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Porto Alegre
2016
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Porto Alegre
2016
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BANCA EXAMINADORA:
________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho (Presidente – Orientador)
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
________________________________________
Prof. Dr. Augusto Jobim do Amaral
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
________________________________________
Prof. Dr. Gustavo Oliveira de Lima Pereira
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
________________________________________
Prof. Dr. Sandro Chignola
Università degli Studi di Padova (ITA)
7
RESUMO
This master’s dissertation has as principal goal to question the existance of a police
dispositive, that operationalizes throught the subjectivation and the desubjectivation of
individuals and places itself far beyond the modern police institution, affecting not only
the operators, in general, of the criminal system, but also the social relations. To confirm
this hypothesis, the search initially focus on the Brazilian criminal system and it
contemporary double frame, trying to trace, not only the pulsing mass encarceration since
the end of the XX century, but also the state crimes against the black and poor population.
Furthermore, other goal is to question about the emergency of the modern police, liking
it with elementary features of its activities, as well to trace the birth and development of
the Brazilian police, not forgetting to localize it on the exception paradigm of Giorgio
Agamben, in other words, displacins from a contractualist vision of its activities and
showing that Brazilian police are linked both to a fouding and to a conservative violence,
spectral quintessentially. Thus, from the police, institution that concetrates the security
power in modern democracies, is that seeks to think what represents a police dispositive
in power relations and which are the possible interminglings of its crossings.
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................10
2 CULTURA PUNITIVA E CRIMES DE ESTADO: A DUPLA FACE DO
SISTEMA PENAL BRASILEIRO ..............................................................................13
2.1 Política criminal da barbárie: o encarceramento em massa no Brasil e as formas
alternativas de controle penal ..................................................................................13
2.2 Crimes praticados pelo Estado e o extermínio sistemático de pobres no
Brasil.. ......................................................................................................................32
3 DA EMERGÊNCIA DA POLÍCIA MODERNA À POLÍCIA
BRASILEIRA.. ..............................................................................................................40
3.1 Polícia entre soberania e arte de governar: controle, higienismo e
autoritarismo .............................................................................................................40
3.2 A polícia no Brasil: do império à democracia recente .......................................53
4 O DISPOSITIVO POLICIAL: QUEM ASSINA A VIOLÊNCIA?...................73
4.1 A polícia no paradigma da guerra civil: soberania e degenerescência
democrática...............................................................................................................74
4.2 Interfaces do dispositivo policial: a dupla captação da vida.. ............................84
5 CONCLUSÃO.........................................................................................................96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................99
10
1. INTRODUÇÃO
Assim, a hipótese central pode ser colocada nos seguintes termos: para além da
instituição policial, existe um dispositivo policial que, a partir do duplo movimento de
subjetivação e dessubjetivação, contribui para articular a operacionalidade das formas de
vigilância, de controle, de encarceramento e, como experiência-limite, de extermínio
dentro da sociedade, advindas também das relações entre os próprios indivíduos, os quais
introjetam e reproduzem lógicas policialescas entre si, assim como, partindo da premissa
da exceção permanente como forma preponderante da governabilidade moderna, tal
dispositivo contribui para produção de vidas nuas, portadoras de uma fragilidade frente
ao poder e ao direito ainda pensados em termos de soberania.
No terceiro e último capítulo, busca-se pensar a polícia para além de uma noção
contratualista, vinculando-a à um outro paradigma político: a guerra civil. Antes tudo, no
entanto, desloca-se a instituição moderna da polícia de uma possível função
administrativa – onde cumprir ordens e as leis seria sua principal atribuição – para sua
insidiosa relação para com as violências que fundam e conservam, fazendo emergir sua
característica de espectro que lhe garante estar e não estar, ser e não ser, ver e não ser
visto ao mesmo tempo – nesse caso, fantasmagoria por excelência. Movendo-se no campo
da exceção, a polícia sob o paradigma da guerra civil localiza-se num ponto central em
que nas extremidades, resultados de sua operacionalidade, encontram-se a politização e a
despolitização (polis e oikos) dos indivíduos, pêndulo que faz da vida de alguns
politicamente qualificadas enquanto de outros não.
Por fim, esclarece-se que a utilização da noção de dispositivo policial aparece por
dois motivos: primeiro, pela insuficiência que o termo polícia traz para descrever as ações
que emanam de determinada racionalidade governamental repressiva, onde em jogo não
está somente a necessidade de cumprimento da lei e de funções meramente
12
Não é difícil notar que as mesmas agências que participam do ritual de punição
são as mesmas agências que incorrem em crimes praticados pelo Estado. As mesmas
instituições que fixam altas penas a determinados crimes, são as que escondem, com um
requintado toque político, mas sobre uma camada de direito, as mortes praticadas pelos
seus agentes. É sob a égide da irracionalidade com que a pena é aplicada que os massacres
à grupos e populações inteiras também surgem.
1 Sobre as teorias que embasam o poder de punir do Estado ao longo da história, ver: SANTOS, Juarez
Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC, Lumen Juris, 2008.
14
Os delírios sistematizados dos operadores do sistema penal, que buscam
racionalidade na aplicação da pena, são os mesmos delírios que buscam
racionalidade para os massacres. A mesma lógica punitiva que opera no
encarceramento em massa em nosso país é a que justifica a letalidade do nosso
sistema penal. O mesmo furor punitivo que contabiliza produtividade por
inquéritos relatados na polícia e denúncias oferecidas pelo Ministério Público,
encontra-se nos pedidos de arquivamento dos autos de resistência, aceitos pela
Justiça. É dentro do direito que os massacres e as penas se indeterminam na
exceção soberana2.
No que se refere aos novos números trazidos pelo sistema penal, Loïc Wacquant,
ao pesquisar os laços entre as políticas sociais e as políticas penais nos Estados Unidos
da América do final do século XX, e a paulatina concessão de espaço das primeiras para
o avanço das segundas, traçará, a partir das análises sobre o sistema carcerário daquele
país, o que ele denomina de Estado penal. Para ele, uma nova racionalidade, imposta após
a derrocada do welfare-state no país norte-americano, passa a atuar em três níveis.
No plano mais baixo do estrato social, o encarceramento torna-se presente a fim
de estocar fisicamente o excedente da classe operária, ou seja, aqueles que não estão
2 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na
cidade do Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p. 262.
3 Lola Aniyar de Castro faz uma divisão interessante do sistema penal: aparente e subterrâneo. O aparente
é aquele que criminaliza as condutas que são mais fáceis de localizar, mais à vista dos meios de controle,
enquanto que o subterrâneo, num movimento contrário de dizer quem é “mau” a partir do tipo penal, vai
proclamar e apontar os “bons” do sistema social e, por consequência, o tratamento que a eles deve ser
dirigido pelas agências de controle. Segundo a criminóloga venezuelana: “Embora proibidos pelo sistema
aparente, há procedimentos diferenciados para as classes subalternas no terreno fático; violações de
domicílio; violências policiais; violação do direito à própria imagem no tratamento informativo; prisões e
detenções preventivas por prazo indeterminado; execução penal à margem dos direitos humanos; carência
de condições dignas de vida, de acesso à informação, à comunicação, a atividades culturais ou esportivas,
etc., e sofrimentos físicos e morais que ultrapassam os previstos pela lei (CASTRO, Lola Aniyar de.
Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2005, p. 131).
4 Para uma elucidação das teorias que sustentam o discurso oficial da pena, ver ainda: SANTOS, Juarez
Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC, Lumen Juris, 2008.
5 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, 2ª
edição, julho de 2012, p. 99.
6 SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas
sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 30.
15
7 Vale destacar que essa política higienista, de limpeza, que se traduz numa compulsão pela ordem, está
presente nas mais diversas sociedades ocidentais, seja em regimes políticos das democracias liberais, seja
nos regimes totalitários, embora tal violência depuradora esteja mais sempre nos ambientes onde a
exceção constitui-se a regra. Tal eliminação de adversários políticos é uma forma de atingir a todos os
que podem se constituir em perigo (GAUER, Ruth Maria Chittó. A fundação da norma: para além da
racionalidade histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011).
8 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva].
Rio de Janeiro: Revan, 2003, 3ª edição, revista e ampliada, agosto de 2007. 1ª reimpressão, março de
2013, p. 17.
9 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
10 BJS – Bureau of Justice Statistics – Correctional Populations in the United States, 2014. U.S
Departamente of Justice, December 2015, p. 02 (Disponível em:
http://www.bjs.gov/content/pub/pdf/cpus14.pdf)
11 Foi Michel Foucault, em sua aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de
1970, que referiu para as possibilidades de emergência dos discursos, ressaltando que a sua produção é
sempre controlada, selecionada, organizada e redistribuída por procedimentos. No mesmo ato, alertou não
ser o discurso somente o que traduz as lutas e o sistemas de dominação, mas também aquilo pelo que se
luta, um poder do qual se quer apoderar (FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso – Aula inaugural
no Collège de France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida
Sampaio – 23ed. – São Paulo: Edições Loyola, 2013, p. 10).
12 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da
(des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 135.
16
13 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal.
Tradução Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição – Rio de Janeiro: Revan, 1991, 5º edição,
janeiro de 2001, 1º reimpressão, outubro de 2010, 2º reimpressão, setembro de 2012, p. 24.
14 Logo adiante, o presente trabalho explorará o grau de arbitrariedade das agências através da categoria
de estado de exceção do pensador italiano Giorgio Agamben, para o qual aquele se apresenta, em tempos
modernos, em “um deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo”
que “ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível, a estrutura
e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção,
apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”
(AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004,
p. 13.)
15 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. Tradução, revisão técnica e nota
introdutória Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 20.
17
16 O próprio Foucault, em Vigiar e Punir, aponta explicitamente para a influência de Georg Rusche e
Otto Kirchheimer em sua obra.
17 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009,
171.
18 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade
periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.
18
na esfera das condições psicossociais da personalidade: a) a inadaptação do
negro para o trabalho livre; e b) sua incapacidade de agir segundo os modelos
de comportamento e personalidade da sociedade competitiva19.
Assim é que se pode notar estar o sistema penal brasileiro atualmente alcançando
a geração seguinte (netos, bisnetos e tataranetos) de escravos libertos no fim século XIX,
os quais servem, devido às suas restritas possibilidades de ascensão social e sua barreira
socialmente construída junto aos poderes econômicos e políticos, como exército de
reserva do modo de produção capitalista. Servindo-se de um aparato bélico, onde a maior
representatividade se dá pela repressão realizada por uma polícia militarizada, a lógica
punitivista em terras brasileiras tem lotado presídios e penitenciárias com corpos não
dóceis à maquinaria do modo de produção lícito. Numa linguagem mais simples, o Brasil
constitui-se de prisões de (e para) misérias, nas quais todos que ali se localizam são quase
todos pretos, ou quase pretos, ou quase brancos, de tão pobres20.
19 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São
Paulo: LeYa, 2015, p. 131.
20 Música Haiti de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
21 CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Novo Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil. Departamento de
Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas
Socioeducativas (DMF). Brasília: junho de 2014. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/pessoas_presas_no_brasil_final.pdf.
22 MAPA DO ENCARCERAMENTO: os jovens do Brasil. Secretaria-Geral da Presidência da República
e Secretaria Nacional de Juventude. Brasília: Presidência da República, 2015, p. 25. Disponível em:
http://juventude.gov.br/articles/participatorio/0009/3230/mapa-encarceramento-jovens.pdf.
23 DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias: Infopen Mulheres – Junho de 2014. Brasília: Ministério da Justiça. Disponível em:
http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-
brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf
19
24 CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo (o exemplo
privilegiado da aplicação da pena). Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010, p. 33.
25 SANTOS, André Leonardo Copetti. Sobre expansão penal no Brasil. In: RVMD, Brasília, V.6, n.º 1,
p. 77-114, Jan-Jun, 2012, p. 100.
26 CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo (o exemplo
privilegiado da aplicação da pena), p. 33.
27 Idem, p. 34.
28 Idem, p. 34.
20
29 Idem, p. 35.
30 Conforme a Lei n.º 11.343/2006, artigo 28, § 2º: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo
pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em
que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes
do agente”.
21
Mais do que simples direito penal do inimigo38, o qual não encontra solo fértil na
realidade brasileira, na medida em que para haver tratamento de inimigo é necessário que
31 BOITEUX, Luciana. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária
brasileira e alternativas. In: SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo:
IBCCRIM, 2014, p. 90.
32 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da
Lei 11.343/06. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 288.
33 BOITEUX, Luciana. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária
brasileira e alternativas, p. 90.
34 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de
Criminologia, 6ª edição, outubro de 2011, p. 41 e seguintes.
35 BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiz X. de Borges;
revisão técnica Karina Kuschnir. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, pp. 153 e seguintes.
