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A RAINHA DA FRANÇA:
A DESCENDÊNCIA DE LUÍS X:
O REGENTE:
SEU IRMÃO:
SUA ESPOSA:
! JOANA DE BORGONHA, filha do Conde Oto IV
de Borgonha e da Condêssa Mafalda d’Artois,
herdeira do Condado de Borgonha, 23 anos.
SEUS FILHOS:
O RAMO VALOIS:
O RAMO D’EVREUX:
A FAMÍLIA DE BOURGOGNE-DUCHÉ:
OS CONDES DO VIENNOIS:
! O DELFIM João II de la Tour du Pin, cunhado da
Rainha Clemência.
! O DELFINZINHO Guigues, seu filho.
OS CARDEAIS:
OS BARÕES D’ARTOIS:
OS LOMBARDOS:
A FAMÍLIA CRESSAY:
E AINDA:
I
A RAINHA BRANCA
*
Então, falo com o Sr. Guccio Baglione?
**
Sim, monsenhor...
Tolomei, o capitão-general dos lombardos em Paris.
Muito bem, muito bem. Conte-me seu caso.
Tinha-se sentado e brincava maquinalmente com
uma grande estante giratória, em que ficavam os livros de
que se servia em seus trabalhos. Estava agora calmo,
tranqüilo, e disposto a distrair o espírito com os pequenos
problemas alheios.
Guccio Baglioni tinha nas pernas cento e vinte
léguas de cavalgada, percorridas em menos de quatro dias.
Não sentia mais os membros, névoa intensa enchia-lhe a
cabeça e ele teria dado tudo para deitar-se, ali, no chão
mesmo, e dormir... dormir...
Conseguiu dominar-se: sua segurança, seu porvir,
seu amor, tudo exigia que vencesse, por um momento
ainda, a sua fadiga.
— Eis o que se passou, Monsenhor: casei-me com
uma jovem da nobreza — respondeu ele.
Pareceu-lhe que aquelas palavras tinham saído da
boca de outro. Não eram as que ele gostaria de pronunciar.
Desejaria explicar ao cardeal que uma desgraça sem
precedentes tombara sobre ele, que era o homem mais
abatido, mais despedaçado do Universo, que sua vida
estava ameaçada, que fora, talvez, separado para sempre
da mulher sem a qual não poderia viver, que essa mulher
ia ser encerrada, que os acontecimentos tinham desabado
sobre eles havia uma semana, com tamanha violência e tão
inopinadamente, que o tempo parecera ter perdido suas
dimensões habituais e ele mesmo sentia-se como que
ausente do Universo... Ora, todo o seu drama, quando
precisou expô-lo, resumia-se nesta pequena frase:
“Monsenhor, casei-me com uma jovem da nobreza...”
— Ah! Sim — disse o cardeal. — Como se chama
ela?
— Maria de Cressay.
— Cressay... Ah... Não conheço.
— Precisei casar-me secretamente, Monsenhor: a
família opunha-se.
— Porque o senhor é um lombardo? Está claro, eles
ainda estão um tanto atrasados, na França. Na Itália, com
certeza... Bem, quer obter a anulação? Ora! Se o
casamento foi secreto...
— Não, Monsenhor, eu a amo e ela me ama —
disse Guccio. — Mas a família dela descobriu que ela
estava grávida, e os irmãos perseguiram-me, para matar-
me.
— Podem fazê-lo, tem o direito consuetudinário em
seu favor. O senhor colocou-se na situação de sedutor...
Quem vos casou?
— O frei Vicenzo.
— Fra Vicenzo... não conheço.
— O pior, Monsenhor, é que o padre morreu.
Assim, nem mesmo posso provar que somos realmente
casados... Mas não penseis que sou um covarde,
Monsenhor. Gostaria de bater-me. Aconteceu, apenas, que
meu tio dirigiu-se a messire de Bouville...
— ... que, muito sensatamente, o aconselhou a
afastar-se por algum tempo.
— Mas Maria vai ser enclausurada num convento!
Dizei--me, Monsenhor, achais que poderíeis fazê-la sair
de lá? Pensais que tornarei a encontrá-la?
— Ah! Uma coisa de cada vez, meu caro filho —
respondeu o cardeal, continuando a fazer girar a sua
estante. — Um convento? Pois bem, onde poderia ela
estar melhor, por ora?... Tenha esperança na mansuétude
infinita de Deus, da qual todos nós necessitamos tanto...
Guccio baixou a cabeça, com ar esgotado. Seus
cabelos negros estavam cobertos de poeira.
— Seu tio está em boas relações comerciais com os
Bardi? — continuou o cardeal.
— Sem dúvida, Monsenhor, sem dúvida. Os Bardi
são os vossos banqueiros, creio — respondeu Guccio, com
maquinai polidez.
— Sim, são meus banqueiros. Mas acho que,
ultimamente, parecem menos... menos fáceis de lidar do
que no passado. São uma companhia tão grande! Têm
agências em toda a parte. E ao menor pedido, precisam
consultar Florença. Mostram-se tão lentos como um
tribunal da Igreja... Seu tio tem muitos prelados entre seus
clientes?
As preocupações de Guccio estavam bem longe do
banco. A névoa ia adensando-se sobre sua fronte, e suas
pálpebras ardiam.
— Não. Temos, sobretudo, os grandes barões —
disse ele. — O Conde de Valois, o Conde d’Artois...
Ficaríamos grandemente honrados, Monsenhor...
— Falaremos disso mais tarde. No momento, o
senhor estáabrigado neste convento e passará como
homem a meu serviço.
Talvez lhe dêem um trajo de clérigo...
Providenciarei com o meu capelão. Pode despir essa libré
e ir dormir em paz, coisa de que me parece ter grande
necessidade.
Guccio cumprimentou, balbuciou algumas palavras
de gratidão e fêz um movimento na direção da porta.
Depois, detendo-se, disse:
— Não posso ainda despir-me, Monsenhor. Devo
entregar outra mensagem.
— A quem? — perguntou Duèze, imediatamente
desconfiado.
— Ao Conde de Poitiers.
— Confie-me a carta. Mandarei levá-la
imediatamente por um irmão.
— É que, Monsenhor, messire de Bouville fazia
muita questão...
— Sabe se essa mensagem tem algo a ver com o
conclave?
— Oh! Não, Monsenhor! É a propósito da morte do
rei.
O cardeal saltou de sua cadeira.
— O Rei Luís morreu? Mas por que não disse
antes?
— Aqui ainda não o sabiam? Pensei que vos
haviam prevenido, Monsenhor.
Na verdade, ele não pensava coisa alguma. Suas
desgraças, seu cansaço, fizeram-no esquecer aquele
acontecimento capital. Galopara em linha reta desde Paris,
mudando de cavalos nos mosteiros que lhe haviam
indicado, comendo às pressas, falando o menos possível, e
ultrapassara, sem o saber, os mensageiros oficiais.
— De que morreu ele?
— É isso, justamente, que messire de Bouville
deseja comunicar ao Conde de Poitiers.
— Crime? — cochichou Duèze.
— Ao que parece, o rei foi envenenado.
O cardeal refletiu por um instante.
— Eis o que pode mudar bastante as coisas — disse
ele, num murmúrio. — Designaram um regente?
— Não o sei, Monsenhor. Quando saí, falava-se
muito no Conde de Valois...
— Está bem, meu caro filho. Vá repousar...
— Mas, Monsenhor... e o Conde de Poitiers?
Os lábios finos e alongados do prelado esboçaram
sorriso rápido, que poderia passar por uma expressão de
benevolência.
— Não será muito prudente mostrar-se, e além
disso o senhor está caindo de cansaço — disse ele. — Dê-
me essa mensagem: para evitar-lhe qualquer censura, irei,
pessoalmente, levá-la.
Alguns minutos mais tarde, precedido por um
criado com um archote, como exigia sua dignidade, e
seguido de um secretário, o cardeal de cúria saía da abadia
de Ainay, entre o Ródano e Saône, e metia-se pelas ruelas
sombrias, freqüentemente estreitadas pelos amontoados de
imundícies. Magro, franzino, caminhava em passos
saltitantes, levando seus setenta e dois anos quase de
corrida. Seu trajo côr de purpura parecia dançar entre os
muros.
Os sinos das vinte igrejas e dos quarenta e dois
conventos de Lião soavam os primeiros ofícios. As
distâncias eram curtas, naquela cidade que ainda não
contava mais de vinte mil habitantes, dos quais a metade
entregava-se ao comércio da religião e a outra metade à
religião do comércio. O cardeal depressa chegou à
residência do cônsul, na qual estava alojado o Conde de
Poitiers.
III
AS PORTAS DE LIÃO
I
A CHEGADA DO CONDE ROBERTO
I
UMA AMA PARA O REI
*
Punhal usado pelos cavaleiros, e com o qual matavam seus
adversários, quando estes não pediam misericórdia.
minha tarefa e como compreendo a honra que representa
para mim.
Era pouco hábil na dissimulação e não podia deixar
de olhar meio de lado para Mafalda, baixando
imediatamente os olhos.
“Positivamente, todos e cada um suspeitam e
desconfiam de mim”, pensou a condêssa.
Joana de Poitiers fingia nada perceber. Gaucher de
Châtillon, que estava fora do assunto, rompeu o
constrangimento, dizendo:
— Vamos, Bouville, não nos deixeis gelar aqui.
Entremos, pois.
Foram para junto da cabeceira da rainha, e as
notícias dadas pela Senhora de Bouville foram bastante
alarmantes: a febre continuava a devorar a doente, que se
queixava de atrozes dores de cabeça, e era a todo o
momento sacudida pelas náuseas.
— Seu ventre recomeça a estufar, como se ainda
não tivesse dado à luz — explicou Madame de Bouville.
— Não consegue dormir, suplica que mandem parar os
sinos que lhe soam nos ouvidos, e fala-nos sem parar,
como se não se dirigisse a nós, mas a sua avó, Madame de
Hungria, ou ao Rei Luís, seu falecido esposo. É uma
lástima ouvi-la perder assim a razão, sem conseguir que se
cale.
Vinte anos de ofício de camareiro junto a Filipe, o
Belo, tinham dado ao Conde de Bouville longa
experiência das cerimônias reais. Quantos batismos já não
tinha organizado?
Os objetos rituais foram trazidos aos presentes.
Bouville e os dois gentis-homens da guarda prenderam ao
pescoço compridas toalhas brancas, cujas pontas
mantinham estendidas diante de si para cobrir, um, a bacia
cheia de água benta, outro, a bacia vazia e, o terceiro, a
taça que continha o sal.
A parteira que trouxera a criança ao mundo tomou
a coifa de batismo com que se cobriria a cabeça da criança
depois da unção.
Depois, adiantou-se a ama, trazendo ao colo o rei.
“Oh! Que bela moça!”, pensou o condestável.
A Senhora de Bouville tinha encontrado para Maria
um vestido de veludo rosa, com um pouco de pele na gola
e nos punhos, e fizera a jovem ensaiar longamente os
gestos que teria de fazer. O bebê estava enrolado num
manto duas vezes maior do que ele próprio, sobre o qual
tinham pousado um véu de seda violeta, que tombava até
o chão como uma cauda.
Dirigiram-se todos para a capela do castelo.
Escudeiros abriam a marcha, levando círios acesos. O
senescal de Joinville vinha por último, amparado e ainda
assim cambaleante. Apesar disso, saíra um pouco de seu
torpor habitual, pois o recém--nascido chamava-se João,
como ele próprio.
A capela estava forrada com tapeçarias e a pedra da
pia batismal fora ornamentada com veludo violeta. Ao
lado, encontrava-se uma mesa onde tinham colocado um
forro de menu-vair recoberto com uma toalha fina. Sobre a
toalha, almofadas de seda. Algumas estufas com brasas
não bastavam para dissipar a úmida friagem.
Maria depôs a criança sobre a mesa, para despi-la.
Atenta, a fim de não errar, tinha o coração batendo e mal
conseguia distinguir os rostos em torno dela, de tal forma
sentia-se emocionada. Jamais imaginara que ela, moça
expulsa da casa de sua família, seria indicada para
representar papel tão importante no batismo de um rei,
entre o regente da França e a Condêssa d’Artois.
