Você está na página 1de 104

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL


FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS
MESTRADO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS

O DISPOSITIVO POLICIAL: CRÍTICA À VIOLÊNCIA-CRÍTICA DO PODER

LUCAS E SILVA BATISTA PILAU

Porto Alegre
2016

 

LUCAS E SILVA BATISTA PILAU

O DISPOSITIVO POLICIAL: CRÍTICA À VIOLÊNCIA-CRÍTICA DO PODER

Dissertação apresentada junto ao Programa de


Pós-Graduação em Ciências Criminais da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul – PUCRS, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Ciências
Criminais.

Orientador: José Carlos Moreira da Silva Filho


Coorientador: Augusto Jobim do Amaral

Porto Alegre
2016

 

LUCAS E SILVA BATISTA PILAU

O DISPOSITIVO POLICIAL: CRÍTICA À VIOLÊNCIA-CRÍTICA DO PODER

Dissertação apresentada junto ao Programa de


Pós-Graduação em Ciências Criminais da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul – PUCRS, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Ciências
Criminais.

Aprovada em_________________, de_________________, de________.

BANCA EXAMINADORA:

________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho (Presidente – Orientador)
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

________________________________________
Prof. Dr. Augusto Jobim do Amaral
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

________________________________________
Prof. Dr. Gustavo Oliveira de Lima Pereira
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

________________________________________
Prof. Dr. Sandro Chignola
Università degli Studi di Padova (ITA)

 

RESUMO

O presente trabalho vincula-se à linha de pesquisa Violência, Crime e Segurança Pública,


do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. A pesquisa tem como objetivo interrogar a existência de
um dispositivo policial, o qual operacionaliza-se através da subjetivação e
dessubjetivação dos indivíduos e se coloca para muito além da instituição policial
moderna, afetando não só os operadores do sistema penal em geral, mas também as
próprias relações na sociedade. Para confirmar tal hipótese, a investigação se foca
inicialmente no sistema penal brasileiro e sua dupla face contemporânea, tentando traçar
não só o encarceramento em massa latente desde o final do século XX mas também os
crimes praticados pelo Estado contra a população negra e pobre. Além disso, interroga-
se o momento de emergência da polícia moderna, vinculando-a a características
elementares de sua atuação, assim como traça-se o próprio nascimento e desenvolvimento
da polícia brasileira, sem deixar de localizá-la, em geral, sob um paradigma da exceção
agambeniano, ou seja, deslocando-se uma visão contratualista da sua atuação e
demonstrando estar essa vinculada tanto à uma violência fundadora quanto conservadora,
espectral por excelência. Assim, a partir da polícia, instituição que concentra o poder de
realizar a segurança nas democracias modernas, é que se buscar pensar o que representa
um dispositivo policial nas relações de poder e quais as imbricações possíveis de seus
atravessamentos.

Palavras-chave: Criminologia. Dispositivo. Polícia. Estado de exceção.



 
ABSTRACT

This master’s dissertation has as principal goal to question the existance of a police
dispositive, that operationalizes throught the subjectivation and the desubjectivation of
individuals and places itself far beyond the modern police institution, affecting not only
the operators, in general, of the criminal system, but also the social relations. To confirm
this hypothesis, the search initially focus on the Brazilian criminal system and it
contemporary double frame, trying to trace, not only the pulsing mass encarceration since
the end of the XX century, but also the state crimes against the black and poor population.
Furthermore, other goal is to question about the emergency of the modern police, liking
it with elementary features of its activities, as well to trace the birth and development of
the Brazilian police, not forgetting to localize it on the exception paradigm of Giorgio
Agamben, in other words, displacins from a contractualist vision of its activities and
showing that Brazilian police are linked both to a fouding and to a conservative violence,
spectral quintessentially. Thus, from the police, institution that concetrates the security
power in modern democracies, is that seeks to think what represents a police dispositive
in power relations and which are the possible interminglings of its crossings.

Key-words: Criminology. Dispositive. Police. State of emergency.



 
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................10
2 CULTURA PUNITIVA E CRIMES DE ESTADO: A DUPLA FACE DO
SISTEMA PENAL BRASILEIRO ..............................................................................13
2.1 Política criminal da barbárie: o encarceramento em massa no Brasil e as formas
alternativas de controle penal ..................................................................................13
2.2 Crimes praticados pelo Estado e o extermínio sistemático de pobres no
Brasil.. ......................................................................................................................32
3 DA EMERGÊNCIA DA POLÍCIA MODERNA À POLÍCIA
BRASILEIRA.. ..............................................................................................................40
3.1 Polícia entre soberania e arte de governar: controle, higienismo e
autoritarismo .............................................................................................................40
3.2 A polícia no Brasil: do império à democracia recente .......................................53
4 O DISPOSITIVO POLICIAL: QUEM ASSINA A VIOLÊNCIA?...................73
4.1 A polícia no paradigma da guerra civil: soberania e degenerescência
democrática...............................................................................................................74
4.2 Interfaces do dispositivo policial: a dupla captação da vida.. ............................84
5 CONCLUSÃO.........................................................................................................96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................99
10 
 

1. INTRODUÇÃO

A presente dissertação tem como objetivo fundamental demonstrar a existência de


um dispositivo policial que, composto por práticas, discursos, saberes, atravessamentos
históricos, emergência de outros dispositivos, e de uma forma heterogênea, age sobre os
indivíduos captando – sob a forma da exceção permanente – suas vidas como ponto
fundamental de governabilidade, subjetivando-os, como no caso da centralização do
poder em torno de uma instituição policial, ao mesmo tempo que realizando uma
dessubjetivação da vidas de outros, expondo-os a qualquer forma de poder, mas
principalmente àquele capacitado como soberano dentro de determinada sociedade.

Nesse sentido, tenta-se demonstrar um duplo movimento desse dispositivo policial:


se por um lado é ele quem possibilita a concentração de diversos elementos bastante
dispersos numa instituição historicamente vinculada ao sistema punitivo estatal, talvez
até como meio imprescindível para sua existência, ou seja, a instituição moderna da
polícia, mas não só ela, por outro, e através dos indivíduos subjetivados por sua lógica, a
dessubjetivação de grupos inteiros que terminaram por serem vistos como descartáveis,
tendo suas vidas rompidas pela segregação, pela disciplina e, no limite, pelo extermínio.

Assim, a hipótese central pode ser colocada nos seguintes termos: para além da
instituição policial, existe um dispositivo policial que, a partir do duplo movimento de
subjetivação e dessubjetivação, contribui para articular a operacionalidade das formas de
vigilância, de controle, de encarceramento e, como experiência-limite, de extermínio
dentro da sociedade, advindas também das relações entre os próprios indivíduos, os quais
introjetam e reproduzem lógicas policialescas entre si, assim como, partindo da premissa
da exceção permanente como forma preponderante da governabilidade moderna, tal
dispositivo contribui para produção de vidas nuas, portadoras de uma fragilidade frente
ao poder e ao direito ainda pensados em termos de soberania.

Para tanto, o caminho a ser percorrido está vinculado diretamente à


operacionalidade da polícia moderna e dos saberes que a pautam. No primeiro capítulo,
busca-se traçar um panorama do contexto brasileiro em que, desde pelo menos os últimos
dez anos, o número de pessoas presas cresceu vertiginosamente, fazendo o país alcançar,
no ranking mundial, o quarto lugar com mais indivíduos segregados. Aliado a esse quadro
11 
 

de encarceramento em massa, busca-se compreender também as imbricações de um


dispositivo policial no âmbito dos crimes praticados pelo Estado, principalmente porque
a polícia brasileira figura como uma das mais letais do mundo. Por isso, esse trabalho
vem pensado desde uma perspectiva que torna indissociável o sistema penal que segrega
daquele que extermina determinados grupos, partindo de uma matriz criminológica crítica
para tanto.

Num segundo momento, parte-se para uma análise histórica da emergência da


instituição policial, tratando de pontuar seus traços fundamentais em torno do controle,
do higienismo e do autoritarismo, funções que se sobrepõem em justaposição a partir do
século XVIII, quando do surgimento de uma economia política que toma assento ao lado
de uma nova governabilidade pautada na vida dos indivíduos. Além disso, retoma-se a
atuação da polícia desde a época do Império no Brasil até a democracia recente, tratando
de pontuar as características principais em torno de legados institucionais deixados por
regimes pautados pela relação bélica com os indivíduos, mormente na Era Vargas (1930-
1945), época em que ocorreu a unificação das polícias estaduais, bem como na ditadura
civil-militar (1964-1985) onde a militarização se deu de torna mais profunda e que, em
termos de transição, mantem-se arraigada tanto no ordenamento quanto na cultura
policial.

No terceiro e último capítulo, busca-se pensar a polícia para além de uma noção
contratualista, vinculando-a à um outro paradigma político: a guerra civil. Antes tudo, no
entanto, desloca-se a instituição moderna da polícia de uma possível função
administrativa – onde cumprir ordens e as leis seria sua principal atribuição – para sua
insidiosa relação para com as violências que fundam e conservam, fazendo emergir sua
característica de espectro que lhe garante estar e não estar, ser e não ser, ver e não ser
visto ao mesmo tempo – nesse caso, fantasmagoria por excelência. Movendo-se no campo
da exceção, a polícia sob o paradigma da guerra civil localiza-se num ponto central em
que nas extremidades, resultados de sua operacionalidade, encontram-se a politização e a
despolitização (polis e oikos) dos indivíduos, pêndulo que faz da vida de alguns
politicamente qualificadas enquanto de outros não.

Por fim, esclarece-se que a utilização da noção de dispositivo policial aparece por
dois motivos: primeiro, pela insuficiência que o termo polícia traz para descrever as ações
que emanam de determinada racionalidade governamental repressiva, onde em jogo não
está somente a necessidade de cumprimento da lei e de funções meramente
12 
 

administrativas; segundo, decorrente do primeiro, pela desconfiança de que há muito mais


na polícia do que somente agentes cumprindo ordens para fins de proteção do regime
democrático, tendo a própria história demonstrado a necessidade de se estar alerta com
tal instituição – vez que, desde a Shutzstaffel (SS) nazista até a Stasi (Ministerium für
Staatsicherheit) soviética, passando pela Polícia Militar do Brasil, nota-se estarem todas
no epicentro das operações que conduzem à barbárie e, quando não, da perpetração de
massacres sobre determinados grupos. Ou seja, toma-se a ideia de dispositivo policial –
em termos agambenianos – como expressão de poder mais amplo, que age sobre os
indivíduos e atravessa de diversas formas as subjetividades de determinada sociedade.
13 
 

2. CULTURA PUNITIVA E CRIMES DE ESTADO: A DUPLA FACE DO


SISTEMA PENAL BRASILEIRO

2.1. Política criminal da barbárie: o encarceramento em massa no Brasil e as formas


alternativas de controle penal.

Na tentativa de delinear um panorama mais amplo acerca dos crimes praticados


pelo Estado, a presente dissertação toma como hipótese haver uma ligação umbilical entre
as instâncias formais de controle – especificamente o sistema penal – e as formas como
se expressam as violações massivas de direitos humanos decorrentes de intervenções do
Estado sobre uma população civil – no caso, a brasileira. Por isso, fincar e relacionar essas
duas categorias – sistema penal e crimes de Estado – é elemento de suma importância
para o presente trabalho, na medida em que possibilitará ampliar o olhar para a atuação
da polícia (e as relações de poder que de sua operacionalidade se pode entrever).

Frente a isso, a presente investigação passará a demonstrar a realidade em que


opera o sistema penal, especificamente o brasileiro, o qual, desde a escalada do
neoliberalismo nos países centrais a partir da década de 1970, se encontra na rota do
encarceramento em massa. Trata-se de reconstruir o aparato que operacionaliza a
imposição da pena para compreender a complexa engenharia dos crimes praticados pelo
Estado, visto que os agentes que levam a cabo crimes contra a sociedade civil (que
supostamente deveriam proteger) estão vinculados a esse poder de punir que pertence
historicamente ao Estado1.

Não é difícil notar que as mesmas agências que participam do ritual de punição
são as mesmas agências que incorrem em crimes praticados pelo Estado. As mesmas
instituições que fixam altas penas a determinados crimes, são as que escondem, com um
requintado toque político, mas sobre uma camada de direito, as mortes praticadas pelos
seus agentes. É sob a égide da irracionalidade com que a pena é aplicada que os massacres
à grupos e populações inteiras também surgem.

Dupla face da mesma moeda: barbárie (institucionalizada pela pena) aqui e


(mortes informais) acolá.

                                                            
1 Sobre as teorias que embasam o poder de punir do Estado ao longo da história, ver: SANTOS, Juarez
Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC, Lumen Juris, 2008.
14 
 
Os delírios sistematizados dos operadores do sistema penal, que buscam
racionalidade na aplicação da pena, são os mesmos delírios que buscam
racionalidade para os massacres. A mesma lógica punitiva que opera no
encarceramento em massa em nosso país é a que justifica a letalidade do nosso
sistema penal. O mesmo furor punitivo que contabiliza produtividade por
inquéritos relatados na polícia e denúncias oferecidas pelo Ministério Público,
encontra-se nos pedidos de arquivamento dos autos de resistência, aceitos pela
Justiça. É dentro do direito que os massacres e as penas se indeterminam na
exceção soberana2.

Em suma, disserta-se em primeiro momento acerca do sistema penal formal e


aparente3, composto pelas agências judiciárias, legislativas, policiais e penitenciárias, e
que se legitima a partir de um discurso oficial4 de combate ao crime, utilizando-se da pena
como instrumento de reprovação a uma conduta definida politicamente como ilícita.
Verdadeiro mecanismo de controle social que ganhou destaque no capitalismo
globalizado neoliberal 5 , provocando uma expansão quantitativa sem precedentes – e
amplamente apoiada pelas mais diversas camadas sociais, as quais aumentaram suas
expectativas sobre o espectro punitivo em torno do globo6.

No que se refere aos novos números trazidos pelo sistema penal, Loïc Wacquant,
ao pesquisar os laços entre as políticas sociais e as políticas penais nos Estados Unidos
da América do final do século XX, e a paulatina concessão de espaço das primeiras para
o avanço das segundas, traçará, a partir das análises sobre o sistema carcerário daquele
país, o que ele denomina de Estado penal. Para ele, uma nova racionalidade, imposta após
a derrocada do welfare-state no país norte-americano, passa a atuar em três níveis.
No plano mais baixo do estrato social, o encarceramento torna-se presente a fim
de estocar fisicamente o excedente da classe operária, ou seja, aqueles que não estão

                                                            
2 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na
cidade do Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p. 262.
3 Lola Aniyar de Castro faz uma divisão interessante do sistema penal: aparente e subterrâneo. O aparente
é aquele que criminaliza as condutas que são mais fáceis de localizar, mais à vista dos meios de controle,
enquanto que o subterrâneo, num movimento contrário de dizer quem é “mau” a partir do tipo penal, vai
proclamar e apontar os “bons” do sistema social e, por consequência, o tratamento que a eles deve ser
dirigido pelas agências de controle. Segundo a criminóloga venezuelana: “Embora proibidos pelo sistema
aparente, há procedimentos diferenciados para as classes subalternas no terreno fático; violações de
domicílio; violências policiais; violação do direito à própria imagem no tratamento informativo; prisões e
detenções preventivas por prazo indeterminado; execução penal à margem dos direitos humanos; carência
de condições dignas de vida, de acesso à informação, à comunicação, a atividades culturais ou esportivas,
etc., e sofrimentos físicos e morais que ultrapassam os previstos pela lei (CASTRO, Lola Aniyar de.
Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2005, p. 131).
4 Para uma elucidação das teorias que sustentam o discurso oficial da pena, ver ainda: SANTOS, Juarez
Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC, Lumen Juris, 2008.
5 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, 2ª
edição, julho de 2012, p. 99.
6 SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas
sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 30.
15 
 

incluídos no mercado de trabalho; um pouco acima, a rede policial, judiciária e


penitenciária trabalha para impor a disciplina do trabalho assalariado entre a escala social
em declínio e sem segurança da classe média; por último, direcionando-se às classes
superiores, cumpre o papel simbólico de reafirmar a autoridade do Estado e a vontade de
uma elite política de dividir7 os cidadãos de bem dos pobres merecedores de punição8.
Aliado a isso, políticas de tolerância zero e Lei e Ordem9 surgem no fim dos anos
1990 em Nova Iorque e pautam o debate político criminal até os dias de hoje, quando o
sistema penal incessantemente continua recaindo de forma dura e inflexível sobre a
mesma clientela: negros, jovens e pobres. Tendo como horizonte a utilização da prisão,
os dados do Bureau of Justice Statistics10 demonstram que no final de 2014 os Estados
Unidos encontravam-se, somando-se cadeias locais e prisões federais, com 2.224.400
pessoas segregadas e outras 6.851.000 sob a supervisão da probation e da parole,
evidenciando verdadeira simbiose entre os meios disciplinares e securitários de punição.

Este cenário, no entanto, não indica qualquer vitória do discurso11 jurídico-penal


oficial: eliminar a criminalidade. Pelo contrário: sua proposta de redução de violência se
desfaz ao menor toque da realidade. E o ponto de inflexão pode ser encontrado nas
próprias promessas realizadas desde sua constituição, quando da evocação do poder de
punir por determinado grupo, e a contradição que produz (historicamente) sobre as
funções latentes, de modo a evidenciar uma operacionalidade invertida, o que o faz incidir
de forma negativa sobre os sujeitos e a sociedade como um todo12.

                                                            
7 Vale destacar que essa política higienista, de limpeza, que se traduz numa compulsão pela ordem, está
presente nas mais diversas sociedades ocidentais, seja em regimes políticos das democracias liberais, seja
nos regimes totalitários, embora tal violência depuradora esteja mais sempre nos ambientes onde a
exceção constitui-se a regra. Tal eliminação de adversários políticos é uma forma de atingir a todos os
que podem se constituir em perigo (GAUER, Ruth Maria Chittó. A fundação da norma: para além da
racionalidade histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011).
8 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva].
Rio de Janeiro: Revan, 2003, 3ª edição, revista e ampliada, agosto de 2007. 1ª reimpressão, março de
2013, p. 17.
9 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
10 BJS – Bureau of Justice Statistics – Correctional Populations in the United States, 2014. U.S
Departamente of Justice, December 2015, p. 02 (Disponível em:
http://www.bjs.gov/content/pub/pdf/cpus14.pdf)
11 Foi Michel Foucault, em sua aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de
1970, que referiu para as possibilidades de emergência dos discursos, ressaltando que a sua produção é
sempre controlada, selecionada, organizada e redistribuída por procedimentos. No mesmo ato, alertou não
ser o discurso somente o que traduz as lutas e o sistemas de dominação, mas também aquilo pelo que se
luta, um poder do qual se quer apoderar (FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso – Aula inaugural
no Collège de France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida
Sampaio – 23ed. – São Paulo: Edições Loyola, 2013, p. 10).
12 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da
(des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 135.
16 
 

Um dos fatores que sustentam essa incapacidade do poder punitivo – sempre


pautado por um discurso jurídico-penal por trás – de investigar, processar e punir todos
que incorrem numa conduta considerada como crime, está na sua falta de capacidade
operacional, necessitando realizar uma seleção de quem será ou não submetido às suas
engrenagens. Tal controle social se expressa de forma verticalizada, de Estado para
população, militarizada, atuando na disciplina daqueles captados por seus tentáculos e,
ainda que não em nível consciente, cria uma vigilância internalizada da autoridade,
eliminando a espontaneidade daqueles que compõe a sociedade e expandindo-se a
diversos aspectos da vida13.

Partindo dessas perspectivas é que o sistema penal, estruturalmente montado para


que opere dentro da legalidade, não opere dentro das leis e dos limites impostos à sua
atuação, criando um altíssimo grau de arbitrariedade, essencial para seu funcionamento14,
e dirigindo seu aparato às camadas mais vulneráveis. Rusche e Kirchheimer, autores
vinculados à Escola de Frankfurt, já haviam demonstrado como o sistema penal está
diretamente vinculado ao modo de produção vigente na sociedade, constatando numa
análise histórica que são eleitas determinadas formas de punir em razão das necessidades
trazidas pelo sistema econômico. Isso faz com que os autores afirmem, de forma
revolucionária para sua época:

A transformação em sistemas penais não pode ser explicada somente pela


mudança das demandas da luta contra o crime, embora esta luta faça parte do
jogo. Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que
correspondem às suas relações de produção. É, pois, necessário pesquisar a
origem e a força dos sistemas penais, o uso e a rejeição de certas punições e a
intensidade das práticas penais, uma vez que elas são determinadas por forças
sociais, sobretudo pelas forças econômicas e, consequentemente, fiscais15.

                                                            
13 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal.
Tradução Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição – Rio de Janeiro: Revan, 1991, 5º edição,
janeiro de 2001, 1º reimpressão, outubro de 2010, 2º reimpressão, setembro de 2012, p. 24.
14 Logo adiante, o presente trabalho explorará o grau de arbitrariedade das agências através da categoria
de estado de exceção do pensador italiano Giorgio Agamben, para o qual aquele se apresenta, em tempos
modernos, em “um deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo”
que “ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível, a estrutura
e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção,
apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”
(AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004,
p. 13.)
15 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. Tradução, revisão técnica e nota
introdutória Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 20.
17 
 

Sem qualquer coincidência 16 , Michel Foucault também trará elementos que


agregam à crítica ao sistema penal, sugerindo ser esse um grande instrumento de controle
sobre os corpos (microfísica), vindo a gerenciar ilegalidades e impor dispositivos de
controle e vigilância. Para ele, na sede de domesticar corpos para a sua utilização
econômica, o sistema penal classifica os procedimentos em função de seus objetivos
determinados, otimizando coordenações e sequências a fim de estabelecer controles e o
adestramento permanente dos indivíduos17.

Não muito diferente da realidade dos países centrais, no Brasil a chamada


subcidadania (também conhecida como ralé) é o maior alvo das práticas das penas
impostas por esse Estado encarcerador. A construção do conceito de subcidadania
realizada por Jessé de Souza é elucidativo e ajudará nas hipóteses aqui lançadas, vez que
esclarece alguns fenômenos da formação do imaginário punitivo brasileiro acerca
daqueles sobre os quais o sistema penal recai de forma esmagadora. Para o sociólogo,
pautando-se principalmente no pensamento de Charles Taylor, Pierre Bourdieu e
Florestan Fernandes, a massa da população em condições de subcidadania são aqueles
abandonados pela abolição da escravatura às novas condições socioeconômicas que o
Brasil enfrentava no início do século XX com a captação e desenvolvimento de ideais
capitalistas e liberais advindos da Europa. Trata-se de uma “ralé” composta por negros e
pobres, os quais, pela sua inadequação ao novo modelo econômico serão tratados como
não-gente/não-cidadão, ou subcidadão. Na perspectiva de Souza, a industrialização do
país no início do século XX, alinhado à uma ideologia espontânea nascida das práticas
liberais na Europa e introduzidas no Brasil sem qualquer estrutura que as suportasse –
tanto por parte da população quanto das instituições – serviu para que se consolidasse um
habitus primário – vinculado à uma vida produtiva – e um hábitos secundário, sendo
nessa segunda categoria que estariam os subcidadãos, inaptos e improdutivos sob o ponto
de vista do modelo capitalista18.

Florestan percebe, portanto, e com notável acuidade, precisamente nas


dificuldades de adaptação à nova ordem competitiva, a semana da
marginalização continuada de negros e mulatos. Ele localiza essas dificuldades

                                                            
16 O próprio Foucault, em Vigiar e Punir, aponta explicitamente para a influência de Georg Rusche e
Otto Kirchheimer em sua obra.
17 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009,
171.
18 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade
periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.
18 
 
na esfera das condições psicossociais da personalidade: a) a inadaptação do
negro para o trabalho livre; e b) sua incapacidade de agir segundo os modelos
de comportamento e personalidade da sociedade competitiva19.

Assim é que se pode notar estar o sistema penal brasileiro atualmente alcançando
a geração seguinte (netos, bisnetos e tataranetos) de escravos libertos no fim século XIX,
os quais servem, devido às suas restritas possibilidades de ascensão social e sua barreira
socialmente construída junto aos poderes econômicos e políticos, como exército de
reserva do modo de produção capitalista. Servindo-se de um aparato bélico, onde a maior
representatividade se dá pela repressão realizada por uma polícia militarizada, a lógica
punitivista em terras brasileiras tem lotado presídios e penitenciárias com corpos não
dóceis à maquinaria do modo de produção lícito. Numa linguagem mais simples, o Brasil
constitui-se de prisões de (e para) misérias, nas quais todos que ali se localizam são quase
todos pretos, ou quase pretos, ou quase brancos, de tão pobres20.

Nesse sentido, dados demonstram que o país se encontra no 4º lugar no ranking


mundial dos países que possuem mais pessoas encarceradas. Um levantamento realizado
pelo Conselho Nacional de Justiça na metade de 2014 demonstrou que 567.655 pessoas
se encontram enjauladas em presídios, mais 147.937 em prisão domiciliar, totalizando
715.592 de pessoas presas21. De forma assustadora, a população carcerária brasileira teve
um crescimento de 74% (setenta e quatro por cento) entre os anos de 2005 e 201222. O
panorama se torna pior quando se descobre que a população carcerária feminina avançou
567% entre 2000 e 2014, sendo 68% dessas prisões motivadas pelo combate ao tráfico de
drogas23.

Para se tentar compreender esse panorama, é necessário um olhar atento ao texto


constitucional de 1988 – fruto da abertura democrática no país após a ditadura civil-

                                                            
19 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São
Paulo: LeYa, 2015, p. 131.
20 Música Haiti de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
21 CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Novo Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil. Departamento de
Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas
Socioeducativas (DMF). Brasília: junho de 2014. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/pessoas_presas_no_brasil_final.pdf.
22 MAPA DO ENCARCERAMENTO: os jovens do Brasil. Secretaria-Geral da Presidência da República
e Secretaria Nacional de Juventude. Brasília: Presidência da República, 2015, p. 25. Disponível em:
http://juventude.gov.br/articles/participatorio/0009/3230/mapa-encarceramento-jovens.pdf.
23 DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias: Infopen Mulheres – Junho de 2014. Brasília: Ministério da Justiça. Disponível em:
http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-
brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf
19 
 

militar – o qual apresentou ambiguidades que estabeleceram, ao mesmo tempo, princípios


limitadores ao poder de punir e, por outro lado, trouxe diversas modificações na estrutura
do direito penal e processual penal que possibilitaram o incremento do punitivismo na
década de 9024.

Só a partir de 1988 foram 869 novas hipóteses de tipos penais – inéditos ou


renovados/sofisticados em 39 leis 25 . Paralelamente, enrijeceu-se a modalidade de
cumprimento das sanções, alargando o imput do sistema e estreitando o output, com
reflexos diretos no número de pessoas processadas e presas 26 . Segundo Carvalho, a
tendência legislativa-punitivista mais significativa foi a edição da Lei n.º 8.072/90, a Lei
dos Crimes Hediondos, a qual, incidindo sobre os delitos politicamente classificados
como hediondos, aumentou suas penas, estabeleceu vedação de progressão de regime,
aumentou o prazo do livramento condicional e obstrução da comutação e do indulto,
tornando-se um dos maiores motivos do encarceramento em nosso país27.

Quer dizer, pulverizou-se as possibilidades de condutas sobre as quais poderiam


os indivíduos incorrer em crimes ao mesmo tempo que o sistema penitenciário era
atingido pela Lei de Crimes Hediondos e suas regras para cumprimento de pena, de modo
que a entrada se tornava mais frequente que a saída, devido aos novos requisitos objetivos
e vedações de benefícios que aquela lei impunha. No campo do direito processual penal,
possibilitou-se intensificar a criminalização secundária. Reestruturou-se as possibilidades
de prisão cautelar – prisão temporária (Lei n.º 7.960/89) e novas espécies de
inafiançabilidade e vedação de liberdade provisória (Leis n.º 7.716/89, 8.072/90, 9.034/95
e Lei n.º 9.455/97) – assim como foi possibilitada a modalidade de execução de pena sem
trânsito em julgado de sentença condenatória (Lei n.º 8.038), chamada de execução penal
antecipada28.

Assim, para Salo de Carvalho, os fatores legislativos que contribuem para o


encarceramento em massa são: (a) criação de novos tipos penais a partir do rol de bens
jurídicos expostos na Constituição (campo penal); (b) ampliação da quantidade de pena

                                                            
24 CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo (o exemplo
privilegiado da aplicação da pena). Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010, p. 33.
25 SANTOS, André Leonardo Copetti. Sobre expansão penal no Brasil. In: RVMD, Brasília, V.6, n.º 1,
p. 77-114, Jan-Jun, 2012, p. 100.
26 CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo (o exemplo
privilegiado da aplicação da pena), p. 33.
27 Idem, p. 34.
28 Idem, p. 34.
20 
 

privativa de liberdade em inúmeros e distintos delitos (campo penal); (c) sumarização do


procedimento penal, com o alargamento das hipóteses de prisão cautelar (prisão
preventiva e temporária) e diminuição das possibilidades de fiança (campo processual
penal); (d) criação de modalidade de execução penal antecipada, prescindindo o trânsito
em julgado da sentença condenatória (campo processual e da execução penal); (e)
enrijecimento da qualidade do cumprimento da pena, com a ampliação dos prazos para
progressão e livramento condicional (campo da execução penal); (f) limitação das
possibilidades de extinção da punibilidade com a exasperação dos critérios para indulto,
graça, anistia e comutação (campo da execução penal); e (g) ampliação dos poderes da
administração carcerária para definir o comportamento do apenado, cujos reflexos
atingem os incidentes de execução penal (campo penitenciário)29.

Dentre os crimes taxados como hediondos, destaca-se o equiparado tráfico de


drogas, e principalmente a figura do traficante de drogas, sobre o qual recai o estigma e a
noção de inimigo da sociedade, além de ser presa fácil da polícia quando da necessidade
dessa instituição demonstrar estar operando para manter a paz (buscando a prisão de
indivíduos), já que localizados em territórios em que os aparatos do Estado (e os freios
democráticos) estão ausentes. Numa atividade ilícita de difíceis ganhos fáceis, o traficante
de drogas é aquele indivíduo que não se incluiu no mercado de trabalho lícito, recorrendo
à atividade paralela de venda de substâncias ilícitas para que tenha acesso ao que ricos de
forma “natural” detém, que é o poder de consumo.

