqueles que
fazem uma “Festa de Caboclo ortodoxa”. São os chamados Caboclos
puros. Convém lembrar que estes terreiros cultuam os orixás e realizam
festas em sua homenagem durante o ano. Já aqueles terreiros que fazem
festas para os Caboclos e oferecem explícitamente o Padê para Exu,
cantando depois para os orixás, são designados pelos candomblés de

97
Caboclospuros como “jalapacom batata1 Esta expressão, usada pelas
gerações mais velhas, significa tudo aquilo que é inventado, criado,
misturado, e que vai de encontro às práticas convencionais dos terreiros.
Estamos, portanto, diante de uma distinção sutil, que reforça o “respeito
às convenções” observado por Maiy Douglas(1976) no que tange à
pureza e impureza rituais. As práticas na Festa do Caboclo, e as
concepções que delas resultam, servem para diferenciar não apenas as
nações de origem ketu ou angola, mas os próprios candomblés que estão
arrolados nesta classificação. A caracterização de “jalapa corn batata” é
utilizada com relação a todo e qualquer candomblé que não faça uma
festa “pura”.
O cantar direto para os Caboclos, sem ter passado por outros cânticos,
é designado mediante a expressão “virar para Caboclo”.
Os cânticos são acompanhados por atabaques tocados com as mãos.
Essa forma de tocar atabaque é padrão do candomblé angola. Nos
candomblés ketu o atabaque é tocado com aguidavis, varetas de
goiabeira, tamarindeiro ou cipó duro. Contudo, nas festas aos caboclos
os atabaques são tocados com as mãos. Este fato é importante para
situar a influência dos candomblés de origem bantu nos candomblés
iorubás, já que é comum se notar o caminho inverso de influências, ou
seja, uma iorubanização dos candomblés angola.
Os cânticos iniciais aos Caboclos marcam uma primeira caracterização
da festa, não são cânticos de invocação, mas cânticos preliminares
acompanhados de danças aos Caboclos. Os cânticos não seguem um
padrão tradicional, como nas festas para os orixás, estando sujeitos a
múltiplas variações, de terreiro a terreiro. Encontramos, em vários terreiros,
cânticos que se assemelhavam únicamente nos versos iniciais. Novas
cantigas frequentemente aparecem, constituindo um repertório Caboclo.
Segundo Béhague (1976.132), isto não significa que se trata de cantigas
compostas, mas de uma transformação estilística por inovação, o que se
explicaria pela influência do candomblé angola, menos ortodoxo, nos de
“Caboclo”. O mesmo não ocorre com as nações ketu e gêge, cujo
repertório musical é tradicional e parece ter sofrido pouca mudança, ao
longo dos anos. Eis alguns desses cânticos:

98
Lá de cima
Vem descendo
Tm vezeiro

Tindorerê aê cauiza
Tindorerê é sangue real
Ele é filho, ele é neto da aruanda
Tindorerê aêcauiza

Cauizaéumiei
É um rei, real
Cauiza aêcauiza
Na hora de Deus amém

Lá naquela mata
Oh mata, oh mata
Matadeeteteia
Aonde o caboclo Jequiriçá
Lá na travessia
Oh das Matas, oh das Matas
Eu te avisei
Oh das Matas
Caboclo das Matas
Eu te avisei

Meu caipó guerreiro


Meucaipó, caipó ê

Emeu caipora
Minhajurema

99
A INVOCAÇÃO

A fase seguinte é o chamado ingorossi. Sinônimo de reza aos orixás,


o ingorossi é feito nos candomblés angola, com o pai ou a mãe-de-santo
no centro, puxando os cânticos. Na festa dos Caboclos, este ritual significa
a invocação aos Caboclos. Não se canta para os orixás. É um momento
bastante solene. Todo o ritual é feito na área em frente à “cabana” ou
“aldeia” dos Caboclos. Esta é armada no lado interno do barracão onde
ocorre a festa, ou no lado externo, onde está o assentamento do Caboclo
do pai ou da mâe-de-santo do terreiro.
Decorada com frutas as mais diversas dependuradas nas folhas que
a circundam, a “aldeia” possui imagens de ameríndios ou mesmo um
quadro com uma pintura de um “índio”, velas echarutos, abóboras cozidas
com tiras de frimo de corda, um prato depinduca (comida feita de milho
vennelho e que na Bahia é popularmente chamada lelê), cervejas, uma
tigela com zjurema.
A forma da “aldeia” ou do assentamento representa a leitura que os
adeptos fazem do que seja uma moradia indígena. Quase circular, com um
teto triangular, a “aldeia” dos Caboclos se destaca no espaço do barracão.
Antes do início do ingorossi, uma esteira é estendida em frente à
cabana. Mãe e filhas-de-santo sentam-se e começam a cantar, num ritmo
solene de reza. O ritmo dos atabaques é lento e baixinho, havendo
momentos em que não são tocados. Um pequeno instrumento
denominado caxixi é tocado pela mãe-de-santo. O caxixi é o mesmo que
acompanha o berimbau nas rodas de capoeira. A propósito, Edison
Carneiro (1981:30) afirmava que os candomblés que cultuavam Caboclo
no final do século XIX não tocavam atabaque, usando, apenas, o ganzá,
o berimbau e o chocalho. Tudo indica que, com o processo de legitimação
dos candomblés iorubás e a sua influência mesmo nos candomblés de
outras nações, o único referencial de instrumento que existia àquela época
fosse o caxixi. Assim mesmo, nem todos os candomblés o utilizam.
Nos cânticos do ingorossi, nota-se influência de um catolicismo popu-

100
mesclado com cânticos dos Caboclos:

Oh Deus vos salve


Oh Deus vos salve
Deus salve essa aldeia real

Gloria in excelsius
Caboclo é de vizaura
I
í'.

Deus vos salve cruz espada


I' aêaa
Onde Deus fez a morada
{ aeaa
Aonde mora o cálix bento
I aêaa
í' E a hóstia consagrada

j Enquanto rezam, a mãe e as filhas-de-santo esfregam as mãos uma na


j outra. O clima é bastante sóbrio, o que se explica pelo momento, em que
l o Caboclo está a se manifestar e há resistência das filhas-de-santo em
; incorporá-los. Em determinados cânticos, elas batem palmas très vezes,
compassadamente - abará ou abã - e, por fim, num ritmo rápido. Estes
gestos significam a saudação aos Caboclos. Os atabaques começam a
ser tocados num ritmo mais rápido, havendo uma quebra do momento
solene que até então reina. Os cânticos que acompanham este toque são
repetidos pelos presentes:

Aldeia
Aldeia de aritendê (repete-se três vezes)

A mãe e as filhas-de-santo continuam sentadas sobre a esteira,


mesmo com o ritmo mais rápido e convidativo para dançar.
O momento que observamos como a quebra da estrutura solene não
é contínuo, ou seja, a invocação volta ao seu início. Em determinados

101
cânticos, as mulheres sentadas sobre a esteira levam os dedos médio e
indicador à testa, fronte e nuca, num gesto semelhante ao observado no
Desfile do Dois de Julho, no momento a n que os Cairos do Caboclo e da
Cabocla ficam estacionados na Praça da Sé:

Jamburicá
Jamburicáêê

A mãe-de-santo volta a incensar a “aldeia” e o ritmo altema-se, entre


o frenético e o solene, da maneira típica que caracteriza ingorossi:

Deus me trouxe
Meu caminho é lá no Ayucá

Dá-me muzenza
Dá-me muzenza

Meu avô me dê licença


Para entrar neste ganzuá

102
A CHEGADA DOS CABOCLOS

f#;
f
Após um silêncio total, a mãe-de-santo oomeça a cantar, retomando o
; ritmo solene:

'i Seu curandeiro


\ Sua mesa épura
l Senhores mestres
Saber curar

i No momento em que os presentes repetem o cântico de invocação,


’ ela se dirige à “cabana” e destampa a vasilha que contém a jurema. Esta
[ bebida é servida numa cuia, e toma-se levando a cuia com as duas mãos
até a altura da boca. Este mesmo rito foi notado por Vandezande
! (1975:120s) no terreiro Palácio de Oxum, em Pernambuco, e num terreiro
, de Catimbó, na Paraiba. Ele se encontra presente também em Natal e
Maceió, como foi observadopor Cascudo (1949:20s).
i A jurema é feita da casca do caule ou da raiz da planta do mesmo
; nome - mimosa hostilis (Camargo, 198S). Após ser macerada, e colocada
t em infusão numa vasilha com água, mistura-se a ela mel, vinho tinto e um
I pouco do sangue do animal sacrificado na matança.
! O uso que se faz desta bebida no candomblé baiano vem de há muito
y
I tempo. O Diário de Notícias de 09 demaiode 1905 publicou umamatéria
\ acerca da invasão de um candomblé no qual foi encontrado entre outras
coisas, “um vaso com uma bebida a que dão o nome de jurema “
ji (Rodrigues, 1977(1933): 248). Possivelmente era um candomblé que
i cultuava Caboclo, pois tratava-se do “pajé” Manuel Maneta” (Id.).
; A referência ao “beber jurema” entre os índios encontra-se num
; documentode 1758 (v.Cascudo, 1949:20), bemcomoemKoster(1942:397s)
noséculo XDC Segundo Cascudo (1949:37),o tomar cauim na cuia,hábito
indígena, se assemelha ao tomarjurema dos candomblés de Caboclo.
No candomblé, ao mesmo tempo em que a jurema é servida canta-se:
Eu vou beber minha jurema
Dê no que dê
Lánopé dajuremeira
Dê no que dé
Seajuremaforboa
Dê no que dé
Aqui mesmo eu bebo
Aqui mesmo eu caio

A medida em que as filhas-de-santo tomam ajurema, o Caboclo de


cada uma delas se manifesta através do ilá, forte grito, que identifica a
sua personalidade. Carregada simbolicamente de axé, ajurema é, por
excelência, a bebida dos Caboclos. Como nos disse uma mãe-de-santo,
*** ‘f az parte da estrutura do Caboclo’". Em alguns terreiros da nação Angola,
antes de se beberjurema põe-se uma pitada de dandà na boca. O dandá
(Fiurema Umbellata) é a raiz de uma gramínea que, segundo Cascudo
(1949), quando introduzida na boca, abrandava o mau humor da pessoa
com quem se tratava negócio. A referência ao dandá se encontra em
documentos desde o século XIX. De acordo com Campos (1946:445), a
raiz era usada para curar olhados e afastar a inveja que uma pessoa
tivesse da fortuna ou felicidade de outra. Este dado também foi observado
por Manuel Querino(1938).
O dandá, como pó, é usado no candomblé, entre outros
ingredientes para se fazer o axé ao orixá particular. Segundo um
informante, “é bom para a saúde e usava-se comendo como o obi.
Na década de 30, as pessoas mais velhas botavam dandá na boca, é
afrodisíaco, dava tesão”. Usa-se também no axexê, cerimônia
fúnebre, ou em qualquer circunstância que envolva m orte,
mastigando-o para evitar os eguns.
A jurema e o dandá são também servidos à assistência da festa e,
caso a pessoa tenha Caboclo, a manifestação é imediata Por isso muitos
evitam tomá-los.
Após tomar ajurema, os Caboclos levantam da esteira e começam a
cantar e a dançar, saudando os presentes:

