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Essa pergunta me pegou de surpresa, não poderia abordar o seu passado obscuro ou
então tudo estaria perdido, precisava ser sutil, afinal ele tinha uma arma. Após refletir achei
uma saída:
— É uma matéria para o jornal sobre cidades antigas e o senhor parece conhecer bem essa
região, então queria que falasse um pouco sobre ela.
Esperei algum tempo a fim de averiguar se minha mentira o convencera, mas para dar
mais crédito a farsa dei-lhe um jornal que trazia na mochila:
— Veja, este é o jornal para o qual trabalho, com sorte se o fotógrafo não atrasar uma foto do
senhor estará nas páginas amanhã.
Estendi o jornal para ele que com dificuldade o pegou e o pôs diante dos olhos, percebi
a dificuldade que parecia ter para ler o noticiário, ele forçava o olho esquerdo de forma irritante,
foi então que lhe perguntei:
— O senhor não consegue enxergar bem?
— Amigo, não é tão fácil quanto parece ler sendo cego de um olho.
Só então percebi tal deficiência. Confesso que senti uma leve comoção em relação a
esse fato, e o que Domingos relatou-me em seguida fortaleceu esse sentimento:
— Bom, eu moro aqui há pouco tempo, não posso lhe falar muito sobre a cidade, nunca me
demorei muito nelas, tive que andar muito pelas entranhas destas matas, era o meu oficio, mas
confesso que na idade em que estou sinto-me arrependido e cansado da vida que levei. Sem
casa, sem família, um andarilho, recebendo o dinheiro do sustendo às custas de outras pessoas.
Hoje fico aqui sentado o dia todo calculando o que ainda me resta de vida.
Essas palavras, as quais ouvi atentamente, não demonstravam ser esse homem caolho o terrível
Domingos: o infalível que deixara escapar apenas uma de suas vítimas. Em toda a sua carreira.
Aliás, esse incidente ocorrera há vinte anos, quando fora contratado para matar uma família
inteira instalada em terras de posse indeterminada. Executara tudo perfeitamente, com a velha
Winchester assassinara o casal e a filha, mas não conseguira aniquilar o garoto, então com
quatro anos, pois fugira e se embrenhara na mata conseguindo escapar. Em todos aqueles anos
de atuação aquela havia sido sua única falha e portanto, não poderia ser considerado infalível.
O menino crescera com ódio e sede de vingança, e agora estava prestes a saciar-se.
Ainda cauteloso fiz-lhe a derradeira pergunta:
— E o senhor ainda tem alguma ambição na vida?
Domingos refletiu um pouco e assustou-me quando de repente virou o rosto em minha
direção olhando diretamente em meus olhos. Ficou como que analisando-me durante alguns
segundos e voltando a recostar a cabeça na cadeira tranqüilamente respondeu-me:
— Não filho, hoje já não tenho nenhuma ambição, sinto-me completo e infalível.
A figura de Domingos de fato causou-me pena, quis perdoá-lo. Estava eu ali, ao lado
dele, onde sonhei estar por toda a minha vida para poder concretizar a idéia que tornara-se
minha obstinação e hesitara. Não tinha a coragem suficiente para pegar a arma que trazia na
mochila e vingar a morte de meus pais. Perdoei-o:
— Obrigado pelo depoimento, talvez amanhã o senhor possa ler a reportagem ou pedir que
alguém o faça por você. Adeus, disse levantando-me e voltando na direção do botequim.
Domingos permaneceu calado e sorrindo timidamente.
De que vale a vingança afinal? Pensava eu enquanto caminhava. O pobre homem parecia
não ter mais nenhuma esperança na vida, devia passar os dias ali sentado com a arma ao lado
apenas esperando... foi então que pensei o porquê de aquela arma estar lá e lembrei-me da frase
que dissera: "Hoje sinto-me completo e infalível." Mas já era tarde, senti um tiro certeiro atingir
meu o coração. Cai fulminado.
— Era o último! Dizia com orgulho, o bugreiro.
O olho esquerdo de Domingos ainda era-lhe útil e agora ele poderia sentir-se livre para
viver, afinal era de fato infalível.