Nesta perspectiva, contribui para o grande boom do encarceramento em massa no


Brasil a nebulosidade com que a Lei n.º 11.343/2006, também conhecida como Lei de
Drogas, trata as tipificações do usuário (art. 28) e do tráfico de drogas (art. 33), persistindo
uma ausência de diferenciação clara entre ambos, de modo que devem ser seguidos os
demasiados amplos e vagos critérios do art. 28, § 2º30. Com isso, a distinção no caso
concreto acaba sendo realizada pela primeira autoridade que tiver contato com o
criminalizado, prevalecendo a visão subjetiva dessa e concedendo excessiva

                                                            
29 Idem, p. 35.
30 Conforme a Lei n.º 11.343/2006, artigo 28, § 2º: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo
pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em
que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes
do agente”.
21 
 

discricionaridade aos agentes da polícia31. Fenômeno que Salo de Carvalho denomina de


zona gris de alto empuxo criminalizador 32 . Além disso, colabora também ter sido
aumentada a pena do tráfico de drogas na nova lei (de três para cinco anos), assim como,
por ser crime equiparado a hediondo, o condenado necessita de um maior tempo de
cumprimento para obter transferência de regime e livramento condicional33.

Perpassado de forma proeminente por uma ideologia da defesa social34, o discurso


proibicionista no Brasil está adequado à um projeto mais amplo de transnacionalização
realizado por empreendedores morais35 que visam grandes lucros. Uma guerra que não é
brasileira e sequer latino-americana, e que visivelmente não tem como objetivo final
acabar com o uso e tráfico da droga, mas manter em funcionamento do business de
equipamentos e tecnologias de segurança comercializados pelos países ricos36. Com base
na Convenção Única sobre Entorpecentes Ilícitos de 1962 da ONU, Richard Nixon, o
presidente que posteriormente foi destituído em razão do escândalo de Watergate,
proferiu discurso declarando as drogas, mormente a heroína e a cocaína, o novo inimigo
externo (para eles) e interno (para os outros países37). O emblema dessa campanha: War
on drugs. Uma das consequências: o estabelecimento de uma lógica de guerra dos Estados
contra sua própria população.

Mais do que simples direito penal do inimigo38, o qual não encontra solo fértil na
realidade brasileira, na medida em que para haver tratamento de inimigo é necessário que
                                                            
31 BOITEUX, Luciana. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária
brasileira e alternativas. In: SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo:
IBCCRIM, 2014, p. 90.
32 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da
Lei 11.343/06. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 288.
33 BOITEUX, Luciana. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária
brasileira e alternativas, p. 90.
34 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de
Criminologia, 6ª edição, outubro de 2011, p. 41 e seguintes.
35 BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiz X. de Borges;
revisão técnica Karina Kuschnir. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, pp. 153 e seguintes.
36 RAMOS, Beatriz Vargas. Direito ao dissenso. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.); Ana Luiza Nobre
[et. al]. Paz Armada. Coleção Criminologia de Cordel. Rio de Janeiro: Revan, 2012, 1ª reimpressão,
setembro de 2013, p. 20.
37 Segundo Salo de Carvalho, os Estados Unidos proclamam a droga como o novo inimigo interno da
nação, porém “com a popularização do consumo de heroína e a criação dos programas de metadona,
forma indireta de controlar e legalizar o consumo, o inimigo interno teve de ser substituído, projetando-o
ao exterior” (CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e
dogmático da Lei 11.343/06, p. 72).
38 Sobre a política-criminal denominada Direito Penal do inimigo, essencial é: JAKOBS, Günther;
MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Org. e trad. André Luis Callegari e
Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. Numa visão histórica e crítica,
assume relevância o trabalho do argentino Zaffaroni, vide: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no
22 
 

antes as garantias estivessem sendo efetivadas de forma ampla e universal39, o que nunca
ocorreu em nossa realidade marginal 40 , a criminalização das drogas é dispositivo
encarcerador e desumanizador, que vem para provocar a morte de milhares de jovens que
vivem às margens da economia lícita.

O sistema de justiça criminal no Brasil, com suas enraizadas matrizes ibéricas41,


demonstra desde há muito sua desconsideração com ampla parcela de seus cidadãos,
tratando-os como inimigos, vez que indignos do tratamento adequado – com as devidas
garantias processuais penais – dado de forma mais efetiva à uma criminalidade
econômico-financeira e das fraudes políticas42.

Por essa razão, aparece como destituído de sentido querer projetar-se sobre o
direito penal brasileiro o paradigma do “direito penal do inimigo”, vez que este
pressupõe a existência paralela de um “direito penal de garantias” amplamente
consolidado, e em alguma medida universalizado43.

Vera Malaguti Batista44 demonstrou isso cabalmente, ao analisar o trato do Poder


Judiciário com adolescentes que se envolveram com drogas entre os anos de 1968 e 1988.
A condição socioeconômica era um diferencial no momento das medidas a serem
adotadas, vez que para o menor pobre a segregação era um meio de reeducação, enquanto
que para o adolescente rico bastava um tratamento psicológico pago por seus pais
afortunados.
Notou a criminóloga que a concessão de poder aos técnicos – assistentes sociais,
psicólogas, psiquiatras e médicos – se destacam na construção dos estereótipos, de modo
que seus relatórios junto aos órgãos policiais, judiciários e de execução das medidas

                                                            
Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, 2ª edição junho de 2007, 3ª edição dezembro de 2011. Ainda,
para uma melhor compreensão do fenômeno em todos os seus aspectos, ver: MELIÁ, Cancio; DÍEZ,
Gómez-Jara. Derecho penal del enemigo: el discurso penal de la exclusión. Buenos Aires: Euros Editores,
2006.
39 CARVALHO, Thiago Fabres de. O “Direito penal do inimigo” e o “Direito penal do Homo Sacer da
baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro:
Revan/ICC, ano 17, n. 19/20, 2012.
40 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal,
pp. 164-165.
41 BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2002, 1ª
reimpressão, novembro de 2013.
42 CARVALHO, Thiago Fabres de. O “Direito penal do inimigo” e o “Direito penal do Homo Sacer da
baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro:
Revan/ICC, ano 17, n. 19/20, 2012.
43 Idem.
44 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Revan, 2003.
23 
 

socioeducativas. Resultado: violência disfarçada por tecnicismo45. Enquanto a família


dentro do padrão recebia recomendações de atenuação de penas, as famílias pobres eram
vistas como carga negativa, afetando duramente as sentenças e sanções estipuladas para
os jovens negros e pobres46.
Diante disso, a criminalização das drogas e seus efeitos colaterais, em nível global,
estão no epicentro da utilização indiscriminada da prisão como forma de dar conta dos
estratos mais baixos e dos problemas sociais correlatos, mantendo os netos, bisnetos e
tataranetos dos que há pouco mais de cem anos eram vistos como propriedade enjaulados
– quando não mortos – sob um discurso bastante lucrativo. Afinal, todos ganham: o poder
punitivo é legitimado; a pena privativa de liberdade ganha utilidade; um inimigo comum
é estabelecido; a segurança pública se vê autorizada a tratar esses inimigos como se em
guerra estivessem, sem nenhum respeito aos direitos humanos internacionalmente
estabelecidos; ao invés de potencializar a criação de programas sociais para a juventude
negra e pobre excluída do mercado de trabalho, operacionaliza-se sua morte.
A criminalização do tráfico de drogas, e mais do que isso, da figura do traficante,
comporta uma essencialização47 capaz de torná-los indignos de um tratamento dado à
cidadãos – onde as garantias processuais deveriam ser aplicadas – e tornando-os também
suscetíveis a mortes precoces a partir de crimes praticados pelo Estado. Retira-se sua capa
de humano. E contra o inumano, vale tudo.

É interessante notar que nesse processo de construção de um inimigo e legitimação


do sistema penal neoliberal a mídia cumpre papel de apoio às agências punitivas,
reproduzindo o credo criminológico da pena como rito sagrado para a solução de
conflitos48. O que é bastante fácil de ilustrar, já que o chavão final das notícias sobre
crime é: “até agora ninguém foi preso”. Como se prender resolvesse o problema. Se
houvesse a possibilidade de noticiar a prisão de alguém – escancarando-o muitas vezes
sob os incessantes holofotes das câmeras em delegacias – o seria feito com o intuito de
demonstrar que o sistema está agindo e/ou para passar tranquilidade aos telespectadores.

Mas mais do que isso, os meios de comunicação instauram tensões graves entre o
delito-notícia – o qual reclama uma pena-notícia – e o devido processo legal (visto como
                                                            
45 Idem, p. 117.
46 Idem, p. 118.
47 YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade
recente. Rio de Janeiro, Revan, 2002, pp. 154-160.
48 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos: crime, direito e
sociedade, Rio de Janeiro, ano 7, n° 12, p. 271-288, 2° semestre de 2002, p. 273.
24 
 

um estorvo), a plenitude de defesa e a presunção de inocência, assim como outras


garantias, que por vezes são abreviadas pelos próprios operadores da justiça criminal –
tentados e sensíveis à boa imagem social – como advogados, juízes, promotores,
delegados, etc49.

Ademais, captam a positividade que o medo possui, vez que esse torna-o
exacerbado ao deformar a verdadeira possibilidade de vitimização frente a determinados
delitos 50 . Assim, os meios de comunicação – verdadeiro sistema penal informal 51 –
através da mídia falada (televisão) e escrita (jornais, literatura, romances, histórias em
quadrinhos), e mais recentemente pela internet, terminam por aumentar a dimensão dos
riscos que estão lá fora.

Risco que passa a ser gerido a partir de uma nova cultura do controle do crime,
segundo David Garland. Para esse autor, ao analisar a política criminal dos últimos 30
anos nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, houve uma mudança das sensibilidades em
torno da justiça criminal nas últimas décadas, passando a sociedade a ser a fonte da
estrutura da justiça criminal – onde inclusive vítimas são consultadas acerca das táticas e
estratégias a serem tomadas – e o crime assumindo crescente relevância. Para além da
segregação punitiva – sobre a qual já se referiu acima e tem como fonte a velha retórica
da lei e ordem – há também a estratégia da parceria preventiva52, onde a sociedade torna-
se um meio de prevenir e reprimir o crime.

É uma criminologia do eu53 que entra em jogo quando o crime passa a fazer parte
da rotina de toda sociedade, fazendo novos hábitos serem forjados para além das políticas
estatais – como uma simples mudança de rota no caminho para casa ou não parar na
sinaleira em determinado horário – assim como esquentando o mercado de segurança
privada, ao se ver estampado um certo ceticismo (inocente) quanto à operacionalidade do
sistema penal em combater o crime.

                                                            
49 Idem, p. 273.
50 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos: Conferencias de criminología cautelar – 1ª
ed. 1ª reimp. – Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 383.
51 Para uma análise introdutória sobre o sistema penal, ver: ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA,
Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria
Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 4ª edição, maio de 2011.
52 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de
Janeiro: Revan, 2008, p. 313.
53 Idem, p. 288.
25 
 

Tal fator faz com que os indivíduos clamem por maiores penas aos seus
parlamentares, ao mesmo tempo que desenvolvem estratégias de prevenção para que o
crime – elemento que passou a se tornar central no século XXI – não alcance os membros
de sua família, assim como recorrem ao mercado privado de segurança e apoiam a
privatização de determinados setores que, escancaradamente, já não cumpriam mais as
metas de combate à criminalidade. Recorre-se a tudo e a todos, sem se dar conta de que
é a extensão da malha penal que, ao fim e ao cabo, acaba crescendo.

A possibilidade de gestão da pena de prisão avança em tons galopantes e forja


todo um mercado novo onde penitenciárias são administradas por empresas privadas. É
importante destacar que o trabalho intramuros no presídio privado se modifica daquele
anteriormente detectado na relação entre o ethos do trabalho que estava sendo
desenvolvido – durante e depois das revoluções industriais e do liberalismo econômico –
e a pena. Nessa fase contemporânea, o próprio presídio é o negócio, já que nele estão
inclusas todas ações necessária à execução da pena54. Não é o trabalho do preso o gerador
de lucro – ainda que seja uma possibilidade latente – mas sim sua estada no
estabelecimento prisional privado55.

Por sua vez, o consumo de produtos e serviços relativos à segurança também passa
a ser notado como uma forma de se sentir mais seguro frente à uma criminalidade latente
pela disseminação do medo da vitimização. Um direito social que acaba por ser colocado
nas relações de consumo e, por óbvio, privilegiando somente quem pode pagar.

Diante disso, será no que se quer ocultar que tentamos riscar o fósforo para
revelar que o “simples” ato de comprar um alarem para casa não está
desatrelado da brutalidade policial na criminalização da miséria, da invecível
guerra contra o tráfico, do fato de considerar somente o combate à base do
tráfico de drogas uma guerra (pois sempre se esquece do fluxo internacional
de lavagem de capitais, operada por grandes bancos, do dinheiro vindo do
tráfico de drogas, ou alguém já viu a mídia chamar executivo de banco de
traficante, mesmo ele pertencendo ativamente à cadeia financeira do lucro do
tráfico?), que não está desatrelado do excedente de força de trabalho na atual
fase do modo de produção capitalista e, por último, mas não por fim, do trato
do direito social à segurança como uma mercadoria, em verdadeira relação de
fetiche56.

Além das formas privadas (e privatizadas) de controle do crime, novas técnicas


passam a fazer parte do arsenal estatal para além da pena privativa de liberdade – inclusive

                                                            
54 FELLETI, Vanessa Maria. Vende-se segurança: a relação entre o controle penal da força de trabalho e
a transformação do direito social à segurança em mercadoria. Rio de Janeiro: Revan, 2014, p. 108.
55 Idem, p. 108.
56 Idem, p. 119.
26 
 

no Brasil. Desde a reforma do Código Penal brasileiro em 1984, pode-se perceber uma
vontade do legislador em potencializar políticas criminais que incentivem uma menor
utilização da prisão como resposta a um delito praticado. Por isso, aquele ano ficou
marcado pela inserção, na legislação penal, das chamadas penas alternativas, a partir da
promulgação da Lei n.º 7.209/84, a qual, ao reformar o a parte geral do Código Penal,
introduziu a possibilidade de substituir-se a pena privativa de liberdade – nos crimes
culposos e nas que forem aplicadas penas de até um ano nos crimes dolosos – por pena
restritiva de direitos, além de ampliar as possibilidades da suspensão condicional da pena
nos casos de condenação.

Ainda, a Lei n.º 9.099/95, ao criar os Juizados Especiais Criminais, possibilitou,


para as infrações de menor potencial ofensivo57, as chamadas composição civil dos danos
(entre autor e vítima), transação penal (entre Ministério Público e réu) ou multa. Além
disso, para os crimes em que a pena mínima era igual a um ano, insculpiu a possibilidade
de suspensão condicional do processo. Alguns anos depois, as Leis n.º 9.605/98 (crimes
contra o meio ambiente) e 9.715/98 (alteração no Código Penal acerca das penas
restritivas de direito) ampliaram os limites das penas privativas liberdades substituíveis
por restritivas de direito ou cuja execução poderia ser suspensa.

Embora há bastante tempo os dados referentes ao número de cumpridores de


alternativas penais não tenham sido atualizados, o paulatino crescimento – com a
superação das taxas de encarceramento no Brasil – pode ser demonstrado pelo histórico
evolutivo que vai até o ano de 2009. Se em 1987 haviam apenas 197 pessoas cumprindo
penas alternativas (sob a vigência apenas da Lei n.º 7.210/84), em 1995 (acrescentada a
Lei n.º 9.099/95 e oito anos depois) 80.364 estarão cumprindo tanto medidas quanto penas
alternativas. Mas é em 2007 que as alternativas penais alcançam os patamares da prisão,
contando com 422. 522 enquanto que o número de presos chegava a 423.373. E no ano
seguinte, as alternativas já contabilizavam 558.830 para 446.764 presos. O último
relatório, em 2009, evidencia um aumento de aplicação das alternativas penais (medidas
e penas alternativas somadas) em mais de 100.00 em um ano, contando com 671.078
submetidos sob esse mecanismo enquanto 473.626 encontravam-se segregados58.

                                                            
57 Segundo o artigo 61 da Lei n.º 9.099/95, infrações penais de menor potencial ofensivo são aqueles que
cominam pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.
58 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Evolução histórica das penas e medidas alternativas no Brasil.
Disponível em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/arquivos/alternativas-penais-1.
Último acesso: 16/05/2016.
27 
 

Assim, ao contrário do que se poderia deduzir – já que o grande mote de


institucionalização de meios alternativos de controle social seria a necessidade do
declínio das taxas de encarceramento – essas alternativas penais59 instituídas não tinham
como discurso substituir a prisão como meio central de punição, mas torná-la aplicável
somente aos criminalizados considerados “incorrigíveis” ou “perigosos”, enquanto que
elas eram destinadas aos “sem periculosidade”, “primários” e “ocasionais” 60 . As
alternativas penais vêm para tornar a pena e sua aplicação pelo juiz mais personalizável
– a depender da figura do criminalizado61.

Mais do que isso, com um viés bastante gerencialista, as alternativas penais


trataram-se de meios de adaptação às taxas de criminalidade por parte do Estado,
reconhecendo não ser a prisão um meio de solução – embora não se deslegitime sua
operacionalidade como estratégia estatal – assim como, devido a critérios informais, que
nem todos os crimes são investigados e processados, tentando assim estabelecer-se um
critério de racionalidade que venha a distinguir quais são os crimes (de) menores
(potenciais ofensivos), que correrão no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, e quais
seriam os crimes que mereceriam a repressão estatal total, tramitando nas Varas Criminais
comuns62.

No mesmo sentido, não se pode perder de vista que a desburocratização e as


reformas políticas realizadas no âmbito da justiça criminal com a instituição das
alternativas penais, decorrentes de uma nova onda de acesso à justiça, dentro do panorama
neoliberal, respondem à uma lógica eficientista frente à crise dos modelos tradicionais de
solução de conflitos. Menos preocupação com as garantias processuais destinadas aos
cidadãos e mais afirmação de estratégias de quantificação e solução rápida dos litígios63.
Ademais, ao se propor as alternativas penais visando a redução das taxas de
encarceramento, o discurso oficial não atentou para a alta capacidade de reestruturação

                                                            
59 SOUZA, Guilherme Augusto Dornelles de. Da punição necessária à punição eficiente?
Emergências, continuidades e deslocamentos das alternativas penais à prisão entre a reforma da parte
geral do Código Penal em 1984 e a aprovação da Lei 9.714/98. In: MOURA, Marcelo Oliveira de;
PILAU, Lucas e Silva Batista. Criminologias, Sistema Penal e Conflitualidades: abordagens empíricas.
Pelotas: EDUCAT, 2015, p. 89.
60 Idem, pp. 98-100.
61 Idem, p. 101.
62 Idem, p. 103.
63 MOURA, Marcelo Oliveira de. Desocultando “o percurso” da informalização da justiça no sistema dos
Juizados Especiais Federais: uma pesquisa exploratória nos juizados criminais da 4ª Região. Tese
(Doutorado em Direito) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Programa de Pós-Graduação em
Direito, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, 2015, p. 197.
28 
 

do poder punitivo, principalmente quando dúvidas contundentes atingem seus


fundamentos, pressupostos e condições de eficácia64.

É da crise que novas formas de poder (e controle) aparecem65. Ou seja, o sistema


penal, ao prever uma reforma, faz dos novos institutos formas de legitimar seu aparato,
sem perder as estratégias antes utilizadas e agregando novas formas de exercer seu poder
na sociedade 66 . No caso, mecanismos de segurança. Trata-se de uma “mais-valia
punitiva”67, um preço maior a ser pago, quer dizer, ao mesmo tempo que não se reduz o
alcance da prisão dentro da sociedade ao se criar novos mecanismos de controle, o sistema
penal também não se deixa encolher – em síntese, expande as malhas de suas engrenagens
tanto pela prisão quanto por meios alternativos de controle.

É importante que, no rastro deixado por Michel Foucault, se esclareça estar esses
mecanismos securitários aliados à uma nova economia política 68 que possibilita
circunscrever uma governamentalidade69 contemporânea que recai sobre uma população,
numa espécie biopolítica 70
ou biopoder, onde a vida passa a ser capturada e
                                                            
64 CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth
Maria (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2010, p. 165.
65 AMARAL, Augusto Jobim do. Entre serpentes e toupeiras: a cultura do controle na
contemporaneidade (ou sobre o caso do monitoramento eletrônico de presos no Brasil). In: Revista
Sistema Penal & Violência, vol. 2, n. 2, pp. 75-89 (jul/dez de 2010), p. 84.
66 AMARAL, Augusto Jobim do. A política da prova e cultura punitiva: a governabilidade inquisitiva do
processo penal brasileiro contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2014, p. 310-311.
67 Idem, p. 306.
68 Na impossibilidade de adentrar de forma mais profunda no tema, torna-se necessário destacar que a
economia política, na forma do liberalismo e do neoliberalismo, é para Foucault a forma de saber que dá
suporte a essa nova razão governamental. Para mais detalhes, principalmente sobre suas noções e
objetivos de autolimitação do governo, ver FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São
Paulo: Editora Martins Fontes, 2008, pp. 19-24.
69 Foucault entende a palavra governamentalidade como “o conjunto constituído pelas instituições, os
procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem
específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma
de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em
segundo lugar, por “governamentalidade” entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente,
não parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar
de “governo” sobre todos os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um lado, o
desenvolvimento de toda uma séria de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o
desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por “governamentalidade”, creio que se deveria
entender o processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que
nos séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco “governamentalizado”
(FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-1978).
São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 143-144).
70 Edgardo Castro trata de pontuar as diversas facetas do que se pode entender por biopolítica na obra
foucaultiana: “Há que entende por “biopolítica” a maneira pela qual, a partir do século XVIII, se buscou
racionalizar os problemas colocados para a prática governamental pelos fenômenos próprios de um
conjunto de viventes enquanto população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raça. Essa nova forma
de poder se ocupará, então: 1) Da proporção de nascimentos, de óbitos, das taxas de reprodução, da
fecundidade da população. Em uma palavra, da demografia. 2) Das enfermidades endêmicas: da atureza,
29 
 

potencializada quando adentra nos cálculos governamentais. Se na Idade Média o poder


soberano possuía o direito de vida e morte sob a forma do fazer morrer ou deixar viver71,
para Foucault, a partir da Idade Clássica, o poder toma um rumo que se exerce de maneira
inversa, sob a forma do biopoder, ou seja, no fazer viver ou deixar morrer72. Enquanto o
primeiro expõe a vida à morte, o segundo se exerce de maneira positiva sobre a vida,
buscando administrar e aumentar suas forças, para distribuí-las em um campo de valor de
utilidade73.

Ao contrário dos processos disciplinares onde o cidadão era o alvo potencial, essa
nova arte de governar com mecanismos de segurança tende a buscar meios que sujeitem
– a partir dos processos biológicos – todos os indivíduos. Trata-se de um poder que tenta
captar o maior número de seres vivos possíveis e não mais somente a anátomo-política
do corpo humano74. Nesse sentido, enquanto a disciplina é centrípeta, ou seja, isola um
espaço, determina um segmento, concentra, centra, encerra, a fim de que seus
mecanismos possam funcionar de forma plena e sem limites 75 , os dispositivos de
segurança são centrífugos, quer dizer, deixa com que os indivíduos circulem entre
diversos circuitos dentro da sociedade, tendendo perpetuamente a ampliar-se 76 . Se
podemos ver na prisão o meio mais expressivo de um poder disciplinar, as alternativas
penais acima descritas – e sua forma de expansão do mecanismo penal a indivíduos sem

                                                            
da extensão, da duração, da intensidade das enfermidades reinantes na população; da higiene pública. 3)
Da velhice, das enfermidades que deixam o indivíduo fora do mercado de trabalho. Também, então, dos
seguros individuais e coletivos, da aposentadoria. 4) Das relações com o meio geográfico, com o clima. O
urbanismo e a ecologia”. Em relação à disciplina: “Se compararmos uma e outra forma de poder, podemos
diferenciá-las da seguinte maneira: 1) Quanto ao objeto: a disciplina tem como objeto o corpo individual;
a biopolítica, o corpo múltiplo, a população, o homem como ser vivente, pertencente a uma espécie
biológica. 2) Quanto aos fenômenos considerados: enquanto as disciplinas consideram os fenômenos
individuais, a biopolítica estuda fenômenos de massa, em série, de longa duração. 3) Quanto aos seus
mecanismos: os mecanismos das disciplinas são da ordem do adestramento do corpo (vigilância
hierárquica, exames individuais, exercícios repetitivos); os da biopolítica são mecanismos de previsão, de
estimativa estatística, medidas globais. 4) Quanto à finalidade: a disciplina se propõe obter corpos
economicamente úteis e politicamente dóceis; a biopolítica persegue o equilíbrio da população, sua
homeostase, sua regulação”. (CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault – Um percurso pelos seus
temas, conceitos e autores. Tradução Ingrid, Muller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, pp.
59-60.).
71 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 3ª ed. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 146.
72 Idem, p. 149.
73 CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Tradução Beatriz de Almeida Magalhães. 1ª ed. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2014, p. 103.
74 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 3ª ed. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 150.
75 FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-
1978), p. 58.
76 Idem, p. 59.
30 
 

que esses permaneçam segregados – é a maneira como encontrou o sistema penal


brasileiro de, ao mesmo tempo que mantém os indivíduos ligados às suas engrenagens
por meio das condições estabelecidas na alternatividade à prisão, faça-os circular.
Portanto, verdadeiro mecanismo securitário.

Outro aspecto importante a ser destacado é que essas práticas de poder descritas
(soberania, disciplina e segurança) não se anulam, mas antes se reforçam e participam da
evolução e desenvolvimento de outras77. Por exemplo: a instituição, através de medidas
legislativas, das alternativas penais no Brasil, trata-se de formas legais regulando
mecanismos de segurança. Esses, ao mesmo tempo, reforçam os dispositivos disciplinares
– no caso brasileiro a prisão – ao possibilitarem a revogação das alternativas em caso de
descumprimento e o direcionamento do indivíduo ao encarceramento.

Diante disso, é cediço que os dispositivos de segurança criam uma liberdade


programada, artificial, onde os indivíduos não estão em oposição ao poder, mas fazem
parte de cálculos que esse produz. Fundamentalmente, busca-se no liberalismo essa forma
de fazer viver, já que ele não aceita a liberdade, mas está constantemente preparado para
fabricá-la78.

Em linhas gerais, pode-se dizer que a liberdade de comportamento no regime


liberal, na arte liberal de governar, essa liberdade de comportamento está
implicada, é convocada, tem-se necessidade dela, vai servir de reguladora, mas
para tanto tem de ser produzida e tem de ser organizada. Logo, a liberdade no
regime do liberalismo não é um dado, a liberdade não é uma região já pronta
que se teria de respeitar, ou se o é, só o é parcialmente, regionalmente, neste
ou naquele caso, etc. A liberdade é algo que se fabrica a cada instante. O
liberalismo não é o que aceita a liberdade. O liberalismo é o que se propõe a
fabricá-la a cada instante, suscitá-la e produzi-la com, bem entendido, [todo o
conjunto] de injunções, de problemas de custo que essa fabricação levanta79.

Frente a isso, enxerga-se serem as alternativas penais – como liberdades forjadas


que são – criadas no Brasil como tecnologias do corpo 80 que legitimam a atuação e
reforçam a prisão como meio central de resposta do Estado a práticas consideradas
politicamente criminosas. Por sua vez, não se pode perder de mira que a responsabilidade
do crescimento de pessoas presas e controladas à distância pela malha punitiva não está
somente nos projetos político-criminais, nos discursos criminológicos ou nas próprias

                                                            
77 Idem.
78 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008, p. 88.
79 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008, p. 88.
80 SIMON, Jonathan. Punição e as tecnologias políticas do corpo. Tradução de Leandro Ayres França.
In: Revista Sistema Penal & Violência, vol. 5, n. 2, pp. 219-251 (jul/dez de 2013).
31 
 

leis, que criam alternativas à prisão, mas pela densificação do punitivismo junto aos atores
que diariamente colocam em prática o sistema punitivo81.

Portanto, a reversibilidade do encarceramento em massa, e da produção de dor e


sofrimento que esse traz, está na recuperação do desejo de liberdade82 pelos atores do
sistema penal, ao tomar consciência de que a prisão não só não diminui a criminalidade
– assim como as alternativas penais não reduzem os índices de segregação no Brasil –
como a potencializa. É necessário vomitar a serpente fascista (e criminalizadora) que há
muito habita os corpos dos operadores do sistema penal83, da esquerda punitiva84 e dos
apoiadores de grandes operações político-midiáticas-judiciárias que visam extirpar a
corrupção sistemática de um país continental como o Brasil, quando essas, em outras
experiências, já demonstraram seu fracasso – e sucesso, na lógica inversa, com a expansão
do poder punitivo85.

Por certo que a crença na pena acaba por abarrotar os presídios e expandir o
controle penal sobre a subcidadania brasileira, legitimando a atuação de determinadas
agências, às quais se operacionalizam nas margens da legalidade. E quando a violência
disponível aos agentes estatais antes legítima se torna ilegítima, os crimes de Estado vêm
à tona, e passam a violar sistematicamente direitos inerente à pessoa. E é sobre esse tema
que o próximo tópico irá se debruçar.

                                                            
81 CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento, p. 166.
82 KARAM, Maria Lúcia. Recuperar o desejo da liberdade e conter o poder punitivo. Rio de Janeiro:
Editora Lumens Juris, 2009.
83 CASARA, Rubens R.R. Apresentação. In: TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista. 1ª ed.
Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 11.
84 KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, ano
1, número 1, 1º semestre de 1996.
85 PAVARINI, Massimo. O instrutivo caso italiano. In: Discursos Sediciosos – crime, direito e
sociedade. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1996.
32 
 

2. Crimes praticados pelo Estado e o extermínio sistemático de pobres no Brasil

Delimitada em parte a estrutura em que opera um Estado encarcerador no Brasil,


impondo penas e alternativas penais como forma de contenção aos excluídos do sistema
socioeconômico, importa ao presente trabalho trazer o modus operandi em que a violência
supostamente legítima operada por instituições formais através da pena ultrapassa seus
limites e se torna ilegítima. Quer dizer, quando os agentes estatais, por meio do aparato
repressivo e militarizado que o Estado disponibiliza para impor a pena, violam
sistematicamente direitos humanos da população (que, a rigor, deveria proteger...).

