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França, 1316.

Após o enterro do impopular Luís X, supostamente


morto por envenenamento, o país embarca em um conflituoso
processo de sucessão: pela primeira vez um rei francês morre sem
deixar um herdeiro homem. Conforme regem as normas, o trono
deve ser preenchido pela filha do casamento de Luís X com
Margarida de Bolonha - uma menina de cinco anos acusada de
ser fruto de uma relação extraconjugal - ou pela criança que ainda
ocupa o ventre de sua segunda mulher, Clemência de Hungria.
No entanto, uma violenta sede pelo poder fará com que essa
tradição seja rompida. Eis a emocionante trama de A lei dos
varões, o quarto volume da brilhante série Os reis malditos, de
Maurice Druon.
“A História é um romance que aconteceu...”
Ed. e J. de Goncourt

“Estremecemos ao pensar no que é preciso


de buscas para chegar à verdade sobre o
mais fútil pormenor.”
Stendhal
PRINCIPAIS PERSONAGENS DESTE VOLUME

A RAINHA DA FRANÇA:

! CLEMÊNCIA DA HUNGRIA, neta de Carlos II


d’Anjou-Sicilia e de Maria da Hungria, segunda
esposa e viúva de Luís X, o Turbulento, rei da
França e da Navarra, 23 anos.

A DESCENDÊNCIA DE LUÍS X:

! JOANA DE NAVARRA, filha de Luís X e de sua


primeira esposa, Margarida de Borgonha, 5 anos.
! JOÃO I, chamado O PÓSTUMO, filho de Luís X e
de Clemência da Hungria, rei da França.

O REGENTE:

! FILIPE, segundo filho de Filipe IV, o Belo, e irmão


de Luís X, Conde de Poitiers, par do reino, Conde
Palatino de Borgonha, sire de Salins, regente,
depois rei Filipe V, o Longo, 23 anos.

SEU IRMÃO:

! CARLOS, terceiro filho de Filipe, o Belo, Conde


de La Marche e futuro rei Carlos IV, o Belo, 22
anos.

SUA ESPOSA:
! JOANA DE BORGONHA, filha do Conde Oto IV
de Borgonha e da Condêssa Mafalda d’Artois,
herdeira do Condado de Borgonha, 23 anos.

SEUS FILHOS:

! JOANA, também chamada de Borgonha, 8 anos.


! MARGARIDA, 6 anos.
! ISABEL, 5 anos.
! LUÍS FILIPE da França.

O RAMO VALOIS:

! MONSENHOR CARLOS, filho de Filipe III e de


Isabel de Aragão, irmão de Filipe, o Belo, Conde
Apanagista de Valois, Conde de Maine, d’Anjou,
d’Alençon, de Chartres, do Perche, par do reino,
ex-imperador titular de Constan-tinopla, Conde da
Romanha, 46 anos.
! FILIPE DE VALOIS, filho do precedente, e de
Margarida d’An-jou-Sicilia, futuro Rei Filipe VI,
23 anos.

O RAMO D’EVREUX:

! MONSENHOR LUÍS DA FRANÇA, filho de


Filipe III e de Maria de Brabante, meio irmão de
Filipe, o Belo, e de Carlos de Valois, Conde
d’Evreux e d’Etampes.
! FILIPE D’EVREUX, seu filho.
O RAMO DE CLERMONT-BOURBON :

! ROBERTO, Conde de CLERMONT, sexto filho de


São Luís, 6O anos.
! LUÍS DE BOURBON, filho do precedente.

O RAMO D’ARTOIS, PROCEDENTE DE UM


IRMÃO DE SAO LUÍS:

! A CONDÊSSA MAFALDA D’ARTOIS, par do


reino, viúva do Conde Palatino Oto IV, mãe de
Joana e Branca de Borgonha, sogra de Filipe de
Poitiers e de Carlos de Ia Marche, 45 anos
aproximadamente.
! ROBERTO III D’ARTOIS, sobrinho da
precedente, Conde de Beaumont-le-Roger, senhor
de Conches, 29 anos.

A FAMÍLIA DE BOURGOGNE-DUCHÉ:

! AGNES DA FRANÇA, última filha de São Luís,


duquesa dotada de Borgonha, viúva do Duque
Roberto II, mãe de Margarida de Borgonha, 57
anos aproximadamente.
! EUDES IV, seu filho, Duque de Borgonha, irmão
de Margarida e tio de Joana de Navarra, 35 anos
aproximadamente.

OS CONDES DO VIENNOIS:
! O DELFIM João II de la Tour du Pin, cunhado da
Rainha Clemência.
! O DELFINZINHO Guigues, seu filho.

OS GRANDES OFICIAIS DA COROA:

! GAUCHER DE CHÁTILLON, condestável da


França.
! RAUL DE PRESLES, legista, antigo conselheiro
de Filipe, o Belo.
! MILLE DE NOYERS, legista, antigo marechal de
hoste, cunhado do condestável.
! HUGO DE BOUVILLE, antigo camareiro-mor de
Filipe, o Belo.
! O SENESCAL DE JOINVILLE, antigo
companheiro de armas de São Luís, cronista.
! ANSEAU DE JOINVILLE, filho do precedente,
conselheiro do regente.
! ADÃO HERON, camareiro-mor do regente.
! O CONDE JOÃO DE FOREZ.
! JOÃO DE CORBEIL e JOÃO DE BEAUMONT,
chamado o Desramado, marechais.
! PEDRO DE GALARD, grão-mestre dos besteiros.
! ROBERTO DE GAMACHES e GUILHERME DE
SERIZ, camareiros.
! GODOFREDO DE FLEURY, tesoureiro.

OS CARDEAIS:

! TIAGO DUÈZE, cardeal da cúria, depois Papa


João XXII, 72 anos.
! FRANCISCO CAETANI, sobrinho do Papa
Bonifácio VIII.
! ARNALDO D’AUCH, cardeal camerlengo,
NAPOLEÃO ORSINI, TIAGO e PEDRO
COLONNA, BÊRENGER FRÉDOL, primogênito
e caçula, ARNALDO DE PÉLAGRUE,
STEFANESCHI, MAN-DAGOUT etc.

OS BARÕES D’ARTOIS:

! Sires de VARENNES, de SOUASTRE, de


CAUMONT, de FIENNES, de PIQUIGNY, de
KIEREZ, de HAUTPONLIEU, de BEAUVAL etc.

OS LOMBARDOS:

! SPINELLO TOLOMEI, banqueiro sienense,


instalado em Paris.
! GUCCIO BAGLIONI, seu sobrinho, 2O anos.
! BOCÁCIO, viajante, pai do poeta Bocácio.

A FAMÍLIA CRESSAY:

! SENHORA ELIABEL, viúva do sire de Cressay.


! JOÃO e PEDRO, seus filhos, 22 e 24 anos.
! MARIA, sua filha, 18 anos.

E AINDA:

! ROBERTO DE COUTENAY, arcebispo de Reims.


! GUILHERME DE MELLO, conselheiro do Duque
de Borgonha.
! MESSIRE VARAY, cônsul de Lião.
! GODOFREDO COQUATRIX, burguês de Paris,
fornecedor de guerra.
! MADAME DE BOUVILLE, esposa do antigo
camareiro.
! BEATRIZ D’HIRSON, sobrinha do Chanceler
d’Artois, dama de cerimônia da Condêssa Mafalda.

Todos esses nomes são históricos


PRÓLOGO

Durante trezentos e vinte e sete anos, da eleição de


Hugo Capeto até a morte de Filipe, o Belo, somente onze
reis se sucederam, deixando todos um filho para receber a
coroa de França.
Dinastia prodigiosa, que o destino parecia ter
marcado para a durabilidade e para a permanência! Entre
aqueles onze reinos, só dois cobriram um período menor
que quinze anos.
Aquela extraordinária continuidade no exercício e
na transmissão do poder, tinha permitido, e talvez mesmo
determinado, a formação da unidade nacional.
O vínculo feudal, puramente pessoal de vassalo
para suserano, do mais fraco para o mais forte, ia sendo
substituído progressivamente por outro vínculo, por
aquele outro contrato que une os membros de uma vasta
comunidade humana, por muito tempo submetida às
mesmas vicissitudes e às mesmas leis.
Se a idéia de nação ainda não era evidente, seu
princípio, sua representação, já existiam na pessoa real,
fonte suprema de autoridade e supremo recurso. Quem
pensasse em “o rei”, pensava também em “a França”.
E Filipe, o Belo, durante toda a sua vida, aplicara-
se em cimentar aquela unidade nascente, pela forte
centralização administrativa e pela destruição sistemática
dos podêres exteriores ou particulares.
Ora, mal o Rei de Ferro desapareceu, seu filho Luís
X o seguiu ao túmulo. O povo, diante daquelas duas
mortes sobrevindas uma após a outra, ferindo reis em
plena força da vida, não podia deixar de ver nisso o signo
da fatalidade.
Luís X, o Turbulento, reinara dezoito meses, seis
dias e dez horas. Não fora necessário mais tempo àquele
lastimável monarca para arruinar em grande parte a obra
de seu pai. Durante seu governo, a rainha fora assassinada
e o primeiro-ministro enforcado. A fome assolara a
França, duas províncias revoltaram-se, um exército inteiro
afundou-se na lama da Flandres. A alta nobreza retomava
a dianteira sobre o poder real, a reação era todo-poderosa
e o tesouro estava a seco.
Luís X ascendera ao trono quando o mundo estava
sem papa, e partia sem que se tivesse ainda chegado a um
acôrdo sobre a escolha de um pontífice. Deixava a
cristandade à beira do cisma.
Agora, a França estava sem rei.
Porque, de seu casamento com Margarida de
Borgonha, Luís X deixava apenas uma filha de cinco anos,
Joana de Navarra, sobre a qual pesavam fortes suspeitas
de bastardia. De seu segundo casamento ficava somente
uma esperança: a Rainha Clemência estava grávida, mas
só daria à luz dentro de cinco meses. Enfim, dizia-se,
abertamente, que o Turbulento fora envenenado.
Nada tendo sido previsto para a organização da
regência, as ambições pessoais atirar-se-iam ao assalto do
poder. Em Paris, o Conde de Valois tentava fazer-se
reconhecer como regente. Em Dijon, o Duque de
Borgonha, irmão de Margarida, a assassinada, e chefe de
poderosa liga baronial, ia empreender a vingança da morte
de sua irmã, fazendo-se campeão dos direitos de sua
sobrinha. Em Lião, o Conde de Poitiers, primeiro irmão do
Turbulento, via-se envolvido nas intrigas dos cardeais e
esforçava-se inutilmente por obter uma decisão do
conclave. Os flamengos só aguardavam ocasião propícia
para retomar as armas, e os senhores d’Artois
continuavam sua guerra civil.
Seria preciso tanto para que a memória do povo
recordasse o anátema lançado pelo grão-mestre dos
Templários, dois anos antes, do alto de sua fogueira?
Numa época disposta às crendices, não seria difícil
perguntar, a si próprio, naquela primeira semana de junho
de 1316, se a raça dos Capetos não estaria, dali por diante,
maldita.
Primeira Parte
Filipe Portas – Fechadas

I
A RAINHA BRANCA

AS RAINHAS usam luto branco.


Branca, a faixa de tecido fino que envolvia o
pescoço, aprisionando o queixo até a boca e deixando
aparecer apenas o centro do rosto; branco, o grande véu
que cobria a fronte e as sobrancelhas; branco, o vestido
fechado nos punhos e tombando até os pés. Esse era o
trajo quase monacal que acabava de vestir, provavelmente
pelo resto da vida, a Rainha Clemência da Hungria, viúva
aos vinte e três anos do Rei Luís X, depois de dez meses
de casamento.
Dali por diante ninguém mais veria seus admiráveis
cabelos de ouro, nem o oval perfeito de seu rosto, nem
aquele brilho, aquele tranqüilo esplendor, que tinham
impressionado os que dela se aproximavam, e tornado
célebre a sua beleza.
A máscara estreita e patética, que se recortava
agora entre aqueles linhos imaculados, trazia a marca das
noites de insônia e dos dias de lágrimas. O próprio olhar
modificara-se: não se fixava em nada de preciso, e parecia
flutuar à superfície dos seres e das coisas. A bela Rainha
Clemência já assumira o aspecto que teria a sua estátua
jacente.
Entretanto, sob as pregas de seu trajo, nova vida se
ia formando. Clemência esperava um filho, e o
pensamento de que seu esposo jamais o conheceria
obsedava-a.
“Se Luís tivesse vivido ao menos o bastante para
vê-lo nascer!”, dizia consigo. “Cinco meses, somente
cinco meses mais! Como ficaria alegre, especialmente se
fôr homem.. . Por que não fiquei grávida desde nossa noite
de núpcias!...”
A rainha voltou a cabeça, com um gesto frágil, para
o Conde de Valois, que, em passo de galo gordo, andava
de cá para lá através do aposento.
— Mas por que, meu tio, por que haviam de
envenená-lo tão perversamente? — perguntou ela. — Não
praticava todo o bem que podia? Por que procurais sempre
a perfídia dos homens onde, sem dúvida, é a vontade de
Deus que se manifesta?
— Sois a única a atribuir a Deus, nesta ocasião, o
que mais parece pertencer aos artifícios do diabo —
respondeu Carlos de Valois.
O chapéu de alta crista atirado para as costas, o
nariz forte, as faces amplas e coradas, o estômago
projetado, e vestido com o mesmo trajo de veludo preto,
com fechos de prata, que usara dezoito meses antes, no
enterro de seu irmão Filipe, o Belo, Monsenhor de Valois
chegava de Saint-Denis, onde acabava de inumar seu
sobrinho Luís X. A cerimônia, aliás, apresentara-lhe
alguns problemas, porque, pela primeira vez desde que
fora instaurado o ritual para os funerais régios, os oficiais
do Palácio, depois de terem gritado: “O Rei morreu!”, não
tinham podido acrescentar: “Viva o Rei!” E não se sabia
diante de quem fazer os gestos destinados ao novo
soberano.
— Pois bem! Quebrareis vosso bastão diante de
mim — dissera Valois ao camareiro-mor, Mateus de Trye.
— Sou o mais velho da família, e o melhor indicado para
tanto.
Seu meio irmão, o Conde d’Evreux, insurgira-se,
porém, contra a estranha inovação, da qual Carlos de
Valois não deixaria de tirar argumentos para se fazer
reconhecer como regente.
— O mais velho da família, se quereis vê-lo por
esse prisma — disse o Conde d’Evreux — não sois vós,
Carlos. Nosso tio Roberto de Clermont é filho de São
Luís. Esquecei-vos de que ele é ainda vivo?
— Sabeis muito bem que o pobre Roberto está
louco e que não se pode contar com aquela cabeça
transtornada para coisa alguma — replicara Valois dando
de ombros.
Finalmente, ao terminar o repasto fúnebre, servido
na abadia, o camareiro-mor quebrou a insígnia de suas
funções diante de uma cadeira vazia.
— Luís não dava esmolas aos pobres? Não tinha
agraciado muitos prisioneiros? — recomeçou Clemência,
como se procurasse convencer a si própria. — Era uma
alma generosa, eu vos afirmo... Se pecou, arrependeu-se...
Não era aquele, evidentemente, o momento
oportuno para contestar as virtudes com que a rainha
adornava a memória ainda tão recente de seu esposo.
Carlos de Valois, apesar disso, não pôde reter um gesto
mal-humorado.
— Sei disso, minha sobrinha, sei disso —
respondeu. — Sei que tivestes sobre ele uma grande
influência no sentido piedoso, e que o rei se mostrou
muito generoso... convosco. Mas não é apenas com
orações que se governa, nem cobrindo de presentes
aqueles que amamos. E o arrependimento não basta para
desarmar os ódios que semeamos.
Clemência pensou : “Aí está... aí está Carlos, que se
atribuía todos os méritos do poder enquanto Luís era vivo,
e já o renega. Quanto a mim, depressa serei censurada
pelos presentes que ele me fêz. Tornei-me a estrangeira...”
Estava demasiado fraca, demasiado abatida. Não
tinha forças para indignar-se. Disse, apenas:
— Não posso acreditar que Luís fosse odiado a
ponto de desejarem matá-lo.
— Pois bem, não o acrediteis, minha sobrinha —
exclamou Valois — mas o fato aí está! A primeira prova
foi aquele cão que lambeu os panos de que se serviram
para lhe retirar as entranhas, durante o embalsamamento, e
que estrebuchou uma hora depois. Há...
Clemência fechou os olhos e apertou as mãos sobre
os braços de sua poltrona, para não cambalear diante da
visão que impunham ao seu espírito. Era de seu marido,
do rei que dormira contra seu flanco, do pai da criança que
ela trazia em si, que tinham a crueldade de falar daquela
maneira, obrigando-a a fazer a imagem mental do cadáver
oferecido à lâmina dos embalsamadores?
Monsenhor de Valois continuava seu macabro
raciocínio. Quando se calaria aquele homem gordo,
frenético, autoritário, vaidoso, que, ora vestido de azul,
ora de vermelho, ora de preto, aparecera em todos os
momentos importantes ou trágicos da vida de Clemência,
naqueles dez meses em que ela estava na França, para
repreendê-la, aturdi-la com palavras e levá-la a agir contra
a sua vontade? Já na manhã do casamento, em Saint-Iyé, o
tio Valois, que Clemência jamais tinha visto, esteve quase
a arruinar-lhe a cerimônia, instruindo-a sobre intrigas da
corte, intrigas das quais ela nada compreendera...
Clemência revia Luís vindo ao encontro dela, pela estrada
de Troyes... e a igreja do campo, o aposento do pequeno
castelo, rapidamente improvisado em câmara nupcial...
“Terei sabido gozar suficientemente minha felicidade?
Não, não quero chorar diante dele”, pensou.
— Não sabemos ainda — prosseguiu Valois -—
quem seja o autor dessa horrível perversidade. Havemos
de descobri-lo, entretanto, minha sobrinha, eu vos prometo
solenemente... se me derem os meios necessários, é
evidente. Nós, os reis...
Valois jamais perdia a ocasião de lembrar que usara
duas coroas, puramente nominais, mas que, ainda assim,
colocavam-no em pé de igualdade com os príncipes
soberanos* (1).
— ... nós, os reis, temos inimigos, que menos o são
de nossas pessoas do que das decisões emanadas de nosso
poder. E não falta gente a quem interessaria tornar-vos
viúva. Há os Templários, cuja Ordem foi destruída, o que
representou grande erro, bem que eu disse muitas vezes!
Formaram uma liga secreta e juraram a perda de meu
irmão e de seus filhos. Meu irmão morreu, seu primeiro
filho seguiu-o na morte. Há os cardeais romanos...
Lembrai-vos daquela tentativa de enfeitiçamento que o
Cardeal Caetani fêz contra Luís e contra vosso cunhado de
Poitiers, desejando despachar os dois. O caso foi
descoberto, mas Caetani bem poderia tentar o ataque de
outra forma. Que quereis? Não é possível desalojar um
papa do trono de São Pedro, como fêz meu irmão, sem
que se guardem ressentimentos! Pode ser, também, que os
partidários do Duque da Borgonha recebessem mal o
castigo de Margarida, e admitissem ainda menos que a
tenhais substituído...
Clemência olhou diretamente para os olhos de
Carlos de Valois, que se perturbou e corou um pouco.
Tinha chafurdado razoavelmente no assassinato de
Margarida, e compreendeu que Clemência o sabia, sem
dúvida através de imprudentes confidencias de Luís...
Clemência, porém, nada disse: evitaria, sempre,
tocar em tal assunto. Sentia-se sob a carga de uma
responsabilidade involuntária, já que aquele marido, cuja
*
Os números, no texto, referem-se às notas históricas do fim do
volume.
alma virtuosa ela gabava, ainda assim mandara asfixiar
sua primeira esposa, a fim de se casar com ela, a sobrinha
do rei de Nápoles. Seria preciso procurar alhures a causa
do castigo de Deus?
— E ainda há a Condêssa Mafalda, vossa vizinha
— apressou-se a continuar Valois — que não é mulher
para recuar diante de um crime, por pior que seja...
“Em que é ela diferente de vós?”, pensou
Clemência, sem ousar responder-lhe. “Não me parece que
nesta corte hesitem diante do assassinato.”
— ... Ora, Luís, há menos de um mês, confiscou-
lhe o condado de Artois, para obrigá-la a submeter-se.
Por um momento, Clemência perguntou a si própria
se, inventando tantos possíveis culpados, Valois não seria
pessoalmente o autor do crime. Aquele pensamento, que
não podia, aliás, apoiar-se em qualquer raciocínio sensato,
causou-lhe imediatamente horror. Não, ela proibia a si
mesma de suspeitar de quem quer que fosse: queria que
Luís tivesse morrido de morte natural... Entretanto, e
inconscientemente, o olhar de Clemência, através da
janela aberta, voltava-se para a folhagem da floresta de
Vincennes, para o sul, na direção do castelo de Conflans,
residência de verão da Condêssa Mafalda... Alguns dias
antes da morte de Luís, Mafalda, em companhia de sua
filha, a Condêssa de Poitiers, viera fazer uma visita a
Clemência. Uma visita muitíssimo amável. Clemência não
as tinha deixado a sós nem por um instante. Haviam
admirado as tapeçarias do aposento...
“Não há nada que envileça mais do que suspeitar de
felonia alguém entre os que nos rodeiam”, pensava
Clemência, “e começar a procurar a traição em cada
rosto...”
— Por isso, minha cara sobrinha — recomeçou
Valois — é que precisais concordar com o que vos peço, e
voltar a Paris. Sabeis quanto vos quero. Fiz vosso
casamento, e vosso pai era meu cunhado. Deveis ouvir-me
como a ele, se Deus no-lo tivesse conservado. A mão que
atacou Luís pode bem prosseguir em sua vingança, sobre
vós e sobre o fruto que trazeis em vós. Eu não poderia
deixar-vos assim, no meio da floresta, entregue às
maquinações dos perversos, e não terei paz senão quando
vos vir instalada mais perto de mim.
Havia uma hora que Valois se esforçava para
conseguir de Clemência que ela voltasse para o palácio da
Cité, porque resolvera transferir-se também para lá.
Aquilo constituía parte de seu plano, a fim de impor-se
como regente, colocando o conselho dos Pares diante do
fato consumado. Quem mandasse como senhor no palácio,
ganhava foros de realeza. Instalar-se sozinho, ali,
entretanto, poderia tomar aspecto de um golpe de força ou
de uma usurpação. Se Valois, ao contrário, entrasse na
Cité acompanhando sua sobrinha, como parente mais
próximo e protetor, ninguém poderia opor-se a tal. O
ventre da rainha constituía, no momento presente, o
melhor penhor de prestígio e o mais eficaz instrumento de
governo.
Clemência voltou os olhos, como que pedindo
assistência, para um terceiro personagem, que estava a
alguns passos dela, e silencioso, com as mãos cruzadas
sobre os punhos de uma espada alta, seguia a conversação.
— Bouville, que devo fazer?... — murmurou ela.
Hugo de Bouville, o antigo camareiro-mor de
Filipe, o Belo, fora nomeado curador do ventre pelo
primeiro conselho que se seguira à morte do Turbulento.
Aquele bom homem, barrigudo, grisalho, mas ainda
muitíssimo alerta, servidor exemplar da realeza havia
trinta anos, tomara sua nova missão mais do que a sério.
Tomara-a de forma dramática. Constituíra uma guarda de
gentis-homens cuidadosamente selecionados, que se
revezavam em grupos de vinte e quatro à porta da rainha.
Êle próprio estava vestido como para a guerra, e suava em
grossas bagas, pelo calor de junho, sob sua cota de
malhas. Os muros, os pátios, os arredores de Vincennes,
estavam recheados de archeiros. Cada assistente da
cozinha tinha a escolta permanente de um sargento. E as
próprias damas de honor deviam ser revistadas antes de
entrarem nos apartamentos. Jamais vida humana fora mais
cerradamente protegida do que aquela que dormitava no
seio da rainha da França.
Bouville, teoricamente, partilhava sua
responsabilidade com o sire de Joinville, que fora
designado como segundo curador. Tinham pensado nele
porque se encontrava justamente em Paris, onde viera
receber, como fazia duas vezes por ano, e com a
pontualidade desconfiada dos anciões, a renda das
dotações que lhe haviam sido concedidas por três reis
sucessivos, e, em particular, por ocasião da canonização
de São Luís. O senescal hereditário de Champanha,
entretanto, tinha agora noventa e dois anos, e era,
praticamente, o decano da alta nobreza francesa. Quase
cego, aquela última viagem, do seu castelo de Wassy no
alto Marne a Paris, fatigara-o muito. Passava a maior parte
do tempo dormitando, em companhia de dois escudeiros
de barbas brancas, e, dessa maneira, todos os encargos
tinham de ser atendidos por Bouville.
Para a Rainha Clemência, Bouville era pessoa
ligada a todas as suas lembranças felizes. Fora o
embaixador que a pedira em casamento, escoltando-a,
depois, desde Nápoles. Era o confidente imensamente
devotado, e, provavelmente, o único, amigo verdadeiro
com que ela contava na corte da França. Bouville
compreendera bem que Clemência não queria sair de
Vincennes.
— Monsenhor — disse ele a Valois — posso
garantir melhor a guarda da rainha neste solar
completamente fechado pelas muralhas, do que no grande
palácio da Cité, aberto a quem quer que chegue. E se é a
vizinhança da Condêssa Mafalda que temeis, posso dizer-
vos, pois que me mantenho informado sobre todos os
movimentos da redondeza, que a Senhora Mafalda está,
neste momento, fazendo as malas para ir a Paris.
Valois já estava bastante agastado com a
importância que Bouville tomara depois que era o curador,
e com a insistência dele em ficar ali, plantado sobre a sua
espada, ao lado da rainha.
— Messire Hugo — disse ele, com altivez —-
tendes o encargo de velar pelo ventre e não de resolver
sobre a residência da família real, nem de defender,
sozinho, todo o reino.
Sem se perturbar, Bouville respondeu:
— Desejo lembrar-vos também, Monsenhor, que a
rainha não pode aparecer em público durante os quarenta
dias de seu luto.
— Mas eu conheço os costumes, tanto como vós,
meu caro! Quem vos disse que a rainha precisará
aparecer? Faremos o caminho em carro fechado... Enfim,
minha sobrinha — exclamou Valois, voltando-se para
Clemência — até parece que desejo enviar-vos para o país
do Grande Cã, e que Vincennes fica a duas mil léguas de
Paris!
— Compreendei, meu tio — disse Clemência, com
voz frágil — esta morada de Vincennes é o último
presente que recebi de Luís. Êle fêz-me doação desta casa,
ali, e estáveis presente... (ela agitava a mão na direção do
quarto onde Luís X morrera) a fim de que eu morasse
nela... Parece-me que ele ainda não partiu,
verdadeiramente. Compreendei... foi aqui que tivemos...
Mas Monsenhor de Valois nada podia compreender
das exigências da memória nem das fantasias da dor.
— Vosso esposo, pelo qual oramos, minha querida
sobrinha, pertence doravante ao passado do reino. Vós,
porém, trazeis convosco o seu futuro. Expondo vossa vida,
expondes a de vosso filho. Luís, que lá do alto vos vê, não
vos perdoará tal coisa.
Tocara o ponto nevrálgico, e Clemência, sem nada
dizer, encolheu-se um tanto em sua cadeira.
Bouville, porém, declarou que nada podia decidir
sem a aprovação do sire de Joinville, que foram procurar
na mansão. Esperaram vários minutos, depois a porta
abriu-se, e ainda esperaram. Enfim, vestido com um trajo
comprido, como os que eram usados no tempo da cruzada,
tremendo sobre as pernas, a pele maculada e semelhante à
casca de uma árvore, a pálpebra lacrimejante, a pupila
desbotada, o último companheiro de São Luís apareceu,
arrastando seus sapatos, e amparado por dois escudeiros
quase tão arruinados quanto ele. Sentaram-no com todas
as atenções que lhe deviam, e Valois tomou a si explicar-
lhe suas intenções no que se referia à rainha. O ancião
ouvia, sacudindo a cabeça compungidamente, e
visivelmente satisfeito por ter um papel ainda a
representar. Quando Valois acabou, o senescal engolfou-
se em meditação que todos evitaram perturbar. Esperava-
se o oráculo que ia tombar de sua boca. E, subitamente,
ele perguntou:
— Mas, então, onde está o rei?
Valois tomou expressão desolada. Tanto trabalho
inútil, quando o tempo urgia! O senescal ainda
compreenderia o que lhe diziam?
— Vejamos! O rei morreu, sire de Joinville —
respondeu ele — e nós o enterramos esta manhã. Sabeis
bem que fostes nomeado curador...
O senescal franziu a testa e pareceu fazer grande
esforço de reflexão. Aquela falha da lembrança, aliás, não
era nova nele. Ditando suas famosas Memórias, quase aos
oitenta anos, não se apercebera de que estava repetindo,
textualmente quase, no fim da segunda parte, o que já
dissera na primeira...
— Sim, nosso jovem Rei Luís — disse ele,
finalmente. —
Morreu. Foi a ele que apresentei meu grande livro.
Sabeis que é o... quarto rei que vejo morrer?
Contava aquilo como se fosse uma façanha.
— Então, se o rei morreu, a rainha é regente —
declarou.
Monsenhor de Valois ficou escarlate. Tinha feito
escolher como curadores um caduco e um medíocre,
pensando poder manobrá-los à sua vontade. Seus cálculos
voltavam-se contra ele, e daqueles dois homens é que lhe
vinham as piores dificuldades.
— A rainha não é regente, messire senescal, ela
está grávida — exclamou ele. — Não pode de forma
alguma ser regente enquanto não se souber se foi um rei
que nasceu! Depois, estais vendo o estado dela, e se está
em condições de atender os encargos do reino!
— Sabeis que quase não enxergo — respondeu o
ancião.
A fronte apoiada na mão, Clemência pensava
apenas: “Quando acabarão com isso? Quando me deixarão
em paz?”
Joinville começou a explicar em que condições, por
ocasião da morte do Rei Luís VIII, a Rainha Branca de
Castela assumira a regência, para grande satisfação de
todos.
— Madame Branca de Castela... dizia-se bem
baixinho... não era tão pura como a imagem que dela
fizeram. Parece que o Conde Thibaut de Champanha, do
qual messire meu pai era um bom amigo, serviu-a até em
seu leito...
Foi preciso deixá-lo falar. O senescal esquecia
facilmente os acontecimentos da véspera, mas lembrava-
se precisamente do que lhe haviam contado de sua mais
remota infância. Encontrara um auditório, e aproveitava-se
disso. Suas mãos, agitadas pelo tremor senil, roçavam
continuamente a seda do manto, sobre os joelhos.
— E mesmo quando nosso santo rei partiu para a
cruzada, onde estive com ele...
— A rainha residia em Paris durante esse tempo,
não é verdade? — interrompeu Carlos de Valois.
— Sim... sim... —- acedeu o senescal.
Foi Clemência quem primeiro desistiu da luta.
— Pois bem! Seja, meu tio — disse ela — farei
vossa vontade e voltarei para a Cité.
— Oh! Eis, enfim, uma decisão sensata, que
messire Joinville aprova, com certeza.
— Sim... sim...
— Vou tomar todas as providências. Vossa escolta
será comandada por meu filho Filipe e por nosso primo
Roberto d’Artois...
— Muitíssimo obrigada, meu tio, muitíssimo
obrigada — disse Clemência, quase a desfalecer. —
Agora, porém, peço que me façam todos a graça de
deixar-me rezar.
Uma hora mais tarde, cumprindo as ordens do
Conde de Valois, o castelo de Vincennes estava em pleno
alvoroço. Tiravam-se as carroças das cocheiras, e os
chicotes estalavam sobre as ancas dos grandes cavalos do
Perche. Servos passavam correndo, e os archeiros haviam
abandonado suas armas para auxiliar os homens das
cavalariças. Já que desde o início do luto todos se viram
obrigados a falar em voz baixa, encontravam agora uma
oportunidade de gritar. E se realmente alguém pretendesse
atentar contra a vida da rainha, aquele teria sido o
momento propício.
No interior da mansão, os tapeceiros desprendiam
reposteiros, desmontavam móveis, transportavam
credencias, armários--estantes e cofres. Os oficiais do
palácio da rainha e as damas de honor precisavam apressar
também as suas bagagens. Contava-se com um primeiro
comboio de vinte veículos, e, sem dúvida, a mudança
exigiria mais de duas viagens.
Clemência da Hungria, envolvida em seu comprido
trajo branco, com o qual ainda não se habituara, errava de
aposento em aposento, sempre escoltada por Bouville. Por
toda a parte, a poeira, o suor, a agitação, o aspecto de
pilhagem que acompanha as mudanças. O tesoureiro, de
inventário em punho, vigiava a expedição da baixela e dos
objetos raros, que tinham sido reunidos e ocupavam todo o
piso de lajes de uma sala: os pratos de mesa, as jarras, os
doze hanapes* de prata dourada que Luís mandara fazer
para Clemência, o grande relicário de ouro contendo um
fragmento da Verdadeira Cruz, e tão pesado que o homem
incumbido de transportá-lo estafava-se sob a carga, como
se subisse ao Calvário.
No quarto da rainha, a primeira roupeira, Eudelina,
que fora amante de Luís X quando ele ainda não se havia
casado com Margarida, dirigia a embalagem das roupas.
— Para que... para que levar todas essas roupas,
pois que de nada mais me servirão! — disse Clemência.
E as jóias, também, fechadas em pesadas caixas de
ferro, todas aquelas fivelas, aqueles anéis, aquelas pedras
raras com as quais Luís a cumulara durante o breve
período de sua vida conjugai, seriam, dali por diante,
objetos inúteis. Mesmo as três coroas cravejadas de
esmeraldas, de rubis e de pérolas, eram altas demais e
adornadas para que uma viúva pudesse usá-las. Simples
círculo de ouro, com pequenas flôres-de-lis, colocado
sobre o véu, eis a única jóia real a que ela teria direito,
mais tarde.
“Passei a ser uma rainha branca, como vi acontecer
com minha avó Maria da Hungria”, pensava ela. “Mas
minha avó tinha passado dos sessenta anos e dera à luz
treze filhos... Meu esposo nem mesmo verá seu filho...”
*
Grande copo de pé, de metal, usado na Idade Média.
— Madame — perguntou Eudelina — devo ir
convosco para o palácio? Ninguém me deu ordens... *
Clemência olhou para a linda mulher loura, que,
esquecendo inteiramente o ciúme, fora para ela de
tamanho préstimo durante aqueles últimos meses, e,
sobretudo, durante a agonia de Luís. “Teve uma filha dela,
e afastou essa criança, meteu-a num convento... Será por
isso também que o Céu nos puniu?” Sentia-se carregada
com todas as faltas que Luís cometera antes de conhecê-la,
e destinada a resgatá-las pelo sofrimento. Teria a vida
inteira para pagar a Deus com lágrimas, orações e
esmolas, o oneroso preço da alma de Luís.
— Não — murmurou ela — não, Eudelina. Não me
acompanhe. É preciso que aqui fique alguém que o tenha
amado.
Depois, afastando até mesmo Bouville, refugiou-se
no único aposento sossegado, o único que fora respeitado,
o quarto onde seu esposo expirara.
As cortinas fechadas enchiam de sombra o local.
Clemência foi ajoelhar-se junto do leito, pousou os lábios
sobre a coberta de brocado.
Subitamente, sentiu como que um raspar de unha
contra o tecido. Foi tomada de angústia, o que lhe provou
existir ainda nela vontade de viver. Durante um momento
permaneceu imóvel, retendo o fôlego. Atrás, continuava o
rumor. Prudentemente, virou a cabeça. Era o senescal de
Joinville, que tinham depositado ali, a um canto do
aposento, aguardando a partida.
II

UM CARDEAL QUE NÃO ACREDITAVA NO


INFERNO

A NOITE de junho começava a empalidecer e uma


delgada faixa cinzenta, marcando a linha do céu, a leste,
anunciava que a aurora depressa se ergueria sobre a cidade
de Lião.
Era a hora em que as carroças punham-se a
caminho, nos campos das redondezas, para levar à cidade
legumes e frutas, a hora em que as corujas emudeciam e
ainda não se ouvia o cântico dos pássaros. Era também a
hora em que, por trás das ogivas estreitas de um dos
apartamentos de honra da abadia de Ainay, o Cardeal
Duèze pensava na morte.
O cardeal jamais sentira grande necessidade de
dormir, mas, com a idade, tal necessidade diminuía cada
vez mais. Três horas de sono eram-lhe amplamente
suficientes. Pouco depois de meia-noite, levantava-se e
instalava-se diante de sua secretária. Homem de
inteligência pronta e de prodigioso saber, habituado a
todas as disciplinas do pensamento, compusera tratados de
Teologia, de Direito, de Medicina e Alquimia, que eram
respeitados como autoridade entre os clérigos e doutores
de seu tempo.
Naquela época em que a grande esperança, do
pobre como do príncipe, era a fabricação do ouro, muito
se referiam às doutrinas de Duèze sobre os elixires
destinados à transmutação dos metais.
As coisas com que se pode fazer o elixir são três —
podia ler-se em sua obra intitulada “O Elixir dos
Filósofos”: os sete metais, os sete espíritos, e as outras
coisas... Os sete metais são: sol, lua, cobre, estanho,
chumbo, ferro e mercúrio; os sete espíritos são: azougue,
enxofre, sal-amoníaco, ouro-pigmento, tutia, magnésia,
marcassita; e as outras coisas são: mercúrio, sangue de
homem, sangue de cabelo e de urina, e a urina é do
homem (2) ...
Com setenta e dois anos, o cardeal descobrira ainda
domínios nos quais não se expressara, e completava sua
obra, enquanto seus semelhantes dormiam. Usava,
sozinho, tantas velas quanto toda uma comunidade de
monges.
Durante as suas noites trabalhava também na
enorme correspondência que mantinha com inúmeros
prelados, abades, juristas, sábios, chanceleres e príncipes
soberanos, através da Europa. Seu secretário e seus
copistas encontravam, pela manhã, o trabalho preparado
para o dia inteiro.
Ou, então, debruçava-se sobre o tema astrológico
de um de seus rivais no conclave, comparava-o com o seu
céu pessoal, e interrogava os planetas a fim de saber se ele
usaria a tiara. Segundo os astros, suas possibilidades mais
fortes de tornar-se papa colocavam-se entre o início de
agosto e o início de setembro do ano em curso. Ora,
estava-se já no dia 10 de junho, e não havia o menor
indício a esse respeito...
Depois, vinha o momento penoso da antemanhã.
Como se tivesse tido a premonição de que deixaria o
mundo justamente àquela hora, o cardeal sentia, então,
angústia difusa, vago desassossêgo, tanto de corpo como
de espírito. Pela sugestão do cansaço, interrogava-se sobre
os atos que realizaria, e suas lembranças podiam
apresentar-lhe o desenvolvimento de um destino
extraordinário... Proveniente de uma família burguesa de
Cahors, e ainda totalmente desconhecido com a idade em
que a maior parte dos homens daquele tempo já haviam
terminado sua carreira, sua vida parecia não ter começado
senão aos quarenta e quatro anos, quando partira
bruscamente para Nápoles, em companhia de um tio que
aí ia a negócios. A viagem, a mudança de país, a
descoberta da Itália, tinham agido sobre ele de maneira
estranha. Alguns dias após o desembarque, tornava-se
discípulo do preceptor das crianças reais, e lançava-se
apaixonadamente aos estudos abstratos, com um frenesi,
uma agilidade de compreensão, uma flexibilidade de
memória que os adolescentes de cérebro melhor dotado
poderiam invejar. Ignorava a fome, como ignorava a
necessidade do sono. Um pedaço de pão, muitas vezes, era
o suficiente para alimentá-lo durante todo um dia, e teria
suportado muito bem o regime da prisão com a condição
de que lhe fornecessem livros. Depressa fêz-se doutor em
Direito Canônico, depois em Direito Civil, e seu nome
começou a espalhar-se. A corte de Nápoles procurava as
opiniões do clérigo de Cahors.
Depois dessa sede de saber viera-lhe a sede de
poder. Conselheiro do Rei Carlos II d’Anjou-Sicília (avô
da Rainha Clemência), depois secretário dos conselhos
secretos e provido de inúmeros benefícios eclesiásticos,
dez anos após sua chegada era nomeado bispo de Fréjus, e
um pouco mais tarde alcançava a função de chanceler do
reino de Nápoles, isto é, de primeiro--ministro de um
Estado que compreendia ao mesmo tempo a Itália
Meridional e todo o condado da Provença.
Uma ascensão tão fabulosa, entre as intrigas da
corte, não pudera realizar-se apenas graças aos talentos do
jurista e do teólogo. Um episódio, conhecido de pouca
gente, pois era segredo da Igreja, mostrava bastante de que
aprumo e astúcia Duèze era capaz.
Alguns meses após a morte de Carlos II, fora
enviado em missão à corte papalina, quando o bispado de
Avinhão — o mais importante de tôda a cristandade, pois
que era sede da Santa Sé — estava vago. Sempre
chanceler, portanto detentor dos selos, redigiu
tranqüilamente uma carta, pela qual o novo rei de
Nápoles, Roberto, pedia para ele, Tiago Duèze, a cadeira
episcopal de Avinhão. Isso se passara em 1310. Clemente
V, desejoso de conseguir o apoio de Nápoles, numa época
em que suas relações com Filipe, o Belo, estavam bastante
abaladas, atendera imediatamente aquele pedido. A fraude
foi descoberta no dia em que o Papa Clemente e o Rei
Roberto, encontrando-se face a face, demonstraram a
mesma surpresa, o primeiro por não ter recebido
agradecimento algum com referência a tamanho favor
concedido, e o segundo porque achava um tanto
inconveniente aquela nomeação imprevista, que o privava
de seu chanceler. Era tarde demais. Em vez de deixar que
estalasse um escândalo inútil, o Rei Roberto tinha fechado
os olhos, preferindo manter ascendência sobre um homem
que agora ocupava uma das mais altas situações
eclesiásticas. E todos tiraram da situação o melhor partido.
Agora, Duèze era cardeal de cúria, e suas obras eram
estudadas em todas as universidades.
Mas, por muito espantoso que seja um destino, só
aparece sob tal aspecto aos que o contemplam do exterior.
Os dias vividos, repletos ou vazios, agitados ou tranqüilos,
são todos, igualmente, dias enterrados, e a cinza do
passado tem o mesmo peso em todas as mãos.
Tanto ardor, ambição e energia despendidos teriam
um sentido qualquer, e tudo devia, inelutàvelmente, ser
atirado para aquele Além, do qual as mais altas
inteligências e as mais difíceis ciências humanas
conseguiam apreender apenas retalhos indecifráveis? Por
que desejar tornar-se papa? Não teria sido mais sensato
encerrar-se no fundo de um claustro, no desapego total?
Despojar-se ao mesmo tempo do orgulho do
conhecimento e da vaidade de dominar... adquirir a
humildade da fé mais simples... preparar-se para
desaparecer... Mesmo esse gênero de meditação, porém,
tomava, no Cardeal Duèze, o tom de especulações
abstratas, e sua ansiedade diante da morte transformava-se
em debate jurídico com a divindade.
“Os doutores nos asseguram”, pensava ele naquela
manhã, “que as almas dos justos gozam, imediatamente
depois da morte, a visão beatífica de Deus, e essa é a sua
recompensa. Seja, seja... Mas, depois do fim do mundo,
quando os corpos ressuscitados houverem encontrado suas
almas, serem submetidos ao juízo final. Ora, Deus, que é
perfeito, não pode apelar de suas próprias sentenças. Deus
não pode cometer erros e despedir do paraíso os eleitos
que ali tiver admitido. De resto, não convém mais que a
alma entre na posse da alegria de Seu Senhor apenas no
momento em que, reunida a seu corpo, ela mesma seja
perfeita em sua natureza? Portanto... portanto, os doutores
enganam-se. Portanto, não haverá beatitude propriamente
dita nem visão beatífica antes do fim dos tempos, e Deus
só se deixará contemplar depois do Juízo Final. Até lá,
entretanto, onde ficam as almas dos mortos? Iremos
esperar sub altare dei, sob esse altar de Deus de que fala
João em seu Apocalipse?...”
Os passos de um cavalo, coisa muito rara a
semelhante hora, retiniram ao longo dos muros da abadia,
sobre os pequenos calhaus redondos que pavimentavam as
ruas melhores de Lião. O cardeal prestou ouvidos por um
momento, depois voltou ao seu raciocínio, cujas
conseqüências eram surpreendentes.
“... Porque se o Paraíso está vazio, pensava, isso
modifica singularmente a situação daqueles que
decretamos santos ou bem-aventurados... Mas o que é
verdadeiro para a alma dos justos, é forçosamente
verdadeiro, também, para a alma dos injustos. Deus não
puniria os maus antes de ter recompensado os bons. É no
fim do dia que o trabalhador recebe seu salário; no fim do
mundo é que o bom grão e o joio serão definitivamente
separados. Alma alguma habita atualmente o inferno,
porquanto a condenação não foi pronunciada. Vale dizer
que, até lá, o inferno não existe...”
Aquela posição era muito mais tranqüilizadora para
quem quer que pensasse na morte. Recuava a chegada do
supremo processo, sem fechar a perspectiva da vida
eterna, e combinava muito bem com aquela intuição,
comum à maioria dos homens, que diz ser a morte uma
queda no grande silêncio escuro, uma inconsciência
indefinida...
Com certeza, se semelhante doutrina viesse a ser
professada, causaria violentas reações, tanto entre os
doutores da Igreja como na crença popular, e o momento
seria mal escolhido, para um candidato à Santa Sé, de
pregar a inexistência ou a vacância do paraíso e do
inferno(3).
“Esperemos pelo fim do conclave”, dizia consigo o
cardeal.
Foi interrompido por um irmão-porteiro que bateu à
porta, comunicando-lhe a chegada de um mensageiro, que
vinha de Paris.
— Da parte de quem vem ele? — perguntou o
cardeal.
Duèze tinha voz abafada, sem ressonância,
inteiramente destituída de timbre, embora bastante
distinta.
— Da parte do Conde de Bouville — respondeu o
porteiro. — Deve ter vindo muito depressa, porque tem o
aspecto bem fatigado. Quando fui atender seu chamado à
porta, encontrei-o já meio adormecido, a cabeça contra o
batente.
— Faça-o entrar.
E o cardeal, que alguns minutos antes meditava
sobre a vaidade das ambições do mundo, pensou
imediatamente: “Será a propósito das eleições? A corte da
França tomaria partido abertamente pelo meu nome? Irão
propor-me uma barganha?...”
Sentia-se todo agitado, cheio de curiosidade e
esperança, e percorria o quarto em passinhos rápidos.
Duèze tinha a estatura de um menino de quinze anos,
focinho de rato sob fortes sobrancelhas brancas, ossatura
frágil.
Por trás dos vidros, o céu começava a fazer-se
rosado. Ainda não se poderia apagar as velas, mas já era a
alvorada. A hora má passara...
O mensageiro entrou, e, com o primeiro olhar, o
cardeal percebeu que não se tratava de um correio comum.
Aliás, um mensageiro de ofício teria posto imediatamente
um joelho em terra e estendido sua caixa de
correspondência, em vez de se conservar de pé, inclinando
a cabeça e dizendo: Monsenhor... Depois, a corte da
França, para mandar suas cartas, utilizava-se de vigorosos
cavaleiros, de sólida compleição, bem aguerridos, como o
grande Robin-Cuisse-Maria, que fazia freqüentemente o
percurso entre Paris e Avinhão, e não um rapazola
daqueles, de nariz pontudo, ao qual parecia custar muito
manter as pálpebras abertas e que titubeava de fadiga
sobre suas botas.
“Eis alguém que deixa transparecer muito seu
disfarce”, disse Duèze consigo. “Aliás, já vi este rosto
num lugar qualquer...”
Com sua mão curta e miúda fêz saltar os sinêtes da
carta, e depressa sentiu-se decepcionado. Não se tratava da
eleição, mas de um pedido de proteção para o mensageiro.
Apesar disso, Duèze quis ver naquilo um indício
favorável; quando Paris queria obter um serviço qualquer
das autoridades eclesiásticas era a ele que agora se dirigia.
— Allora, lei è il signore Guccio Baglione?* —
disse ele, ao terminar a leitura.
O jovem sobressaltou-se ao se ouvir interpelado em
italiano.
— Si, Monsignore...**
— O Conde de Bouville recomenda-o a mim para
que eu o tome sob minha guarda, e afaste-o das
perseguições de seus inimigos.
— Se aceitardes fazer-me esse favor, Monsenhor!
— Ao que parece o senhor teve alguma aventura
desastrosa que o forçou a fugir com essa libré —
continuou o cardeal, em sua voz rápida e sem ressonância.
— Conte-me isso. Bouville diz-me que o senhor fazia
parte de sua escolta, quando ele conduziu a Rainha
Clemência para a França. Com efeito, recordo-me, agora.
Vi-o junto dele... E o senhor é o sobrinho de messire

*
Então, falo com o Sr. Guccio Baglione?
**
Sim, monsenhor...
Tolomei, o capitão-general dos lombardos em Paris.
Muito bem, muito bem. Conte-me seu caso.
Tinha-se sentado e brincava maquinalmente com
uma grande estante giratória, em que ficavam os livros de
que se servia em seus trabalhos. Estava agora calmo,
tranqüilo, e disposto a distrair o espírito com os pequenos
problemas alheios.
Guccio Baglioni tinha nas pernas cento e vinte
léguas de cavalgada, percorridas em menos de quatro dias.
Não sentia mais os membros, névoa intensa enchia-lhe a
cabeça e ele teria dado tudo para deitar-se, ali, no chão
mesmo, e dormir... dormir...
Conseguiu dominar-se: sua segurança, seu porvir,
seu amor, tudo exigia que vencesse, por um momento
ainda, a sua fadiga.
— Eis o que se passou, Monsenhor: casei-me com
uma jovem da nobreza — respondeu ele.
Pareceu-lhe que aquelas palavras tinham saído da
boca de outro. Não eram as que ele gostaria de pronunciar.
Desejaria explicar ao cardeal que uma desgraça sem
precedentes tombara sobre ele, que era o homem mais
abatido, mais despedaçado do Universo, que sua vida
estava ameaçada, que fora, talvez, separado para sempre
da mulher sem a qual não poderia viver, que essa mulher
ia ser encerrada, que os acontecimentos tinham desabado
sobre eles havia uma semana, com tamanha violência e tão
inopinadamente, que o tempo parecera ter perdido suas
dimensões habituais e ele mesmo sentia-se como que
ausente do Universo... Ora, todo o seu drama, quando
precisou expô-lo, resumia-se nesta pequena frase:
“Monsenhor, casei-me com uma jovem da nobreza...”
— Ah! Sim — disse o cardeal. — Como se chama
ela?
— Maria de Cressay.
— Cressay... Ah... Não conheço.
— Precisei casar-me secretamente, Monsenhor: a
família opunha-se.
— Porque o senhor é um lombardo? Está claro, eles
ainda estão um tanto atrasados, na França. Na Itália, com
certeza... Bem, quer obter a anulação? Ora! Se o
casamento foi secreto...
— Não, Monsenhor, eu a amo e ela me ama —
disse Guccio. — Mas a família dela descobriu que ela
estava grávida, e os irmãos perseguiram-me, para matar-
me.
— Podem fazê-lo, tem o direito consuetudinário em
seu favor. O senhor colocou-se na situação de sedutor...
Quem vos casou?
— O frei Vicenzo.
— Fra Vicenzo... não conheço.
— O pior, Monsenhor, é que o padre morreu.
Assim, nem mesmo posso provar que somos realmente
casados... Mas não penseis que sou um covarde,
Monsenhor. Gostaria de bater-me. Aconteceu, apenas, que
meu tio dirigiu-se a messire de Bouville...
— ... que, muito sensatamente, o aconselhou a
afastar-se por algum tempo.
— Mas Maria vai ser enclausurada num convento!
Dizei--me, Monsenhor, achais que poderíeis fazê-la sair
de lá? Pensais que tornarei a encontrá-la?
— Ah! Uma coisa de cada vez, meu caro filho —
respondeu o cardeal, continuando a fazer girar a sua
estante. — Um convento? Pois bem, onde poderia ela
estar melhor, por ora?... Tenha esperança na mansuétude
infinita de Deus, da qual todos nós necessitamos tanto...
Guccio baixou a cabeça, com ar esgotado. Seus
cabelos negros estavam cobertos de poeira.
— Seu tio está em boas relações comerciais com os
Bardi? — continuou o cardeal.
— Sem dúvida, Monsenhor, sem dúvida. Os Bardi
são os vossos banqueiros, creio — respondeu Guccio, com
maquinai polidez.
— Sim, são meus banqueiros. Mas acho que,
ultimamente, parecem menos... menos fáceis de lidar do
que no passado. São uma companhia tão grande! Têm
agências em toda a parte. E ao menor pedido, precisam
consultar Florença. Mostram-se tão lentos como um
tribunal da Igreja... Seu tio tem muitos prelados entre seus
clientes?
As preocupações de Guccio estavam bem longe do
banco. A névoa ia adensando-se sobre sua fronte, e suas
pálpebras ardiam.
— Não. Temos, sobretudo, os grandes barões —
disse ele. — O Conde de Valois, o Conde d’Artois...
Ficaríamos grandemente honrados, Monsenhor...
— Falaremos disso mais tarde. No momento, o
senhor estáabrigado neste convento e passará como
homem a meu serviço.
Talvez lhe dêem um trajo de clérigo...
Providenciarei com o meu capelão. Pode despir essa libré
e ir dormir em paz, coisa de que me parece ter grande
necessidade.
Guccio cumprimentou, balbuciou algumas palavras
de gratidão e fêz um movimento na direção da porta.
Depois, detendo-se, disse:
— Não posso ainda despir-me, Monsenhor. Devo
entregar outra mensagem.
— A quem? — perguntou Duèze, imediatamente
desconfiado.
— Ao Conde de Poitiers.
— Confie-me a carta. Mandarei levá-la
imediatamente por um irmão.
— É que, Monsenhor, messire de Bouville fazia
muita questão...
— Sabe se essa mensagem tem algo a ver com o
conclave?
— Oh! Não, Monsenhor! É a propósito da morte do
rei.
O cardeal saltou de sua cadeira.
— O Rei Luís morreu? Mas por que não disse
antes?
— Aqui ainda não o sabiam? Pensei que vos
haviam prevenido, Monsenhor.
Na verdade, ele não pensava coisa alguma. Suas
desgraças, seu cansaço, fizeram-no esquecer aquele
acontecimento capital. Galopara em linha reta desde Paris,
mudando de cavalos nos mosteiros que lhe haviam
indicado, comendo às pressas, falando o menos possível, e
ultrapassara, sem o saber, os mensageiros oficiais.
— De que morreu ele?
— É isso, justamente, que messire de Bouville
deseja comunicar ao Conde de Poitiers.
— Crime? — cochichou Duèze.
— Ao que parece, o rei foi envenenado.
O cardeal refletiu por um instante.
— Eis o que pode mudar bastante as coisas — disse
ele, num murmúrio. — Designaram um regente?
— Não o sei, Monsenhor. Quando saí, falava-se
muito no Conde de Valois...
— Está bem, meu caro filho. Vá repousar...
— Mas, Monsenhor... e o Conde de Poitiers?
Os lábios finos e alongados do prelado esboçaram
sorriso rápido, que poderia passar por uma expressão de
benevolência.
— Não será muito prudente mostrar-se, e além
disso o senhor está caindo de cansaço — disse ele. — Dê-
me essa mensagem: para evitar-lhe qualquer censura, irei,
pessoalmente, levá-la.
Alguns minutos mais tarde, precedido por um
criado com um archote, como exigia sua dignidade, e
seguido de um secretário, o cardeal de cúria saía da abadia
de Ainay, entre o Ródano e Saône, e metia-se pelas ruelas
sombrias, freqüentemente estreitadas pelos amontoados de
imundícies. Magro, franzino, caminhava em passos
saltitantes, levando seus setenta e dois anos quase de
corrida. Seu trajo côr de purpura parecia dançar entre os
muros.
Os sinos das vinte igrejas e dos quarenta e dois
conventos de Lião soavam os primeiros ofícios. As
distâncias eram curtas, naquela cidade que ainda não
contava mais de vinte mil habitantes, dos quais a metade
entregava-se ao comércio da religião e a outra metade à
religião do comércio. O cardeal depressa chegou à
residência do cônsul, na qual estava alojado o Conde de
Poitiers.
III
AS PORTAS DE LIÃO