104
Boa noite camaradas da macumba
Boa noite da macumba eu venho dar
Sou da macumba eu não posso negar

Se é Caboclo vem aqui me ver


Se é Caboclo porque veste pena
Venha ver a força que tem na jurema
Gostou do indio porque não vem ver
Se é Caboclo vem obedecer
Se é Caboclo porque veste pena
Venha ver a força que tem na jurema

Sou Caboclo
Sou guerreiro
Me criei nas umburanas
Eu me chamo Tupinambá
J á minha mãe é uma cobra cairana

Neste momento da festa, os Caboclos cumprimentam, inicialmente,


as pessoas mais velhas na hierarquia do terreiro, depois os ogãs, filhos e
fílhas-de-santo e, por fim, os assistentes.
Ocorre que, como as festas são dadas para o Caboclo do pai ou da
mãe-de-santo, este centraliza as atenções, puxando os cânticos e
dançando sozinho. Os outros Caboclos manifestados ficam num canto
do barracão, aguardando a sua vez de dançar, o que ocorre a partir da
chamada do “dono da festa”. Notamos a presença de um Caboclo
chamado Caipora que, quando dançava, o fazia com uma perna só. Desta
forma, ele se identificava:

Emeu caipora
Minha jurema êê

Ai ai aicaipó
Ai ai ai meu Jesus

105
Habitante das matas, o Caipora, personagem mítico vivo na memória
popular, transforma-se, no candomblé baiano, num Caboclo. Deve-se
notar aqui uma recodificação, ao nível simbólico, de um elemento extraído
da mitologia brasileira, já queo Caipora é considerado “senhor das matas”,
tem feições de “índio” e é protetor do caçador, se dele recebe fumo.
Como estes elementos estão presentes na caracterização do Caboclo,
compreende-se que existe uma “lógica” do sistema religioso afro-baiano
em elevá-lo à condição de Caboclo.
A SAÍDA PARAMENTADA

Num determinado momento, a festa é interrompida, para que os


Caboclos possam ser vestidos. O que ocorre neste intervalo varia de
^terreiro para terreiro. Alguns não tocam os atabaques até os Caboclos
voltarem, criando um clima de expectativa. Outros continuam a tocar sem
a presença de nenhum Caboclo. Contudo, duas ou très ekedis
permanecem dançando, num clima descontraído,
O retomo dos Caboclos ao barracão é feito em fila, com a mãe pequena
à frente, dançando. Logo depois, vem o Caboclo do pai ou da
mãe-de-santo do terreiro, que está sendo homenageado com a festa.
Atrás dele vêm vários Caboclos que se manifestaram a partir do ingorossi.
Sendo ou não membros do terreiro, lhes é permitido “ser vestido”.
A roupa do Caboclo “dono da festa “ representa a visão do povo do
candomblé acerca do ameríndio. Ele possui um cocar de pena de pássaros
que, a depender do Caboclo, pode ser imenso e ir até o chão. Tanga,
bracelete e tomozeleiras também feitas de penas compõem a roupa do
Caboclo. Há uma ostentação de cores as mais variadas. Geralmente ele
traz uma imensa flecha nas mãos.
Os outros Caboclos ou estão vestidos à semelhança do Caboclo
“dono da festa”, ou vestem-se de forma simples, com ojás estampados
em cores diversas. O ojá é uma faixa de pano usada no busto e com um
laço no final. Ela é usada também pelos orixás. A diferença do ojá do
Caboclo com relação aos dos orixás é que a cor destes varia conforme o
orixá, enquanto o do Caboclo é estampado, denotando as cores da mata
ou mesmo, através do verde e amarelo, as cores da bandeira do Brasil.
Os ojás também são amarrados ao redor dos atabaques ou em árvores
sagradas. É comum, nas festas para Caboclos, colocar-se nos atabaques
um ojá colorido ou nas cores verde e amarela.
Nos homens, o ojá é amarrado sobre o peito nu e, nas mulheres, sobre
a blusa ou o vestido. Convém notar que, quando o ojá do Caboclo está
meio desamarrado, não se toma necessária a presença de alguém, para

107
ajudá-lo, como aconteceria se fosse um orixá. Ele mesmo ajusta-o, à vista
do público. Este gesto simbolicamente revela a personalidade altiva de
uma entidade que “não tem pai nem tem mãe” e que, portanto, pode X
realizar atos sozinho, já que, comodiz um verso de uma música sua, “só,
só eu venho só”.
A festa continua, agora com os Caboclos vestidos. Estruturalmente,
ela se diferencia do momento posterior à “descida”, já que, depois de
todos os Caboclos entrarem no barracão, cada um deles irá dançar sozinho,
enquanto os outros Caboclos que se manifestaram ficam quietos num
canto, aguardando a sua vez de dançar. Esta parte do rito também ocorre
nas festas dos orixás. O povo de-santo diz que se trata de “levar o santo
para tomar rum”, sendo rum o nome de um dos très atabaques. O uso
metonímico do tomar rum figura a importância dos atabaques no conjunto
do rito, algo como o instrumento primordial da comunicação entre dois
mundos e o vínculo de axé.
Quem geralmente começa a dançar é o Caboclo “dono da festa”. Ele
mesmo tira as músicas, chamando a atenção de todos os presentes, que
repetem animadamente os cânticos:

Eu não sou filho daqui


Eu sou filho do rio azul
Sou neto das águas claras
Do abaeté do catu
Oramatiteê
Oramatiteá

Caboclo tá no mato
Tá comendo sapucaia
Maia dendê Caboclo
Maia dendê

Nasci das matas


Eu não tenho medo
Debaixo das matas
De que vou temer

108
Quando o Caboclo “dono da festa” já dançou o bastante e se cantou
o suficiente para homenageá-lo, os Caboclos que permaneciam quietos
são chamados, um após o outro, ao centro do barracão, para “tomar
rum”. Muitos dançam junto com o “dono da festa”, homenageando-o:

Caboclo brincar saudou


Ai, ai saudou

Sou eu que durmo tarde


Sou eu que acordo cedo
Sou eu que durmo na rua
Sozinho não tenho medo

O ritmo das danças e cânticos é marcado por uma influência do


candomblé Angola. No entanto, ocorre uma variação no decorrer da
festa, com a introdução do samba de Caboclo. No samba de Caboclo a
participação é crescente, na medida êm que o próprio Caboclo que estiver
dançando tira alguém para sambar no meio do barracão. O convite é feito,
em meio ao samba, através de um gesto corporal, que pode ser um inclinar
de ombro ou um dobrar da perna na direção da pessoa que deve dançar.
Muitas das músicas do samba de caboclo são encontradas nos
sambas de roda ou em rodas dé capoeira:

Oliveira, oliveira
Paraná
Eu também sou oliveira
Paraná

Bate na mão quem quiser vadiar


Eu sou de Minas Gerais

A transposição dessas cantigas para uma festa religiosa serve para


demonstrar um entrecruzamento de gêneros musicais que está presente
em outras manifestações regionais de origem afro-brasileira. É evidente

109
que há uma apropriação no sentido de fínnaro caráter brasileiro da festa
do Caboclo, o que se compreende na medida em que se nota nas letras
uma explícita reafirmação do Caboclo como entidade autóctone.
Assim como o Caboclo inicia o seu próprio samba, ele mesmo
interrompe-o, voltando ao ritmo convencional. Ele é quem dá o tom e
dirige a sua própria festa, a partir do momento da manifestação. Esta
autonomia faz com que a entidade envie “mensagens” a alguém presente
ou a toda a audiência através de cânticos. Estas “mensagens” são
denominadas de sotaques. O sotaque é a forma que cada Caboclo tem de
\ ('h expressar sua autoridade e independência, e que encontrasimilaridade
nos cânticos dos repentistas nordestinos. As mensagens do sotaque
são transmitidas sem rodeios, pois “o caboclo é muito direto, não tem
meias palavras” :

Meu compadre São Gonçalinho


Meu compadre São Gonçalão
Coma comigo no prato
Mas não me faça traição

Para os ogãs que estão muito arrogantes, “cheios de si”, há um sotaque :

Ogâ, ogã
Euvoujogarproar
Eu jogo você não joga
O meu telhado pro ar

Através do sotaque, o Caboclo faz previsões, por meio das quais é


possível apreender um determinado conteúdo moral:

Quem pensa que o céu é perto


Quem nas nuvens quer pegar
As estrelas estão sorrindo
da queda que vai levar

110
A continuidade da festa dá-se com a alternância entre cânticos e
danças de Caboclo e o citado samba de Caboclo. Nesta parte, é comum
os Caboclos de pessoas que fazem parte da audiência se manifestarem e
serem levados para fora do barracão, no intuito de por-lhes um ojá para
que possam posterionnente dançar.
A manifestação dos Caboclos nem sempre é tranquila. Muitas vezes
a mãe ou o pai-de-santo provoca a “descida passando um pano branco,
alá, nas cabeças dos filhos ou filhas-de-santo. O transe varia entre uma
incorporação imediata do Caboclo e estágios intermediários até a sua
completa “descida”. Quando o Caboclo não incorpora de vez, geralmente
a mãe ou o pai-de-santo fica ao lado da pessoa, segurando-a pelo braço,
“provocando” o Caboclo, dizendo-lhe ao ouvido “xetro marombaxetro”.
que é a saudação aos Caboclos. A incorporação é inevitável. Ao segurar
o braço dos “resistentes”, o pai ou a mãe-de-santo nada mais faz do que
exercer a plena autoridade que o candomblé lhe confere. Ofeto do Caboclo
não demorar a incorporar, a partir do momento em que ele(a) o invoca,
legitima, perante a comunidade e todos os presentes, a sua condição de
liderança, reafirmando o significado do título hierárquico a que tem direito.
E esta liderança só irá desaparecer na hora em que o seu próprio Caboclo
se manifestar: a partir de então, quem manda no lugar é ele, o Caboclo.
Um outro rito importante é a distribuição de frutas e comidas, que tem
um momento determinado para acontecer. A comida - geralmente partes
assadas do animal sacrificado, acrescidas de arroz branco - é servidafora
do barracão, num espaço mais interno do terreiro, que pode ser uma sala
ou a cozinha. E isto ocorre quando a festa está em pleno auge, com o
samba de caboclo ocorrendo no barracão.
As frutas, por outro lado, estão num espaço público, o barracão, e lá
mesmo são distribuídas. Em alguns terreiros, elas são pegas pelo Caboclo
“dono da festa” e arremessadas para as pessoas, causando um certo
frisson nos presentes. Alguns levam as frutas para casa, enquanto outros
comem-nas ali mesmo. Não existe um momento determinado para ocorrer
este rito. Há terreiros em que a distribuição de frutas ocorre no final da
festa. Outros fazem-na logo após a saída dos Caboclos vestidos com
suas respectivas vestimentas “ indígenas”, como por exemplo o Terreiro

ui
Pena Branca, da nação angola, cujo patrono é o Caboclo que dá nome ao
A MESA DE JUREMA

Existem terreiros que realizam um rito denominado “Mesa de Jurema”.