36 RAMOS, Beatriz Vargas. Direito ao dissenso. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.); Ana Luiza Nobre
[et. al]. Paz Armada. Coleção Criminologia de Cordel. Rio de Janeiro: Revan, 2012, 1ª reimpressão,
setembro de 2013, p. 20.
37 Segundo Salo de Carvalho, os Estados Unidos proclamam a droga como o novo inimigo interno da
nação, porém “com a popularização do consumo de heroína e a criação dos programas de metadona,
forma indireta de controlar e legalizar o consumo, o inimigo interno teve de ser substituído, projetando-o
ao exterior” (CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e
dogmático da Lei 11.343/06, p. 72).
38 Sobre a política-criminal denominada Direito Penal do inimigo, essencial é: JAKOBS, Günther;
MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Org. e trad. André Luis Callegari e
Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. Numa visão histórica e crítica,
assume relevância o trabalho do argentino Zaffaroni, vide: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no
22
antes as garantias estivessem sendo efetivadas de forma ampla e universal39, o que nunca
ocorreu em nossa realidade marginal 40 , a criminalização das drogas é dispositivo
encarcerador e desumanizador, que vem para provocar a morte de milhares de jovens que
vivem às margens da economia lícita.
Por essa razão, aparece como destituído de sentido querer projetar-se sobre o
direito penal brasileiro o paradigma do “direito penal do inimigo”, vez que este
pressupõe a existência paralela de um “direito penal de garantias” amplamente
consolidado, e em alguma medida universalizado43.
Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, 2ª edição junho de 2007, 3ª edição dezembro de 2011. Ainda,
para uma melhor compreensão do fenômeno em todos os seus aspectos, ver: MELIÁ, Cancio; DÍEZ,
Gómez-Jara. Derecho penal del enemigo: el discurso penal de la exclusión. Buenos Aires: Euros Editores,
2006.
39 CARVALHO, Thiago Fabres de. O “Direito penal do inimigo” e o “Direito penal do Homo Sacer da
baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro:
Revan/ICC, ano 17, n. 19/20, 2012.
40 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal,
pp. 164-165.
41 BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2002, 1ª
reimpressão, novembro de 2013.
42 CARVALHO, Thiago Fabres de. O “Direito penal do inimigo” e o “Direito penal do Homo Sacer da
baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro:
Revan/ICC, ano 17, n. 19/20, 2012.
43 Idem.
44 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Revan, 2003.
23
Mas mais do que isso, os meios de comunicação instauram tensões graves entre o
delito-notícia – o qual reclama uma pena-notícia – e o devido processo legal (visto como
45 Idem, p. 117.
46 Idem, p. 118.
47 YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade
recente. Rio de Janeiro, Revan, 2002, pp. 154-160.
48 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos: crime, direito e
sociedade, Rio de Janeiro, ano 7, n° 12, p. 271-288, 2° semestre de 2002, p. 273.
24
Ademais, captam a positividade que o medo possui, vez que esse torna-o
exacerbado ao deformar a verdadeira possibilidade de vitimização frente a determinados
delitos 50 . Assim, os meios de comunicação – verdadeiro sistema penal informal 51 –
através da mídia falada (televisão) e escrita (jornais, literatura, romances, histórias em
quadrinhos), e mais recentemente pela internet, terminam por aumentar a dimensão dos
riscos que estão lá fora.
Risco que passa a ser gerido a partir de uma nova cultura do controle do crime,
segundo David Garland. Para esse autor, ao analisar a política criminal dos últimos 30
anos nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, houve uma mudança das sensibilidades em
torno da justiça criminal nas últimas décadas, passando a sociedade a ser a fonte da
estrutura da justiça criminal – onde inclusive vítimas são consultadas acerca das táticas e
estratégias a serem tomadas – e o crime assumindo crescente relevância. Para além da
segregação punitiva – sobre a qual já se referiu acima e tem como fonte a velha retórica
da lei e ordem – há também a estratégia da parceria preventiva52, onde a sociedade torna-
se um meio de prevenir e reprimir o crime.
É uma criminologia do eu53 que entra em jogo quando o crime passa a fazer parte
da rotina de toda sociedade, fazendo novos hábitos serem forjados para além das políticas
estatais – como uma simples mudança de rota no caminho para casa ou não parar na
sinaleira em determinado horário – assim como esquentando o mercado de segurança
privada, ao se ver estampado um certo ceticismo (inocente) quanto à operacionalidade do
sistema penal em combater o crime.
49 Idem, p. 273.
50 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos: Conferencias de criminología cautelar – 1ª
ed. 1ª reimp. – Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 383.
51 Para uma análise introdutória sobre o sistema penal, ver: ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA,
Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria
Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 4ª edição, maio de 2011.
52 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de
Janeiro: Revan, 2008, p. 313.
53 Idem, p. 288.
25
Tal fator faz com que os indivíduos clamem por maiores penas aos seus
parlamentares, ao mesmo tempo que desenvolvem estratégias de prevenção para que o
crime – elemento que passou a se tornar central no século XXI – não alcance os membros
de sua família, assim como recorrem ao mercado privado de segurança e apoiam a
privatização de determinados setores que, escancaradamente, já não cumpriam mais as
metas de combate à criminalidade. Recorre-se a tudo e a todos, sem se dar conta de que
é a extensão da malha penal que, ao fim e ao cabo, acaba crescendo.
Por sua vez, o consumo de produtos e serviços relativos à segurança também passa
a ser notado como uma forma de se sentir mais seguro frente à uma criminalidade latente
pela disseminação do medo da vitimização. Um direito social que acaba por ser colocado
nas relações de consumo e, por óbvio, privilegiando somente quem pode pagar.
Diante disso, será no que se quer ocultar que tentamos riscar o fósforo para
revelar que o “simples” ato de comprar um alarem para casa não está
desatrelado da brutalidade policial na criminalização da miséria, da invecível
guerra contra o tráfico, do fato de considerar somente o combate à base do
tráfico de drogas uma guerra (pois sempre se esquece do fluxo internacional
de lavagem de capitais, operada por grandes bancos, do dinheiro vindo do
tráfico de drogas, ou alguém já viu a mídia chamar executivo de banco de
traficante, mesmo ele pertencendo ativamente à cadeia financeira do lucro do
tráfico?), que não está desatrelado do excedente de força de trabalho na atual
fase do modo de produção capitalista e, por último, mas não por fim, do trato
do direito social à segurança como uma mercadoria, em verdadeira relação de
fetiche56.
54 FELLETI, Vanessa Maria. Vende-se segurança: a relação entre o controle penal da força de trabalho e
a transformação do direito social à segurança em mercadoria. Rio de Janeiro: Revan, 2014, p. 108.
55 Idem, p. 108.
56 Idem, p. 119.
26
no Brasil. Desde a reforma do Código Penal brasileiro em 1984, pode-se perceber uma
vontade do legislador em potencializar políticas criminais que incentivem uma menor
utilização da prisão como resposta a um delito praticado. Por isso, aquele ano ficou
marcado pela inserção, na legislação penal, das chamadas penas alternativas, a partir da
promulgação da Lei n.º 7.209/84, a qual, ao reformar o a parte geral do Código Penal,
introduziu a possibilidade de substituir-se a pena privativa de liberdade – nos crimes
culposos e nas que forem aplicadas penas de até um ano nos crimes dolosos – por pena
restritiva de direitos, além de ampliar as possibilidades da suspensão condicional da pena
nos casos de condenação.
57 Segundo o artigo 61 da Lei n.º 9.099/95, infrações penais de menor potencial ofensivo são aqueles que
cominam pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.
58 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Evolução histórica das penas e medidas alternativas no Brasil.
Disponível em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/arquivos/alternativas-penais-1.
Último acesso: 16/05/2016.
27
59 SOUZA, Guilherme Augusto Dornelles de. Da punição necessária à punição eficiente?
Emergências, continuidades e deslocamentos das alternativas penais à prisão entre a reforma da parte
geral do Código Penal em 1984 e a aprovação da Lei 9.714/98. In: MOURA, Marcelo Oliveira de;
PILAU, Lucas e Silva Batista. Criminologias, Sistema Penal e Conflitualidades: abordagens empíricas.
Pelotas: EDUCAT, 2015, p. 89.
60 Idem, pp. 98-100.
61 Idem, p. 101.
62 Idem, p. 103.
63 MOURA, Marcelo Oliveira de. Desocultando “o percurso” da informalização da justiça no sistema dos
Juizados Especiais Federais: uma pesquisa exploratória nos juizados criminais da 4ª Região. Tese
(Doutorado em Direito) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Programa de Pós-Graduação em
Direito, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, 2015, p. 197.
28
É importante que, no rastro deixado por Michel Foucault, se esclareça estar esses
mecanismos securitários aliados à uma nova economia política 68 que possibilita
circunscrever uma governamentalidade69 contemporânea que recai sobre uma população,
numa espécie biopolítica 70
ou biopoder, onde a vida passa a ser capturada e
64 CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth
Maria (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2010, p. 165.
65 AMARAL, Augusto Jobim do. Entre serpentes e toupeiras: a cultura do controle na
contemporaneidade (ou sobre o caso do monitoramento eletrônico de presos no Brasil). In: Revista
Sistema Penal & Violência, vol. 2, n. 2, pp. 75-89 (jul/dez de 2010), p. 84.
66 AMARAL, Augusto Jobim do. A política da prova e cultura punitiva: a governabilidade inquisitiva do
processo penal brasileiro contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2014, p. 310-311.
67 Idem, p. 306.
68 Na impossibilidade de adentrar de forma mais profunda no tema, torna-se necessário destacar que a
economia política, na forma do liberalismo e do neoliberalismo, é para Foucault a forma de saber que dá
suporte a essa nova razão governamental. Para mais detalhes, principalmente sobre suas noções e
objetivos de autolimitação do governo, ver FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São
Paulo: Editora Martins Fontes, 2008, pp. 19-24.
69 Foucault entende a palavra governamentalidade como “o conjunto constituído pelas instituições, os
procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem
específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma
de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em
segundo lugar, por “governamentalidade” entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente,
não parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar
de “governo” sobre todos os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um lado, o
desenvolvimento de toda uma séria de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o
desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por “governamentalidade”, creio que se deveria
entender o processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que
nos séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco “governamentalizado”
(FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-1978).
São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 143-144).
70 Edgardo Castro trata de pontuar as diversas facetas do que se pode entender por biopolítica na obra
foucaultiana: “Há que entende por “biopolítica” a maneira pela qual, a partir do século XVIII, se buscou
racionalizar os problemas colocados para a prática governamental pelos fenômenos próprios de um
conjunto de viventes enquanto população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raça. Essa nova forma
de poder se ocupará, então: 1) Da proporção de nascimentos, de óbitos, das taxas de reprodução, da
fecundidade da população. Em uma palavra, da demografia. 2) Das enfermidades endêmicas: da atureza,
29
Ao contrário dos processos disciplinares onde o cidadão era o alvo potencial, essa
nova arte de governar com mecanismos de segurança tende a buscar meios que sujeitem
– a partir dos processos biológicos – todos os indivíduos. Trata-se de um poder que tenta
captar o maior número de seres vivos possíveis e não mais somente a anátomo-política
do corpo humano74. Nesse sentido, enquanto a disciplina é centrípeta, ou seja, isola um
espaço, determina um segmento, concentra, centra, encerra, a fim de que seus
mecanismos possam funcionar de forma plena e sem limites 75 , os dispositivos de
segurança são centrífugos, quer dizer, deixa com que os indivíduos circulem entre
diversos circuitos dentro da sociedade, tendendo perpetuamente a ampliar-se 76 . Se
podemos ver na prisão o meio mais expressivo de um poder disciplinar, as alternativas
penais acima descritas – e sua forma de expansão do mecanismo penal a indivíduos sem
da extensão, da duração, da intensidade das enfermidades reinantes na população; da higiene pública. 3)
Da velhice, das enfermidades que deixam o indivíduo fora do mercado de trabalho. Também, então, dos
seguros individuais e coletivos, da aposentadoria. 4) Das relações com o meio geográfico, com o clima. O
urbanismo e a ecologia”. Em relação à disciplina: “Se compararmos uma e outra forma de poder, podemos
diferenciá-las da seguinte maneira: 1) Quanto ao objeto: a disciplina tem como objeto o corpo individual;
a biopolítica, o corpo múltiplo, a população, o homem como ser vivente, pertencente a uma espécie
biológica. 2) Quanto aos fenômenos considerados: enquanto as disciplinas consideram os fenômenos
individuais, a biopolítica estuda fenômenos de massa, em série, de longa duração. 3) Quanto aos seus
mecanismos: os mecanismos das disciplinas são da ordem do adestramento do corpo (vigilância
hierárquica, exames individuais, exercícios repetitivos); os da biopolítica são mecanismos de previsão, de
estimativa estatística, medidas globais. 4) Quanto à finalidade: a disciplina se propõe obter corpos
economicamente úteis e politicamente dóceis; a biopolítica persegue o equilíbrio da população, sua
homeostase, sua regulação”. (CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault – Um percurso pelos seus
temas, conceitos e autores. Tradução Ingrid, Muller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, pp.