O CONDE de Poitiers acabava sua toilette da


manhã, quando seu camareiro anunciou-lhe a visita do
cardeal.
Muito alto, muito magro, o nariz proeminente, os
cabelos descendo sobre a fronte em mechas curtas e
tombando em cachos ao longo das faces, a pele fresca
como se costuma ter aos vinte e três anos, o jovem
príncipe, vestido com um trajo de interior feito de
camocas marmorizado, veio acolher Monsenhor Duèze,
beijando-lhe o anel com deferência.
Seria difícil encontrar contraste maior,
dessemelhança mais irônica do que entre aqueles dois
personagens, dos quais um fazia pensar num velho furão,
saído de sua toca, e o outro numa garça real atravessando
altivamente os pântanos.
— Apesar de hora matinal, Monsenhor — disse o
cardeal — não quis demorar-me em trazer minhas orações
no luto que vos atinge.
— Luto? — perguntou Filipe de Poitiers, com
ligeiro sobressalto.
Seu primeiro pensamento foi para sua esposa
Joana, que deixara em Paris, e que estava grávida de oito
meses.
— Vejo, então, que fiz bem, vindo prevenir-vos —
falou Duèze. — O rei, vosso irmão, morreu há cinco dias.
Na atitude de Filipe nada se alterou. Apenas uma
inspiração mais forte levantou-lhe o peito. Nada passou
sobre seu rosto, nem surpresa, nem emoção, nem mesmo
impaciência em obter mais pormenores.
— Agradeço-vos a solicitude, Monsenhor. Mas
como estais ao corrente de tal notícia... antes de mim?
— Por messire de Bouville, cujo mensageiro deu-se
grande pressa para que eu vos entregasse secretamente
esta carta.
O Conde de Poitiers abriu a mensagem e leu-a,
aproximando-a do nariz, pois era muito míope. Ainda
dessa vez não traiu sentimento algum. Simplesmente,
acabando a leitura, dobrou novamente a carta e guardou-a
em suas vestes. Depois, permaneceu silencioso.
O cardeal calava-se, afetando respeitar a dor do
príncipe, embora esse último não desse grandes provas de
aflição.
— Deus o guarde das penas do inferno — disse,
enfim, o Conde de Poitiers, para corresponder à atitude
devota do prelado.
— Oh... o inferno... — murmurou Duèze. —
Enfim, roguemos a Deus! Penso, também, na infortunada
Rainha Clemência, que vi crescer quando estive junto do
rei de Nápoles.
Uma princesa tão doce, tão perfeita...
— Oh! Sim, é uma grande lástima para a minha
cunhada
— disse Poitiers.
E, ao mesmo tempo, pensava: “Luís não deixou
disposição testamentária alguma para a regência. Segundo
escreve-me Bouville, meu tio Valois já se movimenta...”
— Que ides fazer, Monsenhor? Partireis
imediatamente para Paris? — perguntou o cardeal.
— Não sei, não sei ainda — respondeu Poitiers. —
Espero receber informações mais amplas. Ficarei à
disposição do reino.
Bouville, em sua carta, não lhe escondia que
desejava a sua volta. Como primeiro irmão do rei morto, e
par do reino, o lugar de Poitiers era no conselho da coroa,
onde, desde a primeira reunião, as dissensões tinham
estalado, a propósito da designação de um regente.
Por outro lado, entretanto, Filipe de Poitiers sentia
pena e repugnava-lhe, mesmo, deixar Lião antes de ter
terminado as tarefas empreendidas.
Antes de mais nada, tinha de concluir o contrato de
noivado entre sua terceira filha, Isabel, com cinco anos de
idade apenas, e o “delfinzinho” de Viennois, o pequeno
Guigues, que tinha seis. Negociara este casamento, na
própria Vienne, com o delfim João II de La Tour du Pin e
a delfina Beatriz, irmã da Rainha Clemência. Boa aliança,
que permitiria à coroa da França contrabalançar naquela
região a influência dos Anjou-Sicília. A assinatura do
contrato devia dar-se dentro de poucos dias (4).
Além disso, havia principalmente a eleição papal.
Durante semanas, Filipe de Poitiers tinha sulcado a
Provença, o Viennois e o Lyonnais, para ver, um após o
outro, os vinte e quatro cardeais dispersos (5), assegurando-
lhes que a agressão de Carpentras não se reproduziria, que
não lhes seria feita qualquer violência, dando a entender a
muitos que poderiam ter sua oportunidade, lutando pelo
prestígio da fé, pela dignidade da Igreja e pelo interesse
dos Estados. Enfim, à custa de muitas conversas e
dinheiro, conseguira reuni-los em Lião, cidade por muito
tempo submetida à autoridade eclesiástica, mas que
passara recentemente, nos últimos anos de Filipe, o Belo,
para as mãos do rei da França.
O Conde de Poitiers sentia-se prestes a alcançar o
alvo. Se partisse, não iria recomeçar tudo, os ódios
pessoais reacendendo-se, e o domínio da nobreza romana
ou o do rei de Nápoles suplantando o da França, os
diversos partidos acusando--se mutuamente de heresia? O
papado não iria voltar para Roma? “O que meu pai queria
tanto evitar”... dizia consigo Filipe de Poitiers. “Sua obra,
já de tal maneira arruinada por Luís e por nosso tio Valois,
será inteiramente destruída?”
Durante alguns instantes, o Cardeal Duèze teve a
impressão de que o jovem esquecera sua presença. E,
subitamente, Poitiers perguntou-lhe:
— O partido gascão vai manter a candidatura do
Cardeal de Pélagrue? Achais que vossos piedosos colegas
estão, enfim, dispostos a se reunir em assembléia?...
Sentai-vos, aqui, Monsenhor, e dizei-me claramente vosso
sentir. Em que estamos?
O cardeal vira muitos soberanos e homens de
governo, pois há um terço de século participava dos
negócios de reinos. Mas nunca encontrara outros que
tivessem tal domínio sobre si próprios. Ali estava um
príncipe de vinte e três anos, ao qual acabavam de
anunciar que o irmão morrera, que o trono estava
desocupado, e que não parecia ter outras preocupações
mais urgentes do que as complicações do conclave.
Sentados lado a lado, junto de uma janela, sobre
uma arca recoberta de damasco, os pés do cardeal mal
tocando o chão e o tornozelo delgado do Conde de Poitiers
batendo lentamente o ar, os dois homens tiveram uma
longa conversação.
Na realidade, segundo a exposição feita por Duèze,
a situação voltara sensivelmente ao ponto em que se
encontrava dois anos antes, depois da morte de Clemente
V.
O partido dos dez cardeais gascões, também
chamado o partido francês, continuava o mais numeroso,
mas era insuficiente para constituir, sozinho, a maioria
requerida dos dois terços do Sacro Colégio, ou seja,
dezesseis votos. Os gascões, considerando-se depositários
do pensamento do papa morto, ao qual todos eles deviam
o cardinalato, defendiam com firmeza a permanência da
sede em Avinhão e mostravam-se de uma unidade notável
contra os dois outros partidos. Entre eles, porém, havia
competição surda. Ao lado das ambições de Arnaldo de
Pélagrue cresciam as de Arnaldo de Fougères e de
Arnaldo Nouvel. Fazendo-se mútuas promessas,
procuravam derrubar uns aos outros.
— A guerra dos três Arnaldos — disse Duèze, com
sua voz cochichada. — Vejamos, agora, o partido dos
italianos.
Eram apenas oito, esses, mas despedaçados em três
facções. O temível Cardeal Caetani, sobrinho do papa
Bonifácio VIII, opunha-se aos dois cardeais Colonna, por
causa de uma rivalidade secular de famílias, que se tornara
ódio inexpiável depois do caso d’Anagni e da bofetada
aplicada por um Colonna no rosto de Bonifácio. Entre
esses adversários, oscilavam os outros italianos.
Stefaneschi, por hostilidade à política de Filipe, o Belo,
defendia Caetani, do qual, aliás, era parente. Napoleão
Orsini negaceava. Os oito só estavam coesos num ponto: a
volta do papado para a Cidade Eterna. Mas, nisso, sua
determinação era feroz.
— Sabeis bem, Monsenhor — continuava Duèze
— que por um momento estivemos arriscados ao cisma, e
que ainda estamos sob tal risco... Nossos italianos
recusavam-se a reunir-se na França e ainda há pouco
comunicaram que, se fosse eleito um papa gascão, não o
reconheceriam e elegeriam o seu, em Roma.
— Não haverá cisma — disse, calmamente, o
Conde de Poitiers.
— Graças a vós, Monsenhor, graças a vós, apraz-
me reconhecê-lo e eu o digo por toda a parte. Indo de
cidade a cidade levar a boa palavra, se ainda não
encontrastes o pastor, já conseguistes reunir o rebanho.
— Ovelhas custosas, Monsenhor! Sabeis que parti
de Paris com dezesseis mil libras, e que me foi preciso
pedir outro tanto, na semana passada? Jasão, junto de
mim, era senhor de pouca monta. Eu gostaria muito que
todos esses tosões de ouro não me escorregassem por
entre os dedos — disse o Conde de Poitiers, apertando
levemente as pálpebras para olhar bem de frente o cardeal.
Este último, que se havia amplamente beneficiado
daquelas liberalidades, por meios indiretos, não se deu por
achado, mas respondeu :
— Creio que Napoleão Orsini e Albertini de Prato,
e talvez mesmo Guilherme de Longis, que antes de mim
foi chanceler do rei de Nápoles, se desligariam com
bastante facilidade. Evitar um cisma valia tal preço.
Poitiers pensava: “Êle utilizou o dinheiro que lhe
demos para conseguir três votos entre os italianos. É
hábil”.
Quanto a Caetani, embora continuasse a bancar o
irredutível, sua situação já não era tão forte depois de
descobertas suas práticas de feitiçaria e sua tentativa de
enfeitiçar o rei da França e o próprio Conde de Poitiers. O
antigo templário Everardo, um semilouco, do qual Caetani
se servira para suas obras demoníacas, tinha falado um
tanto demais, antes de ir entregar-se à gente do rei...
— Trago aquele caso de reserva — disse o Conde
de Poitiers. — O perfume da fogueira poderia, no
momento oportuno, tornar Monsenhor Caetani um pouco
mais flexível.
Um sorriso leve, muito furtivo, passou sobre os
lábios delgados do velho prelado, ao pensamento de ver
grelhar outro cardeal, e ele acrescentou:
— Ao que parece, Francisco Caetani abandonou
completamente os negócios de Deus para ocupar-se
apenas dos de Satanás. Não teria sido ele quem fêz atingir
pelo veneno o vosso irmão, o rei, já que o feitiço não dera
resultado?
O Conde de Poitiers deu de ombros.
— Cada vez que morre um rei, afirma-se que ele
foi envenenado — respondeu. — Disseram isso de meu
ancestral Luís VIII, disseram-no de meu pai, que Deus o
guarde... Meu irmão tinha saúde bastante precária. Mas,
enfim, a coisa merece ser meditada.
— Resta, enfim — disse Duèze — o terceiro
partido, que chamam provençal, por causa do mais agitado
entre nós, o Cardeal de Mandagout...
Aquele último partido contava apenas com seis
cardeais, de origem diversa: meridionais, como os irmãos
Bérenger Frédol, ali vizinhavam com os normandos e com
um quercinês, que era o próprio Duèze.
O ouro com que Filipe os cobrira tornara-os mais
receptivos aos argumentos da política francesa.
— Somos os menores, somos os mais fracos —
disse Duèze — mas somos o apoio indispensável para
qualquer maioria. E já que gascões e italianos recusam-se
mutuamente um papa que poderia sair de suas fileiras,
então, Monsenhor...
— Então será preciso escolher um papa no vosso
grupo, não é verdade?
— Creio que sim, creio-o firmemente. Desde a
morte de Clemente eu disse isso. Não me ouviram.
Pensaram, sem dúvida, que eu estivesse pregando em
causa própria, porque, realmente, meu nome fora
pronunciado, sem que eu o quisesse.
Mas a corte de França nunca me outorgou grande
confiança.
— O caso, Monsenhor, é que éreis demasiado
abertamente amparado pela corte de Nápoles.
— E se eu não tivesse sido amparado por ninguém,
Monsenhor, quem, então, quem teria jamais velado por
mim! Não tenho outra ambição, podeis crer, senão ver os
negócios da cristandade, que estão bem maus, em ordem.
A tarefa do próximo sucessor de São Pedro será bem
pesada.
O Conde de Poitiers juntou as mãos longas diante
do rosto, e refletiu por alguns segundos.
— Pensais, Monsenhor, que os italianos, contra a
satisfação de não terem um papa gascão, aceitariam que a
Santa Sé ficasse em Avinhão, e que os gascões, pela
certeza de Avinhão, renunciariam ao seu candidato para
ligarem-se ao vosso terceiro partido?
O que significava, claramente: “Se vós, Monsenhor
Duèze, vos tornardes papa com o meu apoio,
comprometei-vos formalmente a conservar a residência
atual do papado?”
Duèze compreendeu perfeitamente.
— Essa, Monsenhor — disse ele — seria a solução
mais sensata.
— Vou guardar vossa preciosa opinião — disse
Filipe de Poitiers levantando-se, para pôr termo à
audiência.
Acompanhou o cardeal à saída.
O instante em que dois homens que tudo
aparentemente separa a idade, o aspecto, a experiência, as
funções, reconhecem-se de igual tempera e adivinham que
pode nascer entre eles uma colaboração e uma amizade,
esse instante depende mais de conjunções misteriosas do
destino do que das palavras trocadas.
No momento em que Filipe inclinava-se para beijar
o anel do cardeal, este murmurou:
— Serieis, Monsenhor, um excelente regente.
Filipe ergueu o corpo. “Sabia ele, então, que
durante todo o tempo não pensei noutra coisa?”, pensou. E
respondeu:
— Vós mesmo, Monsenhor, não serieis um
excelente papa?
Não puderam evitar um sorriso discreto, o ancião
com uma espécie de afeto paternal, o jovem com amistosa
deferência.
— Eu vos agradecerei se conservardes em segredo
a grave notícia que me trouxestes, até que seja
publicamente confirmada.
— Assim farei, Monsenhor, para servir-vos.
Tendo ficado só, o Conde de Poitiers refletiu
apenas por alguns segundos. Chamou seu primeiro
camareiro.
— Adão Héron, chegou algum mensageiro de
Paris? — perguntou.
— Não, Monsenhor.
— Então, mande fechar todas as portas de Lião.
IV
ENXUGUEMOS NOSSAS LÁGRIMAS

NAQUELA manhã, a população lionesa viu-se


privada de legumes. As carroças dos hortelãos ficaram
retidas fora dos muros, e as donas de casa vociferavam
diante dos mercados vazios. A única ponte, a que
atravessava o Saône (pois a ponte do Ródano ainda não
estava terminada), fora barrada pela tropa. Se não se podia
entrar em Lião, também não se podia sair da cidade.
Comerciantes italianos, viajantes, monges, ambulantes,
apoiados pelos basbaques e pelos desocupados,
aglomeravam-se em torno das portas e reclamavam
explicações. O guarda respondia invariavelmente a todas
as perguntas: “Ordem do Conde de Poitiers!” com esse ar
distante, importante, que tomam os agentes da autoridade
quando têm de aplicar uma medida cuja razão de ser eles
próprios ignoram.
— Mas eu tenho minha filha doente em Fourvière...
— Minha granja de Saint-Just incendiou-se ontem,
à tarde...
— O bailio de Villefranche vai me prender se eu
não lhe levar meus impostos hoje mesmo...
— Ordem do Conde de Poitiers!
E quando a pressão tornava-se um tanto forte, os
sargentos começavam a levantar suas maças.
Na cidade, estranhos rumores circulavam.
Uns garantiam que iam haver guerra. Mas com
quem? Ninguém podia dizê-lo. Outros afirmavam que
sangrento motim estalara durante a noite, junto do
convento dos Agostinhos, entre os homens do rei e o
pessoal dos cardeais italianos. Tinham ouvido passar os
cavalos. Citavam, mesmo, o número de mortes. Mas, para
as bandas dos Agostinhos, tudo estava calmo.
O arcebispo, Pedro de Savóia, sentia-se muito
inquieto, perguntando a si próprio se os acontecimentos de
antes de 1312 não estavam para se reproduzir e se não o
iriam constranger a abandonar, em proveito do arcebispo
de Sens, o primaciado das Gálias, única prerrogativa que
pudera conservar quando da nova conexão de Lião com a
coroa (6). Tinha enviado um de seus cônegos em busca de
notícias, mas o cônego, chegando à residência do Conde
de Poitiers, esbarrara com um escudeiro cortês e mudo. E
o arcebispo estava esperando receber um ultimato.
Entre os cardeais alojados nos diversos
estabelecimentos religiosos, a angústia não era menor e
tocava mesmo as raias da loucura. Iriam repetir com eles o
golpe de Carpentras? Mas, desta vez, como fugir?
Emissários corriam dos agostinhos aos franciscanos, dos
dominicanos aos cartuxos. O Cardeal Caetani tinha
mandado seu factótum, o Abade Pedro, ao encontro de
Napoleao Orsini, de Albertini de Prato, de Flisco, o único
espanhol, a fim de dizer a estes prelados:
— Vede! Deixaste-vos seduzir pelo Conde de
Poitiers. Êle tinha jurado que não nos molestaria e que
nem mesmo precisaríamos entrar para a clausura a fim de
voltar: que teríamos toda a liberdade. E agora fecha-nos
em Lião.
O próprio Duèze recebeu a visita de dois de seus
colegas provençais, o Cardeal de Mandagout e Béranger
Frédol, o mais velho. Mas Duèze fingiu que estava
mergulhado nos seus trabalhos teológicos e que não sabia
de nada. Durante esse tempo, numa cela próxima de seu
apartamento, Guccio Baglioni dormia como uma pedra, e
não estava em condições de imaginar, sequer, que podia
ter sido ele a origem de semelhante pânico.
Havia uma hora que messire Varay, cônsul de
(7)
Lião , e três de seus colegas, vindos para exigir
explicações em nome do conselho da cidade, batiam os
pés de impaciência, na antecâmara do Conde de Poitiers.
Este último estava reunido, em conselho secreto,
com os membros de seu círculo habitual e os grandes
oficiais que faziam parte de sua missão.
Enfim, os reposteiros afastaram-se e o Conde de
Poitiers apareceu, seguido de seus conselheiros. Todos
tinham a expressão grave de homens que vinham de tomar
importante decisão política.
— Ah! messire Varay, chegastes em boa ocasião, e
vós também, senhores cônsules. Vamos poder entregar-
vos agora mesmo a mensagem que preparávamos para
remeter-vos. Messire Mille, podeis lê-la.
Mille de Noyers, jurisconsulto, conselheiro do
Parlamento e marechal-de-hoste* sob Filipe, o Belo,
desenrolou o pergaminho, e leu:
— A todos os bailios, senescais e conselheiros das
boas cidades. Fazemos chegar ao vosso conhecimento a
grande consternação que tivemos com a morte de nosso
irmão bem-amado, o Rei nosso sire, Luís X, que Deus
acaba de arrebatar ao afeto de seus vassalos. Mas a
natureza humana é feita assim, e ninguém pode
ultrapassar o termo que lhe foi estipulado. Assim,
decidimos enxugar nossas lágrimas, rogar a Cristo,
convosco, pela alma dele, e mostrar-nos zelosos do
governo do reino de França e do reino de Navarra, a fim
de que seus direitos não depereçam, e que os vassalos
desses dois reinos vivam felizes, sob o escudo da justiça e
da paz.
O regente dos dois reinos, pela graça de Deus
FILIPE.
Passada a primeira emoção, messire Varay foi
imediatamente beijar a mão do Conde de Poitiers, e os
outros cônsules imitaram-no, sem hesitação.
O rei estava morto. A notícia, em si, era bastante
estupefaciente para que ninguém pensasse, ao menos
durante alguns minutos, em fazer perguntas. E, na falta de
um herdeiro maior, parecia perfeitamente normal que o
*
Dava-se o nome de “hoste” à força armada em campanha, na
Idade Média. Os senhores de terras reuniam companhias de
vassalos sob seu pendão, e essas companhias, reunidas para
expedições militares, tomavam o nome de hoste.
mais velho dos irmãos do soberano assumisse o poder. Os
cônsules não duvidaram por um só instante que a decisão
tivesse sido tomada em Paris, pela Câmara dos pares.
— Mandai anunciar esta mensagem pela cidade —
ordenou Filipe de Poitiers. — Depois disso, as portas
serão abertas.
A seguir, acrescentou:
— Messire Varay, sois poderoso no negócio de lãs
e eu vos agradeceria o fornecimento de vinte capas pretas,
que fossem depositadas em rainha antecâmara, para que
com elas se cubram as pessoas que me venham apresentar
suas condolências.
E despediu os cônsules.
Os dois primeiros atos de sua tomada de poder
estavam realizados. Fizera-se proclamar regente pelo
pessoal de seu círculo habitual, que se tornara, ao mesmo
tempo, seu conselho de governo. Ia ser reconhecido pela
cidade de Lião, onde residia. Tinha pressa, agora, de
estender esse reconhecimento ao conjunto do reino e
colocar Paris diante de uma situação de fato. Era uma
questão de rapidez.
Já os copistas reproduziam, em múltiplos
exemplares, sua proclamação, e os mensageiros selavam
seus cavalos para ir levá-la a todas as províncias.
Assim que se reabriram as portas de Lião,
lançaram-se a galope, cruzando com três correios que
desde a manhã estavam ali retidos, do outro lado do
Saône. O primeiro desses correios trazia uma carta do
Conde de Valois, que tomava posição de regente
designado pelo conselho da coroa e pedia a aprovação de
Filipe a fim de que aquela designação se tornasse efetiva.
“Estou certo de que haveis de querer ajudar-me em minha
tarefa, para bem do reino, e de que me dareis o mais
depressa possível vossa aprovação, como bom e bem-
amado sobrinho que sois.”
A segunda mensagem vinha do Duque de
Borgonha, que também reclamava a regência em nome de
sua sobrinha, a pequena Joana de Navarra.
Enfim, o Conde d’Evreux advertia Filipe de
Poitiers que os pares não se haviam reunido segundo as
prescrições de costume, e que a pressa de Carlos de Valois
em se apoderar do governo não se apoiava em texto algum
de assembléia regular.
O Conde de Poitiers tornou a reunir-se com seu
pessoal, sem interrupção. Seu círculo era composto de
homens hostis à política seguida havia dezoito meses pelo
Turbulento e pelo Conde de Valois, a começar pelo
condestável de França, Gaucher de Châtillon, chefe dos
exércitos desde 1302, e que não perdoava a ridícula
campanha da “expedição lamacenta” que fora obrigado a
dirigir na Flandres, durante o verão precedente. Seu
cunhado, Mille de Noyers, partilhava seu sentimento. O
jurisconsulto Raul de Presles, depois de tantos serviços
prestados ao Rei de Ferro, tivera seus bens confiscados,
enquanto enforcavam seu amigo Enguerrand de Marigny,
e ele próprio era submetido ao interrogatório pela água,
sem que lhe pudessem arrancar confissões. Disso
conservara sofrimentos permanentes de estômago e um
rancor sólido contra o imperador de Cons-tantinopla.
Devia ao Conde de Poitiers sua salvação e seu retorno às
boas graças.
Assim, em torno deste último formara-se uma
espécie de partido de oposição, agrupando os
sobreviventes dos conselheiros de Filipe, o Belo. Nenhum
deles via com bons olhos as ambições do Conde de
Valois, nem desejava, igualmente, que o Duque de
Borgonha se metesse nos negócios da coroa. Admiravam a
rapidez com que o jovem príncipe agira, e nele colocavam
suas esperanças.
Poitiers escreveu a Eudes de Borgonha e a Carlos
de Valois, sem mencionar suas cartas e como se não as
tivesse recebido, a fim de informá-los que se considerava
regente por direito natural e que reuniria a assembléia dos
pares, para sancionar esta situação, tão depressa quanto
lhe fosse possível.
Ao mesmo tempo, designava comissários para irem
aos principais centros do reino tomar posse do comando,
em seu nome. Assim, partiram durante o dia numerosos de
seus cavaleiros — que deviam tornar-se, mais tarde, seus
“cavaleiros seguidores” (8) — como Regnault de Lor,
Tomás de Marfontaine e Guilherme Courteheuse.
Conservou a seu lado Anseau de Joinville, filho do grande
Joinville, e Henrique de Sully.
Enquanto os dobres de finados soavam em todos os
campanários, Filipe de Poitiers conferenciava longamente
com Gaucher de Châtillon. Por direito, o Condestável da
França tinha assento em todas as assembléias do governo,
Câmara dos Pares, Grande Conselho, Conselho Restrito.
Filipe pediu, pois, a Gaucher que fosse a Paris representá-
lo e opor-se, até sua própria chegada, às investidas de
Carlos de Valois. O Condestável, por outro lado,
garantiria reunir sob suas mãos as tropas assoldadas de
Paris e particularmente o corpo de besteiros.
Pois o novo regente, de início surpreendendo os
seus conselheiros, depois com a aprovação deles, tinha
resolvido residir provisoriamente em Lião.
— Não devemos desviar-nos das tarefas em curso
— declarara. — Para o reino o mais importante é ter um
papa, e seremos muito mais fortes quando o tivermos.
Apressou a assinatura do contrato de noivado entre
sua filha e o delfinzinho. O caso, à primeira vista,
nenhuma relação tinha com a eleição pontificai. No
espírito de Filipe, entretanto, um caso ligava-se ao outro.
A aliança com o delfim de Viennois, que reinava sobre
todos os territórios ao sul de Lião, e dominava o caminho
da Itália, formava uma peça de seu jogo. Os cardeais, se
pretendessem escapar entre seus dedos, não poderiam
refugiar-se daquele lado. Além disso, aquele noivado
consolidava a posição do regente, pois o delfim estaria do
seu lado, com boas razões para não o abandonar.
O contrato, devido ao luto, foi assinado sem festas,
nos dias que se seguiram.
Além disso, Filipe de Poitiers conferenciou com o
mais poderoso barão da região, o Conde de Forez,
cunhado, aliás, do delfim, e que controlava, por sua parte,
a margem direita do Ródano.
João de Forez tinha feito as campanhas de Flandres,
representado várias vezes Filipe, o Belo, na corte papal, e
havia trabalhado muito ultimamente pela adesão de Lião à
coroa. O Conde de Poitiers, desde que retomava a política
paterna, sabia poder contar com ele.
No dia 16 de junho, o Conde de Forez teve um
gesto altamente espetacular. Prestou solene homenagem a
Filipe, como ao senhor de todos os senhores da França,
reconhecendo-o, assim, detentor da autoridade real.
No dia seguinte, o Conde Bermond de la Voulte,
cujo feudo de Pierregourde encontrava-se na senescalia de
Lião, colocou suas mãos entre as mãos do Conde de
Poitiers, e prestou-lhe juramento nas mesmas condições.
Filipe pediu ao Conde de Forez que mantivesse,
discretamente, setecentos homens em armas. Os cardeais,
dali por diante, não mais se afastariam da cidade.
Entretanto, daí a obter uma eleição faltava muito.
As negociações marcavam passo. Os italianos, percebendo
que o regente desejava voltar o mais depressa possível
para Paris, haviam-se mostrado inflexíveis em suas
posições. “Êle se cansará primeiro”, diziam. Pouco lhes
importava o estado de trágica anarquia em que se
afundavam os negócios da Igreja.
Filipe de Poitiers teve diversas entrevistas com o
Cardeal Duèze, que lhe parecia, decididamente, o homem
mais inteligente do conclave, o conhecedor mais claro e
mais imaginativo, ao mesmo tempo, em matéria religiosa,
o administrador mais recomendado para a cristandade, no
momento difícil em que se encontravam.
— A heresia, Monsenhor, está reflorescendo um
tanto, em toda a parte — dizia o cardeal, com sua voz
rachada, inquietante. — E como poderia ser de outra
forma, com o exemplo que damos? O demônio aproveita-
se de nossas discórdias para semear seu joio. Mas é
sobretudo na diocese de Toulouse que ele cresce mais
forte. Velha terra de rebelião e de maus sonhos! Será
conveniente que o próximo papa divida aquela diocese
grande demais, difícil de governar, transformando-a em
cinco bispados, cada um deles entregue a mãos fortes.
— O que viria a criar quantidade de novos
benefícios — respondeu o Conde de Poitiers — sobre os
quais, estou bem certo, o tesouro de França recolheria
anatas. Encontrais nisso algum obstáculo?
— Absolutamente.
Chamava-se anatas o direito real de receber o
primeiro ano das rendas de um novo benefício
eclesiástico. A falta de papa impedia que se procedesse à
criação de benefícios, com prejuízo para o Tesouro, que
ficava sem suas rendas, sem falar na quase
impossibilidade de obter a entrada dos impostos atrasados
da Igreja, o clero aproveitando-se da situação para erguer
toda espécie de dificuldades, impossíveis de resolver
enquanto o trono de São Pedro se conservasse vazio.
Realmente, quando Filipe e Duèze encaravam o
futuro, um como regente, outro como eventual pontífice,
suas primeiras preocupações eram de caráter financeiro.
Pelas subvenções feudais, pela revolta da Flandres,
pela insurreição dos nobres de Artois, e pelas brilhantes
inspirações de Carlos de Valois, o tesouro real estava não
somente exaurido, mas endividado por muitos anos.
O tesouro pontificai, depois de dois anos de
conclave errante, não se via em melhor estado. E se os
cardeais vendiam-se assim tão caro aos príncipes deste
mundo, é que já não havia, para muitos entre eles, outros
meios de subsistência senão a negociação de seus votos.
— As multas, Monsenhor, as multas —
aconselhava Duèze ao jovem regente. — Castigai com
multas os que tiverem errado, e quanto mais ricos forem,
mais forte seja o castigo. Se o que faltou contra a lei
possui cem libras, tirai-lhe vinte. Mas se possui mil tirai-
lhe quinhentas; e se é rico, de cem mil tirai-lhe quase tudo.
Tereis, com isso, três vantagens: antes de mais nada, as
entradas serão maiores, depois, privado de seu poder, o
faltoso não poderá mais abusar, e, enfim, os pobres, que
são mais numerosos, ficarão de vosso lado e terão
confiança em vossa justiça.
Filipe de Poitiers sorriu.
— O que preconizais muito sensatamente,
Monsenhor, pode convir à justiça real que age através de
braço temporal — respondeu ele. — Mas, para restaurar
as finanças da Igreja, não vejo como...
— As multas, as multas — repetiu Duèze. —
Lancemos impostos sobre os pecados: será uma fonte
inesgotável. O homem é pecador por natureza, mais
disposto, porém, a fazer penitência de coração que
penitência de bolsa. Terá arrependimento mais vivo de
suas faltas e hesitará por mais tempo em reincidir em seus
erros, se as absolvições forem acompanhadas de uma taxa.
Quem tem pena de ter errado, pena pague.
“Será gracejo, isto?”, pensou Poitiers, que,
convivendo com Duèze, descobria a tendência do cardeal
de cúria para o paradoxo e a fraude.
— E que pecados taxaríeis, Monsenhor? —
perguntou, como se aderisse ao gracejo.
— Antes de mais nada, os que se cometem entre o
clero. Comecemos por nos reformar antes de empreender
reforma alheia. Nossa Santa Madre é tolerante demais
para com as faltas e abusos. Assim, nem o clericato nem o
sacerdócio podem ser dados a homens estropiados ou
disformes. Ora, um dia destes vi certo Padre Pedro, que
trabalha com o Cardeal Caetani, e que tem dois polegares
na mão esquerda.
“Pequena perfídia contra nosso velho inimigo!”,
disse consigo Poitiers.
— Fiz indagações — continuou Duèze. — Ao que
parece, existe uma legião de coxos, manetas, eunucos, que
escondem sua infelicidade sob um hábito e recebem os
benefícios da Igreja. Iremos expulsá-los de nosso meio,
sem, conduto, apagar sua falta, reduzi-los à miséria e,
quem sabe, impeli-los para junto dos hereges de Toulouse
ou de outras confrarias de espiritualistas? Permitamos, de
preferência, que se resgatem.
O velho prelado estava falando perfeitamente a
sério. Sua imaginação havia tomado ímpeto desde seu
encontro com o Padre Pedro, e arquitetara, durante suas
últimas noites, todo um sistema muitíssimo preciso, com o
qual contava poder redigir um memorial, que submeteria
— disse ele, modestamente — ao próximo papa.
Tratava-se da instituição de uma Penitenciaria
Santa, que acarretaria para a Santa Sé as rendas sobre as
absolvições em todos os assuntos. Os padres estropiados
poderiam obter quitação à razão de tantas libras por dedo
que faltasse, o dobro por um olho perdido, outro tanto pela
ausência de um ou dois testículos. Aqueles que tivessem
mutilado a si mesmo em sua virilidade, pagariam mais
caro. Das enfermidades do corpo Duèze passava às da
alma. Os bastardos que tivessem escondido a condição de
seu nascimento, os clérigos que houvessem recebido
tonsura embora fossem casados, os que se casavam
secretamente depois da ordenação, como acontecia com
freqüência, os que viviam sem se casar em companhia de
mulher, os bígamos, os incestuosos, os sodomitas, todos
seriam taxados na proporção de suas faltas. As freiras que
se tivessem dado ao deboche com vários homens, dentro
ou fora de seus conventos, seriam submetidas a uma
reabilitação particularmente cara (9).
— Se a instituição dessa penitenciaria — declarou
Duèze — não render cem mil libras no primeiro ano, eu
quero ser...
Ia dizer “quero ser queimado”, mas deteve-se a
tempo.
Poitiers pensava: “Ao menos, se ele fôr eleito, não
terei preocupações com as finanças papalinas”.
Mas, apesar de todas as manobras de Duèze e
apesar do apoio que Poitiers lhe dava sub-repticiamente, o
conclave continuava a marcar passo.
Ora, as notícias de Paris eram bastante más.
Gaucher de Châtillon, fazendo frente comum com o
Conde d’Evreux e Mafalda d’Artois, esforçava-se por
limitar as ambições de Carlos de Valois. Apesar disso,
este último morava no palácio da Cité, onde tinha a
Rainha Clemência à sua mercê. Administrava os negócios
como entendia, expedia para as províncias instruções
contrárias às que Poitiers enviava de Lião. Por outro lado,
o Duque de Borgonha chegara a Paris no dia 16 de junho,
para ali fazer com que fossem reconhecidos os seus
direitos. Sabia-se apoiado pelos vassalos de seu imenso
ducado. A França tinha, pois, três regentes. Aquela
situação não podia durar muito, e Gaucher suplicava a
Filipe que voltasse a Paris.
No dia 27 de junho, depois de um conselho restrito,
ao qual assistiram o Conde de Forez e o Conde de La
Voulte, o jovem príncipe resolveu pôr-se a caminho o
mais cedo possível, e mandou que reunissem o trem de
bagagem de sua escolta. Ao mesmo tempo, lembrando-se
que nenhum ofício solene fora ainda celebrado pelo
descanso da alma de seu irmão, ordenou que grandes
missas fossem ditas no dia seguinte, antes de sua partida,
em todas as paróquias da cidade. Todo o pessoal do alto e
do baixo clero devia assistir a tais ofícios, a fim de se
associar às preces do regente.
Os cardeais, sobretudo os cardeais italianos,
exultavam. Filipe de Poitiers via-se obrigado a deixar
Lião, sem tê-los dobrado.
— Êle disfarça a fuga sob as pompas do luto —
disse Caetani — mas, de qualquer maneira, parte, o
maldito! Entretanto, estava certo de nos ter vencido! Antes
de um mês, eu vos asseguro, estaremos de volta a Roma.
V
AS PORTAS DO CONCLAVE

OS CARDEAIS são personagens importantes que


não devem ser confundidos com a arraia miúda do clero.
O Conde de Poitiers ordenara que lhes fosse reservada,
para o serviço fúnebre em memória de Luís X, a igreja do
convento dos frades Pregadores, chamada igreja dos
Jacobinos (10), a mais bela, mais vasta, depois da primacial
São João, e também a melhor fortificada. Os cardeais não
viram em tal escolha senão uma homenagem normal à sua
dignidade. Nenhum deles faltou à cerimônia.
Eram apenas vinte e quatro e, entretanto, a igreja
estava repleta, pois cada cardeal viera escoltado por toda a
sua casa, capelão, secretário, tesoureiro, clérigos, donzéis,
criados, carregadores de cauda e de tochas: perto de
seiscentas pessoas, no total, reunidas entre as pesadas
colunas brancas.
Raramente missa fúnebre terá sido acompanhada
com tão pouco recolhimento. Era a primeira vez, depois
de muitos meses, que os cardeais, que viviam em
residências separadas e organizados em grupos de uma
mesma facção, encontravam-se todos reunidos. Alguns
deles havia mais de dois anos que não se viam. Vigiavam-
se, espiavam-se, comentavam, uns e outros, os respectivos
gestos e aparências.
— Vistes? — cochichavam. — Orsini acaba de
cumprimentar o Frédol mais moço... Stefaneschi
conversou por um momento com Mandagout... Será que
vão se aproximar dos provençais?... Mas Duèze não tem
boa cara, envelheceu muito...
Com efeito, Duèze, esforçando-se para disciplinar
seu andar saltitante de velho rapaz, adiantava-se em
passos lentos e respondia vagamente aos cumprimentos,
como homem desapegado do inundo.
Guccio Baglioni, em trajo de donzel, fazia parte de
seu séquito. Deveria falar apenas italiano e dizer ter vindo
diretamente de Siena.
“Talvez eu tivesse feito melhor, dizia Guccio, se
me tivesse colocado sob a proteção do Conde de Poitiers.
Porque hoje, sem dúvida, voltaria com ele para Paris e
poderia indagar de Maria, de quem não tenho notícias há
tantos dias. Enquanto, agora, vejo-me dependendo desta
raposa velha, a quem prometi o dinheiro de meu tio, mas
que nada fará por mim enquanto esse dinheiro não chegar.
E meu tio não responde ... E dizem que em Paris tudo está
transformado... Maria, Maria, minha bela Maria!... Será
que não vai pensar que a abandonei? Talvez neste
momento esteja me odiando! Que terão eles feito?”
Via a jovem seqüestrada por seus irmãos, em
Cressay, ou em algum convento para jovens arrependidas.
“Se passar mais uma semana assim, fugirei para Paris.”
Várias vezes Duèze olhou para trás, com ar
subitamente atento.
— Temeis algo, Monsenhor? — perguntou-lhe
Guccio.
— Não, nada temo — respondeu o cardeal, pondo-
se novamente a observar disfarçadamente seus vizinhos.
O rosto magro, cortado por um nariz comprido e
adunco, os cabelos voando como chamas em torno de seu
solidéu vermelho, o temível Cardeal Caetani não escondia
seu triunfo. O catafalco, símbolo da morte de Luís X,
correspondia, em seu espírito, ao boneco de cera,
transpassado de alfinetes, sobre o qual fizera praticar a
bruxaria. Os olhares que trocava com o pessoal de seu
séquito, o Padre Pedro, o irmão Bost e o clérigo Andrieu,
seu secretário, eram olhares de vitória. Tinha desejo de
dizer a todos os presentes: • “Eis, Monsenhores, o que
acontece a quem provoca a vingança dos Caetani, que já
eram poderosos no tempo de Júlio César”.
Os dois irmãos Colonna, de forte queixo redondo,
cortado por uma covinha vertical, pareciam guerreiros
disfarçados em prelados.
O Conde de Poitiers não economizara os chantres.
Havia uma boa centena deles fazendo ressoar suas vozes,
acompanhadas pelos órgãos, cujos foles eram manejados
com vigor por quatro homens. Música estrondosa, real,
rolava sob as abóbadas, saturava o ar com vibrações,
envolvia o aglomerado dos presentes. Os membros do
pequeno clero podiam tagarelar impunemente entre si, e
os donzéis rir zombeteiramente de seus senhores. Seria
impossível, a três passos de distância, discernir o que se
dizia, e menos ainda o que se passava nas portas.
O ofício terminou: os órgãos e os chantres calaram-
se, os batentes da porta principal foram abertos. Luz
alguma, entretanto, penetrou na igreja.
Houve um momento de estupefação, como se
algum milagre houvesse, durante a cerimônia, obscurecido
o sol. Depois, os cardeais compreenderam, e furiosos
clamores levantaram-se. Uma parede recente tapava a
porta principal. O regente, durante a missa, tinha mandado
emparedar todas as saídas. Os cardeais estavam
aprisionados.
Foi um belo alvoroço: prelados, cônegos, padres,
criados, misturados uns aos outros, corriam em todos os
sentidos como ratos apanhados na armadilha. Os donzéis
subiam aos ombros uns dos outros, içando-se até os
vitrais, e gritavam:
— A igreja está cercada por todos os lados de
soldados armados.
— Que vamos fazer, que vamos fazer? — gemiam
os cardeais. — O regente enganou-nos!
— Por isso é que nos ofereceu música tão forte!
— É um atentado contra a Igreja. Que vamos fazer?
— Vamos excomungá-lo — gritou Caetani.
— E se ele nos matar de fome, ou nos mandar
massacrar?
Os dois irmãos Colonna e o pessoal de seu partido
já se haviam armado com pesados candelabros de bronze,
com bancos e bastões de procissão, decididos a vender
caro a sua existência. Italianos e gascões já tinham
começado a lançar-se censuras mútuas.
— Vede bem que a culpa é vossa — gritavam os
primeiros. — Se tivésseis recusado vir a Lião! ... Bem
sabíamos que seríamos vítimas de uma traição.
— Se tivésseis eleito um dos nossos, não
estaríamos aqui a estas horas — replicavam os segundos.
— A culpa é vossa, maus cristãos!
Estavam quase a chegar às vias de fato.
Uma única porta não fora inteiramente murada.
Tinha sido deixada passagem suficiente para um homem,
mas naquela estreita abertura eriçava-se uma verdadeira
moita de piques, mantidos pelos guantes de ferro. Os
piques ergueram-se, e o Conde de Forez, de armadura,
seguido de Bermond de Ia Voulte e de algumas outras
couraças, penetrou na igreja. O grupo foi acolhido com
uma explosão de ameaças e de grosseiras injúrias.
Os braços cruzados sobre o punho de sua espada, o
Conde de Forez esperava que a agitação se acalmasse. Era
homem poderoso, cheio de coragem, insensível às
ameaças como às súplicas, profundamente chocado com o
exemplo que havia dois anos vinham dando os cardeais, e
pronto a tudo para executar as instruções do Conde de
Poitiers. Seu rosto rude, cortado pelas rugas, aparecia pela
abertura do elmo.
Quando os cardeais e seus homens cansaram-se de
vociferar, sua voz elevou-se, clara, martelada,
propagando-se por sobre todas as cabeças, até o fundo da
nave.
— Monsenhores, estou aqui por ordem do regente
da França, para notificar-vos de que deveis tratar, daqui
por diante, unicamente da eleição de um papa, e dar-vos a
saber que daqui não saireis enquanto esse papa não fôr
eleito. Cada um dos cardeais conservará junto de si apenas
um capelão e dois donzéis ou clérigos de sua escolha, para
seu serviço. Todas as outras pessoas podem retirar-se.
Os gascões e provençais não se mostraram menos
indignados do que os italianos.
— Isto é uma felonia — exclamou o Cardeal de
Pélagrue. — O Conde de Poitiers jurou-nos que nem
mesmo precisaríamos ficar em clausura, e foi a esse preço
que aceitamos vir ter com ele em Lião.
— O Conde de Poitiers — respondeu João de Forez
— dava, então, a palavra do rei da França. Mas o rei da
França não mais existe, e hoje o que vos trago é a palavra
do regente.
Indignação unânime sacudiu o auditório. As
invectivas, em italiano, em francês e em provençal,
mesclavam-se. O Cardeal Duèze deixara-se tombar num
confessionário, a mão sobre o coração, como se sua idade
avançada não pudesse suportar tal golpe, e fingia associar-
se aos protestos com murmúrios inaudíveis. Arnaldo
d’Auch, o cardeal camerlengo, prelado barrigudo e
sangüíneo, avançou para o Conde de Forez, e declarou-lhe
em tom ameaçador:
— Messire, um papa não pode ser eleito em tais
condições, porque violais a constituição de Gregório X,
que obriga o conclave a reunir-se na cidade onde morreu o
papa.
— Nela estáveis, Monsenhor, já há dois anos, e vos
dispersastes sem ter eleito o papa, o que é contrário à
constituição. Mas se porventura desejais ser reconduzidos
a Carpentras, para lá vos faremos levar, com boa escolta,
em carros fechados.
— Não devemos nos reunir sob ameaça de força!
— Por isso é que setecentos homens armados,
Monsenhor, estão lá fora, guardando-vos, fornecidos pelas
autoridades da cidade, a fim de .garantir vossa proteção e
vosso isolamento... tal como prescreve á constituição. Sire
de la Voulte, que aqui está e que é de Lião, foi
encarregado de velar por isso. Messire, o regente manda
também comunicar-vos que, se no terceiro dia não
conseguirdes entrar em acordo, só recebereis como
alimentação um prato por dia e, a partir do nono dia, só
tereis pão e água... como está igualmente dito na
constituição de Gregório. E que, enfim, se pelo jejum não
receberdes luz, mandará destruir o teto e ficareis expostos
às intempéries.
Bérenger Frédol, o mais velho, interveio:
— Messire, submeter-nos a tal tratamento é tornar-
se culpado de homicídio, porque alguns de nós não
resistirão. Vede Monsenhor Duèze já completamente
abatido e que terá necessidade de atenções.
— Ah! Sem dúvida! Sem dúvida! — declarou, em
voz fraca, Duèze. —- Eu não poderei suportar esse
tratamento.
— Deixai, deixai — exclamou então Caetani. —
Estais vendo bem que estamos tratando com animais
ferozes e mal cheirosos. Sabei, porém, Messire, que em
lugar de elegermos um papa, vamos excomungar-vos, a
vós e ao vosso perjuro.
— Se vos reunirdes para excomungar, Monsenhor
Caetani — respondeu, calmamente, o Conde de Forez —
o regente poderia comunicar ao conclave o nome de certos
feiticeiros e bruxos, que seria conveniente colocar à frente
da fornada.
— Não estou compreendendo — disse Caetani,
batendo imediatamente em retirada — o que vem fazer
aqui a feitiçaria, pois que é do papa que nos devemos
ocupar.
— Eh! Monsenhor! Entendemo-nos bem. Fazei,
pois, saírem as pessoas que não vos são úteis no momento,
porque não haveria víveres que chegassem para alimentar
tanta gente.
Os cardeais compreenderam que toda á resistência
seria vã e que aquela couraça, transmitindo-lhes, em voz
cortante, as ordens do Conde de Poitiers, não se dobraria.
Atrás de João de Forez, homens armados começavam já a
entrar, um a um, pique em punho, e a se alinharem no
fundo da igreja.
— Usaremos astúcia, pois que não podemos usar
força — disse a meia voz Caetani aos italianos. —
Finjamos submeter-nos, já que no momento não podemos
fazer outra coisa.
Cada um deles escolheu em seu séquito os três
servidores mais fiéis, os que julgava serem os melhores
conselheiros, os mais finos na intriga ou mais aptos para
prestar-lhes os serviços corporais nas difíceis condições
materiais em que se iam encontrar. Caetani conservou
junto de si o Frade Bost, Andrieu e Pedro, o padre de
polegar bífido, isto é, os homens que tinham participado
no embruxamento de Luís X. Preferia vê-los encerrados
com ele do que arriscá-los à confissão pela tortura ou pelo
dinheiro. Os Colonna conservaram consigo quatro
donzéis, que tinham punhos de magarefes. Cônegos,
clérigos, porta--tochas e caudatários começaram a sair, um
por um, diante da ala de homens armados. Seus senhores,
de passagem, sopravam-lhes recados :
— Manda contar a meu irmão, o bispo... Escreve
em meu nome a meu primo de Got... Parte imediatamente
para Roma...
No momento em que Guccio Baglioni dispunha-se
a entrar na fila dos que saíam, Duèze estendeu sua mão
magra para fora do confessionário onde jazia, abatido, e
agarrou o jovem italiano pela cota, murmurando-lhe :
— Fique, pequeno, fique junto de mim. Estou certo
de que me serás útil.
Duèze sabia, por experiência própria, que os
podêres do dinheiro não são negligenciáveis num
conclave: para ele, era uma sorte inesperada poder
conservar ali um representante dos bancos lombardos.
Uma hora mais tarde, na igreja dos Jacobinos, havia
apenas noventa e seis homens, destinados a ali ficarem
enquanto vinte e quatro entre eles não se pusessem de
acordo para escolher um só. Os soldados, antes de se
retirarem, tinham trazido braçadas de palha, que seriam o
leito, sobre a própria pedra, dos mais poderosos prelados
do mundo. Algumas bacias foram transportadas para
dentro, destinadas à toilette, e água, em grandes jarros,
ficou à sua disposição. Os pedreiros, sob os olhos do
Conde de Forez, tinham acabado de murar a última saída,
deixando apenas, a meia altura, um pequeno vão
quadrado, trapeira suficiente para a passagem dos pratos,
mas insuficiente para a passagem de um homem. Em toda
a volta da igreja, os soldados haviam retomado suas
companhias, dispostos de três em três toesas em duas filas,
uma encostada à parede e olhando para a cidade, outra
voltada para a igreja, e vigiando os vitrais.
Cerca de meio-dia, o Conde de Poitiers pôs-se a
caminho para Paris. Levava em seu séquito o delfim de
Viennois e o delfinzinho, que dali por diante viveria em
sua corte, a fim de familiarizar-se com sua noiva de cinco
anos.
Àquela hora os cardeais receberam sua primeira
refeição. Era dia magro, e eles não tiveram carne.
VI
DE NEAUPHLE A SAINT-MARCEL