Este rito substitui a Festa do Caboclo, ou é feito no dia posterior à
própria festa, como ocorre no Terreiro Pena Branca.
A “Mesa de Jurema” constitui um rito que contémfases da própria
Festa do Caboclo, como o padé para Exu, o incensar do barracão, o
cantar para os Caboclos, o beber jurema e o virar para samba de Caboclo.
O ingorossi em alguns terreiros também é realizado na “Mesa de Jurema”;
entretanto, há terreiros quenãoorealizam, o que faz com que os Caboclos
desçam a partir do momento em que se começa a cantar para eles. Na sua
estrutura, tanto a Festa quanto a Mesa de Jurema se assemelham. A
diferença está no aspecto distintivo da Festa que, para os adeptos,
significa uma festa semelhante à do orixá, com toda a sua ostentação. Na
maioria dos terreiros, porém, a “Mesa de Jurema” é um rito simples, sem
a pomposidade das festas. Entretanto, no Terreiro Pena Branca ela adquire
uma suntuosidade que à primeira vista não parece diferir das Festas dos
Caboclos, como veremos a seguir.
Após a segunda saída, o Caboclo “dono da festa”. Pena Branca,
veio com o vasilhame que continha ajurema sobre a sua cabeça, o que
constitui para a mãe-de-santo deste terreiro um verdadeiro “fundamento”
de Caboclo. Outros Caboclos vinham atrás, com alguidás contendo
bananas, melancias, mangas Jambos. Traziam também uma garrafa de
mel, um prato de amendoim, champagne e cervejas. Dançaram em círculo
e colocaram uma toalha branca no meio do barracão, sentando-se depois
ao redor dos pratos e alguidás que tinham sido arrumados sobre a toalha.
No centro da “mesa de jurema”, o Caboclo “dono da festa” centralizava
o rito, fazendo orações com palavras supostamente de origem tupi,
enquanto o público entrava em frenesi, aplaudindo-o e saudando-o com
a costumeira expressão “xetro marombaxetro”
Um fato sobressaiu na “Mesa de Jurema”. Depois de pegar uma
abóbora cozida que estava sobre um alguidá, o Caboclo encheu-a com

113
tiras de fumo e bastante mel, e serviu tanto seus companheiros Caboclos
quanto aquelas pessoas da audiência que quisessem comer. Este foi foi
um detalhe muito curioso, pois a expressão que o povo-de-santo usa,
“dar comida ao Caboclo” ou “dar comida ao santo”, até então possuía
um sentido metafórico, indicando as oferendas dadas a essas entidades.
Para além da metáfora, ela adquiria um significado concreto, indicando,
ademais, uma dimensão essencial envolvida no rito, a reciprocidade.
A reciprocidade continuaria com a jurema sendo servida tanto aos
Caboclos quanto aos presentes no recinto. Além desta bebida, os
Caboclos costumam beber cerveja quente, oferecendo-a a quem queira
compartilhar dela. Ocorre, por vezes, por parte destas entidades uma
brincadeira com as pessoas às quais venham a oferecer a cerveja. O
Caboclo pede para alguém abrir a boca, no intuito de introduzir a bebida.
Entretanto, quando tudo leva a crer que o espectador vai beber, o Caboclo
retira a garrafa, provocando risadas da audiência. Estes gestos reiteram o
caráter lúdico presente nos atos dos Caboclos. Convém também lembrar
que a presença de bebidas durante as cerimônias é uma prática que não
se restringe a Salvador. Como notou Leacock ( 1964), ela se encontra em
terreiros de cidades como São Luís e Belém, apesar dos terreiros mais
ortodoxos não terem este hábito, pois os seus cultos são reafirmados
como de origem africana.
Um aspecto importante que gostaríamos de ressaltar é a participação
dos presentes na Festa do Caboclo. Como deixamos claro, a audiência
não só é convidada a beber da jurema, tendo, portanto, acesso à bebida
sagrada, como também pode sambar a partir de uma iniciativa do Caboclo.
Vale ressaltar que o samba de Caboclo volta a ocorrer em vários
momentos, tendo predominância no final da Festa.
Não é difícil perceber que estamos diante de uma entidade que possui
um relacionamento mais próximo com seus adeptos. O Caboclo canta,
bebe e dança, ao contrário do orixá, cuja festa possui um caráter, por
assim dizer, mais solene.
Ao dizer que o Caboclo é o “dono da terra” e que “as pessoas gostam
mais da festa de Caboclo porque é mais participativa”, o povo-de-santo
da Bahia nada mais faz do que expressar a sua própria concepção do que

114
seja uma festa. É como se estivessem implicitamente falando deles mesmos
e para si mesmos, no sentido em que Geertz (1978) sugere, através de
todo um ritual que se reporta à imagem dos primeiros habitantes do
Brasil. O “índio” é a referência e sua representação a todo o momento se
reitera. A festa do Caboclo toma manifesto um discurso voltado para o
interior da própria comunidade afro-baianaiecriando uma espécie de
“forest comunity” (cf.Wafer, 1991:129), onde é destacado basicamente o
que é específicamente do “índio”. Cria-se, portanto, um elo de
solidariedade com o ameríndio, ensejando ao nível ritual, um encontro
entre elementos próprios do culto aos orixás e aqueles elementos criados
a partir de uma representação indígena. Em suma, essas considerações
indicam uma reflexão, num plano mais implícito, do que deveria ser a
relação entre grupos subalternos na hierarquia social brasileira.

115
AS SESSÕES DE GIRO

Além das festas, uma outra cerimônia religiosa pública envolve o


caboclo. É a conhecida “sessão de giro” ou “sessão de caboclo”. Ela
acontece no barracão do terreiro, onde geralmente ocorrem as festas, ou
em alguma sala da casa onde está instalado o terreiro.
Os caboclos descem, nessas sessões, no corpo do pai ou da mãe de
santo, no intuito de dar consultas.
As sessões são realizadas de 15 em 15 dias, em um dia da semana que
pode ser segunda, terça, quarta ou quinta-feira, a depender do terreiro, à
noite, com o início previsto para 20 hs, e terminando em tomo das 23 hs.
Apesar da estrutura básica das sessões ser da tradição afro-brasileira,
nota-se a presença de elementos católicos e kardecistas. Na mesa em que
o pai ou a mãe de santo se senta e inicia a sessão, vêem-se, em alguns
terreiros, imagens de santos católicos. Além do mais, incensa-se o espaço,
e orações católicas ou espíritas, como a “Prece de Charitas”, são lidas no
início da sessão. Ainda com relação à influência espírita, há um copo
d’aguaem cima da mesa, e ocorrem os chamados “passes” dados pelos
caboclos, com o objetivo de “limpar espiritualmente o astral” das pessoas.
A influência espírita nas sessões de caboclo de Salvador já tinha sido
notada por Edison Carneiro. Dizia ele serem “cópias servis das sessões
espíritas, complicadas com o aparecimento de orixás dos candomblés
afro-bantos, fantasiados de selvagens, a dançar e a cantar”(l 981:181 ).
Interessante observar que, se nas sessões de giro há influências
espíritas, nas sesões espíritas de mesa branca há um preconceito contra
a presença do caboclo. Ortiz( 1978) observa que Benjamim Figueiredo, ao
iniciar o movimento de “empretecimento” do kardecismo, com o
recebimento do seu caboclo Mirim, índio brasileiro, foi impossibilitado
de continuar o seu trabalho, já que consideravam aquele espírito por

116
demais impuro para desenvolver o progresso da humanidade(p.38). Essa
discriminação que sofrem os caboclos no kardecismo explica-se pela sua
origem social. Assim como no caso dos pretos velhos, a “falta de cultura”
dos caboclos é desaprovada socialmente, fazendo Gom que essas
entidades sejam impedidas de entrar nos rituais kardecistas(v. Brown,
198õ:20ss).
A influência marcante da tradição afro-brasileira nas sessões é
notada pela forma do transe do caboclo, pela dança, músicas, número de
caboclos ou a presença do orixá Oxóssi, que às vezes “desce” nas sessões.

117
A DISTINÇÃO COM A UMBANDA

As sessões no candomblé são muito frequentadas e assim como na


Umbanda(v.Coneone, 1987; Ortiz, 1978; Brown,1986; De Celso, s.d.;
Montera, 1985; Magnani, 1986), sao da predileção dos adeptos,
principalmente quando o caboclo se manifesta.
O que separa as sessões de giro do candomblé baiano da umbanda é
o estabelecimento de um funcionamento burocrático. Na umbanda, an­
tes de ser iniciada a sessão, as pessoas recebem fichas para serem
atendidas em fila pelo caboclo que elas vierem a escolher. No candomblé
baiano não há essa organização, pois o caboclo costuma chamar as
pessoas para conversar, sem ter uma ordem de funcionamento. Além do
que, as sessões são centralizadas no caboclo dopai ou da mãe de santo
do terreiro.

118
UMA SESSÃO DE CABOCLO

Observamos uma sessão de caboclo num pequeno terreiro, Terreiro


de Mutá Lambô, nação Angola, localizado no bairro de Brotas, em Salva­
dor. A sessão iniciou-se às 20:Q0hs e estendeu-se até as 24:00 hs. A
assistência, em tomo de 30 pessoas, na sua maioria jovens, era também
composta por futuras filhas de santo do terreiro. Pudemos notar très
fases que compunham todo o ritual.
Inicialmente o pai de santo, sentado numa mesa forrada com uma
toalha branca, e acompanhado de três mulheres iniciadas no candomblé,
fez a leitura de um poema de um índio (anônimo), que falava sobre a sua
luta e a expulsão da terra pelo homem branco. Sobre a mesa branca, um
copo d’agua, colares de contas dos orixás do terreiro - Oxóssi, Ogum,
Oxalá -, ferramentas destes orixás e folhas. Após 1er o poema, com os
presentes a uma certa distância da mesa e em pé a aplaudir, o pai de santo
leu a Prece de Charitas, benzeu-se na forma católica e passou a entoar
cânticos de caboclos, ao som de um adjá tocado por uma ekédi :

Tavanomato
Tava no mato escondidinho
Tavano mato abaixadinho
Você me chamou
Tava no mato aqui estou

Todos os cânticos eram repetidos pelos presentes e acompanhados


por palmas e não por atabaques.
A segunda fase do ritual teve início quando o pai de santo entrou em
transe, com a chegada do seu caboclo,' Tupiaçu. Este, ao chegar, emitia
um som forte, ao dizer, de forma bastante violenta “iza^za” Ao pronunciar
estas palavras, as pessoas batiam palmas. Era o sinal de que o “dono da
sessão” tinha chegado. O caboclo se levantou da cadeira, começou a
cantar e dar passes espirituais em cada um dos presentes. Enquanto isso

119
acontecia, todos os presentes repetiam as músicas.
Nesse momento é que ocorre o chamado “sacudimento” . As folhas
que estavam em cima da mesa - usa-se folhas de murici, candeia, arueira,
capeba - foram pegas pelo caboclo para serem passadas no corpo de
cada um dos presentes.