Deslumbrada pela modificação da sorte, estava agora
cheia de gratidão pela Senhora de Bouville, e já lhe pedira
desculpas pela insubmissão da véspera.
Desenrolando as faixas, ouviu o condestável
perguntar qual era o seu nome e de onde vinha: sentiu-se
corar.
O capelão da rainha soprara quatro vezes sobre o
corpo do recém-nascido, como nos quatro braços de uma
cruz, para tirar dele o demônio, pela virtude do Espírito
Santo. Depois, cuspindo sobre o próprio dedo indicador,
passara-lhe a saliva nas narinas e nas orelhas, para
significar que ele não devia ouvir as vozes do diabo, nem
respirar as tentações do mundo e da carne.
Filipe e Mafalda levantaram o reizinho, um pelas
pernas e a outra pelos ombros. O regente, com seus olhos
míopes, observava com insistência o minúsculo sexo da
criança, aquele verme rosado que punha por terra toda a
sua inteligente combinação sucessória, aquele símbolo
irrisório da lei dos varões, aquele ínfimo e intransponível
obstáculo entre ele a coroa.
“Seja como fôr”, pensava Filipe, para consolar-se,
“serei regente durante quinze anos. Em quinze anos
muitas coisas podem acontecer: eu próprio estarei vivo,
dentro de quinze anos? E esta criança viverá até então?”
Mas regência não é realeza.
A criança conservara-se bastante calma e mesmo
sonolenta, durante os ritos preliminares. Não fêz ouvir sua
voz senão quando o mergulharam inteiramente na água...
Nessa ocasião, porém berrou francamente, quase
sufocando, e suas lágrimas misturaram-se à água do
batismo. Por três vezes, enquanto os outros padrinhos e
madrinhas, Gaucher, Joana, os Bouville, o senescal,
estendiam suas mãos sobre o pequeno corpo nu, foi
mergulhado, a princípio com a cabeça voltada para o
oriente, depois para o norte, depois para o sul, a fim de
representar o desenho da Cruz (27).
Saindo do banho glacial, a criança acalmou-se e
aceitou pacificamente o Santo Crisma com que lhe
ungiram a fronte. Colocaram-no sobre as almofadas, e
Maria de Cressay começou a secá-lo, enquanto os
presentes juntavam-se mais perto da estufa cheia de
brasas.
Subitamente, a voz de Maria de Cressay encheu a
capela:
— Senhor! Senhor! Êle está morrendo! — gritou
ela.
Todos se atiraram para a mesa. O rei-bebê tinha
tomado uma coloração azulada, que escurecia de instante
a instante, chegando quase a tornar-se negro. Tinha o
corpo rígido, os braços crispados, a cabeça torcida, e os
olhos revirados mostravam apenas a esclerótica.
Mão invisível sufocava aquela vida sem
consciência, rodeada pelos círios vacilantes e pelas frontes
ansiosamente inclinadas.
Mafalda ouviu uma voz murmurar:
— Foi ela.
Levantou os olhos e encontrou os do casal de
Bouville.
“Quem terá dado o golpe, para me acusar?”,
perguntou a si própria.
Entrementes, a parteira tirara a criança das mãos
trêmulas de Maria e esforçava-se para reanimá-la.
— Não é certo que vá morrer, não é certo — disse.
O recém-nascido conservou-se assim rígido,
esticado e escuro, por perto de dois minutos que
pareceram infinitos. Depois, bruscamente, foi sacudido
por convulsões violentas, projetando a cabeça em todos os
sentidos. Os membros retorciam--se e jamais seria
possível acreditar que tal força pudesse percorrer corpo
tão franzino. O capelão persignou-se, como se estivesse
em presença de manifestação diabólica, e começou a
recitar a oração dos agonizantes. A criança careteava,
babava: seu aspecto enegrecido desaparecera, para dar
lugar a uma palidez gelada, não menos assustadora. Por
um momento pareceu acalmar-se, urinou no vestido da
parteira, e pensaram que estivesse salva. Depois,
imediatamente, a cabeça dela tombou. Ficou mole, inerte,
e dessa vez todos julgaram, realmente, que tivesse
morrido.
— Estava justamente no momento de ser
batizado,— disse o condestável.
Filipe de Poitiers tirava de suas mãos as gotas
quentes, tombadas dos círios.
Subitamente, o pequeno cadáver agitou os pés,
soltou uns gritos, fracos ainda mas quase alegres, e seus
lábios animaram-se como um movimento de sucção. O rei
estava vivo e queria mamar.
— O demônio debateu-se bem, antes de lhe sair do
corpo — disse o capelão.
— Não é freqüente — disse a parteira — que as
convulsões tomem uma criança assim tão cedo. Isso foi
porque nasceu com a ajuda de ferro: é coisa que acontece,
às vezes. Depois, faltou-lhe o leite da ama durante muitas
horas...
Maria de Cressay sentiu-se culpada. “Se em lugar
de discutir com a Senhora de Bouville eu tivesse vindo
imediatamente ...”, pensou a moça.
Ninguém, evidentemente, procuraria a razão
daquilo na imersão em água fria, nem faria alusão à boa
hereditariedade da família, aos capengas, aos dementes,
aos epilépticos que floresciam naquela gloriosa árvore.
As razões apresentadas pela parteira e,
particularmente, a pressão exercida pelos fórceps sobre o
cérebro da criança eram, aliás, suficientes.
— Acha que ele poderá sofrer outros ataques? —
perguntou Mafalda.
— É muito de temer, Madame — respondeu a
parteira. •—-Nunca se sabe quando vai vir esse mal, nem
como termina.
— Pobre pequeno! — falou Mafalda, em voz bem
alta.
Levaram o rei ao castelo e separaram-se sem
alegria.
Filipe de -Poitiers não descerrou os lábios durante
todo o caminho da volta. Chegando a Paris, deixou sua
sogra segui-lo e fechar-se com ele.
— Por pouco, ainda agora, serieis rei, meu filho —
disse-lhe ela.
Filipe não respondeu.
— Na verdade, depois do que vimos, ninguém irá
espantar-se se aquela criança morrer por estes dias —
continuou.
O regente continuava a calar-se.
— Se ele viesse a desaparecer, serieis, todavia,
obrigado a esperar a maioridade de Joana de Navarra.
— Ah, não, minha mãe. Ah, não! — respondeu
viva mente Filipe. — Não mais estamos ligados, de agora
em diante, pelo regulamento de julho. A sucessão de Luís
está fechada.
Será a do pequeno João que se abrirá, então. Entre
meu irmão e mim terá havido um rei, e eu serei o herdeiro
de meu sobrinho.
Mafalda olhou para ele com admiração: “Êle
maquinou isto durante o batismo!”
— Sempre sonhastes ser rei, Filipe, confessai-o —
disse ela. — Quando éreis criança, já cortáveis galhos para
fabricar cetros!
Êle levantou um pouco a cabeça e sorriu para a
sogra, deixando que se passasse um momento de silêncio.
Depois, tornando a mostrar-se grave:
— Já sabeis, minha mãe, que a dama de Fériennes
desapareceu de Arras, e também os homens que eu tinha
enviado para raptá-la e pô-la em condições de não poder
falar? Ao que parece, ela deve estar sendo mantida em
segredo em qualquer dos castelos de Artois, e dizem que
os vossos barões, naquela região, gabam-se disso.
Mafalda pôs-se a imaginar o que significaria tal
advertência. Quereria Filipe apenas preveni-la dos perigos
que corria? Ou provar-lhe que cuidava dela? Seria uma
forma de confirmar a proibição que lhe fizera de recorrer
ao veneno? Ou, pelo contrário, fazendo alusão à
fornecedora, dava-lhe a entender que ela podia considerar-
se com as mãos livres?
— Novas convulsões poderiam bem levá-lo —
insistiu Mafalda.
— Deixemos Deus agir, minha mãe, deixemos
Deus agir — disse Filipe, finalizando a conversa.
“Deixar Deus agir... ou deixar-me agir?”, pensou a
Condêssa d’Artois. “Êle é prudente, a ponto de evitar
enodoar a alma, mas compreendeu muito bem... Aquele
grande idiota do Bouville é que me vai dar mais trabalho.”
Desde aquele momento a imaginação dela começou
a movimentar-se. Mafalda tinha um crime em perspectiva,
e o fato de ser a futura vítima um recém-nascido não
deixava de excitar-lhe o espírito, tanto quanto se se
tratasse do mais feroz adversário.
Começou uma campanha cuidadosa, pérfida. O rei
não nascera viável, dizia a toda a gente, descrevendo, com
lágrimas nos olhos, a cena penosa do batismo.
— Pensamos que tivesse morrido ali mesmo, diante
de nós, e bem pouco faltou para isso. Perguntei ao
condestável, que estava presente, como eu: nunca vi
messire Gaucher que, afinal, é tão corajoso, tão forte,
empalidecer tanto... Todos, aliás, poderão julgar quanto é
fraco o reizinho, quando ele for apresentado aos barões,
como manda o costume. Nem mesmo sabemos se já não
estará morto e se escondem de nós o fato.
Essa apresentação já está tardando muito, sem que
nos dêem uma razão para a demora. Messire de Bouville,
ao que parece, opõe-se ao ato, porque a infeliz rainha...
Deus a proteja!... estaria passando cada vez pior. Mas,
enfim, a rainha não é o rei!
Os familiares de Mafalda, como seu primo
Henrique de Sully e seu chanceler Teodorico d’Hirson,
ajudavam a espalhar suas palavras.
Os barões começaram a alarmar-se. Com efeito, por
que adiavam assim a apresentação solene? O batismo às
escondidas, as pretensas recusas de Bouville, o silêncio
impenetrável mantida em torno de Vincennes, tudo estava
rodeado pelo mistério.
Rumores contraditórios circulavam. O rei estava
enfermo e não queriam mostrá-lo. O Conde de Valois
fizera raptar e levar secretamente a criança real para
Nápoles, a fim de colocá-la em segurança. A rainha não
estava doente, tinha voltado para sua pátria.
— Se ele morreu, que no-lo digam — murmuravam
alguns.
— O regente fêz com que desaparecesse! —
asseguravam outros.
— Que dizeis? O regente não é capaz de uma coisa
dessas.
Mas ele desconfia de Valois.
— Não é o regente. É Mafalda. Ela prepara seu
golpe e talvez mesmo já o tenha dado. Repete demais que
o rei não pode viver!
Enquanto os maus ventos sopravam outra vez sobre
a corte, enquanto todos se enervavam em conjeturas
odiosas, em suspeitas de infâmias, com as quais cada um
sentia-se enlameado, o regente conservava-se
impenetrável. Absorvia-se na administração do reino, e se
lhe vinham falar em seu sobrinho, respondia falando de
Flandres, Artois ou da arrecadação dos impostos.
Na manhã do dia 19 de novembro, crescendo a
irritação, numerosos barões e advogados do Parlamento
vieram em delegação procurar Filipe, pedindo-lhe com
vigor, admoestando-o quase, a fim de que consentisse na
apresentação do rei. Os que esperavam resposta negativa
ou dilatória já tinham um clarão mau nos olhos.
— Mas eu desejo, Monsenhores, desejo tanto
quanto vós essa apresentação — disse o regente. — Fazem
oposição até a mim mesmo: é o Conde de Bouville que se
recusa ao ato.
Depois, voltando-se para Carlos de Valois, que
voltara na antevéspera de seu condado do Maine, onde
refizera suas finanças, perguntou-lhe :
— Sois vós, meu tio, pelos interesses de vossa
sobrinha a Rainha Clemência, quem impede Bouville de
nos mostrar o rei?
O ex-imperador de Constantinopla, não
compreendendo de onde lhe vinha aquela arremetida,
ficou rubro e exclamou:
— Mas, por Deus misericordioso, meu sobrinho,
onde fôstes buscar semelhante coisa? Jamais pedi nem
desejei tal atitude!
Nem mesmo vi Bouville, nem dele recebo recados
há várias semanas. E voltei a Paris de propósito para essa
apresentação.
