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Jocelio Santos - O Dono Da Terra
Jocelio Santos - O Dono Da Terra
2D ono
daTerra
O CABOCLO
NOS CANDOMBLÉS DA BAHIA
H * * K»! «H is:•! • ................... * N'NWtttntftW
Rede SARAH de Hospitais do Aparelho Locomotor
Aloysio Campos da Paz Júnior
Cirurgião Chefe
Conselho Editorial
Arnaldo Antunes; Boris Schnaiderman; Carlos Nelson Coutinho;
Caetano Veloso; Darcy Ribeiro; Delfim Netto; Eduardo Viveiros de Castro
Elisaldo L. A, Carlini; Florestan Fernandes; Haroldo de Campos;
Jorge Amado; João José Reis; José Arthur Giannotti; José Mindiin;
Luiz Costa Lima; Leandro Render; Lívio Tragtenberg; Muniz Sodré
Coordenação Editorial
Antonio Risério
Capa
Luís Eduardo Resende
Foto
Eduardo Serrate
ISBN 85-85843-05-5
CDU 39(813.8)
Editora SarahLetras
Programa
A Cor da Bahia
Mestrado em Sociologia - UFBA
Apoio
Fundação Ford
"À memória de mãe Zinha”
AGRADECIMENTOS
INIRQDUÇÃO 9
A Pesquisa 12
PAIXÕES EINTERPREIAÇÕES 13
Os Números da Questão 20
A Inserção no Sistema 24
Notas 28
ODOISDEJULHO 31
O Desfile 36
O Povo de Santo e o Desfile 43
Notas 52
O TERMOEASDEF1NIÇÕESDE CABOCLO 53
A Diferença na Identidade: Orixá e Caboclo 60
Os Espaços 65
Iniciação 67
AExigência 70
A Manifestação 73
Notas 76
CANDONBLÉDECABOCLO:UmCormto Delicado 78
Uma Leitura Sincrônica 82
Origem 87
ASSESSÕESDEGIRO 116
A Distinção com a Umbanda 118
Uma Sessão de Caboclo 119
CONCLUSÃO 147
LISTADENOMESDECABOCLOS
ENCONTRADOSNOS CANDOMBLÉS BAIANOS 149
REFERÊNOASBffiUOGRÁFICAS 153
INTRODUÇÃO
9
affo-brasileiros tem ressaltado, extraordinariamente, os aspectos mais
significativos da herança africana, e desprezado, sobremaneira, tudo
aquilo que poderia ser referido ao Caboclo, já que esse seria uma pedra
no caminho da legitimidade africana dos candomblés. Como veremos no
Capítulo 1, essa visão é resultado de uma passionalidade exemplar dos v-j
estudiosos para com os terreiros em que foram realizadas a maioria das
pesquisas, notadamente os de origem nagô, onde é ressaltado o discurso
tradicionalista. Essa postura, que carece de um distanciamento crítico,
deve, por um lado, ser diferenciada dos objetivos dos membros dos
terreiros que, afirmando a africanidade de seus terreiros, vêem não só a
sua legitimidade perante a sociedade global, como também a sua distinção
perante o cada vez mais concorrido mercado religioso (cf.Bourdieu, 1974).
Convém ressaltar que ao discurso de africanidade desses terreiros deve
ser associada uma “dissimulação” da presença dos Caboclos, no intuito 45$
de marcar sua “pureza”, “tradição”, etc. O interessante é assinalar que o
Caboclo encontrou “lugar” no panteão, o que nem sempre fica aparente,
porque além do sistema cosmológico há também o sistema sociológico
em que cada terreiro tem que delimitar seu campo, enfatizando suas
“diferenças”.
Essa “teia ideológica” fez com que o Caboclo fosse alijado da análise
dos candomblés, e privilegiado nas análises da umbanda, pois essa foi
desde os primórdios mais permissiva a influências externas. Entretanto,
vale ressaltar que o culto ao Caboclo nos candomblés baianos data da Y
segunda metade do séc.XIX, e, portanto, é anterior à formação da 7
umbanda. Nesse sentido, podemos aventar que o chamado candomblé
de caboclo foi a matriz inspiradora da umbandatanto pelo amálgama de
Influências “indígenas”, católicas e kardecistas, quanto pelo grau de
nacionalismo que se nota na existência do Caboclo. f
O segundo capítulo busca entender como se deu o processo de
glorificação do Caboclo nos candomblés baianos, como símbolo nacional,
após a Independência da Bahia, em 1823, e de que maneira o desfile
sócio-político do 2 de Julho se relaciona com as práticas religiosas dos
terreiros, pois tanto no espaço público - as ruas de Salvador - quanto no
privado - os terreiros, a religiosidade do povo-de santo ao Caboclo, em
1o
diferentes graus, se manifesta. J
Tendo como ponto de partida os escritos afro-brasileiros, busco, no (A I
cap.3, através de depoimentos dos adeptos, apreender as distinções
X entre o caboclo e o orixá. Essas diferenças, complexas e sutis, podem
também, espero, ajudar a compreensão do que se convencionou chamar ,^
de candomblé-de-caboclo (Cap.4). Expressão delicada na sua O-rf
conceituação, ela é mais um exemplo da classificação do sistema religioso
afro-baiano.
As práticas que envolvem o Caboclo nos candomblés constituem os
, 19
f,
capítulos 5 e 6. As festas na sua expressão dionisíaca e as sessões de
giro com seu caráter mais solene demonstram, de forma diferenciada, de
(A Á
que modo o “índio” nos candomblés é representado.
No capítulo 7, apresentamos uma tipologia de três caboclos mais (
populares da Bahia. Por fim, “ Semelhanças e Simetrias” corresponde a
uma interpretação, no nível simbólico, da inserção do Caboclo no panteão
afro-baiano e da sua relação com Exu e Oxóssi. A partir de uma narrativa,
verifica-se de que forma os terreiros criam uma história-pastiche da relação
X entre negros e índios ÜÓ período colonial" enTque se sublinha o
aprendizado e ajuda mútua entre os dois grupos subalternos, e omite-se
a utilização pelos portugueses de negros para caçar índios ou de índios
para ajudá-los na repressão aos quilombos e mocambos. A história
ressaltada é a história de êxitos, em que fúndamentalmente é acentuada a
relação de assimilação da invocação dos espíritos indígenas e dos orixás,
com a história sendo usada, a seu devido modo, para fins práticos e
utilitários. 0 problema está precisamente na forma como esse caráter
utilitário é exercido, o modo como os elementos adotados são
reinterpretados e remodelados para sua inserção numa tradição mística.
u
A PESQUISA
12
PAIXÕES E INTERPRETAÇÕES
13
Sabemos que Edison Carneiro foi o primeiro a tentar um estudo
sistemático dos chamados povos bantus, pouco descritos até então.
Carneiro dizia que Nina Rodrigues não tinha dado ao negro bantu a
importância queele merecia, na medida em que, para esse último, a questão
do negro se reduzia ao negro sudanês e, mais específicamente, ao nagô.
Mesmo sendo o autor que se interessou pela análise do fenômeno e
que desejava fazer uma revisão crítica dos chamados candomblés de
caboclo (v. Costa Lima, 1987:83), Edison C arneiro não se
desvencilhou do etnocentrismo nagô em vigor desde os escritos de
Nina Rodrigues.5
Nessa linha de pensamento estabeleceu-se uma dicotomia entre os
terreiros de tradição africana( leia-se nagô), impermeáveis às influências
externas, e os terreiros de origem bantu, abertos a todas as influências,
em particular à influência ameríndia. Tudo isso implicando um discurso
mais motivado pela “pureza nagô” (cf.Dantas, 1988) do que por uma
verificação efetiva das afirmações. Isto é particularmente evidente no
caso do Caboclo no candomblé.
Estabeleceu-se, portanto, ao longo desse século, uma separação entre
as diferentes nações4 de origem africana ( e suas expressões religiosas),
em função de sua capacidade de conservar a cultura “originar’, e segundo
o maior ou menor grau de influência permitida. Esquecem-se os fatores
sociais que, inicialmente, provocaram a introdução de elementos
“estranhos” à cultura afro-baiana. A forte predominância dos nagôs na
Bahia se explicaria pela chegada massiva e recente desse povo, na última
fase do tráfico de escravos (entre 1813 e 1851). Quanto à sua resistência
a outras influências culturais, ela viria da presença, entre eles, de
numerosos prisioneiros de guerra oriundos de classes sociais elevadas,
além de sacerdotes conscientes do valor de suas instituições e firmemente
ligados aos preceitos de sua religião, (v.Verger, 1987:10)5
Ao contrário, a permeabilidade dos povos bantus às influências
externas seria devida ao fato de que eles foram os primeiros a chegar ao
Brasil no início da escravidão, a partir do século XVI, na condição de
escravo rural para o desbravamento e povoamento da terra (v. Bastide,
1985). Por consequência, as influências “ameríndias’’entre esses povos
14
sido mais visíveis. Eles encontraram, na cultura indígena da época,
1simbólicas que foram adotadas à sua nova realidade. Na medida
15
“E os novos templos de nação caboclo... Meu Deus,
estão acabando com tudo, estão jogando fora as nossas
tradições!”
(Martiniano do Bomfim apud Landes, 1967)
16
^ portanto, sujeitos às idéias e sentimentos dos brancos, se oporiam às
mulheres, mais estreitamente ligadas às tradições e costumes africanos.
Por mais que Landes tenha o mérito de colocar problemas até então
ocultados, essas interpretações revelam problemas. A questão da
homossexualidade nos terreiros necessita de análises mais complexas
(cf.Fry, 1982), não podendo ser imputada simplesmente a um desvio do
modelo jêje-nagô caracterizado pela predominância das mulheres.9
Quanto ao crescente número de homens exercendo funções sacerdotais
no candomblé, deve-se ter em conta que nunca foi privilégio dos
candomblés de caboclo. Quase no mesmo período em que Landes realizou
suas pesquisas, Pierson indicava, na periferia de Salvador, a existência
de 18 terreiros: onze de origem nagô, seis da nação angola e um jêje. Dos
onze terreiros nagôs, quatro dos chefes eram homens, sete eram mulheres;
dos terreiros angolas, cinco eram homens e uma era mulher. E o dirigente
do terreiro jêje era uma mulher (1971:307). Por mais que os dados não
sejam totalizantes no que se refere à cidade do Salvador (o próprio autor
indica a existência de 70 a»100 terreiros a esta época), essa pequena
amostra aponta um quadro que, em termos relativos, se aproxima do
fornecido por Edison Carneiro e apresentado por Landes : 23 terreiros
nagôs dirigidos por 20 mães-de-santo e 03 pais-de-santo; 44 terreiros
caboclos dirigidos por 10 mães e 34 pais-de-santo.
É certo que os terreiros de origemjêje-nagô iniciaram mais homens no
curso das últimas décadas, e que os terreiros angolas e caboclos
continuam a iniciar tanto homens quanto mulheres. Entretanto, dados
de Costa Lima (1977) mostram que o número global de mulheres é supe
rior ao dos homens.
Este fato é confirmado na pesquisa realizada, em 1983, pela SIC/ÍPAC
^ (Secretaria da Indústria e Comércio/Instituto do Patrimônio Artístico e
Cultural da Bahia), abrangendo 1.211 terreiros da Região Metropolitana
de Salvador, com o intuito de verificar os aspectos ocupacionais dos
membros do terreiros. É preciso ressaltar que nessa pesquisa a diversidade
dos terreiros e de suas nações respectivas, a partir das informações de
seus líderes, é importante, na medida em que encontramos as combinações
mais diversas; desde as classificações tradicionais - ketu, angola, ijexá,
17
Jhi.
jêje, caboclo - até classificações dando conta, com precisão, da influência
de várias nações - jêje/ijexá, nagô/ketu/angola; ketu/caboclo; caboclo/
angola/ijexá; angola/jêje/ijexá, etc.
De um modo geral, com exceção dos très terreiros ketu/jêje,
verifica-se uma predominância global das mulheres sobre os homens,
como podemos observar na tabela ao lado.
Curiosamente, o percentual de mulheres dos terreiros angola, angola/
ketu, ijexá e caboclo revela-se maior (74,48%, 75%, 80,85% e 82,93%) que
os da nação ketu (69,8%)
As explicações de Landes e Pierson não resolvem a questão
homossexualidade/candomblé, nem, por consequência, a questão do
Caboclo no candomblé. Primeiro, porque eles a colocam nos limites de
um etnocentrismo cultural estreito. E segundo, porque, restringindo-a à
uma simples divisão sexual interna, eles não dão conta do fato que a
participação masculina crescente no candomblé se inscreve no quadro
do reconhecimento e da legitimidade social progressiva à profissão de
pai-de-santo.
DISTRIBUIÇÃO DE PAIS E MÃES DE SANTO POR NAÇÃO
NAÇÃO HOMENS % MULHERES %
I 9
OS NÚMEROS DA QUESTÃO
candomblés Sudaneses_________ 30
candomblés bantus------------------- 21
^ candomblés ameríndios------------- 15
2 candomblés afro-ameríndios_____ 01
^ Total________________________67
20
Ano Ketu Angola Caboclo Ijexá Jêje Congo Umbanda Total
1969 107 61 105 16 14 01 02 306
1981 660 350 271 14 04 - 50 1.349
21
‘Tor mais que alguns altos preservadores da tradição
dos orixás quisessem e até a data presente ainda queiram e *
afirmem que nos seus terreiros só existia a presença
exclusiva dos orixás, é inteiramente difícil e até impossível.