59-60.).
71 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 3ª ed. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 146.
72 Idem, p. 149.
73 CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Tradução Beatriz de Almeida Magalhães. 1ª ed. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2014, p. 103.
74 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 3ª ed. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 150.
75 FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-
1978), p. 58.
76 Idem, p. 59.
30
Outro aspecto importante a ser destacado é que essas práticas de poder descritas
(soberania, disciplina e segurança) não se anulam, mas antes se reforçam e participam da
evolução e desenvolvimento de outras77. Por exemplo: a instituição, através de medidas
legislativas, das alternativas penais no Brasil, trata-se de formas legais regulando
mecanismos de segurança. Esses, ao mesmo tempo, reforçam os dispositivos disciplinares
– no caso brasileiro a prisão – ao possibilitarem a revogação das alternativas em caso de
descumprimento e o direcionamento do indivíduo ao encarceramento.
77 Idem.
78 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008, p. 88.
79 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008, p. 88.
80 SIMON, Jonathan. Punição e as tecnologias políticas do corpo. Tradução de Leandro Ayres França.
In: Revista Sistema Penal & Violência, vol. 5, n. 2, pp. 219-251 (jul/dez de 2013).
31
leis, que criam alternativas à prisão, mas pela densificação do punitivismo junto aos atores
que diariamente colocam em prática o sistema punitivo81.
Por certo que a crença na pena acaba por abarrotar os presídios e expandir o
controle penal sobre a subcidadania brasileira, legitimando a atuação de determinadas
agências, às quais se operacionalizam nas margens da legalidade. E quando a violência
disponível aos agentes estatais antes legítima se torna ilegítima, os crimes de Estado vêm
à tona, e passam a violar sistematicamente direitos inerente à pessoa. E é sobre esse tema
que o próximo tópico irá se debruçar.
81 CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento, p. 166.
82 KARAM, Maria Lúcia. Recuperar o desejo da liberdade e conter o poder punitivo. Rio de Janeiro:
Editora Lumens Juris, 2009.
83 CASARA, Rubens R.R. Apresentação. In: TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista. 1ª ed.
Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 11.
84 KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, ano
1, número 1, 1º semestre de 1996.
85 PAVARINI, Massimo. O instrutivo caso italiano. In: Discursos Sediciosos – crime, direito e
sociedade. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1996.
32
86 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Justiça de transição: da ditadura civil-militar ao debate
justransicional: direito à memória e à verdade e os caminhos da reparação e da anistia no Brasil. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015, p. 28.
87 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar,
1998, p. 118.
88 Paralelamente a esse movimento criminalizador, surgia a Organização das Nações Unidas (ONU), em
sobreposição à ineficiente Liga das Nações surgida após a Primeira Guerra Mundial (1914-1919),
entidade intergovernamental que até os dias de hoje (não sem ter suas potencialidades captadas pelos
países centrais) busca a cooperação entre os países para consolidar a paz e o desenvolvimento mundial.
33
novas investidas dos Estados contra populações estrangeiras e nacionais que culminassem
na humilhação, agressão e aniquilação da forma humana. Traços de uma época
(inolvidável) em que se chegou a questionar: é isto um homem?89.
No entanto, com o início da Guerra Fria (1945-1991), para além dos julgamentos
de Eichmann em Jerusalém (1961) e de Klaus Barbie (1987) em Lyon, estancaram-se os
projetos de uma justiça internacional penal e os procedimentos do Tribunal de Nuremberg
foram encerrados91. Devido ao que se sucedeu principalmente durante o regime nazista,
com a produção em escala da morte de judeus, homossexuais, negros, doentes, deficientes
físicos, entre outros, essa nova cooperação internacional penal vai tentar capitular o
homicídio massivo praticado pelos Estados. Tal fato levou a Raphael Lemkin a criar o
89 Nos campos de concetração nazistas, mas tomando como paradigma Auschwitz, o que estava em jogo
era ser ou não humano, já que uma das estratégias dessa forma de exceção de um sistema penal mortífero
e de domínio total era despir seus prisioneiros de toda e qualquer proteção, começando pela
nacionalidade. Segundo Hannah Arendt: “O primeiro passo essencial no caminho do domínio total é
matar a pessoa jurídica do homem. Por um lado, isso foi conseguido quando certas categorias de pessoas
foram excluídas da proteção da lei e quando o mundo não totalitário foi forçado, por causa da
desnacionalização maciça, a aceitá-los como os fora-da-lei; logo a seguir, criaram-se campos de
concentração fora do sistema penal normal, no qual um crime definido acarreta uma pena previsível
(ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução Roberto Raposo – São Paulo: Companhia das
Letras, 1989, p. 498). Condição essa que leva à pergunta realizada por Primo Levi, judeu italiano que lá
viveu e pôde testemunhar sobre o que viu em seus relatos (LEVI, Primo. É isto um homem?. Tradução de
Luigi Del Re – Rio de Janeiro: Rocco, 1988).
90 GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar: por uma justiça internacional.
Instituto Piaget: Lisboa, 2002, p. 24.
91 Idem, p. 28.
34
O século passado marcou-se pelo instinto genocida com que líderes políticos
(fascistas, comunistas...) trataram sua população civil e Estados perpetraram massacres
com populações de outros países, reproduzindo os instintos colonialistas e
92 Segundo a definição constante na própria Convenção, se entende por genocídio qualquer dos atos
mencionados a seguir, perpetrados com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional,
étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade
física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência
que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os
nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de menores do grupo para outro grupo.
93 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crímenes de masa. Prólogo de Eduardo S. Barcesat. 1a. ed. Ciudad
Autonoma de Buenos Aires: Ediciones Madres de Plaza de Mayo, 2010, p. 38.
35
94 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos: Conferencias de criminologia cautelar, p.
420.
95 Idem, p. 424.
96 Idem, p. 425.
97 Idem, p. 431.
36
de modo que a execução de determinado grupo se torna viável como modo de restabelecer
a legitimidade do poder de punir, o qual receberá os méritos por – através do crime
massivo – reestabelecer uma suposta paz98.
Nesse sentido, há muito que Zaffaroni alerta para as mortes perpetradas pelos
sistemas penais latino-americanos de forma cotidiana, registradas nas mais diversas áreas
que indiretamente ou diretamente estão ligadas às políticas estatais, afirmando tratar-se
de um genocídio em ato99. Uma máquina de moer gente, onde diariamente, em conta-
gotas, vidas são retiradas por agentes estatais com a complacência não só do poder público
– até porque ali reside a cota de assassinatos que possibilitam a outros viver bem – mas
também da sociedade civil. Um imenso necrotério ao céu aberto, onde jaz uma parcela
da subcidadania que se não é enjaulada, é morta por um Estado penal massacrante.
Na realidade brasileira, não é difícil encontrar chacinas praticadas por agentes do
Estado. Num exercício de reflexão que se impõe somente ao contexto democrático (após
a Constituição de 1988) exemplos transbordam: Carandiru, em 1992 (111 mortos);
Candelária, em 1993 (08 mortos); Vigário Geral, em 1993, (21 mortos); São Paulo, em
2006 (500 mortos); Grande São Paulo, em 2015 (23 mortos); Costa Barros, em 2015 (05
mortos); Londrina, em 2016 (10 mortos); Porto Alegre, em 2016 (04 mortos). Sem contar
os recentes casos emblemáticos, como o desaparecimento do pedreiro Amarildo Dias de
Souza (2013), morto após ser torturado na Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Além
dele, Cláudia Silva Ferreira (2014), arrastada por um camburão e morta, posteriormente,
com um tiro dado pela polícia.
Nesse sentido, para que não se enxergue essa violência ilegítima de forma clara,
os crimes de Estado, adequando-se aos valores sociais, são protegidos por técnicas de
neutralização que garantem sua efetividade e continuidade. Na esteira da teoria da
associação diferencial de Sutherland100, Sykes e Matza101 elaboraram algumas diretrizes
que notaram serem usadas pela delinquência juvenil para justificar e racionalizar seus
crimes, sendo que para eles tais técnicas também ensinadas e aprendidas. Quer dizer,
tratam-se de elementos que, sob os olhos daqueles que cometem crimes comuns, suas
98 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crímenes de Masa, p. 70.
99 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal,
p. 123.
100 SUTHERLAND, Edwin. H. Crime de colarinho branco. Versão sem cortes. Tradução Clécio Lemos.
– 1.ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2015.
101 SYKES, Gresham M; MATZA, David. Techniques of Neutralization: a theory of Delinquency.
American Sociological Review, volume 22, 1957, pp. 664-670.
37
102 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Crimes do Estado e Justiça de Transição. Sistema Penal &
Violência. Porto Alegre, volume 2 – número 2 – p. 22-35, julho/dezembro, 2010, p. 27.
103 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos: Conferencias de criminologia cautelar, p.
453.
38
108 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na
cidade do Rio de Janeiro, pp. 141-205.
109 SILVA FILHO, José Carlos Moreira. Criminologia e alteridade: o problema da criminalização dos
movimentos sociais no Brasil. In: GAUER, Ruth Maria Chittó. Criminologia e sistemas jurídico-penais
contemporâneos II. – Dados eletrônicos – 2. ed. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011, p. 118.
110 Idem, p. 119.
40
111 CAMPESI, Giuseppi. Genealogia della publica sicurezza: teoria e storia del moderno dispositivo
poliziesco. Ombre corte: Verona, 2009, p. 58.
41
diferença elementar entre essas duas formas de poder estaria em que enquanto na
soberania desenvolviam-se reflexões em torno da natureza da autoridade política e de sua
legitimidade, na ideia de governo, como novo paradigma político, tendia-se a tomar como
pressupostas as prerrogativas concedidas ao poder soberano, ocupando-se tão somente de
individualizar a correta modalidade de exercício dessa potência política e seus aspectos
materiais112.
112 Idem, p. 67.
113 Em Segurança, Território e População, curso dado por Michel Foucault, esse delineia o surgimento
da ideia de razão de Estado a partir do século XVII, podendo-se dar destaque para os dois conjuntos
tecnológicos dessa arte de governar: o diplomático-militar e a polícia – explorados pelo filósofo francês
nos três últimos capítulos. Tudo isso, ver em: FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população:
curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
114 CAMPESI, Giuseppi. Genealogia della publica sicurezza: teoria e storia del moderno dispositivo
poliziesco, p. 69.
115 Idem, p. 69.
42
A escassez alimentar era vista como um flagelo para a população, como crise do
governo ou também como má fortuna – numa visão filosófica da desgraça política que se
dá na falta de alimentos116. Para tanto, o soberano dispunha de todo um aparato jurídico
e disciplinar para preveni-la: limitação de preços e do direito de estocagem, limitação de
exportação etc.. Trata-se de um sistema de antiescassez da época mercantilista, de modo
que todas essas proibições e impedimentos fariam com que os cereais fossem colocados
no mercado o mais depressa possível, evitando a fome generalizada. Nota-se que o
soberano buscava, a partir de um acontecimento eventual (escassez alimentar) impor
disciplina e meios repressivos para prevenir ou até mesmo extirpar esse acontecimento, o
qual causava, de um lado, altos preços (devido à farta demanda) e, ao cabo, o que mais
trazia temor ao reino: revoltas na população117.
116 FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população, p. 41.
117 Idem, pp. 42-43.
118 Idem, p. 44.
119 Idem, p. 44.
120 Idem, p. 53.
43
Destaca-se que foi em Vigiar e Punir que Michel Foucault aprofundou – pois em
obras anteriores já havia tocado no tema122 – o estudo do poder disciplinar, a partir de
uma “história das práticas punitivas”, percorrendo desde o suplício até os meios modernos
de aprisionamento e caminhos da disciplina, os quais, segundo ele, através da pena, agirão
sobre o indivíduo para maximizar sua utilidade econômica123.
121 Idem, p. 75.
122 “O que é esse poder? A hipótese que eu queria propor é que existe em nossa sociedade algo como um
poder disciplinar. Com isso entendo nada mais que uma forma de certo modo terminal, capilar, do poder,
uma última intermediação, certa modalidade pela qual o poder político, os poderes em geral vêm, no
último nível, tocar os corpos, agir sobre eles, levam em conta os gestos, os comportamentos, os hábitos,
as palavras, a maneira como todos esses poderes, concentrando-se para baixo até tocar os corpos
individuais, trabalham, modificam, dirigem o que Servan chamava de ‘fibras moles do cérebro’. Em
outras palavras, creio que o poder disciplinar é certa modalidade, bem específica em nossa sociedade, do
que poderíamos chamar de contato sináptico corpo-poder” (FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico:
curso dado no Collège de France (1973-1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 50).