Gostaria, muito ao contrário, que a fizessem e que
voltassem a agir segundo os costumes de nossos pais,
coisa que está custando muito.
— Então, Monsenhores — disse o regente —
somos todos do mesmo conselho e da mesma vontade...
Gaucher! Vós, que estivestes presente ao nascimento de
meu irmão... é a madrinha quem deve apresentar a criança
real aos barões?
— Sem dúvida, sem dúvida, é a madrinha —
respondeu Valois, agastado por terem feito apelo a outra
competência sobre um ponto do cerimonial. — Eu estive
em todas as apresentações, Filipe: na vossa, que foi
pequena, pois éreis o segundo, como na de Luís e em
seguida na de Carlos. E meus filhos também foram
apresentados, por causa das minhas coroas. Sempre a
madrinha.
— Então — disse o regente — vou mandar dizer
imediatamente à Condêssa Mafalda que deve assumir a
seguir essa responsabilidade e dar ordem a Bouville para
nos abrir Vincennes.
Montaremos a cavalo ao meio-dia.
Para Mafalda, era a ocasião esperada. Não quis
senão Beatriz para vesti-la, e colocou uma coroa na
cabeça. O assassínio de um rei valia bem aquilo.
— Quanto tempo achas que o pó levará para fazer
efeito numa criança de cinco dias?
— Isso eu não sei, Madame — respondeu a
primeira donzela. — Sobre os cervos de vossos bosques o
resultado produziu-se numa noite. O Rei Luís resistiu
perto de três dias...
— Terei sempre, como recurso — disse Mafalda —
aquela ama que vi outro dia, bela moça, na verdade, mas
que se ignora de onde vem e que ninguém sabe quem
colocou lá. Os Bouville, sem dúvida...
— Compreendo-vos, Madame — disse Beatriz
sorrindo.
— Se a morte não parecer natural, poder-se-ia
acusar essa moça e esquartejá-la.
— Minha relíquia, minha relíquia — disse Mafalda
inquieta, apalpando o próprio peito. — Ah! sim está aqui,
graças a Deus.
Quando saía do quarto, Beatriz murmurou-lhe:
— Cuidado, Madame, não vos assoeis, por
distração.
III
AS ASTÚCIAS DE BOUVILLE
*
Pequena moeda de cobre da época. 218
Tolomei abriu seu olho esquerdo, pois tinha um
pouco de bruma sobre aquela pálpebra.
— Talvez tenhas razão — disse. — O desgosto
passará mais depressa, quando estiveres longe. Mas nada
deves lamentar, Guccio. O aprendizado que fizeste não foi
mau. Viveste, correste pelos caminhos, conheceste as
misérias dos pequenos e descobriste as fraquezas dos
grandes. Estiveste junto das quatro cortes que dominam a
Europa, as de Paris, Londres, Nápoles e Avinhão. Ficar
encerrado num conclave foi coisa que não aconteceu a
muita gente! Fizeste boa carreira nos negócios. Dar-te-ei
tua parte, e a soma é bem agradável. O amor levou-te a
fazer algumas tolices e deixas um bastardo no caminho,
como alguém que tenha viajado muito... E não tens mais
de vinte anos. Quando desejas partir?
— Amanhã, zio Spinello, amanhã, se não te
opuseres... Mas voltarei! — acrescentou Guccio, em tom
furioso.
— Oh! Eu espero que sim, meu rapaz! Espero que
não vás deixar que o teu velho tio morra sem te rever!
— Voltarei, um dia, e raptarei meu filho. Pois é
meu, afinal, tanto quanto dos Cressay! Por que haveria eu
de deixá-lo para eles? Para que o criem em sua cavalariça,
como a um cão de má raça? Eu o raptarei, estás ouvindo?
E esse será o castigo de Maria. Sabes o que se diz em
nossa terra: vingança de toscano...
Um grande estrépito, vindo do rés-do-chão,
interrompeu-o. A casa de vigas de madeira tremia sobre
seus fundamentos como se doze carros grandes de
transporte tivessem entrado no pátio. Portas batiam.
O tio e o sobrinho dirigiram-se para a escada de
caracol, que já ia sendo tomada por um ruído de assalto de
guerra. Uma voz tonitroou :
— Banqueiro! Onde estás, banqueiro? Preciso de
dinheiro.
E Monsenhor Roberto d’Artois apareceu no alto
dos degraus.
— Olha bem para mim, banqueiro meu amigo: saio
neste momento da prisão! — exclamou. — Acreditarias
numa coisa destas? Meu primo, o doce, o melífluo, o
zarolho... quero dizer, o rei, pois, ao que parece, ele o é...
lembrou-se, enfim, que eu estava apodrecendo na prisão
onde me atirara, e de volve-me ao ar livre, o amável
rapaz!
— Sede bem-vindo, Monsenhor — disse Tolomei
sem entusiasmo.
E inclinou-se sobre a escada, duvidando ainda que
tal passagem de furacão pudesse ser obra de um só
homem.
Baixando a cabeça para não esbarrar no lintel da
porta, o Conde d’Artois entrou no gabinete do banqueiro e
caminhou diretamente para um espelho.
— Olá! Mas estou com cara de defunto! — disse
ele, tomando as faces com ambas as mãos. — Para dizer a
verdade, com muito menos qualquer um enfraqueceria.
Sete semanas, imagina, sem ver a luz do dia senão por
uma trapeira recoberta com ferros cruzados, grossos como
o membro de um burro! Duas vezes por dia üma chanfana
que já produzia eólicas, antes de ser comida. Por
felicidade, meu Lormet arranjava-se para passar-me pratos
à moda dele, senão a esta hora eu não estaria vivo. E uma
cama... nem falemos! Em consideração pelo meu sangue
real, tinham-me feito a gentileza de uma cama. Tive que
partir-lhe a guarda para poder esticar os pés! Paciência:
tudo isso será levado à conta de meu caro primo.
Na verdade, Roberto não emagrecera uma onça
sequer, e a reclusão pouca diferença fizera à sua sólida
natureza. Se sua carnação mostrava-se menos viva, em
compensação seus olhos cinzentos, côr de sílex, brilhavam
mais maldosamente do que outrora.
— Bela liberdade, a que me dão! “Estais livre,
Monsenhor” — continuou o gigante, imitando o capitão
do Châtelet.
— “Mas... não podeis afastar-vos mais de vinte
léguas de Paris; mas os aguazis do rei devem saber onde
morais; mas a capitania d’Evreux, se fordes até vossas
terras, deve ser advertida.” Em outras palavras: “Fica aqui,
Roberto, batendo as ruas sob os olhos da patrulha, ou
então vai mofar em Conches.
Mas nem um pé em direção de Artois, nem um pé
em direção de Reims! Não querem saber de ti na sagração,
principalmente na sagração! Bem poderias cantar ali
algum salmo que não agradaria a todos os ouvidos!” E
escolheram bem o dia, para relaxar a minha prisão. Nem
muito cedo, nem muito tarde.
Toda a corte partiu: não há ninguém no Palácio,
não há ninguém em casa de Valois... Êle abandonou-me, o
primo!
E aqui estou, numa cidade morta, sem um liard na
bolsa para cear hoje e para encontrar alguma rapariga com
a qual expandir meu apetite amoroso! Porque há sete
semanas, compreendes, banqueiro... não, tu não podes
compreender. Isso é coisa que não deve incomodar-te
mais. Repara, repara bem: eu me refocilara bastante em
Artois, enquanto ali estive, para manter-me calmo durante
algum tempo. E por lá deve estar em andamento um bom
número de criadinhos que jamais virão a saber que
poderiam dizer “vovô”, falando de Filipe-Augusto.
Constatei, porém, uma coisa estranha, sobre a qual os
doutores e filósofos deveriam meditar; por que há nos
homens um membro que, quanto mais trabalho se lhe dá,
mais trabalho ele reclama?
Deu uma gargalhada, fêz estalar uma cadeira de
carvalho, sentando-se nela, e, subitamente, pareceu reparar
na presença de Guccio.
— E vós, meu lindinho, como vão os vossos
amores? — perguntou, o que, em sua boca, significava
apenas “bom dia”.
— Meus amores! Falemos deles, Monsenhor! —
disse Guccio, descontente ao verificar que uma violência
maior do que a dele o havia interrompido.
Tolomei, com uma careta, fêz sinal ao Conde
d’Artois, prevenindo que o assunto não era muito
propositado, no momento.
— Então — disse d’Artois, com sua habitual
delicadeza — uma bela vos deixou? Dai-me logo o
endereço dela, que eu correrei até lá! Vamos, não tomeis
esse ar triste. As mulheres são todas umas dissolutas.
— Sem dúvida, Monsenhor. Todas!
— Então! Folguemos, pelo menos, com as que o
são francamente! Banqueiro, preciso de dinheiro. Cem
libras. E levo teu sobrinho a cear comigo, para lhe tirar da
cabeça as idéias negras. Cem libras!... Sim, eu sei, eu sei,
já vos devo muito, e estais pensando que nunca chegarei a
pagar-vos. Estais enganado. Muito em breve vereis
Roberto d’Artois mais pode roso do que nunca. O Filipe
pode bem enterrar a coroa até o nariz, porque eu não
demorarei a fazer com que ela lhe salte da cabeça. Porque
vou contar-te uma coisa que vale mais de cem libras, e que
te servirá para teres cuidado com as pessoas às quais
emprestas dinheiro... Qual é o castigo dos regicidas?
Enforcamento, degolação ou esquartejamento? Assistireis,
bem depressa, a um espetáculo agradável: minha gorda tia
Mafalda, nua como uma prostituta, estirada por quatro
cavalos, e suas tripas rolando na poeira. E seu genro,
aquele texugo, estará com ela! É pena que não o possamos
supliciar duas vezes. Porque mataram dois, os celerados.
Eu nada disse enquanto estava no Châtelet, para que não
viessem, uma bela noite, sangrar-me como a um porco.
Mas pude manter-me ao corrente do que se passava.
Lormet... sempre o meu Lormet, aquele excelente homem!
Ouvi-me!
Depois de sete semanas de mutismo forçado, aquele
terrível falador compensava-se, e só retomava o fôlego
para falar ainda mais.
— Ouvi-me bem — continuou. — Um: Luís
confisca a Mafalda o condado de Artois, para devolver-
mo, e, imediata mente, Mafalda manda envenená-lo. Dois:
Mafalda, para ficar a coberto, impele Filipe para a
regência, contra Valois, porque este último teria mantido o
meu direito. Terceiro: Filipe consegue que aceitem seu
regulamento de sucessão, que exclui as mulheres da coroa
da França, mas não da herança dos feudos, vede bem!
Quatro: confirmado regente, Filipe* pode convocar a
hoste que me desalojaria de Artois, quando eu já estava
quase a reavê-lo inteiramente. Não sendo tolo, vim render-
me sozinho. Mas a Rainha Clemência vai dar à luz, é
preciso que tenham as mãos livres, e encarceram-me.
Cinco: a rainha dá à luz um filho. Leve pecado! Fecham
Vincennes, escondem a criança aos barões, conta-se que
ela não é viável, entram em conchavo com alguma parteira
ou ama, pelo pavor ou pelo suborno, e matam o segundo
rei. Depois do que, vão fazer-se sagrar em Reims. Eis,
meus amigos, como se obtém uma coroa. Tudo isso para
não me devolverem meu condado de Artois.
À palavra “ama”, Tolomei e Guccio haviam
trocado um breve olhar de inquietação.
— São coisas que toda a gente pensa — acabou
d’Artois — mas que ninguém ousa reclamar, pela falta de
provas. Acontece, porém, que eu tenho a prova! Vou
apresentar, agora, certa dama que forneceu o veneno.
Depois, será preciso fazer cantar um bocadinho, nos
borzeguins de madeira, aquela Beatriz d’Hirson, que
serviu de alcoviteira do diabo nesse belo jogo. É tempo de
pôr fim a ele, senão todos seremos atingidos.
— Cinqüenta libras, Monsenhor. Posso dar-vos
apenas cinqüenta libras.
— Avarento!
