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Silo - Tips - Identidade Linguistica Identidade Cultural Uma Relaao Paradoxal
Silo - Tips - Identidade Linguistica Identidade Cultural Uma Relaao Paradoxal
identidade cultural:
uma relação paradoxal
Patrick Charaudeau
Trad. Clebson Luiz de Brito e Wander Emediato de Souza
Alguns problemas
preliminares à questão identitária
Um certo número de problemas aparece quando se pretende abordar a questão
da identidade: quem a julga? Ela é individual ou coletiva? Qual é sua origem? Ela
resulta da natureza ou da cultura?
Quem julga a identidade de alguém? É o olhar do outro sobre si mesmo,
do outro que me julga desta ou daquela maneira? É o olhar de si sobre si mesmo,
como quando eu me avalio diante do espelho ou quando, às vezes, revelo aquilo
que acredito ser? É o meu olhar sobre o outro, quando me ponho a julgá-lo? Em
todo caso, o problema da identidade começa quando alguém fala de mim, o que me
obriga a interrogar-me sobre “quem sou eu?”: aquele que acredito ser, ou aquele que
o outro diz que eu sou? Eu, que me olho, ou eu mesmo através do olhar do outro?
Mas, quando eu me olho, consigo me ver sem um olhar exterior que se interpõe
entre mim e mim mesmo? Não é sempre o outro que me remete a mim mesmo?
A identidade é individual ou coletiva? Questão difícil de resolver, pois todo
indivíduo é um ser social pelo fato de viver em sociedade. Mas esse indivíduo per-
tence a que grupo? A um grupo de referência ideal, imaginado, ao qual ele acredita
(deseja) pertencer, ou a seu grupo de pertencimento real? Pertencemos a apenas um
grupo ou possuiríamos um “multipertencimento” em função de nossa idade, nosso
sexo, nossa profissão, nossa classe social etc.? É verdade que temos dificuldade
em pensar em nós mesmos como pertencendo a uma coletividade. Gostaríamos
de acreditar, sempre, que “eu sou eu, você é você e ele é ele”; vemo-nos sempre
como um ser singular, diferente dos outros, que se recusa a confundir-se com o
grupo, a pensar como os outros membros do grupo, a desaparecer na massa de
Identidade linguística, identidade cultural 15
um problema complexo, pois ela não é apenas um problema do indivíduo, mas tam-
bém dos outros ou, mais exatamente, o problema de si através do olhar dos outros.
De onde vem a identidade cultural? Ela é herdada? Imposta? Ela tem
uma origem? Circula, a esse respeito, a ideia de que a identidade cultural viria
dos primórdios e que seria preciso reencontrá-la: seria um “paraíso perdido” a
reconquistar. Essa ideia é particularmente dominante em nossa época, e talvez
seja uma marca de nossa modernidade. Foi necessário para isso que as guerras se
afastassem em horizontes de tempo e espaço longínquos, que as grandes causas
de lutas sociais entrassem em colapso e que, desaparecendo as referências tradi-
cionais, os elos sociais, inevitavelmente, se afrouxassem. A identidade do grupo,
não podendo mais se construir na ação, nem na perspectiva de um “ser conjunto”
contra um “outro-inimigo”, traz à memória um passado, uma origem para a qual
nos voltamos com nostalgia e que desejamos resgatar.
A partir de então, opera-se um movimento de retorno em direção a essas
origens tanto por parte dos indivíduos, como por parte dos grupos sociais, com
uma vontade mais ou menos evidente (mais ou menos combativa) de reaver esse
paraíso perdido. Essa origem se concretiza, aqui, como um território (a Córsega);
ali, como uma língua (o catalão, o basco); aqui, no ressurgimento de costumes
antigos (o tribalismo na África ou na Índia); ali, como uma etnia que tinha se
misturado e que é preciso purificar (na Sérvia, no País Basco); ou ainda como
releitura dos valores religiosos (os integrismos). É uma espécie de busca de si
mesmo, em nome de uma busca da autenticidade: alcançar sua identidade seria
alcançar a autenticidade do seu ser. Movimento de retrocesso ou de purificação?