Para que atualmente, mesmo em Salvador-Ba., um
terreiro de orixá seja “puro”, cultuando exclusivamente os
orixás, é preciso que ele seja fechado e reaberto novamente
(...) Mesmo aqueles que se consideram da nação Nagô ou
Ketu, estão permeados por Obaluayé, Nanã, Oxumaré, e
mesmo Legba ou Elegbará, todos fortemente associados à
nação jeje, sem falar de assentamentos da nação Grunci e
de tradicionais terreiros que cultuam caboclos - donos da
terra-, nos quais muitos de seus filhas e filhos, indepen
dentemente de seu orixá, têm um caboclo que se manifesta”
22
Do mesmo modo que na umbanda (v.Montero, 1985;Toop, 1972), a
difusão do Caboclo no candomblé é surpreendente. O que esses dados
indicam encontra-se nos julgamentos e análises dos adeptos e
pesquisadores sobre os candomblés de caboclo.
Os julgamentos, hoje, não são mais tão virulentos quanto no passado.
Os pais e mães-de-santo dos terreiros ortodoxos reconhecem a
importância da entidade Caboclo nos candomblés de Salvador.
Entretanto, por mais que eles não critiquem, como faziam nos tempos de
outrora, a presença do Caboclo nos candomblés nagôs, insistem sobre a
“pureza” de suas casas : como se fosse mais importante tomar uma firme
posição contra o sincretismo afro-católico e pela preservação das origens
africanas, do que contra a presença do “índio”.
Apesar dos julgamentos de valor persistirem (v.mais adiante), Claude
Lépine fornece informações interessantes sobre o Caboclo nos terreiros
ditos tradicionais. Ela afirma que “ nas casas ketu ortodoxas há pessoas
que possuem, além do seu santo, um caboclo” (1978:79). Adiante, ela
acrescenta a fala da mãe-de-santo do Axé Opô Afonjá (São Gonçalo):
23
A INSERÇÃO NO SISTEMA
25
Situar o Caboclo como simples reprodução e absorção da ideologia
emergente à época colonial, significa ver simplesmente as instâncias
culturais como tábuas rasas sempre prestes a serem mera construção da
ideologia dominante. Se, por um lado, o discurso religioso espelha e
incorpora valores presentes na sociedade, por outro lado, a prática efetiva
um certo espaço de atuação onde esses mesmos valores são rearranjados,
ganhando um sentido que, de certo modo, se contrapõe ao primeiro
(v.Montero, 1985). O que significa dizer que o processo de produção e
comunicação de significados não é unidirecional, do dominante para o
dominado (v.Zaluar, 1985).
Na umbanda, como sugere Brown (1986), foi necessária uma
valorização do caboclo, como uma das figuras centrais, no intuito de
integrar-se ao contexto estrutural da sociedade, posto que, ‘‘embora a
contribuição africana à cultura brasileira fosse expressamente valorizada,
ela era novamente menosprezada, desta vez em favor de uma imagem
nacionalista brasileira da umbanda” (Brown, 1986).
No candomblé o problema é um pouco diverso. Há ambiguidades na
presença do Caboclo. Além da imagem construída sob valores que são
também os oficiais, como o ágil, o guerreiro que não se deixou escravizar,
nota-se uma ampliação de significados. O Caboclo nos candomblés de
Salvador perde sua referência indígena quando toma os nomes de Martim
Pescador, Boiadeiro ou Capangueiro. Se há uma busca de identidade
pelo emprego de características regionais, isso não significa que a
existência dessas entidades tenha se transformado em uma forma de
integração à sociedade. Ao contrário, a busca de legitimidade do
candomblé é feita a partir de uma reafirmação dos valores ditos africanos.14
O problema do Caboclo no candomblé não pode ser reduzido a puros
aspectos ideológicos, ou a uma simples articulação cultura africana/cultura
ameríndia considerada fora de um contexto simbólico mais amplo. Nem
fusão perfeita afroameríndia, nem variante “impura' ’do modelo dominante
“ africano” (nagô), nem fenômeno periférico ou exógeno (transferência
da umbanda, refugio de homossexuais, recuperação ideológica da imagem
do bom selvagem), a presença do Caboclo no candomblé pode ser
analisada a partir de outras abordagens e hipóteses.
Parece-nos assim mais plausível avançar a hipótese segundo a qual
o processo de absorção de elementos “ameríndios” pela cultura religiosa
afro-baiana seria guiada pela lógica interna do simbolismo religioso do
candomblé. Trata-se de uma questão central que abordaremos num
primeiro momento. Logo, partiremos do estudo da posição da própria
figura do Caboclo no sistema simbólico do candomblé baiano, tentando
precisar as significações que lhe são atribuídas neste contexto específico.
<
27
NOTAS
3. A frase que lhe é atribuida por Ruth Landes (1967:188) - “Eu detesto
ver a tradição clássica ser corrompida” - é significativa.
4. Sobre o conceito de nação nos candomblés, ver o que diz Costa Lima
(1984:20) : “ a nação, portanto, dos primeiros africanos da Bahia foi aos
poucos perdendo sua conotação política, para se transformar num
28
conceito quase exclusivamente teológico. “Nação” passou a ser, desse
modo, o padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da Bahia,
estes, sim, fundados por africanos angolas, congos, jejes, nagôs,
sacerdotes iniciados de seus antigos cultos, que souberam dar aos grupos
que formaram a norma dos ritos e o corpus doutrinário que se vêm
transmitindo através os tempos e a mudança nos tempos “ .
13. V. Brown, 1986; Montero, 1985; Magnani, 1986; Velho, 1977; Silva,
1976; Ortiz, 1978.
Ay
14. Sobre a reafricanização v. Prandi e Gonçalves(1989); Rocha
Ferretti(1990);pantas(1987); Teles dos Santos(1989)
2. 0 DOIS DE JULHO
31
“carro da bagagem”, ao som de pandeiros, violas,
aclamações delirantes,fanfarras, etc. “ 2
O Dois de Julho de 1824 - que tinha caído num dia útil, uma sexta-feira
- tomou-se, com o passar dos anos, a data oficial das comemorações da
Independência da Bahia e, como tal, um feriado em Salvador e nas
cidades do Recôncavo.
Nos anos seguintes ocorre uma transfiguração da realidade em
imagem. Em 1826;os “patriotas” mandaram esculpiraimagem do Caboclo,
colocando-a sobrè a mesma carreta que desfila até hoje nas ruas de
Salvador. A imagem é em tamanho natural, de cor marrom viva, com
traços físicos característicos do ameríndio. Ela traz uma corrente no
pescoço e segura uma lança de madeira, cora a qual ataca um dragão,
símbolo da opressão colonial, que está sob seus pés. À sua frente
está uma armadura de estilo medieval, feita de ferro, sobre um canhão.
Dos lados esquerdo e direito do canhão, encontram -se très
baionetas. Há uma bandeira do Brasil no canto direito do carro. Este
é todo enfeitado de palmas e “folha brasileira” 1, com dois anjinhos
barrocos em cada lado, além das placas cora nomes dos heróis da
Independência, em sua maioria estrangeiros, entre os quais se destacam
Labatute Cochrane.
Os festejos do Dois de Julho nem sempre foram tranquilos. Os
“patriotas” saqueavam casas de portugueses, fossem eles naturalizados
ou não: erao“Mata-Maroto”. Segundo CidTeixeira(1985), “abriu-se uma
época de lusofobia raivosa e pitoresca, que ensanguentou as ruas da
Bahia em 1831 (...) Essa lusofobia tinha o caráter de uma luta social, de
pobres contra ricos, dado o virtual monopólio do comércio nas mãos dos
portugueses. Que se nacionalizasse, era a exigência dos liberais, que
abriram os trabalhos parlamentares de 1831 com mais projetos neste
sentido. Na Bahia, a população armada exigiu do presidente João
Gonçalves Cezimbra autorização para expulsar ou exterminar os
portugueses”.
O clima de lusofobia era tanto que “fervorosos idealistas”
alteravam seus sobrenomes lusitanos, mudando-os inteiramente ou
32
acrescentando-lhes apelidos, tanto indígenas quanto outros
den o tativ o s de sua coragem , de suas ações em favor da
Independência ou de sua fidelidade a ela. Este fenômeno perpassou
os funcionários públicos, militares, artesãos, o clero e proprietários
da grande lavoura. Surgiram assim, um alferes Caissara, um lapidário
Mandacaru, um Tigre de Borborema, um sargento Tupinambá, um
furriel Firme Independente, um Pitanga, um quartel-mestre Paraassu
Caxoeira e um João Acaroba Tibiriça que antes se chamava José
Pereira Galo (v. Azevedo, 1973, Edelweiss, 1981). Um trecho do ro
mance O feiticeiro de Xavier Marques (1975) também ilustra este
fato: “numerosos Gamas, Vieiras, Cabrais, Albuquerques, Lisboas,
Monizes, Carvalhos, passaram a chamar-se pitorescamente Sicupiras,
Camaquans, Paraguaçus, Aratinguis, Caraunas, Ipirangas, Pirajás.
Um deputado à constituinte, depois estadista e grande do Império,
com um título de visconde, adotou esta beleza onomástica: Gê
Acaiobade Montezuma” (p. 11).
Em 2 de Julho de 1846, o tenente general José de Souza Soares de
Andrea, português naturalizado brasileiro, Presidente e Comandante de
Armas da Província da Bahia, declarou que não achava conveniente a
continuação do desfile com a estátua do caboclo, já que o considerava
uma humilhação imposta aos portugueses. Achava ele mais apropriado
que se fizesse uma estátua de uma cabocla representando Catarina
Alvares Paraguassu, esposa do legendário Caramuru e mãe mítica da
cidade da Bahia, vestida como índia, brandindo a bandeira nacional com
a mão esquerda e mostrando ao povo com a mão direita as palavras do
primeiro imperador, “Independência ou Morte”. Era preciso que o caboclo
desaparecesse de circulação. Entretanto, diversos veteranos da
Independência se reuniram e manifestaram seu descontentamento com
as disposições tomadas. Uma comissão se dirigiu ao Presidente da
Província e, depois das explicações, um exaltado declarou: “Olha, o
Caboclo pertence ao povo, não é do governo. Ele sai nem que tenha que
morrer alguém”. A solução encontrada foi o desfile tanto do Caboclo
quanto da Cabocla do presidente3, que foi assim retratada pelo poeta
baiano Francisco Moniz Barreto:
33
“Essa cabocla engraçada
Que traz a face tostada
Dos beijos que dá-lhe o sol...”4
35
0 DESFILE
36
das fachadas e “ ... o transeunte que reparava no cuidado e capricho que
presidiu ao preparo das galas destes festejos, passava sob abobadas de
bandeirinhas, entre aléas de ticuns, de palmas, de bambus, transpondo
arcos triumphaes levantados em diversos pontos” .10
A convocação para a Festa do Caboclo se dava através de um
“Aviso Patriótico”, como o publicado pelo jornal O Alabama :
37
da Republica feitas em setim, e destinada a ser depositada no
monumento”, e “os carros com o intendente, com membros do conselho,
comissão da assemblea, com familias, etc.” . Um outro bloco era
constituído de “Banda de música do 5’de artilharia puchando os
aprendizes marinheiros”, e de um “Arsenal de guerra com a respectiva
banda empunhando os menores flamulas estriadas de vermelho e
branco”, cores da bandeira da Bahia. Logo depois, vinham “orphãos
de S. Joaquim, levando flamulas verdes e amarei las e pequenas
bandeiras, tendo á frente a sua bem organizada banda”. Por fim,
fechando o cortejo, “ Músicos do 27e 3' corpos de policia”, “ Músicos
do 9 ’de infantaria com um batalhão de populares” ecavalleiros” Segundo
o Diário da Bahia, “o préstito foi sempre recebido com chuva de con
fetti e flores percorrendo as ruas principaes da freguezia, indo até o
campo do Barbalho, em cuja fortaleza o exercito libertador plantara
pela primeira vez o pavilhão nacional, saudando-o com dois tiros de
peças que foram desencravados nesse momento memorável” . O
desfile chegava ao final às dezesseis horas, quando os carros
chegavam ao largo de Santo Antonio “numa atmosfera deenthusiasmo,
em que se ouviam os vivas dos populares, o bimbolhar dos sinos da
matriz, o espoucar de muitos foguetes e hymno da independencia tocado
por todos os músicos” .
Por mais que houvesse, por parte da imprensa e, por inferência, das
elites baianas, uma preocupação com a participação popular na Festa do
Caboclo, convém notar que a solicitada participação deveria ocorrer num
clima “cívico” e nos moldes de um desfile oficial. Neste sentido, a
participação de negros e mestiços no desfile era algo incômodo para as
elites, j á que comemoravam o Dois de Julho de forma deveras diferente.
Quando do desfile do “immortal Dous de Julho”, ocorriam batuques de
negros em lugares por onde o desfile passava, algo considerado
intolerável em 1868:
38
seus escravos pernoitarem fora para andarem rasgados e
irem no outro dia de cabeça quebrada para casa. ”13
40
Fessa de liberdare
Mai liberdare ni nome só.
Quim trabalha ni liberdare anani dize que ta negro,
qui quéforra parente; liberdare um diasô.
-Masaquevens
-Iô ja recrama um vez a ossincellence contra esse
barbarismo de changé; mai agora sicandolo cresceu
Iô pensa qui bahiano tem vergonha, mai non tem :
ossicellencehade crê?
Bahiano ni dia 2 de Julho bota changé ni rua; e
changé passa ni cruze de Passichoá, um sem corrente ni
pescoço, ni frente de cavalleiro que precede carro
liberdara, que traze caboçapisando serpente!
Que acha ossincellence desse coinsedenciamento?
-Nada de mais; éfácil ir a escravidão defacto, isto é
homens captivos e agrilhoados apasseio pelas mesmas
ruas por onde passa a liberdade de pau.
E uma verdadeira realidade; o Brazil subjugou a
escravidão, sacudiujugos appressivos, masfoi in mente;
teve desejos, mandoufazer um quadro. E realmente bo
nito, apesar de anachronico, de ridiculo.
