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-_CONDONINIO DQ DIABO. Ato Zatuar CONDOMINIO DO DIABO Alba Zaluar aS , CONDOMINIO DO DIABO Copyrigh © 1994 by Alba Zaluat Resists Barbar GuimartesArényi Sandea Pésaro| Praise elit « apa Ana Curcio Products grfice Ricardo Gort serinica Impee Graphos C1P-Brat, Cetlogasiocna-fonte Sindicat Nacional ds Edivres de Livos. Rl Zaluar, Alba 226¢ ‘Condorinia da diabo / Albs Zalust.— Bo de Janeiro Revan : Ed. UFRJ, 1994 280) ISBN 85.7106-064 9 1. Criminalidade urban. 2. Detingdeoter juve ‘ie. 3. Babren 4 Juventade urbana, Universidade Federal do Rio de Janivo cop - 364.2 94.0508 cu = 343.97 M7915 Universidude Federal do Rio de Jairo acum de Citncas © Culture Editors UFR] Gonsetho Editorial Darcy Footouts de Almeids, Gerd Bosnheim, Gilberto Velho, Gullo Masaran. Joa Mala de Carvalho, Margarida de Souse Never, Silvio Saatiago, Wanderley Guilherme dor Santos ‘Apolo Fundasto Univectitris José Bosificio Editors UFR) Forum de Citnca ¢ Caleura ‘Av. Farteut, 290 1° soda = Rio de Janeiro CEP 22306.240 Tel: 295-1595 «18/19 FAX: (O21) 295.2346 Em co-edigi com: Editors Reran ‘Aveaids Palo de Frontin. 63 ‘CEP 20260-010- Rio de Janeiro - Ry PBX (021) 293-4495. FAX; 273-6873 Sumdrio capteulo 1 CONDOMINIO DO DIABO 7 eapisala 2 [AS CLASSES POPULARES URBANAS EA LOGICA DO “FERRO” E DO FUMO 13, caplrulo 3 © RIO CONTRA O CRIME 36 capleulo 4 (© DIABO EM BELINDIA 42 capitulo 5 DEMOCRACIA TAMBEM SERVE PARA OS POBRES? 49 caplrulo 6 AROTINIZACAO DA MALANDRAGEM 52 caplrulo 7 CRIME E TRABALHO NO COTIDIANO DAS CLASSES POPULARES 58 capieulo 8 POBRE, LOGO CLIENTELISTA 69 capteulo 9 ‘CRIME, JUSTIGA E MORAL: A VERSAO DAS CLASSES POPULARES 72 capteulo 10 APOLICIA E A COMUNIDADE: PARADOXOS DA (IN)CONVIVENCIA 88 capleulo 11 DILEMAS DO NARCOTRAFICO 96 capitulo 12 ‘TELEGUIADOS F CHEFES: JUVENTUDE E CRIME 100 capteule 13 HIPERINFLAGAO E (E) VIOLENCIA 117 capitulo 14 PRISAO, TRABALHO B CIDADANIA: O CENSO PENITENCIARIO 121 capleule 15 CRIME NO RIO DE JANEIRO: UM BALANGO 128 eapirute 16 NEM LIDERES NEM HEROIS: A VERDADE DA HISTORIA ORAL 136 capitulo 17 JUSTICAE OPINIAD PUBLICA 151 capleule 18 AS MARGENS DALEL 156 capitulo 19 GENERO, CIDADANIA E VIOLENCIA 161 eapleulo 20 BRASIL. NATRANSICAO: CIDADAOS NAO VAO AO PARAISO 187 capteulo 21 RELATIVISMO CULTURAL NA CIDADE? 202 capitulo 22 AMOEDAE ALE! 219 eapieute 23 MULHER DE BANDIDO: CRONICA DE UMA CIDADE MENOS MUSICAL 224 - capttule 24 ACRIMINALIZAGAO DE DROGAS E © REENCANTAMENTO DO MAL 235 capleulo 25 A AUTORIDADE, O CHEFE E O BANDIDO: DILEMAS E SAIDAS EDUCACIONAIS 255 BIBLIOGRAFIA 271 1 Condominio do diabo lugar ndo importa, Pode ser qualquer um, conranto que seja pobre ¢ marginal a esta outrora encantadora cidade. Nele fiquei mais de um ano convivendo e conversando com 0s supastos agentes da vio~ Iéncia urbana. Alguns por serem simples moradores do lugar. Pois 0 que é para nés, além de um grande medo, assunco jornal{stico, para les é nédoa contea a qual tém que lutar diariamente, até com eles préptios na feente do espelho que certa imprenss Ihes montou. Mais tum estigma que, na pressa de descobrir 08 culpados alhures, se thes jimpés. Outros porque sealmente traficam, assaltam ¢ fazem uso da arma de fogo. Eu os vi, observei, escutei ¢ deles ouvi contar muitas estérias. Durante todo esse tempo ouvi também explicades, ou seja, centativas de encaixar o que para eles pode vir a ser uma terrivel tragé- dia pessoal numa Iégics qualquer, na ordem das coisas deste mundo. E claro. Todo mundo sabe o fim dos bandidos pobres: morrer antes dos 25 anos. E ninguém quer ver seu fitho, seu iemia, seu parente ou seu vizinho com este destino, embora haja quem acredite que este ca- minho néo é escolha, é sina. Talvez seja 0 modo que encontram pata dizer que as condigdes em que vivern os levam forsosamente a agir as- sim, Porém, para nio colocar aqui o ponto final, vou me deter nas con- digées que assinalam a razio da escotha com os pedagas de entendi- mento que recolhi deles préprios. Pois capacidade de entender nao fal- taa nenhum ser humano, por mais silenciado e esquecido que seja. E, se algumas vezes seu pensamento nasce da ilusio ¢ se amedronta diante de fantasmas, por outras é de grande bom senso, que surpreende ape- nas aqueles que nao tém, como eu, de ouvi-los por oficio ¢ que desco- nhecem a inteligéncia que se esconde sob as marcas do inculto, inteli- Bincia esta a que se nega ceconhecimento € que, portanto, é cheia de duvidas sobre si mesma. Mas que pensa apesar de tudo. Quando Lemos diariameate estampadas nas manchetes dos jornais as conseqiiéncias funestas ¢ trégicas das batidas policiais, nao é 5 repisar 0 ja dito sobre os aspectos sociais do aumento da criminalidade, Existem claros indicios de que 0 desemprego sealmen- z CONDOMINIG BO DIABO te aumentou nos ltimos anos, com o rérmino do nosso suposto mila- gre. Mas este fato s6 toma proporgées alarmantes em paises como este, em que o desemprego nao sé afasta o trabalhador de qualquer tipo de assisténcia social provida pelo Estado, como o coloca na categoria de criminoso ¢ enquanto tal tratado. Este fato, além de criar situagdes em que o trabalhador, desempregado ¢ 2s vezes também 0 empregado, tem que enfrentar a violéncia do aparato policial, apaga perigosamen- tea distingio entre trabalhador e bandido, distingéo essa fundamental na visto social da populacio pobre desta cidade. “Tanto faz ser traba- Ihador ou bandido”, dizem-me , “o tratamento é igual”. Mas o desemprego ndo se faz sentir na mesma intensidade em codas as faixas de idade nem para tadas as categorias de trabalhadores. Ele é particularmente grave para os trabalhadores mais jovens e menos qualificados, isto é, parte substancial da populagéo economicamente ativa. Com 0 rebaixamento do salirio real dos trabalhadores de baixa qualificaco, os pais de familia no s6 tiveram que suplementar sua renda através de um esforso extra de trabalho, biscateando ou fazendo horas extras, como tiveram que contar cada vez mais com a ajuda de sua familia, inchusive dos filhos menores. Isso sem falar no alto percentual de familias chefiadas por mulheres entre esses trabalhado- res, que precisam ainda mais do auxilio de seus filhos para sobreviver. O problema é que essa entrada maciga de criangas e jovens no merca- do de trabalho nao encontrou a oferta necesséria para absorvé-los, nem as esperaveis modificacées na legislagao. Esses dados podem ser con- firmados pelas pesquisas do IBGE; mas o resultado dessas estat(sticas na vida real é, segundo me dizem, que os menores de 14 anos quase nunca sio empregados porque os patrées temem a fiscalizagio do Mi- nistério do Trabalho; que os maiores de 14 anos, apesar de jé poderem ‘ter suas carteiras assinadas, dificilmente 0 sfo porque 0 aprendizado téenico que recebem na FEEM e emt outras escolas profissionalizantes Pouco tem a ver com o know-how necessério para lidar com as mAqui- nas existentes nas firmas, Esta situagio agrava-se especialmente na pro- ximidade do servigo militar, j4 que é proibido despedir quem vai cum- pri-lo, Servir 0 Exército é, aliés, um pesado 6nus para as familias po- bres, pois elas se privam de um ganha-pio certo e tém que ascar com as pequenas despesas pessoais do fitho. O resultado disso & 0 que vemos nas ruas, sinais, feiras e fren- tes de supermercado, onde bandos de criangas e jovens vendem balas € Candaminis da diaba fazem carteto para ajudar a mae. £ nessa convivencia didria ¢ intensa de tantas criangas ¢ jovens, prematuramente independentes e afasta- dos da vigilancia materna, que se formam os bandidos, com suas pro- prias leis, constitufdas no contexto da luta didria pela sobrevivéncia seus inevitdveis conflitos. E é isto que gera forte solidariedade interna 2 gerasio © uma vida social perigosamente infensa a capacidade edu- cadora dos adultos. Pois slo estes jovens que, de usudrios, passam a comerciantes ou empresirios do téxico, 0 que os leva numa escalada de existéncia exclusiva e de adogio de métodos violentos. Para afugenté-los do trabalho, esses jovens néo contam apenas com as dificuldades de conseguir emprego. Forma-se entre eles, 2 partir de suas préprias experiéncias e da observacio da vida de seus pais, uma visio negativa do trabalho, termo que equiparam 3 escravidao. Escra- vidio ¢ trabalhar de “segunda a segunda" por irris6rios salérios duran: te quase todo o tempo em que se esta desperto. Escravidao ¢ também submeter-se a um patrio autoritério que humilha o trabalhador com cordens rlspidas, que nao ouve nunca, que 0 vigia sempre. Sem serem formados por escola ou religito que lhes passe uma ética rigida de ssabatho, esses jovens cedo aprendem os valores da machismo, 0 que exacerba ainda mais o caréter humilhante da submissio, negacio da marca de um homem. Como fazé-los, portanto, admirar ¢ tomar por modelo o pai que se curva a esta ardua rotina, & exploraga0 € a0 au- toritarismo? Seus herdis sio outros. Na falra de um movimento operi- rio forte de onde saiam I{deres trabalhadores com fama, eles se voltam para os eternos valentes da nossa cultura popular que desafiam, passam rasteira e se negam a este mundo do trabalho. Se antes, por {4, 08 valen- tes eram os simpaticos malandros, hoje sio 0s perigosos e armados ban- didos, A navalha foi substitufda pelo “oitéo” ou minimetralhadora, leal corpo a corpa pela acaia traisocica, a lei do mais valente pela lei do mais armado. Isto nfo quer dizer que, na cultura desta populaséo pobre, prevalesa a recusa de qualquer autoridade ou se descanheca o que € consentimento. Ao contritio, eles opdem muito claramente “vencer na moral” a violéncia das armas, A brutalidade, a dominagio crua dos que se recusam a0 uso das palavras porque com élas nao estio certos de manter 0 seu poder. O trdgico € que 0s que, entre eles, procuram agir “na moral” véem-se impotentes para conter essa avalanche de vis lencia e brutalidade que permeia toda a nossa sociedade hoje ¢ ques 9 CONDOMINIO DO DIABO. portanto, néo se gera ali. Bles também, perplexos, assistem a queda da moral ¢ 3 ascensio do ferro, da méquina, nomes que dio localmente & arma de fogo. Fortes simbolos visiveis do poder, estas armas tornam- se fetiches na cintura de adolescentes franzinos ¢ gatilhos mortiferos nos seus dedos. “Revélver na cintura imp6e respeito", eu aprendo. “Ser um matador”, “ter disposigio pata matar”, faz um garoto “criar fama”. Além do prestigio do local, 0 prestigio entre os bandidos no mundo dos téxicos, porque é de téxicos que se trata, significa poder controlar bocas e subir na hierarquia que vai do avio a0 vapor e por fim ao trax Gcante, tendo assim acesso a parcelas crescentes na divisio dos lucros. Sendo ainda trabalhador ou jé bandido, pois a passagem & de tsabalhador para bandido e dificilmente hi volta, o jovem vé diante de si esta alternativa: o trabalho duro, desinceressante e muito mal pago ow a vida perigosa, aventurosa e curta de bandido. Os mais destemi- 405 €, 4s vezes, os mais talentosos que viram frustradas as suas possibi- lidades de sai daquela vida opressiva de pobres, si 0s candidatos mais certos 8 ultima opcio, que lhes trard fama, poder, dinheito facil morte quase certa. O bandido, eu aprendo, € aquele que “arma a sua propria morte", 0 malandro é aquele que sobrevive. E 0 otitio € 0 que vrabalha muito para ganhar pouco. Nessa luta entre possibilidades, al- guns jovens preferem poder ¢ a fama, embora curtos, € 0 dinheiro, embora marcado. E muitos deles morrem. Porém, os que sobrevivem seclamam cada vez mais do seu viver, principalmente 0s “otarios”. As- sim 0 ciclo continua, aumentando a hoste dos bandidos. Mas muitos no fazem nenhuma opcio consciente e se véem, or circunstancias da vida, sob o révule de bandido. Depois, é dificil voltar atr4s. Néo porque a populacio local nio acredite em regeneta- 40, pois ali conheci alguns regenerados que se apontavam como tal, mas por causa da engrenagem em que entram, inclusive a da policia. © passe inicial pode ser dado por conta do roubo ou humilhagio so- fridos por algum jovem a caminho do trabalho e que tem a desventura de topar com um bandido de outro territério. Ou uma briga por causa de mulher. Ou ainda pode ter sido espancamento, tortura € prisio injusta softidos nas maos da policia. O posto policial local nem se preocupa em esconder que usa a tortura. Todo mundo sabe, todo mun- do ve. E por isso que, entre cles, o policial é uma figura muito temida, mas odiada e desprezada. Nao hi nenhum respeito miituo, nenhsma ética, nenhuma moral, 0 que nem sempre € 0 caso entre bandidos. 10 Condominio do diabe Qualquer um desses inforttinios leva o trabalhador ase armar, seja para defender a propria pele, seja para se vingar, seja porque nada mais importa num mundo injusto. “Revoltam-se", eu ougo, tomando uma arma de fogo emprestada ou comprando uma para botaf na cintu- ta, Este € 0 sinal de sua “revolta’. “Este ¢ 0 condominio do diabo", disse-me um desses jovens, porque, uma vez de arma na mao, 0 jovem se vé envolvido num circuito de trocas (de tiros) implacével nas suas re- gras de reciprocidade. Para sobreviver, 0 jovem “revoltado” tem que se juntar a uma das quadrilhas que dividem entre si o controle da érea. ‘Cada uma tem o seu tertitério proprio e, como disputam lucrative co- mércio, de vez em quando estoura uma guerra entre elas, provocada pela ambicio de dom{nio do territério alheio. Armar-se ¢ uma necessi- dade, pois “ficar desarmado”, eu ouso, significa entrega, a invasio do seu territ6rio, Essa linguagem militar nao é usada apenas pelos bandi- dos, mas por moradores locais que precisam da protecao dos bandidos de sua drea contra os de outra. Porque um bandido, a nao ser que desco- nnheca as regras bisicas da convivéncia com os trabalhadores, jamais rou- ba ou ataca alguém dali. De preferéncia, os bons bandidos, os benquis- tos por todos, coubam apenas aqueles a quem 0 produto do roubo “no vai fazer falea’, isto 6, os que moram nos bairtos ricos desta cidade. E esta a sua ética de bandido social e ¢ por causa dela que alguns se tornam herbis para 0 povo do local. Esse acordo técito de protegio ¢ respeito miituos s6 nao vale nas “trocas” entre dois bandidos da mesma drea. “Isto é Id entre eles”, dizem-me, e ninguém se mete, embora comentem, lamentem ¢ discu- tam 05 resultados das disputas, Mas hoje os trabalhadores pobres des- ta cidade vivem num clima sempre muito perto da guerra declarada, que envolve a todos, bandidos ou nio. E por isso que s40 contra a pena de morte. Ajém de ter visto crescer ou crescido junto com os que passaram a viver como bandidos, eles precisam da protesio dos alti- mos. Ruim com eles, pior sens eles seria. Um casamento infeliz, mas necessério. Parte do problema parece estar, portanto, no modo como sé organiza o tréfico de drogas nesta cidade, até mesmo o da inécua ma- conha. A necessidade de se municiar constantemente, de melhorar suas armas e de pagar o policial corrupto em caso de flagrante ou prisio, acaba levando 0 bandido ambicioso a praticar assaltos. Conheci uma mulher que vendeu 2 casa comprada da CEHAB para soltar o filho u CONDOMINIO DO DIABO reso. Mas este meio, como se vé, nio se pode repetir. O niimero cres- cente de assaltos pode ter sua explicasio nisso. Nao se trata apenas de assaltar para ter acesso aos bens de consumo valorizados na nossa soci edade, que sio simbolos através dos quais construfmos nossas identi dades e marcamos nossas posic6es sociais. Trata-se também de assaltar pata conseguir 0 dinheiro cada vez mais necessario na manutengio do comércio e na alimentagéo dessa engrenagem inexordvel do crime or- ganizado. Uma engrenagem que vincula 0 bandido pobre a certos po- liciais pela corrupcio, que o aprisiona 3 quadrilha pela lealdade devi- da, que o submete 3 hierarquia da organizagio, que o usa como con- denado sem julgamento ¢ como bode expiatdrio e que o faz pagar com sua propria morte os crimes dessa gigantesca rede organizada, a qual ele préprio desconhece, deixando os poderosos chefes impunes. E essa 4 rg fig do bandtiamo urbano no Rio de Jancro, sida por ser lesenterrada, Pensat em conter essa torrente de crimes com batidas polici- ais € como tentar conter Aguas caudalosas com diques de cimento gas- to € corrompido. Mesmo porque, bandido que se preza no sai de casa em dia de batida. Publicado no Jornal do Brasil, 1° de marco de 1981. 2 2 As classes populares urbanas ea légica do “ferro” e do fumo Avvioléncia urbana esté nas ruas ¢ nos jornais didrios. Est no ridio, na televisio e nas nossas preocupagées cotidianas, No entanto, nao somos atingidos por essas diferentes fontes de informagoes sobre a violéncia da mesma maneira, e isso se teflete nas nossas conceps6es acerca dela. A classe social a que pertencemos, o local onde moramos, 0 jornal que lemos, o progiama a que assistimos, bem como a imagem que estes nos dio de nossa classe social e do local onde moramos, constituem ¢ compéem o modo como vivenciamos € pensamos essa violncia. Foi exatamente este aspecto da questio que mais me cha- mou a atenclo & medida em que procurava entrar num bairro que no éhabitado por pessoas de minha condigao social e que, provavelmente por isso mesmo, é considerado um antro de banditismo. Seu nome esteve diariamente estampado nas manchetes dos jornais ¢ seus habi- tances cram acusados da maior parte dos crimes cometidos na Zona Sul do Rio de Janeiro e numa vasta regigo em volta, esta sim habitada or pessoas que tinham acumulado suficiente riqueza para levar a0 paroxismo o medo de perdé-las. Aos primeiros foi reservado o estigma de criminoso indiseriminadamente aplicado a todos os que morassem ‘em tal lugar, aos segundos 0 medo € 0 pinico dos seus pobres morado- res. Este artigo é, portanto, 0 resultado da experiéncia que vivi em contacto com a populasio de uma das areas consideradas mais perigosas neste mal afamado conjunto habitacional da Zona Sul do Rio de Janeiro. Nao é um estudo estatistico para provar a maior ou menor incidéncia de crimes no Rio de Janeiro, nem tampouco a corre- lagao entre criminalidade e pobreza. A abordagem nao é nem quant tativa nem patologizante. Nio lido com estatlsticas e sim com 0 im- pacto da criminalidade na vida social local, ou seja, como os morado- res percebem a criminalidade, 0 banditismo, a violéncia ¢ quais sao, de fato, as categorias verbais que empregam para expressar tais fend- menos. £ 0 modo como circunscrevem estes fenémenos ¢ a que eles se 3 CONDOMINIO DO DIABO opéem no pensamento que procurei registrar. Tampouco avalio 0 ca racer anti-social ou “lumpenizador’das préticas consideradas, seja ju- ridicamente, seja nas concepg6es sociais locais, como criminosas. Ao invés de categorizd-las de fora, procuro perceber como estas praticas se misturam € constituem, com outras, 2 vide sacial local. E como 0 contacto com membros de classes sociais privilegiadas, ou no trabalho ou em atividades extratrabalho, vem a ser a matéria-prima do proces- 0 que leva ao molde social destas priicas ¢ da reflexio sobre elas. ‘Mas, sem diivida nenhuma, nfo entenderia esse proceso se no consi derasse o impacto da presenca fisica da policia no focal, da sua vi lancia constante e acintosamente