CERTA MANHÃ do início de julho, bem antes do


alvorecer, João de Cressay entrou no quarto de sua irmã.
O rapagão trazia uma candeia que deitava fumaça. Tinha
lavado a barba e estava usando sua melhor cota de
cavalgar.
— Levanta-te, Maria — disse ele. — Partes esta
manhã.
Pedro e eu vamos conduzir-te.
A jovem sentou-se em sua cama:
— Partir?... Mas, como?... É hoje que devo
partir?...
Tinha o espírito enevoado pelo sono e olhava para
seu irmão, com seus grandes olhos de um azul sombrio,
fixamente, sem compreender. Maquinalmente, jogou sobre
o ombro seus longos cabelos, espessos e sedosos, onde
passavam reflexos dourados.
João de Cressay contemplava sem entusiasmo
algum a beleza de sua irmã, como se esta fosse um
pecado.
— Faz um embrulho de teus trapos, porque para cá
não voltarás tão cedo.
— Mas para onde ides levar-me? — perguntou
Maria.
— Vais ver.
— Mas ontem... por que não me disse isso ontem?
— Para que tivesses tempo de nos pregar uma outra
de tuas peças?... Vamos, apressa-te: quero estar a caminho
antes que nossos servos nos vejam. Já nos cobriste
bastante de vergonha, e não há necessidade que eles
murmurem ainda mais.
Maria não respondeu. Havia um mês que sua
família não a tratava de outra maneira nem se dirigia a ela
em outro tom. Levantou-se, um pouco pesada pela
gravidez de cinco meses, cujo peso, por pequeno que
fosse, surpreendia-a sempre ao saltar da cama. À luz da
candeia deixada por João, preparou-se, lavando o rosto e o
peito, e enrolou rapidamente os cabelos. Percebeu que
suas mãos tremiam. Para onde a levavam? Para que
convento? Pôs no pescoço o relicário de ouro que Guccio
lhe dera, e que vinha, segundo ele dissera, da Rainha
Clemência. “Até hoje, estas relíquias protegeram-me bem
pouco”, pensou. “Terei feito mal as orações que lhes
devo?” Dobrou juntos um vestido e algumas roupas de
baixo, um vestido sem mangas e toalhas de banho.
— Deves cobrir-te com tua capa de capuz grande
— recomendou-lhe João, que tornou a entrar por um
instante em seu quarto.
— Mas vou morrer de calor! — disse Maria. —
Aquela capa é para o inverno.
— Tua mãe quer que caminhes com o rosto
coberto. Obedece e apressa-te.
No pátio, o outro irmão, Pedro, selava os dois
cavalos.
Maria sabia bem que aquele dia havia de chegar.
De certa forma, apesar da angústia que tinha no coração,
não sofria demasiadamente, pois chegara a desejar a
partida. Por muito triste que fosse o convento, seria mais
suportável do que os agravos e censuras diariamente
repetidos. Pelo menos, estaria sozinha com sua
infelicidade. Pelo menos, não precisaria suportar os
furores de sua mãe, acamada por causa de uma congestão,
desde que o drama rebentara, e que maldizia a filha de
cada vez que aquela lhe levava uma tisana. Depois do que,
era preciso chamar com urgência o barbeiro de Neauphle,
para que ele viesse retirar uma pinta de sangue negro da
gorda castelã. Por seis vezes, em menos de duas semanas,
haviam sangrado a senhora Eliabel, e não parecia que tal
tratamento acelerasse a volta de sua saúde.
Maria era tratada por seus dois irmãos,
principalmente por João, como uma criminosa. Ah! Sem
dúvida! Antes o claustro, mil vezes. Mas, no fundo de
uma clausura, poderia ter um dia notícias de Guccio? Esta
era sua obsessão, seu pior temor pela sorte que a esperava.
Seus malvados irmãos afirmavam-lhe que Guccio fugira
para o estrangeiro.
“Eles não querem confessar-me”, dizia ela consigo
mesma, “mas mandaram-no para uma masmorra. Não é
possível, não é possível que me tenha abandonado! Ou
então voltou para cá, a fim de salvar-me, e é por isso que
estão com tanta pressa de levar-me daqui, para matá-lo
depois. Eu devia ter concordado em ir embora com ele!
Não o quis ouvir para não magoar minha mãe e meus
irmãos, e eis que cheguei ao pior, esperando fazer o
melhor.”
Sua imaginação fazia-a ver todas as formas
possíveis de catástrofes. De vez em quando, chegava a
desejar que Guccio tivesse realmente fugido, deixando-a
entregue à sua má sorte. Sem ninguém a quem pedir
conselho ou ao menos compaixão, não tinha outra
companhia senão a do filho que trazia no ventre. Mas era
preciso reconhecer que aquela existência ainda era de bem
pouco auxílio, a não ser pela coragem que lhe inspirava.
No instante de partir, Maria de Cressay perguntou
se podia dizer adeus à sua mãe. Pedro subiu ao quarto
onde estava a senhora Eliabel, mas dali partiram tais gritos
soltados pela viúva, à qual as sangrias ainda não tinham
tirado de todo a voz, que Maria compreendeu a inutilidade
de seu pedido. Pedro tornou a descer, o rosto triste, as
mãos afastadas, num gesto de impotência.
— Ela me respondeu que não tinha mais filha —
disse ele.
E Maria pensou, uma vez mais: “Melhor teria eu
feito, se fugisse com Guccio. Tudo isto é culpa minha.
Devia ter ido com ele”.
Os dois irmãos cavalgaram suas montarias e João
de Cressay tomou a irmã na garupa, porque seu cavalo era
o melhor, ou, antes, o menos mau dos dois. Pedro
cavalgava o pequeno poldro cabeceador, que produzia um
ruído de lima com as narinas, e sobre o qual, no mês
precedente, os dois irmãos tinham feito uma tão bela
entrada na capital.
Maria lançou os olhos, pela última vez, para o
pequeno solar de onde jamais saíra desde que nascera, e
que, na meia-luz de uma alvorada insegura, revestia-se já
da tonalidade cinzenta de uma recordação. Todos os
instantes de sua vida, desde que abrira os olhos, estavam
inscritos entre aquelas paredes e naquela paisagem: seus
brinquedos de menina, a surpreendente descoberta de si
mesma e do mundo, que cada criatura faz por sua vez, dia
após dia... a diversidade infinita das ervas num campo, a
estranha forma das flores e o pó maravilhoso que elas
trazem no coração, a doçura da penugem que os patinhos
novos têm no ventre, os reflexos do sol sobre as asas das
libélulas... Deixava ali todas as horas que passara vendo-
se crescer, ouvindo-se sonhar, todas as épocas de seu
rosto, que tantas vezes contemplara na água transparente
do Mauldre, e aquele grande deslumbramento de viver que
sentia às vezes, deitada de bruços no meio do prado,
procurando os presságios na forma das nuvens e
imaginando Deus presente no fundo do céu... Passou
diante da capela onde repousava, sob uma laje, o corpo de
seu pai, e onde o monge italiano casara-a secretamente
com Guccio.
— Abaixa teu capuz — ordenou-lhe seu irmão
João.
Passado o rio, apressou o passo do cavalo e,
imediatamente, o de Pedro começou a cabecear.
— João, não vamos depressa demais? — disse
Pedro, designando Maria com um movimento de cabeça.
— Ora essa! A má semente tem raízes fundas —
disse o mais velho, como se, maldosamente, desejasse um
acidente.
Mas suas esperanças foram ludibriadas. Maria era
jovem, robusta, feita para a maternidade, e percorreu as
dez léguas de caminho entre Neauphle e Paris sem
demonstrar o menor sinal de indisposição. Sentia os rins
moídos, abafava de calor, mas não se queixou. De Paris só
viu, sob seu capuz, o chão das ruas, a parte baixa das casas
e os ombros das pessoas. Quantas pernas! Quantos
calçados! Gostaria muito de levantar seu capuz, mas não
ousava fazê-lo. O que a surpreendia era o ruído, o imenso
zumbir da cidade, as vozes dos pregoeiros, dos vendedores
de todas as mercadorias, dos barulhos característicos dos
ofícios. Em certas passagens, a turba era tão densa que as
montarias custavam a abrir caminho. Passantes
esbarravam nas pernas de Maria. Enfim, os cavalos
detiveram-se. Fizeram descer a jovem, que estava cansada
e coberta de poeira, autorizando-a a despir a capa.
— Onde estamos? — perguntou Maria,
contemplando com surpresa o pátio de uma bela morada.
— Na casa do tio do teu lombardo — respondeu
João de Cressay.
Alguns instantes mais tarde, um olho aberto e outro
fechado, messer Tolomei contemplava os três filhos do
falecido sire de Cressay, sentados em fileira diante dele,
João, o barbudo, Pedro, o glabro, e ao lado sua irmã, um
tanto retraída, a cabeça baixa.
— Lembrai-vos, messer Tolomei — dizia João —
de que nos fizestes uma promessa...
— Sem dúvida, sem dúvida, — respondeu Tolomei
— e vou cumpri-la, não duvideis disso.
— Mas compreendei que precisais cumpri-la
depressa. Compreendei que, depois do rumor feito em
torno desta vergonha, nossa irmã não mais pode morar
conosco. Compreendei que não ousamos aparecer nas
casas da vizinhança, e que nossos próprios servos zombam
de nós, quando passamos, e que será pior ainda quando o
pecado de nossa irmã fôr visível em seu corpo.
Tolomei tinha uma resposta na ponta da língua:
“Mas, meus rapazes, fôstes os causadores de todos esses
rumores! Ninguém vos obrigava a lançar-vos como
furiosos contra Guccio, amotinando o burgo todo de
Neauphle e anunciando vosso infortúnio melhor do que o
pregoeiro público o faria”.
— Além disso, nossa mãe não se restabelece desta
desgraça: amaldiçoou sua filha e o vê-la faz com que
recrudesça sua cólera, a ponto de temermos que ela
estoure... Compreendei...
“Este palerma, como todas as pessoas que insistem
para que a gente as compreenda, não deve ter grande peso
no cérebro. Quando a língua secar, ele se calará!... Mas o
que eu compreendo muitíssimo bem, dizia consigo o
banqueiro, é que o meu Guccio tenha ficado com a cabeça
adoidada por causa desta bela jovem. Até aqui não lhe dei
razão, mas desde que ela entrou, mudei de pensar. E se
minha idade permitisse uma coisa dessas acontecer-me
ainda, sem dúvida eu teria me comportado mais
loucamente ainda do que ele. Que belos olhos, que belos
cabelos, que bela pele... um verdadeiro fruto da
primavera! E como parece suportar corajosamente sua
infelicidade, porque, afinal, os dois outros gritam como se
eles é que tivessem sido violados! Mas é para ela mesma,
pobre menina, que o sofrimento é maior! Tem, com
certeza, uma boa alma. Que lástima, haver nascido sob o
mesmo teto em que nasceram estes dois tolos, e como eu
gostaria que Guccio pudesse desposá-la às claras, e que
ela viesse morar aqui, dando à minha velhice a alegria de
contemplá-la!”
Não tirava os olhos dela. Maria levantava os seus
para o velho, e baixava-os imediatamente, inquieta quanto
ao que ele poderia pensar a seu respeito e quanto àquela
insistência em observá-la.
— Compreendei, messer, que vosso sobrinho...
— Oh! Quanto a êsse, renego-o, deserdei-o já! Se
ele não tivesse fugido para a Itália penso que eu o mataria
com minhas próprias mãos. Se ao menos pudesse saber
onde foi esconder-se... — disse Tolomei, deixando a
fronte cair nas mãos, como que abatido.
E, ao abrigo do pequeno anteparo de suas mãos,
fazendo de forma que só a moça o visse, levantou por duas
vezes sua pesada pálpebra, habitualmente tombada. Maria
percebeu, então, que tinha um aliado, e não pôde conter
um suspiro. Guccio estava vivo, Guccio estava em lugar
seguro, e Tolomei sabia onde. Que lhe importava, agora, o
claustro!
Não mais ouviu o falatório de seu irmão João, que,
aliás, poderia recitar de cor. O próprio Pedro de Cressay
calava-se, com ar de vaga lassidão. Deixava que seu irmão
mais velho se persuadisse de que agira bem; deixava-o
falar da honra do sangue e das leis da cavalaria, para
justificar a enorme tolice de ambos.
Quando, saindo de seu pequeno solar arruinado, de
seu pátio que cheirava a estéreo tanto no inverno como no
verão, os irmãos Cressay viram a moradia principesca de
Tolomei, os brocados, os vasos de prata, quando sentiram
sob seus dedos os entalhes delicados das poltronas e
respiraram aquela atmosfera de riqueza, de abundância,
que flutuava pela casa toda, foram forçados a reconhecer
que sua irmã não teria sido mal contemplada se tivessem
deixado que ela seguisse sua inclinação. O irmão mais
novo estava sinceramente arrependido. “Ao menos um
entre nós estaria bem provido, e todos teríamos
aproveitado com isso”, dizia ele consigo. Mas o barbudo,
de espírito obtuso, sentia aumentar seu rancor, e fora
tomado por um mesquinho sentimento de inveja. “Por que
teria ela, pelo pecado, direito a tanta riqueza, enquanto nós
temos vida tão pobre?”
Maria também não era insensível àquele luxo que a
rodeava, que a deslumbrava, e não fazia senão avivar suas
penas.
“Se ao menos Guccio tivesse uma pontinha de
nobreza”, pensava ela, “ou se ao menos nada tivéssemos
nesse sentido! Que quer dizer, afinal, a cavalaria? Uma
coisa que faz sofrer tanto, pode ser boa? E a riqueza não é
também uma espécie de nobreza? Entre fazer trabalhar os
servos e fazer trabalhar o dinheiro, onde está a diferença?”
— Não vos inquieteis de forma alguma, meus
amigos — disse, enfim, Tolomei — e confiai em mim
para tudo. É dever dos tios reparar as faltas dos maus
sobrinhos. Consegui, graças às minhas altas amizades, que
vossa irmã seja acolhida no convento real de moças em
São Marcelo. Estais satisfeitos?
Os dois irmãos Cressay entreolharam-se e
sacudiram a cabeça em movimento aprobatório. O
convento das Clarissas do faubourg São Marcelo gozava
do mais alto prestígio entre os estabelecimentos religiosos
femininos. Ali entravam quase que unicamente jovens da
nobreza. E era ali que, às vezes, escondiam as bastardas da
família real. O ódio de João de Cressay tombou de uma só
vez, acalmado pela vaidade de casta. E para bem mostrar
que os Cressay não eram inferiores àquela honra que
faziam à sua irmã culpada, apressou-se a acrescentar:
— Muitíssimo bem, muitíssimo bem, pois a
abadêssa é um tanto aparentada conosco, segundo penso.
Nossa mãe mais de uma vez apontou-a como exemplo.
— Assim, tudo está ótimo — disse Tolomei. — Irei
levar vossa irmã, daqui a pouco, a messire Hugo de
Bouville, o antigo camareiro-mor...
Os dois irmãos inclinaram-se um pouco em suas
cadeiras, como prova de consideração pelo citado.
— ... do qual obtive esse favor — continuou
Tolomei — e esta noite, eu vos prometo, ela entrará para o
convento. Podeis, pois, voltar com a paz no coração.
Mandarei notícias.
Os dois irmãos nada mais queriam:
desembaraçavam-se de sua irmã e consideravam que
bastante haviam feito, entregando-a aos cuidados de
outrem. O silêncio do convento ia cair sobre aquele
drama, do qual, dali por diante, em Cressay, só se poderia
falar em voz baixa, ou, mesmo, deixar inteiramente de
falar.
— Deus te guarde e inspire em ti o arrependimento
— disse João à irmã, à guisa de adeus.
Despediu-se muito mais calorosamente de Tolomei,
agrade-cendo-lhe o trabalho a que se dava. Por pouco teria
censurado a Maria o tormento que ela causava àquele
excelente homem.
— Deus te guarde, Maria — disse Pedro,
comovido.
Teve um movimento para beijar a irmã, mas sob o
olhar severo do mais velho, não terminou o gesto. E Maria
viu-se só com o gordo banqueiro de pele morena, de boca
carnuda e com um olho fechado, que, por estranho que
parecesse, era seu tio.
Os dois cavalos saíram do pátio e ouviu-se diminuir
as fungadelas do poldro marrador, último ruído de Cressay
afastando-se de Maria.
— Agora, vamos para a mesa, minha filha. A hora
de jantar não é hora de chorar — disse Tolomei.
Ajudou a jovem a tirar a capa sob a qual sufocava.
Maria teve um olhar surpreendido, reconhecido, porque
aquela era a primeira prova de atenção e mesmo de
simples cortesia que tinham para com ela, havia muitas
semanas.
“Ora essa, eis um tecido que é de minha casa”,
disse consigo Tolomei, vendo o trajo que ela trazia.
O lombardo era negociante em especiarias do
Oriente, ao mesmo tempo que banqueiro: os ensopados
onde mergulhava com elegância os dedos, as carnes que
retirava delicadamente dos ossos, aos pedacinhos, estavam
impregnadas de perfumes exóticos, apetitosos. Mas Maria
não mostrava desejo de comer, e mal provou os pratos do
primeiro serviço.
— Êle está em Lião — disse, então, Tolomei,
levantando a pálpebra esquerda. — No momento não pode
sair de lá, mas pensa em vós e conserva-se fiel.
— Não está preso? — perguntou Maria.
— Não, não é precisamente isso. Encontra-se
encerrado, mas de forma alguma isso se relaciona com o
que toca a vós, e partilha seu cativeiro com tão altos
personagens que nada temos a temer quanto à segurança
dele. Tudo me leva a crer que sairá da igreja onde está
ainda mais importante do que ali entrou.
— A igreja? — perguntou Maria.
— Não posso dizer-vos nada mais.
Maria não insistiu. Guccio encerrado numa igreja
em companhia de pessoas assim tão importantes que não
podiam ser citadas... tal mistério ultrapassava seu
entendimento. Mas na vida de Guccio já tinham surgido
várias circunstâncias misteriosas, e que não eram
estranhas à admiração que a jovem lhe votava. A primeira
vez em que o vira, não chegava ele da Inglaterra, onde
fora prestar serviço à Rainha Isabel? Não se tinha
ausentado depois, duas vezes, e longamente, para ir a
Nápoles, a serviço da Rainha Clemência, que lhe dera o
relicário de São João Batista que ela trazia ao pescoço?
“Darei ao nosso filho o nome de João ou de
Joana... e pensarão que é por causa de meu irmão mais
velho.” Se Guccio estava encerrado àquela hora, devia ser
ainda por causa de alguma rainha. Maria maravilhava-se
ao ver que, entre tantas princesas poderosas, Guccio
continuava a preferi-la, a ela, pobre moça do campo.
Guccio vivia. Guccio amava-a: nada mais lhe era
necessário para que lhe voltasse o prazer de viver, e ela
tornou ao prato com todo o apetite de uma jovem de
dezoito anos, que estivera viajando desde a madrugada.
Tolomei, que sabia dirigir-se facilmente aos mais
altos barões, aos pares do reino, aos jurisconsultos, aos
arcebispos, de há muito perdera o hábito de falar às
mulheres, sobretudo a uma mulher jovem. Trocaram
poucas palavras, portanto. O velho banqueiro olhava com
encantamento aquela sobrinha que lhe caíra do céu, e que
ia lhe agradando cada vez mais, de minuto em minuto.
“Que lástima”, pensava ele, “ter de metê-la no
convento! Se Guccio não tivesse ficado encerrado no
conclave, eu mandaria esta bela menina para Lião. Mas
que faria em tal lugar, sozinha e sem apoio? Ora, da forma
pela qual as coisas caminham, os cardeais, segundo dizem,
não se mostram muito próximos de ceder... E se eu a
conservasse aqui, esperando a volta do meu sobrinho? Eis
o que me agradaria. Mas não, não posso fazer isso: pedi a
Bouville que agisse em favor dela. Que figura faria eu
agora, pondo de parte as providências que ele tomou? E
se, além disso, a abadêssa é prima dos Cressay, e aqueles
palermas têm a idéia de lhe pedir notícias da moça?...
Vamos, não percamos a cabeça, por nossa vez. Ela irá
para o convento...”
— Mas não por toda a vida — disse ele,
continuando em voz alta. — Não se trata de fazer-vos
freira. Aceitai sem muitas queixas esses poucos meses de
reclusão. Eu vos prometo que, quando a criança nascer,
hei de arranjar vossos negócios para que possais viver
feliz com meu sobrinho.
Maria tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios. Êle
ficou constrangido: a bondade não fazia parte de sua
natureza, e seu ofício não o habituara às expressões de
gratidão.
— Preciso, agora, entregar-vos aos cuidados do
Conde de Bouville — disse ele.
Da Rua dos Lombardos ao palácio da Cité o
caminho não era muito longo. Maria percorreu-o ao lado
de Tolomei, num estado de maravilhada surpresa. Jamais
vira uma cidade grande, e o movimento da multidão sob o
sol de julho, a beleza das casas, a abundância de lojas, a
cintilação das vitrinas dos joalheiros, todo aquele
espetáculo transportava-a para uma espécie de
encantamento. “A felicidade, a felicidade”, dizia ela
consigo, “de viver aqui, e que homem amável é o tio de
Guccio, e que bênção estar ele disposto a proteger-nos.
Oh! Sim! Como suportarei sem me queixar o tempo que
tiver de passar no convento!” Passaram pela Pont-au-
Change e entraram na Galeria Capelista, atravancada com
os seus balcões.
Tolomei, só pelo prazer de ouvi-la agradecer de
novo e para ver um sorriso descobrir os belos dentes de
Maria, não pôde deixar de comprar-lhe uma esmoleira de
cinto, bordada com pequenas pérolas.
— É da parte de Guccio. Afinal é preciso que eu o
substitua! — disse-lhe ele, ao mesmo tempo que
calculava, pensando que num atacadista teria obtido o
mesmo objeto pela metade do preço.
Tomaram, em seguida, a grande escadaria do
palácio. Assim, por ter errado com um jovem lombardo,
Maria de Cressay penetrava na morada real, onde seu pai e
seus irmãos, apesar de seus trezentos anos de cavalaria e
dos serviços prestados à realeza nos campos de batalha,
jamais teriam pensado em entrar.
Reinava no interior do palácio aquela desordem
dentro da qual cada um toma atitudes importantes, aquele
estado de agitação que marcavam imediatamente os
lugares onde se encontrasse o Conde de Valois. Tendo
cruzado corredores, galerias e salas sucessivas, onde, de
uma para outra, Maria de Cressay sentia-se como que
diminuída de estatura, Tolomei e a jovem chegaram a uma
parte um pouco retirada, atrás da Santa Capela, e dando
para o Sena e a Ilha dos Judeus. Uma guarda de gentis-
homens em cotas de armas barrou-lhes a passagem.
Ninguém devia penetrar nos aposentos reservados à
Rainha Clemência sem autorização dos curadores.
Enquanto iam procurar o Conde de Bouville, Tolomei e
Maria esperaram, junto de uma janela.
— Foi ali, estais vendo, que queimaram os
Templários — disse Tolomei, designando-lhe a ilha.
O gordo Bouville chegou, sempre equipado como
para a guerra, o bandulho rolando sob o tecido de aço, e o
passo firme como se fosse comandar um assalto. Mandou
que a guarda se afastasse. Tolomei e Maria atravessaram
de início uma sala onde sire de Joinville dormia, sentado
numa cátedra. Seus dois escudeiros, junto dele, jogavam
xadrez em silêncio. Depois, os visitantes passaram para o
alojamento do Conde de Bouville.
— Madame Clemência vai-se restabelecendo? —
perguntou Tolomei a Bouville.
— Chora menos — respondeu o curador — ou
antes, mostra menos suas lágrimas, como se lhe corressem
diretamente para a garganta. Mas ainda se conserva
duramente aturdida.
Depois, o calor aqui não é nada bom para o estado
dela, e causa-lhe freqüentes vertigens e tonturas.
“Assim, a rainha da França está aqui ao lado”,
pensou Maria com intensa curiosidade. “Talvez eu lhe vá
ser apresentada... Como ousarei falar-lhe de Guccio?”
Assistiu, em seguida, à longa conversa, que, aliás,
pouco compreendeu, entre o banqueiro e o antigo
camareiro-mor. Quando pronunciavam certos nomes
baixavam a voz, ou então afastavam-se alguns passos, e
Maria proibia a si própria ouvir-lhes os cochichos.
O Conde de Poitiers, chegando de Lião, estava
sendo anunciado para o dia seguinte. Bouville, que
desejara tanto a volta dele, agora já não sabia se isso seria
um bem ou um mal. Porque Monsenhor de Valois
resolvera ir imediatamente ao encontro de Filipe, em
companhia do Conde de La Marche. E Bouville mostrou a
Tolomei, por uma janela que dava para os pátios, os
preparativos daquela partida. Por seu lado, o Duque de
Borgonha, instalado em Paris, fazia com que seus próprios
gentis-homens montassem guarda em torno de sua
sobrinha, a pequena Joana de Navarra. O Tesouro estava
vazio. Mau vento de revolta soprava pela cidade, e aquela
rivalidade de regentes poderia terminar nas piores
calamidades. Segundo a opinião de Bouville, a Rainha
Clemência devia ter sido nomeada regente, rodeada por
um conselho da coroa composto de Valois, Poitiers e do
Duque de Borgonha.
Por muito interessado que estivesse pelos
acontecimentos, Tolomei tentou, por duas vezes, trazer
Bouville ao assunto preciso de sua visita.
— Sem dúvida, sem dúvida, vamos velar bem por
esta senhorita — respondia Bouville, voltando
imediatamente às suas preocupações políticas.
Tolomei tinha tido notícias de Lião? O camareiro
tomara familiarmente o banqueiro pelos ombros e falava-
lhe quase encostando ao rosto dele o próprio rosto. Como?
Guccio estava encerrado com o conclave, em companhia
de Duèze? Ah! Que rapaz hábil! Tolomei tinha a intenção
de comunicar-se com seu sobrinho? Se recebesse notícias,
ou se pudesse enviá-las, não deixasse de preveni-lo. O
moço poderia ser um informante precioso. Quanto a
Maria...
— Claro, claro — disse o curador. — Minha
mulher, que é pessoa capaz, e muito ativa, fêz tudo quanto
era preciso. Podeis ficar tranqüilo.
Chamaram Madame de Bouville, mulherzinha
magra, autoritária, de rosto riscado pelas rugas verticais, e
cujas mãos secas jamais estavam em repouso. Maria, que
até então sentira-se em segurança entre o gordo Tolomei e
o gordo Bouville, teve imediatamente uma impressão
desagradável, e ficou inquieta.
— Ah! Sois vós a pessoa cujo pecado devemos
esconder — disse Madame de Bouville, examinando-a
com olhos sem benevolência. — Estais sendo esperada no
convento das Clarissas. A abadêssa mostrara pouca
solicitude e mostrou ainda menos quando eu lhe disse
vosso nome, porque é, não sei através de que laços, de
vossa família, e vosso comportamento não lhe agradou.
Enfim, os favores de que goza messire Hugo, meu esposo,
pesaram muito na questão. Fiz um pouco de barulho e o
abrigo vos será dado. Antes que anoiteça, irei levar-vos
até lá.
Falava depressa e não era fácil interrompê-la.
Quando parou para retomar fôlego, Maria respondeu-lhe,
com muito respeito, mas também com muita dignidade no
tom:
— Madame, eu não estou em estado de pecado,
porque me casei diante de Deus.
— Vamos, vamos — replicou Madame de Bouville
— não façais com que as pessoas se arrependam das
bondades que tiveram convosco. Agradecei, pois, àqueles
que se esforçam por ajudar-vos, em vez de vos mostrardes
enfatuada.
Foi Tolomei quem agradeceu em nome de Maria.
Quando esta viu o banqueiro a ponto de partir, foi tomada
por um tão completo sentimento de desgosto, de solidão,
de desamparo, que se atirou aos braços de Tolomei, como
se ele fosse seu pai.
— Dai-me notícias da sorte de Guccio —
murmurou-lhe ao ouvido — e fazei com que saiba que
morro de saudades dele.
Tolomei foi-se, e os Bouville igualmente
desapareceram. Durante toda a tarde Maria ficou na
antecâmara deles, não ousando mover-se e não tendo outra
distração a não ser a de assistir, pelo vão da janela aberta,
à partida de Monsenhor de Valois e de sua escolta. O
espetáculo, por um momento, arrancou-a ao seu desgosto.
Jamais vira cavalos tão belos, tão lindos arneses, tão
formosos trajos, e em tal quantidade. Pensava nos
camponeses de Cressay, vestidos de farrapos, as pernas
envolvidas em tiras de pano, e dizia consigo mesma que
era bem estranho possuírem todos os seres uma cabeça e
dois braços, e, tendo sido criados por Deus à sua imagem,
parecerem pertencer a raças tão diferentes, quando
julgados pelos trajos.
Jovens escudeiros, vendo aquela moça de grande
beleza ocupada em contemplá-los, dirigiram-lhe sorrisos,
e, mesmo, atiraram-lhe beijos. Subitamente, todos se
movimentaram em torno de um personagem inteiramente
coberto de prata, que parecia impor-se muitíssimo, e que
tomava ares de soberano. Depois, a tropa abalou, e o calor
da tarde desceu pesadamente sobre os pátios e os jardins
do palácio.
Lá para o fim do dia, a Senhora de Bouville veio
buscar Maria. Acompanhadas por alguns criados e
montadas em mulas de silhão, isto é, equipadas com
albardas onde se sentavam de lado, os pés pousados sobre
uma prancheta, as duas mulheres atravessaram Paris.
Havia aglomerações à porta das tavernas, gritos. Uma rixa
tinha estalado entre os partidários do Conde de Valois e o
pessoal do Duque de Borgonha, recentemente chegado, e
que se embriagavam com resolução. Os sargentos da
ronda, a golpes de maça, restabeleciam a ordem.
— A cidade está nervosa — disse Madame de
Bouville. — Não me surpreenderia se amanhã tivéssemos
motim.
Saíram de Paris pelo monte Santa Genoveva e pela
porta São Marcelo. O crepúsculo tombava sobre os
arrabaldes.
— Quando eu era jovem — disse Madame de
Bouville — não se viam aqui mais de umas vinte casas.
As pessoas já não sabem onde morar, na cidade, e
constróem sem cessar nos campos.
O convento das Clarissas era rodeado por alto muro
branco, que encerrava as construções, os jardins e os
pomares. No muro, uma porta baixa, e junto da porta,
construída na espessura da pedra, uma roda. Uma mulher
que caminhava ao longo do muro, a cabeça coberta com
capuz, aproximou-se da roda, e ali depositou rapidamente
um embrulho que tirou de sob a capa. Gemidos
escaparam-se do embrulho. A mulher fêz girar o tambor
de madeira, puxou o sino, e, vendo que alguém se
aproximava, fugiu.
— Que fêz ela? — perguntou Maria.
— Acaba de abandonar ali um filho sem pai —
disse Madame de Bouville olhando para Maria com ar
severo. — É assim que eles são recolhidos. Vamos,
caminhai.
Maria instigou sua mula, pensando que também ela
poderia ter sido forçada, em dias próximos, a depor seu
filho numa roda. Considerou sua sorte, então, como ainda
bem invejável.
— Eu vos agradeço, madame, por terdes tido tanto
cuidado comigo — murmurou, com lágrimas nos olhos.
— Ah! Enfim, uma palavra amável! — respondeu
Madame de Bouville.
Alguns instantes mais tarde a porta abria-se para
elas, e Maria desapareceu no silêncio do convento.
VII
AS PORTAS DO PALÁCIO

NAQUELA mesma noite o Conde de Poitiers


encontrava-se J. 1 no castelo de Fontainebleau, onde devia
dormir: era a última etapa antes de Paris. Acabava de cear
em companhia do delfim de Viennois, do Conde de Sabóia
e dos membros de sua numerosa escolta, quando vieram
anunciar-lhe a chegada de seu tio, o Conde Valois, de seu
irmão, o Conde de La Marche, e de seu primo Saint-Pol.
— Que entrem, que entrem imediatamente — disse
Filipe de Poitiers.
Mas não foi ao encontro de seu tio. E quando
aquele, com andar marcial, o queixo erguido, e as vestes
empoeiradas, apareceu, Filipe contentou-se em levantar-
se, sem fazer o menor movimento em direção dele, e
esperou. Valois, um tanto confuso, ficou de pé junto da
porta, por alguns segundos, contemplou os presentes, e
como Filipe insistisse em conservar-se imóvel, viu-se
forçado a adiantar-se. Todos se calavam observando-os.
Quando Valois já estava bastante perto dele, o Conde de
Poitiers tomou-o pelos ombros, e beijou-o nas duas faces,
o que podia parecer um gesto de bom sobrinho, mas que,
vindo de um homem que não se movera de seu lugar, era
antes um gesto de rei.
Esta atitude irritou Carlos de La Marche, que
pensou: “Fizemos todo esse caminho para receber tal
acolhida? Afinal, estou em pé de igualdade com meu
irmão. Por que se permite ele tratar-nos com tal
sobranceria?”
Expressão amarga, ciumenta, deformava um tanto o
belo rosto de traços regulares, mas sem inteligência.
Filipe estendeu-lhe os braços: La Marche não teve
outro remédio senão trocar um breve abraço com seu
irmão, mas, para dar-se importância e tentar afirmar,
também ele, sua autoridade, disse, designando Valois:
— Filipe, aqui tendes nosso tio, o mais velho da
coroa. Estamos certos de que entrareis em entendimento
com ele, para que lhe caiba o governo do reino. Porque o
reino estaria perigando muito se ficasse à espera da
chegada de uma criança que ainda não nasceu, que não
saberá, portanto, governar, e que, seja como fôr, será
estrangeira pelo lado de sua mãe.
A frase era ambígua, pouco hábil. Podia significar
que o Conde de La Marche desejava ver seu tio na
regência até o nascimento do filho póstumo de Luís X, ou
até a maioridade daquela criança, se fosse um filho. Mas
podia, também, trair ambições mais vastas em Valois. La
Marche devia ter repetido incorretamente as palavras
inculcadas pelo tio. Alguns termos, naquela declaração,
fizeram Filipe franzir os sobrolhos. Valois tentava
apoderar-se da coroa.
— Nosso primo de Saint-Pol está conosco —
continuou Carlos de La Marche — para dizer-vos que
também é essa a opinião dos barões.
Filipe deixou tombar sobre ele um olhar bastante
desdenhoso.
— Eu vos agradeço, meu irmão, pelo vosso
conselho — respondeu, friamente — e por terdes feito tão
grande viagem a fim de trazer-mo. E acho que deveis estar
tão cansado como eu. E as boas decisões não devem ser
tomadas no momento da fadiga. Proponho, pois, que
vamos dormir e que decidamos amanhã, entre nós, com o
espírito repousado. Boa noite, Monsenhores. Raul,
Anseau, Adão, acompanhai-me, eu vos peço...
E saiu da sala, sem mesmo ter oferecido
hospedagem a seus visitantes, sem mesmo preocupar-se
com a maneira pela qual iriam acomodar-se para dormir.
Seguido por Adão Héron, por Raul de Presles e
Anseau de Joinville, dirigiu-se para os aposentos reais. O
leito, que não tinha sido ocupado desde que o Rei de Ferro
nele expirara, estava feito, os lençóis arranjados. Filipe
fazia questão de ocupar aquele quarto. Fazia, sobretudo,
questão de que nenhum outro o ocupasse.
Adão Héron dispunha-se a despi-lo.
— Acho que não me despirei esta noite — disse
Filipe de Poitiers. — Adão, envie um dos meus donzéis a
messire Gaucher de Châtillon, para lhe informar que
amanhã pela manhã estarei na porta do Inferno. Depois,
mande-me meu barbeiro, imediatamente, pois quero
chegar com boa aparência... e mande preparar vinte
cavalos para meia-noite, mas somente depois que meu tio
deitar-se. E a ti, Anseau — acrescentou ele, voltando-se
para o filho do senescal de Joinville, homem já idoso —
eu encarrego de prevenir o Conde de Sabóia e o delfim,
para que não sejam surpreendidos e não pensem que
desconfio deles. Fiquem aqui até pela manha, e quando
meu tio perceber que parti, rodeiem-no bastante, a fim de
atrasar-lhe a viagem. Façam ainda, com que perca tempo
no caminho.
Tendo ficado a sós com Raul de Presles, pareceu
mergulhar em silenciosa meditação, que o jurisconsulto
evitou perturbar.
— Raul — disse ele, por fim — trabalhaste dia
após dia junto de meu pai, e conheceste o rei melhor do
que eu próprio. Numa ocasião destas, como agiria ele?
— Faria o que ides fazer, Monsenhor, posso
garantir-vos, e não vo-lo digo por lisonja, mas porque
realmente penso assim. Tive grande amor por nosso sire
Filipe, e suportei muitos sofrimentos depois da morte dele,
de tal forma que só vos sirvo por causa da vossa
semelhança absoluta com ele.
— Ai de mim, ai de mim, Raul, bem pouco sou
comparado a meu pai. Êle podia seguir seu falcão nos
ares, sem jamais perdê-lo com os olhos, e eu tenho a vista
curta. Torcia sem esforço uma ferradura entre os dedos.
Não me legou sua força nas armas, nem aquela aparência
física que revelava a toda a gente ser ele um rei.
Falando, olhava obstinadamente para o leito.
Em Lião, sentia-se regente, com plena segurança.
Mas, à medida que se aproximava da capital, aquela
certeza, sem que ele desse mostras disso, abandonava-o
um tanto. Raul de Presles, como se respondesse a
perguntas não formuladas, disse:
— Não temos precedente na situação em que nos
encontramos, Monsenhor. Há dias já que debatemos
bastante esse assunto. Nas condições de enfraquecimento
em que se encontra o reino, o poder será daquele que tiver
autoridade para tomá-lo. Se conseguirdes isso, a França
não sofrerá.
Pouco depois retirou-se, e Filipe se deitou, os olhos
fixos na pequena lâmpada que pendia entre as cortinas. O
Conde de Poitiers não sentia constrangimento algum, mal-
estar algum, ao se encontrar naquele leito cujo último
ocupante fora um cadáver. Ao contrário, ali absorvia
forças, e tinha a impressão de fluir para a forma paterna,
de tomar-lhe o lugar, de reocupar as dimensões dele sobre
a terra. “Pai, voltai a mim”, orava ele. E mantinha-se
imóvel, as mãos cruzadas sobre o peito, oferecendo seu
corpo à reencarnação de uma alma que havia vinte meses
se fora.
Ouviu passos no corredor, vozes, e seu camareiro
respondeu, sem dúvida, a alguém do séquito do Conde de
Valois, que o Conde de Poitiers repousava. O silêncio
tombou sobre o castelo. Um pouco mais tarde, o barbeiro
chegou com a bacia, as navalhas e as toalhas quentes.
Enquanto o barbeava, Filipe de Poitiers recordava,
naquele mesmo quarto onde toda a corte estivera reunida,
as últimas recomendações de seu pai a Luís, que tão pouco
em conta as levara: “Pesai, Luís, o que é ser rei da França.
Procurai saber o mais depressa possível qual é o estado de
vosso reino”.
Quando meia-noite se aproximava, Adão Héron
veio adverti-lo de que os cavalos estavam prontos.
Quando o Conde de Poitiers saiu do quarto, tinha a
impressão de que vinte meses acabavam de ser abolidos, e
de que ele retomava as coisas onde elas estavam por
ocasião da morte de seu pai, como se as tivesse recolhido
diretamente, em sucessão.
Uma lua propícia iluminava a estrada. A noite de
julho, toda estrelada, parecia-se ao manto da Santa
Virgem. A floresta exalava seus perfumes de musgo, de
humo e de fetos: vivia no frêmito secreto dos animais.
Filipe de Poitiers montava um excelente cavalo, cujo
passo poderoso apreciava. O ar fresco chicoteava-lhe as
faces, que o barbeiro tornara sensíveis.
“Seria uma pena, pensava, deixar um país tão bom
em mãos tão más.”
A pequena tropa saiu da floresta, atravessou
Ponthierry a galope e, ao nascer do dia, parava nos
recôncavos de Es-sones, para dar fôlego aos cavalos e
comer alguma coisa. Filipe devorou aquela refeição
sentado sobre um marco de pedra do caminho. Parecia
sentir-se feliz. Tinha apenas vinte e três anos, sua
expedição tomava um ligeiro ar de conquista, e dirigia-se
em tom alegremente amistoso aos seus companheiros de
aventura. Aquela alegria, rara no príncipe, fortaleceu-lhes
o ânimo.
Entre prima e tércia chegava ele à porta de Paris, no
momento em que soavam os sinos ásperos dos conventos
circunvizinhos. Encontrou ali Luís d’Evreu e Gaucher de
Châtillon que o esperavam. O condestável tinha a
fisionomia dos maus dias e convidou imediatamente o
Conde de Poitiers a ir ao Louvre.
— E por que não irei imediatamente para o palácio
da Cité? — perguntou Filipe.
— Porque os senhores de Valois e de La Marche
mandaram seus soldados ocupar o palácio. No Louvre,
tereis as tropas reais, que estão todas subordinadas a mim,
quero dizer, a vós, com os besteiros de messire de
Galard... Será preciso, porém, agir pronta e resolutamente
— acrescentou o condestável — a fim de chegarmos antes
dos nossos dois Carlos. Se me derdes ordem, Monsenhor,
mandarei tomar o palácio.
Filipe sabia que os minutos eram preciosos e
calculava ter, pelo menos, seis a sete horas de avanço
sobre Valois.
— Nada quero empreender sem saber, antes, se o
que se fizer será bem visto pelos burgueses e pelo povo da
cidade — respondeu.
E assim que entrou no Louvre mandou chamar no
Parlatório dos Burgueses, mestre Coquatrix, mestre
Gentien e alguns dos altos notáveis, bem como o preboste
Guilherme de La Madeleine, que desde março sucedera ao
preboste de Ploye-bouche.
Em algumas palavras Filipe fêz-lhes sentir a
importância que atribuía à burguesia de Paris e aos
homens que dirigiam as artes de fabricação e os negócios.
Os burgueses sentiram-se honrados, e, sobretudo,
tranqüilizados. Desde a morte de Filipe, o Belo, não mais
tinham ouvido tal linguagem, e embora se tivessem
queixado daquele rei por muitas vezes, quando governava,
não cessavam agora de lamentar-lhe o desaparecimento.
Foi Godofredo Coquatrix, comissário para as moedas
falsas, coletor de subvenções e subsídios, tesoureiro das
guerras, fornecedor das guarnições, visitador dos portos e
passagens do reino, advogado do Tribunal de Contas,
quem respondeu. Suas funções vinham do tempo de
Filipe, o Belo, que chegara, mesmo, a dotá-lo com uma
renda hereditária, tal como se fazia para os grandes
servidores da Coroa. E ele jamais prestara contas de sua
administração (11). Temia que Carlos de Valois, que
sempre fora hostil à promoção dos burgueses aos altos
postos — e bastante o provara com Marigny — o
destituísse de suas funções para espoliá-lo da enorme
fortuna que adquirira. Coquatrix assegurou ao Conde de
Poitiers, dando-lhe dez vezes o título de “messire
regente”, o devotamento da população parisiense. Sua
palavra tinha alto valor, pois que ele era todo--poderoso
no Parlatório, e bastante rico, também, para pagar, se
houvesse necessidade, todos os truões da cidade, levando-
os ao motim.
A notícia da volta de Filipe de Poitiers se havia
espalhado rapidamente. Os barões e cavaleiros que lhe
eram favoráveis acorreram ao Louvre, a começar pela
Condèssa Mafalda d’Artois, pessoalmente prevenida.
— Como vai minha querida Joana? — perguntou
Filipe à sua sogra, abrindo-lhe os braços.
— Esperamos que dê à luz a qualquer momento.
— Irei vê-la, assim que termine o que tenho de
fazer.
Depois entrou em confabulações com seu tio Luís e
com o condestável.
— Agora, Gaucher, podeis marchar contra o
palácio. Tratai, se possível, de terminar tudo até ao meio-
dia. Fazei, entretanto, todo o possível para evitar sangue.
Usai mais da intimidação do que da violência, pois eu não
gostaria de entrar no palácio saltando por cima de
cadáveres.
Gaucher foi tomar a frente de sua companhia de
homens armados, que reunira no Louvre, e marchou para a
Cité. Ao mesmo tempo mandava o preboste chamar, no
bairro do Templo, os melhores carpinteiros e serralheiros.
As portas do palácio estavam fechadas. Gaucher,
tendo a seu lado o grão-mestre dos besteiros, mandou
pedir entrada. O oficial de guarda, mostrando-se a uma
trapeira acima da porta principal, respondeu que não podia
abrir sem a autorização do Conde de Valois ou do Conde
de La Marche.
— Terá que abrir para mim, ainda que sem
autorização — respondeu o condestável — porque desejo
entrar e colocar o palácio em estado de receber o regente,
que virá logo depois de mim.
— Não podemos.
Gaucher de Chátillon levantou-se um pouco sobre
seu cavalo.
— Então, nós mesmos abriremos — disse ele.
Fêz sinal a Pedro du Temple, carpinteiro real, para
que se aproximasse, escoltado pelos seus operários, que
traziam serras, pinças, e grandes alavancas de ferro. Ao
mesmo tempo, os besteiros, metendo o pé numa espécie
de estribo colocado no ponto mais alto de seus arcos,
entesavam as armas, encaixavam a flecha no entalhe, e
colocavam-se em posição de visar as ameias e seteiras. Os
archeiros e piqueiros, unindo seus escudos, formavam
enorme carapaça em torno e acima dos carpinteiros. Nas
ruas adjacentes, basbaques e moleques amontoavam-se, a
respeitosa distância, para ver o cerco. Era, aquela, uma
linda distração que lhes ofereciam, e da qual poderiam
falar durante muitos dias.
— ... eu estava lá, tão certo como estar falando
agora contigo... Vi o condestável puxar sua comprida
espada... Mais de dois mil, com certeza, mais de dois mil
eram eles.
Enfim, Gaucher, com a voz de comando que usava
nos campos de batalha, gritou, pela viseira erguida de seu
elmo:
— Messires que estais aí dentro, os mestres da
carpintaria e da serralheria vão fazer saltar as portas.
Vede, também, os besteiros de messire de Galard, que
cercam o palácio por todos os lados. Ninguém poderá
escapar. Convido-vos, pela última vez, a abrir-nos a
portar, porque, se não vos entregardes, sereis decapitados,
todos, por muito nobres que sejais. O regente não vos dará
quartel.
Depois, baixou a viseira, o que queria dizer que não
mais discutiria.
Devia reinar um belo pânico lá dentro, porque, mal
os operários colocaram as alavancas sob as portas, estas
abriram-se sobre si mesmas. A guarnição do Conde de
Valois rendia-se.
— Era tempo de que vos submetêsseis à sensatez
— disse o condestável, tomando posse do palácio. — Ide
para vossas casas ou para a casa de vossos senhores: não
vos aglomereis, e não sereis perseguidos.
Uma hora mais tarde, Filipe de Poitiers ocupava os
apartamentos reais. Imediatamente, tomou medidas de
segurança. O pátio do palácio, habitualmente aberto para o
povo, foi fechado, guardado militarmente, e os visitantes
cuidadosamente selecionados. Aos capelistas, que tinham
o privilégio de vender na grande galeria, pediu-se que
fechassem provisoriamente suas lojas.
Quando os Condes de Valois e de La Marche
chegaram a Paris, compreenderam que tinham perdido a
partida.
— Filipe ludibriou-nos detestàvelmente —
disseram.
E apressaram-se a ir para o palácio negociar sua
submissão, já que não tinham outra saída. Ali
encontraram, em torno do Conde de Poitiers, numeroso
grupo de senhores, burgueses e homens da Igreja, entre os
quais o arcebispo João de Marigny, sempre disposto a
colocar-se ao lado do mais forte.
— Êle não durará. Tem pouca segurança própria e
procura apoiar-se em homens das classes inferiores —
disse Valois a Carlos de La Marche, a meia voz,
constatando, com despeito, a presença de Coquatrix, de
Gentien e de outros notáveis.
Apesar disso, tomou aspecto melhor para adiantar-
se até seu sobrinho e apresentar-lhe desculpas pelo
incidente daquela manhã.
— Meus escudeiros de guarda de nada sabiam, e
tinham recebido ordens severas... por causa da Rainha
Clemência...
Esperava uma resposta sòlidamente grosseira, e
desejava-a, quase, pois seria, aquele, um pretexto para
entrar em luta aberta contra Filipe. Mas este último não
lhe forneceu as vantagens de uma pendência, e respondeu-
lhe, no mesmo tom:
— Tive que agir daquela maneira, lamentando-o
muito, meu tio, para evitar as maquinações do Duque de
Borgonha, a quem a vossa partida deixara o campo livre.
Recebi notícias durante a noite, em Fontainebleau, a esse
respeito. Não quis acordar-vos, entretanto.
Valois, para tornar menor sua derrota, fingiu
receber como exata a explicação e esforçou-se, mesmo,
por mostrar boa cara ao condestável, que considerava o
autor de toda a maquinação.
Carlos de La Marche, menos hábil na dissimulação,
conservava os dentes cerrados.
O Conde d’Evreux fêz, então, a proposta que
combinara com Filipe. Enquanto este último fingia
ocupar-se com questões de serviço, junto do condestável e
de Mille de Noyers, num canto da sala, Luís d’Evreux
disse:
— Meus senhores, e vós todos, Messires,
aconselho, para o bem do reino e para evitar-lhe funestas
perturbações, que nosso bem-amado sobrinho Filipe tome
posse do governo, com o consentimento de todos nós, e
que realize as tarefas reais em nome de seu sobrinho por
nascer, se Deus quiser que a Rainha Clemência dê à luz
um filho. Aconselho, ainda, que uma assembléia de todos
os homens de prol do reino se junte, assim que se possa
reunir, com os pares e os barões, para aprovar nossa
decisão e jurar fidelidade ao regente.
Era a réplica exata da declaração feita na véspera
por Carlos de La Marche, ao chegar a Fontainebleau. Mas
a cena fora preparada por melhores artistas. Arrastada
pelos fiéis do Conde de Poitiers, a assistência aprovou por
aclamações. Imediatamente, Luís d’Evreux, repetindo o
gesto que tivera em Lião o Conde de Forez, veio colocar
suas mãos entre as de Filipe.
— Eu vos juro fidelidade, meu sobrinho — disse
ele, dobrando o joelho.
Filipe ergueu-o, e, beijando-o, disse-lhe ao ouvido:
— Tudo vai às maravilhas. Muitíssimo obrigado,
meu tio.
La Marche, desesperado, furioso com o êxito de
Filipe, engrolou :
— O rei... Êle pensa que é mesmo o rei.
Mas Luís d’Evreux já se voltara para Carlos de
Valois, e dizia-lhe:
— Perdão, meu irmão, por ter passado por cima de
vosso direito.
Valois nada mais tinha a fazer, a não ser prestar
obediência. Aproximou-se, com as mãos estendidas. O
Conde de Poitiers deixou-as no ar.
— Far-me-eis a graça, meu tio, de tomar parte no
meu conselho — disse ele.
Valois empalideceu. Na véspera, assinava os
decretos, apondo-lhes seu sinête. Hoje ofereciam-lhe,
como grande honra, um lugar num conselho, ao qual, por
direito, ele pertencia.
— Também haveis de entregar-nos as chaves do
Tesouro — acrescentou Filipe, baixando a voz. — Bem
sei que está quase vazio. Desejaria, ao menos, que não se
esvaziasse ainda mais.
Valois teve um movimento de recuo. O que lhe
pediam era seu completo desapossamento.
— Meu sobrinho, não posso fazer isso —
respondeu. — Preciso mandar pôr as contas em dia.
— Fazeis assim tanta questão de pôr em ordem
essas contas, meu tio? — disse Filipe, com ironia apenas
perceptível. — Então, seríamos forçados a examiná-las, e
a examinar também a gestão dos bens tomados a
Enguerrand de Marigny.
Entregai-nos, pois, as chaves, e daremos quitação
de vossas contas.
Valois compreendeu a ameaça.
— Seja, meu sobrinho, mandarei que vos
entreguem agora mesmo as chaves.
Filipe, então, estendeu as mãos para receber a
homenagem de seu mais poderoso rival.
O condestável de França por sua vez aproximava-
se.
— Agora, Gaucher — murmurou-lhe Filipe —
precisamos nos ocupar do Borguinhão.
VIII
AS VISITAS DO CONDE DE POITIERS

O CONDE de Poitiers não alimentava ilusões.


