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A sátira como estratégia de

intensificação do absurdo

15 de novembro de 2018 Dandara Magalhães


Os memes de internet funcionam, segundo a definição de Limor
Shifman01 a partir de grupos que compartilham características em
comum, tomando como base uma mídia, seja ela uma imagem,
vídeo, frase ou hashtag, e geralmente são um fenômeno efêmero
mas de rápida viralização em sites de redes sociais.
Por conterem muitas vezes uma linguagem carregada de sátira e
humor, são frequentemente vistos como um fenômeno que não
tem muito impacto social e nem grande importância para a
comunicação em si. Esse raciocínio nem sempre tem fundamento,
já que podemos observar que nem todos os memes fazem uso de
humor ou ainda que, por causa do uso de humor eles não sejam
capazes de apontar assuntos sérios dentro do contexto
pertinente. Hashtags02 são comumente utilizadas para abordar
assuntos políticos e muitas vezes conseguem trazer críticas sociais
ou uma reflexão atrelada ao seu uso, mas também temos muitos
memes que circulam em vídeo ou imagem que procuram fazer o
mesmo.

Nesse sentido, o meme Advice Hitler ‐ que ganhou popularidade


no período entre 2011 e 2012 e teve circulação internacional ‐
expressa uma crítica social a posições assumidas por grupos
extremistas e conservadores, a partir da exacerbação do absurdo,
tomando como ponto de partida a fala em primeira pessoa do
ditador nazista Adolf Hitler, que comandou a Alemanha durante
os anos de 1934 a 1945, levando o país à Segunda Guerra
Mundial e tornando-se figura central do Holocausto03.
Tradução: “A economia é uma droga? / Culpe os judeus!”

O meme Advice Hitler segue o formato consagrado por outros


memes conhecidos como Advice Animals, que circula em
comunidades online desde pelo menos 2006, quando já se tinha
imagens de animais recortadas sobre um fundo com padrões
coloridos extravagantes, acompanhados de uma legenda que
chamava atenção para uma espécie de conselho politicamente
incorreto.

Adolf Hitler era um ex-militar que serviu durante a Primeira Guerra


Mundial ao Exército do Império Alemão. Após uma tentativa de
golpe fracassada, foi condenado à prisão, onde ficou por pouco
mais de um ano, e quando aproveitou para escrever o livro que
congrega suas principais ideias. Tendo sido perdoado pela
Suprema Corte, alcançou grande popularidade nos anos seguintes
a partir da propagação de suas ideias nacionalistas e extremistas,
onde já era possível identificar uma ideologia que pregava a
superioridade da “raça pura” alemã, e teses racistas, antissemitas e
homofóbicas. Alçado ao posto de chanceler alemão em 1933, a
partir do ano seguinte, acumulou funções do poder executivo e
tornou-se efetivamente líder máximo da Alemanha nazista.

Tradução: “Hitler! Tu não tem cabelo loiro e olhos azuis?!”

Mas porque alguém utilizaria um dos maiores genocidas do


mundo em um meme? É interessante observar que, nas imagens
de Advice Hitler, os discursos que aparecem atrelados à figura do
ditador se utilizam do humor como forma de crítica impregnada
de sarcasmo e ironia, assumindo uma retórica em primeira pessoa
que sugere que o próprio ditador poderia achar cômica uma
situação em princípio absurda, ou apresenta, de forma
ironicamente velada, uma série de teorias do que poderia ter
acontecido na vida pessoal de Hitler para que ele se tornasse a
figura que se tornou. Abusando de um humor duvidoso e uma
linguagem crua, as imagens satirizam falas ou situações que
envolvem o próprio Hitler, como sua origem “impura”, conforme
os parâmetros estabelecidos por ele mesmo.

Assim como os demais memes que seguem o formato Advice


Animal, o padrão dos memes que se utilizam da imagem de Hitler
é baseado em conselhos do próprio a terceiros, seja nos dias
atuais ou na sua época. Esses conteúdos, portanto, abordam
principalmente assuntos como o genocídio judeu, o suicídio de
Hitler, racismo, homofobia, nacionalismo, guerra e extermínio em
massa, todos assuntos que estão historicamente relacionados à
compreensão política do líder nazista.

