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O TRAUMÁTICO NA PANDEMIA
O que vem na esteira da crise
Sonho Compartilhado
5º Congresso de Psicanálise em Língua Portuguesa é reagendado para abril ou maio de 2021
Wania Maria Coelho Ferreira Cidade transferido para abril ou
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de maio de 2021, a confirmar,
Psicanálise do Rio de Janeiro pois ainda não sabemos
o rumo da história depois
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NOVOS LAÇOS
“
Nosso papel como
Qualquer coisa que encoraje o psicanalistas é promover
crescimento de laços emocionais tem a transformação do medo
”
que servir contra as guerras. em palavras, recheadas de
(Freud, 1932) algum significado, reinven-
tando um espaço lúdico e
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GRAMADO 2021
E
m janeiro deste ano, os dire- encontrarem líderes carismá-
tores científicos das Socie- ticos que aglutinam irmãos em
dades e Grupos de Estudo sofrimento, as pulsões a eles se
filiados à FEBRAPSI escolheram ligam, reavendo, dessa forma,
“Laços: o Eu e o mundo” como alguma representação psíquica
tema do próximo Congresso vinculada através da identifi-
Brasileiro de Psicanálise. Quem cação primária. Um laço.
poderia prever que poucos Os grupos só persistem nesse
meses depois o mundo, tal qual tipo de vínculo enquanto são
o conhecemos, se reconfiguraria mantidos no estado regredido
a partir da pandemia? O Eu de da identificação primária. Daí
cada um de nós e um Eu subje- os ataques sistemáticos de lide-
tivo da Cultura precisarão se ranças autoritárias à curiosidade,
inter-relacionar, entre si e com ao pensamento e ao conheci-
o mundo, em novas bases. Por ora, o impor- angústia de morte exacerbada pelo fato de mento que levam a ligações mais complexas
tante é verificar que a pandemia mostrou três filhos e um genro estarem servindo o e simbolizantes. Os laços fortes.
os psicanalistas ultrapassando barreiras e exército, além da presença de psicanalistas O texto é um contraponto ao desliga-
mantendo a “chama acesa” através de uma pioneiros no front da guerra – preocupado mento de “Além do princípio do prazer”, este
inédita atividade por laços virtuais. São os em deixar o seu testamento científico? Os certamente marcado pela morte e destruição
“fios invisíveis” que nos garantem hoje os laços trabalhos de 1920 e 1921 podem representar presenciada. Suponho que Freud possa ter se
científicos, emocionais e afetivos que certa- a oportunidade aberta pelo distanciamento perguntado: por que os humanos continuam
mente envolverão o encontro no Congresso daquele período, a fim de refletir sobre os a buscar laços amorosos e a enfrentar todo
em Gramado (RS) em 2021. anos precedentes de guerra. Acrescido ao tipo de intempérie para restabelecê-los e
A base teórica para a esc olha do tema foi fato de que, no pós-guerra, Freud também renová-los? O que quer Eros? Formar laços.
o texto “Psicologia das massas e análise do enfrentou uma pandemia, a gripe espanhola, Ainda que masoquistas, sádicos, impulsivos,
Eu”, que em 2021 completará o centenário de que lhe deixou a marca dolorosa da perda de servidão voluntária. Mais que o amálgama
publicação. Uma das leituras possíveis desse de Sophie, sua filha mais nova. do dualismo pulsional pode se pensar em
trabalho é vê-lo conjuntamente com o texto Dois textos que não falam um ao outro no estratégias de sobrevivência psíquica contra
de 1920 “Além do princípio do prazer”, como papel, mas tocam em aspectos complemen- o vazio representacional.