opressora. £ este 0 organismo do apatetho de Estado que tem agio mais imediata e mais efetiva nas pré- ticas sociais que aqui abordaremos. A pesquisa que iniciei neste conjunte habitacional ndo tinha por finalidade e estudo do banditismo local. No entanto, no decorrer do ano que por Id fiquei, fui juntando um razoavel material acerca do problema, Na verdade, a meu ver, para estudar as quadrilhas interna- mente, ganhando a confianga de seus participantes, seria necessério ficar por lf muito mais tempo, 0 que nao fazia parte dos mews planos. Entrevistei poucos bandidos assumidos, isto é, aqueles que andam de revélver na cintura € que sio reconhecidos como tais pela populacio local. Botar o revélver na cintura tem, entre eles, o sentido de declarar publicamente uma opgio de vida, ¢ de passar a ter com a populagio local relagdes marcadas pela ambigtlidade. Ser bandido € pertencer a esta categoria de pessoas que carregam um estigma e uma indiscutfvel fonte de poder: a arma de fogo. Sua presenga, mesmo quando ausentes fisicamente do local, nos acontecimentos difrios desta populagao é constante. Assim, recolhi muitos cestemunhos de terceiros acerca de seu modo de vida e de seus dramas pessoais e pude reconstituir, atra- vés das estérias variadas e das lendas cristalizadas sobre os poucos que adquitiram uma dimensio heréica no local, o processo através do qual se fez. a sua reputagio. Além disso, como’ qualquer set humano por ais silenciado e esquecido que seja, o pobre que pensa em suas con- digées de vida e centa explicar por que de repente todos se viram en- volvides numa guerra, fossem bandidos ou nio, Juntos, reconstroem a sua histéria, marcando mudancas, assinalando passagens, criando per- sonagens importantes. Essa etno-hist6tia € material imprescindtvel para quem quer que se disponha a entender a questio da violéncia urbana no Rio de Janeiro. “4 As claues populares urbana ea ligica do “ferro” & do fume A associagao entre criminalidade e pobreza ¢ evidente quan- do penetramos nas ruas internas de qualquer dos cconjuntos habiracio- nais “reservados” & poptulacdo pobre dessa cida de. Mas nfo € exatamente a sugerida pelos nimeros das séries e statistic as. Nestas ruas as marcas do que denominamos criminalidade aparecern lade a lado com claros sinais de miséria social e moral. Ruas esburac adas, cheias de lama ¢ de dejetos fétidos dos esgotos jé arreberntados emcami-nham os passos de ‘quem por elas anda, Nelas cruzam.-se sempre (sabalhadores a caminho do srabalho, bébados, mulheres losicas andanclo senm destino, donas de casa quase tempre ocupadas nos seus eterno s afazeres ¢ unr ntimero cada vez maior de desocupados e diese mpregaclos, eriquanto nas esq) nas estratégicas permanecem atentos ¢ Vigilarates os olheiros, os avédes ou 0 vapor. De vez em quando este quadro cotidiano é agitado por uma briga mais violenta a vista de toclos ou u ma “troca”de tiros entre os bandidos e a policia. Muitos mors em esbuacacadwos por ali mesmo. ‘Suas mortes sio presenciadas e comentadas por muitos tempo seo morto tera famoso no local. Antes mais dor que agora pois, © numero de mor- tos jd é tao grande que uma clara dindiferenca ¢ a re agao atual as suias mortes. E nesse cendrio opressor, nes se espago de segregagao moral, nese campo definido de fora como o campo a critrainalidade, que os trabalhadotes urbanos de baixa qualifi cagdo acrumamn e enfeitam suas casas, educam seus filhos, inventam. est ratégias_ de sobsrevivéncia, mon- tam organizagées vicinais para reiv ind icar meLhorias no bairto © para tornar alegre 0 seu lazer. A convivé ncia com os que Optaram pela vida criminosa ¢ inevitével, mas a experdéncia da vi olénci a € didria e cons- tante e vai muito além daquilo que se delim ita como o mundo do crime. Ela perpassa habitos didrios da vida familiar, estd presente nas rotinas da opressio de classe, seja pela preseraga do aparato policial que se comporta de maneira caracteris ticamen.te rep-ressiva diante da populagao pobre, seja pelo quadro de miséria q ue desfila sempre pelas tuas ¢ casas de seu bairfo, seja pela imagem connstruffda por certa im- prensa do criminoso e do crime, vimculando-o sempzxe 3 esta popula- ‘40 pobre. Com a policia, a papulagao local mantém uma relasio a0 mesmo tempo de medo ¢ hostilidade disfargada, desconfianga ¢ bajulacdo, reacio & postura repressiva adotada poor aquiela. Esta postu- 112 se expressa no préprio andar do polieial, na manera de ollaar para 4s CONDOMINIO DO DIABO 0s moradores, no modo de dirigir-se 20s que se encontram naquilo que os policiais definem, quase que por exclusiva autodefinigio, como seu campo de intervengio, bem como na fama que ji adquiriram pot ali de torturadores, matadores etc. “Quem faz 0 bandido é a policia” ouvi de muitos jovens vivendo a crise que antecede a op¢io entre a vida de teabalhador ¢ a vida ctiminosa. Esta afirmagio nunca me foi desenvolvida por nenhum deles, mas o sentido dela me era indicado pelo processo da repressio-medo-revolta do qual vi espocarem intime- ros exemplos diante dos meus préprios olhos. Uma simples festa lo- cal, em que um destacamento da palicia militar participou exibindo seus cies amestrados, serve de ilustragdo para isso. Nela, os cAes pasto- res adestrados pela PM obedeciam imediatamente as ordens que seus instrutores thes passavam de atacar “individuos suspeitos” (repre- sentados na ocasiao por jovens de aparéncia desleixada, cabeludos ou vestides pobremente) para descobrir-lhes, pelo olfato, os pacotes de téxico ¢ imobilizé-los com os dentes até que os policiais os prendes- sem. A ligdo tinha endereso certo ¢ isso ficava patente nos olhares amedrontados dos jovens que assistiam 3 exibigao. A representagio de criminoso como um pobre é suficientemente indicativa por si. Mas isso nao é tudo, O posto policial local nfo se preocupa em esconder que usa a tortura ea violencia fisica sobre os presos, culpados ou no. Ao contririo, este fato bem sabido por todos faz parte da imagem do policial poderoso. E isso que garante o grande medo que inspiram. E © nenhum respeito conquistado na base da moral, que nunca chegam a conseguir, Nio é por coincidéncia que o alvo dessa técnica de amedron- tamento, que decerto no podemos chamar de educadora, € o jovem morador. Pois sabe-se por Ié que o recrutamento para a “vida de ban- jo” se dé na faixa de idade que comeca por volta dos 10 anos, quan- do os garotos jé iniciaram a carreita fazendo mandades para os trafi- cantes, ¢ termina por volta dos 25 anos, quando a maioria dos bandi- dos pobres desta cidade jf dessangrou com algum tiro no corpo. O processo através do qual o jovem opta pela vida de trabalhador ou pela vida de bandido ainda néo tem um quadro completo na histéria trdgica das familias de trabalhadores urbanos pobres. Do que registrei de histérlas de vida e de entreviseas com jovens, posso repetir pedagos de entendimento recolhidos deles préprios, embora esse entendimen- to se revelasse muitas vezes conttaditério. Mas € certo que estamos diante de um personagem novo ~~ 0 bandido — que é bem diferente 16 Ar clases popular urbanas¢ 4 igica do “ferro” ¢ do fume malandro que outrora mandava nestas paragens, e que 0 apa recimentto desse novo personagem nfo se deve excRusivamente a faltrde emprepso provocada pela crise econdmica. - E na faixa de idade dos 10 aos 25 anos que o jovem comega a se inserir no mercado de trabalho ¢ que dificuldades de var ias orders passam a surgir, A existéncia de centros profissionalizantes mo conjura- to habitacional nao ¢ suficiente para araular o efeito de uma aprend3- zagem paralela ¢ muito mais aprofundlada que é feita por qualquer garoro na complementagio da renda familiar: o biscate. Esta é uma expetiéncia intransponivel. Nao € mais: possfvel para as familias Le trabalhadores urbanos de baixa qualificagio, sejam familias completas ou familias incompletas chefiadas por mulheres, prescindir da ajud.a de seus filhos menores na formagio da renda Familiar. E isso os leva a sair de controle materna ¢ pracurar meios de renda em biseates pel a cidade junto com muitas outras criangas. Mesmo os jovens que consegue m freqiientar escolas ¢ curso s profissionalizantes tém que enfrentar mais tarde a inadequagto deste s 3 realidade da maquinaria usada nas fibbricas dle tecnologia avangad= existentes hoje no pals, bem como as barseiras colocadas pela atua 1 legislagao 20 trabalho do menor € 20 candidato ao servigo militar. Come a lei probe despedir aquele que vai servir as forgas arrnadas, 03 PatrSes preferem nio contratar jovens menores de 18 anos, « servir pitria acaba tornando-se um pesado énus para a familia pobre. Para complerar 0 quadro de dificuldades de acesso a0 empre— g0, as barreiras sociais do preconceito e entacio, para encaminhé-lo 40 trabalho e ao lazer saudével. No entan- to, como qualquer morador comum, também os dirctores conheciam pessvalmente os bandidos e solicitavam sua ajuda quando eram per- turbados por pivetes do local. $6 de alguns deles ouvi abertamente @ alternativa de denunciar bandidos policia como meio de livrar-se deles, ‘Como encaixar, do ponto de vista da teoria social, esses fatos aqui narrados? Tratar-se-ia de um movimento social de contestagio? De crime organizado? De um brago de organizagio nos moldes da Méfia? Ou de um confuso panorama de revolta, ambisio pessoal e uso de formas coercitivas de poder? De inicio, é preciso dizer que a violencia nao € alguma coisa peculiar & nossa época ou a nossa sociedade. Em todas as sociedades, fem todas as épocas ocorrem agées que se podem caracterizar como violentas