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Domingos: o bugreiro

Leandro de Bona Dias

Avistei-o sentado à frente da tapera, segurando a velha Winchester. Mesmo cego de um


dos olhos, não foi preciso chamá-lo, distante ainda me percebeu, como bom caçador que era.
Cumprimentei-o e sentei ao seu lado, ouvindo durante as horas seguintes os relatos de
vida e morte contados pelo carrasco que durante toda a sua vida as sentira muito de perto.
Apesar de possuir um semblante simples, o primeiro contato fora difícil para mim. Visto
de perto ele agora não me causava tanto repúdio como antes, não aparentava ser frio e
sanguinário como meus tios o descreviam, diziam eles: "Kauik fique longe dele, aquele homem
é o diabo, veste-se como um imundo e carrega nas mãos o peso de mil almas, Deus me livre de
encontrar esse monstro!" Advertiram-me durante toda a adolescência para que jamais voltasse
para lá, que jamais tentasse encontrá-lo, como sempre fora o meu desejo, mas eu não os ouvi.
Não demorei muito tempo a encontrá-lo, afinal era uma figura misteriosa e conhecida
naquela pequena cidade. No primeiro botequim que avistei perguntei pela tal figura:
— Amigo, estou procurando por Domingos, o bugreiro.
— O senhor quer mesmo saber onde ele está?
— Sim.
— Bem, é só seguir pela estrada aí em frente e logo vai avistá-lo, ele está sempre sentado na
frente do casebre esperando ninguém sabe o que, há anos que está lá, não tem erro, é só seguir
em diante.

Agradeci o dono do estabelecimento e segui as suas instruções, não precisando de mais


nenhuma informação para encontrá-lo.
Domingos estava lá, com o olhar fixo na poeira quente da estrada de terra, a arma
pousada ao lado da cadeira causou-me estranheza, mas eu parecia compartilhar sozinho daquele
pensamento. Percebi que estávamos sozinhos eu e ele. Como não avistara nenhuma outra
cadeira agachei-me ao lado de Domingos e desferi minhas primeiras palavras, as quais calculara
bem:

— Olá, o senhor tem um minutinho?

Seguiu-se um longo silêncio. Insisti:


— Prometo que serei breve, são só algumas perguntas que quero lhe fazer. Mais silêncio.
Cogitei falar algo, mas não queria importuná-lo e correr o risco de perdê-lo após tanto tempo
de espera. Quando me preparava para ir embora ele moveu-se. Foi um movimento lento e
pesado, de quem realmente já parecia ter esquecido o que era o tempo. Olhou-me fixamente e
quase sem abrir a boca respondeu-me enfim:
— O senhor é jornalista?
— Eu... sim... sou jornalista, disse ainda assustado com o tom de voz firme do ancião.
— O que quer comigo?
— Um depoimento, inventei.
— E sobre o que quer eu fale?

Essa pergunta me pegou de surpresa, não poderia abordar o seu passado obscuro ou
então tudo estaria perdido, precisava ser sutil, afinal ele tinha uma arma. Após refletir achei
uma saída:
— É uma matéria para o jornal sobre cidades antigas e o senhor parece conhecer bem essa
região, então queria que falasse um pouco sobre ela.

Esperei algum tempo a fim de averiguar se minha mentira o convencera, mas para dar
mais crédito a farsa dei-lhe um jornal que trazia na mochila:
— Veja, este é o jornal para o qual trabalho, com sorte se o fotógrafo não atrasar uma foto do
senhor estará nas páginas amanhã.

Estendi o jornal para ele que com dificuldade o pegou e o pôs diante dos olhos, percebi
a dificuldade que parecia ter para ler o noticiário, ele forçava o olho esquerdo de forma irritante,
foi então que lhe perguntei:
— O senhor não consegue enxergar bem?
— Amigo, não é tão fácil quanto parece ler sendo cego de um olho.
Só então percebi tal deficiência. Confesso que senti uma leve comoção em relação a
esse fato, e o que Domingos relatou-me em seguida fortaleceu esse sentimento:
— Bom, eu moro aqui há pouco tempo, não posso lhe falar muito sobre a cidade, nunca me
demorei muito nelas, tive que andar muito pelas entranhas destas matas, era o meu oficio, mas
confesso que na idade em que estou sinto-me arrependido e cansado da vida que levei. Sem
casa, sem família, um andarilho, recebendo o dinheiro do sustendo às custas de outras pessoas.
Hoje fico aqui sentado o dia todo calculando o que ainda me resta de vida.
Essas palavras, as quais ouvi atentamente, não demonstravam ser esse homem caolho o terrível
Domingos: o infalível que deixara escapar apenas uma de suas vítimas. Em toda a sua carreira.
Aliás, esse incidente ocorrera há vinte anos, quando fora contratado para matar uma família
inteira instalada em terras de posse indeterminada. Executara tudo perfeitamente, com a velha
Winchester assassinara o casal e a filha, mas não conseguira aniquilar o garoto, então com
quatro anos, pois fugira e se embrenhara na mata conseguindo escapar. Em todos aqueles anos
de atuação aquela havia sido sua única falha e portanto, não poderia ser considerado infalível.
O menino crescera com ódio e sede de vingança, e agora estava prestes a saciar-se.
Ainda cauteloso fiz-lhe a derradeira pergunta:
— E o senhor ainda tem alguma ambição na vida?
Domingos refletiu um pouco e assustou-me quando de repente virou o rosto em minha
direção olhando diretamente em meus olhos. Ficou como que analisando-me durante alguns
segundos e voltando a recostar a cabeça na cadeira tranqüilamente respondeu-me:
— Não filho, hoje já não tenho nenhuma ambição, sinto-me completo e infalível.
A figura de Domingos de fato causou-me pena, quis perdoá-lo. Estava eu ali, ao lado
dele, onde sonhei estar por toda a minha vida para poder concretizar a idéia que tornara-se
minha obstinação e hesitara. Não tinha a coragem suficiente para pegar a arma que trazia na
mochila e vingar a morte de meus pais. Perdoei-o:
— Obrigado pelo depoimento, talvez amanhã o senhor possa ler a reportagem ou pedir que
alguém o faça por você. Adeus, disse levantando-me e voltando na direção do botequim.
Domingos permaneceu calado e sorrindo timidamente.
De que vale a vingança afinal? Pensava eu enquanto caminhava. O pobre homem parecia
não ter mais nenhuma esperança na vida, devia passar os dias ali sentado com a arma ao lado
apenas esperando... foi então que pensei o porquê de aquela arma estar lá e lembrei-me da frase
que dissera: "Hoje sinto-me completo e infalível." Mas já era tarde, senti um tiro certeiro atingir
meu o coração. Cai fulminado.
— Era o último! Dizia com orgulho, o bugreiro.
O olho esquerdo de Domingos ainda era-lhe útil e agora ele poderia sentir-se livre para
viver, afinal era de fato infalível.

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