— É tudo o que sou.
— Seja. Ficas devendo-me, portanto, as outras
cinqüenta libras. Mafalda há de pagar-te tudo isso, com
juros.
— Guccio — disse, então, Tolomei — vem ajudar-
me a contar cinqüenta libras para Monsenhor.
E retirou-se, com seu sobrinho, para o aposento
vizinho.
— Meu tio — murmurou Guccio — acreditas que
haja alguma verdade no que ele acaba de dizer?
— Não sei, meu rapaz, não sei, mas acho que tens,
com toda a certeza, muita razão em querer partir. Não é
bom estar misturado demais com esse negócio, que cheira
mal. As maneiras estranhas de Bouville, a súbita fuga de
Maria... Sem dúvida, não se pode levar em conta todas as
agitações desse furioso, mas reparei, muitas vezes, que ele
não passava jamais muito longe da verdade, quando se
tratava de maldades: é mestre no assunto, e sente-lhe o
cheiro à distância. Recorda o adultério das princesas: fêz
com que fosse descoberto e já nos tinha prevenido. Tua
Maria... — disse o banqueiro, balançando sua mão gorda
num gesto de dúvida — talvez seja menos ingênua e
menos franca do que tínhamos julgado. Há nisso tudo,
sem dúvida, algum mistério.
— Depois de sua carta de traição, tudo se pode crer
— falou Guccio, cujo pensamento extraviava-se em vinte
direções diferentes.
—-Não creias em nada, não procures nada: parte. É
um bom conselho.
Quando Monsenhor d’Artois viu-se de posse das
cinqüenta libras, insistiu para que Guccio tomasse parte na
pequena festa com que contava festejar sua libertação.
Precisava de um companheiro, e preferiria embebedar-se
com seu cavalo a ficar só.
Pôs tanta insistência naquilo, que Tolomei acabou
por cochichar ao sobrinho:
— Vai, senão ele ficará ofendido conosco. Reprime
tua língua, porém.
Guccio terminou, pois, o dia exaspérante numa
taverna, cujo proprietário pagava tributo aos oficiais da
patrulha para que o deixassem fazer um pouco de tráfico
de lupanar. Tudo quanto ali se dizia, aliás, era repetida
pelos aguazis.
Monsenhor d’Artois apresentou em suas melbortes
disposições, insaciável no pichei de vinho, prodigioso de
apetite, vociferando, desbocado, transbordante de ternura
humana para com seu jovem companheiro, e erguendo as
saias das raparigas para mostrar a todos o verdadeiro rosto
de sua tia Ma-falda.
Guccio, estimulado com aquilo, não resistiu muito
ao vinho. Os olhos brilhantes, os cabelos em desordem, e
o gesto hesitante, gritava :
— Também eu sei coisas... Ah! Se eu quisesse
falar...
— Fala, fala, pois!
— O papa... — disse ele. — Sei muito sobre o
papa.
Subitamente, começou a chorar, verdadeiro rio,
sobre o ombro de uma prostituta; depois, esbofeteou-a,
porque via nela a imagem da traição feminina.
— Mas eu voltarei... e hei de raptar-lho!
— A quem? Ao papa?
— Não, o seu filho!
A noitada ia fazendo-se confusa, os olhares
vacilavam, as raparigas fornecidas pelo dono do lupanar já
quase não tinham roupa sobre a pele, quando Lormet
aproximou-se de Roberto d’Artois, para dizer-lhe ao
ouvido:
— Lá fora há um homem que vos espia.
— Mata-o! — respondeu negligentemente o
gigante.
— Está bem, Monsenhor.
Assim a Senhora de Bouville perdeu um de seus
criados, que pusera no rasto do jovem italiano.
Guccio jamais saberia que Maria, com o seu
sacrifício, poupara-lhe, certamente, terminar seus dias de
ventre para o ar, sobre a corrente do Sena.
Chafurdado num leito duvidoso, sobre os seios da
rapariga que esbofeteara, e que se mostrava compreensiva
em relação aos desgostos do homem, Guccio continuava a
insultar Maria, e imaginava vingar-se dela, magoando uma
carne mercenária.
— Tens razão! Eu também não gosto das mulheres,
são todas umas mentirosas — dizia a prostituta, de cujos
traços Guccio jamais se recordaria.
No dia seguinte, o chapéu enterrado até os olhos, os
membros fatigados e a alma e o corpo igualmente
enojados, Guccio tomava o caminho da Itália. Levava bem
agradável fortuna, sob a forma de uma cambial assinada
por seu tio, e que representava sua parte nos lucros dos
negócios de que tratara naqueles últimos dois anos.
No mesmo dia, o Rei Filipe V e sua esposa Joana,
bem como a Condêssa Mafalda, com todo o seu trem de
casa, chegavam a Reims.
As portas do solar de Cressay já se haviam fechado
sobre a bela Maria, que ali vivia, inconsolável, em
perpétuo inverno.
O verdadeiro rei de França iria crescer ali, como
um bastardozinho. Daria seus primeiros passos no pátio
lamacento, entre os patos, rolaria pelos prados de íris
amarelos, ao longo do Mauldre, naquele prado em que
Maria, cada vez que por ele caminhasse, encontraria o
rosto de seu sedutor sienense e a passagem fugaz de seus
amores mortos. Manteria o juramento, e durante trinta
anos guardaria seu segredo, para confiá-lo, enfim, em seu
leito de morte, a um religioso espanhol que por ali viria a
passar.
Maria de Cressay viera marcada por estranho
destino. Amorosa condenada à solidão, e que em toda sua
vida só deixaria seu lugarejo natal a fim de ser empurrada,
inocente, impotente, para o núcleo de um drama dinástico,
sua confissão, um dia, perturbaria a Europa*.
*
A história dessa confissão, e a vida dramática do filho de
Clemência da Hungria, serão objeto de um. dos volumes da
segunda época dos REIS MALDITOS: “O Lis e o Leão”.
IX
A VÉSPERA DA SAGRAÇÃO
*
Leito onde ficava exposto o corpo do rei morto, usado
também para a cerimônia da sagração.
— Dispondes de bem pouco tempo, Sire... — fêz
notar o camareiro.
O rei, com um bater de pálpebras, assegurou-lhe
que a conversa não duraria muito.
O belo Carlos de La Manche usava um trajo de
viagem. Acabava de chegar a Reims e só havia parado um
momento para falar com seu tio Valois. Em seu rosto e em
seus passos havia cólera.
Por muito irritado que estivesse, a visão de seu
irmão, revestido de purpura e assim estendido em atitude
hierática, impôs-se-lhe. Fêz uma pausa, os olhos
arregalados.
“Como ele gostaria de estar em meu lugar!”,
pensou Filipe. Depois, em voz alta:
— Então aqui estais, meu irmão. Agradeço-vos por
terdes compreendido vosso dever e por tornardes
mentirosas as más línguas, pois elas sustentavam que
estaríeis ausente na cerimônia da minha sagração.
Agradeço-vos. Agora, correi a vestir-vos, porque não
podeis aparecer assim. Chegareis atrasado.
— Meu irmão — disse La Marche — antes preciso
conversar convosco sobre coisas importantes.
— Coisas importantes ou coisas que vos importam?
O importante, neste momento, é não deixar que o clero
espere.
Dentro de alguns instantes os bispos virão buscar-
me.
— Pois bem, terão um pouco de paciência! —
exclamou Carlos. — Cada um por sua vez encontra vossos
ouvidos para ouvi-lo, e disso tira proveito. Só a mim
pareceis não levar em conta: desta vez haveis de ouvir-me.
— Então, conversemos, Carlos — disse Filipe,
sentando-se à beira do leito. — Mas quero prevenir-vos
que teremos de ser breves.
La Marche teve um movimento de cabeça que
queria dizer: “Veremos, veremos”. Sentou-se, esforçando-
se por estufar o peito e manter o queixo erguido.
“Esse pobre Carlos”, pensava Filipe, “quer imitar
as atitudes de nosso tio Valois, mas não tem a sua
envergadura”.
— Filipe — recomeçou La Marche — eu vos pedi,
por muitas vezes, que me désseis o pariato, e aumentásseis
meu apanágio assim como a minha renda. Pedi-vos ou
não?
— Que família... — murmurou Filipe.
— E sempre fizestes ouvidos moucos. Agora, digo-
vos pela última vez: vim a Reims, mas não assistirei a
vossa sagração, dentro de alguns momentos, a não ser que
tenha minha cadeira de par. Não sendo assim, volto.
Filipe olhou para ele por um momento, sem nada
dizer, e, sob aquele olhar, Carlos sentiu-se diminuir,
fundir-se, perder toda a segurança própria, e tôda a
importância.
Diante de Filipe, o Belo, o jovem sentia, outrora,
idêntica sensação da própria insignificância.
— Um instante, meu irmão — disse Filipe.
Levantou-se e foi falar com Adão Héron, que se retirara
para um canto do aposento.
— Adão — perguntou^ em voz baixa — os barões
que foram buscar a âmbula sagrada na abadia de Saint-
Remy já voltaram?
— Sim, Sire, e já estão na catedral, com o clero da
abadia.
— Bem. Então, as portas da cidade... como em
Lião.
E, com a mão, fêz três movimentos apenas
perceptíveis, que significavam: as grades, as trancas, as
chaves.
— No dia da sagração, Sire? — murmurou Héron,
estupefato.
— Justamente, no dia da sagração. Providenciai.
O camareiro saiu e Filipe voltou para o leito.
— Então, meu irmão, que me pedíeis?
— O pariato, Filipe.
— Ah! Sim... o pariato. Pois bem, meu irmão, eu
vo-lo concederei, eu vo-lo concederei de bom grado. Mas
não imediatamente, pois proclamastes demais vosso
desejo. Se eu cedesse assim, diriam que não o fiz
voluntariamente, e sim coagido, e todos se sentiriam
autorizados a comportar-se como vós. Sabei, pois, que não
haverá mais apanágios criados ou aumentados antes que
eu tenha promulgado uma ordenação que declarará
inalienável qualquer parte do domínio real (38).
— Mas, enfim, não tendes mais necessidade do
pariato de Poitiers! Por que não mo dais? Convinde que
minha parte é insuficiente!
— Insuficiente? — exclamou Filipe, que começava
a encolerizar-se. — Nascestes filho de rei, sois irmão de
rei. Pensais, verdadeiramente, que a parte seja insuficiente
para um homem de vosso cérebro, e para os méritos que
tendes?
— Meus méritos? — disse Carlos.
— Sim, vossos méritos, que são pequenos. Porque
é preciso que eu acabe por dizer-vos francamente, Carlos:
sois um tolo! Sempre o fôstes, e não melhorastes com a
idade. Quando éreis apenas uma criança, já parecíeis tão
atoleimado a todos, de espírito tão pouco desenvolvido,
que mesmo nossa mãe sentia desdém por vós, a santa
mulher! Chamava-vos “o papalvo”. Lembrai-vos, Carlos:
“o papalvo”. Isso éreis, e isso vos conservastes. Nosso pai
dava-vos assento em nosso conselho: que aprendestes ali?
Ficáveis embasbacado olhando as moscas, enquanto os
negócios do reino eram discutidos, e eu me recordo que
jamais foi ouvida uma palavra vossa que não provocasse
um dar de ombros de nosso pai ou de messire Enguerrand.
Acreditais, portanto, que eu faça assim tanta questão de
tornar-vos mais poderoso, pelo belo auxílio que me iríeis
dar, quando há seis meses não cessais de manobrar contra
mim? Poderíeis ter obtido tudo por outro caminho.
Pensais, então, que sois de natureza forte e contais ver os
outros dobrarem-se diante de vós? Ninguém esqueceu a
lamentável figura que fizestes em Maubuisson, quando
vos puseste a balir: “Branca, Branca!” e a chorar vosso
ultraje diante da corte.
— Filipe! Cabe-vos dizer-me isso? — exclamou La
Marche, levantando-se, o rosto desfigurado. — Vós, cuja
esposa...