-E frangera qui ve essaféssa; qui vê corxa nijanella,
arco ni rua,flor nipeito e armamento de sodado, frangera
Jaze um trisse desse pobre tera aqui é tudo cheia de
contradiziamento
• Misera! 18
41
A Festa do Caboclo, que atravessou o Império sem interrupções,
foi suspensa em 1919. Os “carros emblemáticos” não mais desfilaram,
apenas ficavam expostos à visitação pública, no Pavilhão do Largo da
Lapinha. Em 1942, um coronel, Edgar da Cruz Cordeiro e o secretário
geral do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Francisco da Conceição
Menezes, resolveram recuperar o tradicional desfile. A partir de 1959,
houve uma transferência de responsabilidades por atividades para a
Prefeitura, por exemplo, a recuperação da pintura dos carros e do Pavilhão
onde são guardados, e o pagamento das pessoas que puxam os carros
ao longo do cortejo. (v.Nunes, 1989; Teixeira, 1989).
Atualmente, o desfile acontece num clima bastante peculiar, no
qual os partidos políticos tendem a se enfrentar.19 E, nestes últimos
anos eleitorais há uma tendência de os partidos políticos se apropriarem
da Festa do Caboclo,em termos de uma camavalização, após o carro do
Caboclo, em que samba, aplausos, vaias e palavras de ordem se misturam
no cortejo. É comum ouvirem-se palmas para o Caboclo e a Cabocla e
expressões dirigidas a eles como, por exemlo, “Batam palmas para o seu
povo”, “ Ele é lindo”, “Olha o índio” (dita por uma criança), ou, numa
forma jocosa, “O Caboclo é viado” Tudo isso entremeado de muito
samba, gritos e aplausos das sacadas. Curiosamente, nos últimos anos
chove durante o final do desfile, o que faz as pessoas dizerem “a Cabocla
quer chuva”.
0 POVO DE SANTO E O DESFILE
43
algum tempo se faz notar. Seja vestidos de “índios”, ou com roupas
próprias dos candomblés, a sua presença é marcante. Alguns desfilam
há décadas, outros começaram há poucos anos. D.Maria José dos Santos,
fiiha-de-santo do pai-de-santo Joãozinho da Gomeia, disse desfilar há 50
anos. Vestida a rigor, com colares e anáguas, ela faz questão de comparar
a festa de “antigamente” e a de hoje:
44
não o são. Ou seja, não foram lavados no axé do santo e, portanto, não
Mtão carregado do sagrado. Há uma distinção entre as contas de orixá,
que só devem ser usadas nas cerimônias dos terreiros, e as que nada
mais são que adornos para o desfile. O uso daquelas no desfile pode
constituir uma violação ritual, ocasionando reações inesperadas por parte
do orixá, conforme João Batista dos Santos:
45
que, passada a festa, quando os Em blem as da
Independência retomam ao pavilhão da Lapinha, os
funcionários do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia
têm uma canseira tremenda para limpar e desinfetar tudo. É
pipoca, é farofia de azeite, é acarajé, é charuto, é milho
cozido, é feijão com azeite, é vela de várias cores, é acaçá,
todo um arsenal de coisas que possam compor um
despacho caprichado. O cairo fica de fazer nojo. Detergente
haja para tirar os vestígios de gordura e eliminar o
mau-cheiro da fermentação”.
(Vianna, 1990)
46
Há pessoas que tocam a fita que ornamenta o carro e rezam
itircunspectamente. Alguns jogam flores e outros tentam levar as que
decoram os carros como se fossem fontes de poderes especiais. A
propósito, este gesto está presente desde o século XIX. O jornal O Ala
bama assim se pronunciou sobre a exposição pública dos “carros
Jriumphaes”:
47
0 ato de colocar dinheiro aos pés do Caboclo não é algo restrito aos
carros cívicos, isto também ocorre nas festas dos caboclos nos
candomblés, que têm um espaço denominado “aldeia”. Esta é feita dentro
ou fora do barracão, dependendo do terreiro, sendo decorada com frutas,
bandeirolas, charutos, imagens de “índios” e palmeiras. Há terreiros em
que a “ aldeia”, localizada externamente, é também chamada de
assentamento do Caboclo. Neste espaço, as pessoas reverenciam os
Caboclos, colocando cédulas de dinheiro.
Nota-se, portanto, um sentido de continuidade entre um desfile
político-social, uma festa cívico-popular, que se realiza anualmente, e o
cotidiano dos adeptos de candomblé. Estamos, assim, no campo da
circularidade de níveis culturais, no sentido de Guinzburg( 1987), Ou seja,
se as elites reelaboraram o sentido inicial do desfile de 1824, dando ao
/
Caboclo, e posteriormente à Cabocla, um caráter meramente alegórico, o
povo-de-santo, por sua vez, fez destas mesmas imagens objetos sagrados.
Entretanto, devemos observar que as representações religiosas
do Caboclo no candomblé baiano não podem ser caracterizadas como
mera reprodução de um acontecimento sócio-político. Por certo há
valores e noções que reduzem a diversidade das etnias a uma
concepção única de indígena, e que ressaltam o caráter heróico do
autóctone. Afinal de contas, as representações religiosas, como há
muito foi notado por Durkheim(1968), são representações coletivas
e, portanto, passíveis de terem uma relação profunda com a
sociedade.
A construção simbólica do Caboclo no candomblé traduz uma
referência àqueles que aqui estavam antes da chegada dos portugueses
e dos próprios negros, ou seja, aos índios, e o aprendizado que com eles
fizeram. A referência ao “índio” do Dois de Julho é factual, inscrevendo-se
no tempo recorrente, da memória político-social do Estado, enquanto o
“índio” do candomblé reporta-se a um outro tempo, primordial. Apesar
de haver uma diferença conceituai entre o Caboclo da Independência e o
Caboclo do candomblé há um parentesco simbólico entre ambos, na
medida em que o sentido de continuidade entre os índios da *
Independência e o “dono da terra”, como é expresso no espaço litúrgico,
48
adquire uma dimensão política.
O povo-de-santo não apenas reverencia as imagens do Caboclo e da
Cabocla no desfile do Dois de Julho, mas também faz festas, no mesmo
dia, em seu louvor nos terreiros. Contudo, os Caboclos ali
homenageados não são os do desfile, mas sim os do pai ou mãe-de-santo
dos respectivos terreiros.
Essas festas paralelas não se resumem aos-terreiros de candomblé.
No Parque de São Bartolomeu, em Pirajá, as homenagens aos Caboclos
ocorrem por todo o dia. Palco de uma batalha decisiva contra os
portugueses, o parque é um local onde os cultos afro-baianos se misturam.
Um barracão próximo à cachoeira de Oxum serve às necessidades da
homenagem a esta divindade. É comum os Caboclos “descerem” e depois
banharem-se nessa cachoeira. As oferendas são colocadas em lugares
onde o mato é cerrado, simbolizando um espaço próprio dessas
divindades. A área é ocupada tanto por membros dos candomblés quanto
por adeptos da umbanda, que também vão prestar reverências aos
Caboclos no Parque São Bartolomeu.
No 2 de Julho, em pleno Parque, ocorre a festa do Caboclo Angorou,
que para os umbandistas é o mesmo Oxumaré. Segunde matéria do jornal
A Tarde, em 1977 a festa atraiu para o local centenas de pessoas que
foram confundidas com os integrantes da romaria cívica àquele local,
marcando o encerramento dos festejos do Dois de Julho no Pantheon a
Labatut, general francês que comandou o exército brasileiro contra os
portugueses.
Na cachoeira do Parque, ao mesmo tempo em que espoucavam os
foguetes e eram pronunciados os discursos cívicos, o samba de roda,
descontraído, marcava a festa popular, com dezenas de barracas que
vendiam cerveja e iguarias baianas No parque, que é considerado “a
grande aldeia”, eram feitas as “obrigações”, preparadas com abóbora,
inhame vermelho, azeite de dende, flores matizadas e mel e acondicionadas
em um alguidar - prato de barro. Durante todo o dia o samba de caboclo
eclode por todo o São Bartolomeu.
As festas dos Caboclos no dia 02 de julho muitas vezes são
anunciadas nos jornais da cidade:
49
CANDOMBLÉS
“As festividades e obrigações de candomblé serão
realizadas, neste fim de semana, nos seguintes terreiros:
O terreiro Omrnidê na Rua Getúlio Vargas, 177 em
Escada bate hoje, a “Festa do Caboclo”.
O terreiro Tengo Lemba, na Praça Raimundo Flecheira
n.9, Liberdade, comemora hoje e amanhã, a “Festa do
Caboclo”.
O terreiro Pena Branca, no Vale do Bonocô, 49 fundos
(próximo à casa Flor do Vale), comemora amanhã “Jurema
do Caboclo Pena Branca e Festa do Marujo ” 21
r
j'\ \ f As festas para os caboclos no dia 02 de julho acontecem não só em
Salvador. Em cidades como Cachoeira e São Félix, elas também se concentram
nesta data. Mesmoem Ilhéus,cidade localizada no sul da Bahia, há umafesta
grandiosa no Terreiro de Odé, do babalorixá Pai Pedro, sacerdote que foi
iniciado no candomblé em 1942, em Salvador e em 1946 retomou à Ilhéus para
fundar o Terreiro de Odé. A festa do Caboclo é amaior do terreiro pois, além
de aludir à data histórica da Independência baiana, também comemora o
nascimento do “dono da terra”, o nativo brasileiro. A festa do Caboclo,
segundo Pai Pedro, é uma homenagem aos Tupinambás - chamados de
caboclos - que tiveram “grande participação na expulsão dos portugueses
na luta pela libertação da Bahia”. Ele lembrou que “os caboclos saíam da
ilha de Itaparica de canoa para atacar os navios portugueses que queriam
sitiar a Bahia” .22
Afirmando que suas festas não têm patrocinadores, mas que a própria
comunidade do candomblé programa e banca sua organização, Pai Pedro
conclui : “se o socialismo chegar ao Brasil, nós não vamos sentir nenhuma
diferença”. Assim explicou o caruru de 40 mil quiabos e a profusão de
comidas e bebidas típicas servidas em sua Festa do Caboclo, produto
de um rateio entre os próprios filhos-de-santo, como acontece em todas
as festas que o terreiro realiza ao longo do ano.
Na festa do Caboclo, o terreiro é todo decorado em verctee amareio e
rodeado de palhas de coqueiro, significando as matas. No banquete, há
50
a distribuição de “jurema”, bebida feita de seiva da árvore do mesmo
nome, com mel de abelha e vinho branco, seguida da distribuição de
abóbora cozida com mel.23
Apesar do Dois de Julho ser a data por excelência para as festas de
Caboclos nos candomblés, elas também acontecem em datas posteriores
e anteriores, também anunciadas nos jornais:
51
NOTAS
52
, 0 TERMO E AS DEFINIÇÕES DE
CABOCLO
53
por Roquette Pinto revelam a estimativa de Brancos(51%), Mulatos(22%),
Caboclos(Jl%), Negros(14%), Indios(2%) para uma população de
40.000.000.
Na bibliografia afro-brasileira, o sentido do termo caboclo aparece de
forma diversa.
Artur Ramos( 1961 ),falando das misturas entre raças, cita o cruzamento
do branco com o indio, que deu no mameluco, ou mamaluco também
chamado, em vários pontos do país(p.361). A mais importante contribuição
de Artur Ramos ao tema encontra-se na seguinte afirmação: “a expressão
caboclo ou caboco, do tupi cáaboc, tirado ou procedente do mato segundo
T.Sampaio, é empregada em muitos lugares como sinônimo de Mameluco,
tem na realidade vários sentidos, empregado pelo povo e por diversos
autores”(Op.cit.:362)
Edison Carneiro, nos très momentos de sua obra(1964,1981,1986)em
que procura definir o que sej a o caboclo no candomblé, oscila entre “os
orixás novos”, “os deuses indígenas”, “espíritos familiares a certas tribos
^ indígenas”, “os encantados caboclos” que “são os mesmos deuses dos
nagôs e dos jêjes, já modificados pela influência dos negros de Angola e
do Congo, e mais recentemente, pela influência espírita”.
Um reducionismo aparece em Clouzot(1951:12): “caboclos e orixás
são os mesmos deuses batisados de dois nomes diferentes”.
A definição do Caboclo como um “encantado” , que
Campos(1946)identifica no see. XIX como o nome do santo protetor do
pai ou mãe de santo será frisado por vários autores (v.Mendonça, 1982;
Dantas, 1988; Sena, 1984) como sendo aquele que depois de morrer se
/ encantou3. Em contrapartida, há os que definem o caboclo como os
^ espíritos dos índios brasileiros (v. Landes, 1967; Yoshiaki, 1986; Magnani,
1986; Monteiro, 1985; Montero, 1974; Ortiz, 1978) presentes tanto na
umbanda quanto no candomblé.
No caso da umbanda, é grande a ênfase na influência do kardecismo,
pois os Caboclos vão ser vistos como entidades de luz dos nossos
antepassados de luz (v.Montero, 1974; Ortiz, 1978). Contudo, há os que
destacam as duas acepçoes(v.Mendonça, Op.cit.) e aqueles que os vêem
como deuses e semi-deuses nacionais (v.Trindade-Serra, 1978; Lody,
1977; loop, 1972), índios ou pessoas do campo (v.Velho, 1977), genie do
interior diferente do índio (v.Vandezande, 1975).
Mesmo que esses desencontros se façam notar nas diferentes regiões
em que as religiões afro-brasileiras foram analisadas4, convém notar que
a referência ao caboclo se dá em maior grau ligando-o ao indígena
brasileiro, por mais que haja Caboclos de origem outra, como mostra
Brown(1986) ao notar um João índio, da India e não do Brasil.