novas elaborações de Freud – dentro da sua tares: o que não encontra ligação em “Além A ênfase em “Psicologia das massas” na
ótica da psicologia individual – sobre tempos do princípio do prazer” e o que procura ligar identificação “conhecida pela psicanálise
de guerras prolongadas e insanas como a 1ª em “Psicologia das massas”. Ambos falam como a manifestação mais precoce de uma
Guerra Mundial com uma destrutividade que de algo que Freud somente viria a desen- ligação com outra pessoa” foi um dos pontos
se propaga em ondas de maré crescente. E, volver mais adiante em sua obra: os estados de partida sobre o que viria a seguir com as
também, o que leva povos inteiros a aderirem de desamparo. Destaco especialmente o teorias das relações de objeto. O texto possi-
de forma acrítica às mesmas insanidades que desamparo diante de demandas pulsionais bilita reflexões importantes na atualidade
bloqueiam a capacidade reflexiva e liberam sem laços com representações psíquicas. em que movimentos regressivos às identi-
as demandas pulsionais primitivas, levando, As percepções de Freud em “Psico- ficações primárias adesivas e maniqueístas
frequentemente, à autodestruição. logia das massas e análise do Eu” ajudam voltam a assombrar o mundo com sua carga
O volume 14 das Edições Standard da a compreender a adesão de grupos humanos de populismo, nacionalismo, xenofobia e
obra de Freud mostra a prolífica produção ao estado de guerra ou a um regime mono- segregacionismo.
de Freud no período da 1ª Guerra estabe- crático de exaltação de um líder (ocorre Psicanálise, história e “uma infinidade de
lecendo os fundamentos metapsicológicos também nas melhores democracias). Estados metáforas”. Haverá muito para debater no
da psicanálise. Estaria Freud – diante da de desamparo causados por traumas indi- próximo Congresso Brasileiro de Psicanálise.
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ARTIGO
À flor da pele
O traumático na pandemia:
COVID e COVIDA
A cena de apoiadores de Jair Bolsonaro, no
dia 13 de abril, em São Paulo, dançando
em torno de um caixão, exigindo o fim do
formular seus conceitos de experiência e
vivência. A memória está relacionada com a
experiência, enquanto a consciência liga-se
isolamento social, viralizou na internet. Millán- à vivência, preparada para lidar com os estí-
-Astray, general fascista na Guerra Civil Espa- mulos do mundo moderno.
nhola, celebrizado por seu brado “Abajo la Em “O narrador”, Benjamin aponta a ausência
inteligencia, viva la muerte”, exultaria com a total da experiência no fim da 1ª Guerra Mundial,
Liana Albernaz de Melo Bastos
Membro efetivo da Sociedade Brasileira
manifestação. quando os sobreviventes voltaram mudos das de Psicanálise do Rio de Janeiro
A macabra encenação me veio à cabeça trincheiras. Não podiam transformar os horrores lianaambastos@globo.com
assim que recebi o gentil convite para escrever que vivenciaram em linguagem. A memória,
um pequeno texto para o Febrapsi Notícias. que ajudaria a manter vivas as imagens da
Pouco antes acabara de ser anunciada a guerra e de seus mortos anônimos para que O rosto de mulher na luta contra a pandemia
demissão do 2º ministro da Saúde, em menos de uma barbárie como essa não se repetisse, (Seben, Lima & Degani ) é a cara do que temos
trinta dias, em plena pandemia, por não estar desapareceu. pela frente. É na feminilidade que se abre a
“afinado” com o governo federal. O Brasil já A predominância da percepção-consciência brecha (que coisa tão feminina) para emprestar
contabilizava, naquele momento, oficialmente, e o declínio da memória, para Benjamin, estão sentidos de vida, estabelecer ligações (eróticas,
com uma curva de crescimento exponencial, ligados às mudanças aceleradas nas socie- por certo), acolher o outro (como gestar),
14.000 mortos pelo Covid-19. Em 15 de junho, dades capitalistas modernas. Estas, baseadas respeitar a diversidade, alimentar a memória
já contávamos mais de 44.000 mortos. O Minis- na reprodução técnica teriam, segundo ele, individual e coletiva.
tério da Saúde, pela primeira vez na história duas possibilidades. De um lado, a experiência Mas não basta ser mulher: Margaret That-
do Brasil, tem um general não médico como soviética que formaria um novo sujeito histó- cher negando a sociedade na Inglaterra (“Não
ministro. E o governo federal tentou impedir rico na coletividade e o tornaria produtor existe sociedade, só indivíduos e famílias”),
a divulgação diária do número de mortes nesta sociedade. De outro, o que Benjamin Indira Gandhi assassinando sikhs na Índia,
desmentindo secretários estaduais de saúde. temia e acabou se concretizando: nazistas e Leni Riefenstahl produzindo filmes enaltecendo
Ataques do vírus, ataques políticos, ataques fascistas moldando as massas para as suas o nazismo. Não é de gênero que se trata.