— Nem uma palavra contra Joana! Nenhuma
palavra contra a rainha! — cortou Filipe, com a mão
levantada. — Sei que para prejudicar-me, ou para sentir-
vos menos só em vosso infortúnio, continuais a enredar
mentiras.
— Inocentastes Joana porque desejáveis conservar
a Borgonha, porque, como sempre, fizestes passar vossos
interesses antes de vossa honra. Também a mim,
entretanto, talvez minha esposa infiel não tenha cessado
de servir.
— Que quereis dizer?
— Quero dizer o que digo! — replicou Carlos de
La Marche. — E também vos declaro que se me
desejardes ver, daqui a momentos, na sagração, ali quero
sentar-me numa cadeira de par. O pariato, ou vou-me
embora!
Adão Héron tornou a entrar no aposento e advertiu
o rei, com um movimento de cabeça, de que suas ordens
tinham sido transmitidas. Filipe agradeceu-lhe da mesma
maneira.
— Ide-vos, pois, meu irmão — disse. — Só uma
pessoa me é necessária, hoje: o arcebispo de Reims, que
deve sagrar-me. Sois arcebispo? Não sois. Logo, podeis ir-
vos embora. Parti, se isso vos agrada.
— Mas por que — exclamou Carlos — por que
nosso tio Valois obtém sempre o que quer, e eu nunca?
Pela porta entreaberta ouviam-se os cânticos da
procissão que se aproximava.
“Quando penso que se eu viesse a morrer esse
imbecil deveria ser regente!”, pensava Filipe. Pousou a
mão no ombro do irmão:
— Quando tiverdes prejudicado o reino por tantos e
tão longos anos como acontece com nosso tio, podereis
exigir a mesma paga. Mas, graças a Deus, sois menos
diligente na tolice!
Com os olhos, designou-lhe a porta, e o Conde de
La Marche saiu, lívido, atormentado de raiva impotente,
para esbarrar com um grande número de clérigos.
Filipe tornou a dirigir-se para o leito, e retomou a
posição deitada, mãos cruzadas, pálpebras fechadas.
Bateram à porta. Dessa vez, eram os bispos, que
batiam com suas cruzes.
— Quem procurais? — disse Adão Héron.
— O rei — respondeu uma voz grave.
— Quem o deseja?
— Os bispos pares.
Os batentes foram abertos e os bispos de Langres e
de Beauvais entraram, de mitra na cabeça e relicário no
pescoço. Aproximaram-se do leito, ajudaram o rei a
levantar-se, apresentaram-lhe a água benta, e, enquanto ele
se ajoelhava sobre um pequeno tapete de seda, fizeram a
oração.
Depois, Adão Héron colocou sobre os ombros de
Filipe um manto de veludo escarlate, semelhante ao de seu
trajo. E, subitamente, estalou uma querela de precedência.
Normalmente, o Duque-Arcebispo de Laon devia tomar
lugar à direita do rei. Ora, a cadeira de Laon, na época,
estava sem titular. O bispo de Langres, Guilherme de
Durfort, supunha-se, devia substituir o ausente. Mas Filipe
designou o bispo de Beauvais para ficar à direita. Tinha
suas razões para isso: por um lado, o bispo de Langres
havia acolhido com facilidade um tanto excessiva, em sua
diocese, os antigos Templários, dando-lhes lugares de
clérigos. Por outro lado, o bispo de Beauvais era um
Marigny — parente do grande Enguerrand e de seu irmão,
o arcebispo de Sens — e Filipe fazia questão de prestar
homenagem, senão à pessoa, pelo menos ao nome que
usava.
Assim, o rei encontrou-se com dois prelados à sua
direita e nenhum à esquerda.
— Sou o arcebispo-duque, e eu é que devo ficar à
direita — disse Guilherme de Durfort.
— A cadeira de Beauvais é mais antiga do que a de
Langres — respondeu Marigny.
Seus rostos começavam a corar, sob as mitras. —
Monsenhores, o rei decide — disse Filipe.
Durfort obedeceu e mudou de lugar.
“Mais um descontente”, pensou Filipe.
Desceram assim, entre as cruzes, os círios e a
fumarada do incenso, até a rua, onde toda a corte, a rainha
à frente, já se formara em cortejo. Caminharam até a
catedral.
Imensos clamores levantavam-se à passagem do
rei. Filipe estava bastante pálido e apertava seus olhos
míopes. Parecia-lhe que a terra de Reims se tinha tornado
dura, subitamente, sob seus pés: tinha a impressão de que
caminhava sobre mármore.
Na porta principal da igreja, houve uma pausa para
novas orações. Depois, num estrondejar de órgão, Filipe
adiantou-se pela nave, em direção ao altar, dirigindo-se
para o estrado, para o trono, onde, finalmente, sentou-se.
Seu primeiro gesto foi para designar à rainha a cadeira
preparada ao lado da sua.
A igreja estava repleta. Filipe via apenas um mar de
coroas, de peitos e ombros bordados, de jóias e casulas
brilhando sob os círios. Um firmamento humano estendia-
se a seus pés.
Transportou o olhar para regiões mais próximas, e
voltou a cabeça para a direita e para a esquerda, a fim de
distinguir quem estava presente sobre o estrado. Ali
estavam Carlos de Valois, e Mafalda d’Artois,
monumental, cascateante de bordados e veludos. Ela
sorriu-lhe. Luís d’Evreux estava um pouco mais afastado.
Mas Filipe não via Carlos de La Marche, nem Filipe de
Valois, que o pai parecia também procurar com os olhos.
O arcebispo de Reims, Roberto de Courtenay, que
os ornamentos sacerdotais faziam pesado, levantou-se de
seu trono fronteiro ao trono real. Filipe imitou-o, e veio
prosternar-se diante do altar.
Todo o tempo que durou o Te-Deum, Filipe
perguntou a si próprio: “Terão sido bem fechadas as
portas? Minhas ordens terão sido fielmente cumpridas?
Meu irmão não é homem para ficar no fundo de um
quarto, enquanto eu estiver sendo coroado. E por que
estará Filipe de Valois ausente? Que estarão me
preparando? Eu devia ter deixado Galard lá fora, para
estar em melhores condições de comandar seus besteiros”.
Ora, enquanto o rei assim se inquietava, seu irmão
mais moço patinhava num charco.
Saindo, furioso, do aposento real, Carlos de La
Marche se havia precipitado para o alojamento dos Valois.
Não encontrara ali seu tio, que já partira para a catedral,
mas apenas Filipe de Valois, acabando de preparar-se, e
ao qual contara, quase sem fôlego, o que chamava a
“felonia” de seu irmão.
Os dois primos tinham temperamentos muito
semelhantes, com a diferença de ser Filipe de Valois
maior e mais forte do que Carlos. Quanto ao espírito,
completavam-se bem, em vaidade e tolice.
— Se é assim, também não assistirei à cerimônia, e
parto contigo — declarara Valois, o jovem.
Com isso, trataram de reunir sua escolta e
dirigiram-se altivamente para uma porta da cidade. Sua
soberba teve de inclinar-se diante dos sargentos de armas.
— Ninguém entra e ninguém sai. Ordem do rei.
— Mesmo os príncipes de França?
— Mesmo os príncipes. Ordem do rei.
— Ah! Êle quer coagir-nos! — exclamara Filipe de
Valois, que agora tomava o caso à sua conta. — Pois bem,
ainda assim sairemos.
— Como queres sair, se as portas estão fechadas?
— Finjamos voltar para o meu alojamento, e deixa-
me agir.
Daí seguiu-se uma empresa de garotos: os
escudeiros do jovem Conde de Valois tinham sido
enviados em busca de escadas, logo levantadas no fundo
de um beco-sem-saída, em lugar onde os muros não
pareciam estar guardados. E os dois primos, nádegas ao
léu, fizeram a escalada, sem suspeitar que do outro lado os
esperavam os pântanos do Vesle. Por meio de cordas
desceram para o fosso. Carlos de La Marche perdeu pé no
meio da água lamacenta e gelada, e se afogaria, se seu
primo, que tinha-seis pés de altura e músculos sólidos, não
o tivesse pescado a tempo. Depois, meteram-se, como
cegos, pelos charcos. Já agora, para eles, não mais se
tratava de renunciar ou não. Avançar ou recuar dava no
mesmo. Arriscavam sua vida, e teriam ainda três grandes
horas pela frente até conseguirem sair daquele tremedal.
Os poucos escudeiros que os haviam seguido, patinhavam
em torno deles, e não faziam cerimônia para amaldiçoá-
los em voz alta.
— Se conseguirmos sair daqui — gritava La
Marche para sustentar a coragem — sei bem para onde
irei, sei bem. Para Château-Gaillard!
Valois, o jovem, banhado em suor, apesar do frio,
mostrou uma cabeça estupefata, acima dos caniços
apodrecidos.
— Tens ainda apego a Branca? — perguntou.
— Não, mas há coisas que poderei saber através
dela. É a única, a última que nos pode dizer se a filha de
Luís é bastarda, e se Filipe é cornudo, como eu! Com o
testemunho dela, poderei, por minha vez, infamar meu
irmão, e fazer com que a coroa seja dada à filha de Luís.
O som dos sinos de Reims, bimbalhando
estrondosamente, chegava até eles.
— Quando penso, quando penso que é por ele que
os sinos tocam! — dizia Carlos de La Marche, a metade
do corpometida na lama e a mão estendida para a cidade...
Na catedral, os camareiros acabavam de despir o
rei. Filipe, o Longo, de pé diante do altar, não tinha mais
sobre o corpo senão duas camisas superpostas, uma de
tecido fino, sobre a pele, e a outra de seda branca, ambas
largamente abertas no peito e sob as axilas. O rei, antes de
ser revestido das insígnias da majestade, apresentava-se à
assembléia de seus súditos quase como um homem nu, e
tomado de arrepios.
Todos os atributos da sagração estavam dispostos
sobre o altar, sob a guarda do abade de Saint-Denis, que
os trouxera. Adão Héron tomou das mãos do abade os
chausses, longos calções de seda, bordados com flôres-de-
lis, e ajudou o rei a vesti-los, assim como a calçar os
sapatos, também de tecido bordado. Depois, Anseau de
Joinville, na ausência do Duque de Borgonha, prendeu as
esporas de ouro nos pés do rei e imediatamente retirou-as.
O arcebispo abençoou a grande espada, que diziam ser a
de Carlos Magno, e colocou-a à ilharga do rei, com o
boldrié, recitando:
— Accipe hunc gladium cum Dei benedictione...*
— Gaucher, aproxima-te — disse o rei.
Gaucher de Châtillon adiantou-se, e Filipe,
desfazendo-se do boldrié, entregou-lhe a espada.
Jamais condestável algum, em toda a história das
sagrações, merecera mais sustentar, pelo seu soberano, a
insígnia do poder militar. Aquele gesto, entre eles, era
mais do que o cumprimento de um ritual. Trocaram um
longo olhar: o símbolo confundia-se com a realidade.
Com a ponta de uma agulha de ouro, o arcebispo
tomou, da âmbula sagrada, que lhe apresentava o abade de
Saint--Remy, uma parcela do óleo que diziam enviado do
céu, e, com o dedo, misturou-o com o crisma preparado
sobre uma pátena. Depois, o arcebispo ungiu Filipe,
*
Recebe este gládio com a bênção de Deus, para resistir pela
virtude do Espírito Santo a todos os teus inimigos...
tocando-o no alto da cabeça, no peito, entre os ombros, e
nas axilas. Adão Héron tornou a cerrar os anèizinhos e
ganchos que fechavam a túnica. A camisa do rei seria
queimada mais tarde, porque tinha roçado pela santa
unção.
O rei foi, então, vestido com os trajos tomados de
sobre o altar: primeiro a cota de cetim vermelho, bordada
com fios de prata, depois a túnica de cetim azul bordada
com pérolas e semeada de flôres-de-lis de ouro, por cima
da dalmática do mesmo tecido, e, ainda por cima, o soq,
grande manto quadrado, acolchetado sobre o ombro
direito com uma fíbula de ouro. De cada vez que uma peça
era colocada, Filipe sentia seus ombros mais pesados. O
arcebispo fêz a unção das mãos, insinuou no dedo de
Filipe o anel real, colocou-lhe na mão direita o pesado
cetro, a mão de justiça* na mão esquerda. Depois de uma
genuflexão diante do tabernáculo, o prelado levantou,
enfim, a coroa, enquanto o camareiro-mor começava a
chamada dos pares presentes.