123 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009,
p. 118.
44
124 FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população, p. 78-9.
125 Idem, p. 431.
126 Idem, p. 433.
45
É interessante notar que a polícia não é o soberano agindo através da justiça, mas
sim diretamente sobre seus súditos, através de decretos, regulamentos, proibições e
instruções. Não se trata do prolongamento da justiça. Trata-se, sobremaneira, da
governamentalidade do soberano como soberano: um golpe de estado permanente, agindo
em nome e em função de princípios com racionalidade própria, sem se moldar ou modelar
pelas regras estabelecidas pela justiça127.
Como antecipado, a partir das teses dos economistas do século XVII, um novo
saber é introduzido (economia política) que passa a ver uma natureza modificável na
população, não havendo mais necessidade de que tudo seja regulado.128 A liberdade, que
vai do comércio às cidades, passa a ser introduzida como elemento essencial para a arte
de governar ancorada nos mecanismos de segurança. Por óbvio, uma liberdade artificial,
organizada, regulada e fabricada a cada instante 129 . Portanto, não se busca mais a
regulação dos indivíduos, mas a gestão da população130.
127 FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população, p. 457.
128 Idem, p. 465.
129 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica, p. 88.
130 FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população, p. 474.
131 Idem, p. 475.
132 Ao mesmo tempo em que a polícia está atrelada às formas de saber, ela mesma, a partir do século
XIX, passará a ser central na formulação de novos saberes. A investigação policial, com a obrigatoriedade
por parte de delegados, governadores de departamentos e funcionários da polícia de, quando realizado o
envio de indivíduo para um lugar de detenção, formular um relatório sobre seu comportamento e suas
motivações, irão produzir uma forte relação entre poder-saber. Ou seja, todos os agentes do poder
passarão também a serem agentes de constituição de um saber (FOUCAULT, Michel. A sociedade
punitiva: curso no Collège de France (1972-1973). Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2015, p. 213).
46
do século XVII, passa a ser preponderante na racionalidade das práticas de governo, suas
funções, que antes eram amplas e estavam vinculadas às noções de controle e
regulamentação das vidas que constituíam e elevavam as forças do Estado, passam a ser
de repressão e de mitigação de desordens, alterando inteiramente sua noção e assumindo
um sentido puramente negativo.
Nesse sentido, e com a forte influência das obras de Adam Smith, a prosperidade
e o bem-estar social são tidos como produtos de um “esforço natural” de cada indivíduo
transformado em comerciante, desde um resultado dos interesses privados guiados pela
“mão invisível” do mercado. Ao Estado, caberia apenas garantir a segurança interna e
externa e prover os serviços que nenhum indivíduo está interessado em proporcionar.
Pode-se identificar, nesse movimento, uma busca pela “minimização da polícia”134.
Uma segunda crítica liberal à velha polícia (dos séculos XVII e XVIII) insiste
em seu caráter totalitário, mas agora não sobre os interesses dos sujeitos, mas sobre o
respeito aos seus direitos, quer dizer, como “sujeito de direitos”. Nesse sentido, a lei
cumprirá papel central na construção do liberalismo como racionalidade governamental,
surgindo aqui a distinção (e, ao mesmo tempo, oposição) entre Estado de polícia e Estado
de direito: os membros da sociedade civil devem viver como sujeitos independentes ao
serem titulares de uma série de direitos individuais, sendo iguais entre a lei e livres para
seguir seus próprios interesses e se autodesenvolver135. Por essa visão, busca-se limitar o
poder do soberano, devendo esse restringir-se a assegurar igualdade e liberdade, assim
133 SOZZO, Máximo. “Policía, gobierno y racionalidad: exploraciones a partir de Michel Foucault”. In:
SOZZO, Máximo. Inseguridad, prevención y policía. FLACSO: Equador, 2008, p. 247.
134 Idem, pp. 247-248.
135 Idem, p. 248.
47
como os direitos fundamentais. O limite da soberania, pois, estaria dado pela lei e pelo
direito, notando-se uma forte tendência do liberalismo em submeter a esses as
intervenções policiais, caracterizando uma “legalização da polícia”136.
Por último, o liberalismo busca limitar a intervenção dessa nova polícia – não
mais vinculada à diversas funções estatais e agora submetida aos ditames das leis – à
função específica de repressão e prevenção dos delitos. Quer dizer, não houve somente
uma função negativa de se submeter a atividade policial ao direito, mas determinou-se
seu conteúdo. A missão dessa nova polícia será assegurar a aplicação da lei penal (law
enforcement), chegando-se a dizer na época que a ausência de delitos seria a maior prova
da eficiência dessa polícia. Tal fenômeno constitui o que Sozzo vai chamar de
“criminalização da polícia”137. Portanto, nota-se que uma polícia de cunho liberal estará
vinculada a ser submetida a essas três demandas: minimização, legalização e
criminalização.
Por sua vez, Gabriel Anitua corrobora com essa visão. O desenvolvimento dos
estados burgueses na Europa do século XVIII, principalmente na Inglaterra, pautou-se
pela burocratização dos segmentos estatais a partir de discursos disciplinares e utilitários.
Se no Ancién Régime era comum o açoite, a forca, a guilhotina, enfim, a pena de morte e
os suplícios, agora o sistema de produção instalado necessitará de corpos para manter as
fábricas funcionando. E para os excluídos e explorados com a situação, prisão e polícia
respectivamente138.
136 Idem, p. 248.
137 Idem, pp. 249-250.
138 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução Sérgio Lamarão.
Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008, p 202.
48
moral da pessoa fosse efetivado, dando-lhe uma utilidade no sistema capitalista liberal
nascente. Nesse sentido, a tentativa de criar um modelo eficiente de punição por Jeremy
Bentham, através do denominado panóptico139, é sintomática. Arquitetura mistura-se com
economia para aumentar o poder e reduzir os custos – nada mais liberalista: poder com
baixos custos, já que o preso do panóptico acabaria por introjetar o vigilante com pouco
esforço.
Essa linha positivista foi representada, já no século XIX, por diversos autores.
Entre eles, principalmente Cesare Lombroso (1935 – 1909), Enrico Ferri (1856 – 1929)
e Raffaele Garófalo (1852 – 1934). As ideias desses pensadores, advindas de uma época
em que a verdade estava sendo paulatinamente atestada pelo cientificismo, foram
diretamente influenciadas por Herbert Spencer (1820 – 1903) e seu evolucionismo social,
139 BENTHAM, Jeremy [et al.]. O Panóptico. Organização de Tomaz Tadeu. Traduções de Guacira
Lopes Louro, M. D. Magno, Tomaz Tadeu. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
140 PAVARINI, Massimo. Control y dominación: teorías criminológicas burguesas y proyecto
hegemónico. Epílogo de Roberto Bergalli. Siglo Veintiuno Editores: Madrid, 1996, p. 36.
141 Idem, p. 37.
142 Idem p. 41.
143 Idem, pp. 41-42.
49
sem olvidar o spencerismo biológico de Charles Darwin (1809 – 1882) com sua seleção
natural144. As análises desses três autores, sem uma uniformidade, estavam, em parte,
direcionadas para aspectos biológicos do delinquente, apontando para uma antropologia
criminal, e em parte para aspectos ambientais – ou seja, o ambiente em sua volta – que
consideravam trabalharem como gatilhos das características propriamente biológica145.
Essa explicação do crime reduzia determinadas pessoas à condição de atávicos – ou seja,
com um desenvolvimento biológico interrompido – tornando-os vulneráveis a todo tipo
de ação preventiva ou repressiva do Estado e concretizando a desigualdade do liberalismo
econômico através de uma teoria tida como científica – e que pauta, também, o
nascimento da ciência criminológica.
144 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos: Conferencias de criminología cautelar, pp.
88-89.
145 Conferir, inicialmente, a interessante análise feita em: MOLINÉ, José Cid; LARRAURI, Elena
Pijoan. Teorías Criminológicas: explicación y prevención de la delincuencia. Barcelona: Editorial Bosch,
2001. Principalmente no capítulo III, em que os autores tratam das teorias biológicas.
146 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos, p. 237.
147 Idem, p. 215.
148 Idem, p. 216.
50
149 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos: Conferencias de criminología cautelar, p.
95.
150 FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 72.
151 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos, p. 210.
152 SOZZO, Máximo. “Policía, gobierno y racionalidad: exploraciones a partir de Michel Foucault”, p.
259.
153 Idem, p. 259.
51
Para uma compreensão mais ampla do termo autoritarismo, aponta-se que esse
possui diversas interpretações e usos. Segundo Christiano Falk Fragoso, avançando na
terminologia para além do senso comum, o conceito de autoritarismo tem sido empregado
em quatro contextos diferentes: a) autoritarismo como abuso de autoridade; b)
autoritarismo como estrutura de regime político; c) autoritarismo como ideologia política;
e d) autoritarismo proveniente da psicologia social157. O primeiro uso do termo remete à
ideia de abuso de poder quando da utilização do cargo, ou seja, quando a alguém é
conferido uma autoridade e durante o exercício dessa, ultrapasse seus limites. Mas não só
isso. Esse tipo de abuso também pode ocorrer desde o processo de constituição ou de
atribuição do poder de autoridade: ao atribuir determinado poder à pessoa ou instituição,
tornando-a uma autoridade, somente o fato dessa existir como tal (e com tais poderes) já
há uma manifestação de autoritarismo158.
154 Idem, p. 260.
155 ADORNO, Sérgio. O direito na política moderna. Revista Cult, ano 18, p. 18-21, jan. 2015, p. 21.
156 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 304.
157 FRAGOSO, Cristiano Falk. Autoritarismo e sistema penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2015, pp. 64-65.
158 Idem, p. 66.
159 Idem, p. 68.
52
160 Idem, p. 68.
161 Idem, p. 84.
162 Idem, p. 84.
163 Idem, p. 90.
164 ADORNO, Theodor W. Escritos sociológicos II, vol. 1. Madrid: Ediciones Akal, S.A., 2008, pp. 151-
153.
165 GARLAND, David. As contradições da “sociedade punitiva”: o caso britânico. Revista de Sociologia
e Política nº. 13: 59-80, novembro 1999, p. 74.
53
uma continuidade histórica entre ambas e seus projetos de defesa social, na medida em
que propugnam uma ação preventiva da polícia em relação aos potenciais “criminosos”
– arrecadados, em regra, das zonas mais pobres e recaindo, majoritariamente, sobre
negros. A gramática do “inimigo biológico”, como já foi explicitada, é bastante clara na
operacionalidade da polícia de ontem e hoje, seja por uma criminologia do outro seja pela
velha (mas sempre renovada) criminologia positivista.
momento que um policial decide não se pautar na legalidade (ou sem sua própria
legalidade), espaços de exceção são possíveis.
Por seu turno, à Guarda Real de Polícia, uma primeira versão da atual Polícia
Militar, cabia guardar a ordem e a repressão de delitos. Subordinada à Intendência, foi
criada para manter-se incessantemente atuando no espaço público, a fim de manter a
“tranquilidade”. Ficava distribuída por diversas localidades da cidade e estava sempre
pronta a dissolver as desordens que aparecessem. Os homens que nela atuavam
provinham das fileiras do Exército regular e recebiam apenas um valor simbólico para
atuação, além de alojamento e comida nos quartéis. O mais conhecido entre seus membros
166 TORRES, Epitácio. Polícia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1978, p. 31.
167 BRETAS, Marcos Luiz; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço e
perspectivas. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, jan/jul. 2013.
168 HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século
XIX. Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997,
p. 47.
55
Não se podendo fincar por muito nessa parte da história, e já demarcado o início
da polícia no Brasil, avança-se para a República Velha, em que a proclamação da
República – nesse momento, passagem do século XIX ao XX, sob forte influência do
cientificismo – representou um passo à colocação do Brasil no projeto da modernidade.
O governo da época, a fim de fazer avançar seu aparato estatal-policial, envia ao exterior
pessoal encarregado de estudar o sistema policial170. O período entre 1889 e 1907 será,
para Bretas, um período de transição entre a polícia do Império e as reformas que viriam
a se consolidar171.
No entanto, uma das fases decisivas para a polícia brasileira se iniciará com o fim
da República Velha. Foi em 1930 que Getúlio Vargas chegou ao poder, como presidente
do Brasil, através de um golpe de Estado. Se desde 1889 havia uma alternância no poder
entre candidatos de São Paulo e Minas Gerais, essa linhagem é rompida com a ascensão
do ex-Ministro da Fazenda do governo Washington Luís, proveniente do Rio Grande do
Sul, Getúlio. Ao lado de figuras como Oswaldo Aranha e Lindolfo Collor, Getúlio lidera
a conspiração contra Washington Luís e seu candidato à presidência da República Júlio
Prestes. Nessa época, era prática comum fraudar as eleições para que determinado
candidato fosse eleito, como aconteceu nas eleições de 1910 e 1922. A oposição
derrotada, sempre indignada, criticava através da imprensa o candidato eleito e seu modo
de chegar ao poder172.