Acabava de colher uma primeira vitória, espetacular,
rápida, mas sabia que seus adversários não se
desarmariam tão facilmente.
Mal recebeu de Monsenhor de Valois um
juramento de fidelidade que era apenas de boca, Filipe
atravessou o palácio para ir cumprimentar sua cunhada
Clemência. Estava acompanhado de Anseau de Joinville e
da Condêssa Mafalda. Hugo de Bouville, vendo Filipe,
desatou a chorar e caiu de joelhos, beijando-lhe as mãos.
O antigo camareiro, embora fizesse parte do conselho dos
pares, tinha se abstido de aparecer na reunião daquela
tarde. Não deixara seu posto nem largara sua espada
durante aquelas últimas horas. O assalto do palácio,
levado a efeito pelo condestável, o alvoroço e a partida
dos homens do Conde de Valois, tinham submetido seus
nervos a dura prova.
— Perdoai-me, Monsenhor, perdoai-me esta
fraqueza: é a alegria de vos ver de volta — dizia,
molhando com suas lágrimas os dedos do regente.
— Não vos desculpeis, meu caro, não vos
desculpeis — respondeu Filipe.
O velho Joinville não reconheceu o Conde de
Poitiers. Nem mesmo reconheceu seu próprio filho, e
quando lhe repetiram três vezes que um e outro estavam
diante dele, confundiu-os, e inclinou-se,
cerimoniosamente, diante de Anseau.
Bouville abriu a porta do quarto da rainha. Mas,
como Mafalda se dispusesse a seguir Filipe, o curador,
recuperando sua energia, exclamou:
— Somente vós, Monsenhor, somente vós!
E tornou a íechar a porta no nariz da condêssa.
A Rainha Clemência estava pálida, cansada, e
visivelmente alheia às preocupações que agitavam tão
fortemente a côrte e a população de Paris. Não pôde,
vendo o Conde de Poitiers avançar para ela com as mãos
estendidas, evitar um pensamento: “Se me tivessem
casado com ele, hoje eu não seria viúva. Por que Luís? Por
que não Filipe?” Proibia a si própria tal espécie de
perguntas mentais, que lhe pareciam outras tantas censuras
ao Criador todo-poderoso. Nada, porém, nem mesmo a
devoção, poderia proibir uma viúva de vinte e três anos de
se perguntar por que razão os outros jovens, os outros
maridos, estavam vivos!
Filipe informou-lhe de sua tomada da regência, e
assegurou-lhe seu inteiro devotamento.
— Oh! Sim, meu irmão, oh! sim! — murmurou. —
Ajudai-me!
Queria dizer, sem saber como expressar-se:
“Ajudai-me a viver, ajudai-me a defender-me do
desespero, ajudai-me a trazer ao mundo esta nova vida que
agora é a minha única tarefa sobre a terra”. E acrescentou:
— Por que nosso tio Valois fèz-me deixar, quase à
força, minha casa de Vincennes? Luís dera-me aquela
morada, com seu último suspiro.
— Desejais voltar para lá? — perguntou Poitiers.
— Ë o meu único desejo, meu irmão! Ali, eu me
sentirei mais forte. E meu filho nascerá mais perto da alma
de seu pai, no lugar em que ele deixou a terra.
Filipe não tomava decisão alguma, mesmo de
importância secundária, sem reflexão. Desviou os olhos
dos véus brancos que enquadravam o rosto de Clemência,
e olhou, através da janela, para a flecha da Santa Capela,
cujas linhas, à sua miopia, apareciam um tanto incertas e
desmanchadas, como uma grande haste de pedra e ouro, e
em cujo cimo a flor-de-lis real dava a impressão de
expandir-se.
“Se eu lhe der essa satisfação”, pensava o príncipe,
“ela ficará grata, passará a considerar-me seu defensor, e
em tudo se conformará com as minhas decisões. Por outro
lado, meus adversários terão menos facilidade de se
aproximar dela em Vincennes do que aqui, e lhes será
mais difícil servir-se dela contra mim. Aliás, nesse estado
de sofrimento em que está, Clemência não seria útil a
ninguém”.
— Desejo, minha irmã, satisfazer-vos em tudo —
respondeu. — Assim que a assembléia dos homens de prol
tenha confirmado minha posição, o primeiro cuidado de
minha parte será levar-vos novamente para Vincennes.
Estamos numa segunda-feira, a assembléia, para a qual
pedi urgência, vai reunir-se, sem dúvida, na sexta-feira.
Penso que no próximo domingo podereis assistir à missa
em vossa casa.
— Eu sabia, Filipe, que éreis um bom irmão. Vosso
regresso é o primeiro consolo que Deus me concede.
Ao sair do apartamento da rainha, Filipe encontrou
sua sogra, que o esperava. Tivera uma discussão com
Bouville, e andava de cá para lá, sozinha, com seu grande
passo masculino, pisando as lajes da galeria, sob o olhar
desconfiado dos escudeiros de guarda.
— Então, como está ela? — perguntou Mafalda a
Filipe.
— Devota e resignada, e bem digna de dar um rei à
França — respondeu o Conde de Poitiers, de forma que
suas palavras pudessem alcançar todos os ouvidos em
derredor.
Depois, a meia voz, acrescentou:
— Não acredito que, no estado de saúde em que se
acha, consiga levar a criança a termo.
— Esse seria o melhor presente que ela nos poderia
fazer, e as coisas se tornariam mais fáceis de arranjar —
respondeu Mafalda, no mesmo tom. — E depois, é preciso
acabar com toda essa desconfiança e com todo esse
aparelhamento de guerra que a rodeia. Desde quando os
pares do reino não têm acesso junto da rainha? Também
eu enviuvei, que diabo, e podiam chegar-se até mim, para
tratar de negócios do governo!
A envenenadora indignava-se, sinceramente, ao ver
que as medidas gerais de prudência podiam relacionar-se
com ela.
Filipe, que ainda não tinha visto sua mulher desde
que chegara, acompanhou Mafalda ao palácio d’Artois.
— Vossa ausência tem afetado muito minha filha
— disse Mafalda. — Mas ireis encontrá-la
encantadoramente viçosa. Ninguém acreditaria que está
em vésperas de dar à luz. Também eu fui assim, quando
grávida, alerta até o último dia!
O reencontro do Conde de Poitiers e de sua esposa
foi comovido, embora sem lágrimas. Joana, muito pesada,
movia--se com dificuldade, mas dava a impressão
completa de saúde e felicidade. A noite descera, e a luz
das velas, propícia à cútis, disfarçava sobre o rosto da
jovem os sinais de seu estado. Usava vários colares de
coral vermelho, famoso por sua ação benéfica nos partos.
Foi em presença de Joana que Filipe tomou
realmente ciência dos êxitos já obtidos, e concedeu-se a
satisfação consigo mesmo. Tomando a esposa nos braços,
disse-lhe:
— Creio, minha doce amiga, que posso chamar-
vos, daqui por diante, a senhora regente.
— Permita Deus, meu belo sire, que eu vos dê um
filho — respondeu ela, abandonando-se um pouco contra
o corpo magro e robusto de seu marido.
— Deus levará seus favores ao máximo —
murmurou-lhe Filipe ao ouvido — se permitir que ele só
nasça depois de sexta-feira.
Depressa uma discussão entabulou-se entre
Mafalda e Filipe. A Condêssa d’Artois achava que sua
filha devia ser transportada imediatamente para o palácio e
partilhar, ali, dos apartamentos de seu marido. Filipe
mantinha opinião contrária e desejava que Joana se
conservasse no palácio d’Artois. Oferecia vários
argumentos, muito bons em si, mas que não descobriam o
fundo de seu pensamento, e que, aliás, não convenceram
Mafalda. O palácio podia vir a ser, nos dias que se
seguiriam, local de assembléias violentas e tumultos
prejudiciais a uma parturiente. Por outro lado, Filipe
considerava mais apropriado esperar que Clemência
tivesse voltado para Vincennes antes de instalar Joana no
palácio.
— Mas olhai para ela, Filipe! — exclamou
Mafalda. — Amanhã talvez não se possa mais locomover.
Não desejais, então, que vosso filho nasça no palácio?
— É exatamente isso que eu gostaria de evitar.
— Francamente, não vos compreendo, meu filho —
dizia Mafalda, sacudindo as espáduas robustas.
Aquela controvérsia cansava Filipe. Havia trinta e
seis horas que ele não dormia, tinha percorrido na noite
anterior quinze léguas a cavalo e vivido a seguir o dia
mais difícil, mais movimentado de toda a sua vida. Sentia
que a barba estava crescendo, que suas pálpebras, de vez
em quando, tendiam a fechar-se. Mas estava resolvido a
não ceder. “Minha cama”, pensava ele. “Que me
obedeçam, e que eu possa ir para minha cama!”
— Ouçamos, então, a opinião de Joana. Que
desejais nesse caso, minha amiga? — perguntou ele,
seguro da docilidade de sua mulher.
Mafalda tinha uma inteligência masculina, vontade
masculina, e constante preocupação de confirmar o
prestígio de sua raça. Joana, natureza completamente
diferente, fora habituada pelo destino a jamais encontrar-
se no ápice dos acontecimentos. De início noiva do
Turbulento, fora dada em seguida, numa espécie de troca,
ao segundo filho de Filipe, o Belo, passando, assim, ao
lado das coroas de Navarra e de França. No caso da Torre
de Nesle, se havia servido aos amores de suas cunhadas,
roçara pelo adultério, sem cometê-lo. No castigo, a
reclusão perpétua lhe fora evitada. Estava mesclada a
todos os dramas, mas sem jamais tomar neles a parte
preponderante. Por um espécie de elegância, mais do que
por precaução moral, os excessos repugnavam-lhe. O ano
que passara na fortaleza de Dourdan tinha acentuado sua
prudência. Era fina, sensível, hábil, e sabia manejar com
oportunidade essa arma perfeitamente feminina: a
submissão.
Adivinhando que a insistência de Filipe apoiava-se
em fortes razões, silenciou um pequeno movimento de
legítima vaidade, e disse:
— É aqui, minha mãe, que desejo dar à luz. Sentir-
me-ei melhor aqui.
Não lhe importava exageradamente que seu quarto
filho nascesse no palácio, ou alhures. Filipe agradeceu-lhe
com um sorriso. Sentado na grande cadeira de encosto
reto, as pernas estendidas e cruzadas, perguntou os nomes
das matronas e parteiras que deviam assistir Joana em seu
parto, querendo saber do onde vinha cada uma, e se
podiam merecer toda a confiança. Recomendou que as
fizessem prestar juramento, precaução que habitualmente
só era tomada nos partos reais.
“Que bom marido, como tem cuidado comigo!”,
pensava Joana, ouvindo-o.
Filipe exigiu, também, que assim que a Condêssa
de Poitiers tivesse as primeiras dores, as portas do palácio
d’Artois fossem fechadas. Ninguém deveria sair, com
exceção de uma única pessoa, que seria encarregada de
levar-lhe a notícia do nascimento.
— ... Vós — disse ele, designando a bela Beatriz
d’Hirson, que assistia à conversa. — Serão dadas ordens
ao meu camareiro para que possais ir ter comigo a
qualquer momento, mesmo que eu esteja em conselho. E
se houver gente em torno de mim, dai-me a notícia em voz
baixa, sem dizer uma palavra a quem quer que seja... se
fôr um filho. Confio-me a vós, pois recordo que já me
servistes bem.
— Mais ainda do que pensais, Monsenhor —
respondeu Beatriz, inclinando ligeiramente a cabeça.
Mafalda lançou um olhar furioso a Beatriz. Aquela
donzela, com seus ares dolentes, sua falsa ingenuidade,
seus sorrisos audazes, causava-lhe tremores. Beatriz
continuava a sorrir. Tais movimentos fisionômicos não
escaparam a Joana que, todavia, evitou fazer qualquer
pergunta. Entre sua mãe e a primeira donzela havia uma
espessura de segredos, que ela preferia não tentar
atravessar.
Inquieta, voltou os olhos para o marido. Mas este
último de nada se apercebia. A nuca apoiada ao encosto de
sua cadeira, acabava de adormecer bruscamente,
fulminado pelo sono das vitórias. Em seu rosto anguloso,
e habitualmente severo, instalara-se uma expressão de
atenta doçura, na qual seria possível reencontrar a criança
que fora. Joana, comovida, aproximou-se a passos
cautelosos e veio pousar-lhe na fronte um beijo muito
leve.
IX
O FILHO DA SEXTA-FEIRA

JÁ NO DIA seguinte o Conde de Poitiers começou


a preparar a reunião de sexta-feira. Se dela saísse
vencedor, ninguém mais poderia, durante longos anos,
contestar-lhe o poder.
Enviou mensageiros e correios montados, para
convocar, conforme ficara convencionado, todos os
homens de prol do reino — todos, com efeito, que não se
encontrassem a mais de dois dias de viagem a cavalo. O
que permitia, por um lado, não deixar a situação arruinar-
se, e, por outro lado, eliminaria certos grandes vassalos,
cuja hostilidade Filipe poderia recear, tais como o Conde
da Flandres e o rei da Inglaterra.
Ao mesmo tempo, confiava a Gaucher de Châtillon,
a Mille de Noyers e a Raul de Presles, o cuidado de
prepararem o regulamento da regência, que seria
submetido à assembléia. Apoiando-se em normas já
estabelecidas, fixaram os princípios seguintes: o Conde de
Poitiers administraria os dois reinos, com o título
provisório de regente, administrador e guardião, e
receberia todos os rendimentos reais. Se a Rainha
Clemência desse à luz um filho, esse filho naturalmente
seria rei, e Filipe conservaria a regência até a maioridade
de seu sobrinho. Se Clemência, entretanto, tivesse uma
menina... todas as dificuldades começavam com essa
hipótese. Pois, nesse caso, e com toda a justiça, a coroa
devia pertencer à pequena Joana de Navarra, primeira
filha do Turbulento. Mas seria ela, realmente, sua filha?
Era a pergunta que a corte e todo o reino faziam. Sem os
amores da Torre de Nesle, sem o escândalo e o julgamento
de Pontoise, os direitos daquela criança não poderiam ser
discutidos, e, na ausência de herdeiro varão, ela teria que
ser proclamada rainha da França. Entretanto, fortes
suspeitas pesavam sobre a menina, suspeitas às quais
Carlos de Valois, particularmente, dera corpo, ao agenciar
o segundo casamento de Luís X, coisa de que Filipe não
deixou de tirar partido, naquela circunstância. A
proximidade das datas, entre o início dos amores culposos
de Margarida e o nascimento de Joana, era perturbadora.
Perturbadora, também, a aversão que Luís sempre
mostrara por aquela criança e o afastamento em que a
mantivera. Não era, pois, sem razão que se cochichava a
seu propósito.
— É a filha de Filipe d’Aunay.
Assim, o caso da Torre de Nesle, deformado de
época para época pela imaginação popular, tornar-se-ia
uma espécie de intriga mítica, uma lenda de amor, de
vício, de crime e de horror; aquele caso bastante simples
de adultério apresentava, em sua realidade, dois anos
depois de ter estourado, grave problema dinástico e ia
modificar o curso natural da monarquia francesa.
Alguém propôs decidir, desde então, que a coroa
seria, de qualquer maneira, para a criança que Clemência
tivesse, fosse menina ou menino.
Filipe de Poitiers fechou a cara àquela sugestão e
encontrou bons argumentos para afastá-la. Sem dúvida, as
suspeitas que envolviam Joana de Navarra eram
fortemente fundamentadas, mas não havia prova alguma
formal. Nem a mãe de Margarida, a velha Agnes, viúva de
Borgonha, nem seu filho Eudes IV, o atual duque,
poderiam concordar com aquela brutal evicção de sua
sobrinha. Todos os inimigos do poder real, a começar pelo
Conde da Flandres, não deixariam de tomar o partido dela,
para servir interesses pessoais. Em pouco tempo a França
correria o risco de uma guerra civil, a guerra das duas
rainhas.
— Nesse caso — disse Gaucher de Châtillon —
decretemos, apenas, que as filhas mulheres não terão
direito à coroa. Deve haver algum costume sobre o qual
possamos nos apoiar.
— Infelizmente, meu cunhado — respondeu Mille
de Noyers — já o procurei, pois a vossa idéia também me
ocorreu, mas nada foi encontrado nesse sentido.
— Que se continue a procurar. Entregai esse
encargo aos vossos amigos, os advogados da Universidade
e do Paramento. Essas pessoas encontram costumes para
tudo, e no sentido desejado, quando se dão a esse trabalho.
Remontam até Clóvis para provar que devem partir-vos a
cabeça, grelhar --vos em pé ou cortar-vos melhor.
— É verdade — disse Mille — que não mandei
pesquisar tão longe. Só pensei nos costumes reais do
grande Hugo para cá. Seria preciso ir buscar mais
remotamente, mas não creio que encontremos alguma
coisa até sexta-feira.
Obstinado, e misógino como todo bom militar, o
condestável, sacudindo seu queixo quadrado e apertando
as pálpebras de tartaruga, continuou:
— Na verdade, seria loucura deixar uma mulher
subirao trono! Podeis imaginar, por acaso, dama ou
donzela comandando exércitos, impura todos os meses,
grávida todos os anos?
E fazer frente aos vassalos, quando não são sequer
capazes de silenciar os ardores de sua natureza? Não, eu
não concebo tal coisa, e deporia imediatamente a minha
espada. Monsenhores, eu vos digo, a França é reino
demasiado nobre para se transformar em roca, e cair em
mãos femininas. As flôres-de-lis não podem ser fiadas.
Essa última frase, se não foi adotada no mesmo
momento, impressionou fortemente os espíritos, e não
deixaram de utilizá-la mais tarde (12).
Filipe de Poitiers deu sua aprovação a uma redação
bastante tortuosa, que postergava consideravelmente as
decisões a tomar.
— Façamos com que as perguntas sejam feitas, mas
sem que nos caiba dar as respostas — disse ele. — E
atrapalhemos um pouco as coisas, a fim de que nelas cada
qual pense ver surgir o seu próprio interesse.
Portanto, se a Rainha Clemência tivesse uma filha,
Filipe conservaria a regência até a maioridade de sua
sobrinha mais velha, Joana. Somente nessa data seria
regulamentada a devolução da coroa, ou em benefício das
duas princesas, que repartiriam entre si França e Navarra,
ou em benefício de uma das duas, que conservaria a união
dos reinos, ou em benefício de nenhuma das duas, no caso
de renunciarem ambas aos seus direitos, ou ainda, se a
assembléia dos pares, convocada para debater o assunto,
considerasse que uma mulher não poderia reinar sobre o
reino da França. Nesse caso, a coroa iria ao mais próximo
parente do sexo masculino do último rei... quer dizer, para
Filipe. Assim, sua candidatura estava pela primeira vez
oficialmente lançada, mas submetida a tantas resoluções
prévias, que aparecia, principalmente, como solução
eventual de compromisso e arbitragem.
Esse regulamento, submetido individualmente aos
principais barões favoráveis a Filipe, recebeu a aprovação
deles.
Apenas Mafalda demonstrou estranha reticência em
relação a um ato que, realmente, preparava a ascensão de
seu genro e sua filha ao trono da França. Algo na redação
do documento a contrariava.
— Não poderíeis — disse ela — declarar
simplesmente: “se as duas filhas renunciarem aos seus
direitos...” sem falar em submeter à assembléia dos pares
se as mulheres podem ou não reinar?
— Ora, minha mãe! — respondeu-lhe Filipe —
nesse caso elas não renunciarão. Os pares, dos quais fazeis
parte, são a única assembléia de recurso. De início eram os
eleitores do rei, como os cardeais o são do papa, ou os
palatinos do Imperador, e foi assim que escolheram Hugo,
nosso ancestral, que era duque de França. Se agora não
elegem mais, é porque há trezentos anos nossos reis têm
tido filhos para se sentarem no trono (13).
— É um costume que vem do acaso! — replicou
Mafalda.
— Estais, com vosso regulamento, servindo
lindamente às pretensões de meu sobrinho Roberto. Vereis
como ele não deixará de usá-lo para tentar receber
novamente o meu condado.
Não pensava senão em sua querela sucessória de
Artois, e a França já não estava em sua mente.
— Costume do reino não é costume de feudo,
minha mãe. E conservareis melhor vosso condado tendo
vosso genro como rei do que com os argumentos dos
juristas.
Mafalda submeteu-se, sem se convencer,
entretanto.
— Aí está a gratidão dos genros — disse a Beatriz
d’Hirson, um pouco mais tarde. — Envenenamos um rei
para deixar-lhe o lugar, e imediatamente começa a agir só
pela sua cabeça, sem levar nada mais em conta!
— É que ele não sabe exatamente, Madame, o que
vos deve, nem como nosso sire Luís partiu de pés juntos.
— E ele não o deve saber, meu Deus! — exclamou
Mafalda, tocando vivamente, através de sua veste, a
relíquia de São Druão, como fazia de cada vez que falava
em seus crimes.
— Afinal, era seu irmão, e meu Filipe tem curiosos
movimentos de justiça. Segura a língua, por favor, segura
a língua!
Nesses dias, Carlos de Valois, ajudado por Carlos
de La Marche e Roberto d’Artois, agitava-se muitíssimo,
dizendo em toda parte, e fazendo repetir o que dizia, que
era loucura confirmar o Conde de Poitiers na regência, e
mais ainda considerá-lo como herdeiro presuntivo. Filipe e
sua sogra tinham feito inimigos demais, e a morte de Luís
servia demasiado bem os seus interesses, agora
confessados, para que aquela morte suspeita não fosse
obra dêles. Valois, êsse sim, oferecia outras garantias, e
julgava-se o único capaz de aplainar as dificuldades do
reino. Estava nos melhores termos com o rei de Nápoles, e
garantia poder acalmar qualquer perturbação que viesse do
lado de Clemência. Era o único da família real que
conservara, apesar das guerras, relações com o Conde da
Flandres. Tendo servido o papado romano, gozava da
confiança dos cardeais italianos, sem os quais não se podia
eleger um papa, apesar desses maus processos, que
consistiam em encerrar o conclave entre quatro paredes.
Os antigos Templários recordavam-se que ele jamais
aprovara a supressão da sua Ordem, e também por êsse
lado Valois poderia pesar muito.
Quando Filipe soube desta campanha, encarregou
seus familiares de responder que era bem estranho ver o
tio do rei apoiar-se, para reclamar o poder, nas suas boas
relações com os adversários do reino, e que se se desejasse
ver o papa em Roma, e a França na mão dos angevinos,
dos flamengos e do Templo ressuscitado, bastaria oferecer
depressa a coroa ao Conde de Valois.
Enfim, chegou a sexta-feira decisiva, na qual a
assembléia deveria reunir-se. Ao alvorecer, Beatriz
d’Hirson apresentou-se no palácio e foi imediatamente
introduzida no quarto do Conde de Poitiers. A primeira
donzela estava um tanto ofegante, por ter corrido desde a
Rua Mauconseil. Filipe ergueu-se sobre os travesseiros.
— Homem? — indagou.
— Homem, Monsenhor, e bem forte — respondeu
Beatriz, batendo os cílios.
Filipe vestiu-se apressadamente e precipitou-se
para o palácio d’Artois.
— As portas, as portas! Que as portas se conservem
fechadas! — disse ele, mal entrou. — Atenderam direito
as minhas ordens? Ninguém saiu, a não ser Beatriz? Que o
mesmo se faça o dia inteiro.
Depois, atirou-se para as escadas. Tinha perdido
aquela rigidez e aquela compunção às quais forçava seu
temperamento.
O “quarto da parturiente”, tal como era de uso nas
famílias principescas, tinha sido suntuosamente decorado.
Altas tapeçarias, com flores e papagaios, as belas
tapeçarias de Arras, das quais a Condêssa Mafalda se
orgulhava tanto, recobriam inteiramente as paredes. O
chão estava juncado de flores, íris, rosas e margaridas,
sobre as quais se pisava. A parturiente, pálida, os olhos
brilhantes e o rosto ainda desfeito, repousava num grande
leito rodeado de cortinas de seda, sob os lençóis brancos,
que se arrastavam pelo chão no comprimento de uma vara.
Nos cantos do quarto estavam dois pequenos leitos,
também providos de cortinas de seda, um destinado à
parteira juramentada, outro para a vigilante do berço.
O jovem regente dirigiu-se diretamente para o
berço de aparato, e inclinou-se muito a fim de ver bem o
filho que acabava de nascer. Horrível, e entretanto,
enternecedor, como todos os recém-nascidos em suas
primeiras horas de vida, avermelhado, enrugado, os olhos
colados e a boca babando, com uma bem minguada mecha
de cabelos louros apontando em seu crânio alvo, o bebê
dormia ainda um sono de embrião, e parecia, dentro das
faixas apertadamente enroladas que o envolviam até os
ombros, uma pequena múmia.
— Então eis aí o meu pequeno Filipe (14) que eu
desejava tanto e que chega em tão boa hora — disse o
Conde de Poitiers. Somente então aproximou-se de sua
esposa, beijou-a nas faces e disse-lhe, em tom de profunda
gratidão:
— Muitíssimo obrigado, minha amiga, muitíssimo
obrigado. Deste-me uma grande alegria, e isso apaga para
sempre em meu pensamento nossos desentendimentos de
outrora.
Joana segurou a longa mão do marido, levou-a aos
lábios e acariciou com ela seu rosto.
— Deus nos abençoou, Filipe: Deus abençoou
nosso reencontro do outono — murmurou.
Usava ainda seus colares de coral.
A Condêssa Mafalda, as mangas arregaçadas sobre
os ante-braços guarnecidos de espessa penugem, assistia à
cena com ar triunfante. Bateu no próprio ventre com um
gesto enérgico.
— Ah! Meu filho! — exclamou. — Não vos tinha
dito? São bons ventres, os de Artois e Borgonha.
Falava naquilo como nos méritos de éguas de cria.
Filipe voltou ao berço.
— Não se poderia despi-lo, para que eu o visse
melhor? — perguntou.
— Monsenhor — respondeu a parteira — não é
aconselhável. Os membros da criança são muito tenros e
precisam conservar-se enfaixados tanto quanto possível,
para fortalecê-los e impedi-los de entortarem. Mas não
deveis ter receio algum, Monsenhor, porque nós o
esfregamos bem com sal e mel, e o envolvemos em rosas
piladas, para lhe retirar o humor pegajoso. E a boca foi
untada com mel por dentro, para dar-lhe apetite e doçura.
Podeis estar certo de que está sendo bem cuidado.
— E a vossa Joana também, meu filho —
acrescentou Mafalda. — Mandei que lhe passassem no
corpo um bom ungüento, misturado ao excremento de
lebre, para lhe apertar o ventre, segundo a receita de
mestre Arnaldo de Villeneuve.
Fazia questão de tranqüilizar o genro quanto à
qualidade de seus prazeres futuros.
— Mas minha mãe — disse a parturiente — eu
pensava que essa receita fosse só para mulheres estéreis.
— Bah! O excremento de lebre é bom para tudo —
replicou a condêssa.
Filipe continuava a contemplar seu herdeiro.
— Não vos parece que se assemelha bastante com
meu pai, o grande rei? — perguntou. — Tem dele a testa,
e também o queixo...
— Talvez um pouco — falou Mafalda. — A
verdade, quando eu o vi ainda há pouco, é que encontrei
nele uns traços de meu falecido e bravo Oto... Que tenha a
força de alma e de corpo de todos os dois, eis o que lhe
desejo.
— É sobretudo convosco, Filipe, que ele se parece
— disse Joana, docemente.
O Conde de Poitiers endireitou o corpo, com certo
orgulho.
— Agora compreendeis melhor minhas ordens,
minha mãe — disse ele — e por que vos peço que
mantenhais as portas fechadas. Ninguém deve saber que
tenho um filho, porque diriam que fabriquei o
regulamento de sucessão propositadamente para lhe
assegurar o trono, depois de mim, se Clemência não tiver
filho homem. E sei de muitos, a começar pelo meu irmão
Carlos, que recalcitrariam, vendo suas esperanças cortadas
tão cedo. Se quiserdes, pois, que esta criança tenha sua
oportunidade de chegar a rei algum dia, nem uma palavra
a quem quer que seja, daqui a pouco, na assembléia.
— É verdade! Temos a assembléia! Esse rapazinho
aí quase me fazia esquecer! — exclamou Mafalda,
estendendo a mão para o berço. — Mal tenho tempo de
me vestir, e comer alguma coisa para estar disposta ao
ataque. Sinto-me com o estômago vazio, pois acordei
muito cedo. Filipe, far-me-eis companhia. Beatriz,
Beatriz!
Bateu palmas e reclamou um pâté de solha, ovos
cozidos, queijo branco com especiarias, doce de nozes,
pêssegos e vinho branco de Château-Chalon.
— É sexta-feira, dia magro — disse ela.
O sol, aparecendo por sobre os tetos da cidade,
inundou de luz aquela família feliz.
— Come um pouco. O pâté de solha não te pesará
— disse Mafalda à sua filha.
Depressa Filipe levantou-se, para ir dar a última
demão nos preparativos da assembléia, cuja hora se
aproximava.
— Minha querida, hoje não virão cumprimentar-
vos — disse a Joana, mostrando as almofadas dispostas
em semicírculo em torno da cama, para os visitantes. —
Mas amanhã tereis muitíssimas visitas.
No momento em que ia sair, Mafalda agarrou-o
pela manga.
— Meu filho, pensai um pouco em Branca, que
continua em Château-Gaillard. É a irmã de vossa esposa.
— Pensarei, pensarei. Tratarei de melhorar-lhe a
sorte.
E afastou-se, levando na sola do calçado um dos
íris do quarto da parturiente.
Mafalda tornou a fechar a porta.
— Vamos, aias do berço, cantarolai um pouco! —
exclamou.
X
A ASSEMBLÉIA DAS TRÊS DINASTIAS

DO FUNDO de seus aposentos, a Rainha


Clemência percebia o grande movimento de senhores e
gente de prol chegando à assembléia, e o tumulto de suas
vozes nos pátios e sob as abóbadas.
A reclusão de quarenta dias, imposta à rainha pelo
luto, terminara na véspera, e Clemência, ingenuamente,
pensava que a data da reunião fora escolhida
propositadamente para que lhe fosse dado presidi-la.
Tinha feito seus preparativos para esta reaparição solene,
com interesse, curiosidade, impaciência, mesmo. E
parecera-lhe, nos dias precedentes, que ia recuperando o
gosto de viver. Mas, no último momento, um conselho de
boticários e médicos, entre os quais os médicos pessoas do
Conde de Poitiers e da Condêssa Mafalda, tinha proibido
uma fadiga que considerava perigosa para o estado da
rainha.
Todos pareciam achar correta aquela posição, pois
ninguém, na verdade, preocupava-se em fazer valer os
direitos de Clemência à regência, nem sequer seu direito
de estar a ela associada. Entretanto, já que procuravam tão
obstinadamente, na história do reino, os precedentes em
que se pudessem inspirar, não podiam deixar de recordar
Ana da Rússia, viúva de Henrique I, partilhando o
governo com seu cunhado Beaudoin de Flandres “por
aquela qualidade indelével que lhe fora conferida pela
sagração”, ou, mais próximo ainda, a Rainha Branca de
Castela, tão presente em todas as memórias (15).
Mas o Delfim de Viennois, cunhado de Clemência,
que era o melhor indicado para defender-lhe as
prerrogativas, ficara inteiramente do lado de Filipe, desde
que tinham assinado o contrato de casamento entre seus
filhos.
Carlos de Valois, que se apresentava como grande
protetor de sua sobrinha, não se comprometeu mais do que
até aí em seu favor. Tinha muito que fazer em seu próprio
benefício.
Quanto ao Duque Eudes de Borgonha, que ali
estava, como há um mês vinha declarando, para sustentar
os direitos de sua irmã Margarida e vingar-lhe a morte,
não podia senão ser hostil em tudo a Clemência.
Tendo ficado por muito poucos meses no trono
para ali tornar-se conhecida e chegar a tomar ascendência
sobre os grandes barões, estes já não a consideravam
senão como a sobrevivente de um reinado rápido,
perturbado e calamitoso sob vários aspectos.
— Ela não trouxe sorte para o reino — diziam da
rainha.
E se ainda existia como futura mãe, deixara de
existir como soberana.
Encerrada numa ala do prédio, ouvia decrescerem
as vozes: a assembléia entrava na sala do Grande
Conselho, cujas portas foram fechadas.
“Meu Deus, meu Deus”, pensava ela, “por que não
fiquei em Nápoles! “
E começou a soluçar, pensando em sua infância, no
mar azul, naquele povo buliçoso, barulhento, generoso,
compassivo para com a dor, seu povo, que sabia amar tão
bem.
Durante esse tempo, Mille de Noyers lia o
regulamento da sucessão.
O Conde de Poitiers tinha tido o cuidado de não se
rodear de qualquer dos atributos da majestade real. Sua
poltrona estava instalada no centro de um estrado, mas não
deixara que a ornamentassem com um dossel. Êle próprio
estava vestido com um trajo escuro, sem nenhum
ornamento, embora o luto oficial tivesse terminado.
Parecia dizer: “Monsenhores, estamos aqui em conselho
de trabalho”. Simplesmente, os três sargentos-maceiros
que caminhavam diante dele na entrada, tinham ficado de
pé, atrás de sua cadeira. Assegurava assim o exercício da
soberania, sem, todavia, pretender estar investido dela.
Mas tinha mandado preparar cuidadosamente a sala,
designando o lugar de cada qual, através de seus
camareiros, segundo um cerimonial ao mesmo tempo
assaz rígido e arbitrário, que não deixou de impressionar
os presentes, pois encontraram ali as maneiras de Filipe, o
Belo.
À sua direita, Filipe fizera sentar Carlos de Valois,
e imediatamente depois dêste, Gaucher de Châtillon, para
ter em mão o ex-imperador de Constantinopla, e isolá-lo
de seu clã. Filipe de Valois fora relegado para seis fileiras
depois de seu pai. À sua esquerda o regente havia
colocado seu tio Luís d’Evreux, e só depois dêste vinha
seu irmão Carlos de La Marche. Impedia, assim, que os
dois Carlos pudessem entender-se durante o curso da
reunião, retomando a palavra que lhe tinham dado quatro
dias antes.
Mas a atenção do Conde de Poitiers voltava-se
principalmente para seu primo, o Duque de Borgonha, que
mantinha sob seus olhos, num ângulo do estrado, e que
estava ladeado pela Condêssa Mafalda e pelo delfim de
Viennois.
Filipe sabia que o duque ia falar em nome de sua
mãe, a Duquesa Agnes, a quem a qualidade de última filha
de Luís IX conferia, mesmo ausente, grande prestígio
sobre os barões. Tudo quanto tocasse a lembrança do rei
canonizado, do defensor da cristandade, do herói de
Tunes, tudo quanto sua mão acariciara, era objeto de
veneração. Todos os seres ainda existentes, que o tinham
visto, que haviam recolhido suas palavras ou recebido sua
afeição, estavam revestidos de caráter um tanto sagrado.
Seria suficiente a Eudes de Borgonha dizer: “Minha
mãe, filha do senhor São Luís, que a abençoou antes de ir
morrer em terra infiel...” — e o coração dos presentes se
comoveria.
Assim, a fim de inutilizar tal manobra, Filipe ia
tirar de seu jogo uma peça importante e totalmente
inesperada: Roberto de Clermont, o outro sobrevivente
dos onze filhos do santo, o sexto, o último filho. Já que se
desejava a caução de São Luís, ele a apresentaria.
A presença de Roberto, Conde de Clermont,
tomava aspecto miraculoso, pois a última de suas raras
aparições na corte remontava a mais de cinco anos. Sua
existência estava quase esquecida, e, quando dele se
lembravam, ninguém ousava falar disso senão em voz
baixa.
Com efeito, o tio-avô Roberto era louco, desde que,
com a idade de vinte e quatro anos, recebera na cabeça um
golpe de maça. Loucura frenética, mas intermitente, com
longos períodos de acalmia, que tinham permitido a Filipe,
o Belo, servir-se dele, às vêzes, para missões decorativas.
Aquele homem não era perigoso pelo que dizia, pois mal
falava. Era perigoso pelo que podia fazer, porque nada
jamais assinalava a explosão de uma de suas crises,
atirando-o, de gládio na mão, sobre seus familiares, contra
os quais era subitamente tomado de ódio assassino (16).
Era, então, espetáculo muito penoso, ver senhor de tão
nobre raça e de tão bela aparência — porque, com
sessenta e dois anos ele tinha ainda aspecto majestoso —
fender os móveis, rasgar as tapeçarias, e perseguir as
serviçais, supondo que fossem seus adversários em
torneio.
O Conde de Poitiers mandara que o sentassem na
outra ala do estrado, na posição correspondente à do
Duque de Borgonha, e próximo de uma porta. Dois
escudeiros monumentais estavam a curta distância,
encarregados de agarrá-lo ao menor alarma. Êle deixava
vagar um olhar desdenhoso, entediado, ausente, que
subitamente se fixava num rosto, com a dolorosa
inquietação das lembranças que não se encontram mais, e
depois extinguia-se. Todos observavam-no muito, e sua
presença causava constrangimento.
Junto do demente estava sentado seu filho, Luís I
de Bourbon, que era coxo, o que sempre o incomodara
para o ataque em combate, mas não para fugir, tal como
provara na batalha de Courtrai. Desengonçado, defeituoso
e covarde, Bourbon, em compensação, tinha pelo menos
um cérebro claro, e acabava de prová-lo tomando o
partido de Filipe de Poitiers.
Desta origem admirável, tomada tanto da cabeça
quanto das pernas, devia provir a longa linhagem dos
Bourbons.
Assim, naquela assembléia do dia 16 de julho de
1316, encontravam-se reunidos os três ramos capetos, que
iriam reinar durante cinco séculos ainda sobre a França.
As três dinastias podiam contemplar-se, em seu fim ou em
sua origem: a dos Capetos diretos, que se extinguiria bem
depressa, com Filipe de Poitiers e Carlos de La Marche. A
dos Valois, que, com o filho de Carlos, se prolongaria
durante treze reinados; enfim, a dos Bourbons, que não
apareceria no trono senão com a extinção dos Valois,
quando se tornaria necessário remontar mais uma vez à
descendência de São Luís para designar um rei. Cada
ruptura de dinastia seria acompanhada de guerras
esgotantes, devastadoras.
Pela combinação sempre surpreendente entre os
atos dos homens e o imprevisto do destino, a história da
monarquia francesa, com suas grandezas e seus dramas,
devia decorrer do regulamento de sucessão que messire
Mille, jurisconsulto, acabava de ler naquele instante.
Alinhados em bancos ou encostados às paredes, os
barSes, os prelados, os advogados do Parlamento e os
delegados dos burgueses de Paris tinham escutado
atentamente.
“Tenho um filho! Tenho um filho, e eles só o
saberão amanhã”, dizia consigo o Conde de Poitiers, que
acreditava não ter trabalhado senão para si mesmo e para
aquele filho. E preparou-se para sustentar o ataque
inevitável do Duque de Borgonha. Ora, o assalto veio de
outro lado.
Havia um homem, naquela assembléia, cuja
resistência nada poderia vencer, que não se recordava do
dinheiro com que o tinham comprado, que a nobreza do
sangue não impressionava, porquanto também pertencia à
melhor, que não se inclinava diante da força, porque
podia, com seus braços, derrubar um cavalo, sobre o qual
combinação alguma surtia efeito senão as que ele mesmo
arquitetava, e que o próprio espetáculo da demência
deixava indiferente. Esse personagem era Roberto
d’Artois. Foi ele, assim que Mille de Noyers terminou a
leitura, que se levantou para iniciar o combate, sem haver
combinado com ninguém.
Como cada qual, naquele dia, exibia sua família,
Roberto d’Artois tinha levado sua mãe, Branca da
Bretanha, uma mulher pequenina, de rosto fino, cabelos
brancos, membros franzinos, que parecia sentir-se
constantemente estupefata por ter dado à luz uma tal
maravilha de gigante.
Firme sobre suas botas vermelhas, os polegares
passados , sob seu cinturão de prata, Roberto d’Artois
lançou:
— Eu me sinto admirado, Monsenhores, ao ver que
nos oferecem um novo regulamento de regência, fabricado
em todos os pontos propositadamente, quando existia um,
ditado pelo nosso último rei.
Os olhares voltaram-se para o Conde de Poitiers e
alguns entre os presentes perguntaram a si próprios, com
inquietação, se não haveria algum testamento de Luís X,
que tivesse sido escamoteado.
— Não vejo, meu primo — disse Filipe de Poitiers
— de que regulamento quereis falar. Estáveis presente nos
derradeiros momentos de meu irmão, com muitos outros
senhores que aqui estão, e ninguém jamais me fêz saber
que ele tenha manifestado qualquer vontade a esse
respeito.
— Mas o caso, meu primo — disse Roberto, com
ar malicioso — quando eu falo em “nosso último rei”, não
estou me referindo a vosso irmão Luís X, que Deus
guarde!... mas de vosso pai, nosso bem-amado sire
Filipe... que Deus também o guarde! Ora, o Rei Filipe
tinha resolvido, escrito e feito jurar solenemente seus
pares que, se ele viesse a morrer antes que seu filho fosse
homem bastante para exercer o governo, as tarefas reais e
o cargo da regência seriam entregues a Monsenhor Carlos,
seu irmão, Conde de Valois. Portanto, meu primo, já que
nenhum outro regulamento foi feito depois desse, é bem
esse, parece-me, o que se deve aplicar.
A pequena Branca da Bretanha aprovava com a
cabeça, sorria com uma boca sem dentes e passeava os
olhos vivos e brilhantes, convidando seus vizinhos, com
esse olhar, a aprovarem a intervenção de seu filho. Não
havia palavra pronunciada por aquele vociferador,
processo mantido por aquele chicaneiro, violência,
madraçaria ou estupro cometido por aquele biltre, que ela
não aprovasse e admirasse, como a revelação de um
prodígio vivo. A velha senhora recebeu, num bater de
pálpebras, o agradecimento silencioso do Conde de
Valois.
Filipe de Poitiers, um tanto inclinado sobre o braço
de sua poltrona, agitou lentamente a mão.
— Admiro-me, Roberto — disse ele — admiro-me
ao ver-vos hoje tão solícito na atenção à vontade de meu
pai, quando obedecestes tão pouco à sua justiça, quando
ele era vivo.
Com a idade estão surgindo em vós os bons
sentimentos, meu primo! Podeis ficar tranqüilo. É
precisamente a vontade de meu pai que nos esforçamos
para respeitar. Não é verdade, meu tio? — acrescentou ele,
voltando-se para Luís d’Evreux.
Luís d’Evreux, que estava exasperado, havia seis
semanas, com as manobras de seu meio irmão Valois e de
seu cunhado d’Artois, não se privou do prazer de colocá-
lo em seu lugar.
— O regulamento sobre o qual vos estribais,
Roberto, vale como princípio, mas não indefinidamente,
para a pessoa. Por que, se dentro de cinqüenta ou de cem
anos, semelhante acidente acontecer novamente à coroa,
não será meu irmão Carlos quem irá procurar reger o
reino... por muito que eu lhe deseje longa vida. Mas enfim
— exclamou com uma força de voz rara naquele homem
calmo — nosso senhor Deus não fêz Carlos eterno
expressamente para que ele se atire ao trono de cada vez
que o lugar esteja vago. Se é ao irmão de mais idade que
deve pertencer a regência, então é Filipe o designado, e eis
por que, no outro dia, nós lhe prestamos homenagem. Não
torneis, pois, a trazer à discussão o que já está resolvido.
Pensou-se que Roberto estava dominado. Era
conhecê-lo mal. Avançou dois passos, baixou levemente a
cabeça, oferecendo a larga nuca aos raios de sol que
atravessavam os vitrais. Sua sombra estendia-se sobre as
lajes, como uma ameaça, até os pés do Conde de Poitiers.
— As vontades do Rei Filipe — retrucou — nada
continham em relação às filhas reais, nem que tivessem de
renunciar a seus direitos, nem que a assembléia dos pares
devia decidir se podiam reinar.
Um movimento de aprovação fêz-se sentir
imediatamente do lado dos senhores de Borgonha, e o
próprio Duque Eudes exclamou :
— Falaste bem, meu primo. Era exatamente isso
que eu próprio ia reclamar!
Branca da Bretanha tornou a lançar em tôrno de si
pequenas olhadelas faiscantes. O condestável começava a
agitar-se em sua cadeira. Ouviram-no resmungar, e os que
o conheciam já previam o estouro.
— Desde quando — disse o Duque de Borgonha,
levantando-se — essa novidade foi introduzida nos nossos
costumes? Desde ontem, penso eu! Desde quando as
filhas, se viessem a faltar filhos, deveriam ser privadas das
possessões e coroas de seu pai?
O condestável levantou-se, por sua vez.
— Desde o tempo, Messire duque — disse ele, com
lentidão premeditada — que certa filha não dá mais ao
reino a garantia de ser realmente nascida daquele pai, do
qual desejam fazê-la herdar. Sabei, enfim, o que por aí se
diz, e que meu primo Valois muitas vezes nos repetiu em
conselho restrito. A França é um país muito belo e muito
grande, Messire duque, para que se possa, sem que os
pares hajam deliberado, entregar a coroa a uma princesa
que não se sabe se é filha de rei ou de escudeiro.
Silêncio terrífico tombou sobre a assembléia. Eudes
de Borgonha ficara lívido. Seu conselheiro, Guilherme de
Mello, que a duquesa Agnes a ele associara, soprava-lhe
ao ouvido palavras que o duque não ouvia. Pensaram que
ele se fosse lançar sobre Gaucher de Châtillon, e este o
esperava, suas forças reunidas, o busto para a frente, os
punhos fechados. Embora o condestável tivesse trinta anos
mais do que seu adversário e fosse meia cabeça mais
baixo, não parecia temer o choque, e podia ser
considerado vencedor. Foi contra Carlos de Valois que a
cólera do Duque de Borgonha se descarregou em palavras.
— Assim, sois vós, Carlos — exclamou — vós,
que procurastes minha outra irmã para esposa de vosso
filho primogênito, que aqui vejo, sois vós que vos tendes
entregue dessa forma ao trabalho de infamar uma morta?
— Ah! Meu caro! — disse Valois — no que se
refere a infamar, a Rainha Margarida, que Deus lhe perdoe
os pecados, não teve necessidade de meu auxílio!
E para Gaucher de Châtillon, a meia voz,
acrescentou:
— Que necessidade tínheis de me meter no
assunto? — E vós, meu cunhado — continuou Eudes,
voltando-se dessa vez para Filipe de Valois — aprovais as
vilanias que ouço?
Mas Filipe de Valois, que estava a alguns passos
dali, embaraçado na própria altura e procurando em vão
com os olhos o conselho de seu pai, apenas ergueu os
braços num gesto de impotência, contentando-se em dizer:
— É preciso confessar, meu irmão, que o escândalo
foi grande!
A assembléia começava a sussurrar. Do fundo da
sala vinham ruídos de discussões, certos senhores
sustentando a bastardia de Joana, e outros defendendo-lhe
a legitimidade. Carlos de La Marche, constrangido, pálido,
abaixava a cabeça, evitando os olhares, como de cada vez
que se falava naquele miserável caso. “Margarida está
morta e Luís morreu também”, dizia ele consigo, “mas
minha mulher Branca ainda está viva e eu continuo a
trazer na testa a minha desonra.”
Nesse momento, o Conde de Clermont, a quem
ninguém mais prestava atenção, começou a dar sinais de
agitação.
— Eu vos desafio, Messires, eu vos desafio a
todos! — gritou o último filho de São Luís, levantando-se.
— Mais tarde, meu pai, mais tarde, iremos ao
torneio — disse-lhe Luís de Bourbon, que fêz sinal, ao
mesmo tempo, aos dois escudeiros gigantescos para que se
aproximassem e preparassem os braços.
Roberto d’Artois contemplava, encantado consigo
próprio, o tumulto que provocara.
O Duque de Borgonha, apesar dos esforços que
Guilherme de Mello fazia para orientar sua cólera, gritou
ainda a Carlos de Valois:
— Também eu desejo, Carlos, que Deus perdoe à
minha irmã Margarida seus pecados, se ela os cometeu,
mas desejo menos que perdoe a seus assassinos!
— Isso são mentiras que ouvistes, Eudes —
replicou Valois — e sabeis muito bem que vossa irmã
morreu de remorsos na prisão.
E lançou uma olhadela a Roberto d’Artois, para se
certificar se havia feito algum movimento.
Agora que o Conde de Valois e o Duque de
Borgonha estavam profundamente desavindos, sem
possibilidade alguma de acertarem as causas tão cedo,
Filipe de Poiters estendeu a mão, num gesto de
apaziguamento.
Mas Eudes não queria saber de paz. Não estava ali
para manter tal coisa, bem pelo contrário.
— Já ouvi demais insultar a Borgonha hoje, meu
primo — disse ele. — Faço-vos saber que não vos
reconheço como regente, e mantenho diante de todos os
direitos de minha sobrinha Joana.
Depois, fazendo sinal aos senhores borguinhões
para que o seguissem, deixou a sala.
— Monsenhores, messires — disse o Conde de
Poitiers — foi exatamente isto que nossos jurisconsultos
esforçaram-se por evitar, deixando ao conselho dos pares,
para mais tarde, se houver oportunidade, o cuidado de
resolver a questão das filhas. Porque se a Rainha
Clemência der um varão ao reino, tôda esta querela fica
sem objeto.
Roberto d’Artois estava ainda diante do estrado, as
mãos nas ancas.
— Pelo que entendi, então, meu primo —
exclamou — daqui por diante, como costume de França, o
direito de sucessão das mulheres é contestado. Peço, pois,
que me seja devolvido meu condado de Artois, que foi
indevidamente entregue a minha tia Mafalda, conhecida
por ter corpo de mulher, coisa que, penso eu, alguns
senhores podem testemunhar. E enquanto não me tiverdes
feito justiça, não aparecerei no vosso conselho.
Com isso, dirigiu-se para a porta lateral, seguido
por sua mãe que corria em passinhos miúdos, orgulhosa
dele e orgulhosa também de si própria.
A Condêssa Mafalda agitou sua mão para Poitiers,
com um gesto que significava: “Aí está! Eu bem tinha
dito!”
Antes de transpor a porta, Roberto, passando por
trás do Conde Clermont, murmurou-lhe perversamente no
ouvido:
— Às lanças, primo, às lanças!
(17)
— Cortai as cordas! Clamai pela batalha! —
gritou Clermont, levantando-se.
— Porco malfazejo, que o diabo te destripe! —
lançou Luís de Bourbon a Roberto.
Depois, disse a seu pai:
— Ficai mais tempo conosco. As trombetas ainda
não soaram.
— Ah! Ainda não soaram? Pois que soem! Está
ficando tarde — disse Clermont.
Esperava, os olhos vagos, os braços afastados do
corpo.
Luís de Bourbon, claudicando, dirigiu-se para o
Conde de Poitiers e confiou-lhe em voz baixa que era
preciso apressar-se. Filipe aprovou com a cabeça.
Bourbon voltou para junto do doente, tomou-lhe a
mão e disse-lhe :
— A homenagem, meu pai, agora é a homenagem.
— Ah! Sem dúvida! A homenagem.
O coxo conduzindo o demente, atravessaram o
estrado.
— Monsenhores — disse Luís de Bourbon — eis
meu pai, o mais antigo do sangue de São Luís, que aprova
o regulamento em todos os seus pontos, reconhece messire
Filipe como regente, e jura-lhe fidelidade.
— Sim, Messires, sim — disse Roberto de
Clermont.
E Filipe tremeu, pensando no que ele poderia
pronunciar. “Vai chamar-me Madame e pedir-lhe minha
écharpe.”
Mas Clermont continuou, com voz forte:
— Eu vos reconheço, Filipe, porque sois o melhor
designado de direito, e porque sois o mais sensato. Que do
céu a alma santa de meu pai vele por vós e vos auxilie a
manter a paz do reino e a defender nossa santa fé.
Um movimento de estupefação feliz percorreu a
assembléia. Que se passava, pois, na cabeça daquele
homem, para que oscilasse assim, sem transição, do
delírio à razão, do ridículo à grandeza?
Pôs muita lentidão, muita nobreza, no ajoelhar-se
diante de seu sobrinho-neto, estendendo as mãos. Quando
se levantou e voltou-se, tendo recebido o abraço, seus
grandes olhos azuis estavam nadando em lágrimas.
A assembléia inteira se pôs de pé e fêz uma longa
ovação aos dois príncipes.
Filipe estava reconhecido como regente por todo o
reino, com exceção de uma província, a Borgonha, e de
um homem só, Roberto d’Artois.
XI
OS NOIVOS BRINCAM DE PEGADOR