Não é por simplesmente estarem situados num panteão de origem
africana que os Caboclos identificados cora a Africa vão ser confundidos
com os de origem brasileira ou mesmo com os orixás, mas justamente pela
compreensão do que seja o indígena, popularmente identificado pelo
uso de enfeite de penas:
57
sessões de caboclo. Vale notar que esta classificação não se resume a
uma transposição pura e simples do kardecismo, mas significa uma
tradução, por parte dos membros do candomblé, de concepções acerca
do indígena. Nesse sentido, os índios “civilizados ou selvagens” designam
os caboclos “desenvolvidos e não desenvolvidos” .
Apesar de ser na maioria das vezes caracterizado como índio - “o
verdadeiro caboclo é o índio”- algumas entidades como Boiadeiro, Ogum
Marinho e outros, que não têm, explícitamente, uma ligação com alguma
“tribo”, são chamadas de caboclos, ou são vistas como tendo parte de
Caboclo.
58
entidades podem conversar claramente com as pessoas, provocando-as
à vista geral, através da pergunta “como vai seu moço(a)?” Uma outra
semelhança é o ritmo das músicas: é mais frenético que nas festas para os
orixás, e pode rapidamente transformar-se num samba de caboclo.
Numa visão de conjunto das entidades que são identificadas como
Caboclos, “indígenas” ou não, podemos observar que a categoria
caboclo, incialmente adotada pelos cultos afro-baianos para identificar
entidades nas sociedades indígenas brasileiras, alargou-se, tomando uma
amplitude de significações que dão conta de elementos autóctones:
59
\S A DIFERENÇA NA IDENTIDADE:
^ ORIXÁ ECABOCLO
60
Linhal Linha 2 Linha 5
Chefe da Linha Oxalá Yemanjá Oxóssi
Primeiro Astral
Plano:
Chefe de Legiões Caboclos Caboclas Caboclos
Sub Legiões Ubiratão Iara Arranca Toco
Falanges Ubirajara Indaya Jurema
Sub Falanges Ubiratan NanaBurucu Araribóia
Aymoré Estrela do Mar Guiné
Guarcti Qxnn Arruda
Guarani Inbassa Pena Branca
Tupi Sereia do Mar Cobra Coral
Segundo Astral
Plano:
Guias Caboclos Caboclas Caboclos
(Brow, 1986:60s)
61
No candomblé, há uma profunda distinção das duas entidades. O
caboclo é visto como uma entidade mais movimentada, “firme, ligada ao
chão, uma coisa que tem mais ação”. Por ser o orixá, ou inkice, como
frisavam os pais de santo da nação angola, “o dono da cabeça, a energia
que rege, que dirige seu corpo”, haveria um sentido de hierarquia entre
eles, que se traduz na realização de trabalhos, ebós, com o fim de ajuda
material:
62
“A pessoa que recebe orixá, se a pessoa adoecer, e se
for caso espiritual, o orixá vem, diz o que tem que fazer,
pode até pegar e a pessoa melhorar. Mas o orixá em si ele
não vem para pegar um cliente, ou um filho de santo numa
casa, para conversar, dizer “você tá com problema” você
tem que cuidar. Não, ele deixa essa parte para ser colocada
pelo caboclo.”
(J.B.dosS.)
65
I,
No “assentar” do caboclo, os cânticos são em português, apesar
de haver palavras em línguas bantu e “indígenas”. Não há rigidez no
horário, contudo o assentamento não pode ser feito ao meio dia ou à
meia noite.
Buscamos entender essa distinção na medida em que, a princípio,
as características do orixá e do caboclo pareceriam idênticas, sendo assim
compreendidas por alguns autores (v. Carneiro, 1964; Bastide, 1974b).
Contudo, a própria observação nos terreiros visitados nos fez ver que,
para os agentes envolvidos, não há nenhuma contradição no fato de
existirem várias entidades de origens diversas num mesmo plano do
religioso. Muito pelo contrário, são nítidas as suas distintas concepções,
aí incluídas as diferenciações quanto ao espaço.
66
INICIAÇÃO
67
que ele não se constituía em um orixá. A plenária decidiu que não se
podiam iniciar filhos(as) de santo em caboclo, com a justificativa de que
ele “é simplesmente um guia, espécie de orientador, necessário num
terceiro, mas não podendo agir como um orixá”, como transcreveu a
Tribuna da Bahiaem 29/03/80. Explicava Miguel Ferreira que “toda ialorixá
e todo babalorixá tem um caboclo, que deve ser preservado, pois ele faz
parte de nossa cultura, mas caboclo não é orixá. Ele tem que ter um
padrinho ou uma madrinha (um orixá homem ou uma mulher).
Apesar dos terreiros afirmarem que não há necessidade de se iniciar
caboclo, como se inicia um orixá, pois “caboclo não dá nome, tem nome )(
(J.B.dos S.)”, verificamos que, em alguns terreiros, predominantemente
da nação Angola ou, para usar uma classificação “nativa” mais precisa,
Angola-Caboclo, fazem rituais para o caboclo que servem de substituição
para a iniciação. Num terreiro. Terreiro de Ogum Yemanj á Té, a mãe de
santo, M. S, dos S., nos informa que o caboclo “não se raspa, faz-se uma
coroa”, e que havia muita diferença, pois ao invés de saia, vestia-se
saeta, calçolão e capa - “Eu vim vestir saia depois de feita”. As distinções
chegavam aos animais para a matança, pois eles eram vestidos com uma
capa enfeitada com fitas, “tudo com as cores dos caboclos (verde e
amarelo)”. Outra distinção básica é que havia padrinho e madrinha e “ a
orquestra era muito bonita, tinha flauta, viola, pandeiro, ganzuá,
harmônica”.
Em contraposição à “feitura” do “santo africano”, há terreiros que y
“batizam “ os caboclos. Importa salientar que, neste batismo, há elementos ^
comoo sangue sacrificial, a lavagem, o banho de nèd(infusãode folhas
maceradas) e a reverência è cabeça, que se encontram dentro do sistema |
afro-baiano através da cerimônia chamada bori ou “dar de comer à |
cabeça”. 7
Segundo A.M.C., nação Angola, “a gente passa três dias na “roça”
(terreiro), mas não é recolhido não; em vez de contas, a gente usa uma
corrente grossa, ou prata pura ou com alguma coisa pendurada, que fica
três dias no sangue; não raspa nem pinta, não se pode levar sol nem
carregar peso na cabeça porque se botou sangue aqui no meio da cabeça
também; a vestimenta é a mesma dos iaôs; a gente também toma banho j
68
abô, e tem que beber desse banho enquanto estiver na roça; a gente
>tem nome de santo, como no lado africano; não posso usar a corrente
pra conversar com meu noivo e eu só uso ela na segunda e sexta
iparanão sujar”
Após o “batismo”, os caboclos são levados ao Parque S.Bartolomeu,
iftntuário e palco de batalhas entre portugueses e baianos, no processo
4a Independência da Bahia, para toda uma homenagem especial. No
]pcal, são oferecidos aos caboclos pratos de salada, milho branco ou
COCO com milho vermelho, mel e fumo, a depender do caboclo. Depois
;4os caboclos “descerem”, cantarem e dançarem, eles vão tomar banho
na cachoeira do Parque. Esta mesma mãe de santo informa que, no dia
•eguinte, “tem que ir também no “milagre de São Lázaro” (uma pequena
tlocalizada na Praia de Ondina), se entra no “milagre”abaixadinho,
leva pipoca e vela, e acende dentro do “milagre”. O velho Obaluaê, que
Corresponde São Lázaro, desce e tem vezes que não desce.” 8
69
A EXIGÊNCIA
Esta mãe de santo que seus dois primeiros maridos, por não y
acreditarem no caboclo nem obedecer-lhe, haviam m orrido/
repentinamente.
Um outro depoimento que ilustra a questão é o relacionado a
Joãozinho da Goméia, famoso pai de santo baiano da nação Angola10,
que se instalou no Rio de Janeiro. Dona Neném, remanescente do terreiro
70
Goméia localizado no bairro de São Caetano, no qual viveu 39 anos,
d a, em entrevista ao Jornal da Bahia de 03/04/80, que a extinção da
?a deu-se pelo “desgosto que o caboclo de “seo” João (o Pedra
Preta)tevecom ele”., pois não estava cumprindo com as obrigações devidas:
“até para fazer os trabalhos do dia 02 dejulho, ele estava pondo dificuldades”.
‘Segundo ela, Joãozinho da Goméia foi advertido pelo caboclo Pedra Preta de
ÿ g seu fim estava próximo - “o aviso foi mn acidente de carro antes de
l ttorrer”. A dissensão entre o pai de santo e o seu caboclo era porque a
entidade queria que o babalorixá voltasse a residir em Salvador e ele se
fecusava tenninantemenle a sair do Rio de Janeiro.
Os episódios que os adeptos do candomblé narram servem para
reforçar o discurso acerca da força de uma entidade que até então era
considerada como periférica na estrutura simbólica do candomblé baiano.
Esta constatação parece-nos importante de ser ressaltada, pois se, como
ívimos, há uma hierarquia na própria definição das entidades orixá e
Caboclo, com relação às suas determinações e vontades há uma inversão.
O depoimento a seguir ilustra esse fato:
71
sistema religioso afro-bai ano, cujo não cumprimento traz em si
consequências imprevisíveis para o indivíduo - consequências estas
que se mostram em níveis diferenciados, já que “os caboclos são mais^v
exigentes que os orixás. Quando querem, querem mesmo”. (R.D.S.)
72
A MANIFESTAÇÃO
73
sistema simbólico religioso.
A manifestação do caboclo anteriormente à do orixá ou, no outro
extremo, num intervalo em tomo de um ano após o descer do orixá, deve
ser entendida pela representação simbólica que os adeptos fazem do que
seja o caboclo. Ao dizerem que “um caboclo não gosta de descer numa
pessoa de cabeça raspada”, ou seja, num(a) iniciado(a), eles estão
distinguido as duas entidades, já que caboclo não se inicia, “nasce feito”, X
e por isso não se manifesta no corpo de um(a) iniciado(á). Por outro lado,
estão também a traduzir simbolicamente a idéia de que o índio usa cabelo
comprido e que raspar é coisa de africano: “Nas tribos, eles não raspam
o cabelo, eles cortam de forma oval”.
Procuramos saber como eles sentiam essas manifestações. O momento
inicial foi sempre narrado da seguinte forma - “um desmaio a gente sente,
A Você tá querendo correr e não consegue. É como se tivesse um buraco na
sua frente e você fosse cair”. Apesar dessas sensações serem as mesmas
para as duas entidades, há diferenças do “receber” caboclo e orixá, que
se mostram como oposições:
74
“A sensação é bem diferente, o orixá é bem mais calmo,
o caboclo é bem mais bravo. A diferença do orixá é que o
orixá vem mais lento, é uma coisa mais suave, e o caboclo
não, o caboclo, quando vem, ele vem de vez, dando
bairavento mais forte do que o orixá”
(C.R.P.S.)
1. Se, inicialmente, o termo caboclo foi criado pela elite nacional, mais
tarde o seu uso, já com toda a carga negativa, vai ser motivo de proibição
numa das leis do Diretório de Pombal (v.Gomes, 1985). O Alvará de 04/04/
1755 fala de caboucolo em lugar de caboclo, e proibe o seu uso, como
nome injurioso dado aos portugueses casados com índios, aos que
nascerem destes matrimônios (v.Beaupaire-Rohan, (1889)1956).
76
Até onde nossas pesquisas puderam chegar, não encontramos no
:plo do Haiti a entidade correspondente. Rigaud(l953)fala dos loas -
stere, esprit des ancêtres, invisible ovoudoo” e diz haver divisões.
Contudo, o loa creole não é mencionado.
IjL Entrevista concedida por Vivaldo da Costa Lima, e realizada por Z.D. e
A P em 17/10/68.
77
CANDOMBLÉ DE CABOCLO :
Um Conceito Delicado
78
que o Caboclo do pai-de-santo Bernardino da Paixão era muito
Gonhecido, e até hoje, há festas para os caboclos nesse terreiro que é o
mais conhecido da nação Angola.
A designação candomblé-de-caboclo cobrindo exclusivamente os
candomblés bantos apresenta um outro problema. Edison Carneiro sabia
da existência de caboclos em candomblés denominados de origem
sudanesa. Não é à toa que em Candomblés da Bahia (1964:29) irá
reconhecer que “no Engenho Velho e no Gantois, duas casas onde a
tradição keto exerce uma verdadeira tirania, pude ver dançar e cantar para
encantados caboclos. É verdade que, nos candomblés nagôs, isto
raramente acontece, mas é uma deferência a que não podem fugir nem
mesmo esses candom blés” . No entanto não os denom inava
candomblés-de-caboclo preferindo, sim, englobar todos os candomblés
bantus nessa expressão e alijar os candomblés nagôs da influência
cabocla. É possível que à época, como ainda acontece , houvessem
terreiros bantus e Sudaneses que anualmente rendessem homenagens
aos caboclos com festas e oferendas, mas, sem influência visível, no seu
cotidiano, de elementos “ameríndios” . Se essa hipótese é procedente
por que somente os candomblés Sudaneses estariam isentos de serem
classificados como candomblés de caboclo?
Tudo leva a crer que o que estava em jogo na caracterização do que
seria candomblé de caboclo era, portanto, o nível de influência “externa”
permitida pelos candomblés de origem bantu, os quais, além disso, não
tinham, segundo Carneiro, a complexidade dos candomblés de nagô ou
de africano ( 1964):70), e a sua extrema simplicidade ritual possibilitava,
de acordo com o autor citado, o mais largo charlatanismo.
Em Artur Ramos, a preocupação na definição do candomblé de caboclo
dá-se ao nível de um suposto sincretismo religioso afro-ameríndio:
79
intromissão de entidades da mythica ameríndia nas práticas
fetichistas dos negros; dahi a denominação de candomblé
de “caboclo” (mestiço de índio). O material existente é
enorme. No culto de caboclo (lei de caboclo, religião ou
linha de caboclo, como chamam os negros), ha também
curioso syncretismo dos orixás fetichistas com as
divindades dos mythos ameríndios e elementos do folk-lore
branco.