1889, mas que com o tempo devolveram o poder à líderes civis – entregam a presidência
da República a Getúlio173.
brasileiro – agia sobre todos aqueles que se desvirtuavam do projeto nacional, vigiando
os tidos como vagabundos, reprimindo ideologicamente os supostamente envolvidos com
o comunismo e investigando aqueles delatados pela sociedade.
Com isso, desenha-se uma polícia que se desenvolve com instintos totalitários no
Brasil, respondendo à um ditador e buscando, inclusive, nos modelos internacionais a
partir da colaboração do Ministério das Relações Exteriores (como a Gestapo na
Alemanha e também na polícia de Nova Iorque) formações específicas de estratégias de
combate ao comunismo. Esse havia se consolidado como inimigo objetivo daquela época
principalmente pelo fato de possuir a potência de criar sublevações entre as classes
trabalhadoras, fazendo essas escaparam da lógica organicista social imposta. Negava-se
soluções políticas por parte do Estado e avançava a implementação de soluções físicas
(segregação ou extermínio)179.
Contudo, o fim da Segunda Guerra Mundial não se traduz no fim da luta contra o
comunismo, já que essa toma espaço no mundo durante a guerra fria, onde existente uma
polarização entre Ocidente, representado pelos Estados Unidos, e Oriente, representado
pela já extinta União Soviética. Entre 1945 e 1964, o Brasil vive um raríssimo lapso
democrático. No entanto, essa lacuna é interrompida por um golpe no dia 31 de março de
1964, praticado pelas Forças Armadas que tomava o apressadamente empossado João
Goulart como uma ameaça comunista. Consolidado o golpe, os presidentes militares que
assumiram passaram a exercer seus governos a partir dos chamados Atos Institucionais.
Decretos que visavam, aos poucos, suspender direitos e garantias expostos na
Constituição de 1937. O ápice dessa intervenção do Poder Executivo se deu com o Ato
Institucional n.º 05 (popularmente conhecido como AI-5), quando o habeas corpus foi
suspenso e, paralelamente, instituiu-se o Decreto n.º 898/69, que impunha a denominada
Lei de Segurança Nacional, logo após substituído pela Lei n.º 6.620/78180 e, por último,
ainda em vigor, a Lei n.º 7.170/83.
178 Idem, p. 80.
179 Idem, p. 83.
180 Para uma visão crítica, ver: FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lei de Segurança Nacional: uma
experiência antidemocrática. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabres Editor: 1980.
58
181 COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o Poder Militar na América Latina.
Tradução de A. Veiga Fialho. 3ª edição. Editora Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1980, p. 27.
182 Idem, pp. 50-68.
59
183 BRASIL. 2014. Relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Disponível em:
<http://www.cnv.gov.br/>. Acesso em: 16 jun. 2016.
184 BRASIL. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à memória e à verdade.
Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007.
185 Idem.
186 HUGGINS, Martha; HARITOS-FATOUROS, Mika; ZIMBARDO, Philip G. Operários da violência:
policiais torturadores e assassinos reconstroem as atrocidades brasileiras. Tradutor Lólio Lourenço de
Oliveira – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006, p. 152-153.
60
trabalho, ex-esposas, amigos, etc., havendo uma diferenciação, também, a partir da vida
pregressa de cada um, do valor atribuído aos relatos trazidos ao poder central187.
187 MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à
época da ditadura militar no Brasil. Revista Brasileira de História, vol. 17, n. 34, São Paulo: 1997.
188 Idem.
189 Idem.
190 NEGREIROS, Dario; FRANCO, Fábio Luís; SCHINCARIOL, Rafael. A doutrina da segurança
nacional e a invisibilidade do massacre da população preta, pobre e periférica. In: SOUSA JÚNIOR, José
Geraldo de (Org.; et al.). O direito achado na rua: introdução crítica à justiça de transição na América
Latina. 1.ed. – Brasília, DF: UnB, 2015, p. 427.
191 Em referência ao caso de Rafael Braga, preso quando saia de casa portando garrafas de produtos de
limpeza. Até 23 de maio de 2014, somente Rafael havia sido julgado e condenado por um crime
relacionado aos protestos de 2013 no Rio de Janeiro e no resto do Brasil. Mesmo o laudo pericial do caso
tendo concluído que os produtos químicos que ele portava não poderiam ser usados como explosivos, tal
informação foi desconsiderada.
61
ligados às Forças Armadas e à segurança pública, era o senador Jarbas Passarinho, coronel
da reserva, ex-ministro dos governos dos generais Costa e Silva, Médice e Figueiredo e
signatário, em 1968, do Ato Institucional n.º 5, o qual, como já descrito, inaugurou um
dos períodos mais sombrios da ditadura civil-militar brasileira192.
Não se pode dizer que o lobby dos militares não deu certo. O artigo 142 da
Constituição Federal, ao impor às Forças Armadas o dever de defesa da pátria, garantia
dos poderes constitucionais e da lei e da ordem, imediatamente a colocou fora de qualquer
controle democrático (ou seja, da lei), dando-lhe o poder soberano (e ao mesmo tempo
constitucional) de decidir sobre a suspensão da validade do ordenamento jurídico193. Ao
contrário do que se poderia pensar de um modelo democrático, são as Forças Armadas –
instituição, como a história demonstra, mais tentada a violar a democracia – que deve
zelar pelo Executivo, Legislativo e Judiciário e não o contrário194.
192 ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição Brasileira de
1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São
Paulo: Boitempo, 2010, p. 46.
193 Idem, p. 48.
194 Idem, p. 49.
195 Idem, p. 52.
62
contra civis (estudantes, jornalistas, moradores de rua...) seu aparato, impondo uma
estratégia de medo e levantando obstáculos à democrática maneira de reivindicar
direitos196. Ainda, no Paraná, em 2015, a repressão aos professores que gostariam de ter
adentrado à Assembleia Legislativa para reivindicar seus direitos demonstrou o ranço do
que e a que veio constituir-se tal instituição em democracias, obstando a gestação de um
incontabilizável futuro197. Não foram as primeiras nem serão as últimas das tantas outras
manifestações sociais por avanços em políticas públicas e direitos sociais que e à sua
frente encontrarão escudos, cassetetes e bombas de lacrimogêneo. Se manifestações
seriam uma forma de dar voz e, portanto, politizar, introduzindo os excluídos de sempre
em espaços legítimos em que suas reivindicações pudessem ganhar eco, a polícia age para
despolitizá-los, afastá-los da democracia (e do diálogo), fazer com que as coisas
regressem ao normal198 e a vida siga em frente. Para que os emudecidos pelas opressões
socioeconômicas (não eram apenas pelos 20 centavos...) que o capitalismo neoliberal
necessita para sobreviver continuem em seu lugar determinado histórico e politicamente.
De outro lado, entre 2010 e 2013, 1.275 (um mil duzentos e setenta e cinco)
pessoas foram vítimas de homicídios decorrentes de intervenções policiais na cidade do
Rio de Janeiro199. Desse expressivo número, 99,5% eram homens, 79% eram negros e
75% tinham entre 15 e 29 anos. No Brasil, a partir de dados somente do ano de 2014,
foram 3.009 vítimas de intervenção da polícia, podendo-se contabilizar que a cada três
horas uma pessoa é morta pela polícia. Além disso, no que se refere a mortes intencionais
da polícia, essas foram 46,6% superior à quantidade de latrocínios. Tudo isso contando
com um efetivo de 666.479 policiais e guarda municipais. Desses, 64% eram policiais
militares, 18% policiais civis, 15% guardas municipais, 2% policiais federais e 1%
policiais rodoviários200. A preponderância da militarização das polícias é visível. Outra
pesquisa em São Paulo, entre os anos de 2009 e 2011, em que se analisou 939 vítimas de
mortes em decorrência da ação policial, 61% eram negras, 26% entre 15 e 19 anos, 57%
196 ANISTIA INTERNACIONAL. “Eles usam uma estratégia de medo”: proteção do direito ao protesto
no Brasil. Rio de Janeiro, Anistia Internacional, 2014.
197 AMARAL, Augusto Jobim do. #Somostodosprofessores. Empório do Direito, 2015. Disponível em:
<http://emporiododireito.com.br/somostodosprofessores-por-augusto-jobim-do-amaral/> Acesso em: 08
de agosto de 2016.
198 ZIZEK, Slavoj. Para uma apropriação do Legado Europeu pela Esquerda. Edições Pedago, Lda:
Portugal, 2009, p. 07.
199 ANISTIA INTERNACIONAL. Você matou meu filho!: homicídios cometidos pela polícia militar na
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Anistia Internacional, 2015.
200 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
2015, p. 06.
63
entre 20 e 24 anos e 78% entre 25 a 29 anos, sendo que 97% do sexo masculino201, não
se distanciando muito do quadro apresentado no Rio de Janeiro, onde jovens negros do
sexo masculino figuram preferencialmente entre as vítimas de ações da polícia.
Ou seja, visível está o massacre sistemático realizado pela polícia (e seus
imemoráveis autos de resistência como plataforma jurídica de atestado das vidas indignas
de viver) 202 instalado no interior da democracia (onde espaços de exceção são
inevitáveis...), reproduzindo campos de extermínios com pouca preocupação da sociedade
civil. Jovens, negros e pobres. Uma escala de excluídos diferentes daqueles presentes nas
manifestações referidas, mas que sob a visão da repressão policial não merecem ser
calados com bala de borracha e gás lacrimogênio e sim com armas capazes de riscar suas
vidas matáveis do mapa de um país de escala continental. Vítimas de uma política de
morte e de esquecimento (pois Amarildo vive na memória de poucos), invariável essa
constante no paradigmático sistema penal de Auschwitz203.
No mesmo sentido, os matáveis continuam sendo também os torturáveis, já que
para combater o inimigo vale tudo, inclusive a sua desumanização pela dor física. Desde
a Constituição do Império, de 1824, houve a abolição das penas cruéis no Brasil. Mas na
verdade, o significado dessa abolição é que a tortura apenas não dá mais sustentação ao
poder político, como no Antigo Regime, mas agora, sob o signo do Iluminismo, passa a
ser elemento periférico, mas ainda existente. Se no final do século XX havia qualquer
resistência em defesa aos direitos humanos para sua aplicação, o atentado às torres
gêmeas em 11 de setembro de 2001 tratou de mitigar204. A prisão em Abu Ghraib, no
Iraque, e a de Guntánamo, em Cuba, são exemplos contemporâneos dessa prática.
Já num país como o Brasil, onde a modernidade foi travada pela persistência
de uma estrutura social escravagista, nada exemplifica melhor a permanência
de uma mentalidade pré-iluminista do que a continuidade que existe entre os
castigos físicos que qualquer capitão-do-mato aplicava antigamente nos negros
fujões e os “maus-tratos” que qualquer policial poder aplicar ainda hoje, sem
maiores consequências, a qualquer pequeno marginal205.
201 SINHORETTO, Jacqueline. Desigualdade racial e segurança pública em São Paulo: letalidade
policial e prisões em flagrante. GEVAC/UFSCar, abril de 2014.
202 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na
cidade do Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
203 SAFATLE, Vladmir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; SAFATLE,
Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura? - a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 238.
204 OLIVEIRA, Luciano. Tortura. In: LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz; AZEVEDO,
Rodrigo Ghiringhelli de. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014, p. 464.
205 Idem, p. 466.
64
Por vezes, essa linha tênue que separa agentes de farda do Estado daqueles que
são criminalizados/mortos/torturados é violada descaradamente em comunidades mais
pobres. Na última década tem ganhado força nessas localidades as chamadas milícias,
quase que regularmente formadas por policiais ou ex-policiais208. O início da dominação
sobre as comunidades se dá com um projeto moral de pacificação ou de libertação dos
indivíduos que antes se encontravam sob a coação do tráfico de drogas209. Controle por
grupos armados, coação contra moradores e comerciantes locais, motivação de lucro
individual para os membros da milícia, posição de comando ocupado por agentes de
segurança pública do Estado e imposição de taxas obrigatórias a moradores em troca da
suposta proteção e/ou prestação de serviços consumidos na comunidade são algumas de
suas características210.
206 GONÇALVES, Vanessa Chiari. Tortura e cultura policial no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro:
Lumens Juris, 2014, pp. 213-246.
207 ANISTIA INTERNACIONAL. “Eles nos tratam como animais”. Tortura e maus-tratos no Brasil:
desumanização e impunidade no sistema de justiça criminal. Rio de Janeiro, 2001.
208 Tal situação é muito bem retratada no filme Tropa de Elite 2 (2010), dirigido por José Padilha.
209 CANO, Ignácio; DUARTE, Thaís. Milícias. In: LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz;
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014, p.