AS GRANDES assembléias dos barões


apresentavam, num ponto pelo menos, uma semelhança
com as modernas conferências internacionais. O
participante que deixava a sala das reuniões com grande
estardalhaço, para protestar contra uma decisão, nem por
isso, desde que insistissem um tantinho com ele, deixava
de aceitar o convite para sentar-se, em seguida, à mesa
com seus adversários. Foi o que fêz o Duque de Borgonha,
a quem Filipe enviou um mensageiro para expressar-lhe
seu aborrecimento pelos incidentes daquela manhã, e
assegurar-lhe sua afeição, lembrando-lhe que contava
muito com a sua companhia.
O jantar fora organizado no castelo de Vincennes,
cujo estado o regente quisera verificar, antes de entregá-lo
a Clemência, e para onde tinha mandado transportar o
mobiliário necessário ao banquete. Tôda a côrte para lá se
transferiu e sentou-se diante das mesas armadas sobre
cavaletes e cobertas com grandes toalhas brancas, entre as
vésperas altas e baixas, isto é, cerca de cinco horas da
tarde.
A presença do Duque de Borgonha tornou ainda
mais notória a ausência de Roberto d’Artois.
— Meu filho desmaiou ao sair do palácio, de tal
modo se atormentou com o que ali ouviu — disse Branca
da Bretanha.
— Roberto desmaiou? Realmente! — disse Filipe
de Poitiers. — Espero que não se tenha ferido, tombando
de tamanha altura! Tranqüilizo-me, porém, pois não vos
vejo muito inquieta.
Em compensação, ninguém demonstrou espanto
pela ausência do Conde de Clermont, que seu filho
reconduzira apressadamente para casa, mal as
homenagens terminaram. Ao contrário, felicitaram muito
o Duque de Bourbon pela bela impressão que seu pai
causara, deplorando que a sua doença — nobre doença,
aliás, pois vinha de um acidente de armas — não lhe
permitisse participação mais freqüente nos negócios do
reino.
A refeição começou, portanto, dentro de relativo
bom humor. O condestável tinha sido colocado bastante
longe do Duque de Borgonha, e ambos evitavam trocar
olhares. Valois perorava por conta própria.
O mais espantoso, naquele jantar, era a quantidade
de crianças que a ele assistia. Porque Eudes de Borgonha
tinha imposto, como condição para sua vinda, que sua
sobrinha Joana de Navarra estivesse presente, reparação
do ultraje que lhe fora feito na assembléia, e o Conde de
Poitiers fizera questão de trazer suas três filhas, o que
levou o Conde de Valois a se fazer acompanhar dos
últimos rebentos, provenientes de seu terceiro casamento,
e o Conde d’Evreux a fazer o mesmo em relação a seu
filho e sua filha, que ainda estavam na idade em que se
brinca com fantoches. O delfim de Viennois trouxera o
pequeno Guigues, noivo da terceira filha do regente, e o
Duque de Bourbon viera com seus três filhos... Fazia-se
enorme confusão com os nomes de batismo. As Brancas e
as Isabéis, os Carlos e os Filipes pululavam. Quando
algum gritava: “Joana!” seis cabeças voltavam-se ao
mesmo tempo.
Todos aqueles primos estavam destinados a
casarem-se entre si, para servir às combinações políticas
de seus pais, que tinham sido, por sua vez, casados da
mesma forma, na mais estreita consangüinidade. Quantas
dispensas teriam de pedir ao papa, para conseguir que os
interesses territoriais passassem à frente das leis da
religião e das mais elementares precauções de saúde!
Quantos outros coxos, quantos outros dementes em
perspectiva! A única diferença entre a descendência de
Adão e a do Capeto era que na segunda ainda evitavam a
união de irmão e irmã.
O delfinzinho e sua noiva, a pequena Isabel de
Poitiers, que muito em breve seria chamada apenas Isabel
de França, davam um espetáculo do mais comovente
entendimento. Comiam no mesmo prato, e o delfinzinho
escolhia para sua futura esposa os melhores pedaços do
ensopado de enguia, remexendo atentamente no molho, e
metendo-lhos na boca à força, lambuzando-lhe todo o
rosto. Os outros pequenos invejavam-nos muito, por já
terem uma situação de casal. Na casa do regente iam
preparar para eles seu pequeno palácio pessoal, com seu
criado a cavalo, com seu criado a pé, e suas aias.
Joana de Navarra nada comia. Sabia-se que sua
presença no banquete fora imposta, e como as crianças
adivinham rapidamente os sentimentos de seus pais e
exageram as suas demonstrações, todos os primos daquela
infeliz órfã afastavam-se dela. Joana era a menor, pois
tinha apenas cinco anos. Apesar de ser loura, começava a
mostrar numerosos traços de semelhança com sua mãe,
Margarida de Borgonha, na testa convexa, nas maçãs
proeminentes. Criança solitária, que não sabia brincar,
vivendo entre domésticos nos aposentos sinistros do
palácio de Nesle, jamais tinha visto tanta gente reunida,
nem ouvido tantos gritos. Olhava com mescla de
admiração e receio aquela orgia de vitualhas que iam
sendo constantemente colocadas sobre as enormes mesas,
rodeadas por grandes comedores. Sentia perfeitamente que
não gostavam dela. Quando fazia uma pergunta, ninguém
respondia e, embora tão nova, sua capacidade de julgar era
bastante desenvolvida, e o espírito suficientemente sutil,
para que ela não cessasse de repetir consigo mesma: “Meu
pai era rei, minha mãe era rainha: morreram, e ninguém
mais fala comigo”. Jamais chegaria a esquecer aquele
jantar de Vincennes. À medida que o tom das vozes subia,
que os risos cruzavam-se, a tristeza da pequena Joana, seu
desamparo naquele banquete de gigantes, tornavam-se
mais pesados. Luís d’Evreux, que, de longe, viu-a prestes
a chorar, gritou a seu filho:
— Filipe! Cuida um pouco de tua prima Joana (18).
O pequeno Filipe quis, então, imitar o delfinzinho,
e meteu na boca da menina um pedaço de esturjão com
molho de laranja, de que não gostou e que cuspiu na
toalha.
Quando os escanções serviam cerimoniosamente os
vinhos a todos os convivas, ficou logo evidente que toda
aquela gente miúda vestida de brocado iria ficar doente, e,
antes do sexto serviço, mandaram o grupo infantil brincar
nos pátios. Aconteceu àqueles filhos de reis o que
acontece a todas as crianças do mundo, por ocasião das
refeições festivas: ficaram privados dos pratos de sua
preferência, dos doces, das pastelarias, e outras
sobremesas.
Mal terminou o banquete, Filipe de Poitiers tomou
o Duque de Borgonha pelo braço e disse-lhe que desejava
conversar em particular com ele.
— Vamos comer nossos confeitos um pouco
afastados, meu primo. Vinde conosco, meu tio —
acrescentou, voltando-se para Luís d’Evreux — e vós
também, messire de Mello.
Levou os três homens para uma saleta vizinha, e
enquanto serviam o vinho doce, com amêndoas e
confeitos, começou a explicar ao Duque de Borgonha o
quanto desejava chegar a um acordo, e quais eram as
vantagens do regulamento de regência.
— Foi por saber que os ânimos estão muito
exaltados presentemente — disse — que eu quis adiar as
decisões finais até a maioridade de Joana. Daqui até lá
serão passados dez anos, e sabeis tanto quanto eu que em
dez anos as opiniões mudam bastante, mesmo quando não
seja apenas pela morte daqueles que professavam as mais
violentas entre elas. Supus, pois, prestar-vos serviço, ao
agir dessa maneira, e penso que compreendestes mal
minhas intenções. Já que Valois e vós não podeis, no
momento, conciliar-vos, entrai cada qual num acordo
comigo.
O Duque de Borgonha conservava-se carrancudo.
Não era homem inteligente e temia sempre estar sendo
enganado, o que, aliás, acontecia-lhe freqüentemente. A
Duquesa Agnes, que não se deixava cegar pelo amor
maternal, julgava com clareza o filho, e fizera-lhe, antes
que ele partisse para o banquete, sólidas recomendações:
— Cuidado para que não te enganem. Não fales
antes de teres pensado, e se nada pensares, cala-te e deixa
falar messire de Mello, que tem o espírito mais fino que o
teu.
Eudes de Borgonha, com trinta e cinco anos,
investido do título e das funções de duque, vivia ainda no
terror de sua mãe, e pensava no momento em que teria de
justificar-se diante dela. Não ousou responder abertamente
aos avanços de Poitiers.
— Minha mãe, a duquesa, mandou-vos uma carta,
meu primo, na qual vos dizia... que dizia aquela carta,
messire de Mello?
— Madame Agnes pedia que lhe fosse dada a
guarda de Madame Joana de Navarra, e admira-se,
Monsenhor, por não ter ainda recebido a vossa resposta.
— Como podia eu responder, meu primo? —
respondeu Filipe, dirigindo-se sempre a Eudes, como se
Mello desempenhasse apenas entre eles o papel de um
intérprete de língua estrangeira. — Tratava-se de uma
decisão que somente poderia ser tomada pelo regente. Só
hoje estou em condições de atender com justiça esse
pedido. Quem vos diz, meu primo, que pretendo recusar?
Penso que levareis vossa sobrinha convosco, quando
voltardes, não é verdade?
O duque, muito surpreendido por ter encontrado tão
pouca resistência, olhou para Mello, e seu rosto parecia
dizer: “Mas aqui está um homem com o qual podemos nos
entender!”
— Com a condição, meu primo — continuou o
Conde de Poitiers — com a condição, naturalmente, de
que vossa sobrinha não se case sem meu consentimento.
Isso é coisa evidente: o assunto interessa demasiadamente
à coroa, e não poderíeis dispensar nossa opinião para dar
esposo a uma jovem que pode vir a tornar-se, um dia, a
rainha da França.
A segunda parte da frase ajudou a primeira a
passar. Eudes acreditou, realmente, que a intenção de
Filipe era coroar Joana, se a Rainha Clemência não tivesse
filho varão.
— Sem dúvida, sem dúvida, meu primo — disse
ele. — Quanto a esse ponto, estamos bem dispostos a
concordar.
— Então, nada mais nos separa e vamos assinar um
belo acordo — disse Filipe.
Sem esperar mais nada, mandou chamar Mille de
Noyers, perito em redigir aquele tipo de tratado.
— Messire Mille — disse ele, quando o
jurisconsulto entrou — escrevei sobre o velino, o seguinte:
“Nós, Filipe, par e Conde de Poitiers, regente dos dois
reinos pela graça de Deus, e nosso bem-amado primo,
magnífico e poderoso senhor Eudes IV, par e Duque de
Borgonha, juramos pelas Sagradas Escrituras prestar-nos
bons serviços e manter leal amizade... ” Essa é a idéia,
messire Mille, em linhas gerais, que eu estou dando...
“E por essa amizade que nos juramos, decidimos,
em comum, que Madame Joana de Navarra...”
Guilherme puxou o duque pela manga e disse-lhe
uma palavra ao ouvido, pela qual o duque compreendeu
que se estava deixando ludibriar.
— Eh! Mas, meu primo, minha mãe não me tinha
autorizado a reconhecer-vos como regente!
Logo chegaram a um impasse. Filipe só consentia
em confiar à duquesa a guarda da menina se o duque
reconhecesse seus podêres. Chegava mesmo a garantir
para Joana seus direitos de posse sobre Navarra,
Champanha e Brie. Mas o outro obstinava-se. Sem um
compromisso formal em relação à coroa, recusava
qualquer acordo com a regência.
“Se não houvesse o Mello, que é astuto”, dizia
consigo o Conde de Poitiers, “Eudes já teria capitulado.”
Fingiu-se cansado, esticou as compridas pernas, cruzou os
pés um sobre o outro, esfregou o queixo.
Luís d’Evreux observava-o, perguntando a si
próprio como iria seu sobrinho arranjar-se naquele caso.
“Vejo para muito breve lanças se agitando do lado de
Dijon”, pensava esse homem sensato. Estava a ponto de
intervir, para dizer: “Vamos, cedamos quanto aos direitos
sobre a coroa”, quando Filipe perguntou de súbito ao
borguinhão:
— Vejamos, meu primo, não desejais casar-vos?
O outro arregalou os olhos, pensando, de início,
pois não era muito perspicaz, que Filipe estava
pretendendo dar-lhe Joana de Navarra como noiva.
— Já que acabamos de jurar amizade eterna —
continuou Filipe, como se tivesse tomado como realizado
o que constava daquelas linhas inacabadas — e com isso,
meu caro primo, destes-me um grande apoio, eu gostaria,
por minha vez, de retribuir-vos o belo gesto, e teria prazer
em duplicar nosso laço afetivo através de parentesco mais
chegado. Por que não vos casais com minha filha
primogênita, Joana?
Eudes IV olhou para Mello, depois para Luís
d’Evreux, depois para Mille de Noyers, que esperava,
cálamo em riste.
— Mas, meu primo, que idade tem ela? —
perguntou o duque.
— Tem oito anos, meu primo — respondeu Filipe,
que, depois de uma pausa, acrescentou: — Ela poderá ter,
também, o condado de Borgonha, que nos vem de sua
mãe.
Eudes levantou a cabeça, como um cavalo que
sentisse o cheiro da aveia. A reunião das duas Borgonhas,
o ducado e o condado, constituía o sonho dos duques
hereditários, desde o tempo de Roberto I, neto de Hugo
Capeto. Reunir a corte de Dôle à de Dijon, unir os
territórios que iam de Auxerre a Pontarlier, e de Mâcon a
Besançon, ficar com uma das mãos na França e a outra em
direção do Santo Império, pois que o condado era
palatino, era transformar a miragem em realidade. E não
seria preciso mais para que os borguinhões se pusessem a
sonhar em reconstituir, em seu benefício, o império de
Carlos Magno.
Luís d’Evreux não pôde evitar a admiração que
sentiu pela audácia de seu sobrinho. Num jogo que parecia
perdido, era enorme o novo lance que fazia naquele
momento. Visto mais de perto, porém, o raciocínio de
Filipe podia ser compreendido sem dificuldade: o que
estava propondo, afinal, eram apenas as terras de Mafalda.
Tinham dado Artois a esta última, a expensas de Roberto,
para que ela largasse o condado. Este, por sua vez,
escorregara para as mãos de Filipe, como dote de sua
esposa, a fim de que ele pudesse postular na eleição
imperial. Agora, Filipe cobiçava a coroa da França ou,
pelo menos, a regência durante dez anos. Tinha, portanto,
menos razões para se interessar pelo condado, com a
condição de que passasse às mãos de um vassalo, e esse
era o caso.
— Poderei ver a senhora vossa filha? — perguntou
Eudes, sem hesitar, sem mesmo pensar em reportar-se à
sua mãe.
— Pudestes vê-la ainda há pouco, meu primo, no
banquete.
— Sem dúvida, mas não olhei bem para ela... quero
dizer, não a vi sob esse ponto de vista.
Mandaram buscar a filha mais velha do Conde de
Poitiers, que estava brincando de pegador com suas irmãs
e as outras crianças da família (19).
— Que querem comigo? Deixem-me brincar! —
disse a menina, que perseguia o delfinzinho para o lado
das cavalariças...
— Monsenhor vosso pai chama-vos — disseram-
lhe.
Ela ainda tomou o tempo necessário para agarrar o
pequeno Guigues, gritando-lhe: “Peguei!” E seguiu, mal-
humorada, descontente, o camareiro, que a levou pela
mão.
Ainda toda ofegante, as faces úmidas, os cabelos
tombando sobre o rosto, e com seu vestido recamado todo
coberto de poeira, assim apresentou-se a seu primo Eudes,
que era vinte e sete anos mais velho. Uma meninazinha,
nem feia nem bonita, ainda magricela, e que de forma
alguma suspeitava que seu destino se confundia, naquele
instante, com o destino da França... Há crianças que
mostram muito cedo o ar que irão ter quando adultos.
Naquela nada se via. Via-se apenas, em auréola, o
condado de Borgonha.
Uma província é coisa bela, mas ainda assim é
preciso que a mulher não seja disforme. “Se não tiver
pernas tortas, aceito”, dizia consigo o duque borguinhão.
Tinha razão para desconfiar daquele tipo de surpresa, pois
sua segunda irmã, mais moça do que Margarida, dada a
Filipe de Valois, não tinha os calcanhares da mesma altura
(20)
. À presente animosidade dos Valois para com a
Borgonha, aquela claudicação não era de todo estranha! O
duque pediu, pois, sem que isso parecesse surpreender
ninguém, que levantassem o vestido da menina para que
ele pudesse ver-lhe os pés. A menina não tinha coxas nem
panturrilhas gordas, pois saíra ao pai. Mas os ossos eram
bem retos.
— Tendes razão, meu primo — disse o duque. —
Será uma boa forma de selarmos nossa amizade.
— Estais vendo? — falou Poitiers. — Não é
melhor assim do que ficarmos armando querelas? De
agora em diante hei de chamar-vos meu genro.
E abriu-lhe os braços. O genro era doze anos mais
velho do que o sogro.
— Vamos, minha filha, ide, por vossa vez, beijar
vosso noivo — disse Filipe à menina.
— Ah! Êle é meu noivo? — perguntou a pequena.
Endireitou-se, orgulhosa, mas acrescentou:
— Oh! Mas ele é maior do que o delfinzinho!
“Como agi bem no mês passado”, dizia consigo
Filipe, “dando ao delfim apenas minha terceira filha, e
guardando esta, que podia dispor do condado!”
O Duque de Borgonha teve que erguer sua futura
esposa até seu rosto, para que ela pudesse depositar ali um
grande beijo molhado! Depois, uma vez colocada
novamente no chão, a menina partiu para o pátio,
anunciando altivamente às outras crianças:
— Estou noiva!
Os brinquedos foram interrompidos.
— E não é um noivo como o teu — disse à irmã,
designando o delfinzinho. — O meu é grande como vosso
pai.
Depois, vendo a pequena Joana de Navarra, que se
mostrava amuada, um pouco de lado, lançou-lhe:
— Agora, vou ser sua tia.
— Por que minha tia? — perguntou a órfã.
— Porque serei a esposa de teu tio Eudes.
Uma das últimas filhas do Conde de Valois, que
tinha sete anos apenas, mas que já estava habituada a tudo
repetir, precipitou-se para o castelo, encontrou seu pai que
conspirava em companhia de Branca da Bretanha e de
alguns senhores de seu partido, e contou-lhe o que
acabava de ouvir. Carlos levantou-se, empurrando a
cadeira para trás, e atirou-se, como um touro, para o
aposento onde estava o regente.
— Ah! meu caro tio, sois bem-vindo — exclamou
Filipe de Poitiers. — Eu ia justamente mandar chamar-vos
para que fósseis testemunha de nosso acordo.
E estendeu-lhe o documento cuja redação Mille de
Noyers terminara assim:
“... para assinar aqui, com todos os nossos
parentes, as convenções que acabamos de fazer com
nosso bom primo de Borgonha, e pelas quais estamos
integralmente de acordo.”
Semana amarga para o ex-imperador de
Constantinopla, que não teve outro remédio senão ceder.
Depois dele, Luís d’Evreux, Mafalda d’Artois, o delfim de
Viennois, Aimé de Sabóia, Carlos da La Marche, Luís de
Bourbon, Branca de Bretanha, Guy de Saint-Pol, Henrique
de Sully, Guilherme d’Harcourt, Anseau de Joinville e o
condestável Gaucher de Châtillon, apuseram seus sinêtes
ao pé das convenções.
O tardio crepúsculo de julho tombava sobre
Vincennes. A terra e as árvores estavam ainda
impregnadas do calor do dia. A maior parte dos convivas
tinha partido.
O regente foi andar um pouco sob os carvalhos, em
companhia de seus familiares mais devotados, os que o
seguiam desde Lião e lhe haviam assegurado a vitória.
Gracejavam um tanto a propósito da árvore de São Luís,
que não se conseguia encontrar. Subitamente, o regente
disse:
— Monsenhores, doce alegria está em meu
coração: minha amada esposa deu hoje à luz um filho.
Respirou profundamente, com felicidade, com
delícia, como se o ar do reino da França realmente lhe
pertencesse.
Sentou-se sobre o musgo, as costas apoiadas a um
tronco, e contemplava o recorte da folhagem contra o tom
rosado do céu, quando o condestável Gaucher de Châtillon
chegou a grandes passadas. Trazia, novamente, o rosto
sombrio.
Trago-vos, Monsenhor, má notícia — disse ele.
— Já? — falou o regente.
O Conde Roberto pôs-se a caminho de Artois,
ainda há pouco.
Segunda Parte
O Artois e o Conclave

I
A CHEGADA DO CONDE ROBERTO

UMA DÚZIA de cavaleiros, vindos de Doullens e


conduzidos por um gigante vestido com cota de armas
vermelho-sangue, atravessou a galope a aldeia de
Bouquemaison e parou no ponto mais alto da estrada. De
lá, a vista alcançava um vasto planalto de campos de trigo,
cortado de valetas e bosques de faias, e que descia, em
patamares, na direção de um horizonte circular de
florestas distantes.
— Aqui começa o Artois, Monsenhor — disse um
dos cavaleiros, sire João de Varennes, dirigindo-se ao
chefe do grupo.
— Meu condado! Eis, enfim, o meu condado —
disse o gigante. — Eis minha boa terra que há catorze
anos não piso.
O silêncio do meio-dia estendia-se sobre os campos
esmagados pelo sol. Ouvia-se o ofegar dos cavalos,
arquejando depois do esforço feito, e o vôo dos zangões,
bêbedos de calor.
Roberto d’Artois saltou bruscamente de sua
montaria, cujas rédeas atirou a seu criado Lormet, e subiu
pelo talude, pisando a relva e entrando no primeiro campo.
Seus companheiros ficaram imóveis, respeitando a solidão
de sua alegria. Roberto avançava com seu passo colossal
através das espigas, já pesadas e côr-de-ouro, que lhe
alcançavam a altura das coxas. Com a mão, acariciava-as,
como o pêlo de um cavalo dócil ou os cabelos de uma
amante loura.
— Minha terra, meu trigo! — repetia.
Viram-no, de repente, abater-se sobre o campo,
deitar-se nele, espojar-se e rolar loucamente entre as
gramíneas, como se desejasse confundir-se com elas.
Mordia as espigas, em grandes dentadas, para encontrar no
âmago do grão o sabor leitoso que tem um mês antes da
colheita. Nem mesmo sentia que esfolava os lábios, nas
barbas do frumento. Embriagava-se de céu azul, de terra
seca e do perfume das hastes rangedoras, fazendo,
sozinho, devastação comparável à que faria um bando de
javalis. Levantou-se, soberbo, e todo amarrotado. Voltou
para junto de seus companheiros brandindo um punhado
de espigas.
— Lormet — ordenou ao seu criado —
desacolcheta minha cota, desata os cordões da minha
broigne (21).
Quando isso foi feito, insinuou o punhado de
espigas de trigo sob sua camisa, junto à pele.
— Juro por Deus, Monsenhores — disse, com voz
estrondosa — que estas espigas não deixarão meu peito
enquanto não tiver reconquistado meu condado até o
derradeiro campo, até a última árvore. Agora, é a guerra!
Tornou a montar e lançou seu cavalo em galope
firme.
— Não achas, Lormet — gritou, ao vento da
corrida — que a terra aqui tem melhor som, sob as patas
de nossos cavalos?
— Sem dúvida, sem dúvida, Monsenhor — disse
aquele assassino de coração terno, que partilhava todas as
opiniões de seu senhor e rodeava-o de cuidados de ama.
— Mas vossa cota está solta. Diminuí um pouco a marcha,
para que eu possa apertá-la.
Cavalgaram um momento assim. Depois, o planalto
desceu bruscamente, e ali Roberto descobriu, à sua espera,
monstruosa massa de couraças enfileiradas num prado e
cintilando ao sol, um exército de mil e oitocentos
cavaleiros, que tinham vindo recebê-lo. Jamais esperara
que àquele encontro comparecessem tantos partidários
seus.
— Oh! Varennes! Fizeste um belo trabalho, meu
caro — exclamou Roberto, deslumbrando.
Assim que os cavaleiros de Artois o reconheceram,
imenso clamor levantou-se de suas fileiras:
— Bem-vindo seja nosso Conde Roberto! Longa
vida ao nosso gentil senhor!
E os mais solícitos atiraram seus cavalos ao
encontro dele. As joelheiras de ferro esbarravam umas
contra as outras, as lanças oscilavam, como outro campo
de espigas.
— Ah! Caumont, Souastre! Reconheço-vos pelos
escudos, companheiros — dizia Roberto.
Pela viseira levantada de seus elmos, os cavaleiros
mostravam os rostos onde o suor escorria, mas que
apareciam expansivos de belicosa alegria. Muitos dos
pequenos sires do campo estavam usando velhas
armaduras, fora de moda, herdadas de um pai ou de algum
tio-avô, e que eles próprios haviam adaptado ao seu
tamanho: trabalho feito nos solares. Antes que a noite
viesse, estariam feridos nas juntas e teriam o corpo
coberto de crostas sangrentas: todos, aliás, traziam na
bagagem de seus criados um pote de ungüento preparado
por sua mulher, e faixas de pano para as ataduras.
Os olhos de Roberto contemplavam amostras da
moda militar do último século, todas as formas de elmos e
capacetes. Algumas daquelas lorigas e muitos daqueles
montantes tinham estado nas cruzadas. Elegantes da
província haviam arranjado penachos de penas de galo, de
faisão ou de pavão, e outros traziam sobre a cabeça um
dragão dourado. Havia um que atarraxara, mesmo, sobre
seu capacete de ferro, uma mulher nua, o que lhe atraía
muitos olhares.
Todos tinham pintado recentemente os escudos
curtos, onde brilhavam em cores vivas os signos de suas
armas, simples ou complicados, segundo o grau de
antigüidade de sua nobreza, os mais simples pertencendo,
naturalmente, às mais velhas famílias.
— Saint-Venant, Longvillers, Nédonchel — dizia
João de Varennes, apresentando os cavaleiros a Roberto.
— Vosso fiel, Monsenhor, vosso fiel — dizia cada
um, ao ser pronunciado seu nome.
— Fiel, Nédonchel... fiel, Bailiencourt... fiel,
Picquigny... — respondia Roberto, passando diante deles.
A alguns jovenzinhos empertigados e todos
orgulhosos por estarem aparelhados para a guerra pela
primeira vez, Roberto prometeu armá-los cavaleiros,
pessoalmente, se se mostrassem valentes nas próximas
lutas.
Depois, resolveu nomear ali mesmo dois
marechais, como para as hostes reais se fazia. Escolheu,
em primeiro lugar, sire de Hautponlieu, que trabalhara
ativamente para reunir aquela nobreza barulhenta.
— E, a seguir, ficarei com... vejamos... tu, Beauval!
— anunciou Roberto. — O regente tem um Beaumont
como marechal: eu terei um Beauval!
Os pequenos senhores, apreciadores dos trocadilhos
e calem-burgos, aclamaram, rindo, João de Beauval, que
assim foi designado por causa de seu nome.
— E agora, Monsenhor Roberto — disse João de
Varennes — que caminho desejais tomar? Iremos
primeiro a Saint-Pol, ou diretamente para Arras? O Artois
é inteiramente vosso, e só tendes que escolher.
— Qual é o caminho que leva a Hesdin?
— Este em que estais, Monsenhor, e que passa por
Frévent.
— Pois bem, quero ir, em primeiro lugar, ao castelo
de meus pais.
Um movimento de inquietação manifestou-se entre
os cavaleiros. Era bem desastroso que o Conde d’Artois,
já na sua chegada, quisesse ir imediatamente a Hesdin.
— É que, Monsenhor... — disse Souastre, o que
tinha no elmo uma mulher nua ‘— ... é que o castelo não
está bem em estado de vos receber.
— Por quê? Ainda está ocupado por sire de Brosse,
que meu primo, o Turbulento, colocou lá?
— Não, não! Fizemos João de la Brosse fugir, mas
também, de passagem, estragamos um tanto o castelo.
— Estragastes? — disse Roberto. — Por acaso o
incendiastes?
— Não, Monsenhor, não. As paredes estão bem
firmes.
— Mas fizestes ali uma boa pilhagem, não é
verdade, meus lindinhos? Pois bem! Se é apenas isso,
agistes bem. Tudo quanto pertence a Mafalda, a rameira,
Mafalda, a porca, Mafalda, a dissoluta, pertence-vos,
Monsenhores, e eu vos entrego em partilha.
Como não amar um suserano assim generoso! Os
aliados tornaram a urrar que desejavam longa vida para o
seu gentil Conde Roberto, e o exército da revolta pôs-se a
caminho de Hesdin.
Chegaram no fim da tarde diante das catorze torres
da cidadela dos Condes d’Artois, onde só o castelo
ocupava a superfície gigantesca de doze “medidas”, ou
seja, perto de cinco hectares.
Quantos impostos, trabalhos e suor custara à gente
humilde das redondezas este fabuloso edifício, destinado,
segundo lhes tinham dito, a protegê-los das desgraças da
guerra! As guerras sucediam-se, mas a proteção mostrava-
se pouco eficaz, e, como sempre se batiam pelo castelo, a
população preferia enfurnar-se nas casas de taipa, pedindo
a Deus que a avalanche passasse de lado.
Não havia muita gente na rua para festejar o senhor
Roberto. Os habitantes, já bastante escarmentados com o
saque da véspera, escondiam-se. Apenas os mais covardes
saíram para vociferar um pouco, mas suas aclamações
eram bem magras.
As redondezas do castelo constituíam espetáculo
bem pouco agradável: a guarnição real, enforcada nas
seteiras, começava a cheirar um tanto à carniça. Na porta
grande, chamada Porta dos Frangos, a ponte levadiça
estava baixada. O interior exibia aspecto de desolação: nas
adegas escorria vinho das cubas rebentadas, e aves
domésticas, mortas, espalhavam-se por toda a parte. Dos
estábulos ouvia-se subir o mugido sinistro das vacas, que
não tinham sido ordenhadas, e sobre os tijolos que
pavimentavam os pátios internos, luxo muito raro para a
época, lia-se a história do massacre recente, em grandes
poças de sangue coagulado.
Os edifícios que serviam de moradia à família
d’Artois contavam cinqüenta apartamentos, dos quais
nenhum fora poupado pelos ‘bons aliados de Roberto.
Tudo quando não tinha sido retirado para ir decorar os
solares da vizinhança, fora quebrado ali mesmo.
Desaparecera da capela a grande cruz de prata
dourada, o busto de São Luís contendo um fragmento de
osso e alguns cabelos do rei. Desaparecera o cálice de
ouro, de que Ferry de Picquigny se apropriara, e que seria
posteriormente encontrado, vendido por ele, numa loja
parisiense. Desaparecidos os volumes da biblioteca e o
tabuleiro de xadrez, de jaspe e calce-dônia. Com os
vestidos, os penteadores e a roupa branca de Mafalda, os
pequenos senhores se haviam munido de belos presentes
para suas amantes, e arranjado para si próprios, a bom
preço, quentes noites de gratidão. Da própria cozinha
tinham sido removidas as reservas de pimenta, gengibre,
açafrão, canela (22)...
Pisava-se sobre louça em cacos, sobre brocados
rasgados. Só se viam cortinas despencadas nos leitos,
móveis fendidos, tapeçarias arrancadas. Os chefes da
revolta, um tanto embaraçados, seguiam Roberto em sua
visita. Mas o gigante, a cada descoberta, estalava num riso
tão amplo, tão sincero, que logo sentiram-se reanimados.
Na sala dos escudos, Mafalda mandara levantar,
contra as paredes, estátuas de pedra representando os
Condes e Condêssas d’Artois, desde sua origem até ela.
Todos os rostos pareciam-se um pouco, mas o conjunto
mostrava belo aspecto.
— Aqui, Monsenhor — fêz sentir Picquigny, que
tinha a consciência bastante pesada — não quisemos pôr a
mão em coisa alguma.
— E fizestes mal, meu caro — respondeu Roberto
— porque nessas estátuas há pelo menos uma cabeça que
não me agrada. Lormet! Traze-me uma boa maça!
Empunhando a pesada maça, fê-la girar três vezes
sobre a cabeça e atingiu, com enorme golpe, o rosto de
Mafalda. A estátua vacilou sobre seu soco e a cabeça,
separando-se do pescoço, foi rebentar sobre as lajes.
— Que aconteça outro tanto à cabeça viva, depois
que todos os aliados de Artois tenham urinado sobre ela
— exclamou Roberto.
Para quem gosta de destruir, tudo está no começar.
A maça pesava agradavelmente na mão do gigante vestido
de escarlate.
— Ah, minha tia, boa rameira, despojaste-me de
Artois porque este aqui que me engendrou...
E fêz voar a cabeça de seu pai, o Conde Filipe.
— ... fêz a tolice de morrer antes deste aqui...
E decapitou seu avô, o Conde Roberto II.
— ... e eu vou viver entre essas estátuas que
mandastes fazer para honrar a vós mesma, quando não
tínheis esse direito!
Abaixo! Abaixo! Meus avós! Recomeçaremos tudo
e não será com dinheiro roubado.
As paredes tremiam, os fragmentos de pedra
juncavam o chão.
Os barões de Artois calavam-se, o fôlego suspenso
diante daquele furor que os ultrapassava de longe na arte
da violência. Como, realmente, não obedecer com paixão
a tal chefe?
Quando terminou de decapitar sua raça, o Conde
Roberto III atirou sua maça contra os vitrais de uma
janela, e disse espreguiçando-se :
— Agora, estamos mais à vontade para conversar...
Messires meus companheiros, meus bons fiéis,
quero que em todas as cidades, prebostados e castelanias
que vamos libertar do jugo de Mafalda e de todos os seus
Hirson desgraçados, fiquem inscritos os agravos que cada
qual tiver contra ela, e que se registrem suas maldades, a
fim de podermos mandar contas exatas a seu genro,
Messire Portas-Fechadas... porque aquele homem, onde
aparece, fecha tudo, as cidades, o conclave, o Tesouro... a
Messire Curto-de-Vista, nosso bom senhor Filipe, o
Zarolho (23), que se diz regente, e pelo bem do qual
tomaram-nos, há catorze anos, este condado, a fim de que
ele pudesse engordar à custa da Borgonha! Que o animal
estoure, com as tripas amarradas no pescoço!
O pequeno Geraldo Kiérez, homem hábil em
chicana e processos, que defendera diante do rei a causa
dos barões contra Mafalda, tomou então a palavra, e disse:
— Há um agravo, Monsenhor, que interessa não
somente Artois, mas todo o reino, e talvez ao regente não
seja indiferente saber como morreu seu irmão, Luís X.
— Com mil demônios, meu Geraldo, também
pensas o que penso? Tens prova de que também nesse
caso minha tia entrou com sua astúcia?
— Prova, prova, mesmo, Monsenhor, não se tem
propriamente: mas a suspeita é forte, com certeza, e pode
ser sustentada pelos testemunhos. Conheço em Arras uma
dama que se chama Isabel de Fériennes e seu filho João,
ambos vende dores de artigos de bruxaria, que forneceram
a uma certa senhorita d’Hirson, a Beatriz...
— Quanto a essa, meus companheiros, eu vos farei
um dia presente dela — disse Roberto. — Conheço-a, e a
julgar apenas pelo seu olhar, deve ser um regalo para as
coxas!
— Os Fériennes forneceram-lhe, pois, para
Madame Mafalda, veneno bom para matar cervos, duas
semanas antes da morte do rei. O que servia para os cervos
poderia servir igualmente para o rei.
Os barões mostram, pelos seus risos gorgolejados,
que tinham apreciado aquele jogo de palavras em toda a
sua extensão.
— De qualquer forma, tratava-se de veneno para
quem usa chifres — insistiu Roberto. — Deus guarde a
alma do chifrudo do meu primo!
Os risos subiram de tom.
— E isso parece tanto mais verdadeiro, Messire
Roberto, se considerarmos que a dama de Fériennes
gabou-se, no ano passado, de ter fabricado o filtro que
produziu a reconciliação de messire Filipe, a quem
chamais zarolho, e madame Joana, a filha de Mafaida...
— ... dissoluta como a mãe, e que fizestes mal,
meus barões, em não terdes sufocado como a uma víbora,
quando a tivestes à vossa mercê, aqui mesmo, no outono
passado — disse Roberto. — Preciso dessa Fériennes e de
seu filho. Tratai de mandá-los apanhar assim que
chegarmos a Arras. Agora, vamos comer, porque esta
viagem causou-me apetite. Que matem o maior boi dos
estábulos e o assem inteiro; que esvaziem o tanque das
carpas de Mafalda e que nos tragam o vinho que não
acabastes de beber.
Duas horas depois, tendo morrido o dia, toda
aquela bela companhia estava embriagada de rolar.
Roberto mandou Lormet, que agüentava muito bem a
mistura dos vinhos, apoderar-se rapidamente na cidade,
com uma boa escolta, de quantas moças fossem
necessárias para contentar a disposição licenciosa dos
barões. Não se prestava grande atenção ao fato de serem
mães de família ou donzelas as mulheres que iam arrancar
aos seus leitos. Lormet tangeu para o castelo um rebanho
em cami-sola de dormir, balindo de pavor. Nos quartos
devastados de Mafalda realizou-se um belo sabá. Os urros
das mulheres tornavam ardorosos os cavaleiros, que se
atiravam ao assalto como se carregassem contra infiéis,
rivalizando em proezas no passatempo, e abatendo-se três
sobre a mesma presa. Roberto puxou para si, pelos
cabelos, os mais belos pedaços, sem fazer grandes
cerimônias para despi-las. Como pesava mais de duzentas
libras, suas conquistas perdiam até mesmo o fôlego para
gritar. Durante esse tempo, Souastre, que tinha deixado
extraviar seu belo elmo, mantinha-se dobrado, os punhos
sobre o coração, e vomitava como gárgula durante um
temporal.
A seguir, aqueles valentes, um após o outro,
começaram a roncar. E um homem, sozinho, teria cortado
os gasnetes, sem fadiga, a toda a nobreza de Artois.
No dia seguinte, um exército de pernas bambas,
línguas saburrosas e cérebros enevoados pôs-se a caminho
para Arras, onde Roberto havia resolvido instalar sua
administração. Apenas ele parecia tão viçoso quanto uma
sôlha saída do rio, o que conquistou para o gigante,
definitivamente, a admiração de suas tropas. O caminho
foi entrecortado de paradas, pois Mafalda possuía
naquelas paragens alguns outros castelos, cuja vista
reacendia a coragem dos barões.
Quando, entretanto, no dia de Santa Madalena,
Roberto chegou a Arras, a dama de Fériennes tinha
desaparecido.
II
O LOMBARDO DO PAPA

EM LIÃO, os cardeais continuavam encerrados.


Tinham acreditado que chegariam a cansar o regente, e
entretanto, sua reclusão durava havia um mês. Os
setecentos soldados do Conde de Forez continuavam a
montar guarda em torno da igreja e do convento dos
Frades Pregadores. Se, para respeitar as aparências, o
Conde Savelli, marechal do conclave, trazia sempre
consigo as chaves, elas não serviam para grande coisa,
pois só se aplicavam a portas muradas.
Os cardeais, dia após dia, tinham transgredido as
constituições de Gregório, e isso com a consciência tanto
mais tranqüila, quanto tinham sido coagidos a se reunir.
Não deixavam de dizer tal coisa, dia após dia, ao Conde
de Forez, quando este último passava sua cabeça coberta
com um capacete pelo estreito orifício que servia para a
entrada dos víveres. Ao que, dia após dia, o Conde de
Forez replicava que a ele competia fazer respeitar a lei do
conclave. Esse diálogo de surdos poderia durar muito
tempo.
Os cardeais já não se alojavam todos juntos, como
fora prescrito, pois, embora a nave dos Jacobinos fosse
grande, a vida de cem pessoas ali, sobre simples montes
de palha, bem depressa tornara-se insuportável. A
pestilência que se instalara nas primeiras noites, era pouco
apropriada para a eleição de um papa. Os prelados tinham
ido, pois, para o convento que comunicava com a igreja, e
ficava no mesmo recinto. Expulsando os frades,
acomodaram-se três em cada cela, o que não era muito
mais confortável. Os donzéis tinham ocupado à força um
dormitório, e os capelães a hospedaria, que já não recebia
viajantes.
O regime alimentar decrescente não continuara a
ser aplicado, pois, se o fizessem, haveria ali apenas uma
reunião de esqueletos. Os cardeais mandavam, pois,
buscar algumas gulodices de fora, que diziam destinadas
ao abade. O segredo das deliberações fora teimosamente
violado: cartas entravam e saíam do conclave, todos os
dias, insinuadas dentro dos pães ou entre os pratos vazios.
A hora das refeições tinha-se tornado a hora do correio, e
a correspondência que pretendia regulamentar a sorte da
cristandade mostrava-se bem manchada de gordura.
De todas essas faltas o Conde de Forez havia
prevenido o regente, que respondera no sentido de deixar
que as coisas continuassem como estavam. “Quanto mais
faltas e inobservâncias cometerem”, declarava Filipe de
Poitiers, “em melhores condições estaremos para usar de
severidade, quando tomarmos essa decisão. Quanto às
cartas, fingi que as deixais seguir, abrindo-as ao passarem,
sempre que vos fôr possível, a fim de me informar sobre o
conteúdo.”
Assim, contaram-lhe que quatro candidaturas
tinham falhado, mal foram propostas: em primeiro lugar a
de Arnaldo Nouvel, antigo abade de Frontfroide, a
respeito do qual o Conde de Poitiers fêz saber claramente
a João de Forez “que não o achava amigo bastante do
reino ,da França”, depois as candidaturas de Guilherme de
Mandagout, Cardeal de Prenestre, de Arnaldo de Pélagrue
e de Bérenger Frédol, o mais velho, Gascões e provençais
derrotavam-se mutuamente. Soube-se, também, que o
temível Caetani começava a desgostar uma parte dos
italianos e mesmo seu primo Stefaneschi, pela baixeza de
suas intrigas e pela audácia demente de suas calúnias.
Não tinha ele proposto, como um gracejo — mas
sabia-se o que valia o riso em sua boca! — que evocassem
o diabo, deixando-lhe o cuidado de designar um papa, já
que Deus parecia renunciar a fazer sua escolha?
Ao que Duèze, com sua voz segredada, tinha
respondido: — Não seria a primeira vez, Francisco, que
Satanás teria assentado entre nós.
Quando Caetani pedia uma vela, diziam que não
era para iluminar, mas para proceder, com a cera, a uma
bruxaria.
Até o momento de seu internamento, os cardeais
tinham feito oposição uns aos outros, por motivos de
doutrina, de prestígio ou de interesse. Mas, vivendo um
mês juntos no desconforto de um espaço restrito, tinham
começado a odiar-se por motivos pessoais, razões quase
que físicas. Alguns deles mostravam-se desleixados; não
se haviam barbeado nas últimas quatro semanas e
entregavam-se a todas as liberdades da natureza. Já não
era prometendo dinheiro ou benefícios eclesiásticos que
tal candidato procurava arranjar maior número de votos,
mas partilhando suas rações com os glutões, ato
formalmente proibido. Então, as denúncias corriam de
ouvido a ouvido:
— O camerlengo comeu outra vez três pratos de
seu partido — murmurava-se.
Se os estômagos, através dessas compensações,
quase conseguiam satisfazer-se, o mesmo não acontecia
com a castidade a que certos cardeais pouco hábito tinham
de submeter-se, e que começava a azedar furiosamente o
gênio de alguns deles. Entre os provençais circulava um
gracejo:
— Monsenhor d’Auch, sofre pela abstinência de
carne, e os monsenhores Colonna sofrem de abstinência e
de carne.
Pois os dois irmãos Colonna, figuras atléticas e
melhor construídos para a couraça do que para a sotaina,
abordavam os donzéis pelos corredores do convento,
prometendo-lhes boa absolvição.
Uns atiravam aos outros, sem cessar, os velhos
agravos:
— Se não tivésseis canonizado Celestino... se não
tivésseis renegado Bonifácio... se não tivésseis consentido
em sair de Roma... se não tivésseis condenado os
Templarios...
Acusavam-se mutuamente de fraqueza no defender
a Igreja, de ambição e venalidade. Ouvindo os cardeais
falarem uns com os outros, era de acreditar que nenhum
deles merecesse sequer uma paróquia no campo.
Apenas Monsenhor Duèze parecia insensível ao
desconforto, às intrigas e às maledicências. Havia dois
anos embrulhava tão bem as coisas entre seus colegas que
não tinha mais necessidade de se meter em coisa alguma,
e podia deixar as perversas máquinas que colocara na
cabeça de cada um deles fazerem sozinhas a sua tarefa.
Com o pouco apetite que tinha, a fraqueza da ração pouco
o incomodava. Escolhera, para partilhar sua cela, os dois
cardeais normandos ligados aos provençais, Ni-colau de
Fréauville, antigo confessor de Filipe, o Belo, e Miguel du
Bec, pois àqueles dois ninguém empurrava para a frente, e
eram fracos demais para constituírem um partido.
Ninguém os temia, e sua instalação em companhia de
Duèze não podia tomar aspecto de conjura. Aliás, Duèze
via pouco seus dois companheiros. A uma hora certa ele
passeava pelo claustro do convento, geralmente apoiado
ao braço de Guccio, que não cessava de lhe recomendar:
— Monsenhor, não caminheis tão depressa! Vede,
custa-me seguir-vos, com esta perna rígida que me ficou
daquele acidente em Marselha, quando caí da nave da
Rainha Clemência... Sabeis muito bem que vossas
possibilidades, a acreditar no que ouço, serão tanto mais
fortes quanto mais fraco parecerdes.
— É verdade, é verdade, bem pensado — respondia
o cardeal, que se esforçava, então, para inclinar o pescoço,
dobrar o joelho e disciplinar seus setenta e dois anos.
O resto do tempo lia ou escrevia. Tinha conseguido
arranjar o que lhe era mais necessário neste mundo: livros,
velas e papel. Quando vinham adverti-lo de que havia uma
reunião no coro da igreja, fingia abandonar com desgosto
seus trabalhos, arrastava-se até sua estala, e ali,
deleitando-se ao ouvir seus colegas injuriarem-se ou
cumularem-se de perfídias, contentava-se em murmurar:
— Rezo, meus irmãos, rezo para que Deus nos
inspire a escolha mais digna.
Os que o conheciam bem achavam-no bastante
modificado. Parecia repleto de virtudes cristãs, muitíssimo
dado às mace-rações, oferecendo exemplo de
benevolência e caridade. Quando comentavam isso com
ele próprio, Duèze respondia, simplesmente,
acompanhando seu murmúrio com um gesto de
desencanto :
— A aproximação da morte... Ë mais do que tempo
para que eu me prepare!
Mal tocava na escudela das refeições e mandava-a
levar a qualquer um de seus colegas, desculpando-se da
falta contra a regra com a invocação de preocupações de
saúde. Assim, Guccio chegava com os braços carregados
junto do camerlengo, que prosperava como um boi de
engorda, e dizia-lhe:
— Monsenhor Duèze mandou-me trazer-vos isto.
Achou-vos mais magro, esta manhã.
Dos noventa e seis prisioneiros, Guccio era um dos
que se comunicavam mais facilmente com o exterior:
pudera com efeito estabelecer rapidamente ligação com o
agente do banco Tolomei em Lião. Através daquele
estafêta encaminhavam-se não só as cartas que Guccio
enviava a seu tio, como também o correio mais secreto
que Duèze destinava ao regente. Àquelas cartas era
poupada a humilhação do estágio entre pratos gordurosos:
passavam dentro de livros indispensáveis aos piedosos
estudos do cardeal.
Duèze, com efeito, não tinha outro confidente
senão o jovem lombardo, cuja astúcia o servia cada dia
mais. A sorte de ambos estava estreitamente ligada,
porque se um queria sair papa daquele convento
superaquecido pelo verão, o outro desejava partir o mais
depressa possível, e poderosamente protegido, a fim de
socorrer sua bela. Guccio, todavia, sentia-se um tanto
tranqüilizado a respeito de Maria desde que Tolomei lhe
escrevera estar velando por ela como um verdadeiro tio.
No início da última semana de julho, quando Duèze
viu seus colegas bem cansados, bem abatidos pelo calor, e
irremediavelmente erguidos uns contra os outros, resolveu
oferecer-lhes a comédia que vinha meditando havia muito
tempo, e que tinha ensaiado cuidadosamente com Guccio.
— Arrastei bastante os pés? Jejuei bastante? Minha
fisionomia estará bastante abatida? — perguntava ele a
seu donzel improvisado. — E os meus confrades estarão
bastante fartos de si próprios para se deixarem levar a uma
decisão pela fadiga?
— Sim, Monsenhor, penso que estão maduros.
— Então, vá, meu jovem companheiro, comece a
dar trabalho à sua língua. Quanto a mim, acho que vou
deitar-me e não me levantarei mais.
Guccio começou a andar entre os servidores dos
outros cardeais, dizendo que Monsenhor Duèze estava
muito esgotado, que parecia doente, e que seria de temer,
diante de sua idade avançada, que não saísse vivo daquele
conclave.
No dia seguinte, Duèze não apareceu na reunião
quotidiana, e os cardeais murmuraram entre si, cada qual
repetindo com seus, os rumores que Guccio fazia correr.
No dia seguinte, o Cardeal Orsini, que saía de
violenta altercação com os Colonna, encontrou Guccio e
perguntou-lhe se era verdade que Monsenhor Duèze
estava mesmo tão enfraquecido.
— Oh! É verdade, Monsenhor, e bem vedes que
tenho a alma dilacerada — respondeu Guccio. — Sabeis
que meu bom senhor deixou até de ler? Isto é o mesmo
que dizer que bem pouco caminho agora lhe resta para
deixar também de viver.
Depois, com aquele ar de audácia ingênua, que
sabia assumir com muito propósito, acrescentou:
— Se estivesse em vosso lugar, Monsenhor, saberia
bem o que fazer. Elegeria Monsenhor Duèze. Assim,
poderíeis sair deste conclave, finalmente, e organizar
outro à vossa vontade, assim que ele morresse, o que, eu
vos repito, não tardará muito.
É uma oportunidade que talvez chegueis a perder,
dentro de uma semana.
Naquela mesma noite, Guccio viu Napoleão Orsini
em conciliábulo com Stefaneschi, que era Orsini pelo lado
materno, Albertini de Prato e Guilherme de Longis, isto é,
com todos os italianos favoráveis a Duèze. No dia
seguinte, o mesmo grupo fechou-se como que
espontaneamente no claustro, aumentado pelo espanhol
Luca Flisco, meio irmão de Tiago II de Aragão, e Arnaldo
de Pélagrue, o chefe do partido gascão. Guccio passando
junto deles, ouviu um dos cardeais dizer:
— E se non muore?
— Peccato... mas se morrer amanhã, ficaremos
mais seis meses aqui, com certeza.
Imediatamente, Guccio passou uma carta para seu
tio, recomendando que comprasse da companhia Bardi
todos os créditos que aquele banco possuía sobre Duèze.
“Podereis obtê-los sem trabalho pela metade de seu valor,
porque o devedor é dado como agonizante, e o credor
pensará que estais louco. Comprai mesmo oitenta libras
por cem, pois o negócio, como vos digo, será bom, ou não
sou mais vosso sobrinho.” Aconselhava, além disso, a
Tolomei, que viesse pessoalmente a Lião, o mais cedo que
lhe fosse possível.
No dia 29 de julho o Conde de Forez remeteu
oficialmente ao cardeal camerlengo uma carta do regente.
Para ouvir sua leitura, Duèze consentiu em deixar seu
catre. Mais foi mais carregado do que mesmo caminhou
até a assembléia.
A carta do Conde de Poitiers era severa.
Pormenorizava todas as faltas cometidas contra o
regulamento de Gregório. Lembrava a promessa feita de
demolir o teto da igreja. Chamava aos brios os cardeais, a
propósito de suas discórdias e sugeria--lhes, se não
podiam chegar a uma conclusão, que conferissem a tiara
ao mais velho entre eles. Ora, o mais velho era Duèze.
Quando este ouviu tais palavras, agitou os braços
num gesto de moribundo, e falou, com voz apenas
perceptível:
— Ao mais digno, meus irmãos, ao mais digno!
Que poderíeis fazer com um pastor que não tem mais
forças para conduzir a si próprio, e cujo lugar é antes no
Céu, se o Senhor ali quiser acolhê-lo, do que aqui em
baixo?
E pediu que o levassem de nôvo para sua cela,
estendeu-se em sua cama, e virou-se para a parede. Guccio
conhecia-o realmente bem, para saber que os movimentos
que lhe sacudiam os ombros eram provocados pelo riso e
não pelos soluços da agonia.
No dia seguinte, Duèze pareceu recuperar um
pouco as forças: um enfraquecimento constante demais
poderia ter despertado suspeitas. Mas, quando veio uma
recomendação do rei de Nápoles, que secundava a do
Conde de Poitiers, o ancião começou a tossir de maneira
lamentável. Estava em condições bastante tristes, para ter
apanhado um resfriado com tamanho calor.
As negociações continuavam firmes, pois todas as
esperanças não se haviam ainda extinguido. Entre os vinte
e quatro cardeais não houve nenhum, sem dúvida alguma,
mesmo dos menos bem colocados, que não dissesse
consigo mesmo, em determinado momento: “Por que não
eu?”
No público que afluía para Lião, atraído pela
esperança de uma próxima decisão, instalava-se a opinião
de que não havia instituições perfeitas, e que todas se
valiam, igualmente viciadas pelas ambições humanas. O
sistema eletivo que servia ao provimento do trono de São
Pedro não se mostrava melhor do que o costume da
hereditariedade para o trono da França.
O Conde de Forez, porém, começava a mostrar-se
mais rude. Agora mandava revistar ostensivamente os
víveres, que reduzira, aliás, a um serviço por dia, e
confiscava a correspondência, quando não a devolvia para
o interior.
No dia 5 de agosto, Napoleão Orsini conseguira
aliar aos partidários de Duèze, o próprio Caetani, assim
como alguns membros do partido gascão. Os provençais
começaram a farejar o perfume da vitória.
Viram, no dia 6 de agosto, que Monsenhor Duèze
poderia contar com dezoito votos, isto é, com dois votos
mais do que a famosa maioria absoluta, que em dois ou
três anos ninguém conseguira reunir. Os últimos
dissidentes, vendo que a eleição ia se fazer apesar deles,
temendo vir a sofrer penalidades pela sua obstinação,
tomaram o partido de afetar reconhecer as altas virtudes
cristãs de Monsenhor Duèze, e declararam-se dispostos a
dar-lhe seus sufrágios.
No dia seguinte, 7 de agosto de 1316, decidiram
(24)
votar . Quatro escrutinadores foram designados. Duèze
apareceu, carregado por Guccio e seu segundo donzel.
— Êle não pesa muito — murmurava Guccio aos
cardeais que o viam passar e que se afastavam com uma
deferência onde já se esboçava a escolha que tinham feito.
— Pois que assim o quereis, Senhor, pois que assim
o quereis... — suspirava Duèze diante do papel onde ia
inscrever o seu voto.
Alguns minutos mais tarde, era proclamado papa
por unanimidade, e seus vinte e três rivais faziam-lhe uma
ovação.
Aquele papa iria tornar-lhes a vida dura durante
dezoito anos!
Guccio adiantou-se para ajudar a carregar o
raquítico ancião, que se tornara a suprema autoridade do
Universo.
— Não, não, meu filho — disse Duèze. — Vou
esforçar-me para caminhar sozinho. Possa Deus sustentar
os meus passos.
Os imbecis acreditaram, então, que estavam
testemunhando um milagre, enquanto outros
compreendiam que tinham sido ludibriados.
Entretanto, o camerlengo já havia queimado na
chaminé os papéis dos votos, cuja fumaça branca
anunciava ao mundo um novo pontífice. As pancadas dos
alviões começaram a retinir contra os muros de tijolos que
fechavam a grande porta. Mas o Conde de Forez era
prudente. Assim que soltaram o número suficiente de
pedras, ele próprio insinuou-se pela abertura.
— Sim, sim, meu filho, sou mesmo eu — disse-lhe
Duèze, que tinha corrido até a porta em seu passinho
rápido.
Então, os pedreiros acabaram de derrubar o muro.
Os dois batentes foram abertos, e o sol, pela primeira vez
depois de quarenta dias, penetrou na igreja dos Jacobinos.
Grande multidão esperava no adro: gente humilde,
burgueses de Lião, cônsules, senhores e observadores das
cortes estrangeiras, todos puseram-se de joelhos. Um
homem gordo, de pele azeitonada e com um olho fechado,
encaminhava-se para a frente, junto do Conde de Forez.
Apanhou a barra do manto do papa para levá-la aos lábios,
e foi sobre a sua cabeça grisalha que tombou a primeira
bênção daquele que se iria chamar dali por diante João
XXII.
— Zio Spinello — exclamou Guccio, vendo o
homem gordo ajoelhado.
— Ah! Sois o tio! Gosto muito de vosso sobrinho,
meu filho — disse Duèze ao banqueiro, fazendo-lhe sinal
para que se levantasse. — Êle serviu-me fielmente, e
quero conservá-lo a meu lado. Beijai-o, beijai-o!
Guccio saltou ao pescoço de Tolomei.
— Comprei tudo, como me disseste, e a seis por
dez — murmurou-lhe imediatamente Tolomei, enquanto
Duèze continuava a abençoar a multidão. — Esse papa
deve-nos agora muitos milhares de libras. Bel lavoro,
figlio mio. És um verdadeiro sobrinho do meu sangue.
Alguém, atrás deles, mostrava um nariz tão
comprido quanto o dos cardeais. Era o signor Bocácio,
principal viajante dos Bardi.
— Ah! Então, estavas lá dentro, mascalzone? —
disse êle a Guccio. — Se eu tivesse sabido disso, não teria
vendido.
— E Maria? Onde está Maria? — perguntou
Guccio a seu tio, ansiosamente.
— Tua Maria vai bem. É tão bela quanto tu és
malicioso, e se o pequeno lombardo que lhe estufa o
ventre sair a ambos, fará seu caminho pelo mundo. Mas
vai depressa, meu rapaz! Estás vendo que o Santo Padre te
chama.
III
AS DÍVIDAS DO CRIME