“Tem que ser sete folhas diferentes, sendo très galhos


de cada:corana, aroeira, “folha do Velho”, birreiro, espada
de Ogum, espada de Oxóssi (diferentes da de Ogum porque
tem friso branco), espada de caboclo que as pessoas
chamam peregum (Dracaena fragans) “
(AM.de C.)

Carmem Ribeiro (1983:76) explica o sentido deste rito: “os caboclos \


se utilizam do sacudimento, isto é, um feixe de folhas bem verdes, que
também varia para cada tipo de problema. Esses sacudimentos são
utilizados para retirar influências negativas, tanto das pessoas como de
habitações, frequentemente de casas onde tenha falecido alguém ou
haja pessoas doentes, e nos casos de problemas financeiros e
atrapalhações de vida de um modo geral”.
No momento em que o caboclo começa a cantar e dar passes ocorre
de pessoas entrarem em transe. Muitas vezes o transe não ocorre, nada
mais sendo do que um “barravento”, o que significa não ter havido uma
incorporação da entidade de modo completo. Leve-se em conta que essas
pessoas não são membros do terreiro e são iniciantes no candomblé.
A terceira e últimafase da sessão é o que poderíamos chamar de ação
terapêutica. O caboclo dirigiu-se à varanda da casa e cada pessoa que
quisesse ia conversar com ele. Esta ação dava-se em forma de conselhos,
métodos de cura de doenças, esclarecimentos e soluções sobre as
dificuldades do cotidiano, já que as pessoas vão à sessão em busca de
soluções para os problemas amorosos, familiares, financeiros,
desemprego, etc. Geralmente o caboclo dava conselhos e recomendava
ao consulente fazer um “trabalho” no terreiro. A conversa com o caboclo
durava em tomo de 20 minutos. ’A medida que as pessoas terminavam a

no
conversa com “ seo” Tupiaçu, elas saíam e íam embora.
No final da sessão, após todos conversarem com o caboclo, foi servido
um munguzá feito de milho branco.
Os membros dos terreiros que realizam sessão de giro fazem questão
de ressaltar que o trabalho do caboclo não é de forma alguma cobrado.
Esta caridade, que segundo Diana Brown(1986), forma “the core of social
praxis”, pois é “a interface entre o sentido religioso e a prática social”,
também deve ser entendida como um elemento de agregação dos terreiros.
É através das sessões de caboclo que muitos terreiros baianos foram e
são formados, e se “desenvolvem” para usar um termo corrente nos
candomblés. As sessões têm como objetivo aglutinar os clientes
potenciais e/ou futuros membros dos terreiros, através de práticas do
caboclo, que terão um papel fundamental no “desenvolvimento” do
tenreiro. Afinal de contas, a eficácia de seus conselhos e curas dar-lhe-á
prestígio na comunidade onde o terreiro está inserido e,
consequentemente, o prestígio se estenderá ao pai ou mãe de santo a
que pertence o caboclo. Desse modo, nota-se um profundo significado
social nessas sessões.
Nas sessões que examinamos, destaca-se o pacto que se estabelece
entre os indivíduos presentes, sejam membros ou não do terreiro que
participam durante todo o ato, de maneira silenciosa ou, ao contrário,
repetindo cânticos, com todas as atenções voltadas para o caboclo,
considerado por todos com o maior respeito. O respeito ao caboclo é
algo levado a sério, pois esta entidade não admite que, na sua sessão,
haja desordem. Numa das sessões observadas quando uma mulher entrou
em transe convulsivo e foi levada para o interior da casa, algumas pessoas
se retiraram para a varanda e ficaram conversando, pois a sessão tinha
sido interrompida. O fato ocasionou a ira do caboclo que, chamando
todos que estavam na varanda para dentro da casa, disse que, se tinham
ido à sessão era para ficarem dentro do recinto com seriedade. Todos
ficaram cabisbaixos. Com a sua autoridade reconhecida, “seo” Tupiaçu
falava, em alto e bom som, que quem estava ali era ele, e não o pai de
santo.
As atenções que dominam todo o ambiente parecem ser um ponto

121
fundamental na efetivação do próprio rito, revelando nesse instante uma
convergência entre o agente do rito, o caboclo incorporado no pai ou
mãe de santo, e o conjunto das pessoas ali presentes. Destaca-se,
portanto, uma “colaboração mágica”, entre o caboclo e a assistência.
Trata-se de todo um meio social que se emociona só porque num de seus
setores realiza-se um ato mágico. Forma-se em volta deste ato um círculo
de espectadores apaixonados, que o espetáculo imobiliza, absorve e
hipnotiza, e que, tanto quanto espectadores, sentem-se também atores
de uma “comédia mágica”, como o coro no antigo drama (v.Mauss,
1974:160). A empatia se instala, dando conta de que o “índio” brasileiro,
com seu conhecimento, poder e força está inserido naquele espaço, e a
sua presença deve ser vivida e glorificada.

122
0 * CABOCLO ERU:
O Canibalismo Simbólico

Existe nos terreiros de candomblé de Salvador, notadamente os da


nação angola, um caboclo denominado Eru. Este caboclo possui uma
singularidade que o distancia de todos os demais caboclos, na medida
em que ele é explicitamente caracterizado como canibal.
Nas festas para caboclos, quando Eru se manifesta, a primeira
providência dos membros do terreiro é afastar as crianças e animais,
como o cachorro, do espaço onde a festa está sendo realizada,
escondendo-os deste caboclo. Segundo os adeptos do candomblé o
caboclo Eru é um “caboclo selvagem, que come criança e animal” e que
“não é batizado”, ou seja, ainda se encontra num estágio “bárbaro”.
Desse modo, as crianças e animais têm que ser retirados, pois senão ele
pode estraçalhá-los para comer. Convém notar que, quando o caboclo
Eru se manifesta, as suas mãos simulam um arco e flecha ou uma lança
posta em direção a algum alvo, seja uma criança ou animal que se encontrem
presentes ou, na ausência destes, em um ponto imaginário do espaço.
Os olhos da pessoa que está manifestada com o Eru ficam
completamente abertos e ameaçadores. A sua dança demonstra que está
atacando e lutando bravamente com uma lança ou um arco e flecha contra
algo que por fim vence.
Quando o caboclo Eru se manifesta, os membros do terreiro tratam
logo de trazer um grande pano branco, o alá de Oxalá, no intuito de
impedir a sua violência. O alá de Oxalá é aberto pelas pessoas um pouco
acima da altura da cabeça do manifestado, provocando no caboclo a
“calmaria”, e fazendo com que ele dance e simule as suas características
violentas sem nenhum constrangimento na festa. Segundo E.E.S., o uso
do alá de Oxalá, como uma maneira de conter o ímpeto de Eru, “é um
pedido de misericórdia a Oxalá”.

123
Todos os seus movimentos são acompanhados pela audiência que
canta, reiterando a sua condição de “caboclo”.

“ Em
Eu sou caboclo
Eusouéum E ru“

O significado da palavra Eru no contexto litúrgico em que o caboclo


se manifesta é de difícil precisão. Em, em iombá, significa um grande
pacote que se faz no último dia do axexê com os “assentos” e objetos
que pertencem ao morto, além de tudo mais que foi usado nessa cerimônia
fúnebre (cf.Abraham, 1958 ). Essa carga é “despachada” em lugar
determinado pelos orixás -rio, mar, mata, etc. - levada por sacerdotes
preparados, pois é muito perigosa, já que pode estar acompanhada por
espíritos malévolos(v.Cacciatore, 1988).
O segundo sentido que Olga Cacciatore dá ao termo não se adequa
ao candomblé baiano. Ao contrário de serum espírito de caboclo mau, X
“bravo”, que “desce nos torés nordestinos, para perturbar afunção (festa)
- e a autora se vale dos significados de desonesto, misturador de coisas,
desordenador, que a palavra iombá transmite - o Em que se manifesta em
candomblés baianos é tido como um caboclo distinto dos demais, com
características que requerem cuidados. Afinal de contas, nenhum outro
caboclo ameaça estraçalhar crianças ou animais. Por isso que se nota
nos adeptos do candomblé a ênfase de que o caboclo Em não é
“doutrinado” ou “domesticado”, havendo necessidade de “transformá-lo”
num caboclo como outro qualquer. Neste sentido, compreende-se porque
existem terreiros de candomblé que realizam sessões para ele “descer”.
Para os adeptos do candomblé baiano não constitui nenhum problema
existir no panteão um caboclo que difere dos demais por ter caracteres
canibais. Pelo contrário, muitos terreiros rendem homenagens a este
caboclo, assentando-o e/ou realizando festas anuais.
A sua “origem”, dada como “tupi”, nada mais faz do que reiterar a
visão da existência de canibalismo entre “os mais ferozes” desse grupo.
Nesse sentido compreende-se também a necessidade de definir um espaço

124
legítimo que, ao nível simbólico, permita a este “canibalismo” se
manifestar.
Podemos observar que, se, por um lado o “canibalismo” implica
uma descontinuidade no sistema religioso afro-baiano, j á que nenhuma
outra entidade, seja caboclo ou orixá, manifesta esta tendência, por outro,
ele se insere nesse mesmo sistema no campo do-sacrifício. O sacrifício,
ou matança, que se faz aos caboclos implica num estraçalhar de um galo
pelo próprio caboclo, sendo as partes do animal posteriormente assadas.
Em relação ao caboclo Eru, estas mesmas partes não são assadas, já que
“ele come carne crua” Entender a existência do que chamo de “canibalismo
simbólico” no candomblé baiano implica não só vê-lo como uma
representação de práticas canibais tupis, como também situá-lo além do
sistema religioso em que está inserido. O que o caboclo Eru manifesta
nada mais é do que representações que estão contidas na sociedade
abrangente. A sua existência permite ver que, se esta sociedade recusa
terminantemente o canibalismo de qualquer espécie, o sistema religioso
afro-baiano resgata-o simbolicamente. “ Estraçalhar” crianças ou um
animal como o cachonro significa estabelecer uma fronteira tênue entre o
humano e o animalesco, onde o que está em jogo é a sobrevivência, a
fome, o comer.

125
MARUJO:
Um Inebriado Mercúrio

Marujo é uma entidade que se destaca por ser um somatório de


caracteres de outras entidades como Exu, Caboclo, ou mesmo ser definido
precisamente como um espírito ancestral.

tem três partes. Responde Caboclo, Exu,

Estes traços característicos de Marujo significam que ele é egun pois

“ É um espírito de marinheiro que morreuna guerra”


(N.C.)

Por outro lado, a proximidade com a categoria caboclo advém do fato


de que pode conversar com os presentes, dando-lhes soluções para os
problemas cotidianos. Além do mais, as suas festas estruturalmente
se assemelham às dos caboclos. Entretanto, para muitos lideres dos
terreiros, Marujo se distancia dos caboclos, na medida em que seu
comportamento verbal, falando palavrões, fato nada corriqueiro no
candomblé, não condiz com a imagem do índio brasileiro que, em
momento algum, “ xinga”.