327.
210 Idem, p. 330.
65
Na direção contrária do que se poderia deduzir, a atuação das milícias nas favelas
dominadas no Rio de Janeiro é menos violenta e muito mais transparente do que aquelas
subjugadas por traficantes. Nessa cidade, em 2007, revelou-se que nas comunidades
dominadas por agentes da segurança pública, esses enfrentam os conflitos internos das
localidades com uma violência mitigada em relação àquela utilizada por traficantes, os
quais, sob o signo da guerra, acabam por agir de forma mais violenta e optando por,
diante uma conduta rebelde às normas estabelecidas e como primeira opção, utilizar-se
do assassinato como forma de punição211. Os milicianos primeiro agridem ou expulsam
da favela antes de sentenciar à morte212.
Por óbvio, essas constatações não reduzem a barbárie perpetrada pelos agentes de
segurança pública (policiais, ex-policiais, bombeiros militares, agentes ou ex-agentes
penitenciários) que dominam as favelas cariocas. Suas atuações, ao arrepio das
legislações constitucionais e infraconstitucionais, colocam em xeque a violência pura
com que – mesmo que em menor medida em relação às áreas dominadas pelo tráfico de
drogas – coagem os moradores a obedecerem seus códigos morais e regras impostas.
Embora com mais força nos Estados do Rio de Janeiro 213 e São Paulo, essa
situação demonstra atuar a polícia com pouquíssimos freios democráticos inibitórios, não
revelando qualquer preocupação com punição na seara penal ou administrativa com a
perda do cargo público. Com violência sobre todos aqueles que se opuserem sobre seus
objetivos e com um discurso oficial de pacificação das áreas – uma técnica de
neutralização bastante palatável, como se pode observar – que justifica a eliminação não
só daqueles construídos como inimigos da sociedade, traficantes de drogas e/ou facções
criminosas, mas também de competidores pela dominação das comunidades.
Em outra medida, no caso de localidades dominadas por traficantes, o ápice dessa
engrenagem policial corrupta se dá quando no imaginário coletivo construído por seus
moradores existe mais medo da polícia local do que dos próprios traficantes. Dois motivos
211 ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel Siqueira. Favelas sob o controle das milícias no Rio de
Janeiro: que paz? São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 21, n. 2, p. 89-101, jul./dez.
2007, p. 99.
212 Idem, p. 99.
213 O Deputado Marcelo Freixo (PSOL) colocou o tema em evidência ao atuar na presidência da
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar a ação de milícias no Estado do Rio de
Janeiro. Para uma visão geral, ver: ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Assembléia Legislativa do Estado
do Rio de Janeiro. Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a ação de
milícias no âmbito do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: < http://www.nepp-
dh.ufrj.br/relatorio_milicia.pdf>. Acesso em: 17 jun/2016.
66
são bastante claros. Primeiro, porque devido ao chamado arrego 214 , valor recolhido
diariamente do tráfico pela polícia, essa última acaba degenerando sua imagem como
instituição estatal que buscava levar justiça e democracia ao território. Segundo, porque
enquanto os traficantes possuem regras e na maioria das vezes são inflexíveis quanto a
sua aplicação, da polícia, pelo contrário, o indivíduo não sabe o que esperar215.
Inclusive, as facções criminosas, por vezes lideradas por membros que mantém
vínculos familiares e também sociais há muitos anos com os moradores das comunidades
– como o caso daqueles que crescem no meio do tráfico até chegarem à liderança –
garantem, às vezes mais como estratégia de apaziguamento do que de simpatia pelos
moradores, serviços básicos (alimentação, remédios, festas de crianças) – que por ocasião
da tomada do território por uma facção de fora, pouco identificada com a comunidade,
podem ser obliterados216.
Há múltiplas vias, mas em todas a polícia age ilegalmente. Se existe uma favela
dominada pelo tráfico, se vê com desconfiança a polícia que sobe para buscar uma taxa
para a manutenção da “paz”. Por sua vez, se o território é dominado por milicianos,
mesmo que pesquisas demonstrem ser essa mais pacífica do que aquelas dominadas pelo
tráfico, são agentes de segurança pública utilizando-se do aparato do Estado para garantir
interesses próprios, com a perspectiva arrecadatória de serviços – de segurança e outros
mais básicos – cobrados com uma taxa mensal.
Nesse sentido, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s), com o discurso
oficial do Estado em tentar tornar áreas mais afastadas dos direitos básicos e por vezes
violentas – caso das favelas no Rio de Janeiro, desde há muito vistas como fonte de
perigo217 – gestaram-se a partir de duas frentes: uma policial, em que se buscava erradicar
o tráfico de drogas de determinadas áreas, e outra voltada à educação, à saúde, à
urbanização dos locais em seu entorno, visando uma melhor qualidade de vida para os
moradores. No entanto, a primeira visão preponderou sobre a segunda e a militarização
da vida urbana, carregada de um forte empresarialismo urbano das cidades – onde tornam-
se mais visíveis quando da captação de eventos mundiais, no caso do Brasil a Copa do
214 SOARES, Luiz Eduardo; BILL, MV; ATHAYDE, Celso. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 2005, p. 259.
215 SOARES, Luiz Eduardo; BILL, MV; ATHAYDE, Celso. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 2005, p. 263.
216 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CIPRIANI, Marcelli. Um estudo comparativo entre facções.
Revista Sistema Penal & Violência. Porto Alegre, v. 7, n. 02, p. 160-174, julho-dezembro, 2015, p. 166.
217 BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de
Janeiro: Revan, 2003, 2ª reimpressão, outubro de 2014, p. 112.
67
Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 – em que a cidade e seus mais diversos espaços
são vistos como fonte de lucro, tornou-se a regra218.
No entanto, situação complexa se dá quando da morte de algum dos moradores
dessas localidades. Pode-se perguntar: se a polícia mata tanto, por que há tão pouco
clamor público? Por que a indignação não é tão grande? Em nível macroteórico, pode-se
responder tais perguntas ao incorporar as percepções dos cidadãos quanto às vítimas dessa
específica violência. Se como referido acima as favelas são vistas como fonte de perigo,
perigosos são (naturalmente) aqueles que a habitam, e por isso passíveis de neutralização
– a qualquer custo, como se vê. Quer dizer, são vistas pela polícia e pela sociedade
brasileira como “marginais” (ou subcidadãos) socialmente nocivos que, ao contrário de
serem vistas como vítimas, são consideradas as perpetradoras cujo comportamento “mau”
deve ser gerenciado para proteger os “cidadãos de bem”219. Atualização constante do
positivismo criminológico, do autoritarismo e do higienismo que constituiu a polícia
desde sua gênese.
Embora a letalidade da polícia e sua operacionalidade autoritária não seja tão
visível para os indivíduos em geral em nossa sociedade – tocando à memória política, por
sua vez, o papel de retirar os mantos neutralizadores que tal instituição se reveste para,
quiçá, dar-lhe outro uso – encontrando muitas vezes apoio às suas ações (por vezes
ilegais) visivelmente direcionada para grupos mais vulneráveis, no âmbito da academia e
da política tem-se tentado traçar reformas com o escopo de adequar a polícia ao momento
democrático que vivem os países.
De forma ampla, e com base em diversos contextos culturais, Sozzo traça o que
se considera duas linhas principais daqueles que propõe reformas na operacionalidade da
polícia para uma aderência democrática. Para ele, tais iniciativas se traduzem no intento
de liberar as polícias modernas de elementos que visivelmente estão conectados ao
autoritarismo como racionalidade governamental. Tratam-se de discursos que “viajam
culturalmente” para se alocarem como “traduções” ajustadas a contextos culturais
específicos220. O primeiro desses discursos reformistas marca claramente uma busca pelo
retorno ao liberalismo, uma vez que pretende resgatar as linhas anteriormente traçadas –
218 VALENTE, Júlia Leite. UPPS: governo militarizado e a ideia de pacificação. 1.ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2016, p. 151.
219 HUGGINS, Martha Knisely. Violência urbana e privatização do policiamente no Brasil: uma mistura
invisível. Caderno CRH, Salvador, vol. 23, n. 60, p. 541-558, Set./Dez. 2010, p. 546.
220 SOZZO, Máximo. “Policía, gobierno y racionalidad: exploraciones a partir de Michel Foucault”, p.
273.
68
221 Idem, p. 275.
222 Idem, p. 276.
223 Idem, p. 277.
69
224 SOARES, Luiz Eduardo. Por que tem sido tão difícil mudar as polícias?. In: Bala Perdida: a
violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. Bernardo [et al] – 1. ed. – São Paulo:
Boitempo, 2015.
225 SOARES, Luiz Eduardo; ROLIM, Marcos; RAMOS, Silvia. O que pensam os profissionais da
segurança pública, no Brasil. Ministério da Justiça – SENASP. Agosto de 2009, 105 páginas, pp. 13-15.
70
226 SOARES, Luiz Eduardo. PEC-51: revolução na arquitetura institucional da segurança pública.
Disponível em: <http://www.luizeduardosoares.com/?p=1185> Acesso em: 08/08/2016.
227 SANTOS, José Vicente Tavares do (Org.). Programas de polícia comunitária no Brasil: avaliação de
propostas de Políticas Públicas de Segurança. Ministério de Justiça e Cidadania – Governo Federal.
228 MONJARDET, Dominique. O que faz a polícia: sociologia da força pública. Posfácio Jean-Marc
Erbès. Tradução Mary Amazonas Leite de Barros. 1.ed. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2012, p. 258.
229 Idem, p. 260.
71
230 Idem, pp. 257-265.
231 Para uma visão aguçada no nascimento da polícia comunitária no Rio de Janeiro, ver: RIBEIRO,
Ludmila. O nascimento da polícia moderna; uma análise dos programas de policiamento comunitário
implantados na cidade do Rio de Janeiro (1983-2012). Análise Social, 211, xlix (2.º), pp. 272-309, p. 274.
232 SANTOS, José Vicente Tavares do (Org.). Programas de polícia comunitária no Brasil: avaliação de
propostas de Políticas Públicas de Segurança. Ministério de Justiça e Cidadania – Governo Federal.
72
Desde 1940 que Walter Benjamin, na Oitava Tese de suas teses Sobre o conceito
de história, alertou: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção”
(“Ausnahmezustand”) em que vivemos é a regra”236. Quer dizer, enquanto a vida de
alguns mantém-se politicamente qualificadas, e assim acobertadas pelo ordenamento
jurídico e suas garantias elementares, a outros esse mesmo ordenamento suspende-se a si
próprio, deixando-os despidos de qualquer força que impeça a violação de seus direitos e
não comumente a própria eliminação física – vida nua por excelência. Com isso, assiste-
233 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti – 2. ed. – São Paulo:
Boitempo, 2004, p. 12.
234 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 3ª ed. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 97.
235 CAMUS, Albert. O estrangeiro. Tradução de Valeire Rumjanek. 37ª ed. – Rio de Janeiro: Record,
2015.
236 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história, p. 245.
74
se à construção de um mundo inumano onde a violência reina para todos os lados e o in-
suportável passa a ser suportado237.
237 SOUZA, Ricardo Timm. Ética como fundamento II: pequeno tratado de ética radical. Caxias do Sul,
RS: Educs, 2016, p. 77.
238 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução Leyla Perrone-
Moisés. 2ª Ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 107.
239 Para uma visão geral sobre o tema, conferir o trabalho: PONTEL, Evandro. Estado de exceção:
estudo em Giorgio Agamben. Passo Fundo: IFIPE, 2014.
75
dizer, terras de ninguém são criadas quando o direito se refere à vida e a inclui em si por
meio de sua própria suspensão240. Como uma forma de governar através de decretos e
medidas legislativas advindas preponderantemente do poder executivo, a exceção torna-
se paradigma de governo, onde se torna indistinguível democracia e absolutismo241.
Esse estado de exceção decreta uma zona de indiferença, onde a vida do indivíduo
é colocada à disposição de um poder sem limites. Tal exceção que não se concentra em
categorias políticas ou jurídicas, ou seja, nem em potência externa ao direito (Carl
Schmitt) nem em norma suprema do ordenamento jurídico (Kant), mas que se apresenta
como estrutura originária do direito242. E é dessa categoria que vai surgir o homo sacer,
figura do direito romano arcaico, em que a vida é colocada à disposição da esfera
soberana, tornando-se matável e, ao mesmo tempo, insacrificável – pode matar sem
cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício243. Verdadeira vida nua, politicamente
desqualificada e por vezes indigna de serem vivida244. Nesse sentido, vale o alerta (a fim
de evitar leituras equivocadas) de que essa vida nua não está à margem do direito, como
um defeito consertável, bastando leva-lo o até ela, mas ela é consequência do próprio
direito245.
240 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção, p. 12.
241 Idem, p. 13.
242 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 34.