Foi no século XX, em situação de guerras, que a humanidade testemunhou a


capacidade que os Estados tinham de aniquilar a vida humana de forma sistemática, mas
mais do que isso, grupos e sociedades inteiras, sob justificativas escusas e amorais ou às
vezes por standards vazios. Um certo ineditismo não só no aparato técnico-industrial
utilizado para produzir, em escalas burocráticas, corpos sem vida, mas também de
desumanidade e degradação no trato com o próximo, simplesmente por, em certas
ocasiões, esse pertencer a determinado grupo, religião ou nacionalidade86. Nesse sentido
é que o próprio holocausto perpetrado pelos alemães foi único em dois sentidos: primeiro
porque entre os outros casos históricos de genocídio, ele é moderno; segundo, porque ele
conjuga diversos fatores modernos que, separados, tornam-se normais – antissemitismo
radical (capaz do extermínio); transformação do antissemitismo em política de um Estado
centralizado; Estado com imenso e eficiente aparato burocrático; um “estado de
emergência” sem o qual poderia ter sido opostas certas resistências; por fim, a passividade
do povo em relação ao destino dos judeus87.

Tomando como marco a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), é visível a


preocupação dos Estados – mormente os vencedores – na construção de todo uma
maquinaria punitiva internacional88 (e também internacional punitiva) que visasse coibir

                                                            
86 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Justiça de transição: da ditadura civil-militar ao debate
justransicional: direito à memória e à verdade e os caminhos da reparação e da anistia no Brasil. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015, p. 28.
87 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar,
1998, p. 118.
88 Paralelamente a esse movimento criminalizador, surgia a Organização das Nações Unidas (ONU), em
sobreposição à ineficiente Liga das Nações surgida após a Primeira Guerra Mundial (1914-1919),
entidade intergovernamental que até os dias de hoje (não sem ter suas potencialidades captadas pelos
países centrais) busca a cooperação entre os países para consolidar a paz e o desenvolvimento mundial.
33 
 

novas investidas dos Estados contra populações estrangeiras e nacionais que culminassem
na humilhação, agressão e aniquilação da forma humana. Traços de uma época
(inolvidável) em que se chegou a questionar: é isto um homem?89.

Frente a tais desafios, e logo finalizada a Segunda Guerra Mundial, o Acordo de


Londres de 1945, pacto firmado entre as potências vitoriosas, deu origem ao Tribunal de
Nuremberg, instalado para julgar os crimes contra a humanidade cometidos pelos países
derrotados do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Incentivado pelas elites, o Tribunal de
Nuremberg recebeu competência para julgar três tipos de crimes: o crime contra a paz,
que consiste em desencadear ou prosseguir uma guerra de agressão ou uma guerra feita
de violação aos tratos e medidas internacionais; os crimes de guerra, decorrentes de
violações aos costumes da guerra; e, por último, os crimes contra a humanidade, definido
como o assassinato, extermínio, sujeição à escravatura, deportação ou qualquer ato
desumano cometido contra populações civis ou perseguições por motivos políticos,
raciais ou religiosos, sendo que tais atos ou perseguições devem ser cometidos na
sequência de um crime contra a paz ou de um crime de guerra ou ainda estarem ligados a
esses crimes90 - princípios definidos no artigo 6º do Acordo de Londres.

No entanto, com o início da Guerra Fria (1945-1991), para além dos julgamentos
de Eichmann em Jerusalém (1961) e de Klaus Barbie (1987) em Lyon, estancaram-se os
projetos de uma justiça internacional penal e os procedimentos do Tribunal de Nuremberg
foram encerrados91. Devido ao que se sucedeu principalmente durante o regime nazista,
com a produção em escala da morte de judeus, homossexuais, negros, doentes, deficientes
físicos, entre outros, essa nova cooperação internacional penal vai tentar capitular o
homicídio massivo praticado pelos Estados. Tal fato levou a Raphael Lemkin a criar o

                                                            
89 Nos campos de concetração nazistas, mas tomando como paradigma Auschwitz, o que estava em jogo
era ser ou não humano, já que uma das estratégias dessa forma de exceção de um sistema penal mortífero
e de domínio total era despir seus prisioneiros de toda e qualquer proteção, começando pela
nacionalidade. Segundo Hannah Arendt: “O primeiro passo essencial no caminho do domínio total é
matar a pessoa jurídica do homem. Por um lado, isso foi conseguido quando certas categorias de pessoas
foram excluídas da proteção da lei e quando o mundo não totalitário foi forçado, por causa da
desnacionalização maciça, a aceitá-los como os fora-da-lei; logo a seguir, criaram-se campos de
concentração fora do sistema penal normal, no qual um crime definido acarreta uma pena previsível
(ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução Roberto Raposo – São Paulo: Companhia das
Letras, 1989, p. 498). Condição essa que leva à pergunta realizada por Primo Levi, judeu italiano que lá
viveu e pôde testemunhar sobre o que viu em seus relatos (LEVI, Primo. É isto um homem?. Tradução de
Luigi Del Re – Rio de Janeiro: Rocco, 1988).
90 GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar: por uma justiça internacional.
Instituto Piaget: Lisboa, 2002, p. 24.
91 Idem, p. 28.
34 
 

conceito criminalizador primário de genocídio, insculpido na Convenção para a


Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio92 (1948).

Alia-se a essa senda criminalizadora global o Estatuto de Roma, firmado em 1998,


o qual estabelece o Tribunal Penal Internacional, que tem sua competência delimitada aos
crimes de genocídio, aos crimes contra a humanidade, aos crimes de guerra e aos crimes
de agressão. Não muito diferente da competência do Tribunal de Nuremberg (crimes de
paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade), o que se estabelece como elemento
novo é a capitulação do crime de genocídio. Interessante também é o detalhamento dos
crimes contra a humanidade, que serão atos cometidos contra uma população civil de
forma sistemática ou generalizada em que hajam: homicídios, extermínio, escravidão,
deportação ou transferência forçada de uma população, prisão ou outra forma de privação
da liberdade, tortura, agressão sexual, desaparecimentos forçados, apartheid, entre
outros.

Portanto, fica clara a notória importância do Direito Internacional ao se falar de


crimes praticados pelo Estado, na medida em que, a partir da segunda metade do século
XX, como visto, instâncias formais de poder são criadas para reivindicar o caráter
garantidor dos direitos do homem. O eco daqueles que sucumbiram movimentaram as
engrenagens estatais para que as atrocidades como as vistas não voltassem a ocorrer. Para
Zaffaroni, a importância do direito penal internacional na prevenção aos crimes massivos
praticados pelo Estado é que há um esforço em resgatar o grupo alvo de tais práticas como
pessoas, tornando-as acobertadas por direitos inerentes à humanidade, ou seja, se
internamente, dentro do Estado, grupos são perseguidos e massacrados, poderia o direito
internacional contribuir com a proteção deles ao mantê-los como sujeitos de direitos,
ainda que no plano internacional93.

O século passado marcou-se pelo instinto genocida com que líderes políticos
(fascistas, comunistas...) trataram sua população civil e Estados perpetraram massacres
com populações de outros países, reproduzindo os instintos colonialistas e

                                                            
92 Segundo a definição constante na própria Convenção, se entende por genocídio qualquer dos atos
mencionados a seguir, perpetrados com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional,
étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade
física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência
que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os
nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de menores do grupo para outro grupo.
93 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crímenes de masa. Prólogo de Eduardo S. Barcesat. 1a. ed. Ciudad
Autonoma de Buenos Aires: Ediciones Madres de Plaza de Mayo, 2010, p. 38.
35 
 

neocolonistalistas. Segundo uma conta de Zaffaroni, com base em Wayne Morrison, é


assombrosa a contabilidade de cadáveres do século passado: Congo (1885-1908)
8.000.000; África do Sul (1904), 80.000; Armênia (1915-1922), 1.500.000; Ucrânia
(1918-1922): entre 100.000 e 250.000; na Ucrânia (1932-1933) por fome, ainda que com
dificuldades de cálculo, alguns autores dizem superar 30.000.000; na União Soviética
(dissidência política) (1936-1939), 500.000; na Europa (judeus) (1933-1945): 6.000.000
(mais 5.000.000 de ciganos, homossexuais, descapacitados e outros); Indonésia (1965),
600.000; em Burundi (hutus) (1965-1972): entre 100.000 e 300.000; em Bangladesh
(1971): 2.000.000; no Camboja (1975-1979): 2.000.000; no Timor (1975-2000): 200.000;
em Ruanda (tutsis) (1994): 800.000. Contabilizando, se chegaria, em suma, ao redor de
65.000.000 de cadáveres94.

No entanto, nem todos esses cadáveres produzidos entram no conceito de


genocídio, o que traz um grande problema com essa formulação. Segundo Zaffaroni, o
conceito de genocídio criado por Raphael Lemkin não é hábil para uma perspectiva
criminológica dos cadáveres produzidos pelos homicídios sistemáticos praticados pelos
agentes do Estado. Primeiro, há uma limitação objetiva no sentido dado à palavra: não
abarca os grupos políticos – fruto das exigências da União Soviética que buscava se furtar
a responder aos massacres stalinistas95. O segundo elemento é subjetivo: para configurar
um genocídio, é necessário que haja a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo
(fato que afasta ações do Estado que, por exemplo, visam aterrorizar uma população)96.

Diante disso, Zaffaroni propõe a utilização do termo massacre, o qual se configura


em toda prática de homicídio de um número considerável de pessoas por parte de agentes
de um estado o de um grupo organizado com controle territorial, de forma direta ou com
clara complacência desses, levada a cabo em forma conjunta ou continuada, fora de
situações reais de guerra que importam forças mais ou menos simétrica97. Um conceito
criminológico, portanto, e não mais jurídico. Para esse autor, a violência na sociedade é
fruto de uma busca em conjunto por acumulação de poder, bens e riqueza, a qual vem
sendo acelerada pelo capitalismo. Os crimes de massa acontecem quando a vingança
canalizada sobre determinado bode expiatório se reduz e o sistema penal entra em crise,

                                                            
94 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos: Conferencias de criminologia cautelar, p.
420.
95 Idem, p. 424.
96 Idem, p. 425.
97 Idem, p. 431.
36 
 

de modo que a execução de determinado grupo se torna viável como modo de restabelecer
a legitimidade do poder de punir, o qual receberá os méritos por – através do crime
massivo – reestabelecer uma suposta paz98.

Nesse sentido, há muito que Zaffaroni alerta para as mortes perpetradas pelos
sistemas penais latino-americanos de forma cotidiana, registradas nas mais diversas áreas
que indiretamente ou diretamente estão ligadas às políticas estatais, afirmando tratar-se
de um genocídio em ato99. Uma máquina de moer gente, onde diariamente, em conta-
gotas, vidas são retiradas por agentes estatais com a complacência não só do poder público
– até porque ali reside a cota de assassinatos que possibilitam a outros viver bem – mas
também da sociedade civil. Um imenso necrotério ao céu aberto, onde jaz uma parcela
da subcidadania que se não é enjaulada, é morta por um Estado penal massacrante.
Na realidade brasileira, não é difícil encontrar chacinas praticadas por agentes do
Estado. Num exercício de reflexão que se impõe somente ao contexto democrático (após
a Constituição de 1988) exemplos transbordam: Carandiru, em 1992 (111 mortos);
Candelária, em 1993 (08 mortos); Vigário Geral, em 1993, (21 mortos); São Paulo, em
2006 (500 mortos); Grande São Paulo, em 2015 (23 mortos); Costa Barros, em 2015 (05
mortos); Londrina, em 2016 (10 mortos); Porto Alegre, em 2016 (04 mortos). Sem contar
os recentes casos emblemáticos, como o desaparecimento do pedreiro Amarildo Dias de
Souza (2013), morto após ser torturado na Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Além
dele, Cláudia Silva Ferreira (2014), arrastada por um camburão e morta, posteriormente,
com um tiro dado pela polícia.
Nesse sentido, para que não se enxergue essa violência ilegítima de forma clara,
os crimes de Estado, adequando-se aos valores sociais, são protegidos por técnicas de
neutralização que garantem sua efetividade e continuidade. Na esteira da teoria da
associação diferencial de Sutherland100, Sykes e Matza101 elaboraram algumas diretrizes
que notaram serem usadas pela delinquência juvenil para justificar e racionalizar seus
crimes, sendo que para eles tais técnicas também ensinadas e aprendidas. Quer dizer,
tratam-se de elementos que, sob os olhos daqueles que cometem crimes comuns, suas

                                                            
98 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crímenes de Masa, p. 70.
99 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal,
p. 123.
100 SUTHERLAND, Edwin. H. Crime de colarinho branco. Versão sem cortes. Tradução Clécio Lemos.
– 1.ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2015.
101 SYKES, Gresham M; MATZA, David. Techniques of Neutralization: a theory of Delinquency.
American Sociological Review, volume 22, 1957, pp. 664-670.
37 
 

atitudes estão justificadas. No âmbito dos crimes de Estado, tais justificações e


racionalizações encontram-se mais claras.

Os agentes dos crimes do Estado quase sempre se apresentam como moralistas


e defensores da ordem e dos bons costumes. Verdadeiros líderes morais. Os
crimes do Estado, no bojo dos seus processos de neutralização, não se
contentam simplesmente em evitar que ocorram danos à autoimagem dos
ofensores, mas sim em promover a exaltação dos atos que caracterizam,
transformando os agentes em heróis ou mártires. Isto ajuda a explicar porque
os autores dessas ações não percebem a sua natureza aberrante e porque se
transformam em árduos defensores das suas atitudes102.

As técnicas de neutralização são cinco: negação da responsabilidade; negação do


dano; negação da vítima; condenação dos condenadores; apelo às autoridades superiores.
E talvez um dos desafios atuais resida justamente em anular/desativar esses dispositivos
neutralizantes, fazendo com que a população enxergue a barbárie resultante da violência
ilegítima da intervenção do sistema penal na sociedade – através da polícia, sempre
renovada pelas baterias criminalizantes – para que, na pista de uma memória política,
fruto da lembrança daqueles que sucumbiram ao serem acertados pela flecha do progresso
do poder punitivo, as vozes antes emudecidas sejam reconhecidas e inseridas no âmbito
democrático a partir da visibilidade da violência perpetrada sobre os oprimidos de sempre.
Nesse sentido, a negação da responsabilidade ocorre quando se projetam
situações de extrema necessidade, como se criadas ou desenvolvidas pelos grupos que se
pretende aniquilar. A partir de uma emergência que possibilita ao Estado utilizar de
violência extra contra uma parcela da população, essa técnica contribuiu para justificar
estar-se erradicando um mal na sociedade e, principalmente, de se estar combatendo um
grupo com amplos poderes103.
Tal situação é de fácil verificação ao se analisar a história do poder punitivo e as
essencializações que recaíram, inicialmente, nos séculos XII e XIII, sobre as bruxas e os
hereges, perseguidos e exterminados, assim como, mais recentemente, nas ditaduras
latino-americanas sobre o comunista, os quais foram sequestrados, torturados e mortos
por agentes estatais. Atualmente, como já demonstrado, a configuração atual do sistema
penal está direcionada – em um vale-tudo neutralizado pelos ferrenhos críticos dos
direitos humanos, pela dignidade atrelada ao modo consumista de viver e pelos meios de

                                                            
102 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Crimes do Estado e Justiça de Transição. Sistema Penal &
Violência. Porto Alegre, volume 2 – número 2 – p. 22-35, julho/dezembro, 2010, p. 27.
103 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos: Conferencias de criminologia cautelar, p.
453.
38 
 

comunicação em massa – aos criminalizados da subcidadania produzida pelo modelo


neoliberal de mercado.
Efetivamente, papel fundamental cumpre a mídia, não só na construção do
inimigo da sociedade, como já aduzido, mas também na potencialização da amnésia sobre
determinados casos. Quer dizer, uma dessensibilização operada através do desligamento
dos sensores de humanidade quando se apresentam as mortes de pessoas com poder
socioeconômico elevado como tragédia social enquanto a de subcidadãos como
confronto com a polícia104. Falta de sensibilidade que leva à invisibilidade de direitos,
afinal só reivindicam direitos quem é visível no campo do debate democrático105.
Além disso, a negação do dano também é elemento que visa mitigar os efeitos
dos crimes de Estado, neutralizando-os. Ela ocorre quando se nega a lesão ou se tenha
diminuí-la, justificando-a. O papel de uma memória política, nesse caso, possibilitaria se
desfazer de uma empatia com os vencedores de sempre da história, escovando-a a
contrapelo106 e opondo-lhe a versão dos oprimidos e a luta contra a corrente. Para tentar
ilustrar a negação do dano na realidade, analisa-se a problemática dos autos de resistência
da polícia (plataforma jurídica que atesta a morte dos indignos de viver). Zaccone
demonstra que no Rio de Janeiro o extermínio da juventude negra e pobre é chancelada
pelas instâncias formais do sistema penal através da figura dos autos de resistência, já
que em sua esmagadora maioria, a investigação sobre como ocorreu a morte do
vitimizado sequer adentra no âmbito processual. A racionalização mais interessante
apresentada pela polícia – e aceita com facilidade pelo Ministério Público e pelo
Judiciário – é a legítima defesa, corroborando a tese apresentada pelos meios de
comunicação de massa em que a morte do pobre se dá no confronto, mesmo quando todas
as provas (como um tiro na nuca ou a queima-roupa) demonstram o contrário107.
Ainda, os crimes de Estado buscam a negação da vítima. Quer dizer, tenta-se
demonstrar ser a vítima pessoa nociva à sociedade, rotulando-a como criminosa,
comunista, terrorista ou qualquer outra forma de inimigo social capaz de atacar a ordem
e os valores protegidos pela sociedade. Ainda ilustrativo é o exemplo dos autos de
                                                            
104 CAPRIGLIONE, Laura. Os mecanismos midiáticos que livram a cara dos crimes das polícias
militares no Brasil. In: Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação.
Bernardo [et al] – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2015, p. 57.
105 Idem, p. 57.
106 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin – 8ª Ed.
Revista – São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v.1), pp. 241-252.
107 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na
cidade do Rio de Janeiro, pp. 141-205.
39 
 

resistência. Para justificar a morte de determinadas pessoas, a polícia busca a


desqualificação da vítima através da apresentação de antecedentes criminais ou de
depoimentos de parentes e vizinhos que sabiam de algum elemento estigmatizante de seu
passado108. Com isso, faz-se com que a vítima adentre de forma irrevogável campo de
exceção, onde qualquer ato contra sua pessoa está justificado.
Já a condenação dos condenadores se pauta na criminalização de pessoas que
buscam denunciar os crimes praticados pelo Estado. Nesse caso, não há como não referir
a criminalização que os movimentos sociais sofrem desde sempre, seja em regimes
ditatoriais ou democráticos. Percebe-se que as ações e mobilizações dos movimentos
sociais, e também seus líderes, são comumente apresentados como baderneiros,
criminosos, radicais e violadores da lei109. Casos que se estendem aos defensores dos
direitos humanos, os quais são vistos pelo senso comum como defensores de bandidos110.
Por último, o apelo às autoridades superiores se expressa na justificativa dos
agentes públicos em estarem apenas cumprindo ordens. Por óbvio, não se pode negar que
os crimes de Estado, pela vinculação aos poderes estatais, possuem um toque
organizacional que inclusive oferece a segurança e o aparato necessário para que sejam
cometidos. Esse argumento foi amplamente utilizado pelos responsáveis pela solução
final nazista, os quais alegavam correr risco de vida caso não descumprissem as ordens
do Führer.
Assim, resta claro que a base dos crimes praticados pelo Estado está na cultura
punitiva em que o sistema penal está calcado e operacionaliza sua legitimidade. A dupla
face da violência legítima através da pena e da violência ilegítima através dos crimes
contra a humanidade, mormente os massacres, coexistem em tempos democráticos nos
espaços destinados irrevogavelmente à exceção. Não se está averiguando um sistema cujo
objetivo principal seria apenas a aplicação da pena, tendo-se como anomalia os crimes
praticados por ele. Na verdade, a relação intrínseca apontada no início deste capítulo entre
pena e crimes de Estado se perpetua no estado de exceção como estratégia permanente de
governo.

                                                            
108 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na
cidade do Rio de Janeiro, pp. 141-205.
109 SILVA FILHO, José Carlos Moreira. Criminologia e alteridade: o problema da criminalização dos
movimentos sociais no Brasil. In: GAUER, Ruth Maria Chittó. Criminologia e sistemas jurídico-penais
contemporâneos II. – Dados eletrônicos – 2. ed. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011, p. 118.
110 Idem, p. 119.
40 
 

2 DA EMERGÊNCIA DA POLÍCIA MODERNA À POLÍCIA BRASILEIRA

Nesse contexto, difícil é apontar o momento exato de surgimento da polícia como


instituição moderna, já que sua operacionalidade está sempre vinculada a determinadas
formas de saber-poder, preferindo-se falar em emergência, na medida em que, a partir de
determinado contexto histórico, as funções a que se atribuem a essa instituição irão ser
modificadas de forma radical. Mas não se pode olvidar que polícia, nos moldes como a
se conheceu e se conhece, dará seus primeiros passos por volta do século XVI, ou seja,
trata-se de uma instituição que conta com aproximadamente quatrocentos anos.

Partindo dessas premissas, se tentará, em primeiro plano, fazer uma história da


polícia brasileira, demonstrando desde os tempos de Getúlio Vargas seu papel
fundamental nas relações de poder, em que um projeto totalitário, advindo de uma
veneração pelo fascismo ascendente na Europa, se firmava como forma de governo. Além
disso, busca-se esmiuçar as principais alterações legislativas (como a Lei de Segurança
Nacional) firmadas na ditadura civil-militar brasileira (1964-195), onde houve uma
militarização contundente que se expressa até os dias de hoje, assim como números que
demonstrem uma operacionalidade brutal para com os inimigos elegidos pelo Estado à
época. Por fim, aportando finalmente em sua operacionalidade democrática (pós-1988),
tenta-se tornar mais claro os motivos pelos quais a polícia utiliza seu aparato bélico contra
a juventude negra e pobre do país.

2.1 Polícia entre soberania e arte de governar: controle, higienismo e autoritarismo

Ao se colocar de lado toda a construção teórica acumulada em torno da formação


da soberania – e, particularmente, do soberano – nos últimos séculos, pode-se
inicialmente localizar a evolução da polícia entre o absolutismo, pautado no saber
político-jurídico, e a moderna arte de governar, impregnada pelo saber político-
administrativo e que vem construída sobre o edifício teórico da ideia de governo111. A

                                                            
111 CAMPESI, Giuseppi. Genealogia della publica sicurezza: teoria e storia del moderno dispositivo
poliziesco. Ombre corte: Verona, 2009, p. 58.
41 
 

diferença elementar entre essas duas formas de poder estaria em que enquanto na
soberania desenvolviam-se reflexões em torno da natureza da autoridade política e de sua
legitimidade, na ideia de governo, como novo paradigma político, tendia-se a tomar como
pressupostas as prerrogativas concedidas ao poder soberano, ocupando-se tão somente de
individualizar a correta modalidade de exercício dessa potência política e seus aspectos
materiais112.

Nesse sentido, a emergência de uma literatura em torno da razão de Estado113 vai


assumir papel preeminente na limitação do absolutismo político, consolidando a crítica
liberal acerca dos poderes do soberano114. Se no modelo jurídico-político da soberania a
polícia cumpria o papel de interdição ao cumprir a lei emanada sobre os indivíduos-
súditos, já na arte de governar ela agirá sobre uma população, não dependendo mais da
ética do soberano e de suas virtudes, mas pautando-se pelo mercantilismo, pelo
cameralismo, a estatística e propriamente de teorias da polícia 115 – desenvolvidas
principalmente na Inglaterra, na França e na Alemanha.

Foi com o surgimento da população, como categoria política a partir do século


XVIII, que o poder soberano (que se pautava, preponderantemente, por mecanismos
jurídico-legais e disciplinadores sobre seus súditos) vai, aos poucos, cedendo lugar, não
por completo, à arte de governar. Com a abertura das cidades (antes muradas) e a
necessidade de circulação (de mercadorias e pessoas), mecanismos de segurança
começam a ter preponderância. Foucault demonstra que se antes as medidas tomadas pelo
poder soberano visavam à multiplicidade de indivíduos – assim tomados e vistos como
súditos – a partir do século XVIII é no nível da população que as ações econômico-
políticas do governo passarão a se dar, vez que a população se torna o foco central. Os
exemplos da escassez alimentar e das epidemias trazidos por Foucault são bastante
ilustrativos para demonstrar o giro de um poder engessado em medidas repressivas (leis,
decretos, ordens, etc.) para um poder em que a dinâmica da sociedade (e principalmente

                                                            
112 Idem, p. 67.
113 Em Segurança, Território e População, curso dado por Michel Foucault, esse delineia o surgimento
da ideia de razão de Estado a partir do século XVII, podendo-se dar destaque para os dois conjuntos
tecnológicos dessa arte de governar: o diplomático-militar e a polícia – explorados pelo filósofo francês
nos três últimos capítulos. Tudo isso, ver em: FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população:
curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
114 CAMPESI, Giuseppi. Genealogia della publica sicurezza: teoria e storia del moderno dispositivo
poliziesco, p. 69.
115 Idem, p. 69.
42 
 

da população) passar a ser a base de todas as ações governamentais, pautadas em


mecanismos de segurança.

A escassez alimentar era vista como um flagelo para a população, como crise do
governo ou também como má fortuna – numa visão filosófica da desgraça política que se
dá na falta de alimentos116. Para tanto, o soberano dispunha de todo um aparato jurídico
e disciplinar para preveni-la: limitação de preços e do direito de estocagem, limitação de
exportação etc.. Trata-se de um sistema de antiescassez da época mercantilista, de modo
que todas essas proibições e impedimentos fariam com que os cereais fossem colocados
no mercado o mais depressa possível, evitando a fome generalizada. Nota-se que o
soberano buscava, a partir de um acontecimento eventual (escassez alimentar) impor
disciplina e meios repressivos para prevenir ou até mesmo extirpar esse acontecimento, o
qual causava, de um lado, altos preços (devido à farta demanda) e, ao cabo, o que mais
trazia temor ao reino: revoltas na população117.

No entanto, a partir do século XVIII, uma nova teoria econômica, derivada da


doutrina fisiocrática passa a colocar como princípio fundamental do governo econômico
o princípio da liberdade de comércio e de circulação dos cereais118. Para Foucault, é
instalado um novo dispositivo de segurança, o qual iria na mão contrária do olhar para o
mercado interno, passando a ampliar a visão sobre as suas possibilidades de estabilização
nas épocas de escassez alimentar: a economia política. Se antes apenas vislumbrava-se a
relação escassez alimentar-carestia, agora se vislumbrará toda a cadeia de produção dos
cereais (e as condições climáticas, qualidade do terreno, abundância, escassez, colocação
no mercado, etc.) até o momento em que passa pelos seus protagonistas (internos e
externos) e chega aos consumidores, buscando entender como agem em determinada cada
situação.119

É isso tudo, isto é, esse elemento de comportamento plenamente concreto do


homo oeconomicus, que deve ser levado igualmente em consideração. Em
outras palavras, uma economia, ou uma análise econômico-política, que
integre o momento da produção, que integre o mercado mundial e que integre
enfim os comportamentos econômicos da população, produtores e
consumidores120.

                                                            
116 FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população, p. 41.
117 Idem, pp. 42-43.
118 Idem, p. 44.
119 Idem, p. 44.
120 Idem, p. 53.
43 
 

Ainda, nessa oposição disciplina/segurança, é interessante analisar como se dá a


normalização sobre a população em um e outro, voltando-se para aquela realizada por
Foucault acerca das epidemias. Segundo ele, a disciplina decompõe os elementos que são
suficientes para, de um lado, serem percebidos e, de outro, modificados. Ela otimiza as
sequências e coordenações; o modo como os gestos devem se encadear; como os soldados
devem ser divididos por manobras; como distribuir as crianças escolarizadas por
hierarquias e dentro de classificações. Em suma, demarca o normal do anormal, a partir
de um modelo ótimo que é construído em função de um certo resultado, consistindo a
normalização da disciplina em tornar as pessoas, os gestos, os atos, conforme esse
modelo, sendo normal aqueles que são capazes de se conformar com a norma e anormal
os que não são121.

Destaca-se que foi em Vigiar e Punir que Michel Foucault aprofundou – pois em
obras anteriores já havia tocado no tema122 – o estudo do poder disciplinar, a partir de
uma “história das práticas punitivas”, percorrendo desde o suplício até os meios modernos
de aprisionamento e caminhos da disciplina, os quais, segundo ele, através da pena, agirão
sobre o indivíduo para maximizar sua utilidade econômica123.

Diante disso, Foucault demonstra que, se antes se tentava impedir as doenças


impondo restrições – como aprisionamento em instituições médicas ou quarentenas –, a
partir do século XVIII, uma doença endêmico-epidêmico irá demonstrar que esses
procedimentos já não são mais aplicáveis: a varíola, como é chamada, será inoculada no
paciente, a fim de provocar-lhe seus efeitos no mundo real para que, junto de outras
circunstâncias, eles pudessem ser anulados. Não é difícil notar que a morfologia do
mecanismo de segurança aplicado à varíola é a mesma da escassez alimentar, vez que já
não se tenta mais impedir sua ocorrência através de dispositivos jurídico-legais ou
disciplinares (através de decretos e leis emanadas de um soberano), mas deixa que

                                                            
121 Idem, p. 75.
122 “O que é esse poder? A hipótese que eu queria propor é que existe em nossa sociedade algo como um
poder disciplinar. Com isso entendo nada mais que uma forma de certo modo terminal, capilar, do poder,
uma última intermediação, certa modalidade pela qual o poder político, os poderes em geral vêm, no
último nível, tocar os corpos, agir sobre eles, levam em conta os gestos, os comportamentos, os hábitos,
as palavras, a maneira como todos esses poderes, concentrando-se para baixo até tocar os corpos
individuais, trabalham, modificam, dirigem o que Servan chamava de ‘fibras moles do cérebro’. Em
outras palavras, creio que o poder disciplinar é certa modalidade, bem específica em nossa sociedade, do
que poderíamos chamar de contato sináptico corpo-poder” (FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico:
curso dado no Collège de France (1973-1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 50).
123 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009,
p. 118.
44 
 

ocorram como dados a serem prevenidos e, no limite, controlados. Deixa-se de se ver a


doença como algo reinante na sociedade – elemento de uma época, de uma cidade, de um
grupo – e passa-se a vê-la como fruto de um caso, algo individualizado e distribuída na
população circunscrita no tempo ou no espaço124.