“ Mas o Marujo não é caboclo. Ele é uma pessoa que


desencarnou e voltou para uma certa missão. Tem muitos
que dão palavrão. O caboclo não xinga, se ele xinga ele é
um espírito. Eu tenho para mim que Marujo é um espirito.
(...) Tem uns que dizem a data da incorporação na Marinha
o lugar, se é da Espanha ou de outro lugar. Ele diz o número
da barca, o nome dos pais, a descendência dele de matéria.
x Eu não posso dize que é caboclo, é um espírito, que não
seja um egun perturbado” (RS.D.)

126
Mesmo fazendo questão de diferenciá-lo dos caboclos, muitos
adeptos nos diziam da capacidade de Marujo manifestar características
tanto dos caboclos como de Exu.

“Ele, (Marujo), diz que, quando quer, é caboclo. Ele

X pode ser Exu, quando ele quer ser. Vai até embaixo do mar,
bem mais do que Exu. “ (N.C)

Essa possibilidade de transformação adviria, segundo os adeptos do


candomblé baiano, do fato de Marujo possuir um conhecimento adquirido
através das viagens marítimas que o fizeram viver entre índios e negros.
A proximidade com Exu explica-se pelo modo como se comporta,
falando palavrões e bebendo cachaça ou cerveja, bem como por ser um
intermediário na relação dos homens com os encantados. Edison Carneiro
(1986:74ss) j á havia notado este fato ao chamá-lo de “Mercúrio nacional”.
Ao dizer que a contribuição original dos candomblés de caboclo estava
em Martim Pescador, a divinização dos animais, dizia:

“ O pássaro Martim Pescador - que os negros chamam


Martim Bangolá, Martim-ki-mbanda, Marujo -tem a função
de leva-e-traz, de correio entre os mortais e os encantados
, e por isso mesmo não tem as proporções de um encantado,
mas de um anjo-da-guarda , na verdade muito especial”.

Em terreiros como o Terreiro Pena Branca, nação Angola, Marujo


manifesta-se também em sessão de giro. Em outros terreiros, nos quais o
pai ou mãe de santo possui esta entidade, realiza-se anualmente uma
festa em sua homenagem.
Para essas festas, o barracão é enfeitado com desenhos coloridos de
peixes, barquinhos, âncoras, galeras, figuras de marinheiros e garrafas
de pinga. Enfim, tudo aquilo que possa servir de identificação com as
características do Marujo e do lugar que ele habita.
A estrutura da festa em muito se assemelha às festas de um outro
caboclo qualquer. Inicia-se com o despacho para Exu, o Padê, invocando-o

127
através de cânticos, passando-se em seguida para o ritual de incensar
todo o barracão. Após o incensar, cantam-se inúmeras músicas de
reverência aos caboclos de origem “indígena”. Marujo geralmente se
manifesta no momento em que ainda se está cantando para esses
caboclos.
É importante observar que esta manifestação não se dá através
de uma invocação determinada, como ocorre com o ingorossi observado
nas festas dos caboclos “índios”.
Ao se manifestar, o Marujo começa a tirar cânticos de saudaçao
aos presentes:

Meus senhores mestres


E com sua licença
Deixa eu brincar nesse canzuá

Bom dia, boa tarde, boa noite


Boa tarde, boa noite, eu venho dar
Na porta do meu leme eu trago
A coroa de Jesus sacramentado

Por ser dado como um nauta, o Marujo revela, através dos cânticos,
a sua origem.

Eu Marujo nasci em Roma


Em Roma nasceu o Messias
Se Deus deu o dom a eles
Foi porque eles mereciam

Quem quiser saber meu nome


Não precisa perguntar
Eu me chamo é Martim
Martim de Angola

128
Quem precisar de mim
Pode mandar me chamar
Eu me chamo é Marujo
AquieemTaperoá

Duas características do Marujo se sobressaem: a de mulherengo -

E remador, ê remador
As meninas me chamam
Eu sou remador
Os homens me chamam
Eu lá não vou

- e a de cachaceiro. Esta condição é durante toda a festa reafirmada,


não somente através de cânticos como também no beber cerveja pela
boca ou pelo ouvido, como muitos Marujos fazem. As festas do Marujo
são fartas em bebidas, notadamente cerveja, e, através dos cânticos ele
reforça a sua fama debeberrão, numa forma provocadora e brincalhona.

Eu tou vendo o cheiro


Mas não vejo a pinga

Cadê a pinga meu camarada


Não vejo nada meu camarada

Tou “bebo”, tou “bebo” mano


Tou “bebo”, tou “bebo” estou
Nas águas do babalaô

Sou matéria sou caboclo


Tou bebo mano
Estou as quedas

Edison Carneiro observava que “as pessoas possuídas por Martim

129
Pescador apresentam todos os sinais de alucinação alcoólica e saem a
fazer toda sorte de diabruras. Sabe-se mesmo que a pessoa está possuída x

por essa estranha divindade das aguas porque, logo em seguida à sua
chegada, esta faz o sinal característico de beber, com o polegar direito.
Trazem-lhe a cachaça - e ela bebe, bebe até não poder mais” ( 1981 ;75),
A festa do Marujo é alternada com manifestações de caboclos de
origem “indígena”. Estes, quando manifestados, são vestidos com um
ojá ou com roupas próprias de “ indios” e são homenageados na forma
de cânticos. Muitos desses caboclos fazem questão de retribuir a
permissão de poder “descer”, tirando cânticos de homenagem ao Marujo

Eu só vim aqui
Seo Marujo
Pela sua fama

No dia seguinte à festa, as homenagens ao Marujo continuam através


de presentes, geralmente cervejas, flores, fitas azuis e brancas, levadas
ao mar por um saveiro. Havia terreiros, como o Ceníro de Caridade Caboclo
Rompe Nuvem, nação queto-caboclo, em que os filhos e filhas de santo,
vestidos de marinheiros na tonalidade azul e branco, levavam os
presentes.
As representações que o Marujo contém servem para demonstrar os
valores que, ao nível simbólico, os membros do candomblé reelaboram.
A associação com a água é deveras interessante, já que, no universo
religioso afro-baiano há uma ênfase nas representações maternas de
Oxum, Nanã e Iemanjá, Se, a partir do elemento água, há uma proximidade
com estes orixás, por outro lado, há uma diferença, não só na natureza -
^ Marujo não é exclusivamente caboclo, muito menos orixá -como também
pela posição ocupada na hierarquia, já que ele. Marujo, nada mais é que
um mensageiro.
O elemento água a que o Marujo está associádo nos mostra que há
um deslocamento deste elemento enquanto símbolo de fertilidade,
feminilidade e purificação. Ao nível da simbologia religiosa, nota-se,
portanto, uma inversão deste elemento, pois a entidade é identificada

130
í com um marinheiro destemido e cachaceiro. Desse modo, opera-se uma
l ruptura entre entidades diversas a partir de um elemento em comum - a
í água- r
\ Evidentemente, as representações que os adeptos do candomblé /
elaboram acerca do Marujo advêm, como já referido para o Caboclo Eru,
de valores já enraizados na sociedade abrangente. Suas características
de mulherengo e cachaceiro, bem como o atributo de mensageiro
retraduzem simbolicamente a posição social imputada em nossa sociedade, ^
à figura do marinheiro, havendo, deste modo, uma complementação de
valores.
Essas considerações nos permitem verificar que em termos simbólicos
há uma exaltação a uma entidade “beberrona”, não só pelos adeptos dos
terrenos em que ele, o Marujo, se manifesta, como também pelo público
que assiste às suas festas. Não é a toa que, em determinado momento da
festa, num ritmo semelhante ao do samba de caboclo, todos cantam
entusiasticamente

“ Marujo é cachaceiro

1
Eu quero Marujo assim mesmo “

f!
\
L
i.
ï

131
BOIÀDEIRO

Um dos caboclos mais populares nos terreiros de candomblés de


Salvador é o Boiadeiro. Definido como um “índio aportuguesado que
saía para caçar” e que também “pertence à aldeia de Jequiriçá”, ele se
encontra presente nas diversas nações de candomblé, A partir da pesquisa
realizada pelo IPAC/SIC encontramos os seguintes terreiros, e suas
respectivas nações, com o nome de Boiadeiro:

Centro Boiadeiro - nação queto


Terreiro Manoel Boiadeiro - nação angola
Terreiro Boiadeiro Jequiriçá de Matos - nação angola
Terreiro de Boiadeiro - nação queto
Terreiro Casa de Boiadeiro - nação angola
Terreiro de Boiadeiro Tabaréu - nação angola
Terreiro Boiadeiro Ilê Estrela Branca - nação angola
Terreiro Boiadeiro Laçador do Deserto - nação queto
Terreiro Boiadeiro Rei da Turquia - nação angola

Outros tenreiros possuíam o mesmo nome, como, por exemplo, Terreiro


de Boaiadeiro, mas diziam pertencer à nação ijexá ou angola. Da amostra
dos terreiros referidos pertenciam à nação Angola 66,67%, à nação queto
- 26,67% e à nação ijexá 6,7%.
A existência de terreiros da nação queto com nome do caboclo
Boiadeiro é interessante se levarmos em conta que alguns desses tenreiros
diziam ser queto “puro”, ressaltando a ortodoxia presente nas suas casas.
Mas não somente esses terreiros cultuam o Boiadeiro. Outros, como
o Terreiro de Oxum e o Terreiro de Xangô, localizados no Engenho Velho
da Federação, diziam ser também “puros”, mas realizavam festas para
aquele caboclo. Vale resaltar que, nessas casas de candomblé que fazem
questão de ressaltar atradição africana dos grandes terreiros da Bahia, já
que muitos líderes foram filhos e filhas de santo de terreiros como o da

132
Casa Branca, a única reverência aos caboclos está na festa ao caboclo
Boiadeiro. Nao obstante, quando perguntados se o terreiro tinha caboclo,
a resposta sempre era negativa.