Tradução: “Fui rejeitado no curso de Artes da universidade / 6 bilhões de judeus mortos”

Ao observarmos exemplos de memes da família Advice Hitler,


notamos que as cores escolhidas para o fundo são sempre as
mesmas: o vermelho, branco e preto, que remetem às cores do
partido nazista e também do Império Alemão. A fonte, assim
como na maioria dos image macros é geralmente Impact branca
com outline preta, com todas as letras maiúsculas. A adoção
desses padrões cromáticos e tipologia contribuem para que o
meme possa ser lido como uma imagem entre outras, que
obedece a um formato já clássico entre os macros.
Advice Hitler procura ressaltar, através do uso da sátira e de
elementos do nonsense, o absurdo evocado por posições
extremadas, como representa o regime de extrema-direita
comando por Hitler. A linguagem que, em muitos momentos
pode chocar, se presta a uma ambiguidade sutil, reforçando o
retrato da exclusão de minorias durante um dos períodos mais
difíceis da História contemporânea. A grande pergunta, no
entanto, é: essa operação do humor é capaz de proporcionar
alguma reflexão a respeito do Holocausto e do regime nazista?

Tradução: “Fui espancado quando era criança / Cresci, e tudo ficou bem”

Se, por um lado, memes que se utilizam dessa “estratégia de


choque”, podem retratar o absurdo extremista e nos fazer
questionar sobre os pressupostos ideológicos do nazi-fascismo,
por outro, há um perigo representado pelo que o historiador
Gavriel D. Rosenfeld04 classifica como um processo de
normalização da imagem do passado. A normalização, descreve
Rosenfeld, ocorre através de uma memória comunicativa, que
traduz como elementos banais situações, fenômenos ou
trajetórias marcadas pela excepcionalidade. Ele chama a atenção
para o fato de que é comum olharmos para o passado com certa
nostalgia, destacando grandes heróis e períodos históricos ou, de
outra forma, rechaçando períodos de crise, regimes autoritários,
criminosos e genocidas. Entretanto, alguns padrões de interação
dão vazão a uma memória comunicativa capaz de reescrever
passagens do passado a partir de um novo olhar. A normalização
é uma dessas operações. É, através dela, que a figura de um
genocida se transforma em ícone da cultura pop, como os
diversos memes que se utilizam da imagem de Hitler e do
imaginário nazista.

A normalização não é sempre um processo de banalização do mal


(como diria Arendt), da violência ou da discriminação. Pode-se
dizer, por exemplo, que movimentos sociais de forma geral
buscam alcançar um processo de normalização de algumas de
suas pautas. O movimento feminista, para ficarmos apenas em um
caso, propõe que denúncias de assédio e comportamento sexista
não sejam exceção, e, portanto, possam ser tratadas com
objetividade pela sociedade, de forma que as mulheres se sintam
mais seguras para denunciar agressões e as políticas públicas que
promovem igualdade entre gêneros se tornem comuns.

Assim, a normalização, afirma Rosenfeld, pode funcionar a partir


de diferentes modos. A normalização orgânica ocorre quando
uma mudança na carga emocional de determinadas situações é
encarada de forma mais objetiva, com tranquilidade, pelos
membros da sociedade. Mas há processos de normalização que
não são, de todo, orgânicos. A universalização, por exemplo, é um
processo promovido como estratégia para politizar ou despolitizar
determinadas agendas. A reboque dele pode ser encontrado, por
vezes, um processo secundário de relativização, que propõe um
revisionismo histórico sobre determinadas leituras, como, por
exemplo, a perspectiva de que se deve contar o outro lado da
história a respeito da ditadura militar brasileira, que resulta, entre
outras aberrações, no enaltecimento da figura de torturadores.

Advice Hitler opera reconhecidamente na fronteira entre a crítica


social e a normalização. Seus memes são incutidos de uma
ambiguidade irônica que simultaneamente chama a atenção para
a marca da excepcionalidade e do absurdo, e superficializa e
normaliza a imagem de Hitler, convertendo-a em uma alegoria de
humor. Nesse sentido, o efeito da figura do ditador nazista no
meme se assemelha ao dos cartuns editoriais que fazem uso da
chacota e do deboche para desnaturalizar o lugar ocupado pela
política e pelos políticos.

Ilustração de capa da Collier’s em 17 de janeiro de 1942. fonte:


https://br.pinterest.com/pin/182466222382028077/?lp=true
“O cartum editorial pode avançar na direção do deboche. Em casos assim, a intenção do
autor não é tanto enviar uma mensagem mas, antes, provocar o humor, mesmo que para
isso necessite submeter seu objeto ao ridículo. Ele se vale do humor, subordinando-o a um
propósito sério e utilizando-o apenas para tornar a mensagem séria mais palatável.”