Esses exemplos servem para demonstrar a principal diferença entre os efeitos


capilarizados da disciplina e as redes com que os mecanismos de segurança trabalham.
Não obstante, são capazes também de demonstrar a função da polícia nesses dois
modelos. Ela vai diferenciando-se na medida em que a arte de governar – com
dispositivos de segurança – uma população vai ganhando preponderância. Se num
primeiro momento, séculos XV e XVI, a palavra polícia conotava três sentidos – as
comunidades que eram regidas por autoridades públicas, os atos emanados por
autoridades públicas e os regimentos associados à maneira de governar – a partir do
século XVII a noção muda. A polícia passa a ser o esplendor do Estado, tendo como
função principal fazer crescer suas forças ao mesmo tempo que mantém a ordem interna.

A partir do século XVII, vai-se começar a chamar de “polícia” o conjunto dos


meios pelos quais é possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao
mesmo tempo a boa ordem desse Estado. Em outras palavras, a polícia vai ser
o cálculo e a técnica que possibilitarão estabelecer uma relação móvel, mas
apesar de tudo estável e controlável, entre a ordem interna do Estado e o
crescimento das suas forças.

A polícia, então, passa a exercer amplas funções na arte de governar,


preocupando-se com os jovens, com o comércio, com a caridade, com a saúde pública,
com os bens e constituindo-se, sobretudo, como uma função inerente do Estado, junto da
justiça, do exército e das finanças125. Estabelece-se como instituição que age sobre o
corpo dos indivíduos para que as disposições do poder soberano e dos aparatos
disciplinares emanados à sociedade funcionem: opera desde o sistema antiescassez até a
segregação de pessoas consideradas doentes, tendo como forma de aplicação da disciplina
(e docilização de corpos) o meio prisional. O objetivo da polícia, em suma, será o controle
e a responsabilidade pelas atividades dos homens, já que essas atividades poderiam
constituir um diferencial no desenvolvimento das forças do Estado126.

                                                            
124 FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população, p. 78-9.
125 Idem, p. 431.
126 Idem, p. 433.
45 
 

É interessante notar que a polícia não é o soberano agindo através da justiça, mas
sim diretamente sobre seus súditos, através de decretos, regulamentos, proibições e
instruções. Não se trata do prolongamento da justiça. Trata-se, sobremaneira, da
governamentalidade do soberano como soberano: um golpe de estado permanente, agindo
em nome e em função de princípios com racionalidade própria, sem se moldar ou modelar
pelas regras estabelecidas pela justiça127.

Como antecipado, a partir das teses dos economistas do século XVII, um novo
saber é introduzido (economia política) que passa a ver uma natureza modificável na
população, não havendo mais necessidade de que tudo seja regulado.128 A liberdade, que
vai do comércio às cidades, passa a ser introduzida como elemento essencial para a arte
de governar ancorada nos mecanismos de segurança. Por óbvio, uma liberdade artificial,
organizada, regulada e fabricada a cada instante 129 . Portanto, não se busca mais a
regulação dos indivíduos, mas a gestão da população130.

Nessa virada, a função da polícia, antes regulamentar, passa a ser a de eliminar as


possibilidades de que se produzam certas desordens. O antigo projeto de polícia,
vinculado à regulamentação da vida, se desarticula e a repressão das desordens passa ser
sua nova e moderna função131. O que era objeto da polícia no século XVII – fazer as
forças do Estado crescer respeitando a ordem geral – acaba por ser orientado pelos
mecanismos da economia política e da gestão da população. Ao contrário das funções de
incentivo-regulação, a instituição policial passa, no século XVIII, a ter uma função
negativa, tentando fazer com que se diminua o máximo possível de desordens.

Assim, nota-se que para Foucault o surgimento e o desenvolvimento da polícia


vinculada às tecnologias de governo estão diretamente atrelados às formas de saber132 que
constituíam a sociedade, sendo bastante notável que quando a economia política, a partir

                                                            
127 FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população, p. 457.
128 Idem, p. 465.
129 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica, p. 88.
130 FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população, p. 474.
131 Idem, p. 475.
132 Ao mesmo tempo em que a polícia está atrelada às formas de saber, ela mesma, a partir do século
XIX, passará a ser central na formulação de novos saberes. A investigação policial, com a obrigatoriedade
por parte de delegados, governadores de departamentos e funcionários da polícia de, quando realizado o
envio de indivíduo para um lugar de detenção, formular um relatório sobre seu comportamento e suas
motivações, irão produzir uma forte relação entre poder-saber. Ou seja, todos os agentes do poder
passarão também a serem agentes de constituição de um saber (FOUCAULT, Michel. A sociedade
punitiva: curso no Collège de France (1972-1973). Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2015, p. 213).
46 
 

do século XVII, passa a ser preponderante na racionalidade das práticas de governo, suas
funções, que antes eram amplas e estavam vinculadas às noções de controle e
regulamentação das vidas que constituíam e elevavam as forças do Estado, passam a ser
de repressão e de mitigação de desordens, alterando inteiramente sua noção e assumindo
um sentido puramente negativo.

Essa entrada do liberalismo como racionalidade governamental, vai propor


Máximo Sozzo, não produzirá uma abolição da ideia ou sequer da prática da polícia. Na
verdade, pode-se identificar críticas às formas que a polícia assumiu durante os séculos
XVII e XVIII, buscando uma transformação liberal para uma nova polícia. A primeira
crítica identificada se relaciona, assim, com a característica totalitária da polícia, devido
à sua intervenção em diversas áreas da sociedade, em especial com respeito à economia
e sobre o indivíduo como “sujeito de interesses” (privados, econômicos, comerciais...).
Ou seja, a figura da polícia está diretamente associada à uma ideia de governo
excessivo133.

Nesse sentido, e com a forte influência das obras de Adam Smith, a prosperidade
e o bem-estar social são tidos como produtos de um “esforço natural” de cada indivíduo
transformado em comerciante, desde um resultado dos interesses privados guiados pela
“mão invisível” do mercado. Ao Estado, caberia apenas garantir a segurança interna e
externa e prover os serviços que nenhum indivíduo está interessado em proporcionar.
Pode-se identificar, nesse movimento, uma busca pela “minimização da polícia”134.

Uma segunda crítica liberal à velha polícia (dos séculos XVII e XVIII) insiste
em seu caráter totalitário, mas agora não sobre os interesses dos sujeitos, mas sobre o
respeito aos seus direitos, quer dizer, como “sujeito de direitos”. Nesse sentido, a lei
cumprirá papel central na construção do liberalismo como racionalidade governamental,
surgindo aqui a distinção (e, ao mesmo tempo, oposição) entre Estado de polícia e Estado
de direito: os membros da sociedade civil devem viver como sujeitos independentes ao
serem titulares de uma série de direitos individuais, sendo iguais entre a lei e livres para
seguir seus próprios interesses e se autodesenvolver135. Por essa visão, busca-se limitar o
poder do soberano, devendo esse restringir-se a assegurar igualdade e liberdade, assim

                                                            
133 SOZZO, Máximo. “Policía, gobierno y racionalidad: exploraciones a partir de Michel Foucault”. In:
SOZZO, Máximo. Inseguridad, prevención y policía. FLACSO: Equador, 2008, p. 247.
134 Idem, pp. 247-248.
135 Idem, p. 248.
47 
 

como os direitos fundamentais. O limite da soberania, pois, estaria dado pela lei e pelo
direito, notando-se uma forte tendência do liberalismo em submeter a esses as
intervenções policiais, caracterizando uma “legalização da polícia”136.

Por último, o liberalismo busca limitar a intervenção dessa nova polícia – não
mais vinculada à diversas funções estatais e agora submetida aos ditames das leis – à
função específica de repressão e prevenção dos delitos. Quer dizer, não houve somente
uma função negativa de se submeter a atividade policial ao direito, mas determinou-se
seu conteúdo. A missão dessa nova polícia será assegurar a aplicação da lei penal (law
enforcement), chegando-se a dizer na época que a ausência de delitos seria a maior prova
da eficiência dessa polícia. Tal fenômeno constitui o que Sozzo vai chamar de
“criminalização da polícia”137. Portanto, nota-se que uma polícia de cunho liberal estará
vinculada a ser submetida a essas três demandas: minimização, legalização e
criminalização.

Embora Foucault e Sozzo analisem essas novas funções da polícia em épocas,


localidades e ordenamentos diferentes, considera-se ser uma pista do que seria sua
atuação durante os mais diversos regimes que se instalam a partir do século XVIII, vendo-
se ser potencializada as funções de controle e repressão durante regimes totalitários ou
ditaduras enquanto que em contextos democráticos, torna-se determinante, como fator de
governabilidade de sistemas capitalistas no Ocidente, sua função de repressão.

Por sua vez, Gabriel Anitua corrobora com essa visão. O desenvolvimento dos
estados burgueses na Europa do século XVIII, principalmente na Inglaterra, pautou-se
pela burocratização dos segmentos estatais a partir de discursos disciplinares e utilitários.
Se no Ancién Régime era comum o açoite, a forca, a guilhotina, enfim, a pena de morte e
os suplícios, agora o sistema de produção instalado necessitará de corpos para manter as
fábricas funcionando. E para os excluídos e explorados com a situação, prisão e polícia
respectivamente138.

Não é nenhuma novidade que a prisão assume um novo protagonismo a partir da


revolução industrial. Ao invés de simples local de depósito de pessoas, a prisão passa a
ser o dispositivo reformador que impunha a disciplina necessária para que o progresso

                                                            
136 Idem, p. 248.
137 Idem, pp. 249-250.
138 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução Sérgio Lamarão.
Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008, p 202.
48 
 

moral da pessoa fosse efetivado, dando-lhe uma utilidade no sistema capitalista liberal
nascente. Nesse sentido, a tentativa de criar um modelo eficiente de punição por Jeremy
Bentham, através do denominado panóptico139, é sintomática. Arquitetura mistura-se com
economia para aumentar o poder e reduzir os custos – nada mais liberalista: poder com
baixos custos, já que o preso do panóptico acabaria por introjetar o vigilante com pouco
esforço.

Se antes as punições não consistiam na perda da liberdade, é porque a liberdade


não era considerada um valor cuja privação pudesse ser tomada como um mal. É nesse
novo modo de produção que, segundo Massimo Pavarini, a liberdade adquire um valor
econômico: quando as formas de riqueza social são reconhecidas no comum denominador
de trabalho humano medido em tempo, ou seja, trabalho assalariado, foi concebível que
a pena privasse o culpável de uma parcela de sua liberdade, quer dizer, de uma parcela de
trabalho assalariado 140 . Mas mais do que isso, como já exposto, esse tempo que o
indivíduo estava à disposição em uma prisão, era o momento propício para exercitar sobre
eles um poder disciplinar, ou seja, uma prática pedagógica de educação voltada às
necessidades do processo produtivo141.

No liberalismo econômico, tanto a acumulação de riqueza quanto a acumulação


de miséria passam a figurar como fatos sociais naturais, diretamente ligados à uma nova
fonte de saber (revestido de cientificidade), que ultrapassava inclusive o antigo
igualitarismo do pacto social: o positivismo142. Era necessário reprimir o proletariado
quando cada vez restava exposto o nervo desigual desse novo sistema, vez que esses se
mostravam adversários irredutíveis e prejudicavam a certeza burguesa ao portar uma
esperança inadmissível: a revolução para uma sociedade sem classes143.

Essa linha positivista foi representada, já no século XIX, por diversos autores.
Entre eles, principalmente Cesare Lombroso (1935 – 1909), Enrico Ferri (1856 – 1929)
e Raffaele Garófalo (1852 – 1934). As ideias desses pensadores, advindas de uma época
em que a verdade estava sendo paulatinamente atestada pelo cientificismo, foram
diretamente influenciadas por Herbert Spencer (1820 – 1903) e seu evolucionismo social,
                                                            
139 BENTHAM, Jeremy [et al.]. O Panóptico. Organização de Tomaz Tadeu. Traduções de Guacira
Lopes Louro, M. D. Magno, Tomaz Tadeu. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
140 PAVARINI, Massimo. Control y dominación: teorías criminológicas burguesas y proyecto
hegemónico. Epílogo de Roberto Bergalli. Siglo Veintiuno Editores: Madrid, 1996, p. 36.
141 Idem, p. 37.
142 Idem p. 41.
143 Idem, pp. 41-42.
49 
 

sem olvidar o spencerismo biológico de Charles Darwin (1809 – 1882) com sua seleção
natural144. As análises desses três autores, sem uma uniformidade, estavam, em parte,
direcionadas para aspectos biológicos do delinquente, apontando para uma antropologia
criminal, e em parte para aspectos ambientais – ou seja, o ambiente em sua volta – que
consideravam trabalharem como gatilhos das características propriamente biológica145.
Essa explicação do crime reduzia determinadas pessoas à condição de atávicos – ou seja,
com um desenvolvimento biológico interrompido – tornando-os vulneráveis a todo tipo
de ação preventiva ou repressiva do Estado e concretizando a desigualdade do liberalismo
econômico através de uma teoria tida como científica – e que pauta, também, o
nascimento da ciência criminológica.

A medicina veio salvar o paradoxo entre a suposição de um contrato social


produtor de indivíduos como pactantes livres e iguais, e o fato de que o Estado,
e os capitalistas privados, usasse a violência contra alguns, aqueles fora, na
realidade, do contrato e que, portanto, não seriam tão iguais. A medicina
individual, e dentro dela, particularmente a psiquiatria alienista, unida à
medicina social ou higienismo, mostrariam que mesmo quando o sujeito
humano tem uma base física e temperamental imodificável, é possível fazer
algo em relação a determinados sujeitos portadores de anomalias ou
imperfeições, para o bem deles mesmos e de todos. Igualmente, e de maneira
diretamente relacionada com a modificação do indivíduo, o caráter e o meio
social também podiam ser mudados. E é sobre estes dois objetivos que atuaria
a política guiada por critérios médicos, com o concurso da principal instituição
de confinamento do momento: o manicômio e o asilo146.

Nesse sentido, a polícia nasce com o intuito de reprimir as possíveis revoltas e


greves do proletariado urbano firmado nesse germe capitalista. Os comerciantes e
industriais são intolerantes quanto aos ilegalismos antes amplamente permitidos. Ao
invés de simplesmente punir, passou-se a pensar na prevenção dos delitos como forma de
agir mais eficaz, e um corpo policial burocratizado – assim como de agentes
penitenciários – passava a cumprir essa função na Europa 147 . É possível perceber
claramente que essa prevenção estava diretamente ligada à proteção da propriedade
privada, comercial e industrial148.

                                                            
144 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos: Conferencias de criminología cautelar, pp.
88-89.
145 Conferir, inicialmente, a interessante análise feita em: MOLINÉ, José Cid; LARRAURI, Elena
Pijoan. Teorías Criminológicas: explicación y prevención de la delincuencia. Barcelona: Editorial Bosch,
2001. Principalmente no capítulo III, em que os autores tratam das teorias biológicas.
146 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos, p. 237.
147 Idem, p. 215.
148 Idem, p. 216.
50 
 

No entanto, se a medicina passava a figurar como saber sem poder, a polícia


configurava-se como um poder sem saber149. A união desses dois vetores proporcionará,
no século XIX, o que Foucault 150 viria a chamar de o grande internação, o qual se
realizava em manicômios e asilos. Cabia aos médicos dizerem quem era perigoso ou não
e à polícia, mesmo sem a ocorrência de um delito comprovado, tomar as medidas de
repressão151. Uma verdadeira lógica higienista. Mais tarde, mais ou menos dois séculos
depois, a conhecida lógica de higienização social das cidades daquela época – que se
utilizava de uma digerível técnica de neutralização a respeito dos tidos como anormais e
biologicamente inferiores – levaria a um dos maiores massacres do século XX, realizado
nos campos de concentração alemães e, não por coincidência, levado a cabo por forças
policiais.

Em suma, a polícia que se cria no seio do liberalismo econômico como


racionalidade governamental – o qual tenta mitigar sua atuação na sociedade desde o
século XVIII – é bifurcada, ou melhor, responde à dois senhores: à liberdade e ao
chamado autoritarismo. Sem esse para alguns, aquela não poderia existir para outros. Em
outras palavras, enquanto alguns possuíam a possibilidade de se adequar ao modelo
socioeconômico, apresentando-se como “sujeitos de interesses” e “sujeitos de direitos”
perante a polícia, para outros, essencializados por sua inferioridade biológica, tal
qualificação da vida era impossível, recebendo uma atuação diferenciada da polícia.

É necessário esclarecer que não se pode compreender o autoritarismo como


elemento completamente dissociado do liberalismo. Assim como esse último, aquele
também ativa a combinação de tecnologias de poder típicas da modernidade (soberania,
disciplina, regulação), mas o faz entrelaçando-os de forma diferente: o autoritarismo faz
sair à superfícia o lado obscuro da biopolítica152, vindo estruturado no racismo moderno
exposto por Foucault, ou seja, a construção dentro da população de grupos que por suas
peculiaridades biológicas (próprio de um positivismo criminológico) é preciso
eliminar153. Na via contrária do liberalismo, a necessidade de uma construção autoritária
da figura do inimigo biológico permite que o “poder de matar”, antes demarcado e

                                                            
149 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos: Conferencias de criminología cautelar, p.
95.
150 FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 72.
151 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos, p. 210.
152 SOZZO, Máximo. “Policía, gobierno y racionalidad: exploraciones a partir de Michel Foucault”, p.
259.
153 Idem, p. 259.
51 
 

encapsulado pela governamentalidade liberal, já não encontre limite 154 . Em outras


palavras, um excesso de biopoder, onde se introduz uma economia de poder em que a
morte dos outros serve para o fortalecimento da própria pessoa na medida em que se é
membro de uma população ou de determinada raça155

Com efeito, que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse


domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve
viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o
aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a
qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como
inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do
biológico de que o poder se incumbiu: uma maneira de defasar, no interior da
população, uns grupos em relação aos outros156.

Para uma compreensão mais ampla do termo autoritarismo, aponta-se que esse
possui diversas interpretações e usos. Segundo Christiano Falk Fragoso, avançando na
terminologia para além do senso comum, o conceito de autoritarismo tem sido empregado
em quatro contextos diferentes: a) autoritarismo como abuso de autoridade; b)
autoritarismo como estrutura de regime político; c) autoritarismo como ideologia política;
e d) autoritarismo proveniente da psicologia social157. O primeiro uso do termo remete à
ideia de abuso de poder quando da utilização do cargo, ou seja, quando a alguém é
conferido uma autoridade e durante o exercício dessa, ultrapasse seus limites. Mas não só
isso. Esse tipo de abuso também pode ocorrer desde o processo de constituição ou de
atribuição do poder de autoridade: ao atribuir determinado poder à pessoa ou instituição,
tornando-a uma autoridade, somente o fato dessa existir como tal (e com tais poderes) já
há uma manifestação de autoritarismo158.

O segundo uso trata-se de autoritarismo enquanto regime político. Fragoso


apontará que regularmente os estudos apontam para uma distinção entre regimes
autoritários, democráticos e totalitários, quando na verdade a diferença entre tais regimes
não é de sua própria constituição, mas de grau, permitindo que por vezes um regime
formalmente democrático seja, na prática, um regime autoritário159 . Ressalta o autor,
ainda, que há uma certa divergência entre estudiosos quanto à admissibilidade do

                                                            
154 Idem, p. 260.
155 ADORNO, Sérgio. O direito na política moderna. Revista Cult, ano 18, p. 18-21, jan. 2015, p. 21.
156 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 304.
157 FRAGOSO, Cristiano Falk. Autoritarismo e sistema penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2015, pp. 64-65.
158 Idem, p. 66.
159 Idem, p. 68.
52 
 

totalitarismo como regime político, devido, principalmente, às dificuldades de definição


conceitual e, por consequência, a distinção de outros regimes não-democráticos160.

Além desses, a terceira forma de autoritarismo estaria atrelada às ideologias


políticas que, variando em seus fundamentos, detém três características principais: a)
fundam-se em alguma concepção anti-igualitária dos homens, tornando-a essencial à
ordem social; b) consideram a ordem e a segurança bens supremos; c) valorizam o
exercício do poder em detrimento das liberdades individuais e dos direitos humanos161.
Por isso, destaca Fragoso que não se trata de coincidência o fato de as repartições da
polícia política da ditadura (civil-)militar brasileira chamarem-se DOPS (Delegacias de
Ordem Política e Social162.

Por último, a quarta forma de autoritarismo se apresenta no âmbito psicológico-


social (ou na mentalidade autoritária), tendo sido percebida a partir da ascensão do
fascismo e do nazismo e designando “certas pré-disposições individuais, fundadas em
circunstâncias psicológicas, psicanalíticas, cognitivas ou decorrentes do processo de
socialização, a adotar e a aceitar atitudes autoritários no exercício do poder”163. O próprio
Theodor Adorno, tentou traçar uma personalidade autoritária, sendo essa um conjunto
de traços inter-relacionados, como a submissão – crença cega na autoridade e obediência
voltada a superiores – e a agressão – desprezo pelos inferiores e a disposição em atacar
pessoas débeis e que socialmente são aceitáveis como vítimas164.

Na configuração da atividade policial argentina, a qual se pode estender ao caso


brasileiro, Sozzo identifica uma “governamentalidade autoritária” – em especial no uso
da força – em dois momentos: primeiro, na militarização das polícias e numa gramática
de “inimigo político”; segundo, na incorporação de uma criminologia do outro e na
gestação de uma gramática do “inimigo biológico”. No que se refere à criminologia do
outro (a qual produz um arquétipo do outro como perigoso, ao invés da análise de dados
prudentes e de pesquisas165, culminando em uma essencialização por excelência), essa
possui uma proximidade com a criminologia positivista, podendo-se inclusive pensar em

                                                            
160 Idem, p. 68.
161 Idem, p. 84.
162 Idem, p. 84.
163 Idem, p. 90.
164 ADORNO, Theodor W. Escritos sociológicos II, vol. 1. Madrid: Ediciones Akal, S.A., 2008, pp. 151-
153.
165 GARLAND, David. As contradições da “sociedade punitiva”: o caso britânico. Revista de Sociologia
e Política nº. 13: 59-80, novembro 1999, p. 74.
53 
 

uma continuidade histórica entre ambas e seus projetos de defesa social, na medida em
que propugnam uma ação preventiva da polícia em relação aos potenciais “criminosos”
– arrecadados, em regra, das zonas mais pobres e recaindo, majoritariamente, sobre
negros. A gramática do “inimigo biológico”, como já foi explicitada, é bastante clara na
operacionalidade da polícia de ontem e hoje, seja por uma criminologia do outro seja pela
velha (mas sempre renovada) criminologia positivista.

No caso brasileiro, a militarização também é elemento que aprofunda uma


sociedade autoritária, seja em regimes ditatoriais ou democráticos. Quando de sua
estruturação (civil e militar) a nível nacional na Era Vargas (1930-1945), assim como a
ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), a polícia se pauta na perseguição de um
“inimigo político”. Se iniciará, de forma mais detida, tal assunto, na sequência,
confirmando tal hipótese e tentando demonstrar que ainda se continua sob a égide de uma
polícia que, pelos legados históricos e rasgos de exceção, se apresenta como autoritária
mesmo dentro de um regime democrático.

Assim, traçado esse percurso histórico de constituição da polícia como instituição


moderna e suas peculiaridades – controle, higienismo e autoritarismo – é necessário, para
os objetivos do presente trabalho, traçar os passos da polícia desde o momento de sua
aparição no Brasil. Somente acessando o núcleo duro dessa instituição desde seus
compromissos históricos e de sua atuação na sociedade brasileira é que se poderá pensar
os desdobramentos futuros a partir de um dispositivo policial composto por práticas,
discursos e saberes heterogêneos que, incalculavelmente, o tornam o pano de fundo da
atuação dessa instituição de polir.

3.2 A polícia no Brasil: do império à democracia recente

Para melhor compreender essa função repressiva da polícia, inicia-se um breve


percurso histórico da operacionalidade da instituição no Brasil, tomando-se como marco
fundamental a criação da Intendência Geral de Polícia (1808) durante o Império, passando
pela centralização de todo o aparato realizado por Getúlio Vargas. Posteriormente,
analisa-se a polícia durante a ditadura civil-militar (1964-1985), também compreendendo
o processo de militarização não suprimido pela Constituição Cidadã (1988). Por fim,
acumulada com inúmeros legados autoritários, enxerga-se uma democracia brasileira
frágil e incapaz de conter a pulverização da repressão permanente em que, a cada
54 
 

momento que um policial decide não se pautar na legalidade (ou sem sua própria
legalidade), espaços de exceção são possíveis.

O ponto de fundação da polícia está na chegada da Coroa portuguesa ao Brasil.


Dom João VI, ao aportar no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, em 1808 junto de sua
família, encontra uma polícia composta por grupos improvisados e rústicos, os quais não
traziam qualquer confiança166. Para suprir essa lacuna, cria tanto a Intendência Geral de
Polícia (1808) como a Guarda Real de Polícia (1809). Nesse momento, como aponta
Bretas e Rosemberg, a Intendência será a tradução brasileira do modelo de Lisboa, o qual,
por sua vez, buscou em Paris suas bases, sendo que a ideia de polícia se relacionava à
gestão da ordem167 – ou, do controle de diversas áreas da vida que na sequência seriam
redistribuídas entre outras instituições.

Segundo Holloway, a Intendência Geral era responsável pelo abastecimento da


cidade e por garantir a segurança pessoal e coletiva, assim como a ordem pública. O
intendente ocupava o cargo de desembargador e era considerado ministro de Estado.
Possuía o poder de estabelecer quais crimes seriam punidos, estabelecer a punição e então
prender, condenar e supervisionar a sentença antes dada. O primeiro intendente foi Paulo
Fernandes Viana, que ficou no cargo por quase 13 anos, demonstrando-se um decidido
administrador das questões urbanas. Suas primeiras obras públicas foram de suma
importância para tornar a cidade colonial do Rio de Janeiro em uma cidade habitável e de
acordo com as exigências da Corte168.

Por seu turno, à Guarda Real de Polícia, uma primeira versão da atual Polícia
Militar, cabia guardar a ordem e a repressão de delitos. Subordinada à Intendência, foi
criada para manter-se incessantemente atuando no espaço público, a fim de manter a
“tranquilidade”. Ficava distribuída por diversas localidades da cidade e estava sempre
pronta a dissolver as desordens que aparecessem. Os homens que nela atuavam
provinham das fileiras do Exército regular e recebiam apenas um valor simbólico para
atuação, além de alojamento e comida nos quartéis. O mais conhecido entre seus membros

                                                            
166 TORRES, Epitácio. Polícia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1978, p. 31.
167 BRETAS, Marcos Luiz; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço e
perspectivas. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, jan/jul. 2013.
168 HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século
XIX. Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997,
p. 47.
55 
 

era Miguel Nunes Vidigal, o qual reprimia de forma contundente a vadiagem e os


quilombos formados por escravos fugidos169.

Não se podendo fincar por muito nessa parte da história, e já demarcado o início
da polícia no Brasil, avança-se para a República Velha, em que a proclamação da
República – nesse momento, passagem do século XIX ao XX, sob forte influência do
cientificismo – representou um passo à colocação do Brasil no projeto da modernidade.
O governo da época, a fim de fazer avançar seu aparato estatal-policial, envia ao exterior
pessoal encarregado de estudar o sistema policial170. O período entre 1889 e 1907 será,
para Bretas, um período de transição entre a polícia do Império e as reformas que viriam
a se consolidar171.

No entanto, uma das fases decisivas para a polícia brasileira se iniciará com o fim
da República Velha. Foi em 1930 que Getúlio Vargas chegou ao poder, como presidente
do Brasil, através de um golpe de Estado. Se desde 1889 havia uma alternância no poder
entre candidatos de São Paulo e Minas Gerais, essa linhagem é rompida com a ascensão
do ex-Ministro da Fazenda do governo Washington Luís, proveniente do Rio Grande do
Sul, Getúlio. Ao lado de figuras como Oswaldo Aranha e Lindolfo Collor, Getúlio lidera
a conspiração contra Washington Luís e seu candidato à presidência da República Júlio
Prestes. Nessa época, era prática comum fraudar as eleições para que determinado
candidato fosse eleito, como aconteceu nas eleições de 1910 e 1922. A oposição
derrotada, sempre indignada, criticava através da imprensa o candidato eleito e seu modo
de chegar ao poder172.

No entanto, em 1929, diversas forças da elite, cansadas não só das fraudes e


alternâncias perpétuas nas eleições, mas também do atraso do modelo econômico em
relação ao resto do mundo (em 1920, mais de 70% dos trabalhadores encontravam-se na
agricultura), passam a pensar numa revolta armada para tomar o poder. E foi a morte de
João Pessoa, na Paraíba, assassinado por desafetos políticos, que catalisou a união de
partidos políticos e energias revolucionárias vindas das Forças Armadas. Em 03 de
novembro, após dez dias na condução do país, os militares – interventores também em
                                                            
169 Idem, pp. 47-49.
170 BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 37.
171 Idem, p. 97.
172 SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1945). Apresentação de
Fransisco de Assis Barbosa. Tradução coordenada por Ismênia Tunes Dantas. 7ª edição – Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1982, p. 21.
56 
 

1889, mas que com o tempo devolveram o poder à líderes civis – entregam a presidência
da República a Getúlio173.

Com o colapso da República Velha (1889-1930), Getúlio Vargas assume o poder


com o objetivo de modernizar o forjar uma nova forma de homem na sociedade brasileira.
Para tanto, um projeto totalitário é implementado, de modo que os pensamentos e as ações
dos cidadãos deviam estar atrelados e dimensionados a partir das diretrizes do governo
(nessa época totalmente indistinguível do Estado). Na figura do nacionalismo, que
captava os indivíduos e obrigava-os a se identificar com o projeto traçado, o valor
supremo da sociedade não se constituía no homem, mas na nação, para qual deveria o
homem, de corpo e alma, realizar sacrifícios174. Nessa época, a polícia (ainda em caráter
civil) se consolida como uma das forças mais potentes, agindo com estratégias de terror
ao arrepio de formulações normativas. Guaiada pelas concepções de um positivismo
biológico e agindo na pessoa do criminoso, essa polícia – que agora é transferida das
funções judiciárias ao governo – vai operar tanto sobre o crime comum quanto os delitos
políticos 175 . O principal inimigo da época, o comunista, era vigiado, investigado,
reprimido e punido (quando não morto) tanto quanto aqueles criminalizados por delitos
constantes no Código Penal.