— Magnífico e poderoso senhor, o conde...
Exatamente nesse instante, uma voz alta, imperiosa,
elevou-se pela nave:
— Pára, arcebispo! Não coroes esse usurpador: é a
filha de São Luís quem te ordena.
Vasta movimentação percorreu a assistência. Todas
as cabeças voltaram-se para o ponto de onde viera o grito.
*
Mão de marfim, com os dedos abertos e levantados, que
rematava o bastão real, e era símbolo de sua justiça.
Sobrr o estrado e entre os oficiantes, trocavam-se olhares
aflitos. As fileiras da assistência abriram-se.
Rodeada por alguns senhores, uma mulher de
grande estatura, rosto ainda belo, queixo firme, olhos
claros e encoleri-zados, com o diadema estreito e o véu
das viúvas sobre a massa dos cabelos quase brancos,
caminhava para o coro.
À sua passagem, as pessoas cochichavam:
— É a Duquesa Agnes: é ela!
Esticavam-se pescoços para vê-la. Havia surpresa
ao constatar quanto ainda era jovem de aparência e firme
de passo. Como era filha de São Luís, a idéia que faziam
dela enquadrava-se no recuo dos tempos. Acreditavam-na
uma antepassada, sombra completamente alquebrada em
um castelo da Borgonha. Subitamente, ela aparecia tal
qual era, mulher de cinqüenta e sete anos, ainda cheia de
vida e de autoridade.
— Pára, arcebispo — repetiu, quando estava a
alguns passos apenas do altar. — E ouvi, todos vós...
Lede, Mello! — acrescentou, falando com seu
conselheiro, que a acompanhava.
Guilherme de Mello desenrolou um pergaminho, e
leu: — Nós, muito nobre dama Agnes de França, Duquesa
de Borgonha, filha do Senhor São Luís, em nosso nome e
no de nosso filho, muito nobre e poderoso Duque Eudes,
dirigimo-nos a vós, barões e senhores aqui presentes, ou
que estejam fora deste reino, para evitar que se reconheça
como rei o Conde de Poitiers, que não é o herdeiro
legítimo da coroa, e exigir que a sagração seja adiada até
que tenham sido reconhecidos os direitos de Madame
Joana de França e Navarra, filha e herdeira do falecido rei,
e de nossa filha.
Sobre o estrado, a angústia aumentava, e
começavam a distinguir-se rumores no fundo da igreja. A
multidão aglomerava-se.
O arcebispo parecia embaraçado com a coroa, não
sabendo se devia repousá-la sobre o altar ou continuar a
cerimônia.
Filipe conservara-se imóvel, a cabeça nua,
impotente, com quarenta libras de ouro e brocados
pesando-lhe sobre os ombros, as mãos ocupadas com o
Poder e a Justiça. Nunca se sentira tão desprevenido, tão
ameaçado, tão sozinho. Um guante de ferro apertava-lhe o
peito, bem no meio. Sua calma era assustadora. Fazer um
só gesto, abrir a boca naquele instante, iniciar uma
controvérsia, seria arriscar-se ao tumulto, e, sem dúvida, à
derrota. Ficou imobilizado, entre a ganga de seus
ornamentos, como se a batalha se passasse abaixo dele.
Ouviam-se os pares eclesiásticos cochicharem:
— Que devemos fazer?
O prelado de Langres, que não esquecia a
humilhação sofrida naquela manhã, era de opinião que se
interrompesse a cerimônia.
— Retiremo-nos, e discutamos o caso — propunha
outro.
— Não o podemos, o rei já é o ungido do Senhor. É
rei, coroai-o — replicou o bispo de Beauvais.
A Condêssa Mafalda inclinou-se para sua filha
Joana, e murmurou-lhe :
— A velhaca! Merece rebentar, por causa disto.
Havia veneno no ar.
Com suas pálpebras de tartaruga, o condestável fêz
sinal a Adão Héron para que recomeçasse a chamada.
— Magnífico e poderoso senhor Conde de Valois,
par do reino — pronunciou o camareiro.
Toda a atenção refluiu, então, para o tio do rei. Se
ele respondesse ao chamado, Filipe ganhara, porque seria
a caução dos pares leigos, do poder real, que Valois traria
consigo. Se recusasse, Filipe estava perdido.
Valois não mostrava grande solicitude, e o
arcebispo, que, sendo um Courtenay, era seu parente por
aliança, esperava, visivelmente, a sua decisão.
Filipe, então, esboçou, ainda assim, um
movimento: virou a cabeça para seu tio, e o olhar que lhe
lançou valia cem mil libras. Jamais a Borgonha pagaria o
mesmo.
O ex-imperador de Constantinopla levantou-se, o
rosto crispado, e veio colocar-se atrás de seu sobrinho.
“Como fiz bem em não me mostrar avaro com ele”,
pensou Filipe.
— Nobre e poderosa dama Mafalda, Condêssa
d’Artois, par do reino — chamou Adão Héron.
O arcebispo levantou o pesado círculo de ouro,
rematado por uma cruz na parte da frente, pronunciando,
enfim:
— Coronel te Deus.
Um dos pares leigos devia tomar imediatamente a
coroa para sustentá-la sobre a cabeça do rei, e os outros
pares pousariam ali apenas um dedo simbólico. Valois já
estendia as mãos, mas Filipe, com um movimento de seu
cetro, deteve-o.
— Sustentai vós a coroa, minha mãe — disse ele a
Mafalda.
— Obrigada, meu filho — murmurou a gigantesca
mulher.
Recebia, com aquela designação espetacular, o
agradecimento pelo seu duplo regicídio. Tomava o lugar
de primeiro par do reino, e a posse do condado de Artois
lhe estava confirmada para sempre.
— Borgonha não se curva! — exclamou a Duquesa
Agnes.
E, reunindo seu séquito, caminhou em direção à
saída, enquanto, lentamente, Mafalda e Valois
reconduziam Filipe a seu trono.
Quando ele ali sentou-se, seus pés repousando
sobre a almofada de seda, o arcebispo depôs sua mitra e
veio beijar o rei na boca, dizendo:
— Vivat rex in aeternum.
Os outros pares imitaram-lhe o gesto, repetindo:
— Vivat rex in aeternum.
Filipe sentia-se cansado. Acabava de ganhar sua
última batalha, após sete meses de incessantes lutas para
chegar àquele poder supremo, que de agora em diante
ninguém mais poderia disputar-lhe.
Os sinos estrondejavam no ar, soando pelo seu
triunfo. Lá fora, o povo ululava, desejando-lhe glória e
longa vida. Todos os seus adversários tinham sido
dominados. Possuía um filho para assegurar sua
descendência, uma esposa feliz para partilhar de suas
alegrias e desgostos, e o reino da França.
“Como estou cansado, tão cansado!”, pensava
Filipe.
Àquele rei de vinte e três anos, que se impusera
através de uma vontade tenaz, que aceitara as vantagens
do crime e que possuía todas as características de um
grande monarca, nada, em verdade, parecia faltar.
O tempo dos castigos ia começar.
NOTAS HISTÓRICAS
(1) Carlos de Valois (ver nossos volumes
precedentes) se gundo filho de Filipe HT e de Isabel de
Aragão, irmão mais novo de Filipe, o Belo, foi designado,
com a idade de treze anos, pelo Papa Martinho IV, para
receber o trono de Aragão, tirado de seu tio Pedro de
Aragão, excomungado depois do massacre das Vésperas
Sicilianas. Coroado, por formalidade, em 1284, no curso
de uma desastrosa campanha levada a efeito por Filipe III,
o Ousado, que devia morrer logo depois, Valois jamais
chegou a ocupar seu trono, e a ele renunciou,
definitivamente, em 1295.
Mais tarde, tendo desposado em segundas núpcias
Catarina de Courtenay, herdeira titular do reino latino do
Oriente, usou, de 1301 a 1313, o título de imperador de
Constantinopla.
Os laços de família entre Carlos de Valois e
Clemência da Hungria são, sem dúvida, dos mais
complicados que jamais existiram: Valois era primo de
Clemência, pois ambos descendiam, um pela terceira e
outra pela quarta geração, do Rei Luís VIII da França. Era,
também, duas vezes seu tio, por aliança, antes de mais
nada por se ter casado em primeiras núpcias com
Margarida d’Anjou-Sicilia, tia de Clemência, e, em
seguida, porque tinha feito com que essa última se casasse
com seu sobrinho Luís X.
Valois estava ainda ligado à família d’Anjou de
outra forma, tendo casado em 1313 a primeira filha que
tivera de Catarina de Courtenay, Catarina de Valois, com
Filipe, príncipe de Tarento, irmão de sua primeira mulher.
Dessa maneira, era tio-avô, por aliança, da Rainha
Clemência.
Foi por ocasião do casamento Valois-Tarento que a
coroa titular de Constantinopla, ligada à herança de
Catarina de Valois, teve de ser abandonada por Carlos, em
benefício de seu genro Filipe.
(2) Essas definições foram extraídas do Elixir dos
filósofos, do Cardeal Tiago Duèze, Papa João XXII.
Destacam-se naquela obra, além de um léxico dos
principais termos de alquimia, receitas curiosas, tais como
esta, para “purificar” a urina de criança: “Toma-a, deita-a
em pote, deixando-a repousar por três ou quatro dias;
depois coa-a ligeiramente; deixa-a repousar de novo, até
que a sujeira fique no fundo. Cozinha-a bem, e escuma-a
até que ela se reduza à terça parte. Destila-a, depois,
através de feltro e guarda-a em vasilha bem vedada, para
evitar a corrupção do ar”,
(3) Foi somente em meados de seu pontificado, em
1325, que Tiago Duèze (João XXII) começou a sustentar
em diversos sermões e estudos sua tese da visão beatífica.
É possível supor, entretanto, que o problema de há muito o
interessava.
Sua teoria foi objeto de apaixonados debates entre
todos os teólogos da Europa, debates que duraram vários
anos e quase produziram um cisma. A Universidade de
Paris condenou as proposições de João XXII, e chegou-se
a falar em depor aquele, a quem, por escárnio, chamavam
“o Papa de Cahors”. Duèze retratou-se na véspera de sua
morte, em seu leito de agonia, preocupado, sem dúvida,
em preservar a unidade da Igreja. Tinha, então, noventa
anos.
Entre outras teses que professou esse estranho e
fascinante pontífice, devemos notar a que concerne ao
poder legislativo dos papas. Para ele, um papa podia
modificar toda a legislação instituída pelos seus
predecessores. Considerava, com efeito, que os papas,
sendo homens, são incapazes de tudo ver e de tudo prever,
e, assim, seus regulamentos sofrem as conseqüências das
modificações sobrevindas ao universo, necessitando novas
regras de conduta.
João XXII pronunciou-se igualmente contra a
Imaculada Conceição da Virgem Maria, considerando,
todavia, que se Maria tinha sido concebida com o pecado
original, Deus a purificara antes de seu nascimento, mas
num momento, acrescentava, difícil de precisar.
Teria sido também ele, a seguir-se a opinião de
Viollet-le-Duc, quem teria acrescentado à tiara a terceira
coroa, da qual, realmente, não se encontram vestígios nas
efígies dos papas anteriores ao seu reinado.
(4) Os senhores soberanos de Viennois usavam o
nome de “delfim” por causa do delfim que ornava seu
capacete e suas armas, daí a designação de Delfinado dado
ao conjunto da região sobre a qual exerciam sua soberania,
e que compreendia: o Grésivaudan, o Roannez, o
Champsaur, o Briançonnais, o Am-brunois, o Gapençais,
o Viennois, o Valentinois, o Diois, o Tricastinois, e o
principado de Orange.