jf que apelam para o uso da forga bruta, seja através de que instrumento for, a0 invés de apelar para o consentimento. O que varia sio as suas formas de manifestagio e as regras sociais que as contro- lam, Nas sociedade em que a violéncia privada ¢ essencial 20 funcio- namento da vida didria, essas regras séo conscientes (Hobsbawn, 1982).Quando a violencia € controlada, ela s6 atinge os que partici- pam das rixas ¢ ndo envolve terctiros ou inocentes. Como disse um morador: Timbé nio era sanguindrio, Timbé é formado, Na drea dele dna eeze, cle defendia Area dele. Tanto que pessoas da text, conhecido meu, dia aque ele dfendia a dtea da treze I espeitava morador. Aqueles molequinhos quando queria descespeitar ot morador, cle vinhae 6 batia nelese:“espeita (9s moradot”. Agora, na drex aqui em cima ele pegava. Mas ele entrava por enero dessa drea aqui e se civese pessoa sentada aqui ele no mexia com ninguém, Quants vezes eu vi oT. enconado ali, esperando pra pegat o Mané! Alien viele dai, Eu nio vou dizer a0 Mané que el cali, Olhava pra cle aqui, assim e contiauava no mesmo luga. Ele me olhav, assim. Eu no mes- ‘mo lugar. Ento cle sentia que eut8 vendo ele Sou dates do Mand, mas eu ‘io avisat cara, Porque se Eu avso 0 cara, o cata vai queter pega ele, amanhé eu encontro com ele i fora ele me dum tira: "vou dA ure tito, tu fala demais™. Hi um senso de justiga ¢ de equilfbrio nas relagdes entre os que se consideram como iguais, A violencia comega a criar o climna de terror e desespero quando este controle desaparece junto com as dis- 30 ‘As clases populares urbana ea liga do “frre” e de fumo tingSes inocente/culpado, justo/injusto, trabalhador/bandido. Por isso sio tia diferentes a reagio a0 bandido formado que segue as regras, ¢ do ultrapassa os limites de seu poder, ea reagio aos pivetes de um lado & policia de outro’. que no primeiro caso a violéncia ainda é coatrolada ¢ pode ser compreendida dentro da concepcéo popular de justiga, ao passo que no segundo caso ela nfo é. O plnico gerado por esta falta de controle da violéncia ¢ as profundas fetidas que causa no senso de justiga do povo geram os linchamento cada vez mais freqiien- tes no pais. Todavia, ndo cabe romantizar ainda mais do que 0s morado- res da frea de um bandido-protecor ou bandido-heréi e concluir que estamos diante de herdis rominticos de um movimento social. Apesat de todas as conotasdes com a injustica que os termos revolta e revolta- do trazem & tona, 4 atividade principal est4 num rendoso comércio — © trifico de téxicos — eo seu estilo de vida est4 longe de ser contestatério, Embora haja claras diferengas na concepgio dos trabalhado- res por um lado ¢ dos bandidos ou candidatos ao banditismo por ou- #10 quanto ao valor moral do trabalho e, portanto, sobre 0 que leva um jovem a oprar pelo modo de vida do bandido, hd um acordo sobre este modo de vida. Seja conhecendo esta opcao como “sina”, algo que “jd estd na pessoa", “coisas de mulher”, drama pessoal ou um espaco de liberdade que esta aos sujeites nestas condigées de vida, ou sejaa uma escolha pessoal, todos concordam que 0 que atrai nesta opsso é a fama, poder e dinheiro fécil que ela traz. Se sio poucos os que na realidade conseguiram isso, a imagem ou 0 sonho é a de que traficante fica rico ¢ acaba morando numa casa desctita a mim como uma casa de bicheiro rico’, Mesmo os avides e vapores que sio vistos como os pobres do tr4fica, a0 vecem camparados com os demais moradores, enrique- em e sG0 apontados como os que tém mais dinheiro para gastar. Como consumidores, os bandidos nao desenvolvem um esti- lo préprio de vida em bandos de fora-da-lei, mas almejam os bents que a sociedade de consumo lhes oferece. Para distiguir-se dos demais moradores, cujo nivel de renda nao Ihes permite isso, vestem-se com roupas Adidas, as mais caras do comézcio de pradutas esportivos. Nem tampouco tém “um programa de defesa ou restauragio da ordem tra- dicional das coisas tal como deveriam set” como supostamente teriam 0s bandidos ou os camponeses fora-da-tei (Habsbawa, 1969). Nao si0 a CONDOMINIC DO DIA8O. reformistas, nem revoluciondtios. Nao lutam por relagSes mais justas ‘entre ricos ¢ pobres, fortes ¢ fracos. Suas ages podem ser interpreta- das como uma mistura de resistencia 4 sociedade capitalista sob a for- ma de recusa ao trabalho destinado 4 populacio pobre e a participa- io num dos mais rendosos comércios de que se tem noticia na socie- dade capitalista’, Mas de pobres revoltados a membros menores de uma gigantesca rede de crime organizado, estes bandidos pobres ainda tém longo percurso a fazer e repetem em si mesmos todas as ambigii- dades do bandido anotadas por Hobsbawn*. Por deterem meios de coersio fisica poderosos, ou seja, as armas de fogo, ¢ por enriquecerem, os bandidos acabam virando uma forsa politica e montando um sistema de poder no local. Muitos de seus métodos se assemelham a0 do Estado moderno: seu poder estd bascado em iltima instancia na capacidade de fogo de suas armas e, com base nisto, as vezes cobram peddgio em pontes, taxas de protesio a cometciantes etc, Mas no gozam de legitimidade do Estado ¢, se ganham a accitagio dos moradores locais como protetores ¢ justicei- 105, suas relagées com aqueles trazem a marca da ambivaléncia. Tanto mais quando alguns deles abusam das técnicas cepressivas aprendidas ‘na sua experitncia como membro das classes subalternas diante do aparelho repressive do Estado e acabam empregando meios sempre violentos para manter seu poder. Reproduzem o que aprenderam da relagio dominador-dominado sobre aqueles que ficam momentanea- mente sob o seu dominio, um dominio constitufdo na base do uso ou da ameaca do uso de sua arma. Esta é, alids, a caracterfstica dos assal- tos que mais ressaltavam: a sensacio de completo controle sobre ‘outro, o da ordem que tem que ser obedecida, o da sugestao acatada e sem resposta. Essa forma incipiente de governo, entretanto, jamais atingiu © nivel de organizagao ou das conexdes com o Estado ¢ com a classe dominante que a Méfia do sul da Itdlia atingiu (Block, 1975). Por isso mesmo, ao contrério dos mafiosi que apenas a usam quando alguém sai da linha por eles limitada, os bandidos daqui esto sempre usando a violéncia de modo direto sobre moradores, trabalhadores e bandidos tivais. As lutas constantes entre quadrilhas rivais, a “guerra”, como cles a denominam, indicam que ainda no ocorreu uma centralizacio desse crime organizado ¢ conseqlente divisio de espacos pelos seus membros que a Méfia conseguiu. Suas bases locais de poder no sio tampouco garantidas por uma cadeia de relagbes clientelisticas confi- 32 As claves populares urbanas ea lgica do fora” ede fumo Aveis, protetoras e de longa durasio, come é 0 caso do poder local dos (Block, 1975). Se sua base local de poder tern algo semelhanre a da Mafia, sua atividade principal — 0 tréfico — os leva a serem tragados pela extensa ¢ ainda confusa rede de crime organizado no pafs, da qual sao os iltimos ¢ menosprezados bragos. Os ricos trafi- cantes nao Ihes dio nenhuma protecio. Os bandidos sabem que con- tam apenas com a lealdade de sua quadrilha ¢ é por isso que a teaigio constitui, entre eles, a pior € a mais duramente castigada das ofensas. Por fim, resta-nos 0 paradoxo também apontado por meus informantes nas reflexes que faziam comigo sobre a violéncia neste conjunto habitacional ¢ nos demais bairros de pobres. E 0 estigma ‘que todos carregam, sejam trabalhadores ou nZo, de pertencerem a0 antro dos vagabundos, malandros e bandidos, Sc entre eles essa dist do é to importante a ponto de ser em torno dela que se constroem as, regras de convivéncia miitua, nas representagdes de alguns setores da sociedade mais ampla ela desaparece e dé lugar a uma nogio que Louis Chevalier chamou de classes perigosas (Chevalier, 1978). Esta comeca na prépria ago policial que engloba todos os populares que nio te- nham carteira assinada na categoria de criminosos ¢ como tal os trata: Tal medida repressiva é tanto mais absurda aos olhos desses populares quanto mais percebem que as dificuldades criadas pelo desemprego crescente no sio de sua responsabilidade nem podem ser resolvidas por eles. E esse fato toma proporcées dramiéticas ¢ alarmantes quando nos lembramos que o desemprego e o subemprego também afastam 0 trabalhador de qualquer tipo de assisténcia social do Estado. Além de desassistidos, tratados como criminosos, antes de sé-los. Uma das expressées da dominagio é a construgio da identi- dade do dominado pelo dominador. E uma das técnicas repressivas € a estigmatizagio de quem se quer reprimit. O espelho que se consttéi agora no Brasil ¢ este: pobre, criminoso, perigoso. Pela prisio por va- diagem de trabalhadores sem carteira de trabalho assinada. Pelas cons- tantes narrativas de crimes ¢ da morte de criminosos nos bairros po- bres da cidade que toda a imprensa didsia fornece, mas que toma con- a quase que inteiramente dos jornais que sio lidos pelos préprios membros das classes populares urbanas. Pela recusa de emprego feito pelo patrio ou empregador ao candidato pobre quando tama conheci- mento do local onde este mora. O espelho aio é bonito, a0 contririo. E corre o risco de estar sendo levado 20 pé-da-letra por um niimero cada vez maior de jovens, apesar dos esforgos de muitas pessoas liga- 33 CONDOMINIO Do DIABO das 4s organizagées populares no sentido de mudé-to com a constru- io de uma identidade positiva feita por eles mesmos. A semelhanga com 0 que se passou em outras cidades euro- péias no século XIX é muito préxima para que se deixe de menciona. Em Paris, no século passado, as condigdes materiais, morais e biolégi- cas de vida dos pobres trabalhadores usbanas, bem como as opinibes emitidas por outros setores da sociedade através da imprensa, da lice- ratura e da repressio policial compunham 0 quadro da criminalidade ¢ lhe davam o sentido (Chevalier, 1978)‘. O resultado disto era colocé- los sempre nas fronteiras da criminalidade. Outra condicio do ser pobre: a recusa constante de suas pretensées ao valor moral positivo, & respeitabilidade que sempre o leva &s margens do socialmence aceitd- vel e reconhecido e o faz entrar, as vezes, como membro assumido das classes perigosas. Um circulo vicioso que manteve 0 fluxo das classes trabalhadoras para as classes perigosas constante e caudaloso na Paris, do século XIX. Apresentade no Simpésio Violéncia, Crime e Poder, IFCH, UNICAMR, 17¢ 18 de agosto de 1982; publicado em PINHEIRO P. Sérgio, Crime, Violéncia ¢ Poder, Séo Paulo: Brasiliense, 1983. 