AFesta do Boiadeiro

Ocorre de modo semelhante a dos caboclos de origem “indígena”,


com o ritual do Padê, do ingorossi, e da jurema. A descrição que já
fizemos sobre a festa do caboclo vale para a festa do Boiadeiro. As
diferenças aparecem na decoração do barracão, geralmente enfeitado
com bandeirolas brancas e vermelhas no teto, figuras de vaqueiros e de
touros.
As músicas cantadas em homenagem ao Boiadeiro refletem elementos
constitutivos desta entidade:

Toma jaleco de couro


Toma lá vaqueiro
Toma jaleco de couro
Lá na porta do curral

Me chamam de Boiadeiro
Boiadeiro não sou eu não
Eu sou tangedor de gado
Boiadeiro é meu patrão

Uma das festas para Boiadeiro mais anunciadas na Região


Metropolitana de Salvador era a do Terreiro de São Jorge localizado em
Portão. O anúncio saíanos jornais. Em Tarde, de 15.06.77, foi publicado
“No dia 02 dejulho atabaques baterão para o Boiadeiro”. Nele, a ialorixá
Mirinha do Portão afirmava que o governador Roberto Santos estaria
presente, pois já tinha sido convidado, e no ano anterior havia
comparecido.
O fato do Boiadeiro ter uma presença numericamente significativa
nos terreiros da nação queto explica-se pela proximidade, em termos

133
simbólicos, com o orixá Oxóssi. Tanto Oxóssi quanto Boiadeiro são
caçadores, usam arco e flecha, e levam uma capanga de couro com ervas
e plantas. Essas semelhanças muitas vezes são usadas de forma mordaz
pelos adeptos de terreiros que têm caboclo, sejam das nações queto ou
angola, para com aqueles pais ou mães de santo de terreiro queto ortodoxo
que não admitem terem caboclo em suas casas. Numa festa dedicada a
Oxóssi, quando a mãe de santo de um grande terreiro tradicional recebeu
o seu Oxóssi e foi “vestida no santo”, um pai de santo comentou “o
caboclo dela é um Boiadeiro”, provocando risos corrosivos.

134
^ SEMELHANÇAS E SIMETRIAS

A narrativa que segue foi apresentada por Marinalva Bispo dos Santos,
do terreiro do Bate-Folha, no I Congresso Afio-Brasileiro, em março de
1980, realizado em Salvador, Bahia. Nela encontra-se um discurso que se
reitera em diversos terreiros de candomblé, como por exemplo Casa
Branca, Gantois, Mutá Lambo, Maramatamba, entre outros, que procuram
explicar a existência de cultos à divindade Caboclo :

“Quando da chegada dos portugueses ao Brasil na época do seu


descobrimento, já estavam em nossas terras os índios, por sinal seus
legítimos donos. Logo após vieram os africanos, queforam trazidos
como escravos, com suas raízes, rituais e cultura. Ao chegarem aqui, os
portugueses, vendo que não poderiamfazer dos índios tr.abalhadores,
pois estes eram livres, foram obrigados a trazer outra mão de obra, e
para isso recorreram à África, ondejá existiam possessões que lhes
pertenciam, e delà, então, trouxeram estepovo dos quais descendemos.
Os índios, ao serem perseguidos, conseguiam enganar os brancos e
fugiam para suas aldeias ou tribos. Quando aperseguição continuava,
eles atacavam. Então vendo que não conseguiam apriosioná-los,
recorreram a outra raça, para o trabalho braçal Com a chegada dos
negros, os índios escondidos começaram aficar desconfiados, achavam
horrível eles andarem acorrentados levando tantos castigos. Poroutro
lado os negros começaram a olhar desconfiados aquela gente coberta
depenas. Pela maneira dos brancos tratarem os índios e negros, viram
neles a salvaçãopara se livrarem dos castigos. A curiosidade de ambas
j \ a s partes talvez tenhafeito com que estesfossem se integrando. Mas
como existiam tribos mansas, eles passaram a confiar um pouco mais
uns nos outros.

135
Tudofaz crer que, aofugirem dos senhores, os escravosprocurassem
refugio nestas aldeias, onde os índios Tupis, Guaranis e Tapuias, com
desconfiança, começassem então, através de gestos e presentes a se
aproximar, dando guarida aosfugitivos, por não aceitarem violência
e nem apriosionamento, e daí, ao se esconderem nas matas, os índios
começaram a ensinar aos negros a encostarem o ouvido no chão, o
barulho dasfolhas, o voar dospássaros e suas manãgas do mato».Daí
é que sefizeram os contatos entre os negros e índios. Os índios ensinaram
a usar sua luz, que servia para andarem na noite, que erafeita de luz de
pau-brasil e candeia Então começaram a observar o seu ritual, onde
também tinham seuspreceitos, pois existia na aldeia o seu pagé. Nos
preceitos, tinham significado: a lua, as águas dos rios, do mar, lagos, o
sol e o seu Deus Tupã. Eles também, invocavam os espíritos de seus
mortos, para darem maisforça. Os negros, vendo tudo isso, acharam
alguma assimilação com seus orixás. E os africanos de Angola(bantus),À
por serem mais significativos com o seu linguafar,foram os que mais se
aprofundaram dentro do culto dos índios, eatéo candomblé de angola
não deixou de ter obrigatoriamente sua festa de caboclo e, através
desses, vem também outras divindades, guias como nosso bom, querido
e aceito, o grande Boiadeiro e o Marujo ”.

Como se deu a introdução de uma nova entidade num sistema religioso


já estruturado? Quais os elementos substanciais que serviram para
adequá-la perante as outras divindades ou que possibilitaram tensões e
diferenças?
A narrativa começa com um dado histórico - a chegada dos
portugueses ao Brasil, e a presença dos índios aqui considerados como
os legítimos donos da terra. Segue-se a vinda dos africanos como a
forma dos portugueses terem mão de obra para a exploração, e a afinnaçao
de orgulho por “este povo dos quais descendemos” . Pelo modo de
composição, a história convencional é que dá sustentáculo para o início
e desenvolvimento do surgimento do mito caboclo. Portugueses -
dominadores, contrapõem-se aos índios que resistem a deixar-se dominar
“os índios ao'serem perseguidos, conseguiam enganar os brancos e

136
fugiam para as suas aldeias ou tribos. Quando a perseguição continuava,
eles atacavam”. Nesse ínterim é que surgem os negros como substitutos
dos índios. A sequência seguinte dá conta de um estranhamento - índios
ao verem negros acorrentados e negros ao notarem a gente de outra cor,
sem vestimentas, nus, com o corpo de penas. Passa-se da desconfiança
para o contato, intermediado pelas “tribos mansas”. Essas tomam-se a
medida de confiança para os negros - “mas como existiam tribos mansas,
eles passaram a confiar um pouco mais uns nos outros” . As
consequências, após o contato, portanto, dão-se ao nível do aprendizado
do negro e das suas analogias - “Eles também (grifo nosso), invocavam
A os espíritos de seus mortos para darem mais força. Os negros, vendo
tudo isso, acharam assimilação com seus orixás”.
Sob que lógica essa narrativa se constrói? Qual o nível de
^ inteligibilidade que ela permite? Essas perguntas nos fazem passar do
nível narrativo do texto, sua apreensão linguística imediata, para a
“estrutura simbólica” (v.Sahlins, 1985) que permeia o candomblé baiano.
A referência final da narração dá conta dos africanos de Angola (bantus)
aprofundando-se nos cultos aos índios. Por que esses, e não os nagôs,
jêjes ou ijexás, que eram também numerosos desde o final do séc.XVÜI?
É entre aqueles(bantus)que o culto aos ancestrais atinge um grau de
A sacralização, e é entre os bantus que os ancestrais são identificados
como “donos da terra”. Haveria, então, no sistema religioso, inicialmente
disperso devido ao tráfico, um pressuposto lógico para a inserção do
culto ao caboclo. Vale lembrar que os ancestrais, entre os bantus
chegariam ao ponto de se transformarem em forças da natureza(os
Bacongos), estabelecendo com os homens contratos bilaterais com
obrigações de ambas as partes. Diz Balandier(l 968:330) que, assim como
a ordem moral é coisa de que divindade suprema não se ocupa, por estar
muito acima ou além, os ancestrais são os guardiães dela e se incumbem
de castigar os descendentes que não a respeitem. Por sua vez, os
ancestrais atingem às vezes um tal grau de sacralização que acabam por
ser considerados como divindades secundárias, ou mesmo de primeira
ordem, como é o caso de Unkubunkulu, o ancestral primitivo dos Zulus,
cujo culto obscureceu quase totalm ente o deus suprem o

137
Ndyambi-Kaiunga (Lopes, 1988:127). Desse modo, a referenda aos donos
da terra inscreve-se em construções pré-elaboradas.
Um outro tema que a narrativa frisa é a assimilação que os negros
fizeram dos espíritos indígenas aos orixás. Isso é de fundamental
importância para a compreensão da inserção do caboclo no panteão
afro-baiano. É comum nos escritos afro-brasileiros opor-se o orixá ao
caboclo. Enquanto aquele estaria ao nível da cultura, o caboclo
encontrar-se-ia ao nível da natureza, pois suas características são
selvagens, não domesticadas, já que ele pertence ao domínio do
incontrolável. Sua energia viria a ser controlável quando o grupo desejasse
chegar a um fim específico, através de rituais adequados (um exemplo
seria a doutrinação do caboclo Eru).
Concebidas como pares de oposição, as categorias natureza e cultura
permanecem tão estanques que parecem o yin e o yang lembrado por
Sahlins(1985), ao criticar os pares de opostos. Vistos desse angulo, as
categorias orixá e caboclo ocupariam espaços no sistema religioso, um
lugar que traduziria uma função classificatória ao invés de uma verdadeira
busca de sentidos. Curioso é que essa postura vai em direção oposta à
proclamada inicialmente por Edison Cameiro( 1986), segundo o qual “os
encantados caboclos são os mesmo deuses dos nagôs e dos jêjes, já
modificados pela influência dos negros de Angola e do Congo, e mais
recentemente, pela influência espírita”(p. 73). Contudo, ela esbarra na
dificuldade de entender a categoria caboclo como mera oposição à
categoria orixá. Por certo que existem características entre estas duas
entidades que as diferenciam, quando não se opõem. Contudo, são
elementos mais identificadores, o que faz dificulta a compreensão da
relação entre as divindades na arquitetura religiosa do candomblé. Nesse
sentido, entender a existência do caboclo é decifrar a sua correspondência
com outras entidades, precisamente Exu e Oxóssi.