243 Idem, p. 91.
244 Idem, p. 146.
245 PEREIRA, Gustavo Oliveira de Lima. Vida nua e estado de exceção permanente: a rearticulação da
biopolítica em tempos de império e tecnocapitalismo. Revista Sistema Penal & Violência. Porto Alegre,
volume 06, número 02, p. 215-231, jul/dez. 2014, p. 220.
246 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 146.
247 Idem, pp. 25-27.
76
imediatamente os direitos de seus súditos – afinal, haveriam alguns incautos que, por
nobreza ou ofício religioso, poderiam manter-se dentro da lógica do ordenamento. Hoje,
mesmo com o regime democrático sendo regularmente adotado pelos países do Ocidente,
a exceção, vai apontar Agamben, vira a regra quando o ordenamento suspende a si próprio
permanentemente.
Esse papel decisivo da polícia já foi colocado à exposição por Walter Benjamin
em seu famoso Zur kritik der gewalt, ou Crítica da violência – crítica do poder, momento
em que assinala a existência de duas violências: a que funda e a que conserva. A primeira
tem seus traços no direito de greve concedido pelo Estado, assim como no direito bélico
(ou da guerra). Em ambas essas situações, um direito originário é criado, ameaçando o
poder instituído desde seu interior. Seus requisitos seriam a vitória através do
estabelecimento de uma paz, a qual consiste em que as novas relações reconheçam um
novo direito 253 . Violência que funda um direito, portanto, e ameaça a própria
sobrevivência dele constantemente. Por seu turno, Benjamin ressalta que o serviço militar
obrigatório demonstrará existir outra violência. A violência que conserva. Ao direito, não
248 AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine: Note sulla política. Torino: Bollati Boringhieri, 1996, p. 83.
249 AGAMBEN, Giorgio. L’uso dei corpi. Homo sacer, IV, 2. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2014, pp.
333-352.
250 AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine, p. 84.
251 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade, p. 107.
252 Idem, p. 85.
253 BENJAMIN, Walter. Por una crítica de la violencia. Edición eletrônica disponível em:
www.philosophia.cl / Escuela de Filosofía Universidade ARCIS. Acesso em: 10.08.2016.
77
basta somente impor novas relações, mas mantê-las. A coação que impõe o serviço
obrigatório consiste exatamente na imposição de violência como meio para fins jurídicos.
Frente a isso, Benjamin irá afirmar que os fins da polícia nem sempre são idênticos
aos do direito estabelecido, o que faz dela uma instituição que se utiliza de um poder
informe, espectral, difuso e de difícil localização. Assim, seu espírito é menos destrutivo
onde encarnava, na monarquia absoluta, o poder do soberano, onde se reunia legislativo
e executivo na mesma figura, do que nas democracias, onde sua presença testemunha o
máximo de degeneração possível da violência255. Recordando-se da pergunta de Derrida
acima colocada: polícia não poderia ser o nome daquilo que degenera a democracia?256
Em outros termos, pode-se arriscar a colocar da seguinte maneira a questão trazida por
Benjamin: a polícia, ao não estar totalmente vinculada ao direito anteriormente fundado
e calcado em leis provenientes do Poder Legislativo (e, dessa maneira, da vontade do
povo, segundo as democracias modernas) acaba por, através de decretos e regulamentos,
fundando constantemente – como dirá Foucault, em golpes de estado permanentes – um
novo direito através da violência. Não se sabe a que direito a polícia está vinculada, se
àquele vinculado a um poder central ou à sua própria regulação interna. Soberania latente:
violência e direito se confundem, tornando-se indistinguível ao mover-se dentro do
campo da exceção.
254 Idem.
255 Idem.
256 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade, p. 107.
78
Jacques Derrida, nos rastros deixados pelo referido texto de Benjamin, vai tentar
aprofundar algumas questões. Para ele, a espectralidade da polícia decorre do fato de ser
um corpo que nunca está presente para ele mesmo, para aquilo que ele é, ou seja, ele
aparece desaparecendo ou fazendo desaparecer aquilo que representa: um pelo outro. No
fundo, nunca se sabe com quem se está lidando, na medida em que os limites da polícia
de Estado são indetermináveis: ao fim e ao cabo, imunda por essência, em razão de sua
hipocrisia constitutiva. Essa ausência, continua Derrida, de limite provém não só pelo
fato de a polícia ser uma tecnologia de vigilância e repressão, mas também por ser o
espectro do Estado, de modo que, rigorosamente, não se pode atacá-la sem declarar guerra
à res publica257.
Pois bem, a polícia que assim capitaliza a violência não é apenas a polícia. Ela
não consiste somente em agentes policiais fardados, às vezes com capacetes,
armados e organizados numa estrutura civil de modelo militar, à qual é
recusado o direito de greve etc. Por definição, a polícia está presente ou
representada em toda parte onde há força de lei. Ela está presente, às vezes
257 Idem, p. 99.
258 Idem, p. 99.
259 Idem, p. 99.
260 Idem, p. 102.
79
invisível mas sempre eficaz, em toda parte onde há conservação da ordem
social261.
Assim, um mal de polícia é o fato de essa ser uma figura sem rosto, uma violência
sem forma, não sendo apreensível como tal em nenhum lugar, sendo que nos Estados
civilizados o espectro de sua aparição se estende por toda parte, pontua Derrida262. Por
isso, e na esteira de Benjamin, pode-se arguir que o espírito (geist) da polícia faz menos
estragos em uma monarquia absoluta do que propriamente nas democracias modernas,
onde sua violência a degenera. Quer dizer, enquanto nas monarquias absolutas os poderes
executivo e legislativo então unidos, sendo a violência da autoridade do poder normal
nesse caso, conforme seu espírito declarado, por outro lado nas democracias a violência
não está à disposição da polícia (e ao seu espírito), na medida em que há a presumida
separação dos poderes, exercendo-se aquela de maneira ilegítima, sobretudo quando, ao
invés de aplicar a lei, ela a faz263. Degenerescência que corrói por dentro a democracia.
Nesse sentido, como espectro que é, a polícia se torna de difícil localização. Ela
está e não está ao mesmo tempo, tornando-se extremamente dificultoso defini-la ainda
que haja figuras em sua representação. Mas como espectro que assombra, ela olha para
todos por trás de sua armadura, ao mesmo tempo que não é vista – Derrida sublinhará tal
fenômeno como efeito de viseira264. Por trás de uma armadura, o espectro enxerga sem
ser enxergado. Proteção problemática, na medida em que não permite que a percepção de
quem a olha decida sobre a identidade que se encontra encerrada ali. A armadura – ou,
no caso da polícia, seus contemporâneos trajes de robocop que contam com escudos,
coletes a prova de balas, capacetes e viseiras – seria, portanto, uma espécie de corpo de
um artefato real, um corpo estranho ao corpo espectral que ela veste, dissimula e protege,
mascarando sua identidade265.
Tal armadura funciona para que o espectro veja sem ser visto, fale e seja ouvido.
A viseira possibilita esse funcionamento. A correlação com o espectro da polícia, então,
fica bastante claro e abre para novas perspectivas. Como já referido, é difícil de se
estabelecer a identidade da polícia, por essa ao mesmo tempo carregar as violências que
fundam e conversam e, não menos importante, operacionalizar-se a partir da exceção –
261 Idem, p. 102.
262 Idem, p. 103.
263 Idem, p. 107.
264 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional.
Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 23.
265 Idem, p. 23.
80
Esse cenário só tende a piorar quando, ao contrário do que se poderia deduzir, faz-
se claro que a polícia contemporânea não está a serviço de algum paradigma de contrato
social, derivado – com suas peculiaridades próprias – dos pensamentos de Thomas
Hobbes, Jean-Jacques Rousseau ou John Locke. Guardada as diferenças entre os
pensadores, sob esta égide, o contratualismo garantiria igualdade entre aqueles que doam
sua liberdade ao soberano para que a guerra de todos contra todos cessasse e um poder
central fosse instalado. No Leviatã, de Thomas Hobbes, encontram-se aproximações
emblemáticas as quais tornam-se difíceis de sustentar, principalmente frente ao cenário
contemporâneo: as noções de guerra civil e de guerra de todos contra todos. Voltar à
guerra de todos contra todos seria regressar ao estado de natureza, onde as pessoas ainda
não haviam se tornado súditos, pois não estava firmado um pacto social que concederia
poder de governo ao soberano. No entanto, algumas peculiaridades da noção da guerra
permanente entre todos não podem ser atribuídas à guerra civil.
266 FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva, p. 25.
81
cujo efeito esperado é precisamente o de não procurarem mais substituí-lo e de ele poder
gozar tranquilamente o que tem, ou seja, de ser respeitado”267.
Assim, fazendo uma leitura da obra de Hobbes, nota-se que a guerra civil seria o
estado terminal da dissolução do poder soberano, mas também seria o estado inicial a
partir do qual o soberano poderia se constituir. E por isso mesmo Foucault vai propor
novos termos para se pensar a guerra civil, longe e na direção oposta da ideia de guerra
de todos contra todos. Primeiro, porque segundo Foucault a guerra civil não se daria no
nível da individualidade, mas sim entre elementos coletivos (famílias, etnias,
comunidades linguísticas, classes, etc.), de modo que “os atores da guerra civil são sempre
grupos na qualidade de grupos”270.
A guerra civil não é uma espécie de antítese do poder, aquilo que existiria antes
dele ou reapareceria depois dele. Ela não está numa relação de exclusão com o
poder. A guerra civil desenrola-se no teatro do poder. Não há guerra civil a não
ser no elemento do poder político constituído; ela se desenrola para manter ou
para conquistar o poder, para confiscá-lo ou transformá-lo. Ela não é o que
ignora ou destrói pura e simplesmente o poder, mas sempre se apoia em
elementos do poder271.
267 FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva, p. 26.
268 HOBBES, Thomas. Leviatán: La materia, forma y poder de un Estado eclesiástico y civil. Alianza
Editorial: Madrid, 1992.
269 FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva, p. 26.
270 Idem, p. 26.
271 Idem, p. 28.
82
Portanto, Foucault foge ao lugar-comum onde se pensa ser a guerra civil externa
ao poder estabelecido – e de seus instrumentos de exercício – mas ao contrário a observa
como aquilo que assombra o poder, habitando-o, permeando-o, investindo-o, animando-
o integralmente, “na forma da vigilância, da ameaça, da posse da força armada, enfim, de
todos os instrumentos de coerção que o poder efetivamente estabelecido adota para
exercer-se”272, de forma que o importante “para uma análise da penalidade é ver que o
poder não é o que suprime a guerra civil, mas o que a trava e lhe dá continuidade”273.
Assim, nota-se haver uma polarização de um campo de força em que figuram nas
extremidades oikos e polis enquanto no epicentro a stasis. Noutros termos, a guerra civil
(como já demonstrado por Foucault) parte das relações de poder e toma o espaço relativo
a politizar ou despolitizar os cidadãos. Seguindo as pistas de Agamben, o terrorismo
272 Idem, p. 30.
273 Idem, p. 31.
274 Segundo Agamben, zoé exprime o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (vida humana
pura e simples) enquanto que a bíos, é uma maneira própria de viver de determinado grupo, isto é, uma
forma qualificada de se viver (AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 09).
275 AGAMBEN, Giorgio. Stasis: a guerra civile come paradigma politico. Homo sacer, II, 2. Bollati
Boringhieri: Torino, 2015, p. 24.
276 Idem, p. 25.
83
talvez seria a forma contemporânea mais visível de uma guerra civil a nível global, já que
a vida é posta, através da exposição à morte (como vida nua que é), no jogo da política.
Em suma, as forças policiais de um Estado nada mais são que a estampa do poder
soberano, pronta a reatualizar a guerra civil dentro das relações de forças existentes na
sociedade, atuando direta sobre os indivíduos. Espelho de uma microfísica que impele à
politização de um lado (ou seja, a uma vida qualificada) e à despolitização de outro
(retornando ao oikos como qualquer outro ser vivo), fazendo da democracia um jogo
político em que vidas nuas são meras peças de um tabuleiro onde se joga contra um
autômato programado para ganhar sempre. O desafio, portanto, coloca-se não mais em
277 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção, p. 13.
84
apontar o títere (referência expressa à polícia) e tentar reformá-lo para que comporte-se
de modo diverso, afinal o autômato será “capaz de responder (...) a cada lance do seu
adversário e de assegurar a vitória na partida”. Desligar seus mecanismos passa
primeiramente por apontar o “anão corcunda” [a exceção como regra] que ocultou-se
aí”278 enquanto ainda há tempo.