1, Havin nvidasdiecenga entre gerber nenet relatos bem come de Made. Nunce ouvi de rnenhur pai de fala esdrias de seurroubos. ram sur Fihos joven = sleins que canara ‘lim seus pequenosfurto. Algumar vse ele ituagdespresenciadas em supetmer- ‘onde viram donas de cas do local levando meteadorias. A ndo st como Figura de etic, do me expunham as ctuss da volencla cnbém nto me falaram sobre pat de fri jovent fue rivenem 4 “sevoltado” pars allimenta of fihos. Dos ser relatos sobre Bandidor conhecidon, 2 "revolu” surgia quando + privario vinha acompanhads pela humilhasto iafringids ou pot ‘roe bandidor ou pela pote 2. Ao lado dat noticias de linchamento sumdtio de piverer ou vupotoe cximinounn que ferem 0 liberal de justia, vé-teo tipo de nolca oposa;*favelades pedem liberdade pars matador (0 Globo Be ae um plaoliro-pove alo, 13/05/82) e as repeida alegaBes dos bandidos pesos de que “apen dl ‘eclaragdes de moradoresrcalhids £m g at exemple fémero por mim, dur qual estar ct 43. Ne gocs em que I stv, oF chefes de quadilha ou ot teficates aa hivargu do erfico de tsicos jf nto moravam mais o local, Apenss oF avid e vapores U permanecam, De todas at {ue eu ouvi sobre bandidor, apenas de um delesrerminavs em iguera cata de wuburbio 1, mulher que 4 verti em Butique de Ipanema efreqdent2va“abelerctos de madame” ‘Mas ese ers 0 model pata ot outros, Havin portm, 0 modela alternative 0 bandide-hebi, que Adelendia 04 moradores, 73 generoro «justo. Era 0 bandido do pedaro com o qual este ident Reava — "sila do Mané Galina, « jt exava morte. ery At clases populares urbanat¢ a ligica do “ferro” edo fumo 4, Nama serie de teportagens sobte 0 eifico de earorpecentes. O Jornal da Tarde comparava Fatarameeno des sete naires empress ullincionais de pettleo no ano pasado (16 bilhoes délaes) com ot 32 bilhoes de dolar do eifco de cocsing, agora convolados pe Mafia wt Estador Unidos UT; 17 « 18/08/1982). & lato que o sifico da maconha o8o deve ser cho rendo- to. especialmente para ox taficantes pobres que ocupam of Ulimos lugatesn2 hierarguia do e+ Fico. Exes s40 muito mais os pacttor pobrese bodes expistérios dsssgighntsca rede orgenizs ds (Zaluar 1981) 5."For the crucial face about the bandits social sguaton is its ambiguity. He isan outsider and 3 ‘ba, pot man whe sluie te accept the normal rales of poverty. and establishes his Freedom by mesos of the only resources srithin ceach af the poor: stengeh, canning end determinations ‘This dens him closely tothe poor: be i one of them. Ie sets him in opposition to the hierarchy power, wealth and influence: he ie not one of them. Nothing will make a peasanebrigand into {'gendeman’ for inthe sciesies im which Bandits flourish the nobility and gentry are nor reerited fiom the tasks. Av the same sime the bandit is inevieably, drawn into the web of wealth 30d power, He is ‘one of ur who is constantly in the process of becoming astocated with them. The ore scesful a bandits the more hei both a repterenative and a champion of the poor and 3 past ofthe 2ystem of the rch (ebsbawn. 1969) {6 "En premier les, Faceriaement le remaniemen démograpbigues de la papal ans accomplir dane telle maitre et 3 un te the qu'une panic important dele popslarion onset Ge aronoe tigate par Pinadequation de le ville vax ofectifimowsrans 4inan dans la condition ‘riminelt du mink ace cnfia de UBconemin dela fold prsguederisenc, dans une condition materiel, morale st fondamtntalement biologigae gui et fororable 2 la eriminaict et dont [a Criminal ext une posible romeguence. En marge dele ville x pour ain dire aux fronttes de la Condition eiminele eve popaation Cs dale fay ais ell eta autre par, dant Popinion omcrrnant cs fais equi ollie am fut, Teles sont enfin les isons pour tenqulles cette population adapt ous égurds dans son gente deve. dans ss attieudes po fans son existence privée ou publique, un comportement qui correspond 3 Tepinion qu'on ena cetuton veut qui oi. ce quelle aceepee elle meme quil soi, volantairement ou passvemes pur la force de cere opinion collective, parla soumision & cette universliecondamnalon" (Chevalies, 1978:430) (Grifor meus, AZ.) rn de Pari 35 3 O Rio contra o crime Neste pals, dados estatisticos sobre criminalidade so poucos € quase exclusivamente oficiais. E, quando existem, nem sempre ficam acessiveis aos pesquisadores que se dedicam a criminologia nem aos jornalistas que esclarecem a opiniao publica. Foi, portanto, duplamente Touvével a iniciativa de realizar a pesquisa O Rio contra 0 crime — por ter sido uma consulta aos habitantes da cidade e pela possibilidade de reflexio que os resultados oferecem a todososinteressados na solusio do problema da violencia urbana. No meio da inseguranga genefalizada que se observa no Rio de Janeiro, em alguns casos de panico diante de uma situagio que parece estar fugindo a0 controle, uma nota de experanga: © moradot desta intranqUila cidade ainda acredits que algo pode ser feito ¢ dis- pSe-se a participar. Suas cruzinhss ¢ as sugest6es finais livremente fei- tas revelam 0 seu empenho nisso: 228.027 pessoas perfizeram um t0- tal de 1.271.709 sugestées, ou seja, 5,6 sugestées por pessoa. Trata-se da maior pesquisa de opiniio jé feita aqui, com uma diferenga: a cola- boragio foi espontinea, dispondo-se as pessoas a procurarem uma bartaquinha e responderem ao questionsrio. Mas dados estatisticos devem ser analisados com 0 devido cuidado, Se falam por si, é preciso descobrir sua eloqiiéncia através do conhecimento adequado de quem falou nas respostas a priori como as classes perigosas, de onde saem os criminosos, ficam super-represen- tadas na populacio criminosa’, Afora o efeito estatistico que funciona como uma profecia autocumprida, estas préticas rém um efeito politi- co importante, que no pode ser subestimado na avaliagao do cresci mento da criminalidade nas classes populaces: a eepressdo indiscrimi- nada de todos os membros destas classes, o que acaba por revolté-tos. Mesmo assim, a sinica pesquisa recente baseada em dados off- ciais, fornecidos pela Secretaria de Seguranca de Belo Horizonte, re- vela surpresas para a atual peccepcia espontinea da ctisminalidade. Ao contrétio do que se pensa, existem indicagdes de que os crimes com violéncia cresceram, em ntimeros absolutos, muito menos do que os 36 © Rio contre crime sem violéncia durante a ultima década. Entre 1970 ¢ 1978, em Belo Horizonte, os crimes violentos tiveram uma taxa média de crescimen- to, em miimeros absolutes, de 37%, enquanto os nio violentos cresce- ram em 80%. Os crimes contra 0 patriménio (tais como assaltos, rou- bos, furtos ete.) cresceram 89%, enquanto os crimes contra a pessoa (homicidios, estupros, seducio etc.) cresceram a uma taxa média de 36% entre 70 ¢ 76. Mais ainda, quando considerados relativamente, 20 crescimento populacional do perfodo, verifica-se que alguns destes crimes, de fato, dectesceram pot habitante. £0 caso dos crimes contra 2 pessoa e dos crimes violentos, cujas médias anuais por nimero de habicantes da cidade continuaram a decair, uma tendéncia notdvel nas décadas de 40, 50 € 60 e bem menor na década de 70. Mas os crimes contra o patriménio e os sem violéncia reverteram a tendéncia presen- te nas décadas de $0 e 60, quando diminulram drasticamente a inci- déncia anual por habitante, ¢ passaram a tet taxas anuais crescentes em niimeros relativos 20 crescimento populacional. Entre estes, 0 furto, que havia obtido uma notivel queda na década de 60, volta a se estabi- fizar na década de 70, enquamo 0 roubo, que havia se mantido estével até 1968, sobe de 1,9 para 6,2 por cada 100 mil habicantes. A hipétese que relaciona a urbanizagio crescente Com 0 au- mento dos ctimes tipicos da cidade, isto é, o8 crimes contra 0 patri- ménio, tem que set examinada com muito cuidade, pois pode confun- dit 0 efeito de determinadas politicas piblicas em execugio com os efeitos gerais ¢ difusos do crescimenta das cidades. Em Belo Horizon- te, nas décadas de 50 ¢ 60, quando a taxa de crescimento urbano foi de 7% € de 5,9%, respectivamente, os crimes contra o patriménio, tlpicos do meio usbano, decalram espetacularmente na incidéncia por habitante, voltando a subir na década de 70, quando a taxa anual de erescimento caiu para 3,69%. As calzes para o aumento dos crimes de roubo e trifico de entorpecentes, t{picos crimes urbanos, bem como homicidio, incluldo entre os crimes contra a pessoa, aumento este ve~ fificado durante a década de 70, quando caiu a taxa de urbanizagio, dever ser procuradas, portanto, em ourtas teorias, A pesquisa O Rio contra o Crime efetuou um coste no fend- meno da criminalidade