O ritual différé pouco das práticas de procedência
bantu, que já descrevem os, ou dos candomblés
gêge-nagôs, muito deturpados. A dififerença está nas
apparições dos santos que, nesse caso, são de origem
tupy-guarani”.
(1988:122)
Por certo que nem Nina Rodrigues, muito menos Artur Ramos e Edison
X
Carneiro inventaram a expressão candomblé de caboclo. O que eles fizeram
q foi usar uma expressão j á vigente na Bahia do século XIX e reforçar a
visão do povo de santo nagô acerca dos terreiros que explicitamente
cultuavam os caboclos.
O uso que ainda se faz da expressão candomblé de caboclo tem por
finalidade dois objetivos que não são excludentes. Primeiro, um objetivo
“didático”, ou seja, permite uma identificação à primeira vista dos terreiros
que têm uma prática de culto aos caboclos. Segundo, um interesse por
parte dos candomblés ditos de origem africana em marcar, ao nível do
campo religioso afro-baiano, suas diferenças e posições em relação
àqueles candomblés, onde além do culto aos orixás, se realiza culto aos
caboclos. Não é à toa que ao longo da pesquisa de campo fomos
informados por membros desses candomblés de que haveria candomblé
de caboclo em determinados bairros de Salvador. Sempre que chegávamos
no terreiro indicado nos deparávamos não com um “candomblé de
caboclo” mas com terreiros da nação Angola que estavam “batendo”
para algum Caboclo. A expressão candomblé-de-caboclo usada, portanto,
por membros de terreiros da nação keto tinha uma conotação política
80
iras importante, na medida em que serviria de marco distintivo no
mundo dos candomblés baianos.
Por outro lado, muitos terreiros denominam-se de nação caboclo/
angola, ketu/caboclo, ketu/angola/caboclo, ijexá/caboclo ou mesmo de
nação caboclo. O fato de o caboclo vir a ser denominado como mais uma
nação existente em Salvador explica-se também por uma postura política
desses candomblés em relação às outras nações, cujo objétivo é marcar
diferenças, bem como reafirmar a importância da divindade caboclo no
campo religioso afro-baiano:
82
,:cionais dos candomblés, como por exempo atabaques, abebê (peça que
Indui na roupa tradicional deOxum), oxê de Xangô (machado em madeira),
ia objetos de identificação exclusiva dos candomblés de caboclo:
83
candomblé de caboclo”. Fazendo esta afirmação eles reconhecem um y
fato notório, que é a presença do caboclo em todas nações a que pertencem
os terreiros baianos, assim como estão a notar nesses mesmos candomblés
a falta de uma “identidade cabocla”. Nesses terreiros, pelo que podemos
depreender, havia uma representação própria que abarcava objetos - e o
exemplo da apreensão policial em 1919 é expressivo - rituais e termos
específicos, como por exemplo:
84
^cudiamena” - comer
“dakis” - atabaque
Orixás Encantados
Nanã MinNanáKaolokai
Qom Janaina,Kicimbá
Xangô ZaziQmano
Iansã OiáQuitanba
Iemanjá Maré Ici Maré
Oxalá Maçangana, Kaigonga
Oxóssi JecoEdé
Ogum Unicombe Rouxo Uricombe
Ossãe Adomana
Obaluaê HipongaAmatomba
85
Os trabalhos feitos nesses terreiros incluíam a observação das
fases da Lua, da maré, do Sol e da chuva, tidos como referências centrais
dos índios brasileiros. Além disso, a consulta aos membros mais velhos
dos terreiros era obrigatória. Este fato é explicado pela visão que os
adeptos tinham da figura do Pajé, tido como o mais velho, o “rei” das
sociedades indígenas brasileiras. Nesse sentido, havia uma transposição
simbólica do Pajé das sociedades indígenas para o grupo de pessoas de
“maior grau” dos candomblés de caboclo, fazendo com que houvesse
uma espécie de “gerontocracia” na “feitura dos trabalhos” .
86
ORIGEM
it:-
É intricada a fundação dos candomblés de caboclo. De acordo com
Edison Carneiro:
87
proporcionador de ventura. ”
O que é interessante observar é que este candomblé do “pajé” Manuel
Maneta, como é denominado numa outra matéria do Diário de Notícias
de 09/05/1905, a partir da invasão da polícia, era um candomblé
“jéje-iorubano”, como o definiu Nina Rodrigues (Ibid., p.244). Ou seja,
estamos diante de um candomblé que não era sómente de culto aos
caboclos, mas também pertencia à nação jêje-nagô. O que só faz reforçar
o nosso argumento de que o culto aos caboclos nunca foi privilégio dos
candomblés de origem bantus, e que a sua conceituação, tal como
elaborada a partir de Edison Carneiro, é por demais delicada. Mas, de que
forma esse fato colocaria em xeque a origem dos candomblés de caboclos
propagada por Carneiro a partir da informação de Martiniano do Bonfim?
Vamos ao que diz Ruth Landes. Falando sobre os conflitos nas casas de
culto nagô e a cisão daí proveniente com o surgimento de novas casas e
pequenas variações de ritual, ela nos diz:
“ O rompimento mais importante se produziu há cerca de uma geração,
quando uma mãe nagô, chamada Silvana, instalou o chamado culto
caboclo. Naquela região caboclo significa uma mistura de sangue índio
e branco; Silvana se apossou do têrmo porque alegava ter visões dos
antigos índios brasileiros. Ela organizou o culto aos primitivos habitantes
da terra, os índios (...). As idéias cismáticas de Silvana, de êxito imediato
dado o seu prestígio de filha nagô, deram em resultado, hoje, dezenas de
casas de culto caboclo na Bahia. Os deuses nagôs ainda são os principais
no ritual caboclo e somente depois que são cultuados se invocam os
novos seres sobrenaturais” (1967:289s)
Estamos, pois, segundo as transcrições, diante do fato do surgimento
dos candomblés de caboclo a partir de um cisma dos candomblés
nagôs. Mas, o que nos garante que o culto aos caboclos não tenha
também se originado nos candomblés de origem bantu? Não estariam
os autores citados privilegiando os terreiros nagôs que tinham
“virado pra caboclo”, em detrimento daqueles terreiros bantus que
j á cultuavam caboclo? Convém lembrar que os terreiros bantus não eram
objetos de investigação dos pesquisadores. Além do mais qual era a
nação de Naninha que Edison Carneiro citava como tendo estabelecido
88
■ w rim eiro candomblé de caboclo?
H A questão é tão complexa que se formos observar o culto aos caboclos
n a sua essência, ele nos revela básicamente elementos dos candomblés
p e origem bantu e uma quase ausência de elementos dos candomblés
Rnagôs. Os atabaques são tocados com as mãos, bem como nas músicas
■cantadas em português aparecem termos das línguas bantus (kicongo e
I lámbundo), e os nomes dos inkices ( divindades dos candomblés
poongo-angola) é uma constante.
! Outros elementos bantus sobressaem. A forma do caboclo fumar o
charuto, com a ponta acesa dentro da boca, comum entre as mulheres do
v,Zaire, é lembrada por descendentes dos povos bantus em vários estados
. brasileiros, como MG, SP, e RJ (v. Lopes, 1988:193s). O samba de caboclo
que acontece no final das festas, e que é uma resultante do samba de
roda, que por sua vez descende das antigas danças de roda de Angola e
Congo, tem como contraponto à umbigada das rodas de samba a
inclinação das pernas do caboclo em direção à pessoa escolhida para ir
ao centro do terreiro substituí-lo. Uma outra influência bantu, a capoeira,
• é observada no samba de caboclo através de movimentos corporais da
I dança do caboclo. Em contrapartida, tanto no samba de roda tradicional,
quanto na capoeira angola aparecem cânticos de caboclos presentes
' nos candomblés denotando uma interpenetração de influências de origem
’ bantu.
\ Outro exemplo da influência bantu é a forma do caboclo falar. As
' alterações fonéticas produzidas pelas línguas bantus no português do
ï; Brasil, como também a sacralizaçao de um léxico próprio dos terreiros
angolas tomam-se visíveis a partir do momento em que o caboclo se
1 manifesta e começa a falar. Isto acontece mesmo nos terreiros da nação
! iorubá, ditos puros, que cultuam os caboclos.
Por todos esses elementos apresentados é que nos parece
questionável a afirmação do surgimento dos candomblés de caboclo a
partir da cisão de um candomblé iorubá. Se isso fosse possível, como se
explicaria a presença de tantos elementos dos terreiros da nação angola?
Vale lembrar que a rivalidade entre as nações na cidade do Salvador é
secular, e não seria o simples aparecimento do culto aos “índios” que
89
faria com que os candomblés de origem nagô adotassem toda uma
simbologia da nação angola. Aceitar a interpretação da presença do
caboclo nos candomblés baianos a partir de um “cisma”, implicaria em
vermos o fenômeno no âmbito de um certo difusionismo cultural: um
determinado terreiro irradiando para todos os outros uma representação
“indígena”. Parece-nos, portanto, que essa representação constituiu-se
não a partir de um polo irra d ia d o r, mas, de uma maneira global em
inúmeros terreiros baianos, predominantemente os de nação angola.
A elaboração dessas representação teve como referência
elementos bantus, como ressaltamos acima, mas atendeu a objetivos
aparentemente bem definidos no processo de transformação dos
candomblés afro-baianos. Ou seja, o caboclo introduziu, no âmbito do
universo religioso afro-baiano, um discurso de valorização do elemento
autóctone que implica, ao nível do discurso dos adeptos, em uma
valorização da cultura indígena:
91
pelo próprio Caboclo, o qual, manifestado no pai ou na mãe-de-santo,
pega o animal, geralmente um galo, e, após, torcer o seu pescoço, crava
os dentes nele, bebendo o seu sangue. Não há necessidade de
intermediários : o próprio Caboclo é o imolador e o receptor do sacrifício. X
Segundo uma mãe-de-santo, “é muito difícil o Caboclo conceder o direito
de cortar o animal. Ele tem o orgulho de dizer “Não tenho pai, não tenho ^
mãe”, e não se curva a ninguém, mesmo sendo mãe-de-santo ou ogã”.
A separação das partes do animal que vão ser colocadas no
assentamento do Caboclo, já que estão carregadas de axé - força vital- é
feita pelo próprio Caboclo ou por um ogã.
Um traço distintivo do Caboclo com relação aos orixás é o tratamento
dado na matança às partes do animal sacrificado. Existem partes do corpo
impregnadas de axé - como, por exemplo, coração, fígado, moela, pés,
asas, cabeça e o sangue - que pertencem aos deuses (v.Elbein dos Santos,
1982:42, Bastide: 1961 ;21). Uma parte do que restou do animal sacrificado
é cozida e colocada em alguidás nos assentamentos dos orixás, e a outra
parte será consumida no fim da festa pelos presentes.
No que tange ao Caboclo, as partes do animal sacrificado não devem
ser cozidas. Para o povo-de-santo, há uma regra básica: comida de Caboclo
é crua, não se usando, portanto, azeite de dendê. As partes do animal,
quando não são cruas, são assadas na brasa. Em festas que observamos/X
as partes do animal foram assadas, tanto as que foram destinadas ao
assentamento do Caboclo, quanto as consumidas pelos presentes, no
final da festa.
Nesses dois tipos de rito temos, então, de um lado, as partes do
animal sacrificado cozidas para serem colocadas aos pés do orixá e, de
outro, as partes do animal sacrificado mantidas cruas ou sendo assadas
para serem postas no assentamento do Caboclo. Lévi-Strauss(1973)
mostrou que categorias empíricas como o “cru” e o “cozido” podem
servir de conceitos para distinguir noções abstratas. E, neste sentido, o
cru estaria para o cozido, assim como a natureza estaria para a cultura.
Desta perspectiva, é que no candomblé se constituiu uma proposição - a
imagem do Caboclo é a do ameríndio que come cru ou assado, mas
nunca cozido. E ntretanto, estas posições cru e cozido (e,
92
juentemente, natureza e cultura) não podem ser vistas de forma
ie, pois há Caboclos que, dependendo, de sua qualidade, poáom y
•carne crua oucõzidaT Assim se estabelece uma distinção no inte- ^
’do próprio universos dos Caboclos, entre aqueles restritos ao nível
tnatureza - ao que parece, a maioria deles - e aqueles poucos, cuja
idade faz com que tenham uma proximidade com os orixás e que, por
io, estão ao nível da cultura.
93
0 CANDOMBLÉ DO CABOCLO
Í
ie diversos pássaros, destacando-se o tucano. Em outra festa
da, a do Caboclo Boiadeiro, no Terreiro de Xangô, da nação
desenhos eram do próprio Caboclo Boiadeiro, ou seja, a figura
iqueiro, de tez acoboclada, tangendo um touro,
omina na decoração a presença de frutas como por exemplo,
tçãs, bananas, melancias, abacaxis, laranjas, mangas. Elas são
idas por todo o barracão em pequenos arranjos,
as de palmeiras dão um certo destaque ao barracão,
n. i.csta começa com oPadê para Exu, obrigatório em toda festa de 1}
95
9 Bombôjira j a mu conguê
Yayâorerê
Bombôjiraja mu conguê
Yayâorerê
Bombôo gira cum dodô
Estou lavando
Estou incensando
^ A casa do Bom Jesus da Lapa
Incensa Incensador
A casa do meu avô
96
*
Ogumdilê
Edeamoracê
Vira tatá
Viramungangaê
Éumxetruá
Catendê aiê
Catendê Catendê
ganga Catendê
Aruandaê
“Eu não vejo porque cantar pra orixájá que é uma festa
de Caboclo. Na minha festa não tem porque cantar. E uma
irreverência cantar pro santo.. ”
(E.doE.S.)