No início do século IV, a soberania era exercida
pela terceira casa dos delfins de Viennois, a da Tour du
Pin. Somente no fim ao reinado de Filipe VI de Valois,
pelos tratados de 1343 e 1349, u Delfinado foi cedido por
Humberto II à coroa da França, sob a condição de que o
filho mais velho dos reis de França tomasse, dali por
diante, o título de Delfim.
(5) A grande maioria dos autores dá o total de vinte
e três cardeais para o conclave de 1314-1316. Anotamos
vinte e quatro.
O partido dos “romanos” contava seis italianos:
Tiago Co-lonna, Pedro Colonna, Napoleão Orsino,
Francisco Caetani, Tiago Stefaneschi-Caetani, Nicolau
Alberti (ou Albertini) de Prato; um angevino de Nápoles:
Guilherme de Longis, e, enfim, um espanhol, Lucas de
Flisco (às vezes chamado Fieschi) irmão do rei de Aragão.
Esses cardeais eram criações anteriores ao pontificado de
Clemente V e à instalação do papado em Avinhão. O
chapéu cardinalício fôra-lhes conferido entre 1278 e 1303,
durante os reinados de Nicolau III, Nicolau IV, Celestino
V, Bonifácio VIII e Bento XI.
Todos os outros tinham sido criados por Clemente
V. O partido chamado “provençal” compreendia:
Guilherme de Man-dagourt, Béranger de Frédol, o velho,
Béranger de Frédol, o jovem, Tiago Duèze, de Cahors, e
os normandos Nicolau de Fréauville e Miguel du Bec.
Enfim, os gascões, em número de dez, Arnaldo de
Pélagrue, Arnaldo de Fougères, Arnaldo Nouvel, Arnaldo
d’Auch, Raimundo--Guilherme de Farges, Bernardo de
Garves, Guilherme-Pedro Godin, Raimundo de Got, Vidal
du Four e Guilherme Teste.
Em nossos volumes precedentes falamos na morte
de Clemente V, na agressão de Carpentras e no conclave
errante.
(6) Até meados do século XII, a cidade de Lião
esteve sob o poder dos condes de Forez e de Roannez, sob
a suserania puramente nominal do imperador da
Alemanha.
A partir de 1173, o imperador tendo reconhecido ao
arcebispo de Lião, primaz das Gálias, direitos soberanos, o
Lyonnais foi separado do Forez e o poder eclesiástico
passou a governar a cidade, com direito de justiça, de
cunhar moeda e de recrutar tropas.
Esse regime desagradou à poderosa comuna de
Lião, composta unicamente de burgueses e de
negociantes, os quais, durante mais de um século, lutaram
para se emancipar. Depois de várias revoltas infelizes,
apelaram para o Rei Filipe, o Belo, que, em 1292, tomou
Lião sob sua proteção.
Vinte anos mais tarde, em 1O de abril de 1312, um
tratado, concluído entre a comuna, o arcebispado e o rei,
reunia definitivamente Lião ao reino da França.
Apesar das reivindicações de João de Marigny,
arcebispo de Sens, e que controlava a diocese de Paris, o
arcebispo de Lião conseguiu conservar o primado das
Gálias, única de suas prerrogativas que lhe foi assegurada.
No fim da Idade Média, Lião contava cerca de 24
taverneiros, 32 barbeiros, 48 tecelões, 56 costureiros, 44
peixeiros, 36 açougueiros, especieiros e salsicheiros, 27
sapateiros, 36 panificadores e padeiros, 25 hoteleiros, 87
notários, 15 ourives ou joalheiros, 2O mercadores de
tecidos.
A cidade era administrada pela “comuna”,
constituída de burgueses comerciantes, que nomeavam, no
dia 21 de dezembro de cada ano, doze cônsules, sempre
notáveis e escolhidos entre as famílias ricas. Esse corpo
consular chamava-se “o sindical”.
(7) A família dos Varay, mercadores de tecidos e
cambistas, era uma das mais antigas e das mais
consideráveis do Lyonnais.
Trinta e um de seus membros usaram o título de
cônsul, alguns foram freqüentemente reeleitos, e um deles
chegou a sê-lo dez vezes. Contavam-se oito Varay entre os
cinqüenta cidadãos que os lioneses escolheram para seus
chefes, em 1285, a fim de lutar contra o arcebispo e obter
a anexação à França.
(8) Os “cavaleiros seguidores”, criação de Filipe V
no início de seu reino, eram nomeados pelo rei, a fim de o
acompanharem e aconselharem: deviam estar junto dele
em todas as viagens, mas não todos ao mesmo tempo.
Contam-se entre eles parentes próximos do rei,
como o Conde de Valois, o Conde d’Evreux, o Conde de
La Marche, o Conde de Clermont, os grandes senhores
como os Condes de Forez, de Bolonha, de Sabóia, de
Saint-Pol, de Sully, d’Harcourt e de Comminges; grandes
oficiais da coroa, tais como o con-destável, os marechais,
o chefe dos besteiros, assim como outros personagens,
membros do conselho secreto ou do “conselho que
governa”, jurisconsultos, administradores do tesouro,
burgueses enobrecidos e amigos pessoais do rei.
Registram-se nome como os de Mille de Noyers, Giraud
Guette, Guy Florent, Guilherme Flotte, Guilherme
Courteheuse, Martinho des Essarts, Anseau de Joinville.
Esses cavaleiros foram uma espécie de prefiguração
dos “gentis-homens da Câmara”, instituídos por Henrique
III, e que subsistiram até Carlos X.
(9) A igreja romana jamais vendeu, como
pretendem seus adversários, absolvição. Fêz, entretanto, o
que é bastante diferente, com que os culpados pagassem o
preço das bulas que lhes eram entregues como atestados
da absolvição da sua culpa.
Essas bulas eram necessárias porque, tendo sido
público o crime ou o delito, era preciso fornecer prova de
absolvição para ser novamente admitido aos sacramentos.
O mesmo princípio era aplicado, em direito civil,
nas cartas de mercê e remissão, concedidas pelo rei. A
entrega dessas cartas e sua inscrição nos registros eram
taxadas. Esse uso, muitíssimo antigo, remontava aos
costumes dos francos, antes mesmo de sua conversão ao
cristianismo. A idéia de João XXII foi, com seu Livro de
Taxas e com a instituição da Santa Penitenciaria
Apostólica, codificar e generalizar esse uso, idéia que
deveria trazer à Igreja somas consideráveis, tal como
prova o estado muito florescente do tesouro pontificai,
quando da morte daquele papa.
Os membros do clero não eram os únicos sujeitos a
essas bulas. Havia taxas igualmente previstas para os
leigos. As tarifas eram calculadas em gros, moeda que
valia aproximadamente seis libras.
Assim, o parricldio, o fratricídio ou o assassinato
de um parente, entre leigos, estavam taxados entre os
cinco e sete gros, bem como o incesto, a violação de uma
virgem, ou o roubo de objetos sagrados. O marido que
espancara a mulher ou fizera com que abortasse, estava
sujeito a pagar seis gros; e sete, se houvesse arrancado os
cabelos da esposa. A multa maior, ou seja, de vinte e sete
gros, referia-se à falsificação de cartas apostólicas, isto é,
da assinatura do papa.
As taxas subiam com o tempo, paralelamente com a
desvalorização da moeda.
Mas, ainda uma vez, não se tratava da compra da
absolvição, e sim de um direito de registro, para
fornecimento de provas autenticadas.
Os inúmeros panfletos consagrados a essa questão,
e que circularam a partir da Reforma, para desacreditar a
Igreja Romana, apoiaram-se todos nessa confusão
voluntária.
E digno de nota, além disso, que na mesma ocasião
em que João XXII instituía a Santa Penitenciaria, o Rei
Filipe V, de seu lado, reorganizava o funcionamento da
chancelaria real, e revisava suas tarifas.
(10) Os Frades Pregadores, ou Dominicanos, eram
também chamados Jacobinos por causa da Igreja Saint-
Jacques que lhes tinham dado, em Paris, e em torno da
qual haviam instalado a sua comunidade.
O convento de Lião, onde se realizou o conclave de
1316, fora edificado em 1236, em terrenos situados atrás
da casa dos Templários. O conjunto do mosteiro estendia-
se da atual praça dos Jacobinos até a praça Bellecour.
(11) Godofredo Coquatrix (sem dúvida do termo
coquatier, negociante de ovos e aves) casado antes com
Maria La Marcelle, depois com Joana Gencien, conservou
até sua morte, em 1321, todos os cargos que havia
acumulado sob três reinados, sem jamais prestar contas
deles. Foi somente o filho de Carlos de Valois, Filipe VI,
quem, depois de 1328, resolveu pedir essa prestação de
contas aos herdeiros de Godofredo Coquatrix. Teve que
renunciar a isso e, finalmente, deu os filhos como quites
da obrigação de justificar a administração de seu pai, em
troca de uma soma de 15.00O libras, a título de
compensação.
(12) Esses argumentos foram utilizados, de início,
nos Estados Gerais de fevereiro de 1317; depois, por
ocasião da morte de Filipe V e da de Carlos IV, quando a
sucessão da coroa de França apresentou-se nas mesmas
condições. Poucas dúvidas restam sobre o fato de ter o
condestável Gaucher de Chatillon, que viveu e conservou
seu cargo até 1329, desempenhado papel preponderante na
evicção das mulheres.
(13) Esquecem, geralmente, o primitivo caráter
eletivo da monarquia capetiana, que precedeu seu caráter
hereditário ou, pelo menos, coexistiu com ele.
Quando da morte acidental do último carolíngio,
Luís V, o Indolente, desaparecido aos vinte anos, após um
reinado de alguns meses, os duques e os condes
concordaram em eleger um entre eles. Escolheram Hugo,
duque de França, cujo pai, conde de Paris, duque de
França e de Borgonha, tinham exercido o governo de fato
durante os últimos reinados.
Hugo Capeto (isto é, Hugo, o chefe, Hugo, o
cabeça) associou imediatamente ao trono seu filho
Roberto II, fazendo-o eleger como seu sucessor e sagrar,
durante o ano de sua própria sagração. Aconteceu
praticamente a mesma coisa durante mais cinco reinados,
inclusive o de Filipe-Augusto. Assim que o filho mais
velho do rei era designado herdeiro presuntivo, os pares
tinham que ratificar essa escolha, e o novo eleito recebia a
sagração ainda em vida de seu pai.
Só a partir de Luís VIII, duzentos e vinte e sete
anos depois de Hugo Capeto, foi que se abandonou a
formalidade da eleição prévia.
Luís VIII recebeu a coroa da França, por morte de
Filipe-Augusto, no dia 14 de julho de 1223, exatamente
como teria recebido a herança de um feudo. E foi a partir
desse 14 de julho que a monarquia francesa tornou-se
realmente hereditária.
No tempo da regência de Filipe, o Longo, o novo
costume tinha, pois, menos de um século.
(14) Dá-se, geralmente, nas genealogias, o prenome
de Luís ao filho de Filipe V, nascido em julho de 1316.
Ora, nas contas de Godofredo de Fleury, tesoureiro de
Filipe, o Longo, e que começou a redação de seus livros
naquele mesmo ano, exatamente no dia 12 de julho,
tomando suas funções, a criança é designada pelo nome de
Filipe.
Outros genealogistas mencionam dois filhos, dos
quais um teria nascido em 1315 e, portanto, teria sido
concebido enquanto Joana de Borgonha estava presa em
Dourdan, o que parece incrível quando se sabe dos
esforços de Mafalda para reconciliar a filha com o genro.
A criança que foi fruto dessa reconciliação recebeu,
provavelmente, diversos prenomes, entre eles os de Luís e
Filipe e, tendo vivido pouco, os cronistas posteriores
fizeram, sem dúvida, confusão.
(15) A tomada do poder por Branca de Castela não
foi feita, aliás, sem dificuldades. Embora designada por
um ato do Rei Luís VIII, seu marido, com tutôra e regente,
Branca esbarrou com violenta hostilidade por parte dos
grandes vassalos, a quem repugnava a idéia de que uma
mulher pudesse exercer a guarda do reino.
