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NOTÍCIAS | ANO XXVI | RIO DE JANEIRO | JUNHO 2020

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O TRAUMÁTICO NA PANDEMIA
O que vem na esteira da crise

A Rede Solidária das Sociedades


e Grupos Psicanalíticos

FEBRAPSI e Sociedades do Sul lançam 28º Congresso


Brasileiro de Psicanálise em versão virtual

Érico Veríssimo e Mário Quintana serão


homenageados no Congresso
PA L AV R A S D A P R E S I D E N T E EDITORIAL

N o início deste ano, fomos surpreen-


didos por uma pandemia que
tem causado em todo mundo muitas
A pandemia do novo coronavírus que assola o mundo e
deixa rastros de catástrofe em nosso país marca a 63ª
edição do Febrapsi Notícias, pela primeira vez publicado
perdas. Para nos proteger e proteger a exclusivamente na versão digital. Com as medidas de
quem amamos, tivemos que nos distan- proteção necessárias para evitar contágio e a quarentena
ciar das pessoas mais queridas, em um que mantém a maior parte de nossos colegas distantes
isolamento social que se impôs como de seus consultórios físicos, para onde normalmente é
necessário. A morte paira no ar. Laços enviado nosso jornal impresso, decidiu-se suspender,
foram ameaçados, alguns desfeitos e excepcionalmente, a distribuição em papel.
outros pela sua força mantiveram-se A escolha do tema “o traumático na pandemia” para
firmes. Muitas certezas que tínhamos a seção de artigos pretende abrir espaços de leitura e
não se sustentam mais, muitas novas representação de um mundo antes ficcional que passou
dúvidas surgiram trazendo a todos um a ser nossa realidade de todo dia. A começar pela obra
receio, nos deixando sem perspectiva que compõe a capa, do artista plástico, crítico de música,
de futuro e precisando buscar novas escritor e jornalista Enio Squeff. Corredor é o nome que
Rosa Maria Carvalho Reis
respostas. Paramos de sonhar para o gaúcho Enio deu à obra, de 1997, e nos faz pensar na
Presidente interina da FEBRAPSI
viver cada dia. Aprendemos novas angústia e no excesso transbordante nos dias atuais.
Nas palavras do compositor Willy Corrêa de Oliveira para
formas de encontro. Os contatos virtuais passaram a ser banhados de emoções
descrevê-la: “uma pintura em que a raiva está pintada;
e saudades. Sabemos que muitas mudanças acontecerão dentro de nós e no
essa raiva contra a doença contagiosa do ocidente”, de
mundo. Impossível passarmos incólumes por esta experiência.
um artista “acusando o mundo de seus males”. Nosso
O perigo da sobrevivência passava também por nossas instituições em função
agradecimento a Enio Squeff por ceder o uso da imagem
das crises econômica e política que temos vivido e do aumento do dólar em mais
e à querida Ceres Tavares, da equipe editorial, pelo
de 40%. Preocupada com a repercussão da crise nos psicanalistas, convidei os
empenho em garimpar raridades estéticas.
presidentes das federadas brasileiras para escrevermos uma carta solicitando à IPA A reflexão sobre o traumático na pandemia traz
um abatimento da anuidade que pagamos. E assim, nós, presidentes, formamos também rosto de mulher: as psicanalistas Liana Albernaz
um grupo de trabalho em torno dessa necessidade. O grupo foi estreitando seus de Melo Bastos (SBPRJ), Maria de Fátima Rebouças Malva
laços em função da tarefa e isso foi muito importante quando fomos convidados (SPBsb) e Lenita Osorio Araújo (SPMS) sugerem vértices
a ajudar nossa querida FEBRAPSI, no momento em que ela começou a passar por de pensamento para o trauma psíquico e como o irrepre-
uma crise institucional que nunca tínhamos vivido. Crises não são para sempre sentável irrompe na vida social do país. Regina Esteves
e com elas precisamos aprender e temos aprendido muito. Precisamos cuidar (SPFor) escreve sobre o traumático do cotidiano vivido
mais da nossa casa e dos nossos membros. A FEBRAPSI é muito importante para pela população negra, “à flor da pele”, durante séculos de
seus membros e para a comunidade psicanalítica. racismo. Agradecemos às autoras a preciosa contribuição
Os presidentes, a pedido do então presidente da FEBRAPSI, ouviram a para esse debate.
diretoria em exercício, fizeram sugestões, colaboraram pensando em nomes Nesta edição o leitor
para preencher os primeiros demissionários, mas após nossa indicação mais acompanhará também
colegas se demitiram e, então, percebemos que o grupo que elegemos não os preparativos para o 5º
conseguia seguir com a gestão. Congresso de Psicanálise
Depois de muitas reuniões, percebemos que precisávamos chamar nova em Língua Portuguesa,
eleição, era necessário que a Assembleia de Delegados fosse convocada para adiado para 2021 em
buscarmos juntos uma solução. A Assembleia elegeu uma Diretoria Provisória razão da pandemia, e o
composta por mim como presidente, Regina Klarmann como diretora  da Comissão 28º Congresso Brasileiro
Cientifica, Carlos Frausino como diretor do Conselho Profissional e Teresa Lopes de Psicanálise, previsto
como superintendente. Para agilizar o processo, ainda na assembleia elegemos para setembro de 2021.
uma comissão eleitoral para iniciarmos a convocação imediata de nova eleição. E poderá se divertir
Aguardamos o encaminhamento das chapas até o dia 05 de julho. com Érico Veríssimo, o
Em nome da Diretoria Provisória, agradeço a confiança em terem lembrado colega escritor Mário
dos nossos nomes neste momento tão difícil pelo qual passa a FEBRAPSI. Cláudia Carneiro Quintana e amigo psica-
Faremos tudo para passar à nova gestão uma federada pronta para seguir em Editora nalista Mário Martins,
frente, com a pujança que sempre teve. Agradecimento especial aos colegas que juntos compõem a
que fazem parte desta diretoria que, com carinho e firmeza, têm cuidado da narrativa do psicanalista filho, Roberto Martins (SBPRJ),
nossa instituição. Nosso tempo será curto, mas tem sido intenso, de contato sobre laços afetivos em terras gaúchas – uma referência ao
diário. Hoje, estamos mergulhados em muito trabalho. tema do Congresso que homenageará os dois escritores.
Agradecemos aos colegas da última gestão, que mesmo tendo passado por Também recorro aos laços afetivos construídos no
um processo tão difícil, nos auxiliaram para darmos continuidade ao trabalho. convívio na FEBRAPSI para me despedir desta função,
No momento  estamos tomando as decisões que são urgentes para o bom com o sentimento de carinho e de gratidão pelas parce-
funcionamento da nossa entidade. rias e amizades conquistadas: à equipe editorial, aos
colaboradores, aos meus colegas diretores e ao Conselho
Aos presidentes das federadas nosso reconhecimento e muito obrigada pelo
interino. Tempos de experiência compartilhada. Boas-
acolhimento e cuidados em conduzir este processo que já se mostra tão exitoso.
-vindas à nova Diretoria!
Desejamos à nova diretoria, que brevemente será eleita, todo o sucesso.

DEPARTAMENTO DE CAPA – Imagem: “Corredor”, de Enio Squeff FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE PSICANÁLISE


PUBLICAÇÕES E DIVULGAÇÃO Óleo sobre tela e madeira, 93 x 73 cm, 1997
Av. Nossa Sra. de Copacabana, 540 / sala 704
Concepção: Ceres Leonor Tavares RJ – CEP 22.020-001
Editora: Cláudia Aparecida Carneiro (SPBsb)
Diagramação: Licurgo S. Botelho Tel: 55 21 2235.5922 | e-mail: divulgacao@febrapsi.org
Comissão editorial: Ceres Leonor Tavares (SPPel),
Eduardo de São Thiago Martins (SBPSP), Eliane Souto Edição distribuída excepcionalmente www.febrapsi.org
de Abreu (SPFor), Gabriela Pszczol Krebs (SBPRJ) e em formato digital
Helena Lopes Daltro Pontual (SPBsb/SBPSP)
Acesse as redes sociais da Febrapsi | Facebook | Youtube | twitter | Instagram

2  FEBRAPSI NOTÍCIAS [63]


S A LV A D O R 2 0 2 1

Sonho Compartilhado
5º Congresso de Psicanálise em Língua Portuguesa é reagendado para abril ou maio de 2021
Wania Maria Coelho Ferreira Cidade transferido para abril ou
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de maio de 2021, a confirmar,
Psicanálise do Rio de Janeiro pois ainda não sabemos
o rumo da história depois