Um traço importante dessa época é o completo reaparelhamento do aparato


policial por Vargas, centralizando as funções na figura do chefe da polícia e dispondo
mais informações, verbas e pessoal à instituição, para que essa atuasse tanto a nível
nacional quanto internacionalmente. Com o decreto 24.531, de 2 de julho de 1934,
detalhou-se em minúcias as atribuições de cada localidade e distritos policiais. A Polícia
do Distrito Federal passa a ter os meios legais que permitiam estender suas normas de
ação e repressão para o resto do país 176 . Aliado a isso, o Código Penal de 1890
representava um sério entrave aos impulsos do regime de força estabelecido, em que a lei
já não possuía mais tanta importância. Sua reforma era necessária para que os ideais de
uma polícia científica se instalassem, adequando ao cenário às novas matrizes
ideológicas177, em que o fascismo avançava como forma de ver o mundo. A polícia de
Vargas, a partir da promessa desse novo plano de governo – desenhar o novo cidadão
                                                            
173 Idem, p. 25.
174 CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia da era Vargas. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1993, p. 19.
175 Idem, p. 29.
176 Idem, p. 60.
177 Idem, p. 60.
57 
 

brasileiro – agia sobre todos aqueles que se desvirtuavam do projeto nacional, vigiando
os tidos como vagabundos, reprimindo ideologicamente os supostamente envolvidos com
o comunismo e investigando aqueles delatados pela sociedade.

Ordenar a sociedade para ‘um só pensamento brasileiro’, o alvo do Estado


Novo, significava modificar o lugar do indivíduo e das classes no espaço
público, negando as diferenças, a pluralidade e quaisquer formas de
organização e manifestação que pusessem em xeque a concepção orgânica de
sociedade178.

Com isso, desenha-se uma polícia que se desenvolve com instintos totalitários no
Brasil, respondendo à um ditador e buscando, inclusive, nos modelos internacionais a
partir da colaboração do Ministério das Relações Exteriores (como a Gestapo na
Alemanha e também na polícia de Nova Iorque) formações específicas de estratégias de
combate ao comunismo. Esse havia se consolidado como inimigo objetivo daquela época
principalmente pelo fato de possuir a potência de criar sublevações entre as classes
trabalhadoras, fazendo essas escaparam da lógica organicista social imposta. Negava-se
soluções políticas por parte do Estado e avançava a implementação de soluções físicas
(segregação ou extermínio)179.

Contudo, o fim da Segunda Guerra Mundial não se traduz no fim da luta contra o
comunismo, já que essa toma espaço no mundo durante a guerra fria, onde existente uma
polarização entre Ocidente, representado pelos Estados Unidos, e Oriente, representado
pela já extinta União Soviética. Entre 1945 e 1964, o Brasil vive um raríssimo lapso
democrático. No entanto, essa lacuna é interrompida por um golpe no dia 31 de março de
1964, praticado pelas Forças Armadas que tomava o apressadamente empossado João
Goulart como uma ameaça comunista. Consolidado o golpe, os presidentes militares que
assumiram passaram a exercer seus governos a partir dos chamados Atos Institucionais.
Decretos que visavam, aos poucos, suspender direitos e garantias expostos na
Constituição de 1937. O ápice dessa intervenção do Poder Executivo se deu com o Ato
Institucional n.º 05 (popularmente conhecido como AI-5), quando o habeas corpus foi
suspenso e, paralelamente, instituiu-se o Decreto n.º 898/69, que impunha a denominada
Lei de Segurança Nacional, logo após substituído pela Lei n.º 6.620/78180 e, por último,
ainda em vigor, a Lei n.º 7.170/83.

                                                            
178 Idem, p. 80.
179 Idem, p. 83.
180 Para uma visão crítica, ver: FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lei de Segurança Nacional: uma
experiência antidemocrática. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabres Editor: 1980.
58 
 

Todas essas legislações se pautaram na Doutrina de Segurança Nacional, advinda


dos Estados Unidos da América e ensinada nas conhecidas Escolas Superiores de Guerra.
De forma geral, essas leis buscavam (e buscam) conservar o Estado, criminalizando
condutas que, além de serem consideradas crime, contam com o elemento subjetivo de
querer o agente lesionar as instituições, a soberania estatal ou o regime vigente. No
entanto, não é novidade que no Brasil tenha servido basicamente para criminalizar
movimentos sociais.

Como expressão de poder que é, a Doutrina de Segurança Nacional se pauta em


um saber: a geopolítica. Com a ajuda dessa, consegue analisar geograficamente as
possibilidades estatais de expansão, proteção e poderio sobre outros países. Quanto maior
o país, teoricamente maior será seu poder. Na América Latina, durante os regimes
militares, Brasil serviu como satélite para os outros países, tendo consolidado uma
geopolítica nacional com três objetivos principais: ocupação de um território interno
imenso e praticamente vazio, expansão na América do Sul em direção ao Oceano Pacífico
e ao Atlântico e a formação de uma potência mundial181. Na verdade, são inúmeras as
frentes que essa Doutrina pode fazer, sobretudo no campo interno do Brasil ela vai tentar,
a partir de termos vagos como objetivos nacionais, segurança nacional, poder nacional,
nação182, entre outros, neutralizar as possíveis forças que se opuserem ao regime, não
tomando como justificativa somente a repressão sobre grupos organizados, mas opiniões
individuais que também poderiam tentar deslegitimar o aparato estabelecido. Para tanto,
tornava-se essencial que um rótulo fosse acoplado à pessoa, flutuando à época,
regularmente, entre comunista ou subversivo.

A polícia político-repressiva da ditadura civil-militar brasileira institucionalizou-


se sobre o paradigma da Doutrina da Segurança Nacional e impregnou seu aparato nas
mais diversas localidades. No Rio de Janeiro, ficou famoso pela brutalidade em torturas,
execuções e desaparecimentos o Destacamento de Operações de Informações – Centro de
Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Recorrendo constantemente à barbárie, havia
diversos outros lugares onde a polícia aplicava suas práticas letais e de terror. Em Porto
Alegre, no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Em São Paulo, a Operação
Bandeirante (OBAN) se destinava ao sequestro, prisão, tortura e execução dos opositores

                                                            
181 COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o Poder Militar na América Latina.
Tradução de A. Veiga Fialho. 3ª edição. Editora Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1980, p. 27.
182 Idem, pp. 50-68.
59 
 

do regime civil-militar. Por último, na Bahia, o Quartel do Forte do Barbalho era


reconhecidamente pelos presos políticos um dos principais centros de tortura183. Segundo
dados da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, as ditaduras do
Cone-Sul, sob o manto da Doutrina da Segurança Nacional, realizaram uma política de
extermínio de seus dissidentes. No Chile (1973-1990), há uma estimativa de 3.000 a
10.000 mortos e desaparecidos, na Argentina (1976-1983) cerca de 30.000 e no Uruguai
(1973-1985) em torno de 400184. No Brasil (1964-1985), foram 353 vítimas letais do
regime, sem contar, por óbvio, pessoas presas, torturadas, despidas de seus direitos
políticos, etc185.

A partir da memória de 23 ex-policiais (militares e civis) brasileiros, Martha


Huggins, brasilianista em assuntos sobre polícia, reconstruiu as atrocidades em termos de
tortura e assassinato que foram presenciadas e documentadas durante o regime ditatorial
civil-militar do Brasil (1964-1985). Um dos relatos que chama à atenção, ocorrido nas
dependências da OBAN em São Paulo, é do Frei Tito Alencar, frade de 27 anos e ativista
da Juventude Estudantil Cristã (JEC) da igreja católica, detido em 04 de novembro de
1969. Segundo uma carta que deixou após uma tentativa de suicídio, Frei Tito relata ter
sido surrado e espancado com chutes, pontapés, palmatórias e inclusive obrigado a ter de
passar por um corredor polonês. Quando ameaçado de ir ao pau-de-arara – em que seria
pendurado de cabeça para baixo com punhos e tornozelos amarrados a um pau enquanto
receberia choques elétricos – decidiu, mesmo contra os princípios de sua religião, pelo
suicídio186.

Junto à tortura, bastante comum na ditadura civil-militar brasileira era a utilização


de informantes para a elaboração das táticas a serem utilizadas pelo regime contra o
inimigo – comunista, subversivo, etc. – interno. Dentre esses, destacavam-se os
informantes recrutados do funcionalismo público, aqueles que tinham alguma admiração
pelo regime e numa escala mais abaixo, os informantes tidos como voluntários. Cada qual
possuía seus interesses particulares para a realização da delação de vizinhos, colegas de

                                                            
183 BRASIL. 2014. Relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Disponível em:
<http://www.cnv.gov.br/>. Acesso em: 16 jun. 2016.
184 BRASIL. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à memória e à verdade.
Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007.
185 Idem.
186 HUGGINS, Martha; HARITOS-FATOUROS, Mika; ZIMBARDO, Philip G. Operários da violência:
policiais torturadores e assassinos reconstroem as atrocidades brasileiras. Tradutor Lólio Lourenço de
Oliveira – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006, p. 152-153.
60 
 

trabalho, ex-esposas, amigos, etc., havendo uma diferenciação, também, a partir da vida
pregressa de cada um, do valor atribuído aos relatos trazidos ao poder central187.

Pouco sabido é que depois de algum tempo a máquina de informações do governo


autoritário possuía certa predileção pela delação em favor da tortura, utilizando essa
somente em último caso. Isso se devia ao fato de ter o regime chegado à conclusão de que
a tortura denegria a imagem do governo, assim como que os tidos como subversivos já
possuíam certas resistências às formas com que os órgãos repressivos buscavam extrair-
lhes informações188. Um exemplo disso é fato de os abordados e retidos não falarem
durante horas para que após decorrido um certo tempo passassem a falar sobre qualquer
coisa: aquele era o tempo necessário para que seus companheiros, sabendo de sua prisão,
deixassem os lugares que estavam189.

Nos dias de hoje, com a continuidade da Doutrina da Segurança Nacional mantida


no contexto democrático através da Lei n.º 7.170/83, a letalidade da polícia e a política
de desaparecimento de corpos se perpetuou na marcha das interconexões entre as ações
policiais e órgãos de perícia e serviços funerários190. Continua indistinguível o inimigo
interno, podendo ser desde o tido como subversivo, atrelado à movimentos que buscam
tornar visíveis demandas sociais, até o morador de rua que porta um pinho sol ao caminho
do trabalho191.

A consolidação da chamada Constituição Cidadã em 1988 contribuiu para a


cristalização de inúmeros direitos, embora manteve intocados – e até mesmo
potencializou – os poderes referentes às Forças Armadas, às Polícias Militares dos
Estados e da segurança pública em geral. É no mínimo sintomático visualizar que no
momento de elaboração da Carta Magna quem estivesse presidindo a Comissão de
Organização Eleitoral Partidária e Garantia das Instituições, encarregada dos capítulos

                                                            
187 MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à
época da ditadura militar no Brasil. Revista Brasileira de História, vol. 17, n. 34, São Paulo: 1997.
188 Idem.
189 Idem.
190 NEGREIROS, Dario; FRANCO, Fábio Luís; SCHINCARIOL, Rafael. A doutrina da segurança
nacional e a invisibilidade do massacre da população preta, pobre e periférica. In: SOUSA JÚNIOR, José
Geraldo de (Org.; et al.). O direito achado na rua: introdução crítica à justiça de transição na América
Latina. 1.ed. – Brasília, DF: UnB, 2015, p. 427.
191 Em referência ao caso de Rafael Braga, preso quando saia de casa portando garrafas de produtos de
limpeza. Até 23 de maio de 2014, somente Rafael havia sido julgado e condenado por um crime
relacionado aos protestos de 2013 no Rio de Janeiro e no resto do Brasil. Mesmo o laudo pericial do caso
tendo concluído que os produtos químicos que ele portava não poderiam ser usados como explosivos, tal
informação foi desconsiderada.
61 
 

ligados às Forças Armadas e à segurança pública, era o senador Jarbas Passarinho, coronel
da reserva, ex-ministro dos governos dos generais Costa e Silva, Médice e Figueiredo e
signatário, em 1968, do Ato Institucional n.º 5, o qual, como já descrito, inaugurou um
dos períodos mais sombrios da ditadura civil-militar brasileira192.

Não se pode dizer que o lobby dos militares não deu certo. O artigo 142 da
Constituição Federal, ao impor às Forças Armadas o dever de defesa da pátria, garantia
dos poderes constitucionais e da lei e da ordem, imediatamente a colocou fora de qualquer
controle democrático (ou seja, da lei), dando-lhe o poder soberano (e ao mesmo tempo
constitucional) de decidir sobre a suspensão da validade do ordenamento jurídico193. Ao
contrário do que se poderia pensar de um modelo democrático, são as Forças Armadas –
instituição, como a história demonstra, mais tentada a violar a democracia – que deve
zelar pelo Executivo, Legislativo e Judiciário e não o contrário194.

Um elemento de suma importância das continuidades autoritárias que nossa


Constituição chancelou é o fato de se manter a estrutura militarizada que pauta a atuação
das Polícias Militares dos Estados. Na via contrária do que as legislações de outros países
adotam, o Brasil mantém essa instituição como força auxiliar e reserva do Exército (artigo
144, IV, § 6º). Em uma democracia, somente em períodos de guerra que as polícias se
tornam reservas do Exército, enquanto em tempos de paz o Exército é quem se torna
reserva das polícias: resta demarcada, de forma nítida, as funções da polícia e das Forças
Armadas195. Atualmente, no Brasil, a Constituição Federal estabelece cinco instituições
policiais para a execução da lei: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia
Ferroviária Federal, Polícia Militar e Polícia Civil do Estado. As duas primeiras são
vinculadas à União, enquanto as duas últimas subordinadas aos Estados. À polícia civil
cabe a investigação e elucidação de crimes, enquanto à polícia militar sua repressão e a
atividade ostensiva de rua.

Com as manifestações de junho de 2013 no Brasil, essa função político-repressiva


militarizada da polícia, nos rastros das inacabadas transições do regime da ditadura civil-
militar brasileira (1964-1985) até os dias de hoje, demonstrou-se bastante atuante ao jogar

                                                            
192 ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição Brasileira de
1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São
Paulo: Boitempo, 2010, p. 46.
193 Idem, p. 48.
194 Idem, p. 49.
195 Idem, p. 52.
62 
 

contra civis (estudantes, jornalistas, moradores de rua...) seu aparato, impondo uma
estratégia de medo e levantando obstáculos à democrática maneira de reivindicar
direitos196. Ainda, no Paraná, em 2015, a repressão aos professores que gostariam de ter
adentrado à Assembleia Legislativa para reivindicar seus direitos demonstrou o ranço do
que e a que veio constituir-se tal instituição em democracias, obstando a gestação de um
incontabilizável futuro197. Não foram as primeiras nem serão as últimas das tantas outras
manifestações sociais por avanços em políticas públicas e direitos sociais que e à sua
frente encontrarão escudos, cassetetes e bombas de lacrimogêneo. Se manifestações
seriam uma forma de dar voz e, portanto, politizar, introduzindo os excluídos de sempre
em espaços legítimos em que suas reivindicações pudessem ganhar eco, a polícia age para
despolitizá-los, afastá-los da democracia (e do diálogo), fazer com que as coisas
regressem ao normal198 e a vida siga em frente. Para que os emudecidos pelas opressões
socioeconômicas (não eram apenas pelos 20 centavos...) que o capitalismo neoliberal
necessita para sobreviver continuem em seu lugar determinado histórico e politicamente.

De outro lado, entre 2010 e 2013, 1.275 (um mil duzentos e setenta e cinco)
pessoas foram vítimas de homicídios decorrentes de intervenções policiais na cidade do
Rio de Janeiro199. Desse expressivo número, 99,5% eram homens, 79% eram negros e
75% tinham entre 15 e 29 anos. No Brasil, a partir de dados somente do ano de 2014,
foram 3.009 vítimas de intervenção da polícia, podendo-se contabilizar que a cada três
horas uma pessoa é morta pela polícia. Além disso, no que se refere a mortes intencionais
da polícia, essas foram 46,6% superior à quantidade de latrocínios. Tudo isso contando
com um efetivo de 666.479 policiais e guarda municipais. Desses, 64% eram policiais
militares, 18% policiais civis, 15% guardas municipais, 2% policiais federais e 1%
policiais rodoviários200. A preponderância da militarização das polícias é visível. Outra
pesquisa em São Paulo, entre os anos de 2009 e 2011, em que se analisou 939 vítimas de
mortes em decorrência da ação policial, 61% eram negras, 26% entre 15 e 19 anos, 57%

                                                            
196 ANISTIA INTERNACIONAL. “Eles usam uma estratégia de medo”: proteção do direito ao protesto
no Brasil. Rio de Janeiro, Anistia Internacional, 2014.
197 AMARAL, Augusto Jobim do. #Somostodosprofessores. Empório do Direito, 2015. Disponível em:
<http://emporiododireito.com.br/somostodosprofessores-por-augusto-jobim-do-amaral/> Acesso em: 08
de agosto de 2016.
198 ZIZEK, Slavoj. Para uma apropriação do Legado Europeu pela Esquerda. Edições Pedago, Lda:
Portugal, 2009, p. 07.
199 ANISTIA INTERNACIONAL. Você matou meu filho!: homicídios cometidos pela polícia militar na
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Anistia Internacional, 2015.
200 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
2015, p. 06.
63 
 

entre 20 e 24 anos e 78% entre 25 a 29 anos, sendo que 97% do sexo masculino201, não
se distanciando muito do quadro apresentado no Rio de Janeiro, onde jovens negros do
sexo masculino figuram preferencialmente entre as vítimas de ações da polícia.
Ou seja, visível está o massacre sistemático realizado pela polícia (e seus
imemoráveis autos de resistência como plataforma jurídica de atestado das vidas indignas
de viver) 202 instalado no interior da democracia (onde espaços de exceção são
inevitáveis...), reproduzindo campos de extermínios com pouca preocupação da sociedade
civil. Jovens, negros e pobres. Uma escala de excluídos diferentes daqueles presentes nas
manifestações referidas, mas que sob a visão da repressão policial não merecem ser
calados com bala de borracha e gás lacrimogênio e sim com armas capazes de riscar suas
vidas matáveis do mapa de um país de escala continental. Vítimas de uma política de
morte e de esquecimento (pois Amarildo vive na memória de poucos), invariável essa
constante no paradigmático sistema penal de Auschwitz203.
No mesmo sentido, os matáveis continuam sendo também os torturáveis, já que
para combater o inimigo vale tudo, inclusive a sua desumanização pela dor física. Desde
a Constituição do Império, de 1824, houve a abolição das penas cruéis no Brasil. Mas na
verdade, o significado dessa abolição é que a tortura apenas não dá mais sustentação ao
poder político, como no Antigo Regime, mas agora, sob o signo do Iluminismo, passa a
ser elemento periférico, mas ainda existente. Se no final do século XX havia qualquer
resistência em defesa aos direitos humanos para sua aplicação, o atentado às torres
gêmeas em 11 de setembro de 2001 tratou de mitigar204. A prisão em Abu Ghraib, no
Iraque, e a de Guntánamo, em Cuba, são exemplos contemporâneos dessa prática.

Já num país como o Brasil, onde a modernidade foi travada pela persistência
de uma estrutura social escravagista, nada exemplifica melhor a permanência
de uma mentalidade pré-iluminista do que a continuidade que existe entre os
castigos físicos que qualquer capitão-do-mato aplicava antigamente nos negros
fujões e os “maus-tratos” que qualquer policial poder aplicar ainda hoje, sem
maiores consequências, a qualquer pequeno marginal205.

                                                            
201 SINHORETTO, Jacqueline. Desigualdade racial e segurança pública em São Paulo: letalidade
policial e prisões em flagrante. GEVAC/UFSCar, abril de 2014.
202 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na
cidade do Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
203 SAFATLE, Vladmir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; SAFATLE,
Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura? - a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 238.
204 OLIVEIRA, Luciano. Tortura. In: LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz; AZEVEDO,
Rodrigo Ghiringhelli de. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014, p. 464.
205 Idem, p. 466.
64 
 

A tortura-prova, que visa informações do torturado, embora se mantenha em um


não dito das práticas policiais, é uma modalidade aplicada no Brasil contemporâneo. Em
Porto Alegre, os torturáveis regularmente são os criminalizados por delitos contra o
patrimônio e tráfico de drogas, estando os policiais respaldados pelos anseios midiáticos,
pela aceitação social das atuações violentas e por um discurso de um combate ao mal
maior (a criminalidade)206. Não se pode negar, no entanto, que tais elementos não sejam
somente regionais, quando possivelmente estejam arraigados nas mais profundas bases
da cultura policial brasileira.
Atualmente, se não durante a abordagem realizada pela Polícia Militar em vias
urbanas, a tortura ocorre após a prisão do suspeito que é levado para uma delegacia, onde
passa à custódia da Polícia Civil. Os relatos de tortura no Brasil giram em torno de
eletrochoques; espancamento com palmatória, uma pá de madeira larga com cabo curto;
submersão da cabeça em saco plástico cheio de água até o afogamento parcial; execuções
fingidas; o pau de arara, onde as vítimas são penduradas de cabeça para baixo e
espancadas ou submetidas a eletrochoque207.

Por vezes, essa linha tênue que separa agentes de farda do Estado daqueles que
são criminalizados/mortos/torturados é violada descaradamente em comunidades mais
pobres. Na última década tem ganhado força nessas localidades as chamadas milícias,
quase que regularmente formadas por policiais ou ex-policiais208. O início da dominação
sobre as comunidades se dá com um projeto moral de pacificação ou de libertação dos
indivíduos que antes se encontravam sob a coação do tráfico de drogas209. Controle por
grupos armados, coação contra moradores e comerciantes locais, motivação de lucro
individual para os membros da milícia, posição de comando ocupado por agentes de
segurança pública do Estado e imposição de taxas obrigatórias a moradores em troca da
suposta proteção e/ou prestação de serviços consumidos na comunidade são algumas de
suas características210.

                                                            
206 GONÇALVES, Vanessa Chiari. Tortura e cultura policial no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro:
Lumens Juris, 2014, pp. 213-246.
207 ANISTIA INTERNACIONAL. “Eles nos tratam como animais”. Tortura e maus-tratos no Brasil:
desumanização e impunidade no sistema de justiça criminal. Rio de Janeiro, 2001.
208 Tal situação é muito bem retratada no filme Tropa de Elite 2 (2010), dirigido por José Padilha.
209 CANO, Ignácio; DUARTE, Thaís. Milícias. In: LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz;
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014, p.
327.
210 Idem, p. 330.
65 
 

Na direção contrária do que se poderia deduzir, a atuação das milícias nas favelas
dominadas no Rio de Janeiro é menos violenta e muito mais transparente do que aquelas
subjugadas por traficantes. Nessa cidade, em 2007, revelou-se que nas comunidades
dominadas por agentes da segurança pública, esses enfrentam os conflitos internos das
localidades com uma violência mitigada em relação àquela utilizada por traficantes, os
quais, sob o signo da guerra, acabam por agir de forma mais violenta e optando por,
diante uma conduta rebelde às normas estabelecidas e como primeira opção, utilizar-se
do assassinato como forma de punição211. Os milicianos primeiro agridem ou expulsam
da favela antes de sentenciar à morte212.
Por óbvio, essas constatações não reduzem a barbárie perpetrada pelos agentes de
segurança pública (policiais, ex-policiais, bombeiros militares, agentes ou ex-agentes
penitenciários) que dominam as favelas cariocas. Suas atuações, ao arrepio das
legislações constitucionais e infraconstitucionais, colocam em xeque a violência pura
com que – mesmo que em menor medida em relação às áreas dominadas pelo tráfico de
drogas – coagem os moradores a obedecerem seus códigos morais e regras impostas.
Embora com mais força nos Estados do Rio de Janeiro 213 e São Paulo, essa
situação demonstra atuar a polícia com pouquíssimos freios democráticos inibitórios, não
revelando qualquer preocupação com punição na seara penal ou administrativa com a
perda do cargo público. Com violência sobre todos aqueles que se opuserem sobre seus
objetivos e com um discurso oficial de pacificação das áreas – uma técnica de
neutralização bastante palatável, como se pode observar – que justifica a eliminação não
só daqueles construídos como inimigos da sociedade, traficantes de drogas e/ou facções
criminosas, mas também de competidores pela dominação das comunidades.
Em outra medida, no caso de localidades dominadas por traficantes, o ápice dessa
engrenagem policial corrupta se dá quando no imaginário coletivo construído por seus
moradores existe mais medo da polícia local do que dos próprios traficantes. Dois motivos

                                                            
211 ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel Siqueira. Favelas sob o controle das milícias no Rio de
Janeiro: que paz? São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 21, n. 2, p. 89-101, jul./dez.
2007, p. 99.
212 Idem, p. 99.
213 O Deputado Marcelo Freixo (PSOL) colocou o tema em evidência ao atuar na presidência da
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar a ação de milícias no Estado do Rio de
Janeiro. Para uma visão geral, ver: ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Assembléia Legislativa do Estado
do Rio de Janeiro. Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a ação de
milícias no âmbito do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: < http://www.nepp-
dh.ufrj.br/relatorio_milicia.pdf>. Acesso em: 17 jun/2016.
66 
 

são bastante claros. Primeiro, porque devido ao chamado arrego 214 , valor recolhido
diariamente do tráfico pela polícia, essa última acaba degenerando sua imagem como
instituição estatal que buscava levar justiça e democracia ao território. Segundo, porque
enquanto os traficantes possuem regras e na maioria das vezes são inflexíveis quanto a
sua aplicação, da polícia, pelo contrário, o indivíduo não sabe o que esperar215.
Inclusive, as facções criminosas, por vezes lideradas por membros que mantém
vínculos familiares e também sociais há muitos anos com os moradores das comunidades
– como o caso daqueles que crescem no meio do tráfico até chegarem à liderança –
garantem, às vezes mais como estratégia de apaziguamento do que de simpatia pelos
moradores, serviços básicos (alimentação, remédios, festas de crianças) – que por ocasião
da tomada do território por uma facção de fora, pouco identificada com a comunidade,
podem ser obliterados216.
Há múltiplas vias, mas em todas a polícia age ilegalmente. Se existe uma favela
dominada pelo tráfico, se vê com desconfiança a polícia que sobe para buscar uma taxa
para a manutenção da “paz”. Por sua vez, se o território é dominado por milicianos,
mesmo que pesquisas demonstrem ser essa mais pacífica do que aquelas dominadas pelo
tráfico, são agentes de segurança pública utilizando-se do aparato do Estado para garantir
interesses próprios, com a perspectiva arrecadatória de serviços – de segurança e outros
mais básicos – cobrados com uma taxa mensal.
Nesse sentido, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s), com o discurso
oficial do Estado em tentar tornar áreas mais afastadas dos direitos básicos e por vezes
violentas – caso das favelas no Rio de Janeiro, desde há muito vistas como fonte de
perigo217 – gestaram-se a partir de duas frentes: uma policial, em que se buscava erradicar
o tráfico de drogas de determinadas áreas, e outra voltada à educação, à saúde, à
urbanização dos locais em seu entorno, visando uma melhor qualidade de vida para os
moradores. No entanto, a primeira visão preponderou sobre a segunda e a militarização
da vida urbana, carregada de um forte empresarialismo urbano das cidades – onde tornam-
se mais visíveis quando da captação de eventos mundiais, no caso do Brasil a Copa do

                                                            
214 SOARES, Luiz Eduardo; BILL, MV; ATHAYDE, Celso. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 2005, p. 259.
215 SOARES, Luiz Eduardo; BILL, MV; ATHAYDE, Celso. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 2005, p. 263.
216 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CIPRIANI, Marcelli. Um estudo comparativo entre facções.
Revista Sistema Penal & Violência. Porto Alegre, v. 7, n. 02, p. 160-174, julho-dezembro, 2015, p. 166.
217 BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de
Janeiro: Revan, 2003, 2ª reimpressão, outubro de 2014, p. 112.
67 
 

Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 – em que a cidade e seus mais diversos espaços
são vistos como fonte de lucro, tornou-se a regra218.
No entanto, situação complexa se dá quando da morte de algum dos moradores
dessas localidades. Pode-se perguntar: se a polícia mata tanto, por que há tão pouco
clamor público? Por que a indignação não é tão grande? Em nível macroteórico, pode-se
responder tais perguntas ao incorporar as percepções dos cidadãos quanto às vítimas dessa
específica violência. Se como referido acima as favelas são vistas como fonte de perigo,
perigosos são (naturalmente) aqueles que a habitam, e por isso passíveis de neutralização
– a qualquer custo, como se vê. Quer dizer, são vistas pela polícia e pela sociedade
brasileira como “marginais” (ou subcidadãos) socialmente nocivos que, ao contrário de
serem vistas como vítimas, são consideradas as perpetradoras cujo comportamento “mau”
deve ser gerenciado para proteger os “cidadãos de bem”219. Atualização constante do
positivismo criminológico, do autoritarismo e do higienismo que constituiu a polícia
desde sua gênese.
Embora a letalidade da polícia e sua operacionalidade autoritária não seja tão
visível para os indivíduos em geral em nossa sociedade – tocando à memória política, por
sua vez, o papel de retirar os mantos neutralizadores que tal instituição se reveste para,
quiçá, dar-lhe outro uso – encontrando muitas vezes apoio às suas ações (por vezes
ilegais) visivelmente direcionada para grupos mais vulneráveis, no âmbito da academia e
da política tem-se tentado traçar reformas com o escopo de adequar a polícia ao momento
democrático que vivem os países.
De forma ampla, e com base em diversos contextos culturais, Sozzo traça o que
se considera duas linhas principais daqueles que propõe reformas na operacionalidade da
polícia para uma aderência democrática. Para ele, tais iniciativas se traduzem no intento
de liberar as polícias modernas de elementos que visivelmente estão conectados ao
autoritarismo como racionalidade governamental. Tratam-se de discursos que “viajam
culturalmente” para se alocarem como “traduções” ajustadas a contextos culturais
específicos220. O primeiro desses discursos reformistas marca claramente uma busca pelo
retorno ao liberalismo, uma vez que pretende resgatar as linhas anteriormente traçadas –