O REGENTE Filipe fazia questão absoluta de


assistir à sagração do papa que tinha feito, colocando-se,
assim, na posição de defensor da cristandade.
— Custou-me bastante trabalho — dizia. — É
justo, portanto, que agora me ajude a fortalecer meu
governo. Quero estar em Lião para a sua coroação.
Mas as notícias do Artois não deixavam de ser
inquietadoras. Roberto tomara Arras, Avesnes e
Thérouanne sem dificuldade, e continuava a conquistar a
região. Em Paris, Carlos de Valois, sub-repticiamente,
dava-lhe mão forte.
Fiel à tática de envolvimento que era nele
inspiração natural, o regente começou por trabalhar nas
regiões limítrofes do Artois, a fim de evitar que a revolta
se propagasse. Escreveu aos barões da Picardia,
lembrando-lhes a fidelidade que deviam à coroa da
França, dando-lhes, cortêsmente, a entender que não
toleraria vê-los de qualquer maneira faltar com seus
deveres. E um contingente ponderável de tropas e
sargentos de armas foi enviado aos prebostes, para
vigilância da região. Aos flamengos, que, ao fim de um
ano, ainda faziam chalaça a propósito da miserável
cavalgada do” Turbulento, perdendo seu exército, na lama,
Filipe propôs novo tratado de paz, em condições bastante
vantajosas para eles.
— Nesta confusão que temos necessidade de pôr
em ordem, será preciso perder um pouco, para salvar o
todo — explicou o regente aos seus conselheiros.
Embora seu genro, João de Fiennes, fosse um dos
primeiros tenentes de Roberto, o Conde da Flandres,
sentindo que jamais teria tão boa ocasião de arranjar um
tratado, consentiu nos entendimentos e conservou-se
neutro, portanto, nos negócios do condado vizinho.
Filipe havia fechado, assim, praticamente, todas as
portas do Artois. Mandou então Gaucher de Châtillon para
negociar diretamente com os chefes dos revoltosos e
assegurar-lhes as boas intenções da Condêssa Mafalda.
— Compreendei-me bem, Gaucher: não deveis
armar discussões com Roberto — recomendou ele ao
condestável — porque isso seria reconhecer os direitos
que ele reclama. Continuamos a considerá-lo privado do
Artois, tal como meu pai julgou. Ides, apenas, pôr em
ordem um conflito que coloca a condêssa contra seus
vassalos, e no qual, Roberto, a nossos olhos, nada tem a
fazer. Fingi ignorá-lo.
— Na verdade, Monsenhor — disse o condestável
— quereis que em tudo triunfe vossa sogra?
— Absolutamente, Gaucher. Absolutamente, uma
vez que ela abusou de seus direitos em muitos casos,
como eu o acredito. É que a dama Mafalda é muitíssimo
arrogante e julga que toda a gente veio ao mundo apenas
para servi-la até a última moeda da bolsa e a última gota
de suor! Quero a paz — continuou o regente — e para
tanto, que cada qual receba eqüitativamente o que lhe é
devido. Sabemos que a burguesia das cidades mantém-se
favorável à condêssa, porque essa burguesia está sempre
em contenda com a nobreza, enquanto os nobres
esposaram a causa de Roberto a fim de dar apoio aos
próprios agravos. Vede, pois, se essas reclamações têm
fundamento e tratai de atendê-las, sem que isso venha a
atingir as prerrogativas da Coroa. Assim, esforçai-vos por
afastar os barões de nosso turbulento primo, mostrando-
lhes que podem obter de nós, pela justiça, muito mais do
que pela violência.
— Sois de excelente julgamento, Monsenhor, sois,
sem dúvida alguma, de excelente julgamento. Não pensei
que me fosse dado, na velhice, servir com tanta satisfação
um príncipe tão sensato, que não tem a terça parte da
minha idade.
Ao mesmo tempo, o príncipe mandava pedir ao
papa, pelo Conde de Forez, que retardasse um pouco a sua
coroação. Duèze, por muito legítima que fosse sua pressa
em ver a eleição que o fizera papa confirmar-se com a
sagração, aceitou complacente-mente um adiamento de
duas semanas.
Mas, passadas as duas semanas, o caso de Artois
estava longe de resolver-se e o acordo com os flamengos
não podia ser ratificado antes do dia 1.° de setembro.
Filipe, então, mandou pedir novamente ao papa, dessa vez
pelo delfim de Viennois, um outro adiamento da
cerimônia. Duèze, porém, com grande surpresa do
regente, mostrou-se de súbito muito firme, e quase brutal,
fixando, irrevogàvelmente, para 5 de setembro, a sua
coroação.
Fazia questão daquela data por motivos que
conservava em segredo e que, aliás, escapavam ao
julgamento comum. Com efeito, num dia 5 de setembro de
1300, fora sagrado bispo de Fréjus. Na primeira semana
de setembro de 1309 tinha sido coroado seu protetor, o
Rei Roberto de Nápoles, e se uma falsificação da
caligrafia real lhe permitira obter a cadeira episcopal de
Avinhão, fora no dia 4 de setembro de 1310 que sua
manobra tivera êxito.
O novo papa mantinha bom comércio com os
astros, e sabia servir-se das passagens do sol para
organizar as etapas de sua ascensão.
“Se Monsenhor, o regente da França e de Navarra,
que tanto amamos”, foi a resposta dele, “encontra-se
impedido, pelos deveres do reino, de estar a nosso lado
nesse dia solene, sentiremos muito sua ausência, mas, já
não temendo obrigá-lo a fazer viagem excessivamente
longa, iremos receber a tiara na cidade de Avinhão.”
Filipe de Poitiers assinou o tratado com os
flamengos na manhã de 1° de setembro. No dia 5, pelo
alvorecer, chegava a Lião, acompanhado pelo Conde de
Valois e pelo Conde de La Marche, que não quisera deixar
em Paris, longe de sua vigilância, bem como por Luís
d’Evreux.
— Fizeste-nos correr a passo de mensageiro, meu
sobrinho — disse Valois, desmontando.
Não tiveram senão o tempo necessário para vestir
os trajos especiais preparados para a cerimônia, e que
tinham sido encomendados pelo tesoureiro Godofredo de
Fleury. O regente usava um trajo aberto, de tecido flor-de-
pessegueiro, forrado com duzentos e vinte e seis peles de
ventre de menu-vair (25). Carlos de Valois, Luís
d’Evreux, Carlos de La Marche e Filipe de Valois, que
também estava na festa, tinham recebido, cada qual, de
presente, um trajo de camocas, forrado da mesma
maneira.
Em Lião, que se mostrava toda embandeirada, era
grande a aglomeração popular para admirar o desfile.
Tiago Duèze chegou à igreja primacial São João a
cavalo, precedido pelo regente de França e diante de um
mar de pessoas ajoelhadas. Todos os sinos da cidade
repicavam. As rédeas da montaria pontificai eram levadas
de um lado pelo Conde d’Evreux e do outro pelo Conde
de La Marche. A monarquia francesa enquadrava de perto
o papado. Seguiam-se os cardeais, o chapéu vermelho
colocado acima da capa, e preso sob o queixo com
cordões amarrados. As mitras dos bispos cintilavam ao
sol. Foi o Cardeal Orsini, descendente do patriciado
romano, quem colocou a tiara sobre a cabeça de Duèze,
filho de um burguês de Cahors.
Guccio, bem colocado na catedral, admirava seu
senhor. O pequenino ancião de queixo delgado, ombros
estreitos, que quatro semanas atrás acreditavam
agonizante, suportava sem dificuldade os pesados
atributos sacerdotais que lhe conferiam. Os ritos
faraônicos daquela interminável cerimônia que o colocava
tão acima de seus semelhantes, e fazia dele o símbolo da
divindade, agiam sobre a sua pessoa quase que a despeito
dela própria, e espalhavam-lhe sobre os traços uma
imprevista majestade, impressionante e mais evidente à
medida que a liturgia se desenrolava. Entretanto, ele não
pôde esconder um ligeiro sorriso quando lhe calçaram as
sandálias pontificais.
“Scarpinelli! Eles me chamavam Scarpinelli... o
cardeal sapatinhos... “, pensava ele. “Faziam-me passar
por filho de remendão. Agora, quem usa os sapatinhos sou
eu... Senhor! Nada mais tenho a desejar. Nada mais me
resta senão governar bem.”
E a isso dedicou-se, naquele mesmo dia, fazendo
com que o regente conferisse a seu irmão, Pedro Duèze,
títulos de nobreza, antes que ele próprio nomeasse
cardeais cinco sobrinhos seus, o que iria fazer dois anos
depois.
O ato de enobrecimento que o próprio Filipe de
Poitiers ditou no fim da cerimônia, se era destinado a
honrar o Santo Padre através de seu irmão, testemunhava
também espantosa disposição de espírito por parte do
jovem príncipe. “Não são os bens de família” — tinha ele
escrito — “nem as riquezas de fato, nem as outras
atenções da sorte, que possuem títulos no concerto das
qualidades morais e das ações meritórias. São coisas que
certo acaso concede aos que merecem como aos que não
merecem, que chegam tanto para os dignos como para os
indignos. Em compensação, cada qual se manifesta como
filho de suas obras e de seus próprios méritos, enquanto
não tem importância alguma a fonte de onde provimos, se
é que sabemos, realmente, de quem provimos...”
Mas o regente não viajara tanto nem dera ao novo
papa tais demonstrações de estima para nada obter em
troca. Entre aqueles dois homens, que meio século de
idade separava... “sois a alvorada, Monsenhor, e eu o
poente”, costumava dizer Duèze a Filipe... havia, desde o
primeiro encontro, uma afinidade secreta e uma
cumplicidade permanente. João XXII não esquecia as
promessas de Duèze, nem o regente olvidava as do Conde
de Poitiers. Às primeiras palavras do regente, em relação
aos beneíícios eclesiásticos, cuja primeira anuidade devia
pertencer ao Tesouro, o novo papa lhe disse que os
documentos estavam prontos para ser assinados. Mas,
antes que os selos fossem apostos, Filipe teve uma
conversa particular com Carlos de Valois.
— Meu tio — perguntou — tendes alguma queixa
de mim?
— Evidentemente, não, meu sobrinho — disse o
ex-imperador de Constantinopla.
Como seria possível dizer cara a cara, a uma
pessoa, fosse ela quem fosse, ser sua própria existência o
único agravo que se tinha contra ela?
— Então, meu tio, se não tendes de que vos
queixar, por que me prejudicais? Eu vos tinha garantido,
quando me entregastes as chaves do Tesouro, que não vos
seriam pedidas as contas, e mantive minha palavra.
Jurastes-me homenagem e fidelidade, mas não
mantívestes vossa fé, meu tio, pois sustentais a causa de
Roberto d’Artois.
Valois fêz um gesto negativo.
— Estais calculando mal, meu tio — continuou
Filipe — porque Roberto vai custar-vos caro demais. Êle
nada tem em matéria de dinheiro, e seus recursos são
representados apenas pelas rendas que o Tesouro lhe paga,
e que eu acabo de cortar. Será a vós, pois, que ele vai
pedir subsídios. Onde ireis encontrá-los, pois que já não
manejais as finanças do reino? Vamos, não vos
abespinheis, não precisais enrubescer nem deixar-vos
levar por palavras grosseiras, das quais vos arrependereis,
pois quero o vosso bem. Dei-me a certeza de que
desamparareis um pouco Roberto e eu, por meu lado, vou
pedir ao Santo Padre que as anatas de Valois e de Maine
vos sejam entregues diretamente e não ao Tesouro.
Entre o ódio e a cobiça, o coração de Valois esteve
por um instante dilacerado.
— A quanto montam essas anatas? — perguntou
ele.
— Vão de dez a treze mil libras por ano, meu tio,
porque serão compreendidos nelas os benefícios que não
foram recebidos nos últimos tempos de meu pai e durante
todo o reinado de Luís.
Para Valois, sempre endividado, levando um trem
de vida real, e prometendo dotes monumentais a fim de
melhor casar suas filhas, dez a treze mil libras por ano
representavam, senão a salvação definitiva, pelo menos a
salvação provisória.
— Sois um bom sobrinho, e compreendeis minhas
necessidades — respondeu ele.
As notícias mandadas por Gaucher de Châtillon
eram satisfatórias; assim Filipe voltou a Paris por
pequenas etapas, pondo em ordem vários assuntos pelo
caminho e fazendo uma última parada em Vincennes, para
levar a Clemência a bênção do novo papa.
— Sinto-me feliz — disse a rainha — por ter o
nosso caro Duèze tomado o nome de João, pois também
escolhi esse nome para meu filho, devido a um voto que
fiz, durante a tempestade, na nave que me trouxe para a
França.
Parecia continuar, como sempre, estranha aos
problemas do poder, e ocupada apenas com as lembranças
de sua vida conjugal e as preocupações da maternidade. A
estada em Vincennes dava a impressão de ser conveniente
para a sua saúde. Recuperara seu bonito rosto, e mostrava,
com as formas do sétimo mês, ter adquirido a trégua que
aparece, às vezes, no fim das gestações difíceis.
— João não é bem o nome para o rei da França —
disse o regente. — Nunca tivemos um João.
•— Meu irmão, estou lhe dizendo que foi um
juramento que fiz.
— Então, havemos de respeitá-lo... Se f ôr um
menino, chamar-se-á, pois, João I.
No palácio da Cité, Filipe encontrou sua esposa
perfeitamente feliz, mimando o pequeno Luís Filipe, que
gritava com tôda a força de suas oito semanas.
Mas a Condêssa Mafalda, mal teve conhecimento
do regresso de seu genro, chegou do palácio de Artois, de
mangas arregaçadas, como uma fúria.
— Ah! Como sou traída, meu filho, quando vos
ausentais!
Sabeis o que foi maquinar em Artois aquele
velhaco que é o vosso Gaucher?
— Gaucher é condestável, minha mãe, e ainda há
pouco não o consideráveis absolutamente um velhaco.
Que vos fez êle?
— Considerou-me culpada! — gritou Mafalda. —
Condenou-me em tudo. Vossos enviados entendem-se
como compadres de feira com os meus vassalos.
Resolveram que não voltarei para Artois... estais
entendendo bem, eu Mafalda, proíbem-me de voltar ao
meu condado!... antes assinar aquela péssima paz que
recusei a Luís, em dezembro passado. Querem, além
disso, que eu devolva não sei que taxas que, segundo eles,
recebi indevidamente!
— Tudo isso parece-me justo. Meus enviados
seguiram bastante fielmente minhas ordens — respondeu
calmamente Filipe.
A surpresa deixou Mafalda interdita por um
momento, a boca entreaberta, os olhos arregalados.
Depois, recomeçou, gritando ainda mais fortemente.
— Justo? Pilhar meus castelos, enforcar meus
sargentos, destruir minhas colheitas! E são vossas ordens,
então, essas de amparar meus inimigos! Vossas ordens!
Eis de que bela maneira pagais tudo quanto fiz por vós!
Uma grossa veia arroxeada intumescia-se em sua
testa, e Filipe pensou que naquela noite ela deveria fazer-
se sangrar.
— Não vejo, minha mãe, que, além de me terdes
dado vossa filha, tenhais feito tanto por mim a ponto de
que me seja necessário lesar meus súditos e comprometer,
para proveito vosso, a paz do reino.
Entre a prudência e o furor, Mafalda hesitou um
segundo. Mas a palavra empregada por seu genro, “meus
súditos”, que era palavra de rei, prevaleceu sobre tudo.
— E ter matado teu irmão — disse ela, avançando
para êle — nada representa, então?
Dez semanas de segredo tão ardentemente
guardado tinham estalado num ímpeto.
Filipe não teve sobressalto, não soltou grito algum
mas, simplesmente, correu a fechar as portas e a
assegurar-se, com seus olhos míopes, de que não havia
gente por ali que pudesse ter ouvido. Aferrolhou as portas,
retirou as chaves e meteu-as em seu cinto. Mafalda ficou
assustada, e mais ainda quando viu o rosto com que ele se
adiantava em sua direção.
— Fôstes vós, então — disse ele, a meia voz — e o
que se cochicha no reino é verdade!
Mafalda enfrentou-o, de acordo com sua natureza,
que era a de atacar.
— E quem quedeis que fosse, meu genro? A quem
pensais dever a graça de ser regente e de poder um dia,
talvez, apropriar-vos da Coroa? Vamos! Não tomeis ar
assim tão ingênuo. Vosso irmão havia confiscado Artois.
Valois excitava-o contra mim, e vós estáveis em Lião,
ocupando-vos do papa... sempre êsse papa que
infalivelmente se mete em meus negócios! Não vos
mostreis hipócrita a ponto de dizer que me reprovais! Não
tínheis ternura alguma por Luís e gostastes bem que eu
vos tivesse fornecido seu lugar ainda quente, temperando
um bocadinho os confeitos que ele comeu. Mas não
esperava que fósseis pior do que ele.
Filipe tinha-se sentado, cruzara as mãos compridas
e refletia.
“Tínhamos mesmo que chegar a isto, um dia ou
outro”, pensava Mafalda. “Talvez seja um bem, num certo
sentido: agora tenho-o nas mãos.”
— Joana sabe? — perguntou subitamente Filipe.
— Não sabe de coisa alguma. Isso não é negócio
para mulheres.
— Quem sabe, além de vós?
— Beatriz, minha primeira donzela.
— É muito — disse Filipe.
— Ah! Não deveis tocar naquela moça! Tem
família poderosa.
— Sem dúvida alguma, uma família que vos torna
muito querida em Artois! E além dessa Beatriz? Quem vos
forneceu o tempero, como dizeis?
— Uma bruxa de Arras, que nunca vi, mas que
Beatriz conhece. Fingi querer desembaraçar-me dos
cervos que infestavam meu parque, e tive o cuidado de
mandar matar uma porção deles.
— Será preciso encontrar novamente essa mulher...
— disse Filipe.
— Compreendei, agora — falou Mafalda — que
não podeis, de modo algum, abandonar-me? Porque se
acreditarem que me deixais sem apoio, meus inimigos vão
retomar coragem, as calúnias redobrarão...
— As maledicências, minha mãe, as maledicências
— retificou Filipe.
— ... e se me acusarem do que sabeis, o peso
recairá sobre vós, porque irão dizer que fiz aquilo para vos
dar vantagem, e talvez mesmo por ordem vossa.
— Eu sei, minha mãe, eu sei. Já pensei nisso tudo.
— Lembrai-vos, Filipe, que arrisquei a salvação de
minha alma nessa empresa. Não deveis ser ingrato!
Filipe teve, então, um dos seus raros acessos de
cólera.
— Ah! Isso é demais, minha mãe! Não tardareis a
pedir que eu vos venha beijar os pés por terdes
envenenado meu irmão! Se eu soubesse que teria a
regência a esse preço, jamais, estais entendendo, jamais a
teria aceitado! Reprovo o assassínio. Não temos
necessidade de matar, nunca, para chegarmos ao fim que
nos propomos. Esse meio é de má política, e eu vos
ordeno, por todo o tempo que fôr vosso suserano, que não
useis mais dele.
Um momento, ele teve a tentação da honestidade.
Reunir o conselho dos pares, denunciar o crime, pedir
castigo... Mafalda, que o adivinhou agitado por esses
pensamentos, passou instantes penosos.
Filipe, entretanto, jamais se deixava levar pelos
seus impulsos, mesmo virtuosos. Agir assim seria lançar o
descrédito sobre sua mulher e sobre si próprio. E de que
acusações seria capaz Mafalda, para defender-se ou para
perder com ela quem não a defendera? A ocasião, para
muitos, seria excelente para reabrir a questão da regência e
da sucessão. Filipe já fizera muito pelo reino e sonhara
muito com o que iria fazer para que desejasse correr o
risco de se ver privado do poder. Seu irmão Luís, afinal,
fora mau rei, e, além disso, um assassino... Talvez fosse a
vontade da Providência punir o assassino com o
assassínio, colocando a França em melhores mãos.
— Deus vos julgará, minha mãe, Deus vos julgará
— disse êle. — Eu apenas desejaria evitar que as chamas
do inferno, por vossa causa, começassem a nos lamber
ainda em nossa vida.
Tenho, portanto, que pagar as dívidas de vosso
crime e, não podendo meter-vos numa masmorra, sou
forçado, com efeito, a amparar-vos... Vossa maquinação
foi bem feita. Messire Gaucher receberá, depois de
amanhã, novas instruções. Não vos escondo que elas me
pesam.
Mafalda quis beijá-lo, mas ele repeliu-a.
— Mas podeis ficar sabendo — disse ele — que
daqui por diante aquilo que eu comer será provado três
vezes, e na primeira dor de estômago que me incomode
um pouco, vossas horas de vida estarão por um fio. Rezai,
pois, pela minha saúde.
Mafalda baixou a cabeça.
— Eu vos servirei tanto, meu filho — disse ela —
que acabareis por amar-me novamente.
IV
“JÁ QUE É PRECISO QUE NOS RESOLVAMOS PELA
GUERRA...”

NINGUÉM compreendeu, e menos que ninguém


Gaucher de Châtillon, a reviravolta de Filipe na questão de
Artois. O regente, desautorizando bruscamente seus
enviados, declarou inaceitável a conciliação que tinham
preparado, e exigiu a redação de novas convenções mais
favoráveis a Mafalda. O resultado não se fêz esperar. As
negociações foram rompidas, e os que tratavam delas do
lado de Artois, representando o elemento moderado da
nobreza, reuniram-se imediatamente ao clã dos furiosos.
Sua indignação era extrema, o condestável zombara deles,
traíra-os. De agora em diante a força seria o único recurso.
O Conde Roberto triunfava.
— Já não vos dissera muitíssimas vezes que não se
pode falar com aqueles falsos? — repetia a todos.
Seguido de todo o seu exército, marchou de novo
sobre Arras.
Gaucher, que se encontrava na cidade apenas com
uma pequena escolta, mal teve tempo de fugir pela porta
de Péronne, enquanto Roberto entrava pela porta Saint-
Omer, com todos os estandartes ao vento, as trombetas
tocando. Por um quarto de hora apenas, deixou de ser
aprisionado o condestável da França. Aquela aventura
passou-se no dia 22 de setembro. Naquela mesma data
Roberto mandou à sua tia a seguinte carta:
À mui alta e nobre dama Mafalda d’Artois,
Condêssa de Borgonha, Roberto d’Artois, cavaleiro.
Corno injustamente me privastes de meu direito ao
condado de Artois, o que muito me contraria e é para mim
peso diário, coisa que não quero e não posso mais sofrer,
faço-vos saber que vou pôr ordem neste caso e recuperar
o que me pertence o mais cedo que me fôr possível.
Roberto não era grande epistológrafo, e as
gradações da finura de expressão não constituíam seu
forte. Ficara muito satisfeito com a carta, porque
expressava bem o que queria dizer.
O condestável, quando chegou a Paris, vinha mal-
humorado e também não pesou suas palavras ao se
encontrar face a face com o Conde de Poitiers. A pessoa
do regente não o intimidava. Tinha visto aquele jovem
nascer e molhar suas fraldas: disse-lhe tudo claramente,
acrescentando que ele tinha feito mau uso de um bom
servidor e de um parente fiel que contava vinte anos de
comando nos exércitos do reino, mandando-o tratar
garantias que a seguir renegava.
— Passei até o dia de hoje, Monsenhor, por homem
leal, cuja palavra, uma vez comprometida, não podia ser
posta em dúvida. Fizeste-me fazer o papel de traidor e
ladrão. Quando sustentei vossos direitos à regência,
pensava reencontrar em vós um pouco de meu rei, vosso
pai, com o qual até aqui tínheis manifestado semelhança.
Vi que me enganei cruelmente. Caístes assim tanto sob
tutela de mulher para que mudeis agora de opinião como
de cota?
Filipe esforçou-se para acalmar o condestável,
acusando-se de haver julgado mal a questão, no início, e
de ter dado instruções erradas. Nada adiantaria transigir
com a nobreza de Artois enquanto Roberto não fosse
derrotado. Roberto constituía um perigo para o reino, e um
perigo para a honra da família real. Não fora o instigador
daquela campanha de calúnias que designava Mafalda
como envenenadora de Luís X?
Gaucher sacudiu os ombros.
— E quem acredita nessas tolices? — exclamou.
— Vós não acreditais, Gaucher, vós não — disse
Filipe
— mas outros abrem bem os ouvidos, contentes
bastante por nos prejudicarem assim. E amanhã irão dizer
que eu, que vós, tivemos parte nessa morte que querem
mostrar como suspeita.
Mas Roberto vem de dar o passo em falso que eu
esperava.
Vede o que escreveu a Mafalda...
E deu ao condestável a carta de 22 de setembro.
— Nessa carta — recomeçou o regente — ele
rejeita a decisão que, em 1309, meu pai fêz o Parlamento
tomar. Até esta data apenas amparava os inimigos da
condêssa. Presentemente, vem de entrar em revolta contra
a lei do reino. Voltareis para Artois.
— Ah! Não, Monsenhor! — exclamou Gaucher. —
Acabo de fazer muito má figura. Precisei fugir de Arras
como um javali velho perseguido pelos cães, sem mesmo
ter tido tempo para urinar. Fazei-me a graça de escolher
outro para essa questão.
Filipe juntou as mãos diante da bôca. “Se tu
soubesses, Gaucher”, pensava ele, “se tu soubesses como
é duro para mim enganar-te! Mas se te confessasse a
verdade tu me des-prezarias ainda mais!” E repetiu,
obstinado:
— Voltareis para Artois, Gaucher, por mim, e
porque vo-lo peço. Levareis convosco vosso cunhado,
messire Milles, e, desta vez, uma boa tropa de cavaleiros,
bem como gente das comunas, recebendo reforços na
Picardia. E intimareis Roberto a comparecer diante do
Parlamento para prestar contas de seu comportamento. Ao
mesmo tempo, fornecereis auxílio em dinheiro e homens
armados aos burgueses das cidades que se nos
conservarem fiéis. E se Roberto não se submeter, tomarei
então providências para obrigá-lo a isso de outra
maneira... Um príncipe é um homem como qualquer outro,
Gaucher — prosseguiu Filipe, tomando o condestável
pelos ombros. — Pode errar no princípio, mas erro maior
seria obstinar-se nele. O ofício de reinar aprende-se, como
todos os ofícios, e eu ainda tenho o que aprender. Perdoai-
me pelo mau papel que vos obriguei a representar.
Nada emociona tanto um homem idoso quanto a
confissão de inexperiência feita por um mais moço,
sobretudo se esse último é seu superior, socialmente. Sob
suas pálpebras de tartaruga, o olhar de Gaucher velou-se
um pouco.
— Ah! Ia me esquecendo — continuou Filipe. —
Resolvi que sereis o tutor do futuro filho de Madame
Clemência... nosso rei, pois, se Deus quiser que seja um
menino... e seu segundo padrinho, depois de mim (26).
— Monsenhor, Monsenhor Filipe... — disse o
condestável emocionadíssimo.
E refugiou-se nos braços do regente, como se
tivesse sido ele o faltoso.
— Como madrinha — disse ainda Filipe —
decidimos, com o acordo de Madame Clemência, a fim de
pôr um paradeiro em todos esses rumores perversos, que
será designada a Condêssa Mafalda.
Oito dias depois o condestável punha-se outra vez a
caminho.
Roberto d’Artois, como era de prever, recusou
submeter-se à intimação, e continuou a fazer distúrbios, à
frente de sua horda de couraças. O mês de outubro,
entretanto, não foi bom para ele. Era guerreiro violento,
mas não se mostrava bom estrategista, atirava suas
expedições sem ordem, um dia para o norte, no dia
seguinte para o sul, segundo a inspiração do momento.
Reitre antes dos reitres, condottiere antes dos condottieri,
estava melhor preparado para se pôr a serviço alheio,
como força de guerra — o que, aliás, iria fazer quinze
anos mais tarde, em proveito da Inglaterra — do que para
comandar pessoalmente. No condado que considerava seu,
conduzia-se como em território inimigo, levando a vida
selvagem, perigosa, frenética, que era de seu agrado.
Regozijava-se com o terror causado pela sua aproximação,
mas não via o ódio que deixava sobre seus passos. Corpos
demais enforcados em galhos, homens decapitados em
quantidade excessiva, muitíssima gente enterrada viva, em
meio de grandes risos cruéis, excesso de moças
violentadas, que conservavam na pele as marcas das cotas
de malha, porção imensa de incêndios: eis os marcos de
seu caminho. As mães diziam às crianças, para mantê-las
sossegadas, que iam chamar Monsenhor Roberto. Mas se
alguém anunciava a presença dele naquelas paragens,
agarravam imediatamente junto de suas saias toda a
petizada, e corriam a refugir-se na floresta mais próxima.
As cidades protegiam-se com barricadas. Os
artífices, instruídos com o exemplo das comunas
flamengas, aguçavam suas facas, e os escabinos
mantinham contacto com os emissários de Gaucher.
Roberto gostava das batalhas em campo aberto, e
detestava a guerra de sítio. Os burgueses de Saint-Omer
ou de Calais fechavam-lhe as portas no nariz; ele dava de
ombros, dizendo :
— Voltarei outro dia, e rebentarei com todos vós.
E ia divertir-se mais longe.
Mas o dinheiro começava a rarear. Valois não mais
atendia os pedidos, e suas raras mensagens só continham
bons sentimentos e exortações à sensatez. Tolomei, o caro
banqueiro Tolomei, também se fazia de surdo. Estava
viajando... seus funcionários não tinham ordem... O
próprio papa metia-se na questão: tinha escrito
pessoalmente a Roberto e a muitos barões de Artois,
lembrando-lhes seus deveres...
Certa manhã, no fim de outubro, o regente, por
ocasião do conselho, declarou com a grande tranqüilidade
com que costumava acompanhar suas decisões:
— Nosso primo Roberto já zombou por muito
tempo de nosso poder. Já que é preciso que nos
resolvamos pela guerra, levaremos, pois, contra ele, a
auriflama de Saint-Denis, no último dia deste mês, e como
messire Gaucher está ausente, a hoste, que eu próprio
conduzirei, será colocada sob o comando de nosso tio...
Todos os olhares voltaram-se para Carlos de
Valois, mas Filipe continuou:
— ... de nosso tio, Monsenhor d’Evreux.
Entregaríamos de boa vontade essa tarefa a Monsenhor de
Valois, que deu provas de ser grande chefe de guerra, se
ele não tivesse de ir para suas terras do Maine, a fim de
receber, ali, as anatas da Igreja.
— Eu vos agradeço, meu sobrinho — respondeu
Valois — pois sabeis o quanto gosto de Roberto e quanto,
embora desaprovando sua revolta, que é uma grande tolice
de obstinado, seria desagradável para mim precisar erguer
armas contra ele.
O exército que o regente reuniu para se dirigir a
Artois, em nada se parecia à hoste desmesurada que seu
irmão, seis meses antes, tinha enterrado na Flandres. A
força agora reunida compunha-se de tropas permanentes e
de recrutamentos feitos no domínio real. Os pagamentos
eram elevados: trinta soldos por dia para os fidalgos que
tinham companhia de pendão, quinze soldos para os
cavaleiros, três soldos para os peões. Foram convocados
não apenas os nobres, mas os plebeus também. Os dois
marechais, João de Corbeil e João de Baumont, chamado
o Desramado, senhor de Clichy, reuniram as companhias
de vassalos. Os besteiros de Pedro de Galard já estavam
preparados. Godofredo Coquatrix, havia duas semanas,
recebera secretamente instruções para tratar dos
transportes e dos fornecimentos.
No dia 30 de outubro, Filipe de Poitiers empunhou
a auriflama de Saint-Denis. No dia 4 de novembro estava
em Amiens, de onde enviou imediatamente seu segundo
camareiro, Roberto de Gamaches, escoltado por alguns
escudeiros, portando ao Conde de Artois uma derradeira
intimação.
V
A HOSTE DO REGENTE FAZ UM PRISIONEIRO

O RESTÔLHO das colheitas, que já iam


distanciadas, apodrecia, pardacento, sobre os campos
argilosos e despidos. Pesadas e sombrias nuvens rolavam
no céu do outono, e dir-se-ia que lá para o fundo, na
extremidade do planalto, o mundo acabava. O vento, um
tanto acre, soprando em baforadas curtas, trazia ressaibo
de fumaça.
Diante da aldeia de Bouquemaison, no mesmo
lugar onde, três meses antes, o Conde Roberto entrara em
Artois, o exército do regente dispusera-se em ordem de
combate, e os pendões tremulavam na ponta das lanças,
numa frente de cerca de meia légua.
Filipe de Poitiers, rodeado dos principais oficiais,
encontrava-se no centro, a alguns passos da estrada. Tinha
cruzado as mãos enluvadas de ferro sobre o punho da sela
e trazia a cabeça descoberta. Um escudeiro, colocado atrás
dele, carregava--lhe o elmo.
— Foi então aqui que ele te afirmou que viria
render-se? — perguntou o regente a Roberto de
Gamaches, que naquela manhã voltara de sua missão.
— Aqui mesmo, Monsenhor — respondeu o
segundo camareiro. Êle escolheu o local... “No campo,
junto do marco que é rematado por uma cruz... “, disse-
me. Assegurou que estaria aqui à hora da tércia.
— E tens certeza de que nestas redondezas não
existe outro marco rematado por uma cruz? Porque ele
seria bem capaz de nos pregar uma peça, indo apresentar-
se noutro lugar, para que constatassem que eu não me
encontrava ali... Achas, realmente, que virá?
— Penso que sim, Monsenhor, pois me pareceu
muito abalado. Descrevi-lhe vossa hoste, e fiz sentir,
também, que Monsenhor condestável estava nos limites da
Flandres e nas cidades do norte, e que ele seria apanhado
como entre duas pinças, sem mesmo poder fugir pelas
portas. Entreguei-lhe, enfim, a carta de Monsenhor de
Valois, aconselhando-o a render-se sem combate, pois só
poderia ser batido, e informando-lhe estardes tão
indignado contra ele que seria para temer, no caso de o
tomardes pelas armas, que lhe mandásseis cortar a cabeça.
O que pareceu abatê-lo muito.
O regente inclinou um tanto seu comprido busto
sobre o pescoço de seu cavalo. Decididamente, não
gostava de usar aqueles trajos de guerra, cujas vinte libras
de ferro pesavam-lhe sobre os ombros e impediam-no de
esticar-se.
— Então, retirou-se com os barões — prosseguiu
Gamaches — e não sei, realmente, o que disseram entre si.
Mas compreendi que alguns o censuravam, enquanto
outros suplicavam-lhe que não os abandonasse. Então, o
Conde Roberto voltou para junto de mim e deu-me a
resposta que vos trouxe, assegurando-me que respeitava
demais o senhor regente, para desobedecer-lhe fosse no
que fosse.
Filipe de Poitiers continuava incrédulo. Aquela
submissão demasiado fácil o inquietava e fazia-lhe temer
uma armadilha. Franzindo as pálpebras, contemplava a
paisagem triste.
-— O local seria bastante bom para contornar nossa
posição e atacar-nos pelas costas, enquanto estamos aqui
parados, à espera! Corbeil! Desramado! — disse ele,
dirigindo-se a seus dois marechais. — Mandai alguns dos
fidalgos de pendão fazer um reconhecimento das duas
alas, e ordenai que revistem os fossos, para assegurar-vos
de que não há tropa nenhuma oculta por ali, nem
avançando pelos nossos caminhos de retaguarda. E
quando a tércia soar no campanário, se Roberto não se
apresentar — acrescentou, para Luís d’Evreux —
havemos de nos pôr em marcha.
Depressa, porém, ouviram-se gritos nas fileiras das
companhias.
— Aí está ele! Aí está ele!
O regente tornou a apertar as pálpebras, mas nada
viu.
— Em frente, Monsenhor! — disseram-lhe. —
Bem na direção do pescoço do vosso cavalo, na crista!
Roberto d’Artois chegava sem companheiros, sem
escudeiro, sem mesmo um criado. Avançava a passo, ereto
sobre seu imenso cavalo, e parecia, naquela solidão, ainda
maior do que era. Sua alta silhueta destacava-se,
avermelhada, contra o céu de tormenta, e a ponta da sua
lança enganchava-se nas nuvens.
— Ainda é uma forma de zombar de vós,
Monsenhor, isso de aparecer dessa maneira.
— Ora! Que zombe! Que zombe de mim! —
respondeu Filipe de Poitiers.
Os cavaleiros enviados para reconhecimento
voltavam a galope, assegurando que as circunvizinhanças
estavam perfeitamente tranqüilas.
— Pensei que ele fosse mostrar-se mais
encarniçado na desesperança — disse o regente.
Um outro, querendo mostrar arrogância, teria, sem
dúvida, avançado sozinho para aquele homem sozinho.
Filipe de Poitiers, entretanto, tinha outra concepção de sua
dignidade, e não era um gesto de cavalaria que lhe
importava fazer, mas um gesto de rei. Esperou, pois, sem
se mover de um passo que fosse, que Roberto d’Artois,
todo enlameado, todo afogueado, parasse diante dele.
O exército inteiro retinha o fôlego, e só se ouvia o
retinir dos freios na boca dos cavalos.
O gigante atirou sua lança ao chão. O regente
contemplou a arma deitada sobre o restôlho, e nada disse.
Roberto desatou da sela seu elmo e seu montante, e
atirou-os para junto da lança, no chão.
O regente continuava calado. Não levantara os
olhos para Roberto, mantendo seus olhos presos às armas,
como se esperasse outra coisa.
Roberto d’Artois resolveu descer do cavalo,
avançou dois passos e, com os nervos fremindo de cólera,
terminou por dobrar um joelho em terra, a fim de
encontrar os olhos do regente.
— Nobre primo... — exclamou, abrindo os grandes
braços.
Mas Filipe deteve-o.
— Meu primo, não tendes fome? — perguntou.
E como o outro, que esperava uma grande cena,
com troca de palavras nobres, soerguimento, abraço e
perdão, ficasse inteiramente estupefato, Filipe
acrescentou:
— Vamos, subi para a sela, e sigamos o mais
depressa possível para Amiens, onde vos ditarei a minha
paz. Marchareis a meu lado, e comeremos no caminho...
Héron! Gamaches!
Apanhai as armas de meu primo.
Roberto d’Artois demorava-se a montar a cavalo, e
olhava em tôrno de si.
— Que procurais? — perguntou-lhe ainda o
regente.
— Não procuro coisa alguma, Filipe. Contemplo
este campo, para jamais esquecê-lo.
Colocou a mão sobre o peito, no lugar em que
podia sentir, sob a broigne, o saquinho de veludo no qual
havia encerrado, como se fossem uma relíquia, as espigas
agora reduzidas a pó, que colhera naquele mesmo lugar,
em certo dia de verão. Um sorriso cheio de soberba passou
por seus lábios.
Quando começou a trotar ao lado do regente,
recuperou seu aprumo habitual.
— Reunistes um belo exército, meu primo, para
fazer apenas um prisioneiro — disse ele, em tom de
zombaria.
— A tomada de vinte tropas de pendão, meu primo
— respondeu Filipe, no mesmo tom — não me daria hoje
o mesmo prazer que me dá a vossa companhia... Dizei-me,
pois, o que vos levou a render-vos tão depressa, porque,
enfim, embora o número seja maior do meu lado, sei que
não é coragem que vos falta!
— Pensei que, ao nos enfrentarmos numa guerra,
iríamos fazer sofrer demais a gente pobre.
— Eis que vos mostrais subitamente sensível,
Roberto — disse Filipe de Poitiers. — Não me consta que
nestes últimos tempos vossas manifestações caridosas
contem-se em quantidade.
— Nosso Santo Padre, o Papa, houve por bem
escrever-me, para recordar-me meus deveres.
— E devoto também, agora! — exclamou o
regente.
— Meditei muito a respeito da carta desse bom
papa... que foi eleito com tanta facilidade, segundo me
disseram. E como os seus termos pareciam-se bastante às
vossas intimações, resolvi mostrar-me, ao mesmo tempo,
súdito leal e bom cristão.
— Coração, religião e lealdade! Estais bem
mudado, meu primo!
Ao mesmo tempo, olhando para o grande queixo do
gigante, Filipe dizia consigo mesmo: “Caçoa, caçoa: daqui
a pouco estarás menos animado, quando souberes que paz
irei impor-te!”
Mas, diante do conselho que foi reunido assim que
chegaram a Amiens, Roberto conservou a mesma atitude.
Aceitou tudo quanto lhe pediram, sem se rebelar, sem
fazer chicana, a ponto de parecer que nem mesmo ouvia a
leitura que lhe faziam do tratado.
Comprometia-se a devolver “todos os castelos,
fortalezas, terras senhoriais e todas as coisas que tivesse
tomado ou ocupado”. Dava garantia da restituição de
todos os lugares tomados pelos seus partidários, declarava
tréguas com Mafalda até as próximas Páscoas. Nesse
entretempo a condêssa daria conhecimento de sua
vontade, e a corte dos pares se pronunciaria sobre os
direitos das duas partes. O regente, por ora, governaria
diretamente Artois, pondo ali os guardas, oficiais e
castelões que desejasse. Enfim, até a decisão dos pares, as
rendas do condado seriam recebidas pelo Conde d’Evreux
e... pelo Conde de Valois.
Ouvindo aquela última cláusula, Roberto
compreendeu a que preço fora comprada a defecção de
seu aliado principal. Mas mesmo então nada deixou
transparecer e assinou o documento completo.
Aquela submissão excessiva começava a inquietar
o regente. “Que golpe estaria maquinando como
retribuição do que recebe agora?”, dizia Filipe consigo.
Como estava com pressa de voltar a Paris, para o
parto da rainha, deixou a seus dois marechais, com uma
parte das tropas assoldadas, o cuidado de ir render o
condestável em Artois e de velar, no local, pela execução
do tratado. Roberto assistiu, sorrindo, à partida dos
marechais.
Seu cálculo era simples. Vindo render-se só, evitara
que suas tropas fossem destruídas. Fiennes, Souastre,
Picquigny e outros iam continuar uma guerrazinha de
perturbações e desgaste. O regente não poderia armar
todas as quinzenas uma expedição daquelas: o Tesouro
não agüentaria tal coisa. Roberto tinha, pois, vários meses
de tranqüilidade diante de si. No momento, preferia voltar
para Paris, e achava muito oportuna a ocasião que lhe
forneciam para essa volta. Pois podia muito bem acontecer
que dentro em breve não houvesse mais regente, nem
houvesse mais Mafalda.
Com efeito — e era essa a verdadeira razão de seu
sorriso — Roberto tinha tornado a encontrar a dama de
Fériennes, fornecedora de venenos da Condêssa de Artois.
Encontrara-a, mandando seguir dois espiões do regente,
que também a procuravam. Isabel de Fériennes e seu filho
tinham sido presos quando vendiam o material necessário
a um encantamento. O pessoal de Roberto suprimira os
espiões do regente, e agora a feiticeira, depois de ter
ditado bela e completa confissão, estava guardada num
castelo de Artois.
“Terás motivo para ficar bem contente, meu
primo”, dizia consigo Roberto, olhando para Filipe,
“quando eu mandar João de Varennes trazer aquela
mulher, para apresentá-la no conselho dos pares, a fim de
que diga como mandaste assassinar teu irmão! E nem
mesmo o teu caro papa poderá fazer coisa alguma nesse
caso!”
Durante toda a viagem o regente conservou
Roberto a seu lado; nas paradas comiam na mesma mesa,
e à noite, nos conventos ou nos castelos reais, dormiam
em quartos contíguos, e os numerosos servidores do
regente cercavam Roberto, trazendo-o sob estreita
vigilância. Mas comendo, bebendo e dormindo junto do
inimigo, não se pode evitar certos sentimentos humanos
com relação a ele. Os dois primos jamais haviam
conhecido semelhante intimidade. O regente não parecia
ver com particular rigor a pessoa de Roberto, pelas fadigas
e despesas que lhe ocasionara, e dava, mesmo, a
impressão de divertir-se com os pesados gracejos do
gigante, e com seus ares de falsa franqueza.
“Um pouco mais, e ele vai gostar realmente de
mim, o velhaco!”, dizia Roberto consigo. “Como eu o
engano, como eu o engano bem!”
Na manhã do dia 11 de novembro, quando
chegavam à porta de Paris, Filipe parou subitamente seu
cavalo.
— Meu bom primo, há dias, em Amiens, deste-vos
como garantia da entrega a meus marechais de todos os
castelos. Ora, venho de saber, com desgosto, que vários de
vossos amigos não obedecem ao tratado e recusam-se a
entregar as cidadelas que ocupam.
Roberto sorriu, e fêz um gesto de impotência com
as mãos.
— Ficastes como penhor do cumprimento —
repetiu Filipe.
— Pois sim, meu primo, assinei tudo quanto
desejastes.
Mas como me privastes de todo poder, os vossos
marechais é que devem impor a obediência.
O regente afagou, pensativamente, a nuca de seu
cavalo.
— É verdade, Roberto — disse ele — que
costumais chamar-me, freqüentemente, Filipe Portas-
Fechadas?
— É verdade, meu primo, é verdade — disse o
outro, rindo. — Ao que parece, sabeis servir-vos muito
bem das portas para governar.
— Pois bem, meu primo — disse o regente — ireis,
então, instalar-vos na prisão do Châtelet, e ali ficareis até
que o último castelo de Artois me seja entregue.
Roberto, pela primeira vez depois de sua rendição,
empalideceu um tanto. Todo o seu plano ruía, e a dama de
Fériennes não lhe poderia servir tão cedo.
Terceira Parte
Do Luto à Sagração