138
r

EXU/CABOCLO

Um mito relacionado a Exu conta-nos que Olodumaré e Orinsaiá


estavam começando a criar o ser humano. Assim, criaram Exu, que se
tomou mais forte e mais difícil que seus criadores. Olodumaré enviou
Exu para viver com Orisanlá; este colocou-o à entrada de sua morada e o
enviava como seu representante para efetuar todos os trabalhos
necessários. Foi então que Orunmilá, desejoso de ter um filho, foi pedir
um a Orisanlá. Este lhe diz que ainda não tinha acabado o trabalho de
criar seres e que deveria voltar um mês mais tarde. Orunmilá espantou-se:
“E aquele que está sentado, lá fora, à esquerda de tua porta?” Orisanlá
lhe explicou que aquele não era precisamente alguém que pudesse ser
criado e mimado no ayé. Mas Orunmilá insistiu tanto que Orinsaiá lhe
concedeu tomar-se pai de Exu. Orinsaiá voltou para casa, deitou com a
mulher, e depois de doze meses ela deu a luz a um menino que foi
)<( proclamado Elegbara, “senhor do poder de transformação”. Ao nascer,
já fala e pede comida. Engole tudo que lhe vem pela frente. Come todos
os animais que havia na terra, os pássaros, os peixes.
No quarto dia, Exu disse que queria comer came. Sua mãe cantou,
como de hábito, e Orunmilá trouxe-lhe todos os animais quadrúpedes
que pode achar: cachorros, porcos, cabras, ovelhas, cavalos, etc., até
que não ficou um só quadrúpede. Exu não parou de chorar.
No quinto dia, Exu disse: “mãe, mãe, Eu quero comê-la!” A mãe
repetiu sua canção: “Filho, come, come, filho come”, e foi assim que Exu
engoliu sua própria mãe. Orunmilá alarmado consultou os Babalawo que
recomendaram fazer uma oferenda.
No sexto dia após o seu nascimento, Exu quis comer seu pai. Orunmilá
cantou a canção da mãe de Exu e quando este se aproximou, Orunmilá
lançou-se em sua perseguição com a espada e Exu fugiu. Orunmilá o
alcançou, cortando e recortando-o em duzentos pedaços. O ducentésimo
primeiro pedaço, contudo, virou Exu inteirinho, e saiu fugindo. Orunmilá
alcançou-o, já no segundo Orun (opõe-se ao Ayé), retalhou-o novamente

139
em duzentos pedaços que se transformaram em duzentos yangi
(representação fragmentada de Exu). Isso repetiu-se nos nove Orun. No
último Orun, Exu e Orunmilá fazem um pacto: todos os yangi seriam
representantes de Exu, e Orunmilá poderia consultá-los cada vez que
fosse necessário enviá-los a executar os trabalhos que ele lhes ordenasse
fazer, como se fossem seus verdadeiros filhos. Exu assegurou-lhe que
seria ele mesmo quem responderia por meio dos yangi cada vez que o
chamasse. Exu devolve sua mãe, e todos aqueles que engolira. É por isso
que todos os seres vivos no mundo têm a ver com Exu, cada um de nós
têm seu próprio Exu, cada orixá têm seu próprio Exu(v. Elbeindos Santos. _
1982). ' '
~ ÉxuElegbara, senhor do poder de transformação, foi cortado em
pedaços para poder em seguida regenerar-se e reunir simbolicamente o X
universo inteiro pela força da palavra (v.Augras, 1983:104).
Enquanto Exu é o elemento primordial para a comunicação com os
deuses, nada se fazendo sem a sua intermediação, o caboclo é a
comunicação direta com as pessoas presentes, sejam adeptas ou não.
Quando chega, vai logo conversando, seja em sessões, festas ou
trabalhos. Destaca-se pela palavra, dando ordens, perguntando sobre
os problemas de cada um e puxando cânticos. Se a comunicação com
Exu é intermediada pela ação do pai ou da mãe de santo, com os caboclos
ela é imediata, não necessitando de intermediação senão dele mesmo. Ele
precisa falar pois é um princípio caboclo, a força da palavra Diferencia-se
deste modo dos orixás, pois esses falam pelo jogo de búzios ou “ao pé do
ouvido” de um pai ou mãe de santo, uma ekédi ou um ogã, sem que a
audiência os ouça.
Cabe notar que se a comunicação é um elemento definidor tanto das
atribuições(no caso de Exu) como da existência(no caso do caboclo), ela
vai ser duplamente reforçada na definição do Caboclo :

“Caboclo tem Exu. Se o caboclo não tivesse Exu, ele


não seria uma energia. A energia é o equilíbrio, é a direita,
a esquerda, a frente, o verso. Nem a própria energia é
pura. Não existe pureza de religião, do cosmos, de energia,

140
m

porque apropria natureza não é pura. Aluviá é um Exu do .


Caboclo Apavenã. Os Exus de caboclo e de orixá diferem, ^
porque o caboclo é diferente do orixá Em termos de energia
é a mesma”. (J.B.dos S,)

Assim o poder de comunicar que aproxima as duas entidades a um


mesmo elemento componencial, far-los-á também ocupar diferentes
posições no espaço. Pois, apesar dos “assentamentos” de Exu e do
caboclo estarem fixados do lado de fora dos terreiros, eles se mantêm
distanciados como mostra a % abaixo:

E U Exu I 1Caboclo

Barracão Runkó

Banheiro Cozinha

1 - I Assentamento dos orixás

Haveria também uma maior aproximação entre os Exus e os Caboclos,


pelo pólo da masculinidade em que as categorias estão imersas. Ou seja,
representam a exaltação dos seres destemidos, fortes e viris. Não é fortuito
n que, nos candomblés de Salvador, raramente se encontram Caboclas. X
Para Mortero(1985:225), as palavras masculino/feminmo retraduzem, em
termos simbólicos, os mesmos valores que organizam, na sociedade
abrangente, as relações entre os sexos, ora glorificando a imagem materna,
ora subordinando a figura feminina ao ponto de vista masculino.

141
OXOSSI/ CABOCLO

Se nas categorias Exu e Caboclo encontramos elementos semelhantes,


na relação com Oxóssi, deus da caça, é que elementos simétricos vão y
aflorar. Oxóssi é o rei da mata, protetor de todos os que se encontram na
floresta. Lá ele vive, gosta de ar e de liberdade. Mantém ligação estreita
com Ossãe (ou Catendê, nos candomblés angola), deus das plantas
sagradas e medicinais. Numerosas são as lendas sobre Oxóssi.
Segundo Veiger(1980,1981), Oxóssi, contrariando sua mãe Yemanjá,
deixou-se envolver com Catendê, e passou a viver com ele na floresta,
aprendendo os segredos da mata. Seu símbolo é, como na Africa, um
arco e flecha em ferro forjado ou um outro metal e um erukerê,
espanta-mosca, feito com rabo de boi presos em bainha de couro. Para
trazer a caça, Oxóssi leva duas capangas de couro.
Numa segunda lenda, Verger(op.cit) conta a história do caçador
“guardião da noite” (Osó), que conseguiu, com uma flecha inteira,
derrubar um enorme pássaro, suscitado pelo poder das feiticeiras para
atrapalhar a festa dos inhames novos no reino de keto, sendo aclamado
pelo povo com o nome de Oxóssi.
Enfim, uma terceira lenda é particularmente importante, porque ela dá y
conta da sua transformação de caçador em deus da caça. Essa narrativa A
é encontrada nos terreiros de Salvador, e foi transcrita por Edison
Cameiro(1964:159/60): um dia Odé se deleitava com Oxum, quando lhe
deu na gana caçar. Era o dia da tomada de axé de Ifá, e a mulher lhe disse
que não fosse procurar caça no dia do sacrifício do grande orixá. Mas
Odé não se importou e foi. Andou, andou, andou. Nada de encontrar
caça. A tarde, porém, Odé encontrou uma cobra enorme, enrolada ao sol.
A cobra cantou para ele uma canção. A cobra lhe dizia que não era
pássaro de pena para Odé matar. Era Oxumaré. Mas ele não se importou.
Matou a cobra, cortou-a em pedaços e botou-a no embornal. Morta, a
cobra continuava cantando sempre. Quando ele chegou em casa, a mulher,
Oxum, nem quis tocar na cobra. Meteu os filhos debaixo do braço e fugiu

142
com eles para a casa do compadre, dizendo que só voltaria quando Odé
tivesse acabado de comer a caça estranha, que continuava a cantar. Odé
não se importou, Tratou, moqueou e comeu a cobra. E a bicha cantando.
Depois de comer, Odé se sentou. A cobra cantava dentro da barriga. Ele
se arrependeu do que tinha feito. Arrependeu-se e dormiu. Ao amanhecer,
Oxum voltou. Bateu à porta, bateu, bateu. Nada. Então, Oxum arrombou
a porta. Não encontrou nenhum vestígio de cobra: nem no moquém, nem
na frigideira. Só encontrou o rastro dela no chão. Odé estava espichado
num canto, morto. Oxum como louca, foi chamar Ifá, pedindo a sua
proteção. Ifá atendeu o pedido. Veio, considerou longamente Odé e,
I afinal, levou-o para casa. Lá, Odé desapareceu. Desapareceu, e só veio
reaparecer sete anos depois, mas como orixá, e até com outro nome. Ele
que se chamava Odé, passou a chamar-se Oxóssi, o deus da caça.
Nas três narrativas( variantes do mesmo tema da divinização)
X apresentadas acima, encontramos duas partes. Na primeira parte, a ação
do personagem ocorre num contexto de contrariedade (com relação à sua
mãe Iemanjá -1 a.variante e à sua mulher Oxum - 3a. variante). Na segunda
parte, a ação se desenvolve num contexto que lhe é favorável; Oxóssi é
ajudado por sua mãe, com uma oferenda às feiticeiras, e acaba com o
enorme pássaro.
Num esquema teríamos os seguintes caminhos traçados pelo
personagem:

1* variante
sociedade________________natureza
(moradia com a mãe) (viver no mato)

invariante
sociedade__________________ sociedade
(Osó - desafio do pássaro - Oxóssi)

3*variante
sociedade__________________ panteão
(através da ingestão da cobra)

143
o w h^'yn ' A M *-' 5 ^' (J ,"v ‘ ^ ^

Para compreender a relação entre o(s) mito(s) de Oxóssi e o Caboclo,


buscaremos inicialmente os elementos de semelhança ou de inversão.
A maioria dos caboclos nos candomblés são dados como de origem
Tupi. E são identificados como caçadores usando cabaças, arco e flecha.
Nas festas, aparecem usando cocares de penas de pássaros. Para os
adeptos dos candomblés, os caboclos conhecem o segredo das folhas, e
é comum nas suas sessões utilizarem do “sacudimento”, isto é, um feixe
de folhas bem verde que varia de tipo para cada problema apresentado.
A origem de cada caboclo é dada pela concepção de que “caboclo é
um espírito que encantou”. Se é espírito, logo, viveu. Em resumo, teríamos
um indivíduo que se transformou em entidade ocupando um lugar no
panteão. Contudo, como já notamos, os caboclos são interpretados como
de natureza bruta que se culturalizaram, ao contrário dos orixás que
pertencem ao domínio da cultura. O problema é particularmente complexo,
pois enquanto alguns caboclos, como o Tupi das Serras ou o Caboclo
Eru, se enquadrariam no esquema tradicional J á que ainda estão para ser
aculturados pela estrutura do candomblé, outros, como Boiadeiro, Marujo
ou M artin Pescador, não necessitam passar do domínio da natureza para
o da cultura. Eles aparecem despidos de características brutais, já
domesticados, O esquema rígido apresentado mostra-se deveras minado.
Resumindo, temos em relação aos mitos:

Oxóssi
1. E caçador.
2. Vive na floresta e sabe o segredo da mata por Ossãe.
3 Usa arco e flecha, um erukerê e duas capangas de couro.
4.Relação com cobra.
5.A transformação de caçador em orixá.

Cabodo
1. Vive da caça.
2. Domina o conhecimento das folhas e da selva brasileira.
3. É destemido, valente.
4. Usa arco e flecha (aqueles identificados como índios).

144
5. Usa roupas e chapéu de couro, laço e cabaça (Boiadeiro).
6. Transformou-se em encantado.