                                                            
218 VALENTE, Júlia Leite. UPPS: governo militarizado e a ideia de pacificação. 1.ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2016, p. 151.
219 HUGGINS, Martha Knisely. Violência urbana e privatização do policiamente no Brasil: uma mistura
invisível. Caderno CRH, Salvador, vol. 23, n. 60, p. 541-558, Set./Dez. 2010, p. 546.
220 SOZZO, Máximo. “Policía, gobierno y racionalidad: exploraciones a partir de Michel Foucault”, p.
273.
68 
 

a partir de Foucault e do próprio Sozzo – que buscavam a remodelação liberal da velha


polícia: minimização, legalização e criminalização (localizando nesse último ponto a
intenção de atribuir à atividade policial os caráteres preventivo e investigativo do delito).
Nesse modelo, tal polícia democrática teria como escopo fundamental fazer cumprir a lei
– dentro do campo dos delitos e contravenções – cumprindo a lei221.
Para tamanho intento, Sozzo aponta para três medidas que em geral aparecem
nessa linha reformista da polícia: a) uma primeira que visa reestruturar normativamente
a polícia e seus regulamentos para que se ajuste aos “princípios do Estado de Direito”; b)
uma segunda que buscaria transformar os processos de educação policial para modificar
a cultura vigente instalando no interior da instituição e como eixo da atividade policial a
lei ajustada aos “princípios do Estado de Direito”; c) por último, modificação do
funcionamento dos mecanismos de controle – externos e internos – da atividade policial,
fazendo com que a polícia democrática cumpra a lei em sua tarefa de fazer cumprir a lei.
Por seu turno, a segunda declinação por uma “polícia democrática” nos discursos
acadêmicos e políticas reformistas encontra suas origens fundamentalmente nos Estados
Unidos dos anos setenta em diante e trata-se da chamada polícia comunitária. Segundo
Sozzo, tal modelo de polícia aparece para tentar reverter os indicadores negativos de
eficácia e eficiência, a forte desconfiança por parte do público e ainda a tendência –
tomada nesse trabalho como regra permanente que se faz possível a partir da exceção –
em produzir abusos e excessos com o uso da força222. Sua operacionalidade se dá a partir
da construção de novas técnicas policiais voltadas à relação e comunicação com os
moradores de bairros e/ou suas associações. A partir disso, postos policiais seriam
montados em cada bairro, voltados à aproximação entre a figura do policial e daquele que
ali reside. A tendência, nessa perspectiva reformista, é de que a polícia busque nesses
moradores suas diretrizes de atuação, não ficando somente limitada à prevenção ou
repressão de delitos, mas também se ocupará das “incivilidades” e das “desordens”,
tornando-se uma verdadeira polícia orientada para a resolução de problemas223.
No Brasil, a academia, consciente dos legados autoritários – tanto no que se refere
às leis quanto à cultura policial da barbárie – aponta a necessidade de reforma da polícia
e até mesmo suas dificuldades. Segundo Luiz Eduardo Soares um dos maiores problemas,
dentre tantos outros, da polícia brasileira, é o fato de essa estar diretamente ligada à uma

                                                            
221 Idem, p. 275.
222 Idem, p. 276.
223 Idem, p. 277.
69 
 

“cultura do encarceramento” – que assola o mundo e também o Brasil, como já


demonstrado – ao invés da busca por redução da violência. Isso quer dizer que avalia-se
a polícia não pela redução das estatísticas de violência(s) decorrentes de diversas
categorias de crime, mas sim pela quantidade de pessoas que é capaz de segregar, vivendo
sob a pressão de cumprir metas em números 224 . A criminalização das drogas – um
sinônimo de criminalização da pobreza – e a militarização de seu aparato contribui para
agravar essa situação.
Nesse sentido, ao contrário do que se pensa, os próprios policiais e demais agentes
da segurança pública no Brasil apoiam alguns ideais reformistas. Numa pesquisa de 2010
em que foram ouvidos 64.120 policiais e outros profissionais da área, 70% consideram
necessária a unificação do ciclo do trabalho policial – prevenção, repressão e investigação
– hoje dividido entre as policias militar e civil. Somente 15% dos policiais militares
entrevistados defendem o atual modelo, enquanto 77% querem mudanças. Já nas polícias
civis, 41% dos agentes e 40,1% dos delegados defendem o atual modelo, enquanto 56,4%
dos delegados e 51,2% dos agentes desejam mudanças na instituição. Quando se computa,
no geral, as posições pró-mudança, sem distinção de patente, os números ficam assim:
51,9% dos policiais civis e 77% dos policiais militares225.
No âmbito da política, tramita no Senado Federal o Projeto de Emenda
Constitucional (PEC) n.º 51, que visa alterar os artigos 21, 24 e 144 da Constituição
Federal do Brasil, acrescentando os artigos 143-A, 144-A e 144-B, buscando
primordialmente reestruturar o modelo de segurança pública a partir da desmilitarização
do modelo policial. Suas propostas-chave são, segundo Luiz Eduardo Soares: a)
desmilitarização: as polícias militares deixam de existir na medida em que perdem seu
caráter militar; b) a instituição policial no Brasil passa a se ordenar por carreira única; c)
unificação do ciclo completo do trabalho policial; d) a decisão sobre o formato das
polícias passa a ser dos Estados; e) os Estados escolherão o modelo policial a partir de
duas categorias: territorial e criminal; f) a depender das escolhas feitas pelos Estados, os
municípios poderão assumir maior ou menor grau de responsabilidade na segurança
pública; g) ampliam-se as responsabilidades da União, sobretudo na uniformização das
categorias que organizam as informações e na educação, assumindo a atribuição de

                                                            
224 SOARES, Luiz Eduardo. Por que tem sido tão difícil mudar as polícias?. In: Bala Perdida: a
violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. Bernardo [et al] – 1. ed. – São Paulo:
Boitempo, 2015.
225 SOARES, Luiz Eduardo; ROLIM, Marcos; RAMOS, Silvia. O que pensam os profissionais da
segurança pública, no Brasil. Ministério da Justiça – SENASP. Agosto de 2009, 105 páginas, pp. 13-15.
70 
 

supervisionar e regulamentar a formação policial; h) avanços no controle externo da


polícia; i) por último, avanços também nos direitos trabalhistas dos profissionais da
segurança pública226.
Por sua vez, a polícia comunitária também tem encontrado espaço no âmbito das
práticas de policiamento no Brasil, representando os anseios por alternativas ao modelo
tradicional de polícia. Sua atuação seria marcada, principalmente, pela integração que
realiza junto à determinada localidade – região, bairro, etc. – com o fim de descobrir os
anseios e problemas de segurança ali existentes. Suas bases estariam assentadas em uma
nova filosofia de policiamento, onde esse se tornaria mais personalizado e próximo da
sociedade.
A resolução 34/169, de 17 de dezembro de 1979, das Organizações das Nações
Unidas (ONU), o Code of Conduct for Law Enforcement Officials, é verdadeiro marco
para essa forma de policiar. Ela prescreve que qualquer órgão do sistema de justiça penal
deve ser representativo da comunidade em seu conjunto, estipulando também três
princípios básicos: representatividade, responsabilidade e responsividade227.
Nos Estados Unidos da década de 60, devido aos diversos problemas bastante
tensionados à época, como a criminalidade e o tumulto urbano, as formas de policiamento
tradicional – pautadas por políticas criminais de law and order e three strikes and you’re
out – passaram a ser colocados em xeque 228 . A partir disso, novos estudos foram
realizados, sendo um dos resultados a chamada polícia comunitária. A incapacidade da
polícia tradicional de lidar com os levantes de guetos nos bairros negros ou a partir deles
sem utilizar uma violência brutal – debate que se encontra aceso até hoje naquele país –
faz com que a eficácia policial seja questionada, e mais, o caráter nocivo de alguns
policiais à sociedade é demonstrado229.
Para Monjardet, ainda vinculado à realidade norte-americana, a implementação da
polícia comunitária e de sua forma de policiamento deve estar vinculado a quatro eixos
principais: descentralização organizacional, facilitando a comunicação entre polícia e
público; resolução de problemas; atenção às prioridades dos cidadãos da localidade em

                                                            
226 SOARES, Luiz Eduardo. PEC-51: revolução na arquitetura institucional da segurança pública.
Disponível em: <http://www.luizeduardosoares.com/?p=1185> Acesso em: 08/08/2016.
227 SANTOS, José Vicente Tavares do (Org.). Programas de polícia comunitária no Brasil: avaliação de
propostas de Políticas Públicas de Segurança. Ministério de Justiça e Cidadania – Governo Federal.
228 MONJARDET, Dominique. O que faz a polícia: sociologia da força pública. Posfácio Jean-Marc
Erbès. Tradução Mary Amazonas Leite de Barros. 1.ed. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2012, p. 258.
229 Idem, p. 260.
71 
 

que instalada a polícia comunitária; e por último, coprodução de segurança, reconhecendo


a polícia comunitária que a segurança não é exclusiva à polícia, mas também dos
habitantes da localidade, num programa de integração-prevenção230.
Por óbvio que não foi somente nos Estados Unidos da América que tal forma de
policiar foi pensada e colocada em prática. No Canadá, por exemplo, há aproximadamente
trinta anos, iniciou-se a implementação da polícia comunitária, sendo essa realizada no
lapso temporal de oito anos, na medida em que foram operacionalizadas mudanças
estruturais da polícia, a qual apresentava níveis altos de insatisfação junto à sociedade.
As cidades passaram, então, a serem divididas em distritos policiais e os distritos em
pequenas vizinhanças.
No Brasil, essa iniciativa nasceu a partir da década de 1980, sendo a Polícia Militar
do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) a percursora nessa forma de policiamento com a
tradução de manuais sobre o tema e realização de um programa em 1983231. Não podendo
firmar considerações acerca do andamento dos diversos projetos em andamento, vez que
regionalizados e com características muito próprias, ressalta-se que atualmente a polícia
comunitária encontra suas bases – na busca por formações cada vez mais adequadas às
exigências dessa nova filosofia de policiamento – nos seguintes Estados brasileiros:
Bahia, Espírito Santo, Alagoas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio Grande do
Sul, São Paulo232.
Portanto, duas visões principais parecem preencher o panorama acadêmico
brasileiro acerca da reforma da polícia: uma primeira que considera necessário a
reestruturação normativa, de cultura e de propriamente imposição de limites da polícia
dentro do regime democrático, assim como sua desmilitarização, tornando-a “civil”.
Outra, como colocado, é a da polícia comunitária, onde se buscar uma maior aderência
dos agentes policiais junto à determinada região, buscando suas pautas de forma mais
horizontal e partindo das necessidades reais dos moradores dos bairros onde situadas as
equipes – uma polícia cidadã, poderia se dizer.
Assim é que, colocado o panorama histórico-sociológico da polícia no Brasil,
onde sua atuação é marcada por forte autoritarismo inerente à criação dessa instituição,

                                                            
230 Idem, pp. 257-265.
231 Para uma visão aguçada no nascimento da polícia comunitária no Rio de Janeiro, ver: RIBEIRO,
Ludmila. O nascimento da polícia moderna; uma análise dos programas de policiamento comunitário
implantados na cidade do Rio de Janeiro (1983-2012). Análise Social, 211, xlix (2.º), pp. 272-309, p. 274.
232 SANTOS, José Vicente Tavares do (Org.). Programas de polícia comunitária no Brasil: avaliação de
propostas de Políticas Públicas de Segurança. Ministério de Justiça e Cidadania – Governo Federal.
72 
 

encaminha-se a pesquisa para outra perspectiva, a fim de integrar as formas de saber-


poder que pautam a atuação da polícia para, ao final, compreender a lógica de um
dispositivo policial que se faz presente, subjetivando e dessubjetivando constantemente.
73 
 

3 O DISPOSITIVO POLICIAL SOB A EXCEÇÃO PERMANENTE: QUEM


ASSINA A VIOLÊNCIA?

O presente capítulo se destina a aprofundar o papel da polícia na


contemporaneidade, demonstrando situar-se esse espectro policial exatamente onde o
direito não alcança mais: os espaços de exceção, ou as “terras de ninguém”, como
expostas por Agamben233. É lugar-comum considerar a polícia como fonte de ordem e
desenvolvimento das táticas punitivas (no contexeto brasileiro, mormente o
encarceramento), não enxergando a força com que, por trás de suas práticas legítimas e
ilegítimas, a força do soberano se perpetua e mantém seu assento em pleno contexto
democrático.

Embora novos mecanismos de poder surgiram, ainda subsistem certas


representações que se pautam numa lógica soberana de ser: a cabeça do rei não foi
cortada234. Com sua função repressiva advinda de uma nova arte de governar expressa
através de mecanismos de segurança, a polícia é radicalmente a expressão do soberano,
agora pulverizado e capilarizado em diversos espaços urbanos. Se antes somente a figura
do rei, no regime monárquico, decidia sobre a vida (e a morte) de seus súditos, agora a
polícia, sobre a população, é que terá a possibilidade de (se lhe bem convir, por causa do
sol235) decidir sobre quem irá viver ou não.

Desde 1940 que Walter Benjamin, na Oitava Tese de suas teses Sobre o conceito
de história, alertou: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção”
(“Ausnahmezustand”) em que vivemos é a regra”236. Quer dizer, enquanto a vida de
alguns mantém-se politicamente qualificadas, e assim acobertadas pelo ordenamento
jurídico e suas garantias elementares, a outros esse mesmo ordenamento suspende-se a si
próprio, deixando-os despidos de qualquer força que impeça a violação de seus direitos e
não comumente a própria eliminação física – vida nua por excelência. Com isso, assiste-

                                                            
233 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti – 2. ed. – São Paulo:
Boitempo, 2004, p. 12.
234 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 3ª ed. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 97.
235 CAMUS, Albert. O estrangeiro. Tradução de Valeire Rumjanek. 37ª ed. – Rio de Janeiro: Record,
2015.
236 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história, p. 245.
74 
 

se à construção de um mundo inumano onde a violência reina para todos os lados e o in-
suportável passa a ser suportado237.

Onde a vida é capturada a partir da exceção, no momento em que o ordenamento


suspende a si próprio e produz vidas nuas em escala nunca antes imaginada, a importância
da polícia está deflagrada pela função que essa cumpre dentro do sistema punitivo, mas
mais do que isso dentro da própria governabilidade biopolítica. Por isso, traz-se
inicialmente a entrada da soberania na imagem da polícia, identificada por Agamben.
Posteriormente, a espectralidade da polícia – e sua colocação entre as duas violências
(que funda e conserva) – que a transforma naquilo que degenera a democracia, colocada
por Benjamin e Derrida e, por fim, negando qualquer vinculação contratualista da polícia,
sua função dentro de um paradigma de guerra civil, tomando como ponto de partida
Foucault e, em suas últimas análises dentro do projeto Homo Sacer, Giorgio Agamben.

3.1 A polícia no paradigma da guerra civil: soberania e degenerescência democrática

Na busca por compreender o papel das instituições à disposição das democracias


contemporâneas, é necessário entender as formas de governamentalidade que por trás
delas se colocam, dirigindo-as com determinados meios a objetivos definidos. Para tanto,
com o intuito de aprofundar um olhar sobre o dispositivo policial e sobre quais brechas
suas linhas de força agem nas sociedades atualmente, é nos espaços (e rasgos) de exceção
dos modelos políticos-democráticos que se acredita estar acoplada a maior potencialidade
das polícias – de ontem e de hoje. Como uma forma que garante a união da violência que
funda e da violência que conserva, a polícia, vai perguntar Derrida, movendo-se entre os
rasgos da exceção, não poderia ser o nome daquilo que degenera a democracia?238

Nos rastros de Foucault (e sua biopolítica) e Arendt (nos estudos sobre


totalitarismo), Agamben propõe uma leitura das técnicas de governo a partir do paradigma
do estado de exceção239, onde medidas jurídicas excepcionais – pautadas comumente na
lógica da emergência – ganham um verniz legal onde não poderia haver forma legal, quer

                                                            
237 SOUZA, Ricardo Timm. Ética como fundamento II: pequeno tratado de ética radical. Caxias do Sul,
RS: Educs, 2016, p. 77.
238 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução Leyla Perrone-
Moisés. 2ª Ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 107.
239 Para uma visão geral sobre o tema, conferir o trabalho: PONTEL, Evandro. Estado de exceção:
estudo em Giorgio Agamben. Passo Fundo: IFIPE, 2014.
75 
 

dizer, terras de ninguém são criadas quando o direito se refere à vida e a inclui em si por
meio de sua própria suspensão240. Como uma forma de governar através de decretos e
medidas legislativas advindas preponderantemente do poder executivo, a exceção torna-
se paradigma de governo, onde se torna indistinguível democracia e absolutismo241.

Esse estado de exceção decreta uma zona de indiferença, onde a vida do indivíduo
é colocada à disposição de um poder sem limites. Tal exceção que não se concentra em
categorias políticas ou jurídicas, ou seja, nem em potência externa ao direito (Carl
Schmitt) nem em norma suprema do ordenamento jurídico (Kant), mas que se apresenta
como estrutura originária do direito242. E é dessa categoria que vai surgir o homo sacer,
figura do direito romano arcaico, em que a vida é colocada à disposição da esfera
soberana, tornando-se matável e, ao mesmo tempo, insacrificável – pode matar sem
cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício243. Verdadeira vida nua, politicamente
desqualificada e por vezes indigna de serem vivida244. Nesse sentido, vale o alerta (a fim
de evitar leituras equivocadas) de que essa vida nua não está à margem do direito, como
um defeito consertável, bastando leva-lo o até ela, mas ela é consequência do próprio
direito245.

É como se toda valorização e toda “politização” da vida (como está implícita,


no fundo, na soberania do indivíduo sobre a sua própria existência) implicasse
necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa e,
como tal, pode ser impunimente eliminada. Toda sociedade fixa este limite,
toda sociedade – mesmo a mais moderna – decide quais sejam os seus “homens
sacros”246.

A catarse dos tempos contemporâneos está identificada por Agamben quando o


plano da exceção, antes muito menos localizável pelo ordenamento, tende a sobrepor-se
a esse de forma preponderante e constante, tornando paradoxalmente indistinguível – a
partir da relação de exceção imposta entre o que é regra e o que é fato – interno e externo,
zoé e bíos, exclusão e inclusão, direito e fato247. Os homini sacri se multiplicam para além
do que pretendeu qualquer monarca mais ferrenho algum dia na história ao suspender

                                                            
240 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção, p. 12.
241 Idem, p. 13.
242 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 34.
243 Idem, p. 91.
244 Idem, p. 146.
245 PEREIRA, Gustavo Oliveira de Lima. Vida nua e estado de exceção permanente: a rearticulação da
biopolítica em tempos de império e tecnocapitalismo. Revista Sistema Penal & Violência. Porto Alegre,
volume 06, número 02, p. 215-231, jul/dez. 2014, p. 220.
246 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 146.
247 Idem, pp. 25-27.
76 
 

imediatamente os direitos de seus súditos – afinal, haveriam alguns incautos que, por
nobreza ou ofício religioso, poderiam manter-se dentro da lógica do ordenamento. Hoje,
mesmo com o regime democrático sendo regularmente adotado pelos países do Ocidente,
a exceção, vai apontar Agamben, vira a regra quando o ordenamento suspende a si próprio
permanentemente.

Nesse caminho, a figura do soberano – a quem cabe a decisão da instauração da


exceção ou não – pode ser vista na figura da polícia moderna, vez que essa, para muito
além de uma função meramente administrativa, vai carregar consigo, dentro dos espaços
de exceção, a troca constitutiva entre violência e direito (que caracteriza a soberania)248,
principalmente pela zona de indistinção posta pelas sempre lembradas palavras-chave –
as quais fazem as pessoas aceitarem medidas que não teriam motivos para aceitar249 –
ordem pública e segurança250. A sacralidade com que a polícia une em sua figura tanto o
soberano (quem decide) quanto o carrasco (quem cumpre) não pode ser esquecida, tanto
mais quando se lembra que as atrocidades do Terceiro Reich ao fim trataram-se
exclusivamente de uma operação de polícia251 – com o extermínio de milhões de judeus
em campos de concentração252.

Esse papel decisivo da polícia já foi colocado à exposição por Walter Benjamin
em seu famoso Zur kritik der gewalt, ou Crítica da violência – crítica do poder, momento
em que assinala a existência de duas violências: a que funda e a que conserva. A primeira
tem seus traços no direito de greve concedido pelo Estado, assim como no direito bélico
(ou da guerra). Em ambas essas situações, um direito originário é criado, ameaçando o
poder instituído desde seu interior. Seus requisitos seriam a vitória através do
estabelecimento de uma paz, a qual consiste em que as novas relações reconheçam um
novo direito 253 . Violência que funda um direito, portanto, e ameaça a própria
sobrevivência dele constantemente. Por seu turno, Benjamin ressalta que o serviço militar
obrigatório demonstrará existir outra violência. A violência que conserva. Ao direito, não

                                                            
248 AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine: Note sulla política. Torino: Bollati Boringhieri, 1996, p. 83.
249 AGAMBEN, Giorgio. L’uso dei corpi. Homo sacer, IV, 2. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2014, pp.
333-352.
250 AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine, p. 84.
251 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade, p. 107.
252 Idem, p. 85.
253 BENJAMIN, Walter. Por una crítica de la violencia. Edición eletrônica disponível em:
www.philosophia.cl / Escuela de Filosofía Universidade ARCIS. Acesso em: 10.08.2016.
77 
 

basta somente impor novas relações, mas mantê-las. A coação que impõe o serviço
obrigatório consiste exatamente na imposição de violência como meio para fins jurídicos.

A polícia moderna, para Benjamin, é portadora, quase de forma espectral, dessas


duas violências, na medida em que é tanto um poder com fins jurídicos (podendo dispor),
mas ainda carrega a possibilidade de estabelecer para si própria, dentro de vastos limites,
os fins (poder para ordenar). Porém, o que mais produz horror na autoridade policial é
que essa suprimiu a divisão entre violência que funda e violência que conserva a lei: se
na primeira é exigido que se mostra a vitória (e instauração de um novo direito, portanto)
e na segunda que não proponham novos fins (para além dos já estabelecidos pelo direito
fundado), a polícia encontra-se emancipada de ambos. Isso porque a polícia é um poder
que funda – na medida em que se operacionaliza não pela lei legislada, mas por decretos
e regulamentos com força de lei – ao mesmo tempo que conserva o direito, pondo-se à
disposição de seus fins254.

Frente a isso, Benjamin irá afirmar que os fins da polícia nem sempre são idênticos
aos do direito estabelecido, o que faz dela uma instituição que se utiliza de um poder
informe, espectral, difuso e de difícil localização. Assim, seu espírito é menos destrutivo
onde encarnava, na monarquia absoluta, o poder do soberano, onde se reunia legislativo
e executivo na mesma figura, do que nas democracias, onde sua presença testemunha o
máximo de degeneração possível da violência255. Recordando-se da pergunta de Derrida
acima colocada: polícia não poderia ser o nome daquilo que degenera a democracia?256
Em outros termos, pode-se arriscar a colocar da seguinte maneira a questão trazida por
Benjamin: a polícia, ao não estar totalmente vinculada ao direito anteriormente fundado
e calcado em leis provenientes do Poder Legislativo (e, dessa maneira, da vontade do
povo, segundo as democracias modernas) acaba por, através de decretos e regulamentos,
fundando constantemente – como dirá Foucault, em golpes de estado permanentes – um
novo direito através da violência. Não se sabe a que direito a polícia está vinculada, se
àquele vinculado a um poder central ou à sua própria regulação interna. Soberania latente:
violência e direito se confundem, tornando-se indistinguível ao mover-se dentro do
campo da exceção.

                                                            
254 Idem.
255 Idem.
256 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade, p. 107.
78 
 

Jacques Derrida, nos rastros deixados pelo referido texto de Benjamin, vai tentar
aprofundar algumas questões. Para ele, a espectralidade da polícia decorre do fato de ser
um corpo que nunca está presente para ele mesmo, para aquilo que ele é, ou seja, ele
aparece desaparecendo ou fazendo desaparecer aquilo que representa: um pelo outro. No
fundo, nunca se sabe com quem se está lidando, na medida em que os limites da polícia
de Estado são indetermináveis: ao fim e ao cabo, imunda por essência, em razão de sua
hipocrisia constitutiva. Essa ausência, continua Derrida, de limite provém não só pelo
fato de a polícia ser uma tecnologia de vigilância e repressão, mas também por ser o
espectro do Estado, de modo que, rigorosamente, não se pode atacá-la sem declarar guerra
à res publica257.

No mesmo sentido daquela polícia foucaultiana, entrelaçando com as violências


de Benjamin e com os espaços de exceção de Agamben, Derrida pontua: a polícia não se
contenta em seguir a lei, pois ela a inventa, ela publica decretos, ela opera com a noção
de segurança – aclamada contemporaneamente no Ocidente – toda vez que a situação
jurídica não é suficiente, ou seja, “hoje, quase o tempo todo”258, afinal ela é força de lei,
ela tem força de lei. Ela inventa o direito toda vez que esse é insuficientemente
indeterminado para lhe dar essa possibilidade, quer dizer, “a polícia se comporta como
um legislador nos tempos modernos, para não dizer como o legislador dos tempos
modernos”259.

No fundo, vai dizer Derrida, o que ocorre é o paradoxo da iterabilidade: a polícia


não se contenta em aplicar leis que antes dela não possuíam qualquer força, afinal o
paradoxo consiste exatamente que a origem deva originariamente repetir-se e alterar-se,
para então valer como origem e se conservar. Tal iterabilidade impede que haja
fundadores puros, legisladores, iniciadores. Assim é que a polícia, como violência
fantasmagórica – figura sem figura – torna-se, ao captar as duas violências (fundação e
conservação), ainda mais violenta260.

Pois bem, a polícia que assim capitaliza a violência não é apenas a polícia. Ela
não consiste somente em agentes policiais fardados, às vezes com capacetes,
armados e organizados numa estrutura civil de modelo militar, à qual é
recusado o direito de greve etc. Por definição, a polícia está presente ou
representada em toda parte onde há força de lei. Ela está presente, às vezes

                                                            
257 Idem, p. 99.
258 Idem, p. 99.
259 Idem, p. 99.
260 Idem, p. 102.
79 
 
invisível mas sempre eficaz, em toda parte onde há conservação da ordem
social261.

Assim, um mal de polícia é o fato de essa ser uma figura sem rosto, uma violência
sem forma, não sendo apreensível como tal em nenhum lugar, sendo que nos Estados
civilizados o espectro de sua aparição se estende por toda parte, pontua Derrida262. Por
isso, e na esteira de Benjamin, pode-se arguir que o espírito (geist) da polícia faz menos
estragos em uma monarquia absoluta do que propriamente nas democracias modernas,
onde sua violência a degenera. Quer dizer, enquanto nas monarquias absolutas os poderes
executivo e legislativo então unidos, sendo a violência da autoridade do poder normal
nesse caso, conforme seu espírito declarado, por outro lado nas democracias a violência
não está à disposição da polícia (e ao seu espírito), na medida em que há a presumida
separação dos poderes, exercendo-se aquela de maneira ilegítima, sobretudo quando, ao
invés de aplicar a lei, ela a faz263. Degenerescência que corrói por dentro a democracia.

Nesse sentido, como espectro que é, a polícia se torna de difícil localização. Ela
está e não está ao mesmo tempo, tornando-se extremamente dificultoso defini-la ainda
que haja figuras em sua representação. Mas como espectro que assombra, ela olha para
todos por trás de sua armadura, ao mesmo tempo que não é vista – Derrida sublinhará tal
fenômeno como efeito de viseira264. Por trás de uma armadura, o espectro enxerga sem
ser enxergado. Proteção problemática, na medida em que não permite que a percepção de
quem a olha decida sobre a identidade que se encontra encerrada ali. A armadura – ou,
no caso da polícia, seus contemporâneos trajes de robocop que contam com escudos,
coletes a prova de balas, capacetes e viseiras – seria, portanto, uma espécie de corpo de
um artefato real, um corpo estranho ao corpo espectral que ela veste, dissimula e protege,
mascarando sua identidade265.

Tal armadura funciona para que o espectro veja sem ser visto, fale e seja ouvido.
A viseira possibilita esse funcionamento. A correlação com o espectro da polícia, então,
fica bastante claro e abre para novas perspectivas. Como já referido, é difícil de se
estabelecer a identidade da polícia, por essa ao mesmo tempo carregar as violências que
fundam e conversam e, não menos importante, operacionalizar-se a partir da exceção –

                                                            
261 Idem, p. 102.
262 Idem, p. 103.
263 Idem, p. 107.
264 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional.
Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 23.
265 Idem, p. 23.
80 
 

como soberana que é. O efeito de viseira é o que dá possibilidades de em algum momento


enxergar-se o corpo espectral da polícia, não por trás da armadura, mas superficialmente.
Apenas saber que ali se encontra uma figura fantasmagórica, porém sem possibilidade de
descobrir a que veio – através da violência, fundar ou conservar o direito? Já para a
espectralidade da polícia, a viseira possibilita enxergar sem ser vista, falar e ser ouvida (e
o diálogo, essencial ao panorama democrático, se vê impossível).

Esse cenário só tende a piorar quando, ao contrário do que se poderia deduzir, faz-
se claro que a polícia contemporânea não está a serviço de algum paradigma de contrato
social, derivado – com suas peculiaridades próprias – dos pensamentos de Thomas
Hobbes, Jean-Jacques Rousseau ou John Locke. Guardada as diferenças entre os
pensadores, sob esta égide, o contratualismo garantiria igualdade entre aqueles que doam
sua liberdade ao soberano para que a guerra de todos contra todos cessasse e um poder
central fosse instalado. No Leviatã, de Thomas Hobbes, encontram-se aproximações
emblemáticas as quais tornam-se difíceis de sustentar, principalmente frente ao cenário
contemporâneo: as noções de guerra civil e de guerra de todos contra todos. Voltar à
guerra de todos contra todos seria regressar ao estado de natureza, onde as pessoas ainda
não haviam se tornado súditos, pois não estava firmado um pacto social que concederia
poder de governo ao soberano. No entanto, algumas peculiaridades da noção da guerra
permanente entre todos não podem ser atribuídas à guerra civil.