N ascido na primeira década do século 21,


o Congresso de Psicanálise em Língua
Portuguesa, herdeiro dos antigos luso-brasi-
do surgimento do coro-
navírus. No dia 20 ou 21
de novembro, datas antes
leiros, tem um percurso de resistência e luta, firmadas para o Congresso,
pois nem sempre se reconheceu a impor- a FEBRAPSI realizará um
tância da aproximação da psicanálise com pré-congresso virtual. A
o continente africano, última fronteira a ser FEBRAPSI divulgará a data
rompida para o exercício de nosso ofício. Salvador sediará Congresso que discutirá escravidão e liberdade tão logo seja confirmada.
Ainda hoje persistem as ambivalências em A gravura selecio-
relação a esse interesse, lançado por um Carlos Gari, Eliana Melo, Luísa Branco nada para a criação da identidade visual do
grupo de psicanalistas por meio do diálogo Vicente, Ney Marinho e Pedro Gomes conquis- Congresso é do brasileiro pan-africanista
horizontal – que fundamenta a proposta taram sonhadores que sonharam seus sonhos, Abdias do Nascimento, cuja trajetória de
central dos Congressos – que envolve a trans- tornando-os seus próprios sonhos. Assim, vida está em sintonia com o tema escolhido
disciplinaridade, a diversidade, a política, as como sonho compartilhado, viajamos para para o Congresso: ESCRAVIDÃO E LIBERDADE:
diferenças étnicas e culturais da África de Rio de Janeiro (Brasil), Moçambique, Portugal, travessias do corpo e da alma.
língua portuguesa, do Brasil e de Portugal. Cabo Verde, e agora, em novembro/2020, A Bahia foi eleita para sediar o 5º Congresso
O interesse inicial, que se movimenta e se estava previsto que iríamos a Salvador (Brasil) por sua grande tradição cultural e por ser o
amplia até os dias atuais, talvez tenha sido para mais um encontro e uma experiência lugar que abriga o maior número de negros
provocado pela investigação e o olhar analí- emocional. Contudo, fomos atropelados pelo no mundo, fora da África. Em São Francisco
ticos sobre as raízes da cultura e os modos novo coronavírus que tem nos desafiado a do Conde, município próximo de Salvador,
de regulação das relações da população pensar em novas formas de vida e de conexão. existe um campus da Universidade da Luso-
brasileira. Esta se funda a partir do tráfico, O 5º Congresso de Psicanálise em Língua fonia (Unilab) e estudantes de todos os países
da eliminação de diversas etnias e idiomas, Portuguesa caminhava a passos largos e africanos de língua portuguesa e do Timor
e da tentativa de domínio e apagamento, já tínhamos data, local, tema, identidade Leste serão estimulados a representar seus
bem-sucedida em muitos aspectos, dos corpos visual (veja imagem nesta página) e inúmeros países e a participar, de acordo com a nossa
negros. Ainda que essa teoria não estivesse interessados em participar, apresentando intenção. Este é o sonho que nos orientará
explicitada nos primeiros passos da construção trabalhos. Devido à pandemia, nos vimos sem quanto à democratização da transmissão
do Congresso, ela está presente no incons- condições de manter a data, tendo ele sido da psicanálise.
ciente e nas subjetividades
dos que tiveram acesso à ideia.
O desejo de estreitar os Abdias: intelectual e representante da
laços tem como principal cultura negra no Brasil e no mundo
protagonista a língua portu-
guesa, como já foi dito no
tema do 3º Congresso de
Língua Portuguesa: o mar é
A gravura escolhida para a criação da
identidade visual do 5º Congresso de
Psicanálise em Língua Portuguesa é do
a fronteira que nos separa e a brasileiro pan-africanista Abdias Nasci-
língua, a ponte que nos acon- mento, conhecido como um dos maiores
chega uns com os outros. O representantes da cultura negra no país e
Congresso tem sido o veículo no mundo, que figura entre os líderes dos
para o encontro e o debate direitos humanos que lutaram contra a
de uma psicanálise inclusiva e tutela colonial nos países africanos, ainda
radicalmente aberta ao outro, presente no século 20. Abdias intitulou
seja ele sujeito ou disciplina. sua obra de Oxum no seu labirinto. Abdias Nascimento
Assim, o Congresso se Artista plástico, poeta, escritor, ator,
propõe a unir representantes dramaturgo, professor universitário, político e ativista dos direitos
de Angola, do Brasil, de Cabo civis e humanos da população negra, Abdias Nascimento foi o
Verde, da Guiné Bissau, de criador do Teatro Experimental do Negro, do Museu de Arte
Moçambique, de Portugal, Negra e do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros
de São Tomé e Príncipe, e (Ipeafro), que nos cedeu o uso de imagem. Abdias ficou por 13
um pouco mais além, do anos exilado em razão do regime militar, de 1968 a 1981, tendo
Timor-Leste e de Macau, residido nos EUA e por um ano na Nigéria. Nos EUA foi professor
para a difusão do pensa- emérito da Universidade do Estado de Nova York, além de ter
mento psicanalítico e para sido professor da Universidade de Yale e também de línguas e
a incorporação de outros literaturas africanas Ile Ife (ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/
saberes que, certamente, Abdias_do_Nascimento). Retornou ao Brasil a partir da anistia
aguçam e afinam a escuta aos exilados políticos. Abdias tem trabalhos belíssimos, não
psicanalítica. Oxum no seu labirinto, por Abdias só imagens, mas textos contundentes e sensíveis. (W.M.C.F.C.)

JUNHO| 2020  3
NOVOS LAÇOS

Comissão de Infância e Adolescência cria Laços Virtuais


Joyce Goldstein (SPPA) tarefas e notícias, buscando
Rossana Nicoliello Pinho (SBPMG) muitas vezes na intelectuali-
dade a diminuição do medo.


Nosso papel como
Qualquer coisa que encoraje o psicanalistas é promover
crescimento de laços emocionais tem a transformação do medo


que servir contra as guerras. em palavras, recheadas de
(Freud, 1932) algum significado, reinven-
tando um espaço lúdico e

P or várias vezes lemos essa frase.


Por diversas vezes concordamos com
essa afirmativa, mas não imaginávamos que
Foto tirada pela menina G.G.N., 11 anos, durante sessão virtual
criativo, amenizando o sofri-
mento psíquico das crianças.
Construir e manter um novo
hoje estaríamos em uma espécie de “guerra”, Na reapresentação desse novo espaço, setting com elas é também manter vivos
mergulhados em incertezas e ameaçados de um cenário inédito do setting terapêutico laços e o pensamento e estarmos presentes
perder os laços com o mundo, com o outro se instala: crianças com o celular nas mãos como figuras de ancoragem nesse momento
e com a vida. nos fazem adentrar na intimidade da casa, de tantas ameaças.
A chegada da Pandemia Covid-19 nos mostrando o que antes era enredo das brin- Mas não fiquemos sós! Façamos laços
deu tempo curto para migrar o trabalho cadeiras e do nosso imaginário. entre nós!
analítico do consultório para as nossas Nosso corpo, ainda que imóvel, passou a Por esse motivo, a Comissão de Infância e
casas, refazendo o contrato com cada um ter a dinâmica das andanças, circulando entre Adolescência da FEBRAPSI criou o fórum de
de nossos analisandos, tão assustados como lugares, pais, babás, irmãos e por vezes em discussão Laços Virtuais, para troca de expe-
nós, analistas. um canto qualquer. riências das possíveis adaptações feitas, na
Equipados de tecnologia, acionamos rapi- Nossos olhares, hoje importante instru- tentativa de acolher a demanda das crianças,
damente os laços virtuais, antes vistos por nós mento de nossa escuta, nos levam a visitar de seus pais e de nós, analistas.
com certa desconfiança, e reorganizamos o seus universos particulares. Na velocidade Mesmo distantes, mas de mãos dadas,
cenário para receber nossos pacientes. do giro pela casa, enxergamos o mundo da caminhemos nas vias de Poética I, esse mantra
A casa-consultório encheu-se de palavras criança através da tela, que agora são seus em versos do poeta Vinícius de Moraes. Ele nos
e de fantasias, mas ficou sem o espaço do olhos. orienta a seguir “passo por passo”, buscando
brincar. As caixas/gavetas, os desenhos, as 0 que será que altera nosso olhar ao enxer- existência onde há espaço, e nos convoca à
colagens, os personagens, as histórias ficaram garmos o mundo da criança através da tela? esperança, dizendo que a atemporalidade
na curva do tempo. E nos perguntamos: E Nesse campo de sobressalto, percebemos os sustenta nossos sonhos e que o nosso tempo,
nossas crianças? Onde estão? pais regredidos, invadidos toxicamente de tão desejado, tem as cores do quando.

CONSELHOS, FEDERADAS E PRESIDENTES:


CONSELHO DIRETOR PROVISÓRIO Grupo de Estudos de Psicanálise de São José do Rio Preto e Região: Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPBsb)
Presidente: Rosa Maria Carvalho Reis Elaine Tilelli Abbes  Roberto Calil Jabur
Diretora Científica: Regina Pereira Klarmann Grupo de Estudos Psicanalíticos de Santa Catarina: Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA)
Maria Carmelita Teixeira Gorski Ane Marlise Port Rodrigues
Diretor do Cons. Profissional: Carlos César Marques Frausino
Diretora Superintendente: Maria Teresa Silva Lopes Sociedade Psicanalítica de Pelotas (SPPel)
DELEGADOS Christine Marques Castro Vinhas
Bernardo Tanis, José Martins Canelas Neto, Rosa Maria Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP)
ADMINISTRAÇÃO
Carvalho Reis, Maria Emília Moreira Barcellos, Ana Silvana Maria Bonini Vassimon
Gerente Administrativo Financeiro: Karel Ublo Maria Sabrosa Gomes da Costa Nogueira, Wania Maria
Analista de Comunicação: Taís Maia Associação Psicanalítica do Estado do Rio de Janeiro (APERJ-Rio4)
Coelho Ferreira Cidade, José Carlos Calich, Maria Cristina
Secretária: Januária Amorim Lindemberg Ribeiro Nunes Rocha
Garcia Vasconcellos, Alírio Torres Dantas Jr., Roberto
Calil Jabur, Carlos de Almeida Vieira, Ane Marlise Port Sociedade Psicanalítica do Mato Grosso do Sul (SPMS)
REVISTA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE Rodrigues, Christine Marques Castro Vinhas, Graciela Miriam Catia Bonini Codorniz
Editora: Marina Massi Huecu Maldonado Loch, Silvana Maria Bonini Vassimon, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Minas Gerais (SBPMG)
Editora Associada: Leda Maria Codeço Barone Silvana Mara Lopes Andrade, Lindemberg Ribeiro Nunes Edna Pires Guerra Tôrres
Rocha, Rosa Maria Raposo de Almeida Albé, Miriam Sociedade Psicanalítica de Fortaleza (SPFOR)
CONSELHO CIENTÍFICO Catia Bonini Codorniz, Leila Tannous Guimarães, Edna Regina Célia Cardoso Esteves
Pires Guerra Tôrres, Thereza Cristina Paione Rezende, Grupo de Estudos Psicanalíticos de Goiânia (GEPG)
Diretora Provisória: Regina Pereira Klarmann
Regina Célia Cardoso Esteves, Petrônio Sá B. Magalhães Luciane Guelli Gifford Carneiro
SBPSP: Silvana Rea Júnior, Luciane Guelli Gifford Carneiro, Maristela Nunes
SPRJ: Mariangela Relvas Pinheiro, Ronis Magdaleno Jr. Silva, Ana Maria Queiroz Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEPCampinas)
SBPRJ: Monica Maria Martins Aguiar; Guimarães Protti, Géo Marques Filho, Edna Romano Ronis Magdaleno Jr.
SPPA: Maurício Marx e Silva Wallbach, Marly Terra Verdi, Osvaldo Luis Barison, Fábio Grupo Psicanalítico de Curitiba (GPC)
Firmino Lopes, Anne Maria Pflüger. Géo Marques Filho
SPRPE: José Fernando de Santana Barros
Grupo de Estudos de Psicanálise de São José do Rio Preto e Região (GEP
SPBsb: Lúcia Eugênia Velloso Passarinho Rio Preto e Região)
PRESIDENTES DAS FEDERADAS
SBPdePA: Christiane Vecchi da Paixão Marly Terra Verdi 
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
SPPel: Bruno Salésio da Silva Francisco Bernardo Tanis Grupo de Estudos Psicanalíticos de Santa Catarina (GEP-SC)
SBPRP: Alexandre Martins de Mello Fábio Firmino Lopes
Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ)
APERJ-Rio4: Rosa Maria Raposo de Almeida Albé Rosa Maria Carvalho Reis
SPMS: Débora Alexandre de Jesus NÚCLEOS PSICANALÍTICOS
Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ)
SBPMG: Gisèle de Mattos Brito Núcleo Psicanalítico de Maceió
Ana Maria Sabrosa Gomes da Costa Nogueira
Núcleo Psicanalítico de Florianópolis
SPFOR: Maria de Lourdes Negreiros Lima Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) Núcleo Psicanalítico do Espírito Santo
GEPG: Maristela Nunes Pinheiro José Carlos Calich Núcleo Psicanalítico de Salvador
GEPCampinas: José Carlos Veras di Migueli Sociedade Psicanalítica de Recife (SPRPE) Núcleo de Psicanálise de Marília e Região
GPC: Sérgio Seishim Kaio Alírio Torres Dantas Jr. Núcleo de Psicanálise de Uberlândia

4  FEBRAPSI NOTÍCIAS [63]


PSICANÁLISE SOLIDÁRIA

FEBRAPSI e federadas criam rede


solidária no enfrentamento da pandemia
A Febrapsi e suas federadas formaram
uma rede solidária nacional de enfren-
tamento à pandemia do coronavírus e as
iniciativas permanecem beneficiando as
populações abrangidas por estas federadas.
Em março, ainda no início da crise insta-
lada pela pandemia, algumas sociedades
iniciaram ações solidárias e a Febrapsi
incentivou as demais federadas a parti-
ciparem do projeto Psicanálise Solidária,
uma ampla frente de apoio à comunidade,
para reduzir os impactos da pandemia na
saúde mental da população.
Foram diversas as ações solidárias
realizadas pelas Sociedades e Grupos, que
mostram como as federadas se engajaram
em várias frentes para amparar aqueles que
estivessem em sofrimento agudo nesse
momento de crise. Na maior parte das
federadas psicanalistas passaram a oferecer
atendimento on-line e gratuito a profissionais
de saúde e à população em geral para dar
uma escuta a todos que sentiam e sentem
necessidade de falar de suas angústias,
medos, apreensões diante da pandemia.
Também foram criadas rodas de conversa
virtual para profissionais da saúde que
estão na linha de frente no combate à
covid-19, como espaço de acolhimento e
de troca de experiências; ações voltadas
ao trabalho com educadores; projetos que
resultem no aprimoramento do processo
de aprendizagem e na redução das dificul-
dades escolares de crianças em situações
de vulnerabilidade; doações de cestas de
alimentos para distribuir entre popula-
ções vulneráveis; doação de máscaras;
entre outros.
Todas as ações solidárias realizadas
pelas Sociedades e Grupos são divulgadas
em vídeos nas redes sociais da FEBRAPSI
e apresentadas por um representante de
cada federada. Os vídeos podem ser vistos
também no canal da FEBRAPSI no Youtube.
A FEBRAPSI e suas federadas entendem
que é compromisso ético com o outro
oferecer a psicanálise como importante
instrumento de escuta, para dar suporte
emocional às pessoas na travessia desse
período crítico da pandemia. A preocupação
também envolve as graves e imediatas
consequências sociais a uma grande parcela
da população já economicamente vulnerável:
desempregados, trabalhadores informais
e moradores de rua. Para minimizar esses
impactos, a psicanálise participa de forma
organizada de uma rede ampla de solida-
riedade à população.

JUNHO| 2020  5
GRAMADO 2021

Bernard Miodownik viduais e mudanças sociais


Membro efetivo da Sociedade bruscas modificam os papéis
Brasileira de Psicanálise definidos dos indivíduos. “Tudo
do Rio de Janeiro (SBPRJ) que é sólido desmancha no ar”.
Sujeitos que lidam de forma
O laço pode ser agradável rígida consigo próprios ou com
ou desagradável, desejado os outros, ou aqueles falsos-
ou indesejado, bem-vindo -self, ficam “sem chão” e revivem
ou imposto, recíproco desamparos primitivos, muitas
vezes associados a desamparos
ou unilateral. Inúmeras
socioeconômicos.
variações deste tema estão De uma forma resumida,
expressas numa infinidade provavelmente simplista, se
de metáforas. Ele é um nó pode dizer que os estados de
corrediço ao redor do meu desamparo revividos arrancam
pescoço. Ela é minha âncora. as pulsões das representações
Ele ainda está amarrado à antes firmadas. Ou, trazem à
saia de sua mãe. Amigos se superfície pulsões que jamais
alcançaram representações e
ligam por fios invisíveis.
que permaneciam circulantes,
(R. D. Laing, O laço e o corte). em aparente silêncio, nos estados
dissociados do psiquismo. Ao

E
m janeiro deste ano, os dire- encontrarem líderes carismá-
tores científicos das Socie- ticos que aglutinam irmãos em
dades e Grupos de Estudo sofrimento, as pulsões a eles se
filiados à FEBRAPSI escolheram ligam, reavendo, dessa forma,
“Laços: o Eu e o mundo” como alguma representação psíquica
tema do próximo Congresso vinculada através da identifi-
Brasileiro de Psicanálise. Quem cação primária. Um laço.
poderia prever que poucos Os grupos só persistem nesse
meses depois o mundo, tal qual tipo de vínculo enquanto são
o conhecemos, se reconfiguraria mantidos no estado regredido
a partir da pandemia? O Eu de da identificação primária. Daí
cada um de nós e um Eu subje- os ataques sistemáticos de lide-
tivo da Cultura precisarão se ranças autoritárias à curiosidade,
inter-relacionar, entre si e com ao pensamento e ao conheci-
o mundo, em novas bases. Por ora, o impor- angústia de morte exacerbada pelo fato de mento que levam a ligações mais complexas
tante é verificar que a pandemia mostrou três filhos e um genro estarem servindo o e simbolizantes. Os laços fortes.
os psicanalistas ultrapassando barreiras e exército, além da presença de psicanalistas O texto é um contraponto ao desliga-
mantendo a “chama acesa” através de uma pioneiros no front da guerra – preocupado mento de “Além do princípio do prazer”, este
inédita atividade por laços virtuais. São os em deixar o seu testamento científico? Os certamente marcado pela morte e destruição
“fios invisíveis” que nos garantem hoje os laços trabalhos de 1920 e 1921 podem representar presenciada. Suponho que Freud possa ter se
científicos, emocionais e afetivos que certa- a oportunidade aberta pelo distanciamento perguntado: por que os humanos continuam
mente envolverão o encontro no Congresso daquele período, a fim de refletir sobre os a buscar laços amorosos e a enfrentar todo
em Gramado (RS) em 2021. anos precedentes de guerra. Acrescido ao tipo de intempérie para restabelecê-los e
A base teórica para a esc olha do tema foi fato de que, no pós-guerra, Freud também renová-los? O que quer Eros? Formar laços.
o texto “Psicologia das massas e análise do enfrentou uma pandemia, a gripe espanhola, Ainda que masoquistas, sádicos, impulsivos,
Eu”, que em 2021 completará o centenário de que lhe deixou a marca dolorosa da perda de servidão voluntária. Mais que o amálgama
publicação. Uma das leituras possíveis desse de Sophie, sua filha mais nova. do dualismo pulsional pode se pensar em
trabalho é vê-lo conjuntamente com o texto Dois textos que não falam um ao outro no estratégias de sobrevivência psíquica contra
de 1920 “Além do princípio do prazer”, como papel, mas tocam em aspectos complemen- o vazio representacional.
novas elaborações de Freud – dentro da sua tares: o que não encontra ligação em “Além A ênfase em “Psicologia das massas” na
ótica da psicologia individual – sobre tempos do princípio do prazer” e o que procura ligar identificação “conhecida pela psicanálise
de guerras prolongadas e insanas como a 1ª em “Psicologia das massas”. Ambos falam como a manifestação mais precoce de uma
Guerra Mundial com uma destrutividade que de algo que Freud somente viria a desen- ligação com outra pessoa” foi um dos pontos
se propaga em ondas de maré crescente. E, volver mais adiante em sua obra: os estados de partida sobre o que viria a seguir com as
também, o que leva povos inteiros a aderirem de desamparo. Destaco especialmente o teorias das relações de objeto. O texto possi-
de forma acrítica às mesmas insanidades que desamparo diante de demandas pulsionais bilita reflexões importantes na atualidade
bloqueiam a capacidade reflexiva e liberam sem laços com representações psíquicas. em que movimentos regressivos às identi-
as demandas pulsionais primitivas, levando, As percepções de Freud em “Psico- ficações primárias adesivas e maniqueístas
frequentemente, à autodestruição. logia das massas e análise do Eu” ajudam voltam a assombrar o mundo com sua carga
O volume 14 das Edições Standard da a compreender a adesão de grupos humanos de populismo, nacionalismo, xenofobia e
obra de Freud mostra a prolífica produção ao estado de guerra ou a um regime mono- segregacionismo.
de Freud no período da 1ª Guerra estabe- crático de exaltação de um líder (ocorre Psicanálise, história e “uma infinidade de
lecendo os fundamentos metapsicológicos também nas melhores democracias). Estados metáforas”. Haverá muito para debater no
da psicanálise. Estaria Freud – diante da de desamparo causados por traumas indi- próximo Congresso Brasileiro de Psicanálise.

6  FEBRAPSI NOTÍCIAS [63]


GRAMADO 2021

LAÇOS: o contador de histórias,


o poeta e os psicanalistas pioneiros
Roberto Bittencourt Martins ou na plateia, participavam músicos, como Porto Alegre, era parte de uma comunidade
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de a pianista Zuleika, esposa de Paulo, tocando informal de estudantes oriundos do inte-
Psicanálise do Rio de Janeiro peças clássicas e populares, e autores rior em busca dos cursos universitários de
como Carlos Reverbel e Érico. Abro aqui Porto Alegre, únicos no estado. Moravam

É rico Veríssimo dizia ser “apenas um


contador de histórias”. E Mário Quintana
apontava: “ser poeta não é dizer grandes
um parêntese pois acredito seja um feliz
acaso a realização deste Congresso em
Gramado, lugar em que tantos viveram
em “repúblicas” ou pensões. Ali, foi compa-
nheiro dos futuros médicos Cyro Martins,
Mário Martins, Lino Mello e Silva. Os dois
coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre bons momentos. Como David Zimmermann, primeiros fundariam mais tarde a primeira
todas as outras”. Sobre a amizade, observava: Santiago Wagner, Roberto Ribeiro e Mário Sociedade Psicanalítica do estado e seriam
“Amigo é a criatura que escuta todas as Martins, num tempo em que a cidade não fortes esteios na implantação da psicanálise
nossas coisas sem aquela cara que parece era ainda um gigantesco polo turístico. no Brasil. Lino faria sua vida profissional no
estar dizendo: E eu com isso?” Ambos manti- Os laços de Mário Quintana são ante- Rio de Janeiro, qualificando-se na primeira
veram laços cordiais de amizade. Érico pediu riores. Vindo de Alegrete para estudar em turma da SBPRJ. Quintana dedicaria a Lino
a ele uma quadra para complementar a um de seus mais notáveis sonetos: “A
epígrafe do romance O Resto é Silêncio. Anos ciranda rodava no meio do mundo...”
depois, Quintana escreveu uma Carta-Poema O amor à literatura unia também
de saudação ao romancista que começa: os jovens estudantes, que seguiram
“O nosso modo de ser que é tão nosso e Em com entusiasmo os reflexos literários
por isso tão humano...”. cartão de da Semana de Arte Moderna. Mário
Ao saber que os dois escritores seriam aniversário fez versos, Lino escreveu contos –
homenageados no 28º Congresso Brasileiro dos 50 anos e Cyro uniu de maneira magistral
da Febrapsi, lembrei-me dos laços que os de Mário o ofício de psicanalista com o de
uniam aos psicanalistas pioneiros em terras Martins, escritor, publicando 15 obras de
o amigo e
gaúchas. Entre os papéis de meu pai, Mário ficção (contos, novelas, romances)
escritor
Martins, guardávamos um cartão de Érico desde Campo Afora (1934) até Um
Érico
com bem-humoradas e ilustradas saudações Veríssimo Sorriso para o Destino (1991) e outro
por seu aniversário de 50 anos em 1958 – o definiu tanto de ensaios, destacando o
qual foi comemorado com um almoço em os três Humanismo Psicanalítico. Esses
que os psicanalistas festejavam com alegria males da laços entre psicanálise e literatura
também os recentes 53 anos do escritor, humanidade foram prosseguidos por sua filha
já obrigado a precaver-se Maria Helena Martins, criadora
da doença cardíaca. do Centro de Estudos Literários e
Érico costumava receber Psicanalíticos Cyro Martins, com realizações
os amigos em sua casa à que vêm unindo escritores e psicanalistas
noite e analistas como ao longo desses anos.
Paulo Guedes, Luís Carlos Para terminar, dando voz aos dois escri-
Meneghini e outros eram tores homenageados, algumas frases que
convivas frequentes. A litera- poderiam repetir se estivessem presentes
tura estava presente sempre em nosso Congresso.
na vida cotidiana daqueles
psicanalistas e era fonte de Quintana: – Sonhar é acordar-se
muita satisfação. Meneghini para dentro .... A psicanálise? Uma
escreveria depois “Freud e das mais fascinantes modalidades
a Literatura”, seu primeiro do gênero policial, em que o detetive
l i v ro. E Pa u l o G u e d e s,
procura desvendar um crime que o
professor de Psiquiatria e
de Música, além de poeta
próprio criminoso ignora.
b i s s e x t o, c o m o c o n t a
Meneghini em À Sombra
Érico: – Odeio todas as formas de
do Plátano, liderava; um ditadura, inclusive as chamadas
grupo de analistas, amigos benignas ou paternalistas. Detesto
médicos e jornalistas que se qualquer forma de coação. A causa
divertiam escrevendo e reali- daqueles que lutam pela liberdade
zando pequenos atos humo- será sempre a minha causa. Não
rísticos nos veraneios em
aceito como são e válido nenhum
Gramado. Ali, no teatrinho
do Artesanato Gramadense
regime político e econômico que
de Elizabeth Rosenfeld (a não tenha como base o respeito à
escultora do Kikito), no palco pessoa humana.

JUNHO| 2020  7
ARTIGO

À flor da pele

N o dia 25 de maio deste ano, o mundo


assistiu, estarrecido, à cena do assassinato
do negro norte-americano George Floyd, na
Os negros compõem a parcela de 13% da
população norte-americana, enquanto, no
Brasil, esse índice é de 56%, de acordo com a
cidade de Minneapolis, nos Estados Unidos. O Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
joelho do policial branco sobre o pescoço do (Pnad) Contínua do IBGE, de 2019. Apesar da
homem negro, tática de imobilização difundida grande diferença em termos demográficos
Regina Esteves
entre as polícias, por oito minutos e quarenta e culturais, esses negros têm em comum a
Membro efetivo e didata da Sociedade
e seis segundos, levou-o à morte, sem a menor experiência de escravatura vivida por seus Psicanalítica de Fortaleza
possibilidade de ser ouvido em seu clamor: ancestrais. Eles foram caçados e arrancados de estevesregina@yahoo.com.br
“Não consigo respirar”. Assistimos, estarrecidos, suas terras e levados a países que construíram
não somente ao ato de matar mas ao prazer poderio e riqueza sobre a exploração de seus
sádico do policial ao cometer esse ato. corpos e de sua força de trabalho. Tiveram, Nesse cenário, novamente é a população
Como refere Simone Weil (in Larrauri, 2011), assim, negada sua humanidade. negra a mais vulnerável, já que, pelas condições
quando um ser humano se comporta diante No Brasil, por trás de todo o racismo e econômicas e sociais impostas à maioria, tem
de uma pessoa como se ela não fosse outro preconceito dos que se supõem brancos, estão menos possibilidades de cumprir o isolamento
ser humano é porque, antecipadamente, a mais de 300 anos de escravatura. Excluídos e enfrenta maior dificuldade no acesso a
transformou em coisa. Transformar os seres da sociedade, os negros são expulsos para serviços de saúde. Afinal, como explicita
humanos em coisas pode ser a consequência as periferias e favelas, onde vivem situações Foucault, no livro Em Defesa da Sociedade
mais extrema do poder. traumáticas cotidianamente, enfrentando (2002), o racismo efetua “um corte entre o
A frase do homem negro, “não consigo ameaças de desumanização e de interrupção que deve viver e o que deve morrer”.
respirar”, espalhou-se entre as comunidades de seu futuro. Há que ficar alerta, há que Não sabemos quando a pandemia termi-
negras norte-americanas e deu início a atos de saber distinguir, desde muito cedo, entre a nará nem quando surgirá uma vacina. Não
revolta como não se viam há décadas, que se batida ligeira das sandálias no chão e o som sabemos se o ser humano aprenderá com a
desdobraram em diversos países do mundo. oco das botas correndo pelas vielas, entre o experiência ou se nós voltaremos a levar a
É possível que o tempo de agonia do negro estrondo dos rojões e o estampido dos fuzis. vida de antes e continuaremos nessa corrida
e o prazer do policial branco tenham levado A morte está sempre à espreita. A neces- consumista e destruidora do planeta. O escritor
muitas pessoas a um estado de choque, petri- sidade de estar constantemente em guarda indígena e ativista ambiental Ailton Krenak,
ficadas, sem capacidade de pensar ou mesmo implica um imensurável dispêndio de energia, em O Amanhã Não Está à Venda, alerta: “O vírus
de se mover. Um silêncio profundo talvez tenha uma lenta drenagem da essência, como diz não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser,
tomado o lugar das palavras, fazendo com Ta-Nehisi Coates (2015) no livro, em forma apenas humanos. Quem está em pânico são
que elas se sentissem diante de um abismo de carta ao filho, Entre o Mundo e Eu. os povos humanos e seu mundo artificial, seu
aterrador. Algumas, ou muitas, podem ter A iminência do perigo e a vigília contínua modo de funcionamento que entrou em crise”.
ficado com medo de que, se dessem vazão cobram seu preço ao psiquismo do indivíduo: Deveremos levar anos para nos reconstruir
ao choro, nunca mais parariam de chorar. a mobilização da angústia, reação originária subjetivamente e coletivamente. Teremos de
Essa condição traduz o que entendemos no estado de desamparo perante a separação transformar o vivido em pensamento e em
por trauma, palavra que vem do grego e e perda do objeto, e a potencialização do experiência, como afirma Janine Puget (1982).
significa ferida. De modo geral, o trauma medo, que em princípio protege, mas venda Qualquer tentativa de retorno imediato a uma
se estabelece quando a intensidade de um os olhos e impede a ação. vida dita normal que não leve em conta essa
acontecimento sobrepuja a capacidade do reconstrução carregará consigo o fantasma da
psiquismo de pensar, organizar e elaborar Não bastassem a falta de condições
iminência de uma nova pandemia. E viveremos
a experiência vivida. A situação traumática básicas estruturais, a perseguição, com medo, como canta Belchior em sua canção
submerge o ego impotente, resultando no o descaso e a invisibilidade em que Pequeno Mapa do Tempo: “Eu tenho medo e já
fracasso da tentativa de entendimento do vive a população negra e pobre aconteceu, eu tenho medo e inda está por vir”.
próprio acontecimento e da capacidade para nas favelas, paira agora mais uma Quem sabe possamos lidar com o medo
fazê-lo. Tal desorganização psíquica pode ser ameaça concreta de morte: o novo apelando à nossa capacidade mental de sonhar,
duradoura, acarretando prejuízos na conti- que nos torna infinitos. Quem sabe o confi-
nuidade do desenvolvimento do indivíduo.
coronavírus.
namento físico favoreça o desconfinamento
O caráter disruptivo, desorganizador e No nosso país, uma das nações com maior mental, como diz Edgard Morin. Quem sabe
imprevisível do trauma perpassa a obra de desigualdade do planeta, o novo coronavírus possamos nos irmanar a Mia Couto em sua
Freud desde os primórdios. Como afirma encontrou as condições propícias à sua propa- carta ao escritor pernambucano Marcelino
Michel Quinodoz (2007), o traumatismo não gação: habitações diminutas, com grande Freire, quando afirma: “No meu medo, Marce-
se deve à violência mecânica do choque, mas número de pessoas por metro quadrado, lino, muita coragem vai germinar”.
ao pavor e à sensação de uma ameaça vital. baixa imunidade, doenças e insalubridade, Que sejamos contagiados pela bravura
Voltando ao assassinato do negro norte- entre outras. Para agravar a situação trágica, da escritora negra Carolina Maria de Jesus
-americano, a imprensa corporativa brasileira a subestimação da força do vírus por gover- (1914-1977), que denunciava em seus escritos
atribuiu o fato ao racismo endógeno existente nantes e parte da população o potencializou. diários a dura rotina, ainda hoje atual, das
naquele país. Entretanto, nos assassinatos de O número de infectados e de mortos pela mulheres nas favelas do Brasil: “Eu não tenho
negros por policiais no Brasil, essa mesma Covid-19 aumenta a cada dia, e o Brasil já força física, mas minhas palavras ferem”.
imprensa em geral divulga o fato como uma ocupa o segundo lugar no ranking mundial, Que tenhamos sonhos e coragem! Que
ocorrência de uma operação policial. atrás apenas dos Estados Unidos. possamos respirar!

8  FEBRAPSI NOTÍCIAS [63]


ARTIGO

O traumático na pandemia:
COVID e COVIDA
A cena de apoiadores de Jair Bolsonaro, no
dia 13 de abril, em São Paulo, dançando
em torno de um caixão, exigindo o fim do
formular seus conceitos de experiência e
vivência. A memória está relacionada com a
experiência, enquanto a consciência liga-se
isolamento social, viralizou na internet. Millán- à vivência, preparada para lidar com os estí-
-Astray, general fascista na Guerra Civil Espa- mulos do mundo moderno.
nhola, celebrizado por seu brado “Abajo la Em “O narrador”, Benjamin aponta a ausência
inteligencia, viva la muerte”, exultaria com a total da experiência no fim da 1ª Guerra Mundial,
Liana Albernaz de Melo Bastos
Membro efetivo da Sociedade Brasileira
manifestação. quando os sobreviventes voltaram mudos das de Psicanálise do Rio de Janeiro
A macabra encenação me veio à cabeça trincheiras. Não podiam transformar os horrores lianaambastos@globo.com
assim que recebi o gentil convite para escrever que vivenciaram em linguagem. A memória,
um pequeno texto para o Febrapsi Notícias. que ajudaria a manter vivas as imagens da
Pouco antes acabara de ser anunciada a guerra e de seus mortos anônimos para que O rosto de mulher na luta contra a pandemia
demissão do 2º ministro da Saúde, em menos de uma barbárie como essa não se repetisse, (Seben, Lima & Degani ) é a cara do que temos
trinta dias, em plena pandemia, por não estar desapareceu. pela frente. É na feminilidade que se abre a
“afinado” com o governo federal. O Brasil já A predominância da percepção-consciência brecha (que coisa tão feminina) para emprestar
contabilizava, naquele momento, oficialmente, e o declínio da memória, para Benjamin, estão sentidos de vida, estabelecer ligações (eróticas,
com uma curva de crescimento exponencial, ligados às mudanças aceleradas nas socie- por certo), acolher o outro (como gestar),
14.000 mortos pelo Covid-19. Em 15 de junho, dades capitalistas modernas. Estas, baseadas respeitar a diversidade, alimentar a memória
já contávamos mais de 44.000 mortos. O Minis- na reprodução técnica teriam, segundo ele, individual e coletiva.
tério da Saúde, pela primeira vez na história duas possibilidades. De um lado, a experiência Mas não basta ser mulher: Margaret That-
do Brasil, tem um general não médico como soviética que formaria um novo sujeito histó- cher negando a sociedade na Inglaterra (“Não
ministro. E o governo federal tentou impedir rico na coletividade e o tornaria produtor existe sociedade, só indivíduos e famílias”),
a divulgação diária do número de mortes nesta sociedade. De outro, o que Benjamin Indira Gandhi assassinando sikhs na Índia,
desmentindo secretários estaduais de saúde. temia e acabou se concretizando: nazistas e Leni Riefenstahl produzindo filmes enaltecendo
Ataques do vírus, ataques políticos, ataques fascistas moldando as massas para as suas o nazismo. Não é de gênero que se trata.
à vida. Angústias traumáticas: mortos e morte. finalidades através da estetização da política. A feminilidade implica na aceitação da
A pulsão de morte é o reino do traumático. O encantamento da sociedade com os avanços castração. Aceitá-la é saber-se mortal e falível.
A compulsão à repetição, os sonhos traumáticos tecnológicos e a utilização da técnica pelos Só nos fazemos sujeitos em redes sociais de
e a resistência terapêutica negativa exigiram nazifascistas levaram a política ao caminho reconhecimento. A castração não está no
de Freud a postulação da pulsão de morte. inexorável da espetacularização. A sociedade corpo da mulher – embora ela a porte – mas
O mais além do princípio do prazer, o mais da alienação chega a levá-la a viver sua própria na abertura narcísica ao outro que faz de nós,
originário do psíquico, insiste na repetição destruição como um prazer estético (Freitas, humanos, humanizados.
para que a angústia possa ser ligada e, só 2014). Contam que, perguntada sobre o que ela
assim, representada. considerava ser o primeiro sinal de civilização
Também o traumático é central na teoria
As mortes anônimas
numa cultura, Margaret Mead respondeu que
ferencziana. Valas comuns, enterros sem velórios ou era um fêmur quebrado e cicatrizado. No reino
Para Ferenczi, o traumático não está no despedidas. Assim têm sido as mortes pela animal, se um indivíduo quebra a perna, morre.
acontecimento em si mas na ausência do Covid-19. Não pode correr dos predadores, ir ao rio
reconhecimento por parte de um outro que Para Benjamin, sem memória a ser cultivada, beber água ou caçar comida. Nenhum animal
permita que a angústia indizível ganhe sentido. o ser humano moderno não deixa marcas. sobrevive com uma perna quebrada por tempo
Caso não aconteça, há uma clivagem psíquica. Assim, nem na morte é possível existir qual- suficiente para cicatrizar. Um fêmur quebrado
Tratando-se de crianças, Ferenczi afirma que quer experiência compartilhada. Ao contrário cicatrizado é evidência de que alguém cuidou
“esse medo, quando atinge seu ponto culmi- da sociedade baseada na memória, que vê até a recuperação. Ajudar alguém durante
nante, obriga-a a submeter-se automaticamente na morte lições de aprendizado e passagem uma dificuldade é onde a civilização começa.
à vontade do agressor, a adivinhar o menor de sabedoria, no mundo moderno, o fim da Se assim for, com o necessário pessimismo
de seus desejos, a obedecer esquecendo-se existência representa o esquecimento. Não da força (Gastal), poderemos transformar o
de si mesma e a identificar-se totalmente com é isso que parece alimentar a negação social Covid em Covida.
o agressor.” (Ferenczi, op cit, p.102) Também a das mortes pelos grupos fascistas? “Esquecer
culpa experimentada pelo adulto agressor seria o passado, não fazer palanque sobre os cadá- REFERÊNCIAS:
introjetada pela criança. Mas o que acontece se veres, olhar para a frente”? Benjamin, Walter (2012). Magia e técnica, arte e política.
São Paulo: Brasiliense.
a violência não é reconhecida e se o agressor Sema (do grego sema) é sinal, marca. Mas, Ferreira, Aurélio B.H. Novo Dicionário da Língua Portu-
não experimenta culpa, e, pelo contrário, goza seu significado em grego antigo é “túmulo”. guesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1ª edição.
sadicamente com a violência cometida? Erguer um túmulo significa deixar uma espécie Ferenczi, S. (1992). Obras Completas, vol.V, p.102. São
O modelo ferencziano se aplica ao infantil de “pegada”, uma marca, um rastro para que Paulo: Martins Fontes.
Freitas, Tatiana M.G. (2014). Erfahrung e Erlebnis em
do psiquismo humano. O traumático é o que os mortos não sejam esquecidos e para que Walter Benjamin. Revista Garrafa, Rio de Janeiro, n.33,
não se inscreve na memória por não poder ter possamos fazer o luto. janeiro-junho, p.72-87.
sido compartilhado como experiência perma- Antígona lutou por dar um túmulo a Polinice. Gastal, Maria Luíza (2020). Em clima da morte, o
necendo apenas como vivência individual. Assim também o fizeram as Mães da Praça de necessário pessimismo de força. Observatório Psica-
Walter Benjamin recorre ao esquema nalítico, 166, FEBRAPSI.
Maio, as Mães de Acari e tantas mulheres que Seben, G., Lima, J., & Degani, R. (2020). A luta contra
freudiano de oposição entre os polos de diante da morte de seus filhos não aceitam a pandemia tem rosto de mulher. Observatório Psica-
percepção/consciência e de memória para que virem carniças ou corpos anônimos. nalítico, 164, FEBRAPSI.

JUNHO| 2020  9
ARTIGO

O trauma dentro do trauma, um


movimento espelhado na alma

R ecentemente, ao amanhecer, talvez


buscando um novo tempo em meio a uma
pressão externa de recolhimentos e impedi-
Como nos diz Roussillon (2018): ... le
refoulement fut à l’origine d’une fixation qui a
soustrait à l’évolution les motions pulsionnelles
mentos, experimentei a amplitude do anseio engagées [... a repressão estava na origem de
de liberdade, ao respirar o ar fresco de um uma fixação, que interfere na evolução dos
novo dia. Naquela semana, havia recebido movimentos pulsionais envolvidos].
Maria de Fátima
uma notificação de que todos os moradores Ainda seguindo Roussillon, esse ponto de
seriam obrigados a usar máscaras. Lembrei-me fixação evoca um arcaico que atrai os conflitos Rebouças Malva
Membro titular e didata da Sociedade
dessa imposição, fato esse que retirou parte do atuais correspondentes, o que é denominado de Psicanálise de Brasília e membro
meu entusiasmo. No entanto, segui buscando de repressão secundária. Por contingência, associado da Sociedade Brasileira de
algum sentido no que estava vivendo. são reutilizados retalhos psíquicos que preen- Psicanálise de São Paulo
Mais à frente, vejo uma menina, com no chem as lacunas do insuportável, frente aos fatima.malva@gmail.com
máximo 6 anos, ainda de pijama, correndo eventos atuais, quando emergem organizações
e chorando, desesperadamente. Refreei com psíquicas paralelas, tornando ainda mais difícil
dificuldade, um movimento em sua direção, a leitura da dor, quase sempre “mascarada”. psicanalítica, quando reaparecem através
quando, então, ela se senta na calçada, me Quando estamos em nossos consultó- das mais diversas formações inconscientes/
olha estranhamente, afinal, estava diante rios, através da transferência, dentro de um sintomas – aspectos do rejeitado, os rejetons.
de uma mulher mascarada... Me aproximo, espaço e um tempo “protegidos”, temos a São as cadeias associativas que carregam,
guardando a distância imposta. Sento-me e oportunidade de acompanhar as fagulhas de então, de forma metafórica, os aspectos
ela exclama: “estou muito mal, está chovendo dores embrulhadas, desnudas ou perdidas. rejeitados. É a partir dessa metaforização,
muito!”. Tentando acalmá-la, mostro-lhe que Ou, ainda, o negativo de estruturas clínicas, dos deslocamentos gerados, que a interpre-
eram apenas pequeninas gotas. Neste instante, que se traduz na profunda falta de esperança tação vai buscar através do manejo trans-
o pai surge correndo em sua direção. Ela, ao no vínculo. O processo analítico luta diante ferencial uma reintegração secundária da
vê-lo, me mostra um brilho nos olhos, que da dificuldade de transformar o princípio de experiência reprimida, a fim de permitir
não esqueço, enquanto, aumentando o tom prazer/desprazer em princípio de realidade. desdobramentos (e quem sabe, diferencia-
de voz, quase gritando, lhe diz: “Oh pai, não Nesse processo, frente à cegueira do ções) entre as questões atuais e as históricas,
estou nada bem”. O pai, que nesse instante reprimido, mas não da intensidade da dor, libertando as características do contexto
me pareceu gigante, toma-lhe nos braços, aos poucos, a dupla analítica se encaminha infantil das primeiras repressões.]
onde ela se aconchega, e os dois saem juntos, para a construção de uma realidade psíquica, Em larga escala, podemos observar que o
lentamente... minimamente necessária a uma realização tema do Narcisismo é inerente à teoria psicana-
Continuei minha incursão, já que aquela alucinatória do desejo. lítica, desde seu início. Ousando minimizar um
cena ocupou a dimensão do que, anteriormente, estudo de complexidade ímpar, podemos dizer
chamei de anseio de liberdade. A experiência de uma dor que o termo Narcisismo Primário comporta
partilhada, quando, anteriormente, duas vertentes:
O interesse inicial da Psicanálise, expresso permaneceu condenada ao cárcere, – pulsão de vida revelada por instintos
desde os primeiros escritos de Freud, dirige-se passa a encontrar modalidades libidinosos narcísicos, transformados em
aos sintomas histéricos, sob a influência de elementos criativos de diferentes matizes; e
de satisfações inconscientes,
Charcot. Suas observações embasavam-se na – pulsão de morte revelada através do
hipótese de que o psiquismo se submete a um
em meio ao retorno invasivo da masoquismo erógeno, expresso pela destru-
conflito advindo de movimentos pulsionais, experiência traumática disruptiva. tividade, em quadros clínicos diversos.
gerando um transbordamento que se rende Assim sendo, a ferida inserida na Na esteira deslizante entre as Pulsões
a uma interação complicada, em razão de trama psíquica terá chance de criar de Vida e de Morte, existe a tentativa de
exigências incompatíveis, à percepção pela a ilusão amorosa, base do processo reencontrar o sentimento ao qual me refiro
consciência. simbólico. no início deste artigo, de anseio de liberdade.
Ainda distante de um estudo mais apro- Hoje, todos vivemos um ambiente trau-
fundado dos processos psíquicos, estava Continuando Roussillon, Em cours d’ana- mático, que nos leva a revisitar as vicissitudes
se encaminhando por uma via de transição lyse le désir inconscient et refoulé est activé par decorrentes do desamparo. Como nos diz
inquieta, entre os trabalhos neurológicos e le transfert et le dispositif psychanalytique, il Roussillon, a insistente presença de rejetons
aqueles ditados pela agonia. Freud iniciava infiltre de ses “rejetons” les châines associatives infiltrados nas nossas mentes, nas tentativas
sua incursão. qui porten alors des formes méthaphorisées de entender e fazer algo que nos alivie, pode
No curso do desenvolvimento psíquico, de ceux-ci. Cést à partir de cette métaphori- nos arrastar para vivências emocionais inun-
experiências emocionais atuais provocam seu sation, des déplacements qu’elle engendre, dantes. Enquanto o desejo é o de sermos
enfrentamento. Nessa investida, a angústia que l’interprétation va chercher le moyen de acolhidos por um grande pai que venha e
advinda diante do inusitado lança o neces- rendre possible une réintégration secondaire nos ofereça um colo terno e seguro, nos
sário mergulho em direção à marca psíquica du refoulé afin de lui permettre de déployer sentimos transitando entre gotículas de chuva
infantil, que chamamos de trauma. dans le transfer se enjeux actuels et historique, e tempestades torrenciais.
Desta feita, nos referimos ao trauma et de livrer les caractéristiques du contexte
REFERÊNCIAS
secundário, quando a experiência subje- infantile des premier refoulement. [No curso
Roussillon, René. (2018). Agonie, clivage et symbolisa-
tiva vivenciada nos primórdios psíquicos é da análise o desejo inconsciente e reprimido tion. Imprimé em France par JOUVE, septembre 2018,
reapresentada secundariamente. é ativado pela transferência e pela técnica n.2778077B, pp.11-12.

10  FEBRAPSI NOTÍCIAS [63]


ARTIGO

O traumático e
a pandemia
E ra uma vez uma menininha chamada
Giovana, que morava com seus pais em
uma casa habitada por muitos Coronas, seres
O discurso das autoridades responsáveis
nos chega como inspiração histérica para
que uma cortina de fumaça seja pactuada,
invisíveis e perigosos, que sempre tentavam para encobrir a cisão entre a completa falta
atacar Sígurd – seu mais recente amigo inse- de sentido que atribuímos a eventos que
parável, um corvo negro, e Edgar – seu velho têm consequências terríveis, e a ansiedade
conhecido elefante azul de inabalável sorriso. catastrófica, cuja importância deve ser Lenita Osorio Araújo
Membro efetivo e analista didata
Não havia crianças para ajudar Giovana em completamente negada, embora a estejamos
da Sociedade Psicanalítica de
sua tarefa de evitar que os amigos sofressem vivenciando intensamente em nossas expec- Mato Grosso do Sul
uma morte horrível. Ela tem quatro anos e tativas diárias infiltradas da onipresença da lenarj@terra.com.br
usa sua máscara de proteção facial com muita morte.
desenvoltura, mas não pode sair mais de casa, Percebo minha dificuldade em estimar a
porque os Coronas também invadiram sua extensão do luto a essas gerações em que
escola e seu parquinho. Assim Giovana fez me insiro, e a palavra pandemia reduz o serem negadas, ou toleradas, como a opressão
uso de várias estratégias: primeiro achou que irrepresentável em minha mente a algo que exercida sobre segmentos da sociedade,
se os escondesse sob uma manta sua, velha e eu entendo como traumático. reveladas na síndrome da criança espancada,
vermelha, eles poderiam ficar indetectáveis nos estupros, na violência doméstica física e
aos Coronas. Essa segurança foi passageira, O foco viral em todos os continentes, sexual, na pobreza extrema.
mas ela dormia melhor deixando-os cobertos. a rapidez do contágio, velórios Considerando a função primária da disso-
Como ela aprendeu a lavar muito bem as sem abraços, o impacto tríplice em ciação como uma resposta de proteção ao
mãos pensou também que se eles lavassem trauma, fomos integrando na atualidade
saúde, educação e renda, inferem a
as patas poderiam ser ajudados, e assim o o fenômeno dissociativo da consciência,
fez – ambos foram lavados e postos ao sol.
catástrofe do século, em proporções tão caros a Freud e Janet, e a observação
Mostrando a persistência de sua angústia ela imensuráveis. A noção de trauma clínica tendeu o peso para a equivalência
concebeu uma pomada mágica que chamou psíquico se aplica a esse parcial das fantasias intrapsíquicas e dos fatos reais
de Coronacida, que passava com as mãos entendimento do que me assombra, na patogênese dos transtornos dissociativos,
em seus amigos, comemorando a morte admitindo a centralidade do trauma na etio-
no avanço da Covid-19.
dos Coronas que ela via estarem caindo logia. Fenômenos dissociativos menores,
mortos sobre a cama. Inútil discutir o que O conceito de trauma está diretamente como a hipnose da autoestrada, sentimentos
essa bruxinha sabia ou não, em sua idade relacionado a acontecimentos invasivos que transitórios de estranheza ou de sair do ar, são
o saber de si e do mundo conta com uma têm como consequência o prejuízo físico e os mais comumente referidos, assim como
especial sensibilidade ao reduto familiar, psíquico. Seu conceito está entrelaçado com a dificuldade de concentrar a atenção e os
ao recurso a práticas mágicas de injunção e a medicina e os estudos sobre a histeria. esquecimentos resultantes na rotina coti-
cura, que sustentam o pensamento anímico Freud introduziu a relevância do trauma na diana. Essa evolução justifica nossa atenção
do vodu, e a empatia extensa aos objetos histeria em 1893, no artigo “Sobre o meca- para a relevância dos sintomas dissociativos
transicionais. Seus sintomas ritualísticos, leves nismo psíquico dos fenômenos histéricos: que compõem o quadro dos transtornos
e transitórios, remitiram. Como, quando, ou Uma conferência”, definindo como um trauma de estresse pós-traumático ou de estresse
se ressurgirão, será outra história. Quantas psíquico a toda experiência ou impressão agudo, híbridos entre os demais transtornos
menininhas terão a mesma sorte em lidar que o sistema nervoso não consegue abolir de ansiedade e associados a diversos graus de
com essas marcas do seu tempo? por meio do pensamento associativo ou depressão, que despontam nesse momento
Permaneço em isolamento social e as por uma reação motora, aproximando cada como situações de risco para a saúde mental
notícias me chegam de todos os lados, mais vez mais o termo a um terror consequente da população envolvida com os cuidados
do que consigo processar. Como estamos à atividade psíquica. dessa misteriosa doença.
sendo cuidados em nosso meio? Números Os fenômenos traumáticos, como fatores Não sabemos o que virá na esteira dessa
crescentes de casos e óbitos se chocam com desencadeantes de sintomas psicopatoló- pandemia, quais transformações nos serão
o intuído das subnotificações, a politização gicos, receberam atenção tardia, seguindo benéficas ou o que nunca mais poderemos
de um medicamento disfarça a falta de rumo a polarização entre a causação psicológica recuperar, mas a lógica narcísica que nos
e a mediocridade dos agentes públicos em ou a genético-constitucional, mas ao admi- esmaga anima a reflexão sobre a persistência
garantir proteção e acesso digno à saúde tirmos a relação desses modelos com os da angústia de morte nos seres humanos
a uma população geralmente concebida fatores ambientais externos, nos permitimos que acreditam ser a única espécie que tem a
como massa inculta, descartável depois de considerar sua importância na constituição inelutável consciência de sua própria finitude,
satisfeitos os interesses eleitoreiros. Alguma das patologias e comportamentos humanos. fazendo disso um elemento existencial de
novidade nisso, décadas sobre décadas? Esse A valoração do trauma, contudo, permite a enorme relevância em sua economia psíquica.
saber tão próximo à impotência da infância negociação ambivalente e política de sua Em antítese, o impulso da vida em se contrapor
não ameniza a angústia, cada número fatal relação causal. A amnésia que recobre o a esse destino de morte, tanto em ativa revolta,
representa uma pessoa em sua rede familiar trauma costuma ser revelada por um novo submissa aceitação ou superação maníaca, é
e de convivência. Uma crise sanitária dessa trauma que precisa ser maior ou mais gene- também outra força perseverante que se alia
dimensão, enlaçada a uma crise política, ralizado, criando um novo ciclo de negação. ao desejo de transcender a finitude biológica
aprofundando a crise econômica e social – é As histórias das guerras, dos genocídios, das e negar a finalidade banal e anônima do
muita dor para absorver. pestes, dos cataclismos, são mais difíceis de existir humano.

JUNHO| 2020  11
M U N D O D I G I TA L

FEBRAPSI incrementa comunicação digital


para aproximar a psicanálise da população
A necessidade de isolamento social decor-
rente da pandemia do novo corona-
vírus proporcionou um fenômeno até então
impensável na prática psicanalítica. Com
a quarentena, a comunidade psicanalítica
viu-se diante do desafio de ampliar o que
eram casos pontuais de atendimento psica-
nalítico à distância e migrar sua prática
analítica diária para o consultório virtual.
O uso das tecnologias digitais também
proporcionou um forte incremento nas inte-
rações dentro da comunidade psicanalítica,
como também intensificou a comunicação
de psicanalistas com o público em geral.
Desde o início da pandemia, a FEBRAPSI vem
estimulando e desenvolvendo campanhas
envolvendo seus membros e também dire-
cionadas à população, buscando promover
diálogos com variados públicos, que possam
ajudar a enfrentar os desafios impostos
Encontro Regional da ABC – Região Sudeste I realizado em junho
pelos novos tempos.
A FEBRAPSI lançou no final de março
ABC: navegando e sonhando uma série de vídeos e textos divulgados
regularmente em suas redes sociais, com
em tempos de nevoeiro reflexões de psicanalistas membros sobre a
crise e os desafios trazidos pela pandemia.
“O doutor suspendeu a escrita. aproximamo-nos de nossos Conselheiros A série “Pense conosco e não saia de casa”
A resposta, sem dúvida o e Representantes ABC e definimos um contou com a participação dos psicana-
surpreendera. Já Dona Serafina novo formato de trabalho para este listas Leopold Nosek (SBPSP), Wilson Amen-
aproveitava o momento: Está a ver, primeiro ano de gestão: atividades doeira (SBPRJ), Luciane Carneiro (GEPG) e
on-line, acompanhando o movimento Celso Gutfreind (SBPdePA), que gravaram
doutor? Está a ver? O médico voltou a
de outras organizações representativas. vídeos, além de textos de Bernard Miodo-
erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
Desde então, em pouco mais de seis wnik (SBPRJ), Hemerson Mendes (SPPel),
– E o que fazes quando te assaltam meses de gestão, realizamos os Fóruns Avelino Neto (SPBsb), Fátima Chavarelli
essas dores? Virtuais de Candidatos (regionais), o I (SPMS), Carlos Vieira (SPBsb), Gley Costa
– O que melhor sei fazer, excelência. Fórum Nacional ABC, o I Fórum Psica- (SBPdePA), Susana Kuras (APdeBA) e Adriana
nálise e Política e o ABC Cultural – Arte Rapeli (SBPSP).
– E o que é? e Psicanálise, contando com associados Além das refle-
– É sonhar.” de todo país, reforçando os dois pilares xões psicanalíticas e
Mia Couto
O fio de missangas. de nossa chapa: a representatividade e a campanha Psicaná-
o pertencimento. No dia 20 de junho, lise Solidária, também

E m 01 de janeiro, data em que nosso


grupo assumiu formalmente a Dire-
toria da Associação Brasileira de Candi-
tivemos o início da bem estabelecida
atividade de nosso calendário, o Encontro
Regional, iniciado pela região Sudeste I, o
divulgada nas redes
sociais (ver página 5),
a FEBRAPSI disponi-
datos, trazíamos em cada um de nós o qual teve uma adesão importante, subli- bilizou em seu canal
verdadeiro desejo de realizar um trabalho nhando a força do coletivo em espaços no YouTube video-
fértil, comprometido e que pudesse que promovam o pensar, sobretudo em conferência sobre
seguir promovendo o crescimento de um momento como o que vivemos. atendimento psica- Campanha lançada nas redes sociais
nossa ABC. Praticamente concomitante a Paulinho da Viola, sabiamente, cantou: nalítico on-line, com os psicanalistas Sergio
nós, eclodiu uma pandemia mundial de Faça como um velho marinheiro/ Que Nick (SBPRJ), vice-presidente da IPA; Beth
proporções inéditas, a qual nos convocou durante o nevoeiro/ Leva o barco devagar. Cimenti (SPPA) e Plínio Montagna (SBPSP),
a readaptações intensas e imediatas. E assim, levamos nosso barco ABC, com com coordenação do então presidente da
Na esteira do trecho de Mia Couto, atenção, prudência, dedicação absoluta. FEBRAPSI, Wagner Vidille, e colaboração da
nos pusemos como grupo a (re)sonhar e Sempre avante e juntos! ex-diretora de Publicações e Divulgação,
redefinir rotas. Frustrados com o cancela- Seguimos o trabalho confiantes de Cláudia Carneiro. O debate aborda ideias
mento de nossa já preparada cerimônia dias melhores em que todos estaremos sobre a efetividade da técnica, as implicações
de posse, a qual ocorreria dia 15 de reunidos novamente. Até lá, cuidemo-nos! da análise não presencial e as experiências
março, fortalecemo-nos como Diretoria, Diretoria ABC pessoais dos psicanalistas convidados. Acesse
aqui: https://youtu.be/_ckN-A_PoDs

12  FEBRAPSI NOTÍCIAS [63]


GRAMADO 2021

FEBRAPSI e Sociedades do Sul


fazem lançamento on-line do
28º Congresso Brasileiro de Psicanálise

O 28º Congresso Brasileiro


de Psicanálise será
lançado na sexta-feira 10
de julho, em evento on-line,
com transmissão pelo
Youtube e a participação do
Conselho Diretor interino da
FEBRAPSI e dos presidentes
e diretores científicos das
federadas anfitriãs do
Congresso – Sociedade
Brasileira de Psicanálise de
Porto Alegre (SBPdePA),
Sociedade Psicanalítica
de Porto Alegre (SPPA) e
Sociedade Psicanalítica de
Pelotas (SPPel).

Anteriormente previsto para


ocorrer em 20 de março, em
Porto Alegre, o lançamento
do Congresso teve de ser
cancelado em razão da
pandemia do coronavírus.
A organização manteve a
programação original (veja
abaixo). “Queremos com
esse encontro trocar ideias
e plantar as sementes de
frutos que poderemos colher
no próximo ano”, afirmou a
diretora científica interina da
Inscrições clique aqui FEBRAPSI, Regina Klarmann.
Até a quarta-feira 08/07,
o evento já contava com
400 inscritos. A FEBRAPSI
receberá inscrições até as
10h do dia do evento.

JUNHO| 2020  13

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