que nos obriga a focalizar um dos crimes con- tra o patrimsnio: 0 roubo, estatisticamente o crime de maior incidén- cia entre as classes populares. Colocar a questio - “J4 foi assaltado 2” ‘em psimeiro lugar no questiondrio teve este feito, 0 que revigora a 37 CONDOMNIO DO BIABO. imagem social do crime também predominante na policia, « qual vé mais negativamente esta atividade criminosa. Em decorréncia, 08 po- bres, estigmatizados como os membros das classes perigosas ¢, de fato, mais reprimidos na pritica policial, vao para o foco da luz. Mas, sem diivida, este foi o crime que, junto ao estelionato ¢ a0 homicidio, mais cresceu nos iltimos anos. E também o crime que deixa um maior nti- mero de vitimarditetas, seja pessoalmente, seja como membro de uma familia. A sua maior visibilidade social, motivo da extrema apreensao que provoca, vem do fato de que é cometido a vista de muitas pessoas em locais publicos: nas ruas, nos 6nibus, nos prédios, atingindo ainda mais pessoas em suas impresses, Os dados da pesquisa O Rio contra © Crime confirmam esta idéia: 55,8% dos entrevistados jé dinham sido assaltados ¢ 77,7% tinham alguém da familia astaltado. Se projetados na populagao da regiio metropolitana do Rio de Janeiro, excetuando 0s municipios aio incluidos na pesquisa, esses percentuais englobam um niimero incrivelmente alto de pessoas atingidas: 4.647.164 habi- tantes jé teriam sido assaltados e 6.471.344 terlam alguém da familia jd assaltado, Nuimero certamente exagerado visto que esta categoria de ‘pessoas est provavelmente superdimensionada por terem sido elas as mais motivadas a procurar as barraquinhas e darem a sua opinita. O nntimero exato de pessoas jé assaltadas talvez jamais venha a ser conhe- cido, pois sabe-se que a maioria nfo registra queixas por considerd- las indteis e complicadas. De qualquer modo, mesmo que se calcule tum percentual grande de erro, em torno de 60%, os niimeras ainda so impressionantes. Igualmente nordveis sio os percentuais de desconfianga em relagio As instituighes eacarregadas de dar seguranca 4 populacio des- ta cidade, Em todas zonas, do Sul & Baixada Fluminense, mais de 60% nao confiam na justiga e um pouco mais nao confia na policia. (Os mais jovens confiam menos (20% dos que estdo entre 20 € 29 anos), ‘96 mais velhos confiam mais (35% dos que tém 50 anos out mais). $0 0 que confiam na policia que sugerem medidas de policiamento ot tensivo, Sio os que no confiam nem na policia nem na justiga que mais pedem medidas repressivas tais como 0 aumento das penas (30% das que no confiam para 23% dos que confiam) ¢ a instituigao da pena de morte (43% dos que nao confiam para 32% dos que confiem 1a justica). Este é 0 perfil de uma populagio que vive no medo ¢ na inseguranga, 0 que confirma as impress6es colhidas em conversas nas 38 O Rio conics o crime ruas ¢ na leitura dos jornais didrios. Apesar disto, a colaboragio ¢5- pontdnea com esta pesquisa nos permite ser otimistas: hi luzes a Por isso mesmo, é preciso pensar sobre a pouca participagéo dos moradores de bairros pobres ¢ de favelas na pesquisa. Enquanto 8,39% dos moradores de Copacabana responderam ao questionario, 1,2% dos moradores da Rocinha, 2% da Mangueira, 4,4% de Jacare- zinho € 0,9% da Cidade de Deus o fizeram. Este desinteresse pode ser interpretado como ourra manifestaio do desalento e da desesperanga que tomam conta das classes populares, principais frequentadoras dos nossos tribunais de justiga e das nossas prisées ¢ principais alvos das medidas repressivas que tém sido empregadas, sem resultado, ao lon- go dos dhimos quinze anos. Também vitimas de assaltos, os trabalha- dores pobres esto ainda mais sozinhos para enfrent4-los. Mas 0 desinteresse em dirigir-se aos que podem tomar as medidas publicas na solusio do problema nfo significa passividade em seu local de moradia. Convivi com essa desesperanga nas nossas instituigées ¢, principalmente, no poder piblico quando pesquisava os moradores de um bairro pobre e conheci in loco a Juta que travam diariamente em suas organizagées voluntérias para afastar os jovens da carreira criminosa. Vi-0s fundanda times de futebol, blocos de carna- val, grupos de capocira ¢ de musica, que tinham por objetivo sociali- zar 0s jovens na sua cultura, dando-lhes senso de valor préprio ¢ con- fianca em si. Pequenas pedras que quebram a maré crescente da insa- tisfagio, mas que eles sabem serem insuficientes diante da evidente pauperizagio dos trabalhadores manuais ¢ de seus familiares. Na for- mula tradicional do pao ¢ circo para 0s pobres, ainda ficaria faltando © pio. Nio se trata de simplificar a questio afiemando que a fome © criminoso ou mesmo que exista uma correlagio entre pobreza walidade. No entanto, hé que entender o aumento da taxa de ‘times praticados principalmente por pessoas safdas das camadas mais pobres. E nao ha como ignorar as mudangas acorridas na politica eco- némica do pais a partir de 1964 ¢ que tiveram graves repercussdes no padrao de vida das classes populares. A queda constante do saldrio real, provocada pele aumento do custo de vida, que em certos perfo- dos nao foi acompanhado pelo aumento salarial, obrigou os trabalha- dores e seus familiares a aumentarem 0 esforco de trabalho para ga- rantir 0 mesmo poder de compra. E isto que explica, segundo ouvi 39 CONDOMINIO DO DIABO dos jovens que entrevistei, a avaliacio negativa do trabalho, associado por eles a escravido. Ao mesmo tempo, 0 padrio de consumo das familias urbanas modificou-se grandemente, pasando a incluir obje- tos cada vez mais sofisticados ¢ modernos. Isto, além de expandir as necessidades de consumo de codos, criou uma situacio paradoxal: en- tre nds, 0s pobres ficam mais pobres pelo fato de desejarem mais obje- tos que néo podem comprar. Enquanto o pals se modernizou, uma parce cada vez maior de sua populasio urbana foi colocada diante des- ta prosperidade material, vista em exibi¢do permanente nas lojas, nas casas de seus patrées ricos e trazida para dentro de suas préprias casas pela televisio, mas para ela inatingtvel, dado o poder de compra dimi nuldo de seus saldrios. Uma situagio de crise, que reduz as oportun dades de trabalho remunerado para os membros da familia, j& agora colaboradores indispensdveis na formacio da renda familiar, agrava ainda mais esta situagd0. Os dados da pesquisa O Rio contra o Crime confirmam estas idéias. Entre as medidas a médio e a longo prazo, 0 aumento do ntimero de empregos foi pedido por 47% dos emirevista- dos na Baixada ¢ 40,5% na Zona Norte, onde estio os bairros popula- res, percentagens que caem para 32% na Zona Sul e 31% na Tijuca, bairros tipicamente de classe média ¢ alta, Sao também os mais jovens que pedem mais empregos (42% dos incluidos entre 16 e 29 anos). Entre as medidas a curto praz0, 0 seguro desemprego foi mencionado por 28% dos entrevistadas na Zona Norte ¢ Baixada para apenas 18% nna Tijuca. Mesmo assim esté patente nas respostas da populacio que 0 problema é muito complexo para se reduzi-to a farores econdmicos. A preocupacio com o menor abandonado, expressa pela maioria (59,6%), embora esconda 0 preconceito de incluir os menores nas classes peri- gosas, 0 que € negado pelos percentuais de sua participagio real nos deliros, aponta a importincia que deve ser dada 4 educacio. Neste item, Zona Sul e Zona Norte, Baixada e Tijuca estio de pleno acordo. Entre as sugest6es livremence feitas 20 final do question: ficou em primeiro lugar 0 combate 4 corrupsao. Isto tem grande im- portincia, pois nao foi uma resposta sugerida pelo questionétio ¢ nos a4 0 que pensar. £ que 0 crime do colarinho branco, especialmente @ que ndo virou'categoria estattstica mas que atinge toda a nagio, quan- do sio os cofres puiblicos os atingidos, nfo éapenas um problema numé- rico. Seus efcitos so muito mais graves pois contaminam todo 0 corpo 40 © Rio contra o crime social, pervertendo-o. © conhecimento da impunidade destes crimes praticados pelas classes privilegiadas ou, mais grave ainda, pelos diri- gentes da nacio, gerou a desconflanga nao s6 da justiga, mas da propria dordem social. Os dirigentes da naga0 sio também seus educadores, ¢ suas atitudes, a realizagio da justiga. De uma questio estatistica cai-se, portanto, na ilegitimidade do pacto social, cujo tecido fragil ¢ conta- minado decompée-se rapidamente. Um pacto social € construido em nivel microscépico nas malhas do tecido societario, ponto a pono, como a rendeia rece a senda. Um abalo de tal monta provoca efeitos As vezes itreversiveis por uma ou mais geragoes. A preocupasio com 0 menor também é a consciéncia de que 0 futuro esté em suas mios. A. confiansa na autoridade, que ¢ alguém em quem sobretudo se actedita, sem que seja necessirio 0 apelo a forca bruta, precisa set restabelecida urgencemente neste pais. £ isso que forma a conscitneia do cidadia © Ihe ganha o consentimento para o exercicio do poder. Quando este néo é legitimado socialmente e, pior, quando na pritica aparece corsompi- do, as fronteiras entre a lei e 0 crime se esvanecem na percepgio dos cidadios. A lei esquecida nos livros dos juristas, fica cada vez mais afas~ tada das atividades cotidianas do cidadio. E para impé-la é preciso cada ‘ver mais fazer uso da vialéncia, 0 que vem provocando baixas cada vez mais numerosas na corporacao policial. Reverter esta situasio significa retomiar 0 trabalho paciente da rendeira e refazer rapidamente o tecido social esgargado, compidoedevastado peloarbicrio ea injustiga. Eisto sé lum novo pacto social, mais justo, possibilicard. Enquanto o pacto nao