A observação de Christie Davies05 sustenta que, mesmo nas


produções anteriores ao meme de internet, artifícios como o
deboche deslegitimam figuras dúbias e são capazes de deixar os
assuntos mais “fáceis” para serem digeridos, porque trazem à
superfície elementos de crítica atravessados pelo distanciamento
objetivo proporcionado pelo humor. Como vimos, porém, a
pervasividade desse tipo de recurso pode terminar por conferir o
efeito contrário e banalizar essa mesma crítica. O limite entre as
duas operações é absolutamente tênue.

No caso dos cartunistas, é comum a utilização de recursos visuais


que são reconhecidos pelo público já à primeira vista, como, por
exemplo, a utilização de personagens antropomorfizados06.
No caso dos memes, os trocadilhos e o chiste linguístico nem
sempre é um recurso acessível e evidente a todos, de forma que
muitas vezes piadas proferidas pela internet são encaradas com
máxima seriedade como se fossem efetivamente indício de
verdade ‐ a ampla disseminação recente de fake news em diversos
circuitos das mídias sociais durante as eleições brasileiras que o
diga! Como então escapar dos efeitos da normalização sem deixar
de lado a perspectiva crítica?

Não há ‐ ou pelo menos não temos ainda ‐ fórmula pronta para


isso. O que não podemos perder de vista é que o humor é uma
arma importante na luta pela construção de uma saída
democrática. Através dele, é possível alertar para desigualdades
sociais, e apontar para leituras históricas carregadas de um
princípio de dever de memória07. Empregando uma retórica que
intensifica o absurdo para ilustrar a execepcionalidade e provocar
uma reflexão junto ao público, o humor pode, sem dúvida, nos
colocar em posição desconfortável. A pergunta seguinte é: afinal,
do que estamos rindo?

Notas

01. ↵ Em seu livro Memes in Digital Culture, Shifman (2014)


identifica como principais características do meme de internet
(1) sua capacidade de se reproduzir no formato de mídia e (2)
o fato de funcionarem a partir de grupos que compartilham
características em comuns, o que aqui chamamos de
“famílias”.
02. ↵ O uso de hashtags tem sido adotado por diferentes tipos de
movimentos e grupos de atuação online que procuram
levantar ou defender uma
causa. Hashtags como #primeiroassedio e #meuamigosecreto,
por exemplo, foram adotadas por coletivos e mulheres de
todo o país que se utilizavam dos termos para denunciar casos
de abuso sexual, enquanto #VemPraRua e
#NãoÉSóPor20centavos tiveram grande protagonismo no
período das manifestações de Junho de 2013;
ainda, #EuTenhoLigaçãoComFreixo foi utilizada para
ironizar uma alegação falsa feita por um veículo de imprensa
a respeito do deputado.
03. ↵ Advice Hitler não é o único meme a trabalhar a imagem de
Hitler. Outros vários exemplos incluem as paródias do filme
A Queda (Downfall), com legendas satíricas no YouTube, e
outros personagens como Bedtime Hitler, Gay Hitler e Disco
Hitler.
https://youtu.be/kxxww7L7HSY
04. ↵ Rosenfeld, G. D. Hi Hitler! How the Nazi past is
being normalized in contemporary culture.
Cambridge: Cambridge University Press, 2015.
05. ↵ Davies (2011, p. 95) analisa no capítulo Cartuns,
Caricaturas e Piadas: Roteiros e Estereótipos, do
livro Imprensa, humor e caricatura: A questão dos
estereótipos culturais (org. de Isabel Lustosa), de
que forma são construídos os estereótipos em
torno do humor, incidam eles sobre questões de
raça, nacionalidade ou crença.
06. ↵ ”Os cartuns sérios mais agressivos [durante as
Guerras Mundiais] faziam isso caricaturando o
inimigo como um animal tradicionalmente sinistro
‐ uma serpente, um sapo, uma aranha, um
morcego, um polvo, algo não apenas não humano,
mas inumano em imagem e aparência, até mesmo
anti-humano” (DAVIES, p. 100, 2011).
07. Ricoeur, P. A memória, a história, o esquecimento.

Campinas: Unicamp, 2018.

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