“A França está se arruinando,
Senhores barões, escutai,
Pois que a mulher vai mandando”
escreveu Hugo de La Ferté. 254
Mas Branca de Castela era mulher de tempera bem
diferente da de Clemência de Hungria. Além disso, era
rainha há dez anos e tinha doze filhos. Venceu os barões,
graças ao apoio do Conde Thibaud de Champanha, que lhe
atribulam como amante. Dizia-se, mesmo, que ela se
servira daquele homem para envenenar seu marido: nada,
porém, permite dar caráter sólido a tal suspeita.
(16) Constata-se impressionante similitude entre a
loucura de Roberto de Clermont e a que atacou Carlos VI,
duas vezes seu sobrinho-segundo, na quinta geração, pelos
homens, e na quarta, pelas mulheres.
Nos dois casos a demência teve início num choque
produzido por armas, com traumatismo craniano em
Clermont, sem traumatismo em Carlos VI, mas que
determinou mania furiosa tanto num como noutro:
mesmos períodos de crises frenéticas, seguidas de longos
períodos de cura, onde o doente retomava comportamento
e aparência normais. O mesmo gosto maníaco pelos
torneios, que não podiam impedi-los de organizar, e nos
quais apareciam, embora às vezes em estado de delírio.
Clermont, demente e perigoso como era, ainda assim tinha
autorização para caçar no conjunto de seu domínio real.
Apresentou-se, mesmo, na hoste de Filipe, o Belo, durante
uma das campanhas da Flandres, assim como Carlos VI,
louco já há vinte anos, assistiu, durante seu reino, ao cêrco
de Bourges e a todos os combates contra o Duque de
Berry.
Clermont morreria no dia 7 de fevereiro de 1317,
um mês depois da coroação de Filipe V.
(17) Gritos regulamentares que marcavam o início
do torneio.
(18) As duas crianças deveriam casar-se, mais
tarde, recebendo a coroa de Navarra.
(19) Os brinquedos e brincadeiras de crianças
praticamente não variaram desde a Idade Média até os
nossos dias. Já eram, então, bolas e balões feitos de couro
ou de pano, arcos, piões, bonecas, cavalos de pau e
malhas. Brincava-se de cabra-cega, de barra, de palhinhas,
de pegador, de esconde-esconde, de pula-sela, bem como
de fantoches. Os meninozinhos possuíam, quando de
famílias ricas, imitações de armamentos, feitos sob
medida: elmos de ferro leve, trajos de malha, espadas sem
fio, ante passados das panóplias de generais e de cow-boys
de nossos dias.
(20) A segunda filha de Agnes de Borgonha, Joana,
casada com Filipe de Valois, futuro Filipe VI, coxeava,
como seu primo-irmão Luís I de Bourbon, filho de
Roberto de Clemont.
A claudicação existia apenas no ramo colateral dos
Anjou, pois que o Rei Carlos II, avô de Clemência da
Hungria, tinha o apelido de Coxo. Uma tradição,
retomada, aliás, por Mistral nas Iles d’Or, diz que quando
o embaixador do rei da França, portanto o Conde de
Bouville, veio pedir Clemência em casamento para seu
senhor, exigiu que a princesa se despisse diante dele, a fim
de certificar-se de que possuía pernas retas.
O defeito de Joana de Borgonha era acompanhado
de uma perversidade patológica que, assim que ela subiu
ao trono, valeu-lhe o apelido de “a rainha má da França”,
ou “a rainha coxa”.
A lista de suas vítimas é longa. Talvez tenham
atribuído a Margarida de Borgonha (que, entre todas as
taras da família, parece ter sido afetada apenas por uma
excessiva sensualidade) grande parte das crueldades de
sua irmã mais nova.
Entre outros exemplos, Joana tentou desembaraçar-
se do Bispo João de Marigny, mandando preparar-lhe um
banho envenenado. Fabricava, também, sentenças de
morte, que selava com o sinête de seu marido, sem que
esse último o soubesse. Filipe VI, tendo tomado
conhecimento disso, certa vez, deu-lhe uma surra de vara,
e com tamanha violência que quase a matou.
Quando ela morreu de peste, em 1349, o povo viu
naquilo, com satisfação, o castigo do céu.
(21) A broigne era uma vestimenta de pele, de
tecido ou de veludo, sobre a qual vinham costuradas
malhazinhas de ferro, e que tinha substituído a cota de
malhas propriamente dita. Por cima daquela broigne, e
para reforçá-la, começaram a aparecer os elementos
chamados “placas” — de onde vem o nome de armadura
de placas — que eram partes unidas de metal, forjadas no
feitio do corpo, e articuladas, à moda da cauda dos
lagostins.
(22) Mafalda organizou uma lista minuciosa dos
roubos e depredações cometidos em seu castelo de
Hesdin, relatório que compreendia mais de cento e vinte e
nove artigos.
Intentou um processo junto ao Parlamento de Paris,
para ser indenizada, o que lhe foi parcialmente concedido
pela sentença de 9 de maio de 1321.
(23) Dizia-se “zarolho” por “míope”. Filipe V foi
chamado, Longo, o Grande ou, o Zarolho.
(24) Há três formas de eleição no conclave:
1º — Por escrutínio secreto, completado, se
necessário, por um segundo escrutínio, chamado “de
acessão”. A maioria deve ser de dois terços dos votantes.
2º — Por compromisso, se os cardeais entregam,
unanimemente, a alguns dentre eles, o cuidado de designar
o eleito em nome de todos.
3º — Por “inspiração” ou por “aclamação”.
Certos autores dizem que Tiago Duèze foi
designado por compromisso. E: uma opinião que pode
estar apoiada nas numerosas “negociações” de que foi
objeto a sua eleição. Mas, na verdade, Duèze foi realmente
eleito por voto regular, pois houve ali quatro
escrutinadores, cujos nomes são conhecidos.
(25) O menu-vair era uma pele, cinzenta de um
lado e branca do outro, produzida por uma espécie de
esquilo. E o que se chama hoje petit-gris.
(26) Era de uso, então, nas famílias reais e
principescas, dar às crianças numerosos padrinhos e
madrinhas, às vezes alcançando o total de oito. Assim,
Carlos de Valois e Gaucher de Châtillon estavam entre os
padrinhos de Carlos de La Marche, o terceiro filho de
Filipe, o Belo. Mafalda era madrinha daquele príncipe,
como de muitas crianças da família. Sua designação para
levar às fontes do batismo o filho póstumo de Luís X, não
tinha, portanto, nada de surpreendente. Não a escolher é
que teria parecido prova de desfavor.
(27) O batismo, naquela época, era sempre
realizado no dia seguinte ao do nascimento.
A ablução por imersão total na água fria, foi
praticada só até o início do século XIV.
Um sínodo, reunido em Ravena, em 1313, resolveu,
pela primeira vez, que o batismo poderia ser dado também
por aspersão, se houvesse escassez de água-benta ou se
fosse de temer que a imersão completa comprometesse a
saúde da criança.
Somente no século XV, entretanto, desapareceu
verdadeiramente a prática da imersão.
Se acrescentarmos a essa forma de batismo as
deploráveis condições de higiene em que se processavam
os partos, em dificuldade compreenderemos o alto índice
de mortalidade de recém-nascidos, na Idade Média.
(28) A Rainha Clemência tinha sido atingida,
segundo tudo leva a crer, de febre puerpéral.
(29) Quando um recém-nascido apresentava
sintomas de doença, não era a ele próprio que se
administravam os remédios, e sim à ama-de-leite.
(30) Essas disposições visavam tanto o registro dos
atos particulares como a outorga de patentes, autorizações
de residência ou de comércio para estrangeiros, e os
diplomas dos oficias reais. Se nos reportarmos à lei de
1321, notaremos, por exemplo, que os atos concernentes
aos lombardos ou judeus estavam submetidos a idênticas
tarifas: 11 soldos para uma carta de apêndice simples, 7
libras e 10 soldos para uma carta de duplo apêndice, e 9
libras, se os selos apostos sobre os ditos apêndices fossem
de cera verde, côr reservada para o sinête real. As cartas
de nomeação para cargos pagavam 51 soldos, para os
bailios e senescais, 6 soldos para os aguazis e funções
pequenas.
Mesmo os dons graciosos ou rendas concedidas
pelo soberano deviam ser certificados através de
documento taxado.
O papel timbrado, utilizado hoje pelos tabeliães, é
uma sobrevivência daquele regulamento.
(31) Os sinais de desequilíbrio mental deviam
acentuar-se rapidamente. João XXII, que sempre protegera
Clemência, posto que era princesa d’Anjou (não chegara
ele a conceder, quando soube de seu parto, vinte dias de
indulgência a quem rezasse pela rainha e por seu filho?)
foi forçado, no mês de maio seguinte, a admoestar por
carta a jovem viúva, pedindo-lhe que vivesse
apagadamente, na castidade, na humildade, que fosse
sóbria à mesa, modesta em suas palavras como em seus
trajos, e que não aparecesse apenas em companhia de
gente jovem. Ao mesmo tempo, intervinha junto a Filipe
para a fixação da dotação de viúva de Clemência, coisa
que não foi feita sem dificuldade.
O papa escreveu ainda a Clemência, por várias
vezes, exor-tando-a a reduzir suas despesas suntuárias e
pedindo-lhe com firmeza que pagasse suas dívidas, em
particular aos Bardi, de Florença. Finalmente, em 1318,
ela precisou fazer retiro, por alguns anos, no convento de
Santa Maria de Nazaré, junto de Aix, na Provença. Mas,
antes de se enclausurar, foi obrigada, a fim de satisfazer as
exigências de seus credores, a depositar suas jóias como
penhor.
Quando morreu, dez anos mais tarde, em Paris, no
Palácio dos Templários, que Filipe V lhe havia dado em
troca do castelo de Vincennes, todos os seus bens foram
vendidos em leilão.
(32) Os irmãos João e Pedro de Cressay seriam
armados cavaleiros por Filipe VI, de Valois, vinte anos
mais tarde, em 1346, no campo de Batalha de Crécy, na
véspera da famosa derrota.
(33) Bourse-à-cul-de-vilain: chamava-se assim as
bolsas de ventre redondo, e estreitas na boca. Eram
muitíssimo ornamentadas, e os nobres ali levavam
freqüentemente seu sinête, além de dinheiro.
Esses números foram extraídos das contas da
sagração de Filipe VI, doze anos depois. Nem os preços
nem as quantidades tinham variado muito. Em
compensação, todos os pormenores do guarda-roupa, da
decoração, que damos durante o capítulo, referem-se, de
fato, à sagração de Filipe V, e foram tirados do livro de
seu tesoureiro.
(35) Entendia-se por robe (vestido), em termos de
enxoval, um trajo completo, composto de várias peças
denominadas garnement, e todas do mesmo tecido. A robe
de aparato compreendia: dois surcots (espécie de casaco
que se usava sobre a cota, às vezes sem manga), um aberto
e outro fechado; uma housse (capa inteiriça), uma
garnache (manto longo), um chaperon (chapéu, capuz,
guarnição para a cabeça, que variava de feitio de acordo
com a situação social do portador) e um manto de atavio.
(36) Os eleitores de Hugo Capeto — daí o título de
pares, isto é, iguais ao rei — tinham sido: o Duque de
Borgonha, o Duque da Normandia, o Duque de Guyenne,
o Conde de Champanha, o Conde da Flandres, o Conde de
Toulouse.
Nenhum dos possuidores, hereditários ou titulares,
dos seis partidos, estavam presentes à sagração de Filipe
V.
(37) Alguns meses depois, em setembro de 1317, o
papa escreveu ao confessor da rainha Joana para lhe dar
poderes de absolvê-la “de todos os pecados que confessara
três anos antes”. Parece duvidoso que Filipe V pedisse ao
seu amigo Duèze essa absolvição oficial, se não
acreditasse firmemente na inocência de sua esposa, pelo
menos na parte que se referia ao adultério.
(38) Cinco séculos mais tarde, em seu discurso de
21 de março de 1817, diante da Câmara dos Pares e
relativo a uma lei de finanças, Chateaubriand encontrou
argumentos nesse de creto de Filipe, o Longo, promulgado
em 1318, e pelo qual o domínio da coroa fora considerado
inalienável.