A identidade resulta da natureza ou da cultura? É no século XVIII que nasce
essa ideia de que a cultura é como uma “essência” que se fixa nos povos, uma
essência que é expressa pelas obras de arte; daí que cada povo se caracterizaria por
seu gênio. Este seria mais racional na França (é o Século das Luzes e o triunfo da
razão sobre a barbárie), mais irracional na Alemanha (é o século de uma filosofia
anticientífica e o triunfo do romantismo).
No século XIX, essa ideia é reativada, ocorrendo um deslocamento do conceito
de cultura do lugar do conhecimento e da inspiração que produzem as grandes obras
para o do lugar do comportamento dos homens que vivem em sociedade: “O conjunto
dos hábitos adquiridos pelo homem em sociedade”, diz Tylor, em 1871. Ora, se acei-
tamos prontamente que há várias sociedades e, portanto, várias culturas, cada grupo
social é sua própria cultura, da qual ele é herdeiro, contra a qual ele nada pode fazer
(fatalidade), que o sobredetermina e à qual ele adere de modo substancial. É a época
da delimitação dos territórios, da homogeneização das comunidades no interior desses
Identidade linguística, identidade cultural 17
Quanto à “busca de si”, eis outra falsa ideia igualmente perigosa. O que é a
autenticidade de um indivíduo ou de um grupo? O retorno à condição de feto para o
indivíduo, à origem da espécie para o grupo? A busca pela origem não é sempre uma
fantasia? Vamos nos desvencilhar dessas duas noções e estabelecer que “ser eu mesmo”
é, primeiramente, me ver diferente do outro; que, se há uma busca do sujeito, isso é,
antes de mais nada, a busca de não ser o outro. De forma similar, o pertencimento a
um grupo é, em primeiro lugar, o não pertencimento a um outro grupo, e a busca do
grupo, enquanto entidade coletiva, é igualmente a busca do “não outro”. A identidade
é uma questão de construção permanente sobre uma base de história.
Movimento de “atração”
Esse movimento se explica porque há um enigma a ser resolvido. Podería-
mos chamá-lo de “enigma do persa”, pensando em Montesquieu: “como alguém
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Os imaginários socioculturais
Esse encontro de si com o outro se realiza não apenas por meio de ações
que os indivíduos praticam na vida em sociedade, mas também por meio
de seus julgamentos sobre a legitimidade dessas ações, de si e dos outros,
isto é, por meio de suas representações. Essas representações evidenciam
imaginários coletivos que são produzidos pelos indivíduos que vivem em
sociedade, imaginários esses que manifestam, por sua vez, valores por eles
compartilhados, nos quais eles se reconhecem e que constituem sua memória
identitária. Convém, então, estudar esses imaginários para se ter a dimensão
das identidades coletivas, pois eles representam aquilo “em nome do que” tais
identidades se constroem.
São inúmeros os imaginários coletivos, e seu estudo é um vasto domínio que
deveria ocupar o centro das ciências humanas e sociais, nas próximas décadas.
Faremos referência a apenas alguns deles, sem essencializá-los, identificando o
que chamaremos de “traços identitários”. Distinguiremos três tipos de imaginários:
1) os imaginários antropológicos; 2) os imaginários de crença; 3) os imaginários
socioinstitucionais. Vamos a eles:
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* N.T. O autor se refere à publicação, pela revista francesa Charlie Hebdo, de uma caricatura de Maomé na capa
do número de 19/09/2012, época de clima tenso no mundo árabe por causa de um filme anti-Islã produzido nos
Estados Unidos. Sete anos antes, um jornal dinamarquês já havia publicado caricaturas do profeta, gerando
revolta e protestos entre os muçulmanos.
Identidade linguística, identidade cultural 25
é uma ideia que remonta aos tempos em que as línguas começam a ser codificadas sob
a forma de dicionários e, sobretudo, de gramáticas. Na Europa, na Idade Média, come-
çam a florescer gramáticas2 como uma tentativa de unificar povos cujos componentes
regionais e feudais guerreavam entre si. Já no século XIX, sabe-se que a fórmula “uma
língua, um povo, uma nação” contribuiu para a delimitação de territórios nacionais
e, ao mesmo tempo, para o desencadeamento de conflitos relacionados à defesa ou à
apropriação desses territórios, cujo interesse era a criação de uma consciência nacional.