Foucault vai criticar de forma contundente essa aproximação. Primeiro, porque


um primeiro elemento de uma guerra de todos contra todos supõe que os homens são
iguais nos objetos e nos objetivos que visam, assim como equivalentes nos meios que tem
para obter o que buscam, de modo que a substituição de um homem pelo outro é facilitada
pelo desejo em comum, criando uma desconfiança (pois cada um saberia que outro pode
vir e substituí-lo). Toda a apropriação de gozo ou posse torna-se precária, criando uma
rivalidade permanente266. Diante disso, e aqui se encontraria uma segunda dimensão da
guerra de todos contra todos para Foucault, só há um meio de calar a desconfiança gerada
e deter a rivalidade perpétua criada: vencer os outros com o acúmulo de poder, ou seja,
sair da igualdade esquemática delineada entre os homens, quer dizer, “aumento de poder

                                                            
266 FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva, p. 25.
81 
 

cujo efeito esperado é precisamente o de não procurarem mais substituí-lo e de ele poder
gozar tranquilamente o que tem, ou seja, de ser respeitado”267.

Estabelecido um poder central, instala-se o que Hobbes chamava de glória (o que


não se distancia muito do esplendor a que a polícia estava destinada a garantir): a
capacidade de impor respeito aos que pretendiam substituir-lhe através de signos
exteriores. A condição de guerra, de forma inescapável, era fruto das paixões naturais dos
homens 268 . Assim, depreende-se que em Hobbes somente a ordem civil, com o
aparecimento de um soberano, vai pôr fim à guerra de todos contra todos. Somente com
a transferência do poder ao soberano é que essa guerra terá fim. No mesmo sentido, se
esse poder se atenua e se dissipa, aos poucos se volta ao estado de guerra permanente,
estando cada indivíduo livre para proceder conforme seu discernimento269.

Assim, fazendo uma leitura da obra de Hobbes, nota-se que a guerra civil seria o
estado terminal da dissolução do poder soberano, mas também seria o estado inicial a
partir do qual o soberano poderia se constituir. E por isso mesmo Foucault vai propor
novos termos para se pensar a guerra civil, longe e na direção oposta da ideia de guerra
de todos contra todos. Primeiro, porque segundo Foucault a guerra civil não se daria no
nível da individualidade, mas sim entre elementos coletivos (famílias, etnias,
comunidades linguísticas, classes, etc.), de modo que “os atores da guerra civil são sempre
grupos na qualidade de grupos”270.

Além disso, se no pensamento hobbesiano a guerra civil tinha lugar deslocado de


qualquer forma de poder – antes ou depois da constituição de um poder central exercido
por um soberano – Foucault vai encarar esse paradigma diretamente: ele percorre,
desloca-se, movimenta-se e se exerce dentro das próprias relações de poder.

A guerra civil não é uma espécie de antítese do poder, aquilo que existiria antes
dele ou reapareceria depois dele. Ela não está numa relação de exclusão com o
poder. A guerra civil desenrola-se no teatro do poder. Não há guerra civil a não
ser no elemento do poder político constituído; ela se desenrola para manter ou
para conquistar o poder, para confiscá-lo ou transformá-lo. Ela não é o que
ignora ou destrói pura e simplesmente o poder, mas sempre se apoia em
elementos do poder271.

                                                            
267 FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva, p. 26.
268 HOBBES, Thomas. Leviatán: La materia, forma y poder de un Estado eclesiástico y civil. Alianza
Editorial: Madrid, 1992.
269 FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva, p. 26.
270 Idem, p. 26.
271 Idem, p. 28.
82 
 

Portanto, Foucault foge ao lugar-comum onde se pensa ser a guerra civil externa
ao poder estabelecido – e de seus instrumentos de exercício – mas ao contrário a observa
como aquilo que assombra o poder, habitando-o, permeando-o, investindo-o, animando-
o integralmente, “na forma da vigilância, da ameaça, da posse da força armada, enfim, de
todos os instrumentos de coerção que o poder efetivamente estabelecido adota para
exercer-se”272, de forma que o importante “para uma análise da penalidade é ver que o
poder não é o que suprime a guerra civil, mas o que a trava e lhe dá continuidade”273.

Para pensar de modo mais profundo a questão, Giorgio Agamben investe na


reflexão a partir da figura da stasis, nome dado à guerra civil na Grécia Antiga. Em um
primeiro plano, tenta localizar esse elemento dentro da oikos (casa, governo da família,
gestão dos indivíduos e bens da família), como a guerra que se estabelece entre o
parentesco consanguíneo e onde as vidas são marcadas pela zoé 274 . Num segundo
momento, traz a polis, local privilegiadamente político onde a bíos (vida qualificada
politicamente) se desenrola. No entanto, é numa zona de indiferença, então, próximo a
um estado de exceção, que a stasis irá se localizar275.

Dessa forma, a guerra civil na política contemporânea ocidental, assim como na


Grécia Antiga, vai funcionar no limiar entre a politização e a despolitização, através da
qual a oikos vai se exceder na cidade e a cidade, na via contrária, vai reduzir os cidadãos
à família. Um exemplo trazido é a Lei de Solone, a qual punia com a atimia (retorno ao
lar paterno e cassação dos direitos políticos) aquele que, ocorrida uma guerra civil, não
combatiam por qualquer um dos lados, expulsando-o, portanto, da polis e confinando-o
no âmbito privado da oikos276.

Assim, nota-se haver uma polarização de um campo de força em que figuram nas
extremidades oikos e polis enquanto no epicentro a stasis. Noutros termos, a guerra civil
(como já demonstrado por Foucault) parte das relações de poder e toma o espaço relativo
a politizar ou despolitizar os cidadãos. Seguindo as pistas de Agamben, o terrorismo

                                                            
272 Idem, p. 30.
273 Idem, p. 31.
274 Segundo Agamben, zoé exprime o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (vida humana
pura e simples) enquanto que a bíos, é uma maneira própria de viver de determinado grupo, isto é, uma
forma qualificada de se viver (AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 09).
275 AGAMBEN, Giorgio. Stasis: a guerra civile come paradigma politico. Homo sacer, II, 2. Bollati
Boringhieri: Torino, 2015, p. 24.
276 Idem, p. 25.
83 
 

talvez seria a forma contemporânea mais visível de uma guerra civil a nível global, já que
a vida é posta, através da exposição à morte (como vida nua que é), no jogo da política.

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração,


por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a
eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias
inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao
sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência
permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico)
tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive
dos chamados democráticos277.

Introduzir a noção de guerra civil como algo interno às relações de poder,


conforme propõe Foucault e Agamben, tenderia a inverter o modo consensual como a
sociedade é vista, mormente no tocante ao saber jurídico-penal. Quer dizer, se nos últimos
anos o debate priorizou apenas pensar a guerra como elemento externo – como as
declaradas a outros países – é porque havia alguma tendência por parte de quem detém o
poder, seja global ou internamente, em não demonstrar o conflito descarado (que se
desenrola através da violência que conserva e ao mesmo tempo produz o direito) criado
pelas formas de (re)pressão.

Diante disso, a polícia como degenerescência do panorama político-democrático


se locomoverá nessa zona de indistinção em que se localiza a stasis – ou estado de
exceção – (re)produzindo politização através da inclusão de determinados indivíduos nas
cidades e despolitização na medida da repressão de outros. Se um dia sua função foi mais
ampla e logo após reduzida à repressão de desordens, de modo a ser incluída nos
contextos democráticos como a representação do soberano, é na stasis que a polícia
encontra seu lugar.

Em suma, as forças policiais de um Estado nada mais são que a estampa do poder
soberano, pronta a reatualizar a guerra civil dentro das relações de forças existentes na
sociedade, atuando direta sobre os indivíduos. Espelho de uma microfísica que impele à
politização de um lado (ou seja, a uma vida qualificada) e à despolitização de outro
(retornando ao oikos como qualquer outro ser vivo), fazendo da democracia um jogo
político em que vidas nuas são meras peças de um tabuleiro onde se joga contra um
autômato programado para ganhar sempre. O desafio, portanto, coloca-se não mais em

                                                            
277 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção, p. 13.
84 
 

apontar o títere (referência expressa à polícia) e tentar reformá-lo para que comporte-se
de modo diverso, afinal o autômato será “capaz de responder (...) a cada lance do seu
adversário e de assegurar a vitória na partida”. Desligar seus mecanismos passa
primeiramente por apontar o “anão corcunda” [a exceção como regra] que ocultou-se
aí”278 enquanto ainda há tempo.

Assim, é de se notar que no âmbito da democracia, a polícia cumprirá uma função


de despolitização das massas e multidões, vez que operacionalizada, agora vertical e
militarmente, para suprimir as sublevações que venham a ocorrer contra a governança ou
o modo de governar (para poucos). Se diálogo e alteridade seriam a resistência a qualquer
forma de autoritarismo, a polícia – agora como instituição vinculada ao sistema penal –
encontra-se no outro lado: no autoritarismo mesmo; na supressão do diálogo; na repressão
ao outro. Como duas formas que não podem coexistir279, alimentando uma polaridade
que descamba para o silenciar daqueles postos à margem da sociedade (seja com
estratégias de medo, seja com a morte).

3.2 Interfaces do dispositivo policial: a dupla captação da vida

A distinção realizada por Michel Foucault das passagens entre momentos distintos
da história e que demonstra uma certa preponderância de três diferentes formas de poder
– soberania, disciplina e segurança – contribui em muito para compreender a atuação da
polícia nas sociedades contemporâneas, sem se esquecer, como já pontuado com
Agamben, que a imagem da soberania está permanentemente vinculada a da polícia,
devido às possibilidades de essa manter-se dentro e fora do ordenamento, quer dizer, de
maneira espectral, fantasmagórica, como exposto acima por Derrida, a polícia sempre
será e não será.

Ao deitar o olhar sobre o que aqui já foi escrito, principalmente no primeiro


capítulo, agora se faz necessário trazer alguns aspectos da importância da polícia na
operacionalidade tanto do encarceramento em massa quanto dos crimes praticados pelo
Estado. Em primeiro plano, colocou-se o encarceramento em massa no Brasil sob as luzes

                                                            
278 Referências à clássica primeira benjaminiana “Tese sobre a filosofia da história”. Ver: BENJAMIN,
Walter. Sobre o conceito da história, pp. 241-252.
279 AMARAL, Augusto Jobim do. “Mal de polícia” – À propósito de uma criminologia radical. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, ano 22, vol. 111, nov-dez/2014.
85 
 

de uma crítica criminológica, a qual demonstra não estar no criminoso ou no número de


crimes cometidos a problemática em torno da segregação de milhares de pessoas, mas
sim na ligação do sistema punitivo com um discurso neoliberal, potencializando a pobreza
e, por consequência, elementos vulneráveis a atuação estatal repressiva e seletiva. Aliado
a esse panorama estão as alternativas de controle penal, as quais formam um bloco de
medidas um tanto quanto expansivas que investem não mais na segregação, mas na
circulação do indivíduo na sociedade, ainda vinculado ao sistema penal a partir do
cumprimento de determinadas imposições.

Parece evidente: sem polícia, nada disso poderia acontecer. Quer dizer, o sistema
penal, com todo seu aparato legislativo (leis, decretos, etc.), judiciário (juízes, servidores,
etc.) e penitenciário (locais de prisão, agentes prisionais, etc.) não funcionaram se antes,
em algum momento, os indivíduos não fossem tocados por uma instituição composta por
agentes treinados, não raramente militarizados e com discursos calcados na segurança
pública, onde a proteção de um contra o outro e o combate à criminalidade a sustenta. É
à polícia que cabe esse papel.

Exemplo claro dessa incursão que leva ao rasgo frontal da vida que é tocada por
essa polícia espectral está na grande mola propulsora do encarceramento em massa no
Brasil: o tráfico de drogas280. Como já destacado no início do trabalho, nesse caso existe
uma zona gris de alto empuxo criminalizador, a qual torna indeterminável, vez que os
tipos penais de tráfico e de porte de drogas aproximam-se em seus elementos objetivos
elencados na Lei n.º 11.343/2006, quem é o traficante e quem é o simples usuário. Não
precisa de muito para notar que é a polícia quem irá realizar a distinção: é ela que, de
forma capilar, aborda o indivíduo que carrega – e às vezes nem mesmo o faz –
determinada quantidade de droga, assinando seu destino ao cárcere ou não281.

Nota-se: no que se refere à prisão, fica bastante claro que a polícia não somente é
soberana, mas também permeada por um poder disciplinador, já que, ao fim e ao cabo,
sua atuação bancará a necessidade de permanência do indivíduo dentro de um dispositivo

                                                            
280 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da
Lei 11.343/06. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
281 No Brasil, o porte de drogas, previsto no artigo 28 da Lei n.º 11.343/2006 não prevê pena privativa de
liberdade, mas sim (a) advertência sobre os efeitos da droga; (b) prestação de serviços à comunidade; e
(c) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Não há prisão, sequer
preventiva, por esse delito, ao contrário do tráfico, onde a pena está estabelecida entre 05 (cinco) e 15
(quinze) de reclusão.
86 
 

prisional, o qual, desde os estudos de Rusche e Kirchheimer 282 e, cronologicamente


posterior, os de Michel Foucault283, restará demonstrado que a prisão atende à lógica
economicista-liberal de assujeitamento de corpos para um melhor aproveitamento
econômico.

Em suma, é a polícia quem vai determinar quem receberá, por exemplo, uma
simples admoestação do juiz ou quem poderá concorrer a um processo em que, no final,
a pena poderá ser determinada no patamar de cinco a quinze anos – sem contar a
possibilidade de, no curso da investigação ou propriamente do processo, ser determinada
a prisão preventiva. É a partir do que convir a ele no momento, agindo sobre determinado
corpo, em localidade definida, o destino do indivíduo. Na verdade, não só no caso da
criminalização das drogas, mas a vinculação da polícia ao sistema punitivo a torna
portadora desse poder disciplinador, o qual busca esquadrinhar o indivíduo, mantendo-se
a configuração social do mercado de trabalho através também da estigmatização.

Posteriormente, e como que ligado umbilicalmente ao Estado-encarcerador, os


crimes de Estado, a nível global e local, são trazidos como demonstração de que nem
sempre a força utilizada pelo Estado é legítima, havendo um fundo obscuro (ou talvez
subterrâneo) onde a violação massiva de direitos humanos ocorre. Nesse sentido, as
chamadas técnicas de neutralização 284 cumprem papel fundamental ao tornar quase
invisível uma verdadeira política de extermínio estatal, fato que não se mostra novo no
Brasil, mas desde há muito, tomando-se como paradigma central o campo de
concentração nazista de Auschwitz – onde esquecimento e morte andavam de mãos
dadas285.

Nesse sentido, Derrida já havia pontuado: o nazismo foi uma operação de


polícia286. Não há dúvidas que sem a polícia alemã, o massacre de milhões de judeus não
poderia ter sido realizado. Talvez aqui fica muito clara a frase de Foucault que sustenta o
poder soberano: “fazer morrer e deixar viver”287, diria o filósofo – enquanto que no poder

                                                            
282 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. Tradução, revisão técnica e
nota introdutória Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
283 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
284 SYKES, Gresham M; MATZA, David. Techniques of Neutralization: a theory of Delinquency.
American Sociological Review, volume 22, 1957, pp. 664-670.
285 SAFATLE, Vladmir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; SAFATLE,
Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura? - a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
286 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade, p. 107.
287 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 3ª ed. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 146.
87 
 

disciplinar, acima descrito, o inverso ocorreria: “fazer viver e deixar morrer”, já que a
vida (e de forma mais específica o corpo, a força de trabalho) passa a ter utilidade.

Não se pode deixar de pensar que se por um lado tem-se a biopolítica, sua irmã
siamesa, a tanatopolítica 288 , ali continua sendo requisitada na arte de governar
contemporânea. Nos crimes de Estado temos uma polícia soberana por excelência ao dar
andamento em uma política de extermínio (também podendo ser polícia de extermínio)
do Estado contra os homine sacri e, no caso brasileiro, a ralé que falava Jessé Souza289,
constituída por negros, pobres, netos e bisnetos de ex-escravos que, ao serem jogados
numa lógica liberal de mercado, interiorizam um habitus secundário que os leva à
subcidadania.

Colocada essas questões e evidenciado o papel central que a polícia cumpre tanto
no hiperencarceramento quanto nos crimes de Estado, buscou-se analisar sua emergência,
retornando-se à Europa do século XVII e XVIII, a fim de compreender as engrenagens
básicas de seu funcionamento: constatou-se que a polícia moderna, junto da prisão, nasce
a partir do projeto burguês, mas que vai ter sua ascensão definitiva ao aliar seu poder a
ao saber médico, possibilitando não só políticas higienistas (Auschwitz, há muito, estava
sendo gestada...) mas também sua vinculação a uma atuação autoritária, fazendo a divisão
entre os inferiores biologicamente e os não inferiores – racista por excelência, para não
cair em eufemismos.

Na tentativa de operar um certo desprendimento da polícia moderna de um saber


contratualista – e, por que não, liberalista – assim como de visões que a consideram
simples cumpridora de funções administrativas no âmbito dos regimes político-
democráticos, também se colocou em evidência a fantasmagoria com que a polícia se
move dentro do campo da exceção, do indecidível, da iterabilidade que une numa só
figura espectral a violência que funda à violência que conserva. E no ponto alto: a guerra
civil ou a stasis – despolitização e politização que alocam a figura da polícia como peça-
chave nesse movimento pendular.

                                                            
288 Para uma visão ampla sobre uma política da morte ou uma tanatopolítica a partir das contribuições
de Michel Foucault, ver: ESPOSITO, Roberto. Bíos: biopolítica e filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010,
principalmente entre pp. 159-208.
289 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade
periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.
88 
 

A partir disso, se a polícia, em referência à Primeira Tese de Walter Benjamin em


suas Teses sobre o conceito de história, é um autômato que antecipa – por ser um mestre
no xadrez – as jogadas de seu adversário, vencendo o jogo sempre, é porque sua
operacionalidade nas sociedades é fruto de um contraste entre aparência de automatismo
e realidade de inteligência290. Se a ela se atribui a degenerescência da democracia em
razão de sua espectralidade – de ser e não ser, de estar ou não estar ao mesmo tempo – é
mais porque um jogo de espelhos que leva ao infinito e esconde um anão corcunda que
dá as diretrizes às instituições policiais que operam sob o paradigma da exceção291.

A partir do conceito proposto por Agamben de dispositivo, chega-se em um


momento importante do trabalho, em que se tenta desvendar o anão corcunda. A
operacionalidade da polícia em solo brasileiro demonstra que a forma como ela se desloca
dentro da engrenagem do poder punitivo – tanto do Estado encarcerador quanto nos
crimes praticados pelo Estado – tornando-se elemento central para a conservação da
sociedade brasileira e da exceção intrínseca às formas político-democráticas vigentes, na
medida em que opera como politizadora e despolitizadora de vidas nuas. Acaba-se de
recapitular as fases pelas quais se transitou até então para que se possa enxergar com
clareza tal proposição.

Como se viu até então, a polícia é constituída pelo seu aparato material que age
sobre determinados indivíduos. No entanto, de forma mais ampla, há um dispositivo
policial (ou policialesco) que determina suas práticas, seus segmentos, seus discursos,
suas funções. E o agente policial, tem-se que destacar, que age em nome do Estado, não
representa o dispositivo policial. Esse último é mais amplo e constituído, em cada
momento histórico, pelo atravessamento de elementos heterogêneos, de saberes, de
práticas, de ideias, de mentalidades de governo, de funções mais ou menos definidas que
balizam a atuação da polícia, suas incoerências, suas justificativas. Pode-se reforçar: a
polícia não é somente uma instituição do sistema penal que cumpre um papel pré-
concebido dentro dos regimes democráticos – sem deixar de referir a exceção que se aloca
dentro de cada uma, espalhadas pelo mundo, dessas formas de regime político – mas no
seu núcleo duro encontra-se o dispositivo policial.

                                                            
290 SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como fundamento II: pequeno tratado de ética radical, p. 79.
291 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história, p. 245.
89 
 

Como uma pausa estratégica para se evitar confusões acerca da ideia de


dispositivo aqui utilizada, recorda-se que o conceito de dispositivo foi primeiramente
analisado em Michel Foucault292, e nos rastros deixados por esse, em Giorgio Agamben
– sendo nas noções trazidas por esse último que se alocará a ideia de dispositivo policial
que se pretende alcançar.

Em Foucault, o filósofo italiano Sandro Chignola293 identifica duas interpretações


para a utilização do termo em sua obra. Uma advinda de Giorgio Agamben294 e outra de
Judith Revel295. O primeiro vai atribuir o termo dispositivo na obra foucaultiana como
derivado da noção de positividade de seu mestre Jean Hyppolite. Segundo ele, Hyppolite
teria, ao analisar a obra de Hegel, extraído a noção de positividade das noções hegelianas
de “religião natural” e “religião positiva”. Essa segunda compreenderia o conjunto de
crenças, de regras e ritos que em determinada sociedade e momento histórico seriam
impostos aos indivíduos pelo exterior 296 . Outra visão é dada por Judith Revel 297 :
dispositivo em Foucault seria fruto da mudança nos focos de suas pesquisas. Já que antes,
ainda pautado pela arqueologia dos saberes, para designar o campo epistemológico onde
                                                            
292 Por seu turno, Gilles Deleuze realiza outra interpretação do que Foucault havia trazido acerca dos
dispositivos. Para ele, os dispositivos vêm divididos em três dimensões. Primeiro, linhas de enunciação
ou de visibilidade, na medida em que são máquinas de fazer ver e para fazer falar. Tratam-se de linhas de
luz formam figuras variáveis e inseparáveis deste ou daquele dispositivo, ao mesmo tempo que
possibilitam uma historicidade dos dispositivos e suas formações históricas de saber. Ainda, existem as
linhas de força, ligadas à dimensão do poder, que se produzem em toda relação de um ponto com outro e
passa por todos os lugares de um dispositivo. Segundo Delleuze, de alguna manera “rectifican” las
curvas anteriores, trazan tangentes, envuelven los trayectos de una línea con otra, opera idas y venidas,
desde el ver al decir e inversamente, actuando como fechas que no cesan de penetrar las cosas y las
palavras [...]. Em suma, correspondem à dimensão do poder entre as formas de saber. Não menos
importante, Delleuze traz à tona as linhas de subjetivação, as quais são aquelas que escapam – como em
uma fuga – dos poderes e saberes de determinado dispositivo para se colocar em poderes/saberes de
outros, em outras formas para nascer. Tratam-se, assim, de dobras dos dispositivos, que ao invés de
investir uma linha de força contra outra, colocam-se em relação a si próprio, vindo a animar novos
saberes e convocar novos poderes. De tudo isso, depreende-se duas perspectivas para uma filosofia dos
dispositivos: 1) a negação do universal, ou seja, o uno, o todo, o verdadeiro, o objeto e o sujeito não são
universais, senão processos de singularidades de unificação, de totalização, de verificação, de objetivação,
de subjetivação, processos imanentes a um determinado dispositivo; 2) o afastamento do eterno para
apreensão do novo, do que é imanente, ou seja, da criatividade invariável que todo dispositivo contém. O
novo como atual, buscando captar o que fomos, o que chegamos a ser e o que se está sendo. Torna-se
necessário distinguir, nos dispositivos, o que fomos e o que estamos sendo, a parte da história e a parte
atual, de modo que a história ou o arquivo e ó que nos separa de nosotros mismos, en tanto que lo actual
es eso otro con lo cual ya coincidimos (DELEUZE, Gilles. “¿Qué es un dispositivo?”. In: Michel
Foucault, filósofo. BALBIER, E. et al. Barcelona: Gedisa, 1999, pp. 155-161).
293 CHIGNOLA, Sandro. Sobre o dispositivo: Foucault, Agamben, Deleuze. Tradução de Sandra Dall
Onder. Cadernos IHU Ideias / Instituto Humanitas Unisinos. Ano 12, n.º 214, vol. 12. São Leopoldo,
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2014.
294 AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? Outra travessia. Florianópolis, Santa Catarina: 2005.
295 REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. Tradução Maria do Rosário Gregolin, Nilton
Milanez, Carlos Piovesani. São Carlos: Claraluz, 2005.
296 AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo?, p. 10.
297 REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais, p. 39.
90 
 

é possível a simultaneidade e diferenças de saberes, esse autor utilizava o termo epistéme,


agora, na genealogia dos poderes, com uma heterogeneidade de seus elementos
constitutivos, o dispositivo passa a ser o elemento que dá vazão aos poderes pautados em
saberes e agem diretamente e de certa forma conjugada com a liberdade dos indivíduos298.

Segundo Foucault, numa rara ocasião em que falou sobre o termo dispositivo, esse
seria

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,


organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados, científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos299.

Em sua leitura particular, Agamben tenta chamar a atenção para uma ligação
estabelecida entre dispositivo e biopolítica. Ele divide o existente em duas grandes
classes ou grupos: de um lado os seres viventes (ou as substâncias) e de outro os
dispositivos nos quais os primeiros são incessantemente capturados. Buscando a origem
com alguma aproximação do campo teológico, Agamben identifica que a ideia de
oikonomia 300 dentro da teologia cristã se dá pelo problema da Trindade (pai, filho e
espírito santo) traz, na medida que ameaçada pelo politeísmo. Para a visão cristã, Deus é
uno, mas a organização de sua casa é tríplice. Assim, os teólogos passam a distinguir entre
o logos da teologia e o logos da economia, de modo que a oikonomia converte-se no
dispositivo que introduz o dogma da trindade e a ideia de um governo providencial na fé
cristã301. De um lado as criaturas e de outro a oikonomia dos dispositivos que tratam de
governá-las e guiá-las. Para ele, dispositivo seria então:

qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar,


determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas,
as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as
prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as
disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder é em um certo
sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a
agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e
– porque não – a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos,

                                                            
298 REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais, p. 40.
299 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995, p. 244.
300 Segundo Agamben, “oikonomia significa em grego a administração do oikos, da casa e, mais
geralmente, gestão, management. Trata-se, como disse Aristóteles, não de um paradigma epistêmico, mas
de uma práxis, de uma atividade prática que deve de quando em quando fazer frente a um problema e a
uma situação particular” (AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? Outra travessia. Florianópolis,
Santa Catarina: 2005, p. 11.)
301 Idem, p. 12.
91 
 
em que há milhares de anos um primata – provavelmente sem dar-se conta das
consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar302.

Assim, o dispositivo é uma máquina que produz subjetivações e só dessa forma é


que se torna uma máquina de governo. Por sua vez, na fase atual do capitalismo, o que se
vê é uma inclinação dos dispositivos em não tanto produzir sujeitos, mas agir na forma
da dessubjetivação. Indivíduos captados por tecnologias não criam uma nova
subjetividade, mas tornando-se partes de um projeto de controle – codificados por um
número de celular ou como pontuação de audiência à um programa televisivo 303 . A
dessubjetivização não cria um indivíduo novo. Na visão de Chignola, o mesmo indivíduo
poder ser simultaneamente muitas coisas, dependendo do dispositivo que o captura e lhe
registra uma máscara, ao invés de simplesmente uma identidade304. Por isso que Agamben
pontua que devido à capacidade de subjetivação (ou dessubjetivação, no caso) dos
processos desencadeados por determinado dispositivo, está cercada suas potencialidades
por uma impossibilidade de um uso justo ou correto305.

A questão da dessubjetivazação, a partir de dispositivos, em Agamben, se dará


pela captura da vida, sendo esses verdadeiros complementos do arranjo de soberania que
funciona como máquina biopolítica306. Vidas nuas que se locomovem no campo – não na
cidade – e são constantemente capturadas por dispositivos de todos os lados. Entre eles,
o dispositivo policial.

Portanto, propõe-se pensar, como exposto na introdução do presente trabalho, a


polícia como que sustentada, permeada, preenchida, por um dispositivo. Um dispositivo
policial. Diferença linguística que amplia a percepção sobre sua atuação na sociedade e
que a diferencia de uma simplificada visão do uso legítimo da força de um Estado. Pensar
em dispositivo para entender as potencialidades que a atuação da polícia tem na sociedade
e, de forma mais direta, sobre os indivíduos – não sendo novidade alguma nas ciências
criminais a imbricação desse tipo de análise307.

                                                            
302 Idem, p. 13.
303 Idem, p. 15.
304 CHIGNOLA, Sandro. Sobre o dispositivo: Foucault, Agamben, Deleuze, p. 13.
305 AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo?, p. 15.
306 CHIGNOLA, Sandro. Sobre o dispositivo: Foucault, Agamben, Deleuze, p. 13.
307 Para uma análise mais resumida do que seria um dispositivo inquisitivo no processo penal, ver:
AMARAL, Augusto Jobim. O dispositivo inquisitivo no Processo Penal: primeiras linhas. In: KHALED
JR. Salah. (Coord.). Sistema penal e poder punitivo: estudos em homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr. 1ª
ed. – Florianópolis: Empório do Direito, 2015, pp. 87-97.
92 
 

Num primeiro momento, e na impossibilidade de desvincular saber de poder,


destaca-se que há sempre saberes, discursos, proposições que compõem o dispositivo
policial. Para tanto, retroagindo em fragmentos do que já foi posto, buscou-se
compreender o surgimento da polícia como instituição moderna na França e
posteriormente, devido às novas relações de saber advindas com o nascimento do
liberalismo econômico, as funções repressivas que lhe são atribuídas para consolidação
dos Estados: de sua função de controle da população à lógica higienista das cidades a
partir do autoritarismo.

No Brasil, como se demonstrou, esse autoritarismo esteve sempre implícito junto


aos discursos que pautaram a atuação desse dispositivo, tomando no Império
responsabilidade urbanas e diretamente vinculadas ao controle de escravos,
posteriormente, já em Getúlio Vargas, tomando corpo como polícia-política na luta contra
o comunismo global, e, na ditadura civil-militar, pautado por um saber militarizado
advindo da geopolítica. Atualmente, com as baterias renovadas a partir do discurso
globalizado de combate às drogas e medo do terrorismo, continua o dispositivo policial a
pautar a atuação da polícia – repressiva e preventiva – sobre determinados grupos. Ambos
discursos possibilitam à polícia uma série discursiva capaz de captar o medo de boa parte
da sociedade acerca de uma “criminalidade crescente”, mas, principalmente, em função
de um outro perigoso.