Parece-nos evidente que há uma simetria, quando não identificação,


em algumas características. As duas entidades estão sob a mesma
atividade produtiva - caça -, usando instrumentos semelhantes - arco e
flecha. Ainda na similaridade, o conhecimento que dominam é único - as
folhas. A diferença reside na forma de obtenção desse conhecimento.
Um pelo envolvimento com outro orixá(Catendê), o outro pelo ‘‘próprio
conhecimento”, já que os índios habitam a floresta. Pode-se dizer que o
mesmo elemento se acha tanto ao nível da narrativa na África, quanto na
realidade aqui encontrada. Nesse sentido, os elementos ganham uma
nova dimensão, representando entidades relacionadas mas não idênticas.
As outras características mostram distanciamento ao nível de uma
comparação de categorias. O erukerê é algo exchisivode Oxóssi, ecapanga
de couro só quem usa é o Caboclo Boiadeiro. A cobra, que no caso de
Oxóssi é o fator predominante para sua ascensão a orixá, pois não deveria
comê-la, está presente entre os caboclos. É comum nas festas de
candomblé impedir-se o Caboclo Tupi das Serras de ir até o mato, pois
senão ele voltará com cobras no pescoço.
O ponto que nos parece nodal na comparação como forma de
entendimento da inserção da categoria caboclo no candomblé, é a sua
transformação em encantado para se constituir enquanto entidade.
Note-se que, no caso do mito de Oxóssi, o ponto de partida é um
acontecimento inscrito simbolicamente no social: é a decisão de deixar a
mãe e viver no mato, ou o matar o pássaro que ameaçava o reino. A partir
dessas considerações, cabe uma pergunta. Se a semelhança é profunda
por que então o caboclo não foi denominado de orixá?

“Tenho na minha casa um Oxóssi Caboclo. A diferença


é que o orixá(Oxóssi) mspa(iniciado) o Caboclo Oxóssi, ^
não. O nome depende do Oxóssi. O Oxóssi que é do rum
dá o nome dele. O Oxóssi Caboclo dá o nome dele de
Caboclo. É um Oxóssi raro.” (M.E.S.)

145
Há que notar a constituição já formal do panteão afro-baiano,
destacado como sendo de origem africana. O que se declara sendo
brasileiro é o caboclo. Logo, parece haver uma distinção de categorias,
tanto ao nível geográfico (“orixá é coisa da Africa”), quanto de um
grupo sócio-cultural também marginalizado (“o verdadeiro caboclo é o
índio''). Se a categoria caboclo, inicialmente referida aos índios, ampliou-se
no panteão^rcHbaianõ^PenFVerde, Neive Branca, etc.)é porque se
adequou de uma forma lógica a algo estruturado: a multiplicidade dos
onxás. Há inúmeros Exus, inúmeros Omolus, Oxalás, Yemanjás, etc. Cada
qualcomum nome próprio e com prescrições diferentes, Segundo Bastide
(1961:1^1), essa multiplicidade tem uma origem sociológica, pois
corresponderia à multiplicidade das nações importadas no período
escravocrata. Acrescentaríamos que está presente uma compreensão
ao nível do indivíduo, pois um orixá de uma pessoa no fundo não se
assemelha ao orixá de outra. E isso fica claro no processo da iniciação,
quando o nome proferido pelo orixá no corpo da yaô é único.
Contudo, se a multiplicidade da nomenclatura encontra resposta na
constituição do próprio panteão, isso por si só não nos parece satisfatório.
Pois colocar o problema ao nível mais formal (da relação entre elementos
constitutivos) bloqueia as possibilidades de entender o problema relacionado
aos caracteres especificamente brasileiros, contidos na nomenclatura cabocla.
Há nomes como Caboclo Caipora (que dança com uma só perna). Marujo
(cuja festa é farta em cerveja, ele mesmo um notório beberrão emulherengo),
Sultão das Matas (originário da tribo o dos Aymorés), etc., que se explicam
como signos da regionalidade brasileira.
O Caboclo seria assim uma das variantes canônicas, entre outras, do
sistemareligioso afro-baiano, no qual há uma valorizaçãopolítica das origens
africanas (em particular a íorubá), e diversas combinações, assimilações e
integrações, mesclando várias referências culturais, a partir de um campo de
significações aberto a procedimentos analógicos e comparativos. Face às
hesitações interpretativas - que refletem, ainda, as relações intrínsecas aos
meios intelectual e religioso -, a reabilitação teórica do Caboclo passa pelo
simples reconhecimento de sua presença maciça nos candomblés baianos
de todas as nações, e do vigor da imaginação religiosa afro-baiana.

146
CONCLUSÃO

O leitor, ao final, talvez se pergunte qual a natureza do “índio5’dos


candomblés baianos. Pelo exposto, concluo que o Caboclo é menos
K
brasileiro do que aparenta ser e mais “africano” do que se poderia crer.
Imerso num universo de referência africana e sendo sempre reiterado
como o elemento autóctone - “ o verdadeiro caboclo é o índio “ -, essa
entidade, que constitui um verdadeiro anátema nos candomblés, é, por
assim dizer, afro-brasileiro.
Este trabalho, felizmente, não encerra em si a análise do fenômeno. Se
poucos trabalhos foram dedicados ao Caboclo, muitos haverão de ser
feitos. Procurei entender o Caboclo no sistema religioso afro-baiano a
partir da sua relação com os orixás, tentando dar conta das representações
acerca do indígena que ali estão presentes. Essas representações, como
vimos, não podem ser vistas exclusivamente como resultantes de um
sistema religioso, mas na relação que esse sistema mantém com um sistema
de valores que se encontra na sociedade envolvente.
A partir de elementos presentes na simbologia afro-baiana,
construiu-se a imagem de um autóctone que, se por um lado espelha,
assimila e reproduz valores ditos oficiais, também reelabora esses valores,
dando-lhes um feição própria: o autóctone deixa de ser aquele que não
se deixou dominar no processo histórico brasileiro para representar, na
sua gama de significados, “o dono da terra”. Desse modo, o candomblé
recria, a partir de elementos próprios, um índio que a sociedade brasileira
imagina conhecer. Num processo para o qual a Independência da Bahia
(com a consequente ascensão do Caboclo, que é seu símbolo por
excelência) muito contribuiu, construiu-se essa representação multiforme
em que a referência básica é o índio, mas que nele não se esgota, pois
inúmeros são aqueles Caboclos que se diz provirem de além mar. O

147
sustentáculo dessa representação são os povos das sociedades
consideradas simples, estejam eles próximos ou longínquos.
Nesse sentido é que importa perceber o Caboclo no candomblé como
uma construção simbólica do outro. Se para o antropólogo é rotina buscar
compreender o outro, que por vezes lhe é próximo, entender a
representação que esse outro faz de seu próprio outro foi uma tarefa
árdua, em que talvez eu tenha sido vítima dos emaranhados que
constituíram esse outro de mim tão distante.

148
LISTA DE NOMES DE CABOCLOS
ENCONTRADOS NOS CANDOMBLÉS BAIANOS

Aimoré
Amuringanga
Aflechin
B oroc
Boiadeiro
B oiadeiro M enino Vaquejador do Rio de C onta
Capangueiro
C aipora
^ Caipó
Curupira
Caitem ba
Cariri
C essataquara
C o b ra C orã
Cacique
C am po Verde
J?) D ona da M ata

Embiaçu
E strela da M ina do O uro
Flecha N egra
Ferram enta
Guarani
Gentil
Itabira
índio Luiz de Aimoré
Iraci Jaruaba

149
Itaitinga d a Aldeia de Sam burá
Juremeiro
Jo ão d a R aiz
Jaci
Jequiriçá
Juruparí
Juataí
Jucira
Jo ão das Lajes
Laje M ineiro
Laje G rande
M arujo
M ata G rossa
M artim P escador
M alem bá
M ata Verde
M ata Virgem
M ãe das A guas d o s índios
f Mineiro
M uringanga
M a rc o L eão de O uro
N eive B ranco
Oxóssi
Oxóssi Guerreiro
O gum M arinho
O gum de L ê
O gum Sete E spadas
O gum de R onda
O gum da P ed ra P reta
O gum da P ed ra B ranca
O gum R aio de Sol ou A tirador da Serra
O gum Rei de Guiné
Om olu C aboclo
Peixe M arinho

150
P ena Verde
P edra P reta
Pele Vermelha
P edra Fria
Penacho Verde
Rei da Hungria
R om pe N uvens
Raio de Sol
R oxo M ucumbe
Rei das E rvas
Rei das A guas Claras
R om pe Folha
Rei do Guaicuru
Sultão das M atas
Sete Serras
Serra N egra
Silva Estrela
Sete Flechas
Samambaia
Tupi das Serras
Tupiaçu
Tupiaçu Rei das Ervas
__Tupinambá
Tibiriçá
Tupã
Tuitinga
Tira Teima
Tuiçara
Tabajara
Tupi Dendê
Tm guererê Guarani C á Te Espero
Truvezeiro
Tom ba Serra
Taitinga

151
Tupiraquim
Turco
Vaqueirinho
Vira M ata
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1
o retomar em seu belo estudo a figura do Caboclo nos

Í
candomblés da Bahia, a partir de um cuidadoso trabalho de
campo e um extenso levantamento de fontes históricas, Jocélio
Teles faz mais que restituir a essa entidade tantas vezes mal
compreendida o lugar que lhe cabe nos cultos afro-brasileiros.
Resgatando a herança inegavelmente Bantu de que ela procede, evidencia
o viés que, somando a legitimidade acadêmica ao tradicionalismo das
grandes casas de culto de Salvador, difundiu o mito da "pureza nagô"
como modelo de "autenticidade" para todos os candomblés do Brasil.
Assim, desde Nina Rodrigues, viu-se no culto dos Caboclos uma devoção
espúria, onde "espar sos fragmentos das crenças tupi-guarani aderem à
feitiçaria africana dominante" ou, nas palavras de Arthur Ramos, um
"curioso syncretismo dos orixás fetichistas com as divindades dos mythos
amerindos e elementos do folk-lore branco". Da mesma forma, muitos
tentaram explicar a "origem" do seu culto pela incorporação aleatória de
influências externas e representações presentes na sociedade mais ampla,
sobretudo o indianismo romântico de início do século XIX e, mais
recentemente, o kardecismo. Opondo-se com rigor a essas posturas,
Jocélio demonstra que, constituindo uma representação do outro, os
elementos que se manifestam no culto do Caboclo, divididos entre a
natureza e a cultura, integram-se a uma lógica que é a da própria
cosmologia que estrutura a religiosidade afro-brasileira. Ao analizar as
figuras de Em que, em seu aspecto "selvagem", encarna um "canibalismo
simbólico", e do Marujo, um "inebriado Mercúrio" que dele representa
uma inversão simétrica, no polo da comunicação a que Exu preside, Jocélio
evidencia que, na forma do Boiadeiro, o Caboclo guarda também de
Oxóssi o poder de domar a "selvageria" da natureza, assim como as
dificuldades da vida, para garantir proteção a seus devotos. Assim, menos
"brasileiro" do que se poderia supor, ele é também mais M africano"do que
se gostaria de acreditar. Xetro, marombaxetro, Caboclo!

Maria Lúcia Montes

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