Tal ideia foi defendida com mais ou menos vigor pelas nações, segundo
tivessem conseguido integrar e homogeneizar as diferenças e as especificidades
linguísticas locais e regionais (como na França), ou tivessem encontrado resistên-
cia, criando uma situação linguística fragmentada (como na Espanha ou no Reino
Unido). Esse imaginário da identidade linguística é mantido por dois discursos
que se reforçam mutuamente. Um deles sustenta a ideia de que a língua seria um
dom da mãe natureza que nos seria oferecido desde o nascimento e que constituiria
nosso ser de maneira própria: foi assim que se construiu a simbologia do gênio
de um povo. O outro discurso afirma que esse dom, pelo qual seríamos todos
responsáveis, seria recebido como herança e deveria ser transmitido dessa mesma
forma. É por isso que se continua a dizer que aqui se fala a língua de Molière: lá, a
língua de Shakespeare; lá ainda, a de Goethe, de Dante, ou de Cervantes, quando,
na verdade, são outras línguas que falamos na nossa modernidade.
É evidente que a língua é necessária à constituição de uma identidade coletiva,
que ela garante a coesão social de uma comunidade e que constitui o “cimento” dessa
comunidade, quanto mais presente se faz. É por meio dela que se dá a integração
social e que se forja a simbólica identitária. É igualmente evidente que a língua nos
torna responsáveis pelo passado, com o qual cria uma solidariedade, fazendo com
que nossa identidade seja moldada na história e que, consequentemente, tenhamos
sempre algo a ver com nossa própria filiação por mais longínqua que seja.
Um outro ponto de vista assenta-se sobre a ideia de que a língua não é a totalidade
da cultura. Com efeito, pode-se perguntar se é a língua que tem um papel identitário ou
se é aquilo que chamamos de discurso, isto é, o uso que se faz da língua, por meio do
ato de enunciação que a coloca em funcionamento. Contra uma ideia tão disseminada,
seria necessário dissociar língua e cultura, e associar discurso e cultura.
Se língua e cultura coincidissem, as culturas francesa, quebequense, belga e suíça
seriam idênticas, sob a alegação de que há uma comunidade linguística. O mesmo se
daria com as culturas brasileira e portuguesa, de um lado, e as diferentes culturas de
países de língua espanhola ou inglesa na América e na Europa. Ora, estamos certos de
que nos compreendemos perfeitamente, apesar da existência de uma língua comum?
Identidade linguística, identidade cultural 27
Não são tanto as palavras na sua morfologia nem as regras de sintaxe que são
portadoras de cultura, mas, sim, as maneiras de falar de cada comunidade, as maneiras
de empregar as palavras, os modos de raciocinar, de relatar, de argumentar para fazer
rir, para explicar, para persuadir, para seduzir. É necessário distinguir o pensamento em
francês, em espanhol ou em português do pensamento francês, espanhol, mexicano,
português e brasileiro. Podemos expressar uma forma de pensamento construída em
nossa língua de origem por meio de outra língua, mesmo se esta tem, em contrapartida,
alguma influência sobre esse pensamento; inversamente, uma língua pode veicular
formas de pensamento diferentes. Todos os escritores que se expressaram diretamente
numa língua que não a sua língua materna são uma prova viva disso.
O que ocorre é que o pensamento se concretiza no discurso, e o discurso é a
língua empregada socialmente, segundo os hábitos culturais do grupo ao qual pertence
aquele que fala. A questão pertinente é, pois, a seguinte: troca-se de cultura quando
se troca de língua? A resposta não é simples. Um francês que atravessa a fronteira
espanhola vê, em primeiro lugar, espanhóis, não percebendo qualquer diferença entre
um catalão, um basco, um galego, um castelhano, diferenças que são percebidas entre
eles no interior do território espanhol. Será que um francês que fosse viver no Quebec
poderia dizer que os quebequenses partilham com ele a mesma cultura, apesar de existir
uma comunidade de língua? O que ocorre quando num mesmo território coexistem
vários falares? O que prevalece: comunidades de discurso com línguas diferentes ou
uma comunidade de língua com discursos diferentes?