Os terreiros que não cantam para os orixás, e nem mesmo para Exu,
são considerados por muitos adeptos do candomblé como aqueles que
fazem uma “Festa de Caboclo ortodoxa”. São os chamados Caboclos
puros. Convém lembrar que estes terreiros cultuam os orixás e realizam
festas em sua homenagem durante o ano. Já aqueles terreiros que fazem
festas para os Caboclos e oferecem explícitamente o Padê para Exu,
cantando depois para os orixás, são designados pelos candomblés de
97
Caboclospuros como “jalapacom batata1 Esta expressão, usada pelas
gerações mais velhas, significa tudo aquilo que é inventado, criado,
misturado, e que vai de encontro às práticas convencionais dos terreiros.
Estamos, portanto, diante de uma distinção sutil, que reforça o “respeito
às convenções” observado por Maiy Douglas(1976) no que tange à
pureza e impureza rituais. As práticas na Festa do Caboclo, e as
concepções que delas resultam, servem para diferenciar não apenas as
nações de origem ketu ou angola, mas os próprios candomblés que estão
arrolados nesta classificação. A caracterização de “jalapa corn batata” é
utilizada com relação a todo e qualquer candomblé que não faça uma
festa “pura”.
O cantar direto para os Caboclos, sem ter passado por outros cânticos,
é designado mediante a expressão “virar para Caboclo”.
Os cânticos são acompanhados por atabaques tocados com as mãos.
Essa forma de tocar atabaque é padrão do candomblé angola. Nos
candomblés ketu o atabaque é tocado com aguidavis, varetas de
goiabeira, tamarindeiro ou cipó duro. Contudo, nas festas aos caboclos
os atabaques são tocados com as mãos. Este fato é importante para
situar a influência dos candomblés de origem bantu nos candomblés
iorubás, já que é comum se notar o caminho inverso de influências, ou
seja, uma iorubanização dos candomblés angola.
Os cânticos iniciais aos Caboclos marcam uma primeira caracterização
da festa, não são cânticos de invocação, mas cânticos preliminares
acompanhados de danças aos Caboclos. Os cânticos não seguem um
padrão tradicional, como nas festas para os orixás, estando sujeitos a
múltiplas variações, de terreiro a terreiro. Encontramos, em vários terreiros,
cânticos que se assemelhavam únicamente nos versos iniciais. Novas
cantigas frequentemente aparecem, constituindo um repertório Caboclo.
Segundo Béhague (1976.132), isto não significa que se trata de cantigas
compostas, mas de uma transformação estilística por inovação, o que se
explicaria pela influência do candomblé angola, menos ortodoxo, nos de
“Caboclo”. O mesmo não ocorre com as nações ketu e gêge, cujo
repertório musical é tradicional e parece ter sofrido pouca mudança, ao
longo dos anos. Eis alguns desses cânticos:
98
Lá de cima
Vem descendo
Tm vezeiro
Tindorerê aê cauiza
Tindorerê é sangue real
Ele é filho, ele é neto da aruanda
Tindorerê aêcauiza
Cauizaéumiei
É um rei, real
Cauiza aêcauiza
Na hora de Deus amém
Lá naquela mata
Oh mata, oh mata
Matadeeteteia
Aonde o caboclo Jequiriçá
Lá na travessia
Oh das Matas, oh das Matas
Eu te avisei
Oh das Matas
Caboclo das Matas
Eu te avisei
Emeu caipora
Minhajurema
99
A INVOCAÇÃO
100
mesclado com cânticos dos Caboclos:
Gloria in excelsius
Caboclo é de vizaura
I
í'.
Aldeia
Aldeia de aritendê (repete-se três vezes)
101
cânticos, as mulheres sentadas sobre a esteira levam os dedos médio e
indicador à testa, fronte e nuca, num gesto semelhante ao observado no
Desfile do Dois de Julho, no momento a n que os Cairos do Caboclo e da
Cabocla ficam estacionados na Praça da Sé:
Jamburicá
Jamburicáêê
Deus me trouxe
Meu caminho é lá no Ayucá
Dá-me muzenza
Dá-me muzenza
102
A CHEGADA DOS CABOCLOS
f#;
f
Após um silêncio total, a mãe-de-santo oomeça a cantar, retomando o
; ritmo solene:
104
Boa noite camaradas da macumba
Boa noite da macumba eu venho dar
Sou da macumba eu não posso negar
Sou Caboclo
Sou guerreiro
Me criei nas umburanas
Eu me chamo Tupinambá
J á minha mãe é uma cobra cairana
Emeu caipora
Minha jurema êê
Ai ai aicaipó
Ai ai ai meu Jesus
105
Habitante das matas, o Caipora, personagem mítico vivo na memória
popular, transforma-se, no candomblé baiano, num Caboclo. Deve-se
notar aqui uma recodificação, ao nível simbólico, de um elemento extraído
da mitologia brasileira, já queo Caipora é considerado “senhor das matas”,
tem feições de “índio” e é protetor do caçador, se dele recebe fumo.
Como estes elementos estão presentes na caracterização do Caboclo,
compreende-se que existe uma “lógica” do sistema religioso afro-baiano
em elevá-lo à condição de Caboclo.
A SAÍDA PARAMENTADA
107
ajudá-lo, como aconteceria se fosse um orixá. Ele mesmo ajusta-o, à vista
do público. Este gesto simbolicamente revela a personalidade altiva de
uma entidade que “não tem pai nem tem mãe” e que, portanto, pode X
realizar atos sozinho, já que, comodiz um verso de uma música sua, “só,
só eu venho só”.
A festa continua, agora com os Caboclos vestidos. Estruturalmente,
ela se diferencia do momento posterior à “descida”, já que, depois de
todos os Caboclos entrarem no barracão, cada um deles irá dançar sozinho,
enquanto os outros Caboclos que se manifestaram ficam quietos num
canto, aguardando a sua vez de dançar. Esta parte do rito também ocorre
nas festas dos orixás. O povo de-santo diz que se trata de “levar o santo
para tomar rum”, sendo rum o nome de um dos très atabaques. O uso
metonímico do tomar rum figura a importância dos atabaques no conjunto
do rito, algo como o instrumento primordial da comunicação entre dois
mundos e o vínculo de axé.
Quem geralmente começa a dançar é o Caboclo “dono da festa”. Ele
mesmo tira as músicas, chamando a atenção de todos os presentes, que
repetem animadamente os cânticos:
Caboclo tá no mato
Tá comendo sapucaia
Maia dendê Caboclo
Maia dendê
108
Quando o Caboclo “dono da festa” já dançou o bastante e se cantou
o suficiente para homenageá-lo, os Caboclos que permaneciam quietos
são chamados, um após o outro, ao centro do barracão, para “tomar
rum”. Muitos dançam junto com o “dono da festa”, homenageando-o:
Oliveira, oliveira
Paraná
Eu também sou oliveira
Paraná
109
que há uma apropriação no sentido de fínnaro caráter brasileiro da festa
do Caboclo, o que se compreende na medida em que se nota nas letras
uma explícita reafirmação do Caboclo como entidade autóctone.
Assim como o Caboclo inicia o seu próprio samba, ele mesmo
interrompe-o, voltando ao ritmo convencional. Ele é quem dá o tom e
dirige a sua própria festa, a partir do momento da manifestação. Esta
autonomia faz com que a entidade envie “mensagens” a alguém presente
ou a toda a audiência através de cânticos. Estas “mensagens” são
denominadas de sotaques. O sotaque é a forma que cada Caboclo tem de
\ ('h expressar sua autoridade e independência, e que encontrasimilaridade
nos cânticos dos repentistas nordestinos. As mensagens do sotaque
são transmitidas sem rodeios, pois “o caboclo é muito direto, não tem
meias palavras” :
Ogâ, ogã
Euvoujogarproar
Eu jogo você não joga
O meu telhado pro ar
110
A continuidade da festa dá-se com a alternância entre cânticos e
danças de Caboclo e o citado samba de Caboclo. Nesta parte, é comum
os Caboclos de pessoas que fazem parte da audiência se manifestarem e
serem levados para fora do barracão, no intuito de por-lhes um ojá para
que possam posterionnente dançar.
A manifestação dos Caboclos nem sempre é tranquila. Muitas vezes
a mãe ou o pai-de-santo provoca a “descida passando um pano branco,
alá, nas cabeças dos filhos ou filhas-de-santo. O transe varia entre uma
incorporação imediata do Caboclo e estágios intermediários até a sua
completa “descida”. Quando o Caboclo não incorpora de vez, geralmente
a mãe ou o pai-de-santo fica ao lado da pessoa, segurando-a pelo braço,
“provocando” o Caboclo, dizendo-lhe ao ouvido “xetro marombaxetro”.
que é a saudação aos Caboclos. A incorporação é inevitável. Ao segurar
o braço dos “resistentes”, o pai ou a mãe-de-santo nada mais faz do que
exercer a plena autoridade que o candomblé lhe confere. Ofeto do Caboclo
não demorar a incorporar, a partir do momento em que ele(a) o invoca,
legitima, perante a comunidade e todos os presentes, a sua condição de
liderança, reafirmando o significado do título hierárquico a que tem direito.
E esta liderança só irá desaparecer na hora em que o seu próprio Caboclo
se manifestar: a partir de então, quem manda no lugar é ele, o Caboclo.
Um outro rito importante é a distribuição de frutas e comidas, que tem
um momento determinado para acontecer. A comida - geralmente partes
assadas do animal sacrificado, acrescidas de arroz branco - é servidafora
do barracão, num espaço mais interno do terreiro, que pode ser uma sala
ou a cozinha. E isto ocorre quando a festa está em pleno auge, com o
samba de caboclo ocorrendo no barracão.
As frutas, por outro lado, estão num espaço público, o barracão, e lá
mesmo são distribuídas. Em alguns terreiros, elas são pegas pelo Caboclo
“dono da festa” e arremessadas para as pessoas, causando um certo
frisson nos presentes. Alguns levam as frutas para casa, enquanto outros
comem-nas ali mesmo. Não existe um momento determinado para ocorrer
este rito. Há terreiros em que a distribuição de frutas ocorre no final da
festa. Outros fazem-na logo após a saída dos Caboclos vestidos com
suas respectivas vestimentas “ indígenas”, como por exemplo o Terreiro
ui
Pena Branca, da nação angola, cujo patrono é o Caboclo que dá nome ao
A MESA DE JUREMA
113
tiras de fumo e bastante mel, e serviu tanto seus companheiros Caboclos
quanto aquelas pessoas da audiência que quisessem comer. Este foi foi
um detalhe muito curioso, pois a expressão que o povo-de-santo usa,
“dar comida ao Caboclo” ou “dar comida ao santo”, até então possuía
um sentido metafórico, indicando as oferendas dadas a essas entidades.
Para além da metáfora, ela adquiria um significado concreto, indicando,
ademais, uma dimensão essencial envolvida no rito, a reciprocidade.
A reciprocidade continuaria com a jurema sendo servida tanto aos
Caboclos quanto aos presentes no recinto. Além desta bebida, os
Caboclos costumam beber cerveja quente, oferecendo-a a quem queira
compartilhar dela. Ocorre, por vezes, por parte destas entidades uma
brincadeira com as pessoas às quais venham a oferecer a cerveja. O
Caboclo pede para alguém abrir a boca, no intuito de introduzir a bebida.
Entretanto, quando tudo leva a crer que o espectador vai beber, o Caboclo
retira a garrafa, provocando risadas da audiência. Estes gestos reiteram o
caráter lúdico presente nos atos dos Caboclos. Convém também lembrar
que a presença de bebidas durante as cerimônias é uma prática que não
se restringe a Salvador. Como notou Leacock ( 1964), ela se encontra em
terreiros de cidades como São Luís e Belém, apesar dos terreiros mais
ortodoxos não terem este hábito, pois os seus cultos são reafirmados
como de origem africana.
Um aspecto importante que gostaríamos de ressaltar é a participação
dos presentes na Festa do Caboclo. Como deixamos claro, a audiência
não só é convidada a beber da jurema, tendo, portanto, acesso à bebida
sagrada, como também pode sambar a partir de uma iniciativa do Caboclo.
Vale ressaltar que o samba de Caboclo volta a ocorrer em vários
momentos, tendo predominância no final da Festa.
Não é difícil perceber que estamos diante de uma entidade que possui
um relacionamento mais próximo com seus adeptos. O Caboclo canta,
bebe e dança, ao contrário do orixá, cuja festa possui um caráter, por
assim dizer, mais solene.
Ao dizer que o Caboclo é o “dono da terra” e que “as pessoas gostam
mais da festa de Caboclo porque é mais participativa”, o povo-de-santo
da Bahia nada mais faz do que expressar a sua própria concepção do que
114
seja uma festa. É como se estivessem implicitamente falando deles mesmos
e para si mesmos, no sentido em que Geertz (1978) sugere, através de
todo um ritual que se reporta à imagem dos primeiros habitantes do
Brasil. O “índio” é a referência e sua representação a todo o momento se
reitera. A festa do Caboclo toma manifesto um discurso voltado para o
interior da própria comunidade afro-baianaiecriando uma espécie de
“forest comunity” (cf.Wafer, 1991:129), onde é destacado basicamente o
que é específicamente do “índio”. Cria-se, portanto, um elo de
solidariedade com o ameríndio, ensejando ao nível ritual, um encontro
entre elementos próprios do culto aos orixás e aqueles elementos criados
a partir de uma representação indígena. Em suma, essas considerações
indicam uma reflexão, num plano mais implícito, do que deveria ser a
relação entre grupos subalternos na hierarquia social brasileira.
115
AS SESSÕES DE GIRO
116
demais impuro para desenvolver o progresso da humanidade(p.38). Essa
discriminação que sofrem os caboclos no kardecismo explica-se pela sua
origem social. Assim como no caso dos pretos velhos, a “falta de cultura”
dos caboclos é desaprovada socialmente, fazendo Gom que essas
entidades sejam impedidas de entrar nos rituais kardecistas(v. Brown,
198õ:20ss).