à vida. Angústias traumáticas: mortos e morte. finalidades através da estetização da política. A feminilidade implica na aceitação da
A pulsão de morte é o reino do traumático. O encantamento da sociedade com os avanços castração. Aceitá-la é saber-se mortal e falível.
A compulsão à repetição, os sonhos traumáticos tecnológicos e a utilização da técnica pelos Só nos fazemos sujeitos em redes sociais de
e a resistência terapêutica negativa exigiram nazifascistas levaram a política ao caminho reconhecimento. A castração não está no
de Freud a postulação da pulsão de morte. inexorável da espetacularização. A sociedade corpo da mulher – embora ela a porte – mas
O mais além do princípio do prazer, o mais da alienação chega a levá-la a viver sua própria na abertura narcísica ao outro que faz de nós,
originário do psíquico, insiste na repetição destruição como um prazer estético (Freitas, humanos, humanizados.
para que a angústia possa ser ligada e, só 2014). Contam que, perguntada sobre o que ela
assim, representada. considerava ser o primeiro sinal de civilização
Também o traumático é central na teoria
As mortes anônimas
numa cultura, Margaret Mead respondeu que
ferencziana. Valas comuns, enterros sem velórios ou era um fêmur quebrado e cicatrizado. No reino
Para Ferenczi, o traumático não está no despedidas. Assim têm sido as mortes pela animal, se um indivíduo quebra a perna, morre.
acontecimento em si mas na ausência do Covid-19. Não pode correr dos predadores, ir ao rio
reconhecimento por parte de um outro que Para Benjamin, sem memória a ser cultivada, beber água ou caçar comida. Nenhum animal
permita que a angústia indizível ganhe sentido. o ser humano moderno não deixa marcas. sobrevive com uma perna quebrada por tempo
Caso não aconteça, há uma clivagem psíquica. Assim, nem na morte é possível existir qual- suficiente para cicatrizar. Um fêmur quebrado
Tratando-se de crianças, Ferenczi afirma que quer experiência compartilhada. Ao contrário cicatrizado é evidência de que alguém cuidou
“esse medo, quando atinge seu ponto culmi- da sociedade baseada na memória, que vê até a recuperação. Ajudar alguém durante
nante, obriga-a a submeter-se automaticamente na morte lições de aprendizado e passagem uma dificuldade é onde a civilização começa.
à vontade do agressor, a adivinhar o menor de sabedoria, no mundo moderno, o fim da Se assim for, com o necessário pessimismo
de seus desejos, a obedecer esquecendo-se existência representa o esquecimento. Não da força (Gastal), poderemos transformar o
de si mesma e a identificar-se totalmente com é isso que parece alimentar a negação social Covid em Covida.
o agressor.” (Ferenczi, op cit, p.102) Também a das mortes pelos grupos fascistas? “Esquecer
culpa experimentada pelo adulto agressor seria o passado, não fazer palanque sobre os cadá- REFERÊNCIAS:
introjetada pela criança. Mas o que acontece se veres, olhar para a frente”? Benjamin, Walter (2012). Magia e técnica, arte e política.
São Paulo: Brasiliense.
a violência não é reconhecida e se o agressor Sema (do grego sema) é sinal, marca. Mas, Ferreira, Aurélio B.H. Novo Dicionário da Língua Portu-
não experimenta culpa, e, pelo contrário, goza seu significado em grego antigo é “túmulo”. guesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1ª edição.
sadicamente com a violência cometida? Erguer um túmulo significa deixar uma espécie Ferenczi, S. (1992). Obras Completas, vol.V, p.102. São
O modelo ferencziano se aplica ao infantil de “pegada”, uma marca, um rastro para que Paulo: Martins Fontes.
Freitas, Tatiana M.G. (2014). Erfahrung e Erlebnis em
do psiquismo humano. O traumático é o que os mortos não sejam esquecidos e para que Walter Benjamin. Revista Garrafa, Rio de Janeiro, n.33,
não se inscreve na memória por não poder ter possamos fazer o luto. janeiro-junho, p.72-87.
sido compartilhado como experiência perma- Antígona lutou por dar um túmulo a Polinice. Gastal, Maria Luíza (2020). Em clima da morte, o
necendo apenas como vivência individual. Assim também o fizeram as Mães da Praça de necessário pessimismo de força. Observatório Psica-
Walter Benjamin recorre ao esquema nalítico, 166, FEBRAPSI.
Maio, as Mães de Acari e tantas mulheres que Seben, G., Lima, J., & Degani, R. (2020). A luta contra
freudiano de oposição entre os polos de diante da morte de seus filhos não aceitam a pandemia tem rosto de mulher. Observatório Psica-
percepção/consciência e de memória para que virem carniças ou corpos anônimos. nalítico, 164, FEBRAPSI.
JUNHO| 2020 9
ARTIGO
O traumático e
a pandemia
E ra uma vez uma menininha chamada
Giovana, que morava com seus pais em
uma casa habitada por muitos Coronas, seres
O discurso das autoridades responsáveis
nos chega como inspiração histérica para
que uma cortina de fumaça seja pactuada,
invisíveis e perigosos, que sempre tentavam para encobrir a cisão entre a completa falta
atacar Sígurd – seu mais recente amigo inse- de sentido que atribuímos a eventos que
parável, um corvo negro, e Edgar – seu velho têm consequências terríveis, e a ansiedade
conhecido elefante azul de inabalável sorriso. catastrófica, cuja importância deve ser Lenita Osorio Araújo
Membro efetivo e analista didata
Não havia crianças para ajudar Giovana em completamente negada, embora a estejamos
da Sociedade Psicanalítica de
sua tarefa de evitar que os amigos sofressem vivenciando intensamente em nossas expec- Mato Grosso do Sul
uma morte horrível. Ela tem quatro anos e tativas diárias infiltradas da onipresença da lenarj@terra.com.br
usa sua máscara de proteção facial com muita morte.
desenvoltura, mas não pode sair mais de casa, Percebo minha dificuldade em estimar a
porque os Coronas também invadiram sua extensão do luto a essas gerações em que
escola e seu parquinho. Assim Giovana fez me insiro, e a palavra pandemia reduz o serem negadas, ou toleradas, como a opressão
uso de várias estratégias: primeiro achou que irrepresentável em minha mente a algo que exercida sobre segmentos da sociedade,
se os escondesse sob uma manta sua, velha e eu entendo como traumático. reveladas na síndrome da criança espancada,
vermelha, eles poderiam ficar indetectáveis nos estupros, na violência doméstica física e
aos Coronas. Essa segurança foi passageira, O foco viral em todos os continentes, sexual, na pobreza extrema.
mas ela dormia melhor deixando-os cobertos. a rapidez do contágio, velórios Considerando a função primária da disso-
Como ela aprendeu a lavar muito bem as sem abraços, o impacto tríplice em ciação como uma resposta de proteção ao
mãos pensou também que se eles lavassem trauma, fomos integrando na atualidade
saúde, educação e renda, inferem a
as patas poderiam ser ajudados, e assim o o fenômeno dissociativo da consciência,
fez – ambos foram lavados e postos ao sol.
catástrofe do século, em proporções tão caros a Freud e Janet, e a observação
Mostrando a persistência de sua angústia ela imensuráveis. A noção de trauma clínica tendeu o peso para a equivalência
concebeu uma pomada mágica que chamou psíquico se aplica a esse parcial das fantasias intrapsíquicas e dos fatos reais
de Coronacida, que passava com as mãos entendimento do que me assombra, na patogênese dos transtornos dissociativos,
em seus amigos, comemorando a morte admitindo a centralidade do trauma na etio-
no avanço da Covid-19.
dos Coronas que ela via estarem caindo logia. Fenômenos dissociativos menores,
mortos sobre a cama. Inútil discutir o que O conceito de trauma está diretamente como a hipnose da autoestrada, sentimentos
essa bruxinha sabia ou não, em sua idade relacionado a acontecimentos invasivos que transitórios de estranheza ou de sair do ar, são
o saber de si e do mundo conta com uma têm como consequência o prejuízo físico e os mais comumente referidos, assim como
especial sensibilidade ao reduto familiar, psíquico. Seu conceito está entrelaçado com a dificuldade de concentrar a atenção e os
ao recurso a práticas mágicas de injunção e a medicina e os estudos sobre a histeria. esquecimentos resultantes na rotina coti-
cura, que sustentam o pensamento anímico Freud introduziu a relevância do trauma na diana. Essa evolução justifica nossa atenção
do vodu, e a empatia extensa aos objetos histeria em 1893, no artigo “Sobre o meca- para a relevância dos sintomas dissociativos
transicionais. Seus sintomas ritualísticos, leves nismo psíquico dos fenômenos histéricos: que compõem o quadro dos transtornos
e transitórios, remitiram. Como, quando, ou Uma conferência”, definindo como um trauma de estresse pós-traumático ou de estresse
se ressurgirão, será outra história. Quantas psíquico a toda experiência ou impressão agudo, híbridos entre os demais transtornos
menininhas terão a mesma sorte em lidar que o sistema nervoso não consegue abolir de ansiedade e associados a diversos graus de
com essas marcas do seu tempo? por meio do pensamento associativo ou depressão, que despontam nesse momento
Permaneço em isolamento social e as por uma reação motora, aproximando cada como situações de risco para a saúde mental
notícias me chegam de todos os lados, mais vez mais o termo a um terror consequente da população envolvida com os cuidados
do que consigo processar. Como estamos à atividade psíquica. dessa misteriosa doença.
sendo cuidados em nosso meio? Números Os fenômenos traumáticos, como fatores Não sabemos o que virá na esteira dessa
crescentes de casos e óbitos se chocam com desencadeantes de sintomas psicopatoló- pandemia, quais transformações nos serão
o intuído das subnotificações, a politização gicos, receberam atenção tardia, seguindo benéficas ou o que nunca mais poderemos
de um medicamento disfarça a falta de rumo a polarização entre a causação psicológica recuperar, mas a lógica narcísica que nos
e a mediocridade dos agentes públicos em ou a genético-constitucional, mas ao admi- esmaga anima a reflexão sobre a persistência
garantir proteção e acesso digno à saúde tirmos a relação desses modelos com os da angústia de morte nos seres humanos
a uma população geralmente concebida fatores ambientais externos, nos permitimos que acreditam ser a única espécie que tem a
como massa inculta, descartável depois de considerar sua importância na constituição inelutável consciência de sua própria finitude,
satisfeitos os interesses eleitoreiros. Alguma das patologias e comportamentos humanos. fazendo disso um elemento existencial de
novidade nisso, décadas sobre décadas? Esse A valoração do trauma, contudo, permite a enorme relevância em sua economia psíquica.
saber tão próximo à impotência da infância negociação ambivalente e política de sua Em antítese, o impulso da vida em se contrapor
não ameniza a angústia, cada número fatal relação causal. A amnésia que recobre o a esse destino de morte, tanto em ativa revolta,
representa uma pessoa em sua rede familiar trauma costuma ser revelada por um novo submissa aceitação ou superação maníaca, é
e de convivência. Uma crise sanitária dessa trauma que precisa ser maior ou mais gene- também outra força perseverante que se alia
dimensão, enlaçada a uma crise política, ralizado, criando um novo ciclo de negação. ao desejo de transcender a finitude biológica
aprofundando a crise econômica e social – é As histórias das guerras, dos genocídios, das e negar a finalidade banal e anônima do
muita dor para absorver. pestes, dos cataclismos, são mais difíceis de existir humano.
JUNHO| 2020 11
M U N D O D I G I TA L
JUNHO| 2020 13