Responder a essas questões torna-se bem mais difícil quando, em certas
circunstâncias históricas, a identidade linguística como língua se funde com
uma identidade étnica, social ou nacional. Isso se produz a cada vez que uma
comunidade se sente ameaçada e busca reaver uma identidade perdida, como nos
países ou regiões que passaram por uma colonização cultural ou política. Mas é
necessário, de todo modo, que se coloquem tais questões e que não se dê como
adquirido aquilo que é sintoma do estado identitário de um grupo social.
De qualquer forma, isso nos incita a reconhecer que nenhuma língua, em si,
pode pretender à universalidade. Sabe-se, inclusive, que as línguas não desapare-
cem por causa de uma fraqueza inerente a seu sistema, mas por razões políticas,
econômicas e sociais: de um lado, a vontade dos Estados que buscam estender sua
hegemonia (imposição) ou preservar sua integridade (defesa); de outro, a vontade
dos povos de preservar suas diferenças.
Entre essas duas tensões, que jogo de regulação é mais vantajoso aos povos?
Vários casos podem apresentar-se: um bilinguismo coletivo, uma situação de di-
glossia, em lugares onde a história permitiu uma coexistência entre duas línguas,
28 Discurso e (des)igualdade social
Conclusão
É em nome desses imaginários que se criam diversos comunitarismos, de
Estados-Nação, de territórios, de grupos, de etnias, de doutrinas laicas ou religiosas.
Mas o comunitarismo encerra armadilhas: a do aprisionamento dos indivíduos
em categorias, em essências comunitárias, o que os leva a agir e a pensar apenas
em função das etiquetas que carregam sobre a testa; a da dupla exclusão, de si
em relação aos outros e dos outros em relação a si mesmo, o que, às vezes, os
leva a bradar slogans de morte ao outro; a da autossatisfação, que consiste em
se comprazer com sua própria reivindicação e em não mais ver como é o resto do
mundo, o que não pode senão exacerbar as tensões entre comunidades opostas.
Aí reside a origem dos conflitos pela marcação de uma diferença e pela apro-
priação de um território, como se viu nos Bálcãs e como ainda se vê no Oriente
Médio. Inversamente, o imaginário do poder, da eficácia e mesmo da justiça
(estender a igualdade ao maior número de pessoas) leva à extensão, à expansão
e ao agrupamento do maior número, seguindo um processo de homogeneização
uniformizante. É o mundialismo.
Com isso, diante dessas tendências ao comunitarismo estreito ou ao mun-
dialismo do anonimato, é preferível defender a ideia de que uma sociedade se
compõe de múltiplas comunidades que se entrecruzam num mesmo território, ou
se reconhecem a distância. No fundo, todas as sociedades, inclusive as europeias,
são compósitas e tendem a sê-lo cada vez mais: movimentos complexos de migra-
ções e de integrações, de um lado; multiplicação dos comunitarismos, do outro.
É preciso defender a ideia de que a identidade cultural é o resultado complexo
da combinação entre o “continuísmo” das culturas na história e o “diferencialismo”
promovido pelos encontros, conflitos e rupturas; entre a tendência ao universalis-
mo dos valores e a tendência à sua especificidade. A história é feita, já se disse,
de deslocamentos de grupos humanos, de encontros de indivíduos, de grupos, de
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Notas
Ver: o interacionismo simbólico da Escola de Chicago.
1
Não esqueçamos que 1492 foi o ano de publicação da primeira gramática da língua espanhola, de Juan Antonio
2
de Nebrija, que teve como efeito a instituição do castelhano (língua do povo espanhol).
Referências
BAYART, J. -F. L’Illusion identitaire. Paris: Fayard, 1996.
Gruzinski, S. La Pensée métisse. Paris: Fayard, 2001.
TODD, E. Le Destin des immigrés. Paris: Le Seuil, 1994.
WEBER, M. Économie et société. Paris: Plon, 1971.