A influência marcante da tradição afro-brasileira nas sessões é
notada pela forma do transe do caboclo, pela dança, músicas, número de
caboclos ou a presença do orixá Oxóssi, que às vezes “desce” nas sessões.
117
A DISTINÇÃO COM A UMBANDA
118
UMA SESSÃO DE CABOCLO
Tavanomato
Tava no mato escondidinho
Tavano mato abaixadinho
Você me chamou
Tava no mato aqui estou
119
acontecia, todos os presentes repetiam as músicas.
Nesse momento é que ocorre o chamado “sacudimento” . As folhas
que estavam em cima da mesa - usa-se folhas de murici, candeia, arueira,
capeba - foram pegas pelo caboclo para serem passadas no corpo de
cada um dos presentes.
no
conversa com “ seo” Tupiaçu, elas saíam e íam embora.
No final da sessão, após todos conversarem com o caboclo, foi servido
um munguzá feito de milho branco.
Os membros dos terreiros que realizam sessão de giro fazem questão
de ressaltar que o trabalho do caboclo não é de forma alguma cobrado.
Esta caridade, que segundo Diana Brown(1986), forma “the core of social
praxis”, pois é “a interface entre o sentido religioso e a prática social”,
também deve ser entendida como um elemento de agregação dos terreiros.
É através das sessões de caboclo que muitos terreiros baianos foram e
são formados, e se “desenvolvem” para usar um termo corrente nos
candomblés. As sessões têm como objetivo aglutinar os clientes
potenciais e/ou futuros membros dos terreiros, através de práticas do
caboclo, que terão um papel fundamental no “desenvolvimento” do
tenreiro. Afinal de contas, a eficácia de seus conselhos e curas dar-lhe-á
prestígio na comunidade onde o terreiro está inserido e,
consequentemente, o prestígio se estenderá ao pai ou mãe de santo a
que pertence o caboclo. Desse modo, nota-se um profundo significado
social nessas sessões.
Nas sessões que examinamos, destaca-se o pacto que se estabelece
entre os indivíduos presentes, sejam membros ou não do terreiro que
participam durante todo o ato, de maneira silenciosa ou, ao contrário,
repetindo cânticos, com todas as atenções voltadas para o caboclo,
considerado por todos com o maior respeito. O respeito ao caboclo é
algo levado a sério, pois esta entidade não admite que, na sua sessão,
haja desordem. Numa das sessões observadas quando uma mulher entrou
em transe convulsivo e foi levada para o interior da casa, algumas pessoas
se retiraram para a varanda e ficaram conversando, pois a sessão tinha
sido interrompida. O fato ocasionou a ira do caboclo que, chamando
todos que estavam na varanda para dentro da casa, disse que, se tinham
ido à sessão era para ficarem dentro do recinto com seriedade. Todos
ficaram cabisbaixos. Com a sua autoridade reconhecida, “seo” Tupiaçu
falava, em alto e bom som, que quem estava ali era ele, e não o pai de
santo.
As atenções que dominam todo o ambiente parecem ser um ponto
121
fundamental na efetivação do próprio rito, revelando nesse instante uma
convergência entre o agente do rito, o caboclo incorporado no pai ou
mãe de santo, e o conjunto das pessoas ali presentes. Destaca-se,
portanto, uma “colaboração mágica”, entre o caboclo e a assistência.
Trata-se de todo um meio social que se emociona só porque num de seus
setores realiza-se um ato mágico. Forma-se em volta deste ato um círculo
de espectadores apaixonados, que o espetáculo imobiliza, absorve e
hipnotiza, e que, tanto quanto espectadores, sentem-se também atores
de uma “comédia mágica”, como o coro no antigo drama (v.Mauss,
1974:160). A empatia se instala, dando conta de que o “índio” brasileiro,
com seu conhecimento, poder e força está inserido naquele espaço, e a
sua presença deve ser vivida e glorificada.
122
0 * CABOCLO ERU:
O Canibalismo Simbólico
123
Todos os seus movimentos são acompanhados pela audiência que
canta, reiterando a sua condição de “caboclo”.
“ Em
Eu sou caboclo
Eusouéum E ru“
124
legítimo que, ao nível simbólico, permita a este “canibalismo” se
manifestar.
Podemos observar que, se, por um lado o “canibalismo” implica
uma descontinuidade no sistema religioso afro-baiano, j á que nenhuma
outra entidade, seja caboclo ou orixá, manifesta esta tendência, por outro,
ele se insere nesse mesmo sistema no campo do-sacrifício. O sacrifício,
ou matança, que se faz aos caboclos implica num estraçalhar de um galo
pelo próprio caboclo, sendo as partes do animal posteriormente assadas.
Em relação ao caboclo Eru, estas mesmas partes não são assadas, já que
“ele come carne crua” Entender a existência do que chamo de “canibalismo
simbólico” no candomblé baiano implica não só vê-lo como uma
representação de práticas canibais tupis, como também situá-lo além do
sistema religioso em que está inserido. O que o caboclo Eru manifesta
nada mais é do que representações que estão contidas na sociedade
abrangente. A sua existência permite ver que, se esta sociedade recusa
terminantemente o canibalismo de qualquer espécie, o sistema religioso
afro-baiano resgata-o simbolicamente. “ Estraçalhar” crianças ou um
animal como o cachonro significa estabelecer uma fronteira tênue entre o
humano e o animalesco, onde o que está em jogo é a sobrevivência, a
fome, o comer.
125
MARUJO:
Um Inebriado Mercúrio
126
Mesmo fazendo questão de diferenciá-lo dos caboclos, muitos
adeptos nos diziam da capacidade de Marujo manifestar características
tanto dos caboclos como de Exu.
X pode ser Exu, quando ele quer ser. Vai até embaixo do mar,
bem mais do que Exu. “ (N.C)
127
através de cânticos, passando-se em seguida para o ritual de incensar
todo o barracão. Após o incensar, cantam-se inúmeras músicas de
reverência aos caboclos de origem “indígena”. Marujo geralmente se
manifesta no momento em que ainda se está cantando para esses
caboclos.
É importante observar que esta manifestação não se dá através
de uma invocação determinada, como ocorre com o ingorossi observado
nas festas dos caboclos “índios”.
Ao se manifestar, o Marujo começa a tirar cânticos de saudaçao
aos presentes:
Por ser dado como um nauta, o Marujo revela, através dos cânticos,
a sua origem.
128
Quem precisar de mim
Pode mandar me chamar
Eu me chamo é Marujo
AquieemTaperoá
E remador, ê remador
As meninas me chamam
Eu sou remador
Os homens me chamam
Eu lá não vou
129
Pescador apresentam todos os sinais de alucinação alcoólica e saem a
fazer toda sorte de diabruras. Sabe-se mesmo que a pessoa está possuída x
por essa estranha divindade das aguas porque, logo em seguida à sua
chegada, esta faz o sinal característico de beber, com o polegar direito.
Trazem-lhe a cachaça - e ela bebe, bebe até não poder mais” ( 1981 ;75),
A festa do Marujo é alternada com manifestações de caboclos de
origem “indígena”. Estes, quando manifestados, são vestidos com um
ojá ou com roupas próprias de “ indios” e são homenageados na forma
de cânticos. Muitos desses caboclos fazem questão de retribuir a
permissão de poder “descer”, tirando cânticos de homenagem ao Marujo
Eu só vim aqui
Seo Marujo
Pela sua fama
130
í com um marinheiro destemido e cachaceiro. Desse modo, opera-se uma
l ruptura entre entidades diversas a partir de um elemento em comum - a
í água- r
\ Evidentemente, as representações que os adeptos do candomblé /
elaboram acerca do Marujo advêm, como já referido para o Caboclo Eru,
de valores já enraizados na sociedade abrangente. Suas características
de mulherengo e cachaceiro, bem como o atributo de mensageiro
retraduzem simbolicamente a posição social imputada em nossa sociedade, ^
à figura do marinheiro, havendo, deste modo, uma complementação de
valores.
Essas considerações nos permitem verificar que em termos simbólicos
há uma exaltação a uma entidade “beberrona”, não só pelos adeptos dos
terrenos em que ele, o Marujo, se manifesta, como também pelo público
que assiste às suas festas. Não é a toa que, em determinado momento da
festa, num ritmo semelhante ao do samba de caboclo, todos cantam
entusiasticamente
“ Marujo é cachaceiro
1
Eu quero Marujo assim mesmo “
f!
\
L
i.
ï
131
BOIÀDEIRO
132
Casa Branca, a única reverência aos caboclos está na festa ao caboclo
Boiadeiro. Nao obstante, quando perguntados se o terreiro tinha caboclo,
a resposta sempre era negativa.
AFesta do Boiadeiro
Me chamam de Boiadeiro
Boiadeiro não sou eu não
Eu sou tangedor de gado
Boiadeiro é meu patrão
133
simbólicos, com o orixá Oxóssi. Tanto Oxóssi quanto Boiadeiro são
caçadores, usam arco e flecha, e levam uma capanga de couro com ervas
e plantas. Essas semelhanças muitas vezes são usadas de forma mordaz
pelos adeptos de terreiros que têm caboclo, sejam das nações queto ou
angola, para com aqueles pais ou mães de santo de terreiro queto ortodoxo
que não admitem terem caboclo em suas casas. Numa festa dedicada a
Oxóssi, quando a mãe de santo de um grande terreiro tradicional recebeu
o seu Oxóssi e foi “vestida no santo”, um pai de santo comentou “o
caboclo dela é um Boiadeiro”, provocando risos corrosivos.
134
^ SEMELHANÇAS E SIMETRIAS
A narrativa que segue foi apresentada por Marinalva Bispo dos Santos,
do terreiro do Bate-Folha, no I Congresso Afio-Brasileiro, em março de
1980, realizado em Salvador, Bahia. Nela encontra-se um discurso que se
reitera em diversos terreiros de candomblé, como por exemplo Casa
Branca, Gantois, Mutá Lambo, Maramatamba, entre outros, que procuram
explicar a existência de cultos à divindade Caboclo :
135
Tudofaz crer que, aofugirem dos senhores, os escravosprocurassem
refugio nestas aldeias, onde os índios Tupis, Guaranis e Tapuias, com
desconfiança, começassem então, através de gestos e presentes a se
aproximar, dando guarida aosfugitivos, por não aceitarem violência
e nem apriosionamento, e daí, ao se esconderem nas matas, os índios
começaram a ensinar aos negros a encostarem o ouvido no chão, o
barulho dasfolhas, o voar dospássaros e suas manãgas do mato».Daí
é que sefizeram os contatos entre os negros e índios. Os índios ensinaram
a usar sua luz, que servia para andarem na noite, que erafeita de luz de
pau-brasil e candeia Então começaram a observar o seu ritual, onde
também tinham seuspreceitos, pois existia na aldeia o seu pagé. Nos
preceitos, tinham significado: a lua, as águas dos rios, do mar, lagos, o
sol e o seu Deus Tupã. Eles também, invocavam os espíritos de seus
mortos, para darem maisforça. Os negros, vendo tudo isso, acharam
alguma assimilação com seus orixás. E os africanos de Angola(bantus),À
por serem mais significativos com o seu linguafar,foram os que mais se
aprofundaram dentro do culto dos índios, eatéo candomblé de angola
não deixou de ter obrigatoriamente sua festa de caboclo e, através
desses, vem também outras divindades, guias como nosso bom, querido
e aceito, o grande Boiadeiro e o Marujo ”.
136
fugiam para as suas aldeias ou tribos. Quando a perseguição continuava,
eles atacavam”. Nesse ínterim é que surgem os negros como substitutos
dos índios. A sequência seguinte dá conta de um estranhamento - índios
ao verem negros acorrentados e negros ao notarem a gente de outra cor,
sem vestimentas, nus, com o corpo de penas. Passa-se da desconfiança
para o contato, intermediado pelas “tribos mansas”. Essas tomam-se a
medida de confiança para os negros - “mas como existiam tribos mansas,
eles passaram a confiar um pouco mais uns nos outros” . As
consequências, após o contato, portanto, dão-se ao nível do aprendizado
do negro e das suas analogias - “Eles também (grifo nosso), invocavam
A os espíritos de seus mortos para darem mais força. Os negros, vendo
tudo isso, acharam assimilação com seus orixás”.
Sob que lógica essa narrativa se constrói? Qual o nível de
^ inteligibilidade que ela permite? Essas perguntas nos fazem passar do
nível narrativo do texto, sua apreensão linguística imediata, para a
“estrutura simbólica” (v.Sahlins, 1985) que permeia o candomblé baiano.
A referência final da narração dá conta dos africanos de Angola (bantus)
aprofundando-se nos cultos aos índios. Por que esses, e não os nagôs,
jêjes ou ijexás, que eram também numerosos desde o final do séc.XVÜI?
É entre aqueles(bantus)que o culto aos ancestrais atinge um grau de
A sacralização, e é entre os bantus que os ancestrais são identificados
como “donos da terra”. Haveria, então, no sistema religioso, inicialmente
disperso devido ao tráfico, um pressuposto lógico para a inserção do
culto ao caboclo. Vale lembrar que os ancestrais, entre os bantus
chegariam ao ponto de se transformarem em forças da natureza(os
Bacongos), estabelecendo com os homens contratos bilaterais com
obrigações de ambas as partes. Diz Balandier(l 968:330) que, assim como
a ordem moral é coisa de que divindade suprema não se ocupa, por estar
muito acima ou além, os ancestrais são os guardiães dela e se incumbem
de castigar os descendentes que não a respeitem. Por sua vez, os
ancestrais atingem às vezes um tal grau de sacralização que acabam por
ser considerados como divindades secundárias, ou mesmo de primeira
ordem, como é o caso de Unkubunkulu, o ancestral primitivo dos Zulus,
cujo culto obscureceu quase totalm ente o deus suprem o
137
Ndyambi-Kaiunga (Lopes, 1988:127). Desse modo, a referenda aos donos
da terra inscreve-se em construções pré-elaboradas.