vem, € preciso de qualquer modo cuidar da seguranga dos que tentam, de alguma mancira, continuar a construir este pals. Publicado em Revista Presenga, 7.6, outubro de 1985 ricto, Antonio Lis. “Crimes e criminororem Bala Haraane” in Chins, Violins « Podee 14. Panle Sign Pirie). Sto Pato, Brains, 1983. a 4 O Diabo em Belindia De fato este um pals privilegiado. Nunca tivemos uma guerra civil que dividisse a nacio do Oiapoque a0 Chui ou colocasse ¢ Chut contra o Oiapoque, nenhuma guerra religiosa de grandes proporsées que deixasse Sdios indeléveis no seio da populacio civil, nenhuma re- volugio que terminasse em longos processos liberticidas e sanguindri- 05 (comparados com os episédios chileno e argentino, o que acorreu aqui em 68 foi de pouca monta), nem tampouco registros de febres de cagas as bruxas, Nem revolugées gloriosas como a francesa ou a ameri- cana, mas também nem guerra entre catélicos ¢ protestantes, ctistios ¢ judeus, mulcumanos e cristios ou judeus etc. Foi no pals americana primeiro modernizado que se deu 0 episédio mais conhecido de caga as brusas no continente americano: as bruxas de Salem, em Boston, USA. Os episédios de explosio de Sdio social, racial ¢ religioso ou fo- ram passageiros ou localizados, e nio deixaram grandes feridas que sangrassem por codo o pals. As manifestagées de descontentamento ou revolt da populagio pobre e oprimida e dos conflicos saciais mais graves deram-se sob a égide de Deus, dos santos e dos profetas: 0s movi- mentos messifnicos, fonte inesgotdvel de nosso simbolismo politico, Comparado com 0 catolicismo polonés, caracterizado por uma pro- funda preocupagao com a presenga do diabo ¢ por uma reflexto literd- ria, cinematogréfica, filos6fica sobre este personagem do mundo espir tual cfittio, o catolicismo brasileio parece exibir uma curiosa subesti- magio de sua importancia espirimaal. Dominante pot séculas ¢ séculos no simbolismo religioso tanto de catélicos quanto de protestantes eu- ropeus, figura central na reflexio sobre o mal ¢ 0 softimento, o diabo aqui aunca exibiu grandes poderesde lideraros homens, que tanto assus- tavam nossos ancestrais europeus. Parece que herdamos 0 Deus — a teodicéia mais do que o teocratismo — mas nfo o Diabo, em figura de gente ou de monstro, Mais uma prova da indole pactfica, da cordialidade ou do comunitarismo do povo brasileiro? Esta € uma questio que ainda pro- voca celeumas ¢ que nio creio estar esgotada em seus aspectos religio- sos, No entanto, conus esta idéia, os fatos hoje esta cada vex mais a 0 Diab em Belindia abundantes. Sera que o diabo vai finalmente marcar sua presena entre és? Se nunca liderou movimentos sociais contra a ordem consti- tafda nem mobilizou a vigilancia permanente, violenta ¢ cruel contra seus supostos agentes, nem por isso o diabo esteve totalmente ausente. Das frestas ¢ dos cantos do simbolismo dominance, sua figura (sincre~ tizada com outros do imenso arsenal simbélico das religides popula- 18) foi sugerida pelo comportamento anti-social dos avarentos, das ve- thas solitérias, das mulheres enfeitigadas ou enfeitigadoras, mas sobre- tudo dos maus patrdes, tudo isso contado nas Jendas e histérias que fa- lam da atividade religiosa por este Brasil afora. Os castigos a ais pes- soas vinham do préprio Deus, ou pelo menos eram assim interpreta dos; as velhas morriam, os maus patroes adoeciam, as mulheres enfei- tigadas no casavam, os avarentos continuavam solitétios. Era esta a sabedoria popular, possivel pela pedtica celigiasa das festas e das ativida- des coletivas que as produzia, atividades que aproximavam as classes sociais. Nem mesmo as celigides aio-européias, com suas figuras de fundo e seus exus — espiritos do bem e do mal — ofereceram 0 esto- que simbélico necessdrio para a pritica do mal ou para a identificagao de pessoas que, tal como as bruxas na Idade Média e no Renascimento, encarnariam todo 0 mal, Nao temos scita ou igreja on movimento religioso semelhante a0 vodu haitiano. Na cosmologia da umbanda, por exemplo, qualquer um pode fazer um “trabalho” contra alguém, que deverd tomar as medidas protetivas com os mesmos espiritos, da falange dos exus. Estes tanto protegem como se vingam ou fazem mal por pedido de alguém. Ninguém é por isso atualmente julgado, su- pliciado ou condenado & prisio. Os exus néo habitam o inferno nem sio espiritos das trevas, so espiritos da rua que, por morarem na ter- ra, servem de intermediérios ou mensageiros dos orixés, que ficam no astral. Nao discriminam ninguém: até mesmo prostitutas, bandidos e ladrdes podem obter a sua protegio, mediante pagamento. Os exus so sobretudo interesseiros. Na umbanda nio hé lugar para o maniquefsmo moralista que caracterizou as religides cristis, nem para o terror espi- ritual dos sacerdotes do vedu. De repente, sinais de um ddio violento ¢ vingativo comesam a aparecer cada vez. com maior intensidade ¢ surpreendentemente, para os adeptos das teorias da modernizasio, nao nos locais mais atrasados, “a CONDOMINIO DO DIABO mais mfsticos, mais tradicionais do pals. Nfo, é nos grandes centros urbanos do Brasil modecno que vamos nos deparar finalmente com uma guerra clandestina, mas nem por isso menos maniqueista, san- grenta ¢ cruel, que se vale dos mecanismos simbélicos jé conhecidos da separacio absoluta entre 0 bem € 0 mal, com suas conseqiiéncias nefastas no plano social: os processos acusatérios, as punigées execu- tadas com violéncia e sem cuidado com a jurisprudéncia, sobre aque- les identificados com a fonte do mal. A um édio social sem par na histéria das relagdes encte as classes no Brasil, acresce-se lenta mas inexoravelmente 0 efeito desta guetta ilegal que se trava hoje nos ba +05 pobres das grandes cidades brasileiras: entre a policia e os “bani dos", identificados com os pobres Desta ver hé indicagées de que seja um movimento que se enrafza na prépria sociedade, assustada (em panico, quase) diante das noticias diariamente estampadas nos jornais sobre as atividades crim nosas dos bandidos saidos das favelas e dos conjuntos da CEHAB. Nao se trata da perseguicfo oficial feita pela policia contra os adeptos das religides afto-brasileiras vistas como perigosas aré os anos 30, nem a perseguicio aos “comunistas”, como em diversas fases se rotulou quem se preocupava com 2 questio social no pats. Desta vez, apesar de ter o seu agente principal nas organizacées policiais, a perseguicio violenta merece 0 aplauso ¢ o incentivo de parte da populagio. O item violéncia hé muito j4 foi escolhido como o mais importante nas pes- quisas de opinido. Estas mesmas pesquisas revelam que cerca de 70% da populacio ¢ favoravel 4 pena de morte, isto é a oficializagso de uma atividade ilegal mas largamente em uso no pais: a de matar ban- didos, especialmente os pobres € pretos. O medo nosso de cada dia, concentrado na inseguranga das ruas, elegeu os bandidos pobres como a causa dos nossos males. Nesta guerra ilegal mas oficial, nao sabemos quantos jf pere- ceram. Os locais de desova sio muitos, as cacadas aos bandidos que moram entre 0s pobres sio regulares e deixam os corpos ctivados de bala em alguns ¢ 0 tertor e o ddio nos outros, assistentes mudos da agao policial. Os mortos dividem e confundem as pobres As frases ditas jd quase indiferentemente “eram bandidos”, ou “covardia da polf- cia", ou a tristeza estampada no rosto que fala, além dos julgamentos morais da tragédia de se viver num local quase diariamente visitado por policiais em operagées que thes deixam cadaveres, sio os sinais mais “ 0 Diabo om Belindia comuns desta confusio. “Foi a comunidade que pediu", “foram 08 mo- radores que reclamaram”, “foi a associagao”, sio as justificativas dos oficiais quando pressionados sobre estas agdes. Mas o que perdura nes- ta populagio, mesmo entse os que denunciam ou criticam os bandidos 0 horror de morar num local onde hé mortos a chorar quase toda semana. Entre os jovens, este horror conjugado revolta, por se senti- rem eles proprios. mesmo s¢ trabalhadores, alvos da suspeita policial. O clima entre os jovens pobres e pretos hoje € indescritivel, como se pouco faltasse para uma condenacéo ou um suplicio kafkiano, vindo de um poder visivel (praticamente o tinico representante do poder es- tatal entre eles: » pol(cia), mas de uma culpa que Ihes escapa 2 com- preensio. Nao hi religiéo que Ihes explique porque sto alvo de tama- -onfianca e violéncia. A experiencia de integrar uma raga cuja idade € “comentada” em diversas linguagens e contextos adqui- re hoje um sinal sinistro. Os bandidos assumidos, que carregam arma na cintura ¢ vi- vem do rendoso comércio de drogas (hd muitos consumidores ricos), cuidam-se. Formam quadrilhas, armam-se devotam-se aos exus que 0s protegem. Seus patuds so carregados ao pescogo, mas nio sio sem- pre identificados com 0 diabo. Mané Galinha, famoso bandido de ‘Cidade de Deus, eta devoto de Maria Padilha, mulher de Exu. Mas a devosao Ihe impunha respeito: ndo usar seu patud para fazer sexo, por exemplo, Por isso, dizem seus vizinhos, as balas dos inimigos nun- cao pegavam. Quando deixou de seguir 0 preceito, uma sé bala acer- tou-lhe em cheio 0 coragao. Mas foi seu pai, operétio crente, quem reinterpretou o acontecido abrindo um lugar ao diabo: “o diabo (dizia ele aos amigos ¢ irmios de Mané apés a sua morte) nem mais conse- gue proteger o bandido, que tem 2 morte certa". O diabo nao aparece af como o lider do homem nem seu possuidor, mas seu protetor. Sem ser generalizada entre bandidos, os efeitos dessa crenga atinge também os préprios policiais, segundo pode-se inferir na noticia publicada