A distinção realizada por Michel Foucault das passagens entre momentos distintos
da história e que demonstra uma certa preponderância de três diferentes formas de poder
– soberania, disciplina e segurança – contribui em muito para compreender a atuação da
polícia nas sociedades contemporâneas, sem se esquecer, como já pontuado com
Agamben, que a imagem da soberania está permanentemente vinculada a da polícia,
devido às possibilidades de essa manter-se dentro e fora do ordenamento, quer dizer, de
maneira espectral, fantasmagórica, como exposto acima por Derrida, a polícia sempre
será e não será.
278 Referências à clássica primeira benjaminiana “Tese sobre a filosofia da história”. Ver: BENJAMIN,
Walter. Sobre o conceito da história, pp. 241-252.
279 AMARAL, Augusto Jobim do. “Mal de polícia” – À propósito de uma criminologia radical. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, ano 22, vol. 111, nov-dez/2014.
85
Parece evidente: sem polícia, nada disso poderia acontecer. Quer dizer, o sistema
penal, com todo seu aparato legislativo (leis, decretos, etc.), judiciário (juízes, servidores,
etc.) e penitenciário (locais de prisão, agentes prisionais, etc.) não funcionaram se antes,
em algum momento, os indivíduos não fossem tocados por uma instituição composta por
agentes treinados, não raramente militarizados e com discursos calcados na segurança
pública, onde a proteção de um contra o outro e o combate à criminalidade a sustenta. É
à polícia que cabe esse papel.
Exemplo claro dessa incursão que leva ao rasgo frontal da vida que é tocada por
essa polícia espectral está na grande mola propulsora do encarceramento em massa no
Brasil: o tráfico de drogas280. Como já destacado no início do trabalho, nesse caso existe
uma zona gris de alto empuxo criminalizador, a qual torna indeterminável, vez que os
tipos penais de tráfico e de porte de drogas aproximam-se em seus elementos objetivos
elencados na Lei n.º 11.343/2006, quem é o traficante e quem é o simples usuário. Não
precisa de muito para notar que é a polícia quem irá realizar a distinção: é ela que, de
forma capilar, aborda o indivíduo que carrega – e às vezes nem mesmo o faz –
determinada quantidade de droga, assinando seu destino ao cárcere ou não281.
Nota-se: no que se refere à prisão, fica bastante claro que a polícia não somente é
soberana, mas também permeada por um poder disciplinador, já que, ao fim e ao cabo,
sua atuação bancará a necessidade de permanência do indivíduo dentro de um dispositivo
280 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da
Lei 11.343/06. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
281 No Brasil, o porte de drogas, previsto no artigo 28 da Lei n.º 11.343/2006 não prevê pena privativa de
liberdade, mas sim (a) advertência sobre os efeitos da droga; (b) prestação de serviços à comunidade; e
(c) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Não há prisão, sequer
preventiva, por esse delito, ao contrário do tráfico, onde a pena está estabelecida entre 05 (cinco) e 15
(quinze) de reclusão.
86
Em suma, é a polícia quem vai determinar quem receberá, por exemplo, uma
simples admoestação do juiz ou quem poderá concorrer a um processo em que, no final,
a pena poderá ser determinada no patamar de cinco a quinze anos – sem contar a
possibilidade de, no curso da investigação ou propriamente do processo, ser determinada
a prisão preventiva. É a partir do que convir a ele no momento, agindo sobre determinado
corpo, em localidade definida, o destino do indivíduo. Na verdade, não só no caso da
criminalização das drogas, mas a vinculação da polícia ao sistema punitivo a torna
portadora desse poder disciplinador, o qual busca esquadrinhar o indivíduo, mantendo-se
a configuração social do mercado de trabalho através também da estigmatização.
282 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. Tradução, revisão técnica e
nota introdutória Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
283 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
284 SYKES, Gresham M; MATZA, David. Techniques of Neutralization: a theory of Delinquency.
American Sociological Review, volume 22, 1957, pp. 664-670.
285 SAFATLE, Vladmir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; SAFATLE,
Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura? - a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
286 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade, p. 107.
287 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 3ª ed. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 146.
87
disciplinar, acima descrito, o inverso ocorreria: “fazer viver e deixar morrer”, já que a
vida (e de forma mais específica o corpo, a força de trabalho) passa a ter utilidade.
Não se pode deixar de pensar que se por um lado tem-se a biopolítica, sua irmã
siamesa, a tanatopolítica 288 , ali continua sendo requisitada na arte de governar
contemporânea. Nos crimes de Estado temos uma polícia soberana por excelência ao dar
andamento em uma política de extermínio (também podendo ser polícia de extermínio)
do Estado contra os homine sacri e, no caso brasileiro, a ralé que falava Jessé Souza289,
constituída por negros, pobres, netos e bisnetos de ex-escravos que, ao serem jogados
numa lógica liberal de mercado, interiorizam um habitus secundário que os leva à
subcidadania.
Colocada essas questões e evidenciado o papel central que a polícia cumpre tanto
no hiperencarceramento quanto nos crimes de Estado, buscou-se analisar sua emergência,
retornando-se à Europa do século XVII e XVIII, a fim de compreender as engrenagens
básicas de seu funcionamento: constatou-se que a polícia moderna, junto da prisão, nasce
a partir do projeto burguês, mas que vai ter sua ascensão definitiva ao aliar seu poder a
ao saber médico, possibilitando não só políticas higienistas (Auschwitz, há muito, estava
sendo gestada...) mas também sua vinculação a uma atuação autoritária, fazendo a divisão
entre os inferiores biologicamente e os não inferiores – racista por excelência, para não
cair em eufemismos.
288 Para uma visão ampla sobre uma política da morte ou uma tanatopolítica a partir das contribuições
de Michel Foucault, ver: ESPOSITO, Roberto. Bíos: biopolítica e filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010,
principalmente entre pp. 159-208.
289 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade
periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.
88
Como se viu até então, a polícia é constituída pelo seu aparato material que age
sobre determinados indivíduos. No entanto, de forma mais ampla, há um dispositivo
policial (ou policialesco) que determina suas práticas, seus segmentos, seus discursos,
suas funções. E o agente policial, tem-se que destacar, que age em nome do Estado, não
representa o dispositivo policial. Esse último é mais amplo e constituído, em cada
momento histórico, pelo atravessamento de elementos heterogêneos, de saberes, de
práticas, de ideias, de mentalidades de governo, de funções mais ou menos definidas que
balizam a atuação da polícia, suas incoerências, suas justificativas. Pode-se reforçar: a
polícia não é somente uma instituição do sistema penal que cumpre um papel pré-
concebido dentro dos regimes democráticos – sem deixar de referir a exceção que se aloca
dentro de cada uma, espalhadas pelo mundo, dessas formas de regime político – mas no
seu núcleo duro encontra-se o dispositivo policial.
290 SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como fundamento II: pequeno tratado de ética radical, p. 79.
291 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história, p. 245.
89
Segundo Foucault, numa rara ocasião em que falou sobre o termo dispositivo, esse
seria
Em sua leitura particular, Agamben tenta chamar a atenção para uma ligação
estabelecida entre dispositivo e biopolítica. Ele divide o existente em duas grandes
classes ou grupos: de um lado os seres viventes (ou as substâncias) e de outro os
dispositivos nos quais os primeiros são incessantemente capturados. Buscando a origem
com alguma aproximação do campo teológico, Agamben identifica que a ideia de
oikonomia 300 dentro da teologia cristã se dá pelo problema da Trindade (pai, filho e
espírito santo) traz, na medida que ameaçada pelo politeísmo. Para a visão cristã, Deus é
uno, mas a organização de sua casa é tríplice. Assim, os teólogos passam a distinguir entre
o logos da teologia e o logos da economia, de modo que a oikonomia converte-se no
dispositivo que introduz o dogma da trindade e a ideia de um governo providencial na fé
cristã301. De um lado as criaturas e de outro a oikonomia dos dispositivos que tratam de
governá-las e guiá-las. Para ele, dispositivo seria então:
298 REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais, p. 40.
299 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995, p. 244.
300 Segundo Agamben, “oikonomia significa em grego a administração do oikos, da casa e, mais
geralmente, gestão, management. Trata-se, como disse Aristóteles, não de um paradigma epistêmico, mas
de uma práxis, de uma atividade prática que deve de quando em quando fazer frente a um problema e a
uma situação particular” (AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? Outra travessia. Florianópolis,
Santa Catarina: 2005, p. 11.)
301 Idem, p. 12.
91
em que há milhares de anos um primata – provavelmente sem dar-se conta das
consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar302.
302 Idem, p. 13.
303 Idem, p. 15.
304 CHIGNOLA, Sandro. Sobre o dispositivo: Foucault, Agamben, Deleuze, p. 13.
305 AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo?, p. 15.
306 CHIGNOLA, Sandro. Sobre o dispositivo: Foucault, Agamben, Deleuze, p. 13.
307 Para uma análise mais resumida do que seria um dispositivo inquisitivo no processo penal, ver:
AMARAL, Augusto Jobim. O dispositivo inquisitivo no Processo Penal: primeiras linhas. In: KHALED
JR. Salah. (Coord.). Sistema penal e poder punitivo: estudos em homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr. 1ª
ed. – Florianópolis: Empório do Direito, 2015, pp. 87-97.
92
presencie uma transgressão. A própria relação que se estabelece nos âmbitos de ditaduras
militares ajuda a pensar num aprofundamento, ou talvez em um alargamento, dos efeitos
do dispositivo policial: se por um lado – e George Orwell, em 1984308, antecipou tal
hipótese de forma brilhante – tem-se uma parte da população vigilante a qualquer ato de
transgressão às normas impostas, realizando verdadeira função de polícia a partir da
subjetivação com que acabam sendo atingidas pelo dispositivo policial, por outro esse
mesmo dispositivo expande sua capacidade de tornar mais vidas matáveis, torturáveis,
encarceráveis, ou seja, dessubjetivação em pleno vapor. Duplo movimento que demonstra
o verdadeiro terror a que caminha o funcionamento do dispositivo policial.
308 ORWELL, George. 1984. Tradução Alexandre Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
309 AGAMBEN, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz: el archivo y el testigo (Homo sacer III).
Traducción de Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia: Pre-textos, 2005, p. 49.
310 Idem, p. 53.
94
pautada, mais a fundo, por um dispositivo policial. Mas mais do que isso, qualquer
tentativa de reforma não desfaz o arranjo de saber-poder que o dispositivo policial
trabalha e que não se limita somente à instituição policial moderna.
311 CAMPESI, Giuseppi. Genealogia della publica sicurezza: teoria e storia del moderno dispositivo
poliziesco, p.
312 FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972-1973). Tradução
Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015, p. 07.
95
indivíduo, decide pela suspensão ou não do ordenamento, ou seja, por desnudar ou não a
vida de uns selecionados – colocando-a como sacrificável perante o poder.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
313 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, p. 71
314 Idem, p. 71.
97
Posteriormente, deslocando a análise para trás, ou seja, para além dos mecanismos
que tornam a instituição policial uma simples cumpridora de preceitos constitucionais –
nas democracias liberais contemporâneas – pareceu compreensível que essa não estaria
de forma alguma sob a égide de um ideal contratualista: por se locomover na exceção, na
possibilidade da decisão constante e soberana de quem deve viver ou morrer, introduz-se
irrevogavelmente a imagem do soberano, que não teve a cabeça cortada pelo advento da
lógica disciplinar mas antes sobrevivem em justaposição, na polícia. Violência que funda
e violência que conserva no mesmo espectro policial, que se movimenta com sua
armadura incapaz de deixar os outros o verem – fantasmática por excelência e, portanto,
inapreensível.
315 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976), p. 26.
98
que de forma incalculável e sem uma definição exata, como uma certa inteligência do que
até hoje se pensou em termos de instituição policial para fins de governabilidade, é um
primeiro passo somente. Durante o percurso realizado, desde as abordagens que partem
do encarceramento em massa até a introdução da imagem do soberano na polícia, muitos
rastros e portas abertas ficaram no caminho para que, futuramente, se desloque o olhar.
Ou seja: essa pesquisa, reconhecendo suas limitações em termos de alcance teórico para
determinada localidade ou região, não possui cunho universalizável.
Assim, há muito que se levar em conta ainda no que se refere à polícia e, mais
especificamente, ao dispositivo policial. Uma definição do que esse seria parece
necessitar de muito mais do que foi aqui referido, simplesmente por tratar-se de um
mecanismo de poder que, ao cortar a operacionalidade das polícias em termos gerais,
dando-lhe sustento discursivo a partir de diversos saberes, funda a capacidade estatal, e
não só brasileira, de fazer operar sua política criminal. Portanto, identificada sua
existência e vinculação diretamente com o paradigma da exceção a partir da polícia
brasileira, é necessário que se analise de forma mais ampla a atuação da polícia nos
regimes democráticos, tentando, a partir de determinado contexto histórico, econômico e
social notar o aprofundamento ou não de processos de subjetivação e dessubjetivação que
o dispositivo policial, enquanto não enfrentado diretamente, irá dispor.
99
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