Um outro tema que a narrativa frisa é a assimilação que os negros
fizeram dos espíritos indígenas aos orixás. Isso é de fundamental
importância para a compreensão da inserção do caboclo no panteão
afro-baiano. É comum nos escritos afro-brasileiros opor-se o orixá ao
caboclo. Enquanto aquele estaria ao nível da cultura, o caboclo
encontrar-se-ia ao nível da natureza, pois suas características são
selvagens, não domesticadas, já que ele pertence ao domínio do
incontrolável. Sua energia viria a ser controlável quando o grupo desejasse
chegar a um fim específico, através de rituais adequados (um exemplo
seria a doutrinação do caboclo Eru).
Concebidas como pares de oposição, as categorias natureza e cultura
permanecem tão estanques que parecem o yin e o yang lembrado por
Sahlins(1985), ao criticar os pares de opostos. Vistos desse angulo, as
categorias orixá e caboclo ocupariam espaços no sistema religioso, um
lugar que traduziria uma função classificatória ao invés de uma verdadeira
busca de sentidos. Curioso é que essa postura vai em direção oposta à
proclamada inicialmente por Edison Cameiro( 1986), segundo o qual “os
encantados caboclos são os mesmo deuses dos nagôs e dos jêjes, já
modificados pela influência dos negros de Angola e do Congo, e mais
recentemente, pela influência espírita”(p. 73). Contudo, ela esbarra na
dificuldade de entender a categoria caboclo como mera oposição à
categoria orixá. Por certo que existem características entre estas duas
entidades que as diferenciam, quando não se opõem. Contudo, são
elementos mais identificadores, o que faz dificulta a compreensão da
relação entre as divindades na arquitetura religiosa do candomblé. Nesse
sentido, entender a existência do caboclo é decifrar a sua correspondência
com outras entidades, precisamente Exu e Oxóssi.
138
r
EXU/CABOCLO
139
em duzentos pedaços que se transformaram em duzentos yangi
(representação fragmentada de Exu). Isso repetiu-se nos nove Orun. No
último Orun, Exu e Orunmilá fazem um pacto: todos os yangi seriam
representantes de Exu, e Orunmilá poderia consultá-los cada vez que
fosse necessário enviá-los a executar os trabalhos que ele lhes ordenasse
fazer, como se fossem seus verdadeiros filhos. Exu assegurou-lhe que
seria ele mesmo quem responderia por meio dos yangi cada vez que o
chamasse. Exu devolve sua mãe, e todos aqueles que engolira. É por isso
que todos os seres vivos no mundo têm a ver com Exu, cada um de nós
têm seu próprio Exu, cada orixá têm seu próprio Exu(v. Elbeindos Santos. _
1982). ' '
~ ÉxuElegbara, senhor do poder de transformação, foi cortado em
pedaços para poder em seguida regenerar-se e reunir simbolicamente o X
universo inteiro pela força da palavra (v.Augras, 1983:104).
Enquanto Exu é o elemento primordial para a comunicação com os
deuses, nada se fazendo sem a sua intermediação, o caboclo é a
comunicação direta com as pessoas presentes, sejam adeptas ou não.
Quando chega, vai logo conversando, seja em sessões, festas ou
trabalhos. Destaca-se pela palavra, dando ordens, perguntando sobre
os problemas de cada um e puxando cânticos. Se a comunicação com
Exu é intermediada pela ação do pai ou da mãe de santo, com os caboclos
ela é imediata, não necessitando de intermediação senão dele mesmo. Ele
precisa falar pois é um princípio caboclo, a força da palavra Diferencia-se
deste modo dos orixás, pois esses falam pelo jogo de búzios ou “ao pé do
ouvido” de um pai ou mãe de santo, uma ekédi ou um ogã, sem que a
audiência os ouça.
Cabe notar que se a comunicação é um elemento definidor tanto das
atribuições(no caso de Exu) como da existência(no caso do caboclo), ela
vai ser duplamente reforçada na definição do Caboclo :
140
m
E U Exu I 1Caboclo
Barracão Runkó
Banheiro Cozinha
141
OXOSSI/ CABOCLO
142
com eles para a casa do compadre, dizendo que só voltaria quando Odé
tivesse acabado de comer a caça estranha, que continuava a cantar. Odé
não se importou, Tratou, moqueou e comeu a cobra. E a bicha cantando.
Depois de comer, Odé se sentou. A cobra cantava dentro da barriga. Ele
se arrependeu do que tinha feito. Arrependeu-se e dormiu. Ao amanhecer,
Oxum voltou. Bateu à porta, bateu, bateu. Nada. Então, Oxum arrombou
a porta. Não encontrou nenhum vestígio de cobra: nem no moquém, nem
na frigideira. Só encontrou o rastro dela no chão. Odé estava espichado
num canto, morto. Oxum como louca, foi chamar Ifá, pedindo a sua
proteção. Ifá atendeu o pedido. Veio, considerou longamente Odé e,
I afinal, levou-o para casa. Lá, Odé desapareceu. Desapareceu, e só veio
reaparecer sete anos depois, mas como orixá, e até com outro nome. Ele
que se chamava Odé, passou a chamar-se Oxóssi, o deus da caça.
Nas três narrativas( variantes do mesmo tema da divinização)
X apresentadas acima, encontramos duas partes. Na primeira parte, a ação
do personagem ocorre num contexto de contrariedade (com relação à sua
mãe Iemanjá -1 a.variante e à sua mulher Oxum - 3a. variante). Na segunda
parte, a ação se desenvolve num contexto que lhe é favorável; Oxóssi é
ajudado por sua mãe, com uma oferenda às feiticeiras, e acaba com o
enorme pássaro.
Num esquema teríamos os seguintes caminhos traçados pelo
personagem:
1* variante
sociedade________________natureza
(moradia com a mãe) (viver no mato)
invariante
sociedade__________________ sociedade
(Osó - desafio do pássaro - Oxóssi)
3*variante
sociedade__________________ panteão
(através da ingestão da cobra)
143
o w h^'yn ' A M *-' 5 ^' (J ,"v ‘ ^ ^
Oxóssi
1. E caçador.
2. Vive na floresta e sabe o segredo da mata por Ossãe.
3 Usa arco e flecha, um erukerê e duas capangas de couro.
4.Relação com cobra.
5.A transformação de caçador em orixá.
Cabodo
1. Vive da caça.
2. Domina o conhecimento das folhas e da selva brasileira.
3. É destemido, valente.
4. Usa arco e flecha (aqueles identificados como índios).
144
5. Usa roupas e chapéu de couro, laço e cabaça (Boiadeiro).
6. Transformou-se em encantado.
145
Há que notar a constituição já formal do panteão afro-baiano,
destacado como sendo de origem africana. O que se declara sendo
brasileiro é o caboclo. Logo, parece haver uma distinção de categorias,
tanto ao nível geográfico (“orixá é coisa da Africa”), quanto de um
grupo sócio-cultural também marginalizado (“o verdadeiro caboclo é o
índio''). Se a categoria caboclo, inicialmente referida aos índios, ampliou-se
no panteão^rcHbaianõ^PenFVerde, Neive Branca, etc.)é porque se
adequou de uma forma lógica a algo estruturado: a multiplicidade dos
onxás. Há inúmeros Exus, inúmeros Omolus, Oxalás, Yemanjás, etc. Cada
qualcomum nome próprio e com prescrições diferentes, Segundo Bastide
(1961:1^1), essa multiplicidade tem uma origem sociológica, pois
corresponderia à multiplicidade das nações importadas no período
escravocrata. Acrescentaríamos que está presente uma compreensão
ao nível do indivíduo, pois um orixá de uma pessoa no fundo não se
assemelha ao orixá de outra. E isso fica claro no processo da iniciação,
quando o nome proferido pelo orixá no corpo da yaô é único.
Contudo, se a multiplicidade da nomenclatura encontra resposta na
constituição do próprio panteão, isso por si só não nos parece satisfatório.
Pois colocar o problema ao nível mais formal (da relação entre elementos
constitutivos) bloqueia as possibilidades de entender o problema relacionado
aos caracteres especificamente brasileiros, contidos na nomenclatura cabocla.
Há nomes como Caboclo Caipora (que dança com uma só perna). Marujo
(cuja festa é farta em cerveja, ele mesmo um notório beberrão emulherengo),
Sultão das Matas (originário da tribo o dos Aymorés), etc., que se explicam
como signos da regionalidade brasileira.
O Caboclo seria assim uma das variantes canônicas, entre outras, do
sistemareligioso afro-baiano, no qual há uma valorizaçãopolítica das origens
africanas (em particular a íorubá), e diversas combinações, assimilações e
integrações, mesclando várias referências culturais, a partir de um campo de
significações aberto a procedimentos analógicos e comparativos. Face às
hesitações interpretativas - que refletem, ainda, as relações intrínsecas aos
meios intelectual e religioso -, a reabilitação teórica do Caboclo passa pelo
simples reconhecimento de sua presença maciça nos candomblés baianos
de todas as nações, e do vigor da imaginação religiosa afro-baiana.
146
CONCLUSÃO
147
sustentáculo dessa representação são os povos das sociedades
consideradas simples, estejam eles próximos ou longínquos.
Nesse sentido é que importa perceber o Caboclo no candomblé como
uma construção simbólica do outro. Se para o antropólogo é rotina buscar
compreender o outro, que por vezes lhe é próximo, entender a
representação que esse outro faz de seu próprio outro foi uma tarefa
árdua, em que talvez eu tenha sido vítima dos emaranhados que
constituíram esse outro de mim tão distante.
148
LISTA DE NOMES DE CABOCLOS
ENCONTRADOS NOS CANDOMBLÉS BAIANOS
Aimoré
Amuringanga
Aflechin
B oroc
Boiadeiro
B oiadeiro M enino Vaquejador do Rio de C onta
Capangueiro
C aipora
^ Caipó
Curupira
Caitem ba
Cariri
C essataquara
C o b ra C orã
Cacique
C am po Verde
J?) D ona da M ata
Embiaçu
E strela da M ina do O uro
Flecha N egra
Ferram enta
Guarani
Gentil
Itabira
índio Luiz de Aimoré
Iraci Jaruaba
149
Itaitinga d a Aldeia de Sam burá
Juremeiro
Jo ão d a R aiz
Jaci
Jequiriçá
Juruparí
Juataí
Jucira
Jo ão das Lajes
Laje M ineiro
Laje G rande
M arujo
M ata G rossa
M artim P escador
M alem bá
M ata Verde
M ata Virgem
M ãe das A guas d o s índios
f Mineiro
M uringanga
M a rc o L eão de O uro
N eive B ranco
Oxóssi
Oxóssi Guerreiro
O gum M arinho
O gum de L ê
O gum Sete E spadas
O gum de R onda
O gum da P ed ra P reta
O gum da P ed ra B ranca
O gum R aio de Sol ou A tirador da Serra
O gum Rei de Guiné
Om olu C aboclo
Peixe M arinho
150
P ena Verde
P edra P reta
Pele Vermelha
P edra Fria
Penacho Verde
Rei da Hungria
R om pe N uvens
Raio de Sol
R oxo M ucumbe
Rei das E rvas
Rei das A guas Claras
R om pe Folha
Rei do Guaicuru
Sultão das M atas
Sete Serras
Serra N egra
Silva Estrela
Sete Flechas
Samambaia
Tupi das Serras
Tupiaçu
Tupiaçu Rei das Ervas
__Tupinambá
Tibiriçá
Tupã
Tuitinga
Tira Teima
Tuiçara
Tabajara
Tupi Dendê
Tm guererê Guarani C á Te Espero
Truvezeiro
Tom ba Serra
Taitinga
151
Tupiraquim
Turco
Vaqueirinho
Vira M ata
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candomblés da Bahia, a partir de um cuidadoso trabalho de
campo e um extenso levantamento de fontes históricas, Jocélio
Teles faz mais que restituir a essa entidade tantas vezes mal
compreendida o lugar que lhe cabe nos cultos afro-brasileiros.
Resgatando a herança inegavelmente Bantu de que ela procede, evidencia
o viés que, somando a legitimidade acadêmica ao tradicionalismo das
grandes casas de culto de Salvador, difundiu o mito da "pureza nagô"
como modelo de "autenticidade" para todos os candomblés do Brasil.
Assim, desde Nina Rodrigues, viu-se no culto dos Caboclos uma devoção
espúria, onde "espar sos fragmentos das crenças tupi-guarani aderem à
feitiçaria africana dominante" ou, nas palavras de Arthur Ramos, um
"curioso syncretismo dos orixás fetichistas com as divindades dos mythos
amerindos e elementos do folk-lore branco". Da mesma forma, muitos
tentaram explicar a "origem" do seu culto pela incorporação aleatória de
influências externas e representações presentes na sociedade mais ampla,
sobretudo o indianismo romântico de início do século XIX e, mais
recentemente, o kardecismo. Opondo-se com rigor a essas posturas,
Jocélio demonstra que, constituindo uma representação do outro, os
elementos que se manifestam no culto do Caboclo, divididos entre a
natureza e a cultura, integram-se a uma lógica que é a da própria
cosmologia que estrutura a religiosidade afro-brasileira. Ao analizar as
figuras de Em que, em seu aspecto "selvagem", encarna um "canibalismo
simbólico", e do Marujo, um "inebriado Mercúrio" que dele representa
uma inversão simétrica, no polo da comunicação a que Exu preside, Jocélio
evidencia que, na forma do Boiadeiro, o Caboclo guarda também de
Oxóssi o poder de domar a "selvageria" da natureza, assim como as
dificuldades da vida, para garantir proteção a seus devotos. Assim, menos
"brasileiro" do que se poderia supor, ele é também mais M africano"do que
se gostaria de acreditar. Xetro, marombaxetro, Caboclo!