em 1974 nos jornais cariocas: um investigador de poltcia, apés cer morto um bandido que c#rtegava um patud com ora- 40 20 diabo com um tiro que atravessou o patud, sentiu-se mal ¢ morreu. Acreditava que, por ter atingido 0 patué, teria que pagar pot isso. O diabo, protetor do bandido iria vingé-lo. (O Dia, 18/09/74); Jornal do Brasil, 18109174). O mal, nesta \égica maniquefsta, organiza as suas farcas para vencer esta guerra qué também se trava no plano “6 CONDOMINIO DO DIABO espiritual, Pode ser dai que a ago policial s¢ caracterize por uma desea- bida violencia que busca dizimar os caracterizados como bandidos? A visio, externada em piiblico, que os policiais tém dos ban- didos nao inclui este aspecto espiritual. Secularizadas que sejam, no entanto, as associagbes com 0 mal absoluto so claras. Os bandidos para eles sio seres infra-humanos ou desumanos: “elementos”, “mar- ginais’, “facinoras”, “estupradores”, so esteredtipos langados descui- dadamente, sem grandes preocupagées com a investigacio e a justica, sobre os que se aproximam do esterestipo do bandide, verdadeiro re- presentante do mal e nunca uma pessoa. Nem muito menos um cida- dio com direitos: nada revolta tanto os policiais como a extensio dos direitos humanos 4 “marginalidade urbana’. Para muitos deles, s6 a morte pode nos livrar de tal presenga entre nés, que deixa também mortos seus pata prantear e vingar. Nesta visio, que creio ser ainda a predominante no meio policial, apesat dos esforos em mudécla, as fa- velas sio 0 lugar onde cresce, no meio do lodo, nio o samba, como disse o poeta, mas © prdptio mal personificado na figura moderna do bandido armado, organizado e parceiro de um rendoso comércio. Cheguei até mesmo a ouvir que os pobres favelados nao tém familia, moral ou religido. Para estes, a associagao entre pobreza e criminalidade nio € uma hipétese passivel de discussio; ¢ uma verdade, profecia autocumprida que eles préprios se incumbem de tornar verdadeira pela sua agio. Nesta confusio criada pelos preconceitos dos agentes polici- ais, trabalhadores pobres bandidos passam a ser o outro lado desta guerra sem tréguas que pretende livrar-nos do mal sem amém. Minha visio do futuro, nesta espécie de ficgao cientifica do horror do presente, seria mais otimista se tal perspectiva ficasse cir- cunscrita & policia. Mas nao esté. Ao ler 2.000 questiondrios da pes- quisa Rio contra o Crime tive a impressio de percorter alfarribios sobre os suplicios medievais contados numa linguagem moderna da punigao. Entre as sugestées oferecidas pela populacéo da Zona Sul, Tijuca e Grajat onde se concentram as classes de rendas mais altas, figuravam as de transformar 0 Maracani e a Praga da Apoteose em locais de execugio publica de bandidos. Aos ladrées (criangas e jo- vens), senhoras distintas ¢ educadas propunham cattar 0s dedos, as mos etc... Aos estupradores, a castracio era o castigo justo. Aos bandi- dos em geral, especialmente os que assaltam com violéncia suas vii mas, o suplicio lento, televisionado para todo o Brasil, num uso pensado da aldeia global, ou para platéias menores nos estddios ¢ no 46 0 Disbo em Belindis nosso monumento a0 carnaval: um final apoteético também nao ima- ginado pelos arquitetas da Praga da Apoteose. Um uso também im- pensado por Foucault (1975) & idéia de catnavalizagao do suplicio, jd que é a prépria plebe que exige, sem ter um monarea, a exibigao pu- blica do rigor da “lei” no corpo dos seus agressores. A julgar pelas reagbes dos que véem quase cotidianamente os arremedos deste espe- taculo nos seus locais de moradia, esta exibigao oficial certamente, como previa Foucault, daria margem a grandes demonstrag6es de re- volta. No entanto, 0 furor punitivo a idéia de suplicio, tao eriativa- mente aplicados pelas classes abastadas desta cidade, no passam por esta questo. Na verdade si0 apenas a expressio das hostilidades acir- radas entre as classes sociais, criadas por este imenso fosso entre os pobres ¢ ricos que a Belindia nos legou. Felizmente para todos, esta nao € a postura consensual, nem mesmo a mais comum. Na verdade, - veiculadas na pesquisa revelam uma acirrada polarizagao a do tema, defendidas com retéricas igualmente inflamadas ¢ contundentes (enorme o niimero de ofensas divididas entre Srgios publicos, empresdrios criminosos ¢ bandidos pobres). Que ilagées podem ser titadas da comparagao com as bruxas, esta categoria também alvo de tao profundos édios e medos que lhes impunham vantos suplicios por vérios séculos da histéria ocidental crista? O que tém em comum as bruxas ¢ os bandidos, além de serem objeto de tanto ddio? Bandidos, como se sabe, em vex de andarem pelos ares montados em vassouras para ir a um misterioso encontro num local nunca visto, andam em plena via publica armados com mortiferas armas de fogo. © mal que provocam no alheio, por serem “amigos do alheio", tém uma concretude bem mais evidente, ou me- Ihor uma relagao entte causa e efeito bem mais clara para a sua vitima. No entanto, 0 aspecto espiritual nao est ausente desta moderna ver- sio do bode expiatério. As associag6es de sua figura com 0 diabo per- passam as noticias dos jornais, as interpretagdes de senso comum de seus vizinhos e parentes sobre as suas atividades, o “folclore” acerca de suas hist6rias ¢ de suas convers6es dramaticas. Em Cidade de Deus chama-se a ligagao, mesmo que curta e proviséria, com um bandido de “condomtnio do diabo”. As poucas histérias de regeneragio que ouvi contar passavam por sess6es de cura em igrejas pentecostais ou uma conversdo radical ¢ dramética igreja dos crentes, 0 que implicava no abandono das coisas do diabo (as festas, a bebida, o samba, a umbanda, ‘0s amigos assaltantes, a arma de fogo, etc.). 7 CONDOMINIO DO DIABO Vivendo, pelo rigor da separagio entre 0 bem ¢ 0 mat, entsea normal e @ desviante, 0 avesso da sociedade, 0 bandido de fato passa a cumprir a profecia no seu comportamento cada vex mais anti-social, muito mais concreto que o das bruxas mas nem por isso menos malé- fico. As acusagées, estas feitas sem nenhum rigor pela lei, acabam por ter também um sinistro papel espiritual de ajudar a compor a imagem que servird de espelho ao bandide. Do mesmo modo que as bruxas, identificadas com as figuras que se dedicavam a Satands nas crengas to ricas em simbolismo ¢ imaginagio entéo enraizadas na populasio, acabavam por confessar (muitas também pela tortura) crimes imagi- nérios, os bandidos, auto-identificados com este personagem criado pelos preconceitos ¢ pelo medo da Belindia dividida entre pobres ¢ sicas, acabam por realizar as ages que se espera que realizem. Assim, confirma-se a crenga e cumpre-se a profecia, A deformacio militar do Estado brasileiro, que deixou como praticamente o nico representante nos bairros pobres 0 seu brago re- Pressivo e violento, proporcionou as condigbes materiais ¢ ideoldgicas para a eclosio desta guerra que mistura a tortura e a violéncia com a difusio de crengas ¢ imagens maniquetstas do bem e do mal absoluti- zados. Como no perfods histérico da caga as bruxas, trata-se de en- contrar a valvula de escape para confliros sociais graves. Os pabres precisam ser transfigurados em bandidos ou ladrées para melhor se combaté-los neste mundo em que os ricos nfo mais conseguem a teodictia ajudando e protegendo os pobres. Precisa-se de bandidos em Belindia. E do diabo para protegé-los. Publicado em Religido ¢ Sociedade, maio de 1985. 4“ 5 Democracia também serve para os pobres? © medo de parecer conformista, conservador ou compromis- sado com a sistema tem levado muita gente a defender posigdes no minimo estranhas no que toca a violéncia urbana nos grandes centros deste pais. Para quem resolveu chegar perto das “classes perigosas”, de onde saem os “violentos bandidos” que povoam nossas prisdes, os equ{- ‘ocos chegam As ras do absurd. € como se inteleetueis de esquerda, enfadados com a rotina e o “sistema” ¢ atraidos pela tentagao toman- tica do poder pessoal, terminassem, apés percorrerem tortuosas vere- das, a se encontrar com a direita no habito de advogar para os pobres © que ¢ inaceitavel para nds, 05 ricos integrados. © encanto radical de Escadinha parece ter deixado muita gente cega para o real sigi da proliferacio de quadrilhas organizadas de traficantes em como o Rio de Janeiro, Na visto da direita, pobres e bandidos se confundem, aliados natucais que sio por participarem de uma “cultura marginal” comum. Do outro lado da cerca, mas i2o afastades dos trabalhadores pobres quanto os primeiros, ficam certos intelectuais de esquerda para quem © mesmo tecido social podre, entidade genérica que tudo explica € que ameaca jogat fora o bebé com a 4gua do banho, produz trabalha- dores revoltados e fabrica Escadinhas ¢ Gordos. Se a podridae da teci- do os produziu, a unio de uns e outros se dé ¢ se justifica pela prote- Gio romantica ¢ socialmente justa que os tiltimos oferecem aos pri- Imeiros. Uma unio quase santa porque maida pelo resto da sociedar Assim sendo, ficamos nés, do asfalto das classes présperas, com a democracia, o direito de lutar por mais atensio (e mais verbas) do inesgotivel Estado brasileiro, enquanto eles, os pobres do morro ¢ das CEHABs, ficam fadados a eterna falta de direitos civis, polfticos € sociais. Como prémio de consolasio, fica-lhes, no entanto, a protege a presenga in loco de cinematograficos, charmosos e armados bandi- dos em eternos tiroteios entre seus muros ¢ janelas que demarcam © espago onde ainda podiam ter alguma liberdade no controle de suas 0

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