Por seu turno, o poder do dispositivo policial atualmente vem encarnado


principalmente na instituição policial moderna, a qual, em seu fundo mais obscuro, traz a
questão de sua própria espectralidade, já que, ao mover-se na exceção – representada por
decretos, regulamentos e decisões as quais não tem de dar satisfação ao direito – não
possui forma, ou seja, está e não está, de forma a impossibilitar saber a quem responde.
No entanto, ele não se limita à polícia. O dispositivo policialesco seria aquele que, em
termos agambenianos, realizaria a captura da vida colocando-a à exposição, modelando-
a para fins de governabilidade. Nota-se que não somente a instituição policial –
politizadora e despolitizadora no paradigma da guerra civil – tem essa capacidade, mas
qualquer um que, capilarmente, toque a vida e a jogue para outros dispositivos. Talvez
nisso consista também o dispositivo policial: sua capacidade de, a partir de arranjos,
realizar uma redistribuição para outros dispositivos.

Nesse caso, o vizinho delator não deixa de responder a um dispositivo policial,


afinal, tal potência está inscrita nele pela possibilidade de recorrer à estrutura estatal caso
93 
 

presencie uma transgressão. A própria relação que se estabelece nos âmbitos de ditaduras
militares ajuda a pensar num aprofundamento, ou talvez em um alargamento, dos efeitos
do dispositivo policial: se por um lado – e George Orwell, em 1984308, antecipou tal
hipótese de forma brilhante – tem-se uma parte da população vigilante a qualquer ato de
transgressão às normas impostas, realizando verdadeira função de polícia a partir da
subjetivação com que acabam sendo atingidas pelo dispositivo policial, por outro esse
mesmo dispositivo expande sua capacidade de tornar mais vidas matáveis, torturáveis,
encarceráveis, ou seja, dessubjetivação em pleno vapor. Duplo movimento que demonstra
o verdadeiro terror a que caminha o funcionamento do dispositivo policial.

Outro panorama em que se pode entrever o dispositivo policial alastrado de forma


perene está nas situações extremas ou situações limites que traz Agamben309. Ao se
debruçar sobre o campo de concentração de Auschwitz, considerado por Agamben o local
em que o estado de exceção coincide perfeitamente com a regra e as situações extremas
se convertem em cotidiano, o autor italiano trará o intestemunhável muçulmano como a
faceta-limite da dessubjetivação do indivíduo pelo dispositivo policial, já que nem vivo
nem morto se encontrava 310 – ou seja, facilmente matável por aqueles que à época
detinham o poder para tanto, a decisão excepcional – constantemente evocada pela polícia
nazi – pelo genocídio dos judeus.

Quer dizer, ao dispositivo policial, atravessado por discursos e práticas mais


amplas que mesmo um regime democrático não poderá conter, assim como sua
vinculação às práticas governamentais vigentes, caberá a subjetivização ou
dessubjetivação, as quais, por recaírem incisivamente sobre o indivíduo, podem vir a
jogá-los em outros dispositivos, como o prisional. Num outro tom, pode-se dizer: mesmo
com o fim da polícia soberana, ainda estaria em funcionamento, subjetivando e
dessubjetivando, o dispositivo policial. É a ele que deve se atacar. O dispositivo policial
continuará a responder a si próprio, mesmo que desvinculado da lei penal. No campo
sociológico, pensa-se reformas institucionais, desmilitarização, polícia comunitária:
paliativos de práticas policiais que, no fundo, não impedem o rompimento, a qualquer
momento, da barreira da decisão, não necessariamente respeitada pela polícia soberana

                                                            
308 ORWELL, George. 1984. Tradução Alexandre Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
309 AGAMBEN, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz: el archivo y el testigo (Homo sacer III).
Traducción de Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia: Pre-textos, 2005, p. 49.
310 Idem, p. 53.
94 
 

pautada, mais a fundo, por um dispositivo policial. Mas mais do que isso, qualquer
tentativa de reforma não desfaz o arranjo de saber-poder que o dispositivo policial
trabalha e que não se limita somente à instituição policial moderna.

Por isso é que o dispositivo policial 311 se torna um elemento-chave nas


democracias contemporâneas, constantemente marcadas pelo paradigma da segurança.
Primeiro, porque de uma potência gigantesca ao possibilitar à um poder central induzir a
novas formas de pensamento e na própria criação/produção de indivíduos. Segundo,
porque a potência de sua subjetivação na sociedade e também de dessubjetivação, na
medida em que perpetua ações para que determinadas vidas sejam vividas, outras vozes
sejam emudecidas e corpos sejam calados com a morte, é um dos atributos essenciais do
dispositivo policial, demonstrado com a análise histórica aqui realizada, do início da
Europa do século XVIII até a democracia brasileira recente.

O dispositivo policial é a trangressão312 para além do que é lícito e ilícito – a


atuação da polícia soberana – ou seja é a passagem para além do limite, não sendo somente
a lei a qual a polícia está vinculada e constantemente suspende para manter a exceção,
mas aquilo que não tem regra. É o saber, os discursos, as práticas advindas de outros
saberes que não só o direito e compõe uma estrutura que, como dispositivo que é, irá
tentar comandar, articular, fazer funcionar funções mais ou menos constantes. Ele irá
subjetivizar os indivíduos para que uma função policialesca seja desenvolvida
constantemente, ao mesmo tempo que irá dessubjetivizar, tendo-se como exemplo a
operacionalidade da polícia na socidade e sua produção de vidas descartáveis.

Portanto, necessário se torna pensar o dispositivo policial, vinculando-o sempre à


um contexto histórico, político e econômico que se pretende abordar. No caso do presente
trabalho, tentou-se pensar esse dispositivo no Brasil, a partir de sua posição-chave no
encarceramento em massa cada vez mais agudizado, bem como nos crimes praticados
pelo Estado. A incursão soberana que a polícia realiza – e sua tendência ao golpe de estado
permanente – a coloca como a grande demarcação entre o que está dentro e o que está
fora do sistema penal, principalmente pelo fato de ser ela que, atuando sobre determinado

                                                            
311 CAMPESI, Giuseppi. Genealogia della publica sicurezza: teoria e storia del moderno dispositivo
poliziesco, p.
312 FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972-1973). Tradução
Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015, p. 07.
95 
 

indivíduo, decide pela suspensão ou não do ordenamento, ou seja, por desnudar ou não a
vida de uns selecionados – colocando-a como sacrificável perante o poder.
96 
 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um diálogo entre Deleuze e Foucault publicada sob o título Os intelectuais e o


poder, uma das pautas centrais estava na diferença e nas proximidades entre a prática e a
teoria. Em determinado momento, Deleuze afirma: “Uma teoria é como uma caixa de
ferramentas [...] É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não
há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico,
é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou” 313 . E citando Proust,
arremata: “É curioso que seja um autor que é considerado um puro intelectual, Proust,
que o tenha dito tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e, se
eles não lhes servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é
forçosamente um instrumento de combate”314.

O presente trabalho, pois, ao transitar por análises sociológicas, históricas e


filosóficas em torno da polícia, e em determinados momentos da polícia brasileira, buscou
encontrar pequenos rasgos, imagens, situações, frestas penetráveis que demonstrassem a
existência de um dispositivo policial e confirmassem a hipótese ventilada no início –
possibilitando uma leitura da realidade. O percurso realizado, desde uma emergência do
que hoje conhecemos como polícia e relacionando-a com o que mais atual em termos
criminológicos se pode ter sob análise – encarceramento em massa, formas alternativas
de controle penal, crimes de Estado – tentou exatamente pontuar que, de alguma forma,
o sistema penal não funcionaria sem a prática de uma instituição preparada para ser a
interventora dentro da sociedade.

Quer se dizer o seguinte: ao analisar a operacionalidade da polícia em diversas


épocas, localidades e propriamente no Brasil, tentou-se demonstrar sua irrevogabilidade
como instituição do sistema punitivo/penal que age diretamente sobre os corpos dos
indivíduos dentro da sociedade – seja proibindo, disciplinando ou prevenindo
comportamentos. Ou seja, nem encarceramento em massa nem crimes de Estado –
alocando nesse segundo os maiores massacres do século XX – aconteceriam se polícia,
como a conhecemos e a partir de quais poderes estruturou-se, simplesmente não houvesse
para colocar em prática, de forma capilar, as funções mais ou menos definidas do poder.

                                                            
313 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, p. 71
314 Idem, p. 71.
97 
 

Posteriormente, deslocando a análise para trás, ou seja, para além dos mecanismos
que tornam a instituição policial uma simples cumpridora de preceitos constitucionais –
nas democracias liberais contemporâneas – pareceu compreensível que essa não estaria
de forma alguma sob a égide de um ideal contratualista: por se locomover na exceção, na
possibilidade da decisão constante e soberana de quem deve viver ou morrer, introduz-se
irrevogavelmente a imagem do soberano, que não teve a cabeça cortada pelo advento da
lógica disciplinar mas antes sobrevivem em justaposição, na polícia. Violência que funda
e violência que conserva no mesmo espectro policial, que se movimenta com sua
armadura incapaz de deixar os outros o verem – fantasmática por excelência e, portanto,
inapreensível.

Na medida em que a posição-chave da polícia foi sendo desvelada dentro dos


regimes político-democráticos, pareceu não mais que o encarceramento em massa ou a
política de extermínio (no século XX, mas também no próprio Brasil democrático) se
davam pela simples segregação ou pela eliminação física de determinados indivíduos:
nesse processo, o pêndulo subjetivação-dessubjetivação das vidas pode ser visto como
fundamental. Ao se partir do pressuposto de que a polícia se move no campo da exceção,
a produção de vidas nuas – e, portanto, matáveis e encarceráveis – ao seu encargo pode
ser vista como o processo de dessubjetivação por excelência. Por sua vez, o processo de
subjetivação se dá na constituição de não só uma instituição policialesca vinculada ao
poder, mas também dos indivíduos sobre quem recai o dispositivo policial, tornando-os
verdadeiras peças no jogo da governabilidade.

Sobre esse último ponto, há de se avançar muito, na medida em que a presente


dissertação propôs-se apenas a recortar e analisar o dispositivo policial a partir de sua
lógica de dessubjetivação, ou seja, a partir propriamente de onde se concentra a sua parte
mais visível – a instituição policial. Parece haver inúmeras facetas ou elementos que
demonstrem a existência – seja por subjetivação ou dessubjetivação – de um dispositivo
que, captando a vida a partir da lógica policialesca, está diretamente vinculado às
engrenagens de um poder central (pode-se dizer estatal), mas também de um poder que
circula em rede, ou seja, entre os próprios indivíduos, como dirá Foucault315.

A presente pesquisa não teve qualquer pretensão de totalidade e esgotamento


quanto ao assunto. Na verdade, reconhecer que há um dispositivo policial que age, ainda

                                                            
315 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976), p. 26.
98 
 

que de forma incalculável e sem uma definição exata, como uma certa inteligência do que
até hoje se pensou em termos de instituição policial para fins de governabilidade, é um
primeiro passo somente. Durante o percurso realizado, desde as abordagens que partem
do encarceramento em massa até a introdução da imagem do soberano na polícia, muitos
rastros e portas abertas ficaram no caminho para que, futuramente, se desloque o olhar.
Ou seja: essa pesquisa, reconhecendo suas limitações em termos de alcance teórico para
determinada localidade ou região, não possui cunho universalizável.

Assim, há muito que se levar em conta ainda no que se refere à polícia e, mais
especificamente, ao dispositivo policial. Uma definição do que esse seria parece
necessitar de muito mais do que foi aqui referido, simplesmente por tratar-se de um
mecanismo de poder que, ao cortar a operacionalidade das polícias em termos gerais,
dando-lhe sustento discursivo a partir de diversos saberes, funda a capacidade estatal, e
não só brasileira, de fazer operar sua política criminal. Portanto, identificada sua
existência e vinculação diretamente com o paradigma da exceção a partir da polícia
brasileira, é necessário que se analise de forma mais ampla a atuação da polícia nos
regimes democráticos, tentando, a partir de determinado contexto histórico, econômico e
social notar o aprofundamento ou não de processos de subjetivação e dessubjetivação que
o dispositivo policial, enquanto não enfrentado diretamente, irá dispor.
99 
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Sérgio. O direito na política moderna. Revista Cult, ano 18, p. 18-21, jan.
2015.
ADORNO, Theodor W. Escritos sociológicos II, vol. 1. Madrid: Ediciones Akal, S.A.,
2008.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo:
Boitempo, 2004.
__________, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz: el archivo y el testigo (Homo sacer
III). Traducción de Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia: Pre-textos, 2005 
__________, Giorgio. O que é um dispositivo? Outra travessia. Florianópolis, Santa
Catarina: 2005.
___________, Giorgio. L’uso dei corpi. Homo sacer, IV, 2. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2014.

__________, Giorgio. Mezzi senza fine: Note sulla política. Torino: Bollati Boringhieri,
1996.
__________, Giorgio. Stasis: a guerra civile come paradigma politico. Homo sacer, II,
2. Bollati Boringhieri: Torino, 2015.
AMARAL, Augusto Jobim. #Somostodosprofessores. Empório do Direito, 2015.
Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/somostodosprofessores-por-augusto-
jobim-do-amaral/> Acesso em: 08/08/2016.
________, Augusto Jobim do. A política da prova e cultura punitiva: a governabilidade
inquisitiva do processo penal brasileiro contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2014.
________, Augusto Jobim do. Entre serpentes e toupeiras: a cultura do controle na
contemporaneidade (ou sobre o caso do monitoramento eletrônico de presos no Brasil).
In: Revista Sistema Penal & Violência, vol. 2, n. 2, pp. 75-89 (jul/dez de 2010).
________, Augusto Jobim do. “Mal de polícia” – À propósito de uma criminologia
radical. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 22, vol. 111, nov-dez/2014, p. 263-
291.
________, Augusto Jobim do. O dispositivo inquisitivo no Processo Penal: primeiras
linhas. In: KHALED JR. Salah. (Coord.). Sistema penal e poder punitivo: estudos em
homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr. 1ª ed. – Florianópolis: Empório do Direito, 2015, pp.
87-97.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal
para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
ANISTIA INTERNACIONAL. “Eles nos tratam como animais”. Tortura e maus-
tratos no Brasil: desumanização e impunidade no sistema de justiça criminal. Rio de
Janeiro, 2001.
_________________________. “Eles usam uma estratégia de medo”: proteção do
direito ao protesto no Brasil. Rio de Janeiro, Anistia Internacional, 2014.
100 
 

_________________________. Você matou meu filho!: homicídios cometidos pela


polícia militar na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Anistia Internacional, 2015.
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução
Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução Roberto Raposo – São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CIPRIANI, Marcelli. Um estudo comparativo entre
facções. Revista Sistema Penal & Violência. Porto Alegre, v. 7, n. 02, p. 160-174,
julho-dezembro, 2015.
BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. 2ª ed. – Rio de Janeiro:
Revan, 2002, 1ª reimpressão, novembro de 2013.
_________. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos: crime,
direito e sociedade, Rio de Janeiro, ano 7, n° 12, p. 271-288, 2° semestre de 2002.
BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
_______, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro:
Revan, 2011, 2ª edição, julho de 2012.
_______, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma
história. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 2ª reimpressão, outubro de 2014.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Tradução Marcus Penchel. Rio de
Janeiro: Zahar, 1998.
BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiz
X. de Borges; revisão técnica Karina Kuschnir. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BENJAMIN, Walter. BENJAMIN, Walter. Por una crítica de la violencia. Edición
eletrônica disponível em: www.philosophia.cl / Escuela de Filosofía Universidade
ARCIS. Acesso em: 10.08.2016.

__________, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo
Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin – 8ª Ed. Revista – São Paulo: Brasiliense, 2012
– (Obras Escolhidas v.1).
BENTHAM, Jeremy [et al.]. O Panóptico. Organização de Tomaz Tadeu. Traduções de
Guacira Lopes Louro, M. D. Magno, Tomaz Tadeu. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2008.
BJS – Bureau of Justice Statistics – Correctional Populations in the United States, 2014.
U.S Departamente of Justice, December 2015, p. 02 (Disponível em:
http://www.bjs.gov/content/pub/pdf/cpus14.pdf).

BOITEUX, Luciana. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população


penitenciária brasileira e alternativas. In: SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Drogas: uma
nova perspectiva. São Paulo: IBCCRIM, 2014.
101 
 

BRASIL. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à


memória e à verdade. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007.
_______. 2014. Relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Disponível em:
<http://www.cnv.gov.br/>. Acesso em: 16 jun. 2016.
BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
BRETAS, Marcos Luiz; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço
e perspectivas. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, jan/jul. 2013.
CAMPESI, Giuseppi. Genealogia della publica sicurezza: teoria e storia del moderno
dispositivo poliziesco. Ombre corte: Verona, 2009.
CAMUS, Albert. O estrangeiro. Tradução de Valeire Rumjanek. 37ª ed. – Rio de
Janeiro: Record, 2015.
CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia da era Vargas. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1993.
CANO, Ignácio; DUARTE, Thaís. Milícias. In: LIMA, Renato Sérgio de; RATTON,
José Luiz; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Crime, polícia e justiça no Brasil.
São Paulo: Contexto, 2014.
CAPRIGLIONE, Laura. Os mecanismos midiáticos que livram a cara dos crimes das
polícias militares no Brasil. In: Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios
para sua superação. Bernardo [et al] – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2015.
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico
e dogmático da Lei 11.343/06. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
__________, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo (o
exemplo privilegiado da aplicação da pena). Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010.
__________, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER,
Ruth Maria (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2010.
CARVALHO, Thiago Fabres de. O “Direito penal do inimigo” e o “Direito penal do
Homo Sacer da baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. In: Discursos
Sediciosos, Rio de Janeiro: Revan/ICC, ano 17, n. 19/20, 2012.

CASARA, Rubens R.R. Apresentação. In: TIBURI, Márcia. Como conversar com um
fascista. 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.

CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Tradução Beatriz de Almeida Magalhães.


1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

________, Edgardo. Vocabulário de Foucault – Um percurso pelos seus temas, conceitos


e autores. Tradução Ingrid, Muller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan, Instituto
Carioca de Criminologia, 2005.
102 
 

CHIGNOLA, Sandro. Sobre o dispositivo: Foucault, Agamben, Deleuze. Tradução de


Sandra Dall Onder. Cadernos IHU Ideias / Instituto Humanitas Unisinos. Ano 12, n.º
214, vol. 12. São Leopoldo, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2014.
COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o Poder Militar na
América Latina. Tradução de A. Veiga Fialho. 3ª edição. Editora Civilização
Brasileira: Rio de Janeiro, 1980.
CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Novo Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil.
Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema
de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF). Brasília: junho de 2014. (Disponível
em: http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/pessoas_presas_no_brasil_final.pdf).
DELEUZE, Gilles. “¿Qué es un dispositivo?”. In: Michel Foucault, filósofo. BALBIER,
E. et al. Barcelona: Gedisa, 1999, pp. 155-161.
DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias: Infopen Mulheres – Junho de 2014. Brasília: Ministério
da Justiça. (Disponível em: http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-
populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf).

DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a


nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1994.

_________. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução Leyla


Perrone-Moisés. 2ª Ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

ESPOSITO, Roberto. Bíos: biopolítica e filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010.

ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.


Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a ação
de milícias no âmbito do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: < http://www.nepp-
dh.ufrj.br/relatorio_milicia.pdf>. Acesso em: 17 jun/2016.

FELLETI, Vanessa Maria. Vende-se segurança: a relação entre o controle penal da


força de trabalho e a transformação do direito social à segurança em mercadoria.
Rio de Janeiro: Revan, 2014.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 9º Anuário Brasileiro de
Segurança Pública, 2015.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso – Aula inaugural no Collège de France,
pronunciada em 02 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio –
23ed. – São Paulo: Edições Loyola, 2013.
__________, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972-1973).
Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.
__________, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-
1976). Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
103 
 

__________, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva,


2012.
__________, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 3ª ed. Tradução
de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e
Terra, 2015.
___________, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995.
__________, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Editora Martins Fontes,
2008.
__________, Michel. O poder psiquiátrico: curso dado no Collège de France (1973-
1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006.
__________, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de
France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
__________, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2009.
FRAGOSO, Cristiano Falk. Autoritarismo e sistema penal. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Juris, 2015.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lei de Segurança Nacional: uma experiência
antidemocrática. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabres Editor: 1980.
GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar: por uma justiça
internacional. Instituto Piaget: Lisboa, 2002.
GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade
contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
__________, David. As contradições da “sociedade punitiva”: o caso britânico. Revista
de Sociologia e Política nº. 13: 59-80, novembro 1999.
GAUER, Ruth Maria Chittó. A fundação da norma: para além da racionalidade
histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011.
GONÇALVES, Vanessa Chiari. Tortura e cultura policial no Brasil contemporâneo.
Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2014.
HOBBES, Thomas. Leviatán: La materia, forma y poder de un Estado eclesiástico y
civil. Alianza Editorial: Madrid, 1992.
HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa
cidade do século XIX. Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.
HUGGINS, Martha Knisely. Violência urbana e privatização do policiamente no Brasil:
uma mistura invisível. Caderno CRH, Salvador, vol. 23, n. 60, p. 541-558, Set./Dez.
2010.
HUGGINS, Martha; HARITOS-FATOUROS, Mika; ZIMBARDO, Philip G.
Operários da violência: policiais torturadores e assassinos reconstroem as
104 
 

atrocidades brasileiras. Tradutor Lólio Lourenço de Oliveira – Brasília: Editora


Universidade de Brasília, 2006.
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e
críticas. Org. e trad. André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2012.
KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos Sediciosos: crime, direito e
sociedade, ano 1, número 1, 1º semestre de 1996.
______, Maria Lúcia. Recuperar o desejo da liberdade e conter o poder punitivo. Rio
de Janeiro: Editora Lumens Juris, 2009.
LEVI, Primo. É isto um homem?. Tradução de Luigi Del Re – Rio de Janeiro: Rocco,
1988.
MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos
repressivos à época da ditadura militar no Brasil. Revista Brasileira de História, vol.
17, n. 34, São Paulo: 1997.
MAPA DO ENCARCERAMENTO: os jovens do Brasil. Secretaria-Geral da
Presidência da República e Secretaria Nacional de Juventude. Brasília: Presidência da
República, 2015, p. 25. (Disponível em:
http://juventude.gov.br/articles/participatorio/0009/3230/mapa-encarceramento-
jovens.pdf).
MELIÁ, Cancio; DÍEZ, Gómez-Jara. Derecho penal del enemigo: el discurso penal de
la exclusión. Buenos Aires: Euros Editores, 2006.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Evolução histórica das penas e medidas alternativas no


Brasil. Disponível em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-
penal/arquivos/alternativas-penais-1. Último acesso: 16/05/2016.

MOLINÉ, José Cid; LARRAURI, Elena Pijoan. Teorías Criminológicas: explicación y


prevención de la delincuencia. Barcelona: Editorial Bosch, 2001.

MONJARDET, Dominique. O que faz a polícia: sociologia da força pública. Posfácio


Jean-Marc Erbès. Tradução Mary Amazonas Leite de Barros. 1.ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2012.

MOURA, Marcelo Oliveira de. Desocultando “o percurso” da informalização da


justiça no sistema dos Juizados Especiais Federais: uma pesquisa exploratória nos
juizados criminais da 4ª Região. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade do Vale
do Rio dos Sinos. Programa de Pós-Graduação em Direito, São Leopoldo, Rio Grande do
Sul, 2015.
NEGREIROS, Dario; FRANCO, Fábio Luís; SCHINCARIOL, Rafael. A doutrina da
segurança nacional e a invisibilidade do massacre da população preta, pobre e
periférica. In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de (Org.; et al.). O direito achado na
rua: introdução crítica à justiça de transição na América Latina. 1.ed. – Brasília,
DF: UnB, 2015.
105 
 

OLIVEIRA, Luciano. Tortura. In: LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz;
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2014.
ORWELL, George. 1984. Tradução Alexandre Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.  
PAVARINI, Massimo. Control y dominación: teorías criminológicas burguesas y
proyecto hegemónico. Epílogo de Roberto Bergalli. Siglo Veintiuno Editores: Madrid,
1996.
_________, Massimo. O instrutivo caso italiano. In: Discursos Sediciosos – crime,
direito e sociedade. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1996.
PEREIRA, Gustavo Oliveira de Lima. Vida nua e estado de exceção permanente: a
rearticulação da biopolítica em tempos de império e tecnocapitalismo. Revista Sistema
Penal & Violência. Porto Alegre, volume 06, número 02, p. 215-231, jul/dez. 2014.
PONTEL, Evandro. Estado de exceção: estudo em Giorgio Agamben. Passo Fundo:
IFIPE, 2014.
RAMOS, Beatriz Vargas. Direito ao dissenso. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.); Ana
Luiza Nobre [et. al]. Paz Armada. Coleção Criminologia de Cordel. Rio de Janeiro:
Revan, 2012, 1ª reimpressão, setembro de 2013.
REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. Tradução Maria do Rosário
Gregolin, Nilton Milanez, Carlos Piovesani. São Carlos: Claraluz, 2005.
RIBEIRO, Ludmila. O nascimento da polícia moderna; uma análise dos programas de
policiamento comunitário implantados na cidade do Rio de Janeiro (1983-2012). Análise
Social, 211, xlix (2.º), pp. 272-309.
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. Tradução,
revisão técnica e nota introdutória Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
SAFATLE, Vladmir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson;
SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura? - a exceção brasileira. São
Paulo: Boitempo, 2010.
SANTOS, André Leonardo Copetti. Sobre expansão penal no Brasil. In: RVMD, Brasília,
V.6, n.º 1, p. 77-114, Jan-Jun, 2012. Disponível em:
<http://portalrevistas.ucb.br/index.php/rvmd/article/viewFile/2833/2299>.
SANTOS, José Vicente Tavares do (Org.). Programas de polícia comunitária no
Brasil: avaliação de propostas de Políticas Públicas de Segurança. Ministério de
Justiça e Cidadania – Governo Federal.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC, Lumen
Juris, 2008.
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Crimes do Estado e Justiça de Transição. Revista
Sistema Penal & Violência. Porto Alegre, volume 2 – número 2 – p. 22-35,
julho/dezembro, 2010.
106 
 

___________, José Carlos Moreira. Criminologia e alteridade: o problema da


criminalização dos movimentos sociais no Brasil. In: GAUER, Ruth Maria Chittó.
Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. – Dados eletrônicos – 2.
ed. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011.
___________, José Carlos Moreira da. Justiça de transição: da ditadura civil-militar
ao debate justransicional: direito à memória e à verdade e os caminhos da reparação
e da anistia no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.
SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política
criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
SIMON, Jonathan. Punição e as tecnologias políticas do corpo. Tradução de Leandro
Ayres França. In: Revista Sistema Penal & Violência, vol. 5, n. 2, pp. 219-251 (jul/dez
de 2013).

SINHORETTO, Jacqueline. Desigualdade racial e segurança pública em São Paulo:


letalidade policial e prisões em flagrante. GEVAC/UFSCar, abril de 2014.

SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1945).


Apresentação de Fransisco de Assis Barbosa. Tradução coordenada por Ismênia Tunes
Dantas. 7ª edição – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

SOARES, Luiz Eduardo. PEC-51: revolução na arquitetura institucional da


segurança pública. Disponível em: <http://www.luizeduardosoares.com/?p=1185>
Acesso em: 08/08/2016.

________. Luiz Eduardo. Por que tem sido tão difícil mudar as polícias?. In: Bala
Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. Bernardo
[et al] – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2015.

SOARES, Luiz Eduardo; BILL, MV; ATHAYDE, Celso. Cabeça de porco. Rio de
Janeiro: Editora Objetiva, 2005.
________. ROLIM, Marcos; RAMOS, Silvia. O que pensam os profissionais da
segurança pública, no Brasil. Ministério da Justiça – SENASP. Agosto de 2009, 105
páginas.
SOUZA, Guilherme Augusto Dornelles de. Da punição necessária à punição eficiente?
Emergências, continuidades e deslocamentos das alternativas penais à prisão entre a
reforma da parte geral do Código Penal em 1984 e a aprovação da Lei 9.714/98. In:
MOURA, Marcelo Oliveira de; PILAU, Lucas e Silva Batista (Orgs.). Criminologias,
Sistema Penal e Conflitualidades: abordagens empíricas. Pelotas: EDUCAT, 2015.

SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da


modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG. Rio de Janeiro: IUPERJ,
2003.
______, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular
pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como fundamento II: pequeno tratado de ética
radical. Caxias do Sul, RS: Educs, 2016.
107 
 

SOZZO, Máximo. “Policía, gobierno y racionalidad: exploraciones a partir de Michel


Foucault”. In: SOZZO, Máximo. Inseguridad, prevención y policía. FLACSO: Equador,
2008.
SUTHERLAND, Edwin. H. Crime de colarinho branco. Versão sem cortes. Tradução
Clécio Lemos. – 1.ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2015.
SYKES, Gresham M; MATZA, David. Techniques of Neutralization: a theory of
Delinquency. American Sociological Review, volume 22, 1957, pp. 664-670.
VALENTE, Júlia Leite. UPPS: governo militarizado e a ideia de pacificação. 1.ed.
Rio de Janeiro: Revan, 2016.
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
__________, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A
onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 3ª edição, revista e ampliada, agosto de
2007. 1ª reimpressão, março de 2013.
YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na
modernidade recente. Rio de Janeiro, Revan, 2002.
ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de
inimigos na cidade do Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel Siqueira. Favelas sob o controle das milícias no
Rio de Janeiro: que paz? São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 21,
n. 2, p. 89-101, jul./dez. 2007.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade
do sistema penal. Tradução Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição – Rio
de Janeiro: Revan, 1991, 5º edição, janeiro de 2001, 1º reimpressão, outubro de 2010, 2º
reimpressão, setembro de 2012.
__________, Eugenio Raúl. Crímenes de Masa. Prólogo de Eduardo S. Barcesat. 1a. ed.
Ciudad Autonoma de Buenos Aires: Ediciones Madres de Plaza de Mayo, 2010.
__________, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos: Conferencias de criminología
cautelar – 1ª ed. 1ª reimp. – Buenos Aires: Ediar, 2011.
__________, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007,
2ª edição junho de 2007, 3ª edição dezembro de 2011.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR,
Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal.
Rio de Janeiro: Revan, 2003, 4ª edição, maio de 2011.

ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição


Brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da
ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
ZIZEK, Slavoj. Para uma apropriação do Legado Europeu pela Esquerda. Edições
Pedago, Lda: Portugal, 2009.

Você também pode gostar