I
UMA AMA PARA O REI

JOÃO I, rei da França, filho póstumo de Luís X, o


Turbulento, e da Rainha Clemência da Hungria, nasceu na
noite de 13 para 14 de novembro de 1316, no castelo de
Vincennes.
A notícia foi imediatamente proclamada, e os
senhores vestiram seus trajos de seda. Nas tavernas, os
vagabundos e os bêbados, para os quais todos os
acontecimentos eram pretextos para beber, começaram
desde meio-dia a embriagar-se e vociferar. E os
negociantes de objetos finos, ourives, comerciantes de
sedas, fabricantes de lãs preciosas e passamanarias,
vendedores de especiarias, de peixes raros e de produtos
de ultramar, esfregaram as mãos, calculando as despesas
que os regozijos iriam acarretar.
As ruas sorriam. As pessoas abordavam-se,
dizendo: — Então, meu compadre, temos um rei!
Os parisienses sentiam-se animados, e as mulheres
de vida airada, de cabelos louros, bem cedo se arranjaram
naquele dia, apesar do vento que se metia em corrente, por
trás de Notre-Dame, nas sórdidas vielas onde um edital de
São Luís as havia confinado.
Na hospedaria do convento das Clarissas, Maria de
Cressay, quatro dias antes, tinha dado à luz um
meninozinho, que pesava bem suas oito libras,
prometendo ser tão louro quanto a mãe, e que mamava, de
olhos fechados, com a voracidade de um cãozinho recém-
nascido.
A todo o momento, noviças encapuçadas de branco
entravam na cela de Maria para contemplar-lhe o rosto
radioso enquanto aleitava o filho, para olhar aquele seio
róseo, abundante, florescente, para admirar, elas que
estavam destinadas a uma virgindade definitiva, o milagre
da maternidade representado naquela mulher cheia de
vida.
Pois se acontecia, às vezes, que uma freira pecasse,
isso não se dava tão freqüentemente como o asseguravam
os verse-j adores em suas canções, e um recém-nascido no
convento das Clarissas não era, apesar de tudo, coisa
comum.
Reinava grande animação na casa, naquele dia, pois
o esmoler havia comunicado o nascimento do rei. A
alegria da cidade penetrava até mesmo na clausura.
— O rei chama-se João, como meu filho — dizia
Maria.
Via naquilo um presságio feliz. Toda uma geração
iria nascer e receber o nome de batismo do rei, tanto mais
atraente quanto era novo para a monarquia. A todos os
pequenos Filipes, a todos os pequenos Luises, sucederia
uma infinidade de pequenos Joões, através do reino. “O
meu é o primeiro”, pensava Maria.
O precoce crepúsculo do outono começava a
descer, quando uma jovem freira entrou na cela:
— Dama Maria — disse ela — a madre abadêssa
manda chamar-vos ao parlatório. Alguém vos procura.
— Quem é?
— Não sei, não vi. Mas penso que ides partir.
O sangue subiu às faces de Maria.
— É Guccio! É Guccio! É o pai... — explicou às
noviças. — É meu esposo que nos vem buscar, com
certeza.
Fechou a abertura de seu corpinho, enrolou
vivamente os cabelos, olhando-se na vidraça da janela que
lhe servia de escuro espelho, colocou o manto sobre os
ombros, hesitou um instante diante do berço colocado no
chão. Desceria com a criança, para oferecer
imediatamente a Guccio a maravilhosa surpresa?
— Vede como dorme, o anjinho — disseram as
noviças. -— Não o acordeis, que poderia resfriar-se.
Correi: nós tomaremos conta dele.
— Não o tireis do berço, não toqueis nele! —
recomendou Maria.
Descendo a escada, já ia torturada pela inquietação
maternal. “Contanto que não comecem a brincar com ele e
não o deixem cair!” Mas seus pés voavam para o
parlatório, e ela admirava-se de sentir-se tão leve.
Na sala branca, decorada apenas com um grande
crucifixo e dois círios que duplicavam as formas de
sombras imensas, a madre abadêssa, com as mãos
cruzadas dentro das mangas, falava com a Senhora de
Bouville.
Vendo a mulher do curador, Maria sentiu mais que
uma decepção: teve a certeza imediata, inexplicável,
absoluta, de que aquela pessoa seca, de rosto cortado por
rugas verticais, lhe trazia desgraça.
Outra que não fosse Maria contentar-se-ia em
pensar que não gostava da Senhora de Bouville; mas em
Maria de Cressay todos os sentimentos tornavam-se
apaixonados, e ela dava a suas simpatias ou a suas
aversões a força de sinais do destino. “Estou certa de que
vem me maltratar”, disse a moça consigo.
Com seu olhar agudo, sem benevolência, a senhora
de Bouville examinava-a dos pés à cabeça.
— Há apenas quatro dias destes à luz — exclamou
— e estais viçosa e rosada como uma eglantina! Eu vos
felicito, minha bela, pois já pareceis disposta a recomeçar.
Deus, na verdade, trata com muita misericórdia aos que
desprezam seus mandamentos e parece reservar as provas
para as mais merecedoras. Pois acreditais, ma mère —
continuou a Senhora de
Bouville, voltando-se para a abadêssa — que nossa
pobre rainha teve dores durante trinta horas? Seus gritos
ainda ressoam nos meus ouvidos. O rei apresentou-se de
nádegas, e foi preciso que o retirassem a ferros. Por pouco
não morria, e a mãe também. Foi o desgosto sofrido pela
rainha com a morte do esposo que causou isso tudo, e para
mim, considero milagre que a criança tenha chegado a
nascer. Mas quando o destino quer, é preciso confessar
que tudo corre mal! Eudelina, a roupeira... sabeis muito
bem...
A abadêssa confirmou discretamente, com um
movimento de cabeça. Mantinha no convento, entre as
pequenas noviças, uma menina de onze anos que era filha
natural do Turbulento e de Eudelina.
— ... ela ajudava muito a rainha, e Madame
Clemência queria-a constantemente à sua cabeceira —
continuou a Senhora de Bouville. — Pois bem! Eudelina
partiu um braço, caindo de um escabêlo e tiveram que
levá-la para o Hospital. E agora, para completar, também a
ama que tinham escolhido, e que há uma semana estava à
espera, viu seu leite secar de repente. Fazer-nos isso em
semelhante ocasião! Pois a rainha, é evidente, não se acha
em condições de amamentar: está tomada de febre. Meu
pobre Hugo vira, revira, esfalfa-se, e não sabe como fazer,
pois esses negócios não são para os homens. Quanto ao
sire de Joinville, que não tem mais vista alguma nem
qualquer resto de memória, tudo quanto se pode desejar a
seu respeito é que não expire em nossos braços. Em outras
palavras, ma mère, estou sozinha para providenciar tudo.
Maria de Cressay perguntava-se por que a
tornavam assim confidente dos dramas reais, quando a
Senhora de Bouville, continuando sua tagarelice, disse,
aproximando-se dela:
— Felizmente, tenho cabeça e lembrei-me, a
propósito, desta moça que trouxe para cá, e que já devia
ter tido seu filho... Sem dúvida amamentais bem e vosso
filho prospera a olhos vistos, não é verdade?
Parecia censurar à jovem mãe sua boa saúde.
— Vejamos isso de mais perto — acrescentou.
E com mão prática, como se sopesasse frutas no
mercado, apalpou os seios de Maria. Esta teve um
movimento de repulsa que a fêz dar um salto para trás.
— Podeis muito bem amamentar dois — disse a
Senhora de Bouville. — Vinde, pois, comigo, minha boa
pequena, para dar vosso leite ao rei.
— Não posso, Madame! — exclamou Maria, antes
mesmo de saber como poderia justificar sua recusa.
— E por que não o poderíeis? Por causa de vosso
pecado?
Sois ainda assim de família nobre e, depois, esse
pecado não impede que sejais rica de leite. Será uma
forma de vos redimirdes um pouco.
— Eu não pequei, Madame, eu sou casada!
— Sois a única a afirmar tal coisa, minha pobre
pequena!
Antes de mais nada, se fósseis casada, não estaríeis
aqui! E, aliás, a questão não é essa. Precisamos de uma
ama...
— Não posso, porque justamente espero meu
esposo que deve vir buscar-me. Êle mandou-me dizer que
o papa prometeu-lhe ...
— O papa!... O papa!... — exclamou a mulher do
curador. — Mas ela perdeu o juízo, por minha palavra!
Pensa que está casada, pensa que o papa está se
preocupando com ela... Cessai de nos contar vossas tolices
e não blasfemeis contra o nome do nosso Santo Padre.
Vireis para Vincennes imediatamente.
— Não, Madame, não irei — replicou Maria, com
obstinação.
A cólera subiu à cabeça da pequena Senhora de
Bouville, que segurou Maria pelo alto de seu vestido e
começou a sacudi-la.
— Vejam só a ingrata! Dá-se ao deboche, deixa-se
engravidar! Cuidamos dela, evitamos que caia nas mãos
da justiça, colocamo-la no melhor convento, e quando
vimos pedir-lhe que sirva de ama ao rei da França, a
sirigaita recalcitra! Que boa súdita temos! Compreendeis
que vos oferecem uma honra, pela qual as maiores damas
do reino se bateriam?
— Ora, Madame! — respondeu-lhe Maria, em
pleno rosto.
— Por que não vos dirigis, então, a essas grandes
damas que são mais dignas do que eu?
— Ë que não pecaram no momento oportuno, as
tolas!
E, aliás, por que estou me dando ao trabalho de
responder?
Já falamos bastante, tratai de seguir-me.
Se o tio Tolomei ou o Conde de Bouville em
pessoa, tivessem vindo fazer a Maria de Cressay o mesmo
pedido, ela aceitaria segui-los sem dúvida alguma. Seu
coração era generoso e a jovem ter-se-ia oferecido para
amamentar qualquer criança, num momento de aflição.
Com maiores razões, portanto, amamentaria o filho da
rainha. O orgulho, o interesse também, levariam-na a isso
tanto quanto a bondade. Ama do rei, sendo Guccio donzel
do papa, todas as suas dificuldades seriam anuladas e teria
fortuna feita. Mas a mulher do curador não soubera agir
com inteligência. Porque a tratavam, não como uma mãe
feliz, mas como uma delinqüente, não como uma mulher
digna, mas como uma serva, porque continuava a ver na
Senhora de Bouville uma mensageira da má sorte, Maria
esquecia-se de pensar e obstinava-se. Seus grandes olhos
azul-escuros brilhavam de mêdo e de indignação.
— Conservarei meu leite para meu filho — disse.
— É o que vamos ver, malvada! Pois que não
obedeceis espontaneamente, vou chamar os escudeiros
que me esperam e que vos levarão à força.
A madre abadêssa interveio. O convento era um
asilo e não podia aceitar a idéia de que o violassem.
— Não vos asseguro que aprove a conduta da
minha parente — disse ela — mas Maria foi entregue à
minha guarda...
— Por mim, ma mère! — exclamou a Senhora de
Bouville.
— Não é uma razão para vir constrangê-la, dentro
destas paredes. Maria só sairá por sua livre vontade, ou
por ordem da Igreja.
— Ou por ordem do rei! Porque sois um convento
real, ma mère, não vos esqueçais disso. Estou agindo em
nome de meu esposo. Se quereis uma ordem do
condestável, que é tutor do rei e que acaba de voltar para
Paris, ou então uma ordem do próprio regente, messire
Hugo irá pedir que a assinem. Isso nos fará perder três
horas, mas serei obedecida.
A abadêssa tomou a Senhora de Bouville à parte e
deu-lhe a conhecer que o que Maria dissera a propósito do
papa não era inteiramente falso.
— E que me importa! — disse a Senhora de
Bouville. — É a vida do rei que devo assegurar e só
disponho dela.
Saiu, chamou seus homens de escolta e mandou
que agarrassem a rebelde.
— Sois testemunha, Madame — disse a abadêssa
— que não estou de acordo com esse rapto.
Maria, debatendo-se através do pátio, entre dois
escudeiros que a arrastavam, gritava:
— Meu filho! Quero meu filho!
— É verdade — disse a Senhora de Bouville. —
Precisamos deixá-la apanhar o filho. Rebelando-se dessa
maneira levou-nos a esquecer de tudo.
Alguns minutos depois, Maria, tendo reunido
rapidamente suas roupas, e mantendo o recém-nascido
apertado contra o peito, cruzava soluçando os portais da
hospedaria.
Fora, duas liteiras atreladas esperavam.
— Vejam! — disse a Senhora de Bouville. —
Viemos buscá-la de liteira, como se fosse uma princesa, e
ela grita e põe mil embaraços.
Envolvida pela noite, sacudida pelo trote das mulas
durante mais de uma hora, numa caixa de madeira e
tapeçaria com cortinas que se sacudiam e que deixavam
entrar o frio de novembro, Maria dava graças a seus
irmãos por terem-na obrigado a vestir o grande manto
quando partira de Cressay. Sofrerá bastante calor, sob o
tecido pesado, chegando a Paris! “Então, jamais sairei de
lugar algum sem desgraças e sem lágrimas?”, dizia
consigo mesma. “Que terei feito para que se encarnicem
assim contra mim?”
O recém-nascido dormia, envolto nas grandes
pregas do manto. Sentindo aquela pequena vida,
inconsciente e tranqüila, aninhada no côncavo de seu
peito, Maria, lentamente, recuperava a razão. Ia ver a
Rainha Clemência, havia de falar-lhe de Guccio. Mostrar-
lhe-ia o relicário. A rainha era jovem, bela, compassiva
para com os infortúnios... “A rainha... é o filho da rainha
que vou amamentar!”... pensava Maria, compreendendo,
enfim, tudo quanto havia de estranho e inesperado naquela
aventura que a autoridade agressiva da Senhora de
Bouville só lhe mostrara sob um aspecto odioso...
O ranger de uma ponte levadiça que baixavam, o
passo surdo dos cavalos sobre a madeira dos pranchões,
depois o estrépito das ferraduras sobre as pedras de um
pátio... Maria foi convidada a descer, passou entre
soldados armados, seguiu um corredor de pedra, mal
iluminado, viu aparecer um homem gordo de cota de
malhas, no qual reconheceu o Conde de Bouville. Em
torno de Maria cochichavam sem cessar e ela ouviu a
palavra “febre” pronunciada muitas vezes. Fizeram-lhe
sinal para caminhar na ponta dos pés, e um reposteiro foi
levantado.
Apesar da doença, os costumes, na câmara da
parturiente, tinham sido respeitados. Mas, como a estação
das flores já havia passado, pelo quarto só se via uma
tardia folhagem amarelada, que começava a apodrecer sob
as pisaduras. Em torno do leito, cadeiras haviam sido
dispostas para os visitantes que não viriam. Uma parteira
esfarelava entre os dedos algumas ervas aromáticas. Na
lareira, sobre tripés de ferro, ferviam decoctos
acinzentados. O aposento estava iluminado apenas pelas
chamas da lareira e pela lamparina de azeite, colocada
sobre o leito.
Do berço, instalado a um canto, não vinha ruído
algum.
A Rainha Clemência jazia sobre a cama, deitada de
costas, as coxas levantadas pela dor, sob os lençóis. As
maçãs do seu rosto estavam vermelhas, os olhos
brilhantes. Maria viu, principalmente, a imensa cabeleira
dourada, espalhada sobre os travesseiros, e aquele olhar
ardente, que não parecia ver o que contemplava.
— Tenho sede... muita sede... — gemia a rainha.
A parteira cochichou para a Senhora de Bouville:
— Teve tremores por mais de uma hora, e seus
dentes castanholavam. Seus lábios ficaram roxos, como no
rosto dos mortos. Pensamos que fosse morrer. Fizemos-
lhe uma boa fricção em todo o corpo, e então a pele
começou a ferver, como estais vendo. Suou tanto que será
preciso mudar-lhe os lençóis.
Mas não encontramos as chaves da rouparia, que
estavam com Eudelina.
— Eu vo-las darei — respondeu a Senhora de
Bouville.
Levou Maria para um quarto vizinho, onde o fogo
também estava aceso.
— Ficareis instalada aqui — disse.
Trouxeram o berço real. Entre todas as roupas que
o envolviam, mal se via o rei. Tinha o nariz minúsculo,
pálpebras espessas e fechadas, e dormitava, franzino, em
plácida imobilidade. Era preciso chegar muito perto dêle,
para ter a certeza de que respirava. De vez em quando
fazia uma leve careta, uma contração dolorosa que dava
algum relevo a seus traços.
Diante daquele pequeno ser, cujo pai morrera, cuja
mãe talvez fosse morrer, e que dava ele próprio tão poucos
sinais de vida, Maria de Cressay sentiu-se tomada de
intensa piedade. “Eu o salvarei, eu farei com que fique
grande e forte!”, pensou.
E como não havia senão um berço, deitou seu
próprio filho ao lado do rei.
II
DEIXEMOS DEUS AGIR

HÁ VINTE e quatro horas que a Condêssa Mafalda


estava tomada de cólera.
Diante de Beatriz d’Hirson, que a ajudava a vestir-
se para o batismo do rei, deixava explodir sua raiva e seu
despeito.
— Quem poderia acreditar, sabendo do lastimoso
estado de Clemência, que ela chegaria ao termo de sua
gravidez? Outras mais fortes abortam antes. Mas, não; ela
agüentou seus nove meses! A criança bem podia ter
nascido morta, não podia? Qual! seu rebento vive. Podia,
ao menos, ser uma menina, não é verdade? Mas, não;
havia de ser um rapaz! Valeu a pena, minha pobre Beatriz,
termos feito tanto e corrido tão grandes perigos, que aliás
ainda não estão afastados, para sermos ludibriadas dessa
maneira?
Pois Mafalda estava, agora, profundamente
convencida de ter assassinado o Turbulento para dar a seu
genro e à sua filha a coroa da França. Quase lamentava
não ter matado a esposa junto com o marido, e todo o seu
ódio voltava-se agora para o recém-nascido que ainda não
chegara a ver, para o bebê do qual seria madrinha dentro
de poucos minutos, e cuja existência mal desabrochada
punha um freio às suas ambições.
Poderosa entre os poderosos, riquíssima, despótica,
Mafalda tinha verdadeira natureza de criminosa. O
assassínio era o seu meio predileto para torcer o destino
em seu proveito: gostava de afagar o projeto, aspirar-lhe a
lembrança; dali retirava a excitação dos terrores, os
deleites da astúcia, a alegria dos secretos triunfos. Se um
primeiro assassinato não tivera todo o resultado com que
contara, começava a acusar a sorte de injustiça e a tomar-
se de piedade por si própria, procurando muito
naturalmente a nova cabeça que se erguia diante dela, para
abatê-la.
Beatriz d’Hirson, adiantando-se aos pensamentos
da condêssa, disse lentamente, baixando os cílios longos:
— Guardei, Madame, um pouco daquela boa
farinha que vos serviu tão bem para os confeitos do rei,
nesta primavera.
— Fizeste bem, fizeste bem — respondeu Mafalda.
— Mais vale estar sempre prevenida: temos tantos
inimigos!
Beatriz, embora tivesse boa altura, levantou os
braços para arranjar as fitas sob o queixo da condêssa e
colocar-lhe o manto sobre os ombros.
— Tereis a criança nos braços, Madame. Talvez
não haja tão cedo outra ocasião... — disse. — É um pó,
apenas, como sabeis, e mal se pode percebê-lo sobre o
dedo.
Falava com voz suave, tentadora, como se se
referisse a uma gulodice.
— Ah, não! — exclamou Mafalda. — Durante um
batismo, não. Isso nos traria desgraça!
— E por quê? Seria uma alma sem pecado que
devolveríeis ao céu.
— E depois, sabe Deus como meu genro receberia
a coisa. Não me esqueci ainda da sua fisionomia, quando o
esclareci sobre o fim de seu irmão, e a espécie de frieza
com que me trata depois disso... Há muita gente, gente
demais, acusando-me em voz baixa. Um rei por ano é o
bastante. Suportemos, por ora, esse que acaba de nascer.
Foi uma cavalgada mesquinha, quase clandestina, a
que partiu para Vincennes para fazer de João I um cristão.
E os barões, que haviam preparado seus trajos de gala,
esperando o convite para uma grande cerimônia, ficaram
decepcionados.
A doença da rainha, o fato de ter o nascimento
ocorrido fora de Paris, a névoa do inverno e, enfim, a
pouca alegria que o regente experimentava pelo fato de ter
um sobrinho, tudo se conjugava para que o batismo fosse
despachado rapidamente, sem formalidades.
Filipe chegou a Vincennes acompanhado de sua
esposa Joana, Mafalda, Gaucher de Châtillon e alguns
escudeiros encarregados de segurar os cavalos. Não se
dera ao trabalho de prevenir o resto da família. Aliás,
Valois percorria seus feudos para conseguir dinheiro.
Evreux conservara-se em Amiens para terminar a questão
de Artois. Quanto a Carlos de La Marche, Filipe tivera
com ele, na véspera, violenta altercação. La Marche, em
honra do nascimento do rei, pedira a seu irmão o pariato,
assim como um acréscimo de seu apanágio e de suas
rendas.
— Ora, meu irmão! — respondera Filipe. — Eu
sou apenas o regente, e só o rei poderá dar-vos o pariato...
quando atingir a maioridade.
As primeiras palavras de Bouville, acolhendo o
regente no antepátio do solar, foram para perguntar:
— Ninguém tem armas, Monsenhor? Ninguém traz
adaga, estilete, ou misericórdia*?
Não se podia saber se essa dúvida referia-se ao
pessoal da escolta ou aos próprios padrinhos.
— Não tenho o hábito, Bouville — respondeu o
regente — de me fazer seguir por escudeiros armados.
Bouville, tímido e obstinado ao mesmo tempo,
pediu aos escudeiros que permanecessem no primeiro
pátio. Aquele zelo na prudência começou a agastar o
regente.
— Aprecio, Bouville — disse ele — o cuidado com
que velastes pelo ventre da rainha. Não sois mais curador,
entretanto, e a mim próprio e ao condestável corresponde,
agora, velar pelo rei. Deixamos-vos o encargo, mas não
deveis abusar dele.
— Monsenhor! Monsenhor! — balbuciou Bouville
— não tinha a intenção de ofender-vos. Mas dizem tanta
coisa no reino... Enfim, quero que vejais quanto sou fiel à

*
Punhal usado pelos cavaleiros, e com o qual matavam seus
adversários, quando estes não pediam misericórdia.
minha tarefa e como compreendo a honra que representa
para mim.
Era pouco hábil na dissimulação e não podia deixar
de olhar meio de lado para Mafalda, baixando
imediatamente os olhos.
“Positivamente, todos e cada um suspeitam e
desconfiam de mim”, pensou a condêssa.
Joana de Poitiers fingia nada perceber. Gaucher de
Châtillon, que estava fora do assunto, rompeu o
constrangimento, dizendo:
— Vamos, Bouville, não nos deixeis gelar aqui.
Entremos, pois.
Foram para junto da cabeceira da rainha, e as
notícias dadas pela Senhora de Bouville foram bastante
alarmantes: a febre continuava a devorar a doente, que se
queixava de atrozes dores de cabeça, e era a todo o
momento sacudida pelas náuseas.
— Seu ventre recomeça a estufar, como se ainda
não tivesse dado à luz — explicou Madame de Bouville.
— Não consegue dormir, suplica que mandem parar os
sinos que lhe soam nos ouvidos, e fala-nos sem parar,
como se não se dirigisse a nós, mas a sua avó, Madame de
Hungria, ou ao Rei Luís, seu falecido esposo. É uma
lástima ouvi-la perder assim a razão, sem conseguir que se
cale.
Vinte anos de ofício de camareiro junto a Filipe, o
Belo, tinham dado ao Conde de Bouville longa
experiência das cerimônias reais. Quantos batismos já não
tinha organizado?
Os objetos rituais foram trazidos aos presentes.
Bouville e os dois gentis-homens da guarda prenderam ao
pescoço compridas toalhas brancas, cujas pontas
mantinham estendidas diante de si para cobrir, um, a bacia
cheia de água benta, outro, a bacia vazia e, o terceiro, a
taça que continha o sal.
A parteira que trouxera a criança ao mundo tomou
a coifa de batismo com que se cobriria a cabeça da criança
depois da unção.
Depois, adiantou-se a ama, trazendo ao colo o rei.
“Oh! Que bela moça!”, pensou o condestável.
A Senhora de Bouville tinha encontrado para Maria
um vestido de veludo rosa, com um pouco de pele na gola
e nos punhos, e fizera a jovem ensaiar longamente os
gestos que teria de fazer. O bebê estava enrolado num
manto duas vezes maior do que ele próprio, sobre o qual
tinham pousado um véu de seda violeta, que tombava até
o chão como uma cauda.
Dirigiram-se todos para a capela do castelo.
Escudeiros abriam a marcha, levando círios acesos. O
senescal de Joinville vinha por último, amparado e ainda
assim cambaleante. Apesar disso, saíra um pouco de seu
torpor habitual, pois o recém--nascido chamava-se João,
como ele próprio.
A capela estava forrada com tapeçarias e a pedra da
pia batismal fora ornamentada com veludo violeta. Ao
lado, encontrava-se uma mesa onde tinham colocado um
forro de menu-vair recoberto com uma toalha fina. Sobre a
toalha, almofadas de seda. Algumas estufas com brasas
não bastavam para dissipar a úmida friagem.
Maria depôs a criança sobre a mesa, para despi-la.
Atenta, a fim de não errar, tinha o coração batendo e mal
conseguia distinguir os rostos em torno dela, de tal forma
sentia-se emocionada. Jamais imaginara que ela, moça
expulsa da casa de sua família, seria indicada para
representar papel tão importante no batismo de um rei,
entre o regente da França e a Condêssa d’Artois.
Deslumbrada pela modificação da sorte, estava agora
cheia de gratidão pela Senhora de Bouville, e já lhe pedira
desculpas pela insubmissão da véspera.
Desenrolando as faixas, ouviu o condestável
perguntar qual era o seu nome e de onde vinha: sentiu-se
corar.
O capelão da rainha soprara quatro vezes sobre o
corpo do recém-nascido, como nos quatro braços de uma
cruz, para tirar dele o demônio, pela virtude do Espírito
Santo. Depois, cuspindo sobre o próprio dedo indicador,
passara-lhe a saliva nas narinas e nas orelhas, para
significar que ele não devia ouvir as vozes do diabo, nem
respirar as tentações do mundo e da carne.
Filipe e Mafalda levantaram o reizinho, um pelas
pernas e a outra pelos ombros. O regente, com seus olhos
míopes, observava com insistência o minúsculo sexo da
criança, aquele verme rosado que punha por terra toda a
sua inteligente combinação sucessória, aquele símbolo
irrisório da lei dos varões, aquele ínfimo e intransponível
obstáculo entre ele a coroa.
“Seja como fôr”, pensava Filipe, para consolar-se,
“serei regente durante quinze anos. Em quinze anos
muitas coisas podem acontecer: eu próprio estarei vivo,
dentro de quinze anos? E esta criança viverá até então?”
Mas regência não é realeza.
A criança conservara-se bastante calma e mesmo
sonolenta, durante os ritos preliminares. Não fêz ouvir sua
voz senão quando o mergulharam inteiramente na água...
Nessa ocasião, porém berrou francamente, quase
sufocando, e suas lágrimas misturaram-se à água do
batismo. Por três vezes, enquanto os outros padrinhos e
madrinhas, Gaucher, Joana, os Bouville, o senescal,
estendiam suas mãos sobre o pequeno corpo nu, foi
mergulhado, a princípio com a cabeça voltada para o
oriente, depois para o norte, depois para o sul, a fim de
representar o desenho da Cruz (27).
Saindo do banho glacial, a criança acalmou-se e
aceitou pacificamente o Santo Crisma com que lhe
ungiram a fronte. Colocaram-no sobre as almofadas, e
Maria de Cressay começou a secá-lo, enquanto os
presentes juntavam-se mais perto da estufa cheia de
brasas.
Subitamente, a voz de Maria de Cressay encheu a
capela:
— Senhor! Senhor! Êle está morrendo! — gritou
ela.
Todos se atiraram para a mesa. O rei-bebê tinha
tomado uma coloração azulada, que escurecia de instante
a instante, chegando quase a tornar-se negro. Tinha o
corpo rígido, os braços crispados, a cabeça torcida, e os
olhos revirados mostravam apenas a esclerótica.
Mão invisível sufocava aquela vida sem
consciência, rodeada pelos círios vacilantes e pelas frontes
ansiosamente inclinadas.
Mafalda ouviu uma voz murmurar:
— Foi ela.
Levantou os olhos e encontrou os do casal de
Bouville.
“Quem terá dado o golpe, para me acusar?”,
perguntou a si própria.
Entrementes, a parteira tirara a criança das mãos
trêmulas de Maria e esforçava-se para reanimá-la.
— Não é certo que vá morrer, não é certo — disse.
O recém-nascido conservou-se assim rígido,
esticado e escuro, por perto de dois minutos que
pareceram infinitos. Depois, bruscamente, foi sacudido
por convulsões violentas, projetando a cabeça em todos os
sentidos. Os membros retorciam--se e jamais seria
possível acreditar que tal força pudesse percorrer corpo
tão franzino. O capelão persignou-se, como se estivesse
em presença de manifestação diabólica, e começou a
recitar a oração dos agonizantes. A criança careteava,
babava: seu aspecto enegrecido desaparecera, para dar
lugar a uma palidez gelada, não menos assustadora. Por
um momento pareceu acalmar-se, urinou no vestido da
parteira, e pensaram que estivesse salva. Depois,
imediatamente, a cabeça dela tombou. Ficou mole, inerte,
e dessa vez todos julgaram, realmente, que tivesse
morrido.
— Estava justamente no momento de ser
batizado,— disse o condestável.
Filipe de Poitiers tirava de suas mãos as gotas
quentes, tombadas dos círios.
Subitamente, o pequeno cadáver agitou os pés,
soltou uns gritos, fracos ainda mas quase alegres, e seus
lábios animaram-se como um movimento de sucção. O rei
estava vivo e queria mamar.
— O demônio debateu-se bem, antes de lhe sair do
corpo — disse o capelão.
— Não é freqüente — disse a parteira — que as
convulsões tomem uma criança assim tão cedo. Isso foi
porque nasceu com a ajuda de ferro: é coisa que acontece,
às vezes. Depois, faltou-lhe o leite da ama durante muitas
horas...
Maria de Cressay sentiu-se culpada. “Se em lugar
de discutir com a Senhora de Bouville eu tivesse vindo
imediatamente ...”, pensou a moça.
Ninguém, evidentemente, procuraria a razão
daquilo na imersão em água fria, nem faria alusão à boa
hereditariedade da família, aos capengas, aos dementes,
aos epilépticos que floresciam naquela gloriosa árvore.
As razões apresentadas pela parteira e,
particularmente, a pressão exercida pelos fórceps sobre o
cérebro da criança eram, aliás, suficientes.
— Acha que ele poderá sofrer outros ataques? —
perguntou Mafalda.
— É muito de temer, Madame — respondeu a
parteira. •—-Nunca se sabe quando vai vir esse mal, nem
como termina.
— Pobre pequeno! — falou Mafalda, em voz bem
alta.
Levaram o rei ao castelo e separaram-se sem
alegria.
Filipe de -Poitiers não descerrou os lábios durante
todo o caminho da volta. Chegando a Paris, deixou sua
sogra segui-lo e fechar-se com ele.
— Por pouco, ainda agora, serieis rei, meu filho —
disse-lhe ela.
Filipe não respondeu.
— Na verdade, depois do que vimos, ninguém irá
espantar-se se aquela criança morrer por estes dias —
continuou.
O regente continuava a calar-se.
— Se ele viesse a desaparecer, serieis, todavia,
obrigado a esperar a maioridade de Joana de Navarra.
— Ah, não, minha mãe. Ah, não! — respondeu
viva mente Filipe. — Não mais estamos ligados, de agora
em diante, pelo regulamento de julho. A sucessão de Luís
está fechada.
Será a do pequeno João que se abrirá, então. Entre
meu irmão e mim terá havido um rei, e eu serei o herdeiro
de meu sobrinho.
Mafalda olhou para ele com admiração: “Êle
maquinou isto durante o batismo!”
— Sempre sonhastes ser rei, Filipe, confessai-o —
disse ela. — Quando éreis criança, já cortáveis galhos para
fabricar cetros!
Êle levantou um pouco a cabeça e sorriu para a
sogra, deixando que se passasse um momento de silêncio.
Depois, tornando a mostrar-se grave:
— Já sabeis, minha mãe, que a dama de Fériennes
desapareceu de Arras, e também os homens que eu tinha
enviado para raptá-la e pô-la em condições de não poder
falar? Ao que parece, ela deve estar sendo mantida em
segredo em qualquer dos castelos de Artois, e dizem que
os vossos barões, naquela região, gabam-se disso.
Mafalda pôs-se a imaginar o que significaria tal
advertência. Quereria Filipe apenas preveni-la dos perigos
que corria? Ou provar-lhe que cuidava dela? Seria uma
forma de confirmar a proibição que lhe fizera de recorrer
ao veneno? Ou, pelo contrário, fazendo alusão à
fornecedora, dava-lhe a entender que ela podia considerar-
se com as mãos livres?
— Novas convulsões poderiam bem levá-lo —
insistiu Mafalda.
— Deixemos Deus agir, minha mãe, deixemos
Deus agir — disse Filipe, finalizando a conversa.
“Deixar Deus agir... ou deixar-me agir?”, pensou a
Condêssa d’Artois. “Êle é prudente, a ponto de evitar
enodoar a alma, mas compreendeu muito bem... Aquele
grande idiota do Bouville é que me vai dar mais trabalho.”
Desde aquele momento a imaginação dela começou
a movimentar-se. Mafalda tinha um crime em perspectiva,
e o fato de ser a futura vítima um recém-nascido não
deixava de excitar-lhe o espírito, tanto quanto se se
tratasse do mais feroz adversário.
Começou uma campanha cuidadosa, pérfida. O rei
não nascera viável, dizia a toda a gente, descrevendo, com
lágrimas nos olhos, a cena penosa do batismo.
— Pensamos que tivesse morrido ali mesmo, diante
de nós, e bem pouco faltou para isso. Perguntei ao
condestável, que estava presente, como eu: nunca vi
messire Gaucher que, afinal, é tão corajoso, tão forte,
empalidecer tanto... Todos, aliás, poderão julgar quanto é
fraco o reizinho, quando ele for apresentado aos barões,
como manda o costume. Nem mesmo sabemos se já não
estará morto e se escondem de nós o fato.
Essa apresentação já está tardando muito, sem que
nos dêem uma razão para a demora. Messire de Bouville,
ao que parece, opõe-se ao ato, porque a infeliz rainha...
Deus a proteja!... estaria passando cada vez pior. Mas,
enfim, a rainha não é o rei!
Os familiares de Mafalda, como seu primo
Henrique de Sully e seu chanceler Teodorico d’Hirson,
ajudavam a espalhar suas palavras.
Os barões começaram a alarmar-se. Com efeito, por
que adiavam assim a apresentação solene? O batismo às
escondidas, as pretensas recusas de Bouville, o silêncio
impenetrável mantida em torno de Vincennes, tudo estava
rodeado pelo mistério.
Rumores contraditórios circulavam. O rei estava
enfermo e não queriam mostrá-lo. O Conde de Valois
fizera raptar e levar secretamente a criança real para
Nápoles, a fim de colocá-la em segurança. A rainha não
estava doente, tinha voltado para sua pátria.
— Se ele morreu, que no-lo digam — murmuravam
alguns.
— O regente fêz com que desaparecesse! —
asseguravam outros.
— Que dizeis? O regente não é capaz de uma coisa
dessas.
Mas ele desconfia de Valois.
— Não é o regente. É Mafalda. Ela prepara seu
golpe e talvez mesmo já o tenha dado. Repete demais que
o rei não pode viver!
Enquanto os maus ventos sopravam outra vez sobre
a corte, enquanto todos se enervavam em conjeturas
odiosas, em suspeitas de infâmias, com as quais cada um
sentia-se enlameado, o regente conservava-se
impenetrável. Absorvia-se na administração do reino, e se
lhe vinham falar em seu sobrinho, respondia falando de
Flandres, Artois ou da arrecadação dos impostos.
Na manhã do dia 19 de novembro, crescendo a
irritação, numerosos barões e advogados do Parlamento
vieram em delegação procurar Filipe, pedindo-lhe com
vigor, admoestando-o quase, a fim de que consentisse na
apresentação do rei. Os que esperavam resposta negativa
ou dilatória já tinham um clarão mau nos olhos.
— Mas eu desejo, Monsenhores, desejo tanto
quanto vós essa apresentação — disse o regente. — Fazem
oposição até a mim mesmo: é o Conde de Bouville que se
recusa ao ato.
Depois, voltando-se para Carlos de Valois, que
voltara na antevéspera de seu condado do Maine, onde
refizera suas finanças, perguntou-lhe :
— Sois vós, meu tio, pelos interesses de vossa
sobrinha a Rainha Clemência, quem impede Bouville de
nos mostrar o rei?
O ex-imperador de Constantinopla, não
compreendendo de onde lhe vinha aquela arremetida,
ficou rubro e exclamou:
— Mas, por Deus misericordioso, meu sobrinho,
onde fôstes buscar semelhante coisa? Jamais pedi nem
desejei tal atitude!
Nem mesmo vi Bouville, nem dele recebo recados
há várias semanas. E voltei a Paris de propósito para essa
apresentação.
Gostaria, muito ao contrário, que a fizessem e que
voltassem a agir segundo os costumes de nossos pais,
coisa que está custando muito.
— Então, Monsenhores — disse o regente —
somos todos do mesmo conselho e da mesma vontade...
Gaucher! Vós, que estivestes presente ao nascimento de
meu irmão... é a madrinha quem deve apresentar a criança
real aos barões?
— Sem dúvida, sem dúvida, é a madrinha —
respondeu Valois, agastado por terem feito apelo a outra
competência sobre um ponto do cerimonial. — Eu estive
em todas as apresentações, Filipe: na vossa, que foi
pequena, pois éreis o segundo, como na de Luís e em
seguida na de Carlos. E meus filhos também foram
apresentados, por causa das minhas coroas. Sempre a
madrinha.
— Então — disse o regente — vou mandar dizer
imediatamente à Condêssa Mafalda que deve assumir a
seguir essa responsabilidade e dar ordem a Bouville para
nos abrir Vincennes.
Montaremos a cavalo ao meio-dia.
Para Mafalda, era a ocasião esperada. Não quis
senão Beatriz para vesti-la, e colocou uma coroa na
cabeça. O assassínio de um rei valia bem aquilo.
— Quanto tempo achas que o pó levará para fazer
efeito numa criança de cinco dias?
— Isso eu não sei, Madame — respondeu a
primeira donzela. — Sobre os cervos de vossos bosques o
resultado produziu-se numa noite. O Rei Luís resistiu
perto de três dias...
— Terei sempre, como recurso — disse Mafalda —
aquela ama que vi outro dia, bela moça, na verdade, mas
que se ignora de onde vem e que ninguém sabe quem
colocou lá. Os Bouville, sem dúvida...
— Compreendo-vos, Madame — disse Beatriz
sorrindo.
— Se a morte não parecer natural, poder-se-ia
acusar essa moça e esquartejá-la.
— Minha relíquia, minha relíquia — disse Mafalda
inquieta, apalpando o próprio peito. — Ah! sim está aqui,
graças a Deus.
Quando saía do quarto, Beatriz murmurou-lhe:
— Cuidado, Madame, não vos assoeis, por
distração.
III
AS ASTÚCIAS DE BOUVILLE

ACENDEI grandes fogos — ordenava Bouville aos


criados. — Que as lareiras ardam até rebentar para que o
calor se espalhe pelos corredores.
Ia de aposento em aposento, paralisando o serviço
quando pretendia ativá-lo. Corria à ponte levadiça para
inspecionar a guarda, mandava espalhar areia nos pátios,
ordenava logo depois que a varressem, pois formava lama,
vinha verificar fechaduras que não seriam usadas. Toda
aquela agitação destinava-se apenas a disfarçar sua própria
angústia. “Ela vai matá-lo, ela vai matá-lo”, repetia.
Num corredor esbarrou com sua esposa:
— A rainha? — perguntou.
Tinham administrado os últimos sacramentos a
Clemência, poucas horas antes.
Aquela mulher, cuja beleza, em dois reinos,
passava por lendária, estava desfigurada, devastada pela
infecção. O nariz apertado, a pele amarelada, marcada de
placas vermelhas do tamanho de moedas de duas libras,
exalava um cheiro horroroso. Sua urina tinha estrias de
sangue, e a respiração fazia-lhe cada vez mais penosa.
Gemia sob dores intoleráveis, que a atacavam na nuca e
no ventre, e estava completamente delirante.
— É uma febre quarta -— disse a Senhora de
Bouville. — A parteira assegura que, se ela passar o dia de
hoje, poderá salvar-se. Mafalda ofereceu-se para mandar o
Senhor de Pavilly, seu médico pessoal (28).
— De forma nenhuma, de forma nenhuma —
exclamou Bouville. — Não deixemos ninguém que
pertença a Mafalda introduzir-se aqui.
A mãe moribunda, a criança ameaçada e mais de
duzentos barões que iam chegar, com suas escoltas! Que
bela, desordem haveria logo mais, e como a ocasião
facilitaria o crime!
— A criança não pode ficar no quarto vizinho ao da
rainha — falou Bouville. — Ali não posso mandar entrar
homens armados em quantidade suficiente para velar por
ela, e é muito fácil alguém insinuar-se atrás das tapeçarias.
— É tempo de pensarmos nisso. Onde queres pô-
la?
— No quarto do rei, onde se pode interditar todas
as entradas.
Olharam-se, e tiveram o mesmo pensamento. Era o
aposento onde o Turbulento morrera.
— Manda preparar o quarto e ativar o fogo —
insistiu Bouville.
— Seja, meu amigo, vou obedecer-te. Mas ainda
que pusesses cinqüenta escudeiros em torno do quarto,
não poderias impedir que Mafalda leve o rei nos braços,
para apresentá-lo, pois ela é a madrinha.
— Estarei perto dela.
— Sim, mas se está resolvida, há de matá-lo sob
teu nariz, meu pobre Hugo. E tu nada verás. Uma criança
de cinco dias quase não se debate. Ela aproveitará um
momento de movimentação para meter-lhe uma agulha na
moleira, para dar-lhe veneno a respirar, ou para
estrangulá-lo com um cordão.
— Então, que queres que eu faça? — exclamou
Bouville.
— Não posso declarar ao regente: “Não queremos
que vossa sogra leve o rei porque tememos que ela o
mate!”
— Não, não podes fazer isso! Só nos resta pedir por
ele a Deus — disse a Senhora de Bouville, afastando-se.
Bouville, desamparado, foi para o quarto da ama.
Maria de Cressay dava de mamar às duas crianças
ao mesmo tempo. Tão voraz uma quanto a outra,
agarravam-se ao alimento, com seus dedinhos moles, e
mamavam ruidosamente. Generosa, Maria dava ao rei o
seio esquerdo, que era considerado o mais farto.
— Que tendes, messire? Pareceis tão perturbado —
perguntou ela a Bouville.
O homem estava diante dela, apoiado sobre sua
espada alta, as mechas brancas e pretas de seu cabelo
tombando-lhe nas faces, a pança empurrando a cota de
malhas, arcanjo sexagenário incumbido da difícil guarda
de uma criancinha.
— É tão fraco, nosso pequenino sire, é tão fraco! —
disse, tristemente.
— Mas não, messire, ele se desenvolve bem, pelo
contrário Vede, está quase alcançando o meu. E todos
esses remédios que me dão, produzem-me um pouco de
enjôo, mas parecem fazer bem ao menino (29).
Bouville aproximou sua grande mão, tanada pelas
rédeas dos cavalos e pelos punhos das armas, e acariciou
cuidadosamente o pequeno crânio onde se formava uma
penugem loura.
— É que este não é um rei como os outros... —
murmurou.
O velho servidor de Filipe, o Belo, não sabia como
expressar o que sentia. Tão longe quanto o podiam levar
suas lembranças, e mesmo as lembranças de seu pai, a
monarquia, o reino, a França, tudo quanto fora a razão de
suas funções e o objeto de seus cuidados, confundia-se
numa longa e sólida cadeia de reis, adultos, fortes,
vigorosos, exigindo devotamento, dispensando honras.
Durante vinte anos, havia avançado a poltrona onde
se sentava um monarca diante do qual a cristandade
tremia. Jamais poderia imaginar que a cadeia pudesse, tão
depressa, ficar reduzida àquele ínfimo elo rosado, de
queixo lambuzado de leite, que com uma só mão seria
possível quebrar.
— A verdade — disse — é que ele está se
recuperando.
Sem essa marca deixada pelos ferros, e que já se
vai apagando, seria preciso olhá-lo de perto para distingui-
lo do vosso.
— Oh! não! Messire. O meu é mais pesado. Não é
mesmo, João segundo, que és mais pesado?
Corou bruscamente, e explicou:
— Como os dois chamara-se João, eu chamo o meu
de João segundo. Talvez não devesse...?
Bouville, com um movimento maquinai de cortesia,
acariciou a cabeça do segundo bebê. Seus olhos iam de
um ao outro.
Maria pensou que o olhar obstinado do gordo
gentil-homem estava sendo atraído pelos seus seios, e
corou ainda mais. “Quando, então”, disse consigo mesma,
“deixarei de enrubescer a propósito de tudo? Não é coisa
desonesta, nem provocante, amamentar!”
Naquele momento a Senhora de Bouville entrou,
trazendo as roupas para vestir o rei. Bouville chamou-a a
um canto e murmurou-lhe :
— Acho que arranjei um meio.
Conversaram em voz baixa durante alguns
instantes. A Senhora de Bouville sacudia a cabeça,
refletia, e por duas vezes olhou em direção de Maria.
— Pede-lhe tu mesmo — disse, enfim. — De mim
ela não gosta.
— Maria, minha filha, ides prestar um grande
serviço ao nosso reizinho, ao qual já vos apegastes —
disse ele. — Eis que os barões vêm para que o rei lhes seja
apresentado, mas nós tememos o frio que lhe pode fazer
mal, por causa das convulsões que teve no dia do batismo.
Podeis imaginar o efeito, se ele começasse de repente a
torcer-se como naquele dia! Depressa diriam que sua vida
é precária, como seus inimigos espalham. Nós, barões,
somos homens de guerra, e gostamos que o rei dê provas
de robustez, mesmo quando muito jovem. Vosso filho é
mais gordo e tem aparência mais bela. Gostaríamos de
apresentá-lo em lugar dele.
Maria, um tanto inquieta, olhou para a Senhora de
Bouville, que se apressou a dizer:
— Nada tenho com isso. A idéia foi de meu esposo.
— Não será pecado, Messire, fazer isso? —
perguntou Maria.
— Pecado, minha filha? Mas é virtude proteger seu
rei.
E não será a primeira vez que se apresenta ao povo
uma criança sólida em lugar de um herdeiro franzino —
assegurou Bouville, mentindo pela boa causa.
— Não poderão perceber?
— E como perceberiam? — exclamou a Senhora de
Bouville. — Ambos são louros; nessa idade as crianças se
parecem, e se transformam de um dia para o outro. Quem,
afinal, conhece o rei? Messire de Joinville nada enxerga, e
o condestável entende mais de cavalos do que de recém-
nascidos.
— A Condêssa d’Artois não irá espantar-se por não
ver mais os sinais dos ferros?
— Sob a touca e a coroa, como poderia vê-los?
— E, além disso, o dia não está muito claro. Vai ser
quase necessário acender círios — acrescentou Bouville,
designando a janela e a luz tristonha de novembro.
Maria não opôs mais resistência. No fundo, a idéia
daquela substituição honrava-a e nos desígnios de
Bouville só via as melhores intenções. Teve prazer em
vestir seu filho de rei, enfaixando-o com seda,
envolvendo-o na capa azul semeada de flôres-de-lis de
ouro e pondo-lhe a touca sobre a qual estava cosida
minúscula coroa, peças do enxoval que fora preparado
antes do nascimento.
— Como vai ficar belo, o meu Joãozinho -— dizia
Maria.
— Uma coroa, Senhor! Uma coroa! Terás que
devolvê-la ao teu rei, bem o sabes, terás que devolvê-la!
Sacudia o filho, como uma boneca, diante do berço
de João I.
— Vede, sire, vede vosso irmão de leite, vosso
servidorzinho que vai tomar vosso lugar para que não vos
resfrieis!
E pensava : “Quando eu contar tudo isto a Guccio...
Quando lhe disser que seu filho é irmão de leite do rei, e
que foi apresentado aos barões... Que vida estranha temos,
e que eu não trocaria por nenhuma outra! Como fiz bem
em amá-lo, ao meu lombardo!”
Sua alegria foi cortada por um longo gemido, que
vinha do aposento ao lado.
“A rainha, meu Deus...”, pensou Maria. “Eu me
esquecia da rainha!”
Um escudeiro entrou, anunciando que o regente e
os barões aproximavam-se. A Senhora de Bouville
apoderou-se do filho de Maria.
— Vou passá-lo para o quarto do rei — disse ela —
e tornarei a levá-lo para lá, depois da cerimônia, até que a
corte parta. Maria, não vos movereis daqui até que eu
volte, e se alguém aqui entrar, apesar da guarda que vamos
colocar lá fora, afirmai que a criança que fica convosco é a
vossa.
IV
“SIRES, VÊDE O REI!”

OS BARÕES mal conseguiam manter-se todos na


grande sala. Falavam, tossiam, mexiam-se e começavam a
impacientar-se por terem que ficar tanto tempo de pé. As
escoltas haviam invadido os corredores para aproveitar o
espetáculo; cachos de cabeças aglomeravam-se em todas
as aberturas.
O senescal de Joinville, que só fora despertado no
último momento, para poupar-lhe as forças, estava à porta
do quarto do rei, em companhia de Bouville.
— Sereis vós quem anunciará, Messire senescal —
disse este último. — Sois o mais antigo companheiro de
São Luís, e a vós cabe a honra.
Doente de angústia, o rosto inundado de suor,
Bouville pensava :
“Eu não poderia... eu não poderia anunciar. Minha
voz me trairia!”
Viu surgir no fundo do corredor sombrio a
Condêssa Mafalda, gigantesca, parecendo ainda maior por
causa da coroa e do pesado manto de aparato. Jamais
Mafalda dera-lhe a impressão de ser mais alta, mais
terrífica.
Atirou-se para o quarto, e disse à esposa:
— Chegou o momento.
A Senhora de Bouville dirigiu-se ao encontro da
condêssa, cujo passo sólido soava pelas lajes, e entregou-
lhe o fardo leve.
O lugar estava sombrio: Mafalda não olhou para a
criança muito de perto. Achou, simplesmente, que tinha
ganho peso, depois do batizado.
— Oh! Nosso reizinho prospera! — disse ela. —
Eu vos felicito, minha cara.
— Velamos muitíssimo por ele, Madame, pois não
queremos incorrer nas censuras de sua madrinha —
respondeu a Senhora de Bouville, com sua melhor voz.
“Era tempo, sem dúvida alguma”, pensou Mafalda.
“Êle está passando bem demais.”
A luz que tombava da abertura da porta mostrou-
lhe o rosto do antigo camareiro.
— Por que transpirais tanto, Messire Hugo? —
perguntou ela. — Não está fazendo calor hoje, afinal.
— É por causa desses fogos todos que mandei
acender... Messire regente quase não me deu tempo para
preparar tudo.
Olharam-se de frente, cada qual passando, com
isso, por um mau momento.
— Vamos, então — disse Mafalda — abri
passagem para mim.
Bouville ofereceu seu braço ao velho senescal e os
dois curadores dirigiram-se lentamente para a sala grande.
Mafalda seguia-os, alguns passos atrás. Era o momento
favorável entre todos, e que ela se arriscaria a não
encontrar mais. O passo em que o senescal caminhava
permitia-lhe usar seu tempo muito bem. Sem dúvida,
havia escudeiros e donzelas de serviço encostados ao
longo das paredes, e todos eles, tinham, na penumbra, os
olhos voltados para a criança. Mas quem se aperceberia de
gesto tão breve e tão natural?
— Vamos, apresentemo-nos bem — disse Mafalda
ao bebê coroado em seu regaço. — Honremos o reino, e
não babemos.
Tirou o lenço de sua esmoleira, e enxugou
rapidamente os làbiozinhos molhados. Bouville tinha
virado a cabeça para trás, mas o gesto já fora feito, e
Mafalda, escondendo o lenço no côncavo da mão, fingia
arranjar o manto da criança.
— Estamos prontos — disse ela.
As portas da sala abriram-se e fêz-se silêncio. Mas
o senescal não via a porção de rostos que estavam em sua
frente.
— Anunciai, Messire, anunciai — disse Bouville.
— A quem devo anunciar? — perguntou Joinville.
— O rei, ora, o rei!
— O rei... — murmurou Joinville. — É o quinto
que vou servir, sabeis?
— Sem dúvida, sem dúvida, mas anunciai —
repetiu Bouville, nervoso.
Mafalda, atrás deles, enxugava mais uma vez, para
maior certeza, a boca do bebê.
Sire de Joinville, tendo clareado a garganta com
alguns pigarros, decidiu-se, enfim, a pronunciar, com voz
bastante clara e grave:
— Meus Sires, vede o Rei! Vede o Rei, meus Sires!
— Viva o Rei! — responderam os barões, soltando
o grito que desde o enterro do Turbulento vinham retendo.
Mafalda avançou diretamente para o regente e para
os membros da família real reunidos em torno dele.
— Mas ele é forte... é rosado... é gordo... — diziam
os barões, à sua passagem.
— Que história foi essa de nos dizerem que o
menino era fraquinho e não poderia viver? — falou Carlos
de Valois a seu filho Filipe.
— Ora! A raça de França é sempre bem valente! —
disse Carlos de La Marche para imitar seu tio.
O filho do lombardo comportava-se bem, bem
demais, na opinião de Mafalda. “Não poderia ele chorar,
torcer-se um pouco?” E disfarçadamente, procurava
beliscá-lo através do manto. As faixas, porém, eram
espessas e a criança só deixava ouvir um ligeiro
gorgolejar, bastante feliz. O espetáculo que se oferecia a
seus olhos azuis parecia agradar-lhe. “O miseràvelzinho!
Daqui a pouco é capaz de cantar. Cantará menos esta
noite... A não ser que o pó de Beatriz se tenha alterado, ao
contacto do ar...”
Gritos levantavam-se do fundo da sala:
— Não o estamos vendo! Queremos admirá-lo!
— Tomai-o, Filipe — disse Mafalda para o genro,
estendendo-lhe o bebê. — Tendes os braços mais
compridos do que os meus, mostrais o rei a seus vassalos.
O regente segurou o pequeno João pelo busto,
levantando-o acima de sua cabeça, para que cada qual
pudesse contemplá-lo à vontade. Subitamente, Filipe
sentiu correr pelas mãos um líquido viscoso e quente. A
criança, tomada de soluços, vomitava o leite que mamara
meia hora antes, mas um leite que se tornara esverdeado e
misturado com bile. Seu rosto tomou a mesma coloração,
depois passou rapidamente a um tom mais escuro,
indefinível, inquietante, enquanto ela torcia o pescoço
para trás.
Vasta exclamação de angústia e desapontamento
levantou-se do grupo dos barões.
— Senhor, Senhor — exclamou Mafalda —
recomeçam as convulsões!
— Tomai-o — falou vivamente Filipe, entregando-
lhe a criança nos braços, como se fosse um embrulho
perigoso.
— Eu sabia! — lançou uma voz.
Era Bouville. Estava roxo, e seu olhar ia,
encolerizado, da condêssa para o regente.
— Sim, tínheis razão, Bouville — disse este último
— era cedo demais para apresentar esta criança doente.
— Eu sabia... — repetia Bouville.
Mas sua mulher puxou-o vivamente pela manga, a
fim de evitar que cometesse uma tolice irreparável. Seus
olhos encontraram-se, e Bouville acalmou-se. “Que ia eu
fazer? Estou louco”, pensou. “Temos o verdadeiro.”
Mas se tudo tinha sido combinado a fim de afastar
o crime para outra cabeça, nada fora previsto para o caso
em que o crime fosse verdadeiramente cometido.
Mafalda também estava tomada de aflição. Não
esperava que o veneno agisse tão depressa. Pronunciava
palavras que pretendiam ser tranqüilizadoras.
— Acalmai-vos, acalmai-vos! No outro dia também
pensávamos que ia morrer, e depois, bem o sabeis, voltou
a si. É doença de criança, que impressiona mas não dura.
A parteira! Chamem a parteira — disse, correndo todos os
riscos para provar sua boa fé.
O regente mantinha as mãos sujas separadas do
corpo, e olhava-os com medo e nojo, sem ousar tocar em
coisa alguma.
O bebê estava azulado e sufocava.
Na desordem e alvoroço que se seguiram, ninguém
soube muito bem o que fazia, nem como as coisas se
tinham passado. A Senhora Bouville lançou-se para o
quarto da rainha, mas quase ao chegar deteve-se,
pensando: “Se chamar a parteira ela verá que a criança foi
trocada, e que essa não tem a marca dos ferros. Que não
lhe tirem a touca, que não lhe tirem a touca!”
E voltou, correndo, enquanto os presentes já
refluíam para o quarto do rei.
Para a criança não era mais necessária a assistência
de parteira alguma. Sempre envolta em seu manto coberto
de flôres-de-lis, a minúscula coroa de banda, jazia como
um destroço sobre o leito imenso, coberto de seda.
Os olhos brancos, os lábios escuros, as faixas sujas
e as vísceras rompidas, o bebê que acabavam de
apresentar a todos como o rei da França deixara de existir.
V
UM LOMBARDO EM SAINT-DENIS

E AGORA, que vamos fazer? — perguntavam-se


os Bouville.
Viam-se presos em sua própria armadilha.
O regente não se atardara em Vincennes. Reunindo
os membros da família real, pedira-lhes que tornassem a
montar e o escoltassem até Paris, onde reuniria
imediatamente o conselho. No momento em que deixava o
solar, Bouville tinha tido um último ímpeto de coragem.
— Monsenhor!... — exclamara, agarrando pela
brida a montaria do regente.
Filipe, entretanto, imediatamente o detivera.
— Está bem, está bem, Bouville. Agradeço-vos a
parte que tomais em nossa aflição. Nada vos censuramos,
podeis crer.
São as leis da natureza humana. Mandarei
transmitir-vos minhas ordens para os funerais.
E o regente partiu, pondo-se a galope assim que
transpôs a ponte levadiça. Em tal marcha, os que o
acompanhavam não tiveram muita possibilidade de refletir
pelo caminho.
A maior parte dos barões seguira com ele. Tinham
ficado apenas alguns, menos importantes, os desocupados,
que se demoravam formando pequenos grupos e
comentando o acontecido.
— Estás vendo? — disse Bouville à esposa. — Eu
devia ter falado naquele mesmo momento. Por que me
impediste?
Estavam de pé, num vão de janela, cochichando e
mal ousando confiar um ao outro os seus pensamentos.
— A ama? — perguntou Bouville.
— Cuidei disso. Levei-a para meu próprio quarto,
que fechei a chave, e coloquei dois homens à porta.
— Ela não desconfia de nada?
— Não.
— Mas será preciso dizer-lhe.
— Esperemos que todos tenham ido embora.
— Ah! Eu devia ter falado — repetiu Bouville.
O remorso de não ter seguido seu primeiro ímpeto
o torturava. “Se eu tivesse gritado a verdade diante de
todos os barões, se eu tivesse fornecido ali mesmo a
prova...” Para tanto, teria sido necessário que ele tivesse
outra natureza, que fosse homem da tempera do
condestável, por exemplo, e sobretudo que não tivesse por
trás de si sua esposa, a puxá-lo pela manga...
— Mas como poderíamos saber — disse a Senhora
de Bouville — que Mafalda conseguiria levar avante seu
plano tão bem, e que a criança iria morrer sob os olhos de
todos?
— No fundo — murmurou Bouville — teríamos
feito melhor apresentando o verdadeiro e deixando que o
destino se cumprisse.
— Ah! Bem te havia dito!
— Sim, confésso-o. Fui eu quem teve a idéia, e foi
uma má idéia.
Pois, agora, quem acreditaria neles? Como e a
quem poderiam declarar que tinham ludibriado a
assembléia de barões colocando uma coroa na cabeça do
filho de uma ama? Em seu ato houvera sacrilégio.
— Sabe a que nos arriscamos, agora, se não
guardamos silêncio? — disse a Senhora de Bouville. — A
que Mafalda nos mande envenenar também.
— O regente estava combinado com ela, tenho
certeza. Quando limpou as mãos, depois que a criança
vomitou sobre elas, atirou o pano ao fogo, eu bem vi...
Faria com que fôssemos levados à justiça, por felonia em
relação a Mafalda.
A preocupação mais grave do casal era, agora,
concernente à própria segurança.
— E a toilette da criança? — perguntou Bouville.
— Eu mesma a fiz, com uma das mulheres,
enquanto acompanhavas o regente à saída — respondeu a
Senhora de Bouville. — E agora quatro escudeiros velam
junto dela. Desse lado nada há a temer.
— E a rainha?
— Recomendei a todos que nada lhe dissessem,
para não agravar seu mal. Aliás, ela não me parece estar
em condições de compreender o que se passou. E ordenei
às parteiras que não se afastassem da sua cabeceira.
Pouco depois, o camareiro Guilherme de Seriz
chegou de Paris para dizer a Bouville que o regente
acabava de se fazer reconhecer rei pelos seus tios, seu
irmão, e os pares presentes. O Conselho fora rápido.
— Quanto aos funerais de seu sobrinho — disse o
camareiro — nosso Sire Filipe resolveu que seriam feitos
o mais cedo possível, a fim de não afligir demasiado
longamente o povo com esse novo falecimento. Não
haverá exposição, e como estamos na sexta-feira, e no
domingo não se pode fazer inumação, o corpo será
conduzido amanhã para Saint-Denis. O embalsamador já
está a caminho. Deixo-vos, Messire, pois o rei
recomendou-me que voltasse bem depressa.
Bouville deixou-o partir sem acrescentar uma
palavra sequer. “O rei... o rei...”, repetiu consigo.
O Conde de Poitiers era rei. Um pequeno lombardo
ia ser levado a Saint-Denis... e João I estava vivo.
Bouville foi ter com sua esposa.
— Filipe foi reconhecido — disse-lhe. — Que vai
ser de nós, com esse rei que nos fica nos braços?
— Precisamos fazê-lo desaparecer.
— Ah, não! •— exclamou Bouville, indignado.
— Não se trata disso. Estás perdendo a cabeça,
Hugo! — replicou a Senhora de Bouville. — Quero dizer
que será preciso escondê-lo.
— Mas ele não reinará.
— Pelo menos poderá viver. E talvez um dia...
Sabe-se lá!
— Mas, como escondê-lo? A quem confiá-lo, sem
despertar suspeitas? Antes de mais nada, é necessário que
continue a ser amamentado.
— A ama... Só podemos nos valer da ama — disse
a Senhora de Bouville. — Vamos falar com ela.
Tinham sido bem inspirados quando resolveram
esperar a partida dos últimos barões, antes de irem
confessar a Maria de Cressay que seu filho estava morto.
Porque o uivo que ela soltou chegou a atravessar os muros
do solar. Aos que o ouviram e quedaram-se gelados, foi
explicado que o grito viera da rainha. Ora, a rainha, apesar
do seu estado de inconsciência, erguera o corpo em sua
cama, perguntando:
— Que está acontecendo?
O próprio senescal de Joinville, do fundo de seu
torpor, estremeceu àquele som:
— Estão matando alguém, por aí — disse ele. —
Foi um grito de degolado que eu ouvi...
Durante todo esse tempo, Maria repetia, incansável:
— Quero vê-lo! Quero vê-lo!
Bouville e sua mulher foram obrigados a agarrá-la à
força, a fim de evitar que a jovem se atirasse, semilouca,
através do castelo.
Durante duas horas esforçaram-se por acalmá-la,
por consolá-la, e, sobretudo, para se justificarem,
recomeçando dez vezes explicações que ela não
compreendia.
Bouville podia afirmar-lhe que não tinha querido
aquilo, que fora obra criminosa da Condêssa Mafalda... As
palavras inscreviam-se inconscientemente na memória de
Maria, de onde ressurgiriam mais tarde. No momento,
porém, não tinham significação.
A jovem cessava um instante de chorar, olhava
direito para a frente, depois, bruscamente recomeçava a
gemer como um cão sobre o qual um carro passou.
Os Bouville chegaram realmente a pensar que ela
estava perdendo a razão. Esgotaram todos os argumentos:
graças àquele sacrifício involuntário, Maria tinha salvo a
vida do verdadeiro rei de França, descendente de ilustre
linhagem...
— Sois jovem — dizia a Senhora de Bouville —
tereis outros filhos. Qual é a mulher que nunca em sua
vida perdeu um filho recém-nascido?
E passou a citar-lhe os gêmeos de Branca de
Castela e todos os pequenos desaparecidos da família real
nas últimas três gerações. Entre os Anjou, os Courtenay,
os Bourgogne, os Châtillon, os próprios Bouville, quantas
mães periodicamente enlutadas e que, entretanto,
terminavam felizes, entre vasta prole! Em cada doze ou
quinze filhos que uma mulher dava à luz, dificilmente
sobrevivia mais do que a metade.
— Mas eu compreendo — continuava a Senhora de
Bouville. — O primeiro é o mais duro de suportar.
— Não, não o compreendeis! — gritou, enfim,
Maria, entre soluços. — Esse, esse eu não poderei jamais
substituir.
O bebê que acabavam de matar era o filho do amor,
o filho de um desejo mais violento e de uma fé mais forte
do que todas as leis do mundo e suas coações: era o sonho
cujo preço ela pagara com dois meses de insultos e quatro
de convento, o presente perfeito que se preparava para
oferecer ao homem que escolhera, a planta miraculosa
sobre a qual esperava ver florescer, em todos os dias de
sua vida, seus amores contrariados e maravilhosos.
— Não, não podeis compreender! — gemia. —
Não fôstes expulsa por vossa família, por causa de um
filho. Não, não terei outro!
Quando se começa a descrever a própria desgraça,
a expô-la em termos inteligíveis, é que já foi admitida por
nós. Ao despedaçamento, ao esmagamento quase físico,
seguia-se lentamente o segundo estágio da dor, a cruel
contemplação.
— Eu sabia, eu sabia, quando não queria vir para
aqui, que a desgraça me esperava!
A Senhora de Bouville não ousava responder.
— E que dirá Guccio quando souber? — disse
Maria. — Como poderei contar-lhe?
—- Êle não deverá saber jamais, minha filha! —
exclamou a Senhora de Bouville. — Ninguém deve saber
que o rei está vivo, porque os que erraram o golpe não
hesitariam em atacar uma segunda vez. Mesmo vós correis
perigo, porque estáveis combinada conosco. Será preciso
que guardeis isso como segredo, até que sejais autorizada
a revelá-lo.
E, a seu marido, cochichou:
— Vai buscar os Evangelhos.
Quando Bouville voltou com o grande livro que
fora buscar na capela, conseguiram obter de Maria que
pousasse a mão sobre ele e jurasse guardar silêncio
absoluto, mesmo em relação ao pai de seu filho morto,
mesmo em confissão, sobre o drama que acabava de se
passar ali. Só Bouville ou sua mulher poderiam desligá-la
do juramento.
No estado em que estava, Maria consentiu em jurar
tudo quanto lhe pediram. Bouville prometeu-lhe uma
pensão, mas bem pouco lhe importava o dinheiro!
— E, agora, deveis conservar convosco o rei da
França, minha filha, e dizer a todos que é o vosso —
acrescentou a Senhora de Bouville.
Maria rebelou-se. Não queria mais tocar na criança
em lugar da qual seu filho fora assassinado. Não queria
mais ficar em Vincennes. Queria fugir, não importava para
onde, e morrer.
— Depressa morrereis, não tenhais dúvida, se
abrirdes a boca. Mafalda não tardaria a mandar-vos
envenenar ou apunhalar.
— Não, nada direi, eu vos prometo. Mas deixai-me,
deixai-me partir!
— Partireis, partireis. Mas não deixeis que ele
também pereça. Bem vêdes que a criança tem fome.
Amamentai-o pelo menos hoje — disse a Senhora de
Bouville, pondo-lhe nos braços o filho da Rainha
Clemência.
Quando Maria sentiu a criança contra o seio, suas
lágrimas redobraram. Era forte demais, a dor que sentia no
outro braço vazio.
— Ficai com ele. Será como o vosso — insistiu a
Senhora de Bouville. — E quando chegar a ocasião de
colocá-lo no trono, sereis honrada na corte, a seu lado:
sereis sua segunda mãe.
Uma mentira a mais nada lhe custava. Aliás, não
seriam as honras prometidas pela mulher do curador que
tentariam Maria, mas a presença da pequenina vida que
tinha no regaço e sobre a qual iria fazer,
inconscientemente, uma transferência de maternidade.
Pousou os lábios sobre a cabeça penugenta do bebê
e, com um gesto que se tornara maquinai, abriu seu
corpinho, murmurando :
— Não, não posso deixá-lo morrer, meu pequeno
João... meu pequeno Joãozinho...
Os Bouville deram um suspiro de alívio. Tinham
ganho a partida, pelo menos naquele momento.
— Ela já não deverá estar em Vincennes, amanhã,
quando vierem buscar a criança — disse, muito baixinho,
a Senhora de Bouville a seu marido.
No dia seguinte, prostrada, e deixando que a
Senhora de Bouville decidisse tudo, Maria foi reconduzida
com a criança ao convento das Clarissas.
Madame de Bouville explicou à madre abadêssa
que Maria tivera um grande choque cerebral com a morte
do reizinho, e que seria preciso não levar em conta as
coisas loucas que ela pudesse dizer.
— Fêz-nos bastante medo, pois urrava, e não
reconhecia sequer seu próprio filho.
A Senhora de Bouville exigiu que a jovem não
recebesse visita alguma, e que a deixassem ficar na maior
calma, no maior silêncio.
— Se alguém se apresentar para falar com ela, que
não deixem entrar e mandem prevenir-me.
Naquele mesmo dia, dois lençóis, guarnecidos com
as flôres-de-lis de ouro, dois lençóis da Turquia bordados
com as armas da França e oito varas de cendal preto foram
mandados a Vincennes, para o enterro do primeiro rei da
França que usara o nome de João. E realmente foi apenas
uma criança que se chamava João, que partiu, encerrada
num cofre tão pequeno que não consideraram necessário
colocá-lo num carro, pousando-o, simplesmente, sobre a
alabarda de uma mula.
Mestre Godofredo de Fleury, tesoureiro do Palácio,
anotou em seu registro as despesas dos funerais, que
custaram cento e onze libras, dezessete soldos e oito
dinheiros.
Não foi organizado o longo cortejo ritual, nem se
realizou cerimônia alguma em Notre-Dame. O séquito
dirigiu-se imediatamente para Saint-Denis, onde a
inumação foi feita logo depois da missa. Ao pé da estátua
jacente de Luís X, ainda toda branca, muito recente em
sua pedra de pouco talhada, abrira-se uma fossa estreita, e
por ali fizeram descer, para que ficasse entre as ossadas
dos soberanos da França, o filho de Maria de Cressay,
demoiselle de Ile-de-France, de Guccio Baglione,
negociante sienense.
Adão Héron, o primeiro camareiro e mordomo do
palácio, adiantou-se para a beira da pequena sepultura, e
disse, olhando para seu senhor Filipe de Poitiers:
— O Rei morreu, viva o Rei!
O reinado de Filipe V, o Longo, começara: Joana
de Borgonha tornava-se rainha da França, e Mafalda
d’Artois triunfava.
Somente três pessoas sabiam, no reino, que o
verdadeiro rei vivia. Uma jurara segredo sobre as
Sagradas Escrituras, e as duas outras tremiam, receando
que tal segredo não fosse mantido.
Todos os soberanos que daquele sábado, 20 de
novembro de 1316, em diante, reinaram sobre a França,
não passaram de uma longa linhagem de involuntários
usurpadores.
VI
A FRANÇA EM MÃOS FIRMES

PARA conquistar o trono, Filipe V tinha usado,


dentro das instituições monárquicas, de um processo
eterno, que em linguagem moderna chamamos golpe de
Estado.
Vendo-se, pela autoridade de sua pessoa e pelo
apoio do clã que o rodeava, investido, de fato, das
principais funções reais, fizera homologar, pela
assembléia de julho, um regulamento de sucessão que
poderia favorecê-lo, eventualmente, mas somente depois
de longos prazos, e da aplicação de cláusulas prévias.
Surgia, com o desaparecimento do reizinho, o
acontecimento propício: Filipe, imediatamente, pondo de
parte a legalidade que ele próprio estabelecera,
apropriava-se da coroa sem mais observar prazos nem
cláusulas prévias.
Um poder obtido em semelhantes condições estaria
ameaçado, pelo menos em seu início.
Ocupado inteiramente em consolidar sua posição,
Filipe não teve quase tempo de saborear sua vitória nem
de se contemplar em seu sonho realizado. Bem estreito era
o pico a que ele acabava de subir.
As línguas trabalhavam muitíssimo, através do
reino, e a desconfiança espalhava-se. O punho do novo rei
era bastante conhecido, e todos quantos corriam o risco de
sofrer-lhe o peso reuniram-se em torno do Duque de
Borgonha.
Este último correu a Paris a fim de contestar a
designação de seu futuro sogro. Exigia a convocação do
conselho dos pares e o reconhecimento de Joana de
Navarra como rainha.
Dessa vez Filipe deixou de usar de astúcias. Para a
regência, oferecera sua filha e o ducado de Borgonha. Para
conservar o reino ofereceu separar as duas coroas, da
França e de Navarra, tão recentemente reunidas, e deixar o
pequeno reinado pirenaico à duvidosa filha de seu irmão.
Mas se Joana era considerada digna de reinar sobre
Navarra, era também digna de reinar sobre a França. Pelo
menos, o Duque Eudes assim entendeu, e recusou-se a
ceder. Iriam, então, à prova da força.
Eudes tornou a partir a galope para Dijon, de onde
lançou, em nome de sua sobrinha, uma proclamação a
todos os senhores de Artois e da Picardia, de Brie e de
Champanha, convidando-os a recusar obediência a um
usurpador.
Dirigiu-se no mesmo sentido ao Rei Eduardo II da
Inglaterra, que, apesar dos esforços de sua esposa Isabel,
apressou-se a envenenar a rixa, tomando o partido dos
borguinhões. Em todos os desentendimentos que surgiram
no reino da França, o rei inglês via a perspectiva de
emancipar a Guyenne.
“Foi então a isto que eu cheguei, denunciando o
adultério de minhas cunhadas!”, pensava a Rainha Isabel.
Vendo-se assim ameaçado ao norte, a leste, a
sudoeste, outro que não Filipe, o Longo, poderia ter
desistido. Mas o novo rei sabia que dispunha de muitos
meses: o inverno não era época para guerra, e seus
inimigos esperariam a primavera, se resolvessem levantar
seus exércitos. O mais urgente, para Filipe, era fazer-se
coroar e revestir-se da indelével majestade da sagração.
Quis, de início, marcar a cerimônia para a Epifania:
o dia de Reis parecia-lhe de bom augúrio, e tratava-se,
também, da data que seu pai escolhera para a sua própria
sagração. Disseram-lhe que os burgueses de Reims não
teriam tempo para preparar tudo, e concordou com um
adiamento de três dias. A corte partiria de Paris no dia 1°
de janeiro, e a sagração teria lugar no domingo, 9.
Desde Luís VIII, primeiro rei não eleito em vida de
seu predecessor, jamais se vira herdeiro do trono
precipitar-se tão depressa para Reims.
A consagração religiosa, entretanto, parecia ainda
insuficiente, aos olhos de Filipe: queria acrescentar-lhe
algo que impressionasse de maneira nova a consciência
popular.
Tinha meditado com freqüência nos ensinamentos
de Egidio Colonna, o preceptor de Filipe, o Belo, homem
que formara o pensamento do Rei de Ferro. “Falando de
forma absoluta” — escrevera Egidio Colonna em seu
tratado sobre os princípios da realeza — “seria preferível
que se elegesse o rei. Apenas os apetites corrompidos dos
homens e sua maneira de agir, tornam preferível a
hereditariedade à eleição.”
— Quero ser rei com o consentimento de meus
súditos — disse Filipe, o Longo — e só me sentirei
realmente digno de governar a esse preço. E já que os
grandes não comparecem, darei a palavra aos pequenos.
Seu pai mostrara-lhe o caminho, convocando, nas
horas difíceis de seu reinado, assembléias onde todas as
classes, todos os “estados” do reino se encontravam
presentes. Resolveu que duas assembléias desse gênero,
ainda maiores do que as precedentes, entretanto, seriam
realizadas, uma em Paris, para a langue d’oïl, outra em
Bourges, para a langue d’oc, nas semanas que se
seguiriam à sua sagração. E pronunciou as palavras
“Estados Gerais”.
Os jurisconsultos foram postos a polir os textos que
seriam apresentados aos Estados, para que fosse ratificada,
pelo voto popular, a ascensão de Filipe ao trono.
Recomeçaram a usar, naturalmente, os argumentos do
condestável, isto é, que o lis não podia fiar a lã e que o
reinado era nobre demais para cair em mãos femininas.
Usaram outros mais estranhos, tais como afirmar que entre
o venerado São Luís e Madame Joana de Navarra
contavam-se três intermediários sucessórios, enquanto que
entre São Luís e Filipe só havia dois.
O que fêz, aliás, com muito direito, o Conde de
Valois exclamar :
— Nesse caso, por que não eu, que só estou
separado de São Luís por meu pai?
Enfim, os conselheiros do Parlamento, aguilhoados
por messire de Noyers, exumaram, sem muita fé, o velho
código de costumes dos Francos Sálios, anterior à
conversão de Clóvis ao cristianismo. Aquele código nada
continha quanto à transmissão dos podêres reais. Era uma
compilação de jurisprudência civil e criminal, bastante
mal feita, e, além disso, pouco compreensível, pois tinha
mais de oito séculos. Breve indicação estipulava que a
herança das terras se fazia pela divisão igual entre os
herdeiros varões. Era tudo.
Não foi preciso mais para que alguns doutores em
direito secular construíssem sobre aquilo sua
demonstração, sustentando a tese pela qual estavam sendo
pagos. A coroa de França só poderia ir para os varões,
pois a coroa implicava na posse de terras. E a melhor
prova de que o código sálico tinha sido aplicado desde sua
origem não estava no fato de que só homens se haviam
sucedido? Assim, Joana de Navarra podia ser eliminada
sem que a acusação de bastardia, improvável aliás, fosse
sequer apresentada.
Os doutores eram senhores de seus engrimanços, e
ninguém lembrou-se de objetar-lhes que a dinastia
merovíngia não tivera sua origem nos Sálios, mas nos
Sicambros e Bructeros. E ninguém foi, naquele momento,
olhar no texto aquela famosa lei sálica, que inventaram,
fingindo a ela referir-se, e que ia fazer fortuna na História,
depois de ter arruinado o reino através de cem anos de
guerra.
O adultério de Margarida de Borgonha custaria
caro à França.
Mas, no momento presente, o poder central não
estava inativo: Filipe já reorganizava a administração,
chamava os grandes burgueses para seu conselho, e criava
seus “cavaleiros seguidores”, forma de agradecer os que,
desde Lião, o haviam servido sem tréguas.
Resgatou de Valois a oficina que fabricava moedas
em Mans, antes de resgatar as outras dez espalhadas pela
França. Dali por diante, toda a moeda que circulasse no
reino seria cunhada apenas pelo rei.
Lembrando-se das idéias de João XXII, quando este
último era apenas o Cardeal Duèze, Filipe preparou uma
reforma do sistema de multas penais e direitos de
chancelaria. Os notários depositariam no Tesouro, todos
os sábados, as somas que tivessem em caixa, e o registro
dos atos seria submetido a tarifas decretadas pela Câmara
de Contas (30).
O mesmo que fêz nas chancelarias, fêz nas
alfândegas, nos prebostados, capitanias das cidades e
recebedorias de finanças. Os abusos e malversações, que
tinham tido livre curso desde a morte do Rei de Ferro,
foram reprimidos. Em todas as camadas sociais, em todas
as atividades nacionais, em todos os tribunais de justiça,
nos portos, nos lugares de mercados e feiras, sentiu-se,
compreendeu-se, que a França tinha sido retomada por
mãos firmes... mãos de vinte e três anos.
As fidelidades só são obtidas com benefícios. O
advento de Filipe foi acompanhado de grandes Iarguezas.
O velho senescal de Joinville fora reconduzido ao
seu castelo de Wassy, onde declarara desejar morrer.
Sabia que estava realmente no fim. Seu filho Anseau, que
desde Lião não se afastara de Filipe, disse, um dia, a esse
último:
— Meu pai assegurou-me que coisas estranhas se
haviam passado em Vincennes, quando da morte do
reizinho, chegando-lhe aos ouvidos rumores inquietantes.
— Eu sei, eu sei — disse Filipe. — Também a mim
certos fatos, naqueles dias, pareceram surpreendentes.
Quereis saber qual a minha impressão, Anseau? Não
quero dizer mal de Bouville, pois não tenho prova alguma.
Mas, às vezes, pergunto a mim mesmo se meu sobrinho já
não estaria morto, quando chegamos a Vincennes, e se não
nos teriam apresentado outra criança.
— Por que teria ele feito tal coisa?
— Não sei... Medo de censuras, receio de ser
acusado por Valois ou por outros. Porque aquela criança,
afinal, estava sob a vigilância integral dele, e Bouville
recusava-se obstinada mente a mostrá-lo... recordai-vos.
Bem, repito que isto não passa de uma impressão, que em
nada se fundamenta... Seja como fôr, agora é tarde demais.
Fêz uma pausa, e acrescentou:
— Anseau, mandei registrar-vos no Tesouro para
um dom de quatro mil libras, e isso vos provará bastante a
minha gratidão pelo auxílio que sempre me prestastes. E,
se no dia da sagração, meu primo, o Duque de Borgonha
não estiver presente para prender-me as esporas, como
acredito que não estará, podereis incumbir-vos dessa
tarefa. Sois cavaleiro nobre bastante para tanto.
O ouro foi sempre o melhor metal para fechar as
bocas. Filipe, porém, sabia que a certos homens agradava
que o fecho levasse ornatos de ourivesaria.
Restava acertar o caso de Roberto d’Artois: Filipe
felicitava-se pela idéia de ter mantido seu perigoso primo
na prisão, durante os últimos acontecimentos. Mas não
podia conservá-lo indefinidamente no Châtelet. Uma
coroação é acompanhada quase sempre de atos de
clemência e da outorga de mercês.
Sob intervenção obstinada de Valois, Filipe fingiu
mostrar-se bom príncipe.
— É para vos satisfazer, meu tio — disse ele —
que Roberto será posto em liberdade...
Deixou a frase em suspenso, e pareceu fazer um
cálculo.
— ... Mas três dias somente depois de minha
partida para Reims — acrescentou — e não terá o direito
de se afastar de Paris mais que vinte léguas.
VII
TANTOS SONHOS DESMORONADOS!

EM SUA ascensão real, Filipe, o Longo, não tinha


somente passado por cima de dois cadáveres: deixava
ainda, no rasto de seus passos, dois outros destinos
arruinados, duas mulheres esmagadas: uma, a rainha;
outra, obscura.
No dia seguinte aos funerais do falso João I em
Saint-Denis, Madame Clemência da Hungria, cuja morte
todos esperavam, tinha voltado, muito fracamente, à
consciência e à vida. Um dos remédios mostrara-se,
enfim, eficaz, e a febre e a infecção retiravam-se de seu
corpo, como para deixar lugar a outros sofrimentos. As
primeiras palavras que a rainha pronunciou foram para
pedir seu filho, que mal tivera tempo de entrever. Sua
lembrança mostrava-lhe um corpinho nu, que
friccionavam com água de rosas e depositavam num
berço.
Quando lhe deram a saber, com mil cuidados, que
não podiam mostrar-lho, murmurou:
— Morreu, não é verdade? Eu o sabia. Eu o sentia,
em minha febre... Também isso tinha de acontecer...
Não teve a reação fulminante que temiam. Ficou
prostrada, sem lágrimas, tendo no rosto aquela expressão
de trágica ironia que aparece em certas pessoas, ao fim de
um incêndio, diante das cinzas fumegantes de sua morada.
Seus lábios entreabriram-se como que para rir, e durante
alguns segundos pensaram que ela enlouquecera.
A desgraça tivera requintes de encarniçamento
sobre ela, e havia regiões mortas naquela alma, onde a
sorte podia ferir com redobrados golpes, sem mais extrair
sofrimento.
Quem suportou o pior foi sem dúvida Bouville,
condenado a uma atitude mentirosa de consolador
impotente. Cada palavra de amizade que a rainha lhe
dedicava fazia-o torcer-se de remorsos.
“O filho dela está vivo, e eu não devo dizer-lhe tal
coisa. Quando penso que lhe poderia dar tão grande
alegria!”
Por vinte vezes, a piedade e, mesmo, a simples
honestidade quase levaram a melhor sobre ele. Mas a
Senhora de Bouville, conhecendo sua alma fraca, jamais o
deixava a sós com a rainha.
Pôde, pelo menos, aliviar um pouco a alma,
acusando Mafalda, a verdadeira culpada.
A rainha ergueu os ombros. Que lhe importava a
mão de que as forças do mal se tinham servido para atingi-
la?
— Fui devota, fui boa, pelo menos acredito ter sido
— dizia ela. — Esforcei-me por seguir os mandamentos
da religião e para corrigir os que me eram caros. Jamais
desejei mal a ninguém. E Deus ocupou-se em martirizar-
me mais do que a qualquer de suas criaturas... Ora, vejo os
maus vencerem em tudo.
Não se revoltava, nem blasfemava, também:
constatava, simplesmente, uma espécie de erro
monumental.
Seu pai e sua mãe tinham sido levados pela peste
quando ela tinha apenas dois anos. Enquanto todas as
princesas de sua família, ou quase todas, encontravam
casamento desde que se faziam núbeis, esperara um
partido até a idade de vinte e dois anos. O que lhe fora
oferecido, inesperado, parecia o mais alto do mundo.
Diante daquele casamento com a França ela chegara
deslumbrada, completamente tomada por um amor irreal,
e cheia de todas as boas intenções. Mesmo antes de
desembarcar em seu novo país, correra perigo no mar. Ao
fim de algumas semanas, descobria que tinha casado com
um assassino e sucedido a uma rainha estrangulada.
Depois de dez meses, estava viúva e grávida.
Imediatamente afastada do poder, tinham--na seqüestrado,
sob o pretexto de defendê-la. Acabava de se debater,
durante oito dias, às portas da morte, para saber, mal saída
daquele inferno, que seu filho morrera, envenenado sem
dúvida, como seu marido o fora.
Seria possível imaginar destino mais persistente e
mais funesto?
— A gente de minha terra acredita na má sorte.
Têm razão. Não devo tomar qualquer iniciativa.
Amor, caridade, esperança! Esgotara todas as
reservas das virtudes que possuía, ao mesmo tempo que a
fé se retirava dela. Para que as empregaria? Nada mais lhe
restava a dar.
Tinha passado tais torturas, durante a doença, e de
tal forma sentira as sensações da agonia, que ao
reencontrar-se viva, respirando sem fadiga, alimentando-
se, pousando os olhos sobre as paredes, os móveis, os
rostos, aquilo lhe parecia coisa surpreendente, e dava-lhe
as únicas emoções de que ainda era capaz sua alma, quase
totalmente destruída.
À medida que prosseguia em sua lenta
convalescença, e recobrava sua lendária beleza, a Rainha
Clemência começava a manifestar gostos de mulher idosa
e cheia de caprichos. Dir-se-ia que sob sua aparência
admirável, sob seus cabelos de ouro, sob aquele rosto de
retábulo, aquele peito nobre, aqueles membros fuselados,
que dia a dia recobravam sua sedução, quarenta anos, de
uma só vez, se tinham passado. Num corpo suntuoso, uma
velha viúva reclamava da vida suas últimas alegrias. E
devia reclamá-las durante onze anos.
Frugal até ali, tanto pela religião como por
indiferença, a rainha depressa mostrou estranhas
exigências de mesa, reclamando alimentos raros e
dispendiosos. Coberta por Luís X de jóias, que desdenhara
ao recebê-las, animava-se, agora, abrindo seus cofres de
adornos preciosos, apaixonava-se enumerando as pedras
que possuía, calculando-lhes o valor ou apreciando-lhes a
lapidação ou a água. Convocava ourives, e, resolvendo,
subitamente, modificar um engaste, desenhava com eles
jóias que não teriam uso. Passava também longas horas
com as roupeiras, e mandava comprar os mais caros
tecidos do Oriente, que usaria em seguida, impregnados de
perfumes.
Se, para sair de seus aposentos, usava o vestido
branco que era o luto das viúvas, seus familiares
surpreendiam-se, constrangidos, ao vê-la em seu quarto,
encolhida junto da lareira, sob véus de transparência
excessiva.
Sobrevivia sua generosidade de outrora, mas
apenas sob a forma alterada de liberalidades absurdas. Os
negociantes haviam contado isso uns aos outros, e sabiam
que preço algum seria discutido. A avidez ganhava os
serviçais. Oh! Sem dúvida, a Rainha Clemência era bem
servida. Na cozinha, discutiam para saber quem lhe levaria
uma bandeja, porque, diante de uma sobremesa
ornamentada, de um leite de avelãs, de uma “água de
ouro”, recentemente descoberta, onde o alecrim, o cravo-
da-índia tinham sido bastante macerados em suco de
romã, a rainha abria, subitamente, a mão cheia de moedas.
Logo quis ouvir cantar, e desejou que contos,
poemas e romances fossem recitados por agradáveis
bocas. Seu olhar, que se tornara frio, só anelava pousar
sobre rostos jovens. Um ménestrel bem feito de corpo, de
voz cálida, que a distraíra durante uma hora, e cujos olhos
se haviam perturbado entrevendo-lhe o corpo sob os véus
de Chipre, recebia com o que festejar pelas tavernas
durante um mês.
Bouville alarmava-se com aquelas liberalidades,
mas não pudera deixar de receber também os seus
benefícios.
No dia 1° de janeiro, que continuava a ser a data
dos cumprimentos e dos presentes, embora o ano oficial se
iniciasse na Páscoa, a rainha deu a Bouville um saco
bordado, contendo trezentas libras de ouro. O antigo
camareiro exclamou:
— Não, Madame, por favor, eu não as mereci!
Mas não se pode recusar o dom de uma rainha,
mesmo quando essa rainha arruína-se, e mesmo quando se
está obrigado, diante dela, a uma odiosa mentira.
O infeliz homem, acossado pelo terror e pelos
remorsos, encarava o momento próximo em que a rainha
teria que fazer face a uma desastrosa situação financeira
(31)
.
Naquele mesmo dia 1° de janeiro, Bouville recebeu
a visita de messire Tolomei. O banqueiro achou o antigo
camareiro espantosamente magro e encanecido. Bouville
nadava dentro das próprias roupas, suas faces abatiam-se
de cada lado do rosto. Tinha o olhar inquieto e, ao mesmo
tempo, sua atenção parecia enfraquecida.
“Este homem”, pensou Tolomei, “está sendo roído
por uma doença secreta, e não me surpreenderia que muito
em breve lhe aparecesse um mal mortal. Preciso apressar-
me a tratar dos negócios de Guccio.”
Tolomei conhecia os hábitos, e, tratando-se do ano
novo, trouxera para Senhora de Bouville uma peça de
tecido.
— ... para agradecer-lhe — disse ele — por todos
os cuidados que tivera com aquela moça que acaba de dar
um filho a meu sobrinho...
Também esse presente Bouville quis recusar.
— Ora, ora — insistiu Tolomei. — Aliás, eu
gostaria de conversar um pouco convosco sobre esse
assunto. Meu sobrinho vai voltar de Avinhão, onde nosso
Santo Padre, o papa....
Tolomei persignou-se.
— ... reteve-o até agora para trabalhar nas contas de
sua caixa particular. Êle virá buscar sua esposa e seu
filho... Bouville sentiu todo seu sangue afluir-lhe ao
coração.
— Um instante, Messer, um instante — disse ele.
— Tenho aqui um mensageiro que me espera e ao qual
devo dar uma resposta urgente. Fazei-me o favor de ter
um pouco de paciência.
E desapareceu, com a peça de tecido sob o braço, a
aconselhar-se com sua mulher.
— O marido volta — disse.
— Que marido? — perguntou a Senhora de
Bouville.
— O marido da ama!
— Mas ela não é casada!
— Deve ser! Deve ser! Tolomei está aí. Toma:
trouxe-te isto.
— Que quer ele?
— Que a moça deixe o convento.
— Quando?
— Não sei ainda. Brevemente.
— Então espera saber, nada prometas, e volta a
dizer-me o que há.
Bouville reapareceu junto de seu visitante.
— Dizíeis, então, messer Tolomei?
— Eu vos dizia que meu sobrinho Guccio vai
chegar, para retirar do convento, onde tivestes a bondade
de lhes proporcionar abrigo, sua mulher e seu filho.
Presentemente, eles nada mais têm a temer. Guccio traz
uma carta do Santo Padre, e irá estabelecer-se em
Avinhão, penso, pelo menos por algum tempo...
Gostaria bastante, entretanto, de conservá-los perto
de mim.
Sabeis que ainda não vi este sobrinho-neto que
ganhei? Estava viajando, visitando minhas agências, e só
tive notícia do caso através de uma carta toda feliz da
jovem mãe. Anteontem, mal cheguei, quis levar-lhe
algumas gulodices, mas no convento das Clarissas dei
com a porta fechada.
— É que nas Clarissas a regra é muito severa —
disse
Bouville. — E, a vosso pedido, demos ordens
muito estritas.
— Não lhe aconteceu nada de mal?
— Não... Messer. Nada que eu saiba. Eu vos teria
advertido imediatamente — respondeu Bouville, que se
sentia sobre brasas. — Quando deve chegar vosso
sobrinho?
— Espero-o dentro de dois ou três dias.
Bouville olhou-o com ar apavorado.
— Peço-vos que me perdoeis novamente — disse
ele — mas acabo de lembrar-me que a rainha tinha me
mandado buscar um objeto, que não lhe levei. Já volto, já
volto.
E eclipsou-se novamente.
“Com toda a certeza a moléstia dele é na cabeça”,
pensou Tolomei. “Que satisfação, conversar com um
homem que a cada momento sai fugindo! Contanto que
não me esqueça aqui, por minha vez!”
Sentou-se sobre um cofre, lustrou a pele que
rematava sua manga, e teve tempo para calcular, com uma
diferença de dez libras, o preço do mobiliário que
guarnecia o aposento.
— Aqui estou — disse Bouville, levantando um
reposteiro. — Faláveis, então, em vosso sobrinho? Sabeis
que simpatizo muitíssimo com ele? Foi um agradável
companheiro em nossas viagens a Nápoles! Nápoles... —
repetiu, enternecendo-se. — Se eu tivesse podido
imaginar!... A pobre rainha, a pobre rainha...
Deixou-se tombar sobre o cofre, ao lado de
Tolomei, e limpava com os dedos grandes as lágrimas
provocadas pela lembrança.
“Vejam só! Agora ele chora nas minhas
bochechas!”, pensou o banqueiro. E, em voz alta:
— Eu nada vos disse de todas essas novas
desgraças. Compreendo demasiado bem quanto vos
afligiram. Pensei muitíssimo em vós...
— Ah! Tolomei! Se pudésseis saber!... Foi pior do
que imaginais. O demônio meteu-se na coisa...
Ouviu-se uma pequena tosse seca atrás da
tapeçaria, e Bouville deteve-se de repente no déclive das
confidencias perigosas.
“Essa é boa, alguém nos escuta”, pensou Tolomei,
que se apressou a responder:
— Enfim, nesta aflição, um consolo ao menos nos
foi dado.
Temos um bom rei.
— Sem dúvida, sem dúvida, temos um bom rei —
repetiu Bouville, sem grande calor.
— Eu temia — recomeçou o banqueiro, fazendo
um esforço para afastar seu interlocutor da tapeçaria
suspeita — eu temia que o novo rei nos maltratasse, a nós,
os lombardos. Mas nada disso. Parece, mesmo, que
confiou as recebedorias de rendas, em certas senescalias,
ao pessoal de nossas companhias... Quanto a meu
sobrinho, que trabalhou muito, posso dizer-vos, gostaria
que fosse recompensado de suas lutas encontrando sua
querida e seu herdeiro já instalados em minha casa.
Mandei preparar o aposento para os gentis esposos. Fala-
se mal dos jovens do nosso tempo. Não se acredita que
sejam capazes de sinceridade, nem de amor fiel. Esses
dois amam-se muitíssimo, eu vos garanto.
Basta ler as suas cartas. Se o casamento não foi
feito segundo as regras, não importa! Tornaremos a casá-
los, e eu vos pedirei mesmo, se isso não vos ofende, que
figureis como testemunha...
— É uma grande honra, ao contrário, uma grande
honra, Messer — respondeu Bouville, olhando para o
reposteiro como se ali procurasse uma aranha. — Mas há
a família.
— Que família?
— Sim! A família da ama!
— A ama? — repetiu Tolomei, não entendendo
mais nada.
Pela segunda vez a tossezinha fêz-se ouvir por trás
da tapeçaria. Bouville mudou de aspecto, tartamudeou,
gaguejou:
— É que, Messer... Sim, eu queria dizer... sim, eu
queria contar-vos imediatamente... mas... a todo o
momento interrom pido, acabei esquecendo... Ah! Sim,
agora é preciso que vos diga... Fizemos um pedido à
esposa de vosso sobrinho, pois, conforme assegurais, eles
são casados... Bem, estávamos precisando de ama, e com
boa vontade, com grande boa vontade, através de rogos de
minha esposa, ela amamentou o reizinho,.. durante o
pouco tempo — ai de nós — em que êle viveu.
— Então ela esteve aqui? Foi retirada por vós do
convento?
— E tornamos a levá-la para lá! Constrangia-me
dizer-vos isto... mas o tempo urgia. E, depois, tudo
passou-se tão depressa!
— Mas, Messire, não vos envergonheis disso!
Fizestes muitíssimo bem. A bela Maria! Então ela
amamentou o rei?
Eis uma notícia surpreendente, e quanto é honrosa!
Foi pena, somente, que não pudesse dar-lhe seu leite por
mais tempo — disse Tolomei, que já lamentava todas as
vantagens que poderia ter tirado de uma situação daquelas.
—- Então, não vos é difícil fazê-la sair novamente?
— Oh! Não! Para que ela saia de vez será preciso o
consentimento da família. Tornastes a ver a família dela?
— Nunca mais. Seus irmãos, que tinham feito
tamanho barulho, deram-me a impressão de terem ficado
muito satisfeitos por se verem livres dela, e nunca mais
apareceram.
— Onde moram eles?
— Em sua propriedade, em Cressay.
— Cressay... Onde é isso?
— Perto de Neauphle, onde tenho uma agência.
— Cressay... Neauphle... muito bem.
— Na verdade, sois um homem estranho,
Monsenhor, ouso dizer-vos! — exclamou Tolomei. —
Confio-vos uma jovem, conto-vos tudo a respeito dela,
ides buscá-la para amamentar o filho da rainha, ela vive
aqui oito dias, dez dias...
— Cinco — precisou Bouville.
— Cinco dias — continuou Tolomei — e não
sabeis de onde ela vem e quase ignorais como se chama!
— Sim, sei, sabia-o bem — disse Bouville,
corando. — Mas há momentos em que minha memória
falha.
Não podia correr pela terceira vez para junto de sua
mulher. Por que não vinha ela socorrê-lo, em vez de ficar
escondida atrás da tapeçaria, para repreendê-lo depois, se
cometesse alguma tolice! A Senhora de Bouville tinha
suas razões.
— Este Tolomei é o único homem que eu temo
nesta questão — tinha dito ao marido. — Um nariz de
Lombardo vale mais do que trinta cães de matilha. Se ele
conversar a sós contigo, tolo como és, desconfiará menos,
e eu poderei conduzir melhor o caso, depois.
“Tolo como és”... Ela tem razão, tornei-me um tolo,
dizia consigo Bouville. “Enfim! Outrora eu soube falar
aos reis, e tratar dos seus negócios. Negociei o casamento
de Madame Clemência. Precisei ocupar-me do conclave e
usar de astúcia para com Duèze...” Foi esse pensamento
que o salvou.
— Vosso sobrinho, segundo me dizíeis, está
munido de uma carta de ordem do Santo Padre? — falou.
— Pois bem! Isso resolve tudo. Guccio é quem deve ir
buscar sua esposa, mostrando essa carta. Assim, todos
estaremos a coberto e não correremos o risco de sofrer
censuras nem processos. O Santo Padre!
Que se pode exigir mais?... Dentro de dois ou três
dias, não é verdade? Desejemos, pois, que tudo se passe
pelo melhor.
E muitíssimo agradecido pelo belo tecido. Minha
boa esposa, estou certo, irá apreciá-lo bastante. Até outra
vez, Messer, e sempre às vossas ordens.
Sentia-se mais esgotado do que se tivesse feito uma
carga, em combate.
Tolomei, deixando Vincennes, pensava: “Ou ele
está mentindo, por uma razão que ignoro, ou está voltando
à infância. Enfim, esperemos Guccio”.
A Senhora de Bouville, essa, não esperou. Mandou
atrelar a liteira e correu ao faubourg São Marcelo. Ali,
fechou-se com Maria de Cressay. Depois de lhe ter
matado o filho, vinha exigir de Maria que renunciasse ao
seu amor.
— Jurastes segredo sobre os Evangelhos — dizia a
Senhora de Bouville. — Sereis, entretanto, capaz de
mantê-lo diante desse homem? Teríeis força para viver
com vosso esposo (consentia agora em adornar Guccio
com essa qualidade) deixando-o crer que é pai de uma
criança que não lhe pertence? É pecado esconder coisa tão
grave do cônjuge! E quando conseguirmos fazer vitoriosa
a verdade e viermos procurar o rei para colocá-lo no trono,
que podereis dizer, então? Sois demasiado honesta, e
muito nobre de sangue, para consentir em tamanha vilania.
Todas essas interrogações, Maria as tinha feito a si
própria centenas de vezes, em todas as horas de sua
solidão. Em nada mais pensava, e aquilo torturava-a. E a
resposta, ela bem a conhecia! Sabia que no momento em
que estivesse novamente nos braços de Guccio, nada
poderia calar, não “porque era pecado” como dizia a
Senhora de Bouville, mas porque o amor proibia-lhe a
atrocidade de tal mentira.
— Guccio há de compreender-me, Guccio há de
absolver-me. Êle saberá que aquilo se passou contra a
minha vontade e há de ajudar-me a suportar o fardo.
Guccio nada dirá, Madame, posso jurar por ele como por
mim!
— Não se pode jurar senão por si próprio, minha
filha.
E ainda mais tratando-se de um lombardo: pensais
que ele se calaria! Irá obter vantagens com isso!
— Madame, vós o insultais!
— Não, eu não o insulto, minha cara, apenas
conheço o mundo. Jurastes não falar, mesmo em
confissão. É o rei da França que está sob vossa guarda, e
só sereis libertada de vosso juramento quando o tempo fôr
chegado.
— Por favor, Madame, retomai o rei, e libertai-me.
— Não fui eu quem vo-lo entregou, foi a vontade
de Deus. É um depósito sagrado que tendes convosco!
Teríeis traído Nosso Senhor Jesus Cristo, se Êle tivesse
sido confiado à vossa guarda durante o massacre dos
Inocentes?... Essa criança deve viver. Será preciso que
meu esposo vos conserve sob sua vigilância, e que seja
possível encontrar-vos a qualquer momento, e não que
partais para Avinhão, como se pretende.
— Obterei, então, de Guccio que fiquemos onde
quiserdes: eu vos garanto que ele não falará.
— Êle não falará porque não o vereis mais!
A luta, cortada pela hora da mamada do reizinho,
durou quase uma tarde inteira. As duas mulheres batiam-
se como animais tombados no fundo de uma armadilha.
Mas a pequena Senhora de Bouville tinha os dentes e as
garras mais fortes.
— E que ides fazer de mim, então? Ides encerrar-
me aqui para toda a vida? — gemia Maria.
“Eu gostaria muito de fazer isso”, pensava a
Senhora de Bouville. “Mas o outro vai chegar, com sua
carta do papa...”
— E se vossa família consentisse em receber-vos?
— propôs. — Penso que Messire Hugo conseguiria
convencer vossos irmãos.
Voltar para Cressay, entre parentes hostis,
acompanhada por uma criança que seria considerada como
o filho do pecado, quando entre todas as crianças da
França era a mais digna de honras... Renunciar a tudo,
calar-se, envelhecer, nada mais tendo a fazer senão
contemplar a monstruosa fatalidade, o désespérante
desmantelo de um amor que coisa alguma deveria ter
alterado. Tantos sonhos desmoronados!
Maria rebelou-se. Tornou a encontrar a força que a
havia levado, contra as leis e contra sua família, para os
braços do homem que escolhera. Bruscamente, recusou.
— Tornarei a ver Guccio, hei de pertencer-lhe,
viverei com êle! — exclamou.
A Senhora de Bouville tamborilou, lentamente, nos
braços de sua cadeira.
— Não tomareis a ver esse Guccio — respondeu
ela — porque se ele se aproximar deste convento, ou de
qualquer outro recinto fechado onde pudermos colocar-
vos, e chegardes a lhe falar, um minuto que seja, esse
minuto será o último para o vosso esposo. Meu marido,
bem o sabeis, é homem enérgico e temível, quando se trata
de proteger o rei. Se fazeis excessiva questão de tornar a
ver esse homem, podereis contemplá-lo, mas com uma
misericórdia entre os ombros.
Maria encolheu-se um pouco sobre si mesma. —
Basta terem matado o filho — murmurou ela — não
precisam matar também o pai.
— Só depende de vós — disse a Senhora de
Bouville.
— Nunca pensei que na corte de França o
assassinato fosse coisa tão fácil. E é essa a nobre corte que
o reino respeita.
Preciso dizer-vos, Madame, que eu vos odeio.
— Sois injusta, Maria. Minha tarefa é árdua, e eu
vos estou defendendo contra vós mesma. Escrevei o que
vou ditar.
Vencida, desamparada, as têmporas em fogo e o
olhar velado pelas lágrimas, ela traçou penosamente as
frases que jamais acreditara poder escrever. A carta
deveria ser levada à casa de Tolomei, a fim de que ele a
entregasse a seu sobrinho.
Maria declarava sentir grande vergonha e horror
pelo pecado que cometera. Queria consagrar-se à criança
que era o fruto desse pecado, não mais recair nos erros da
carne, e desprezar o homem que a seduzira. Proibia
Guccio de tentar revê-la, onde quer que se encontrasse.
Quis ao menos escrever, terminando: “Juro-vos não
ter jamais outro homem na minha vida senão vós, e não
me comprometer com ninguém mais”. A Senhora de
Bouville recusou.
— Êle não deve suspeitar que ainda lhe tendes
amor. Vamos, assinai, e dai-me essa carta.
Maria nem mesmo viu a pequenina mulher ir-se
embora.
“Êle me odiará, vai desprezar-me, e não saberá
nunca que fiz isso para salvá-lo!”, pensava, ouvindo bater
a porta do convento.
VIII
PARTIDAS

A CHEGADA ao sovar de Cressay, no dia seguinte


pela manhã, de um mensageiro a cavalo, trazendo a flor-
de-lis na manga esquerda e as armas reais bordadas na
gola, produziu grande efeito. Trataram-no de Monsenhor,
e os irmãos de Cressay, diante do breve bilhete que os
chamava com urgência a Vincennes, acreditaram-se
convocados para algum comando de capitania ou viram-se
já nomeados senescais.
— Isso não seria de espantar — disse a dama
Eliabel. — Teriam recordado, afinal, nossos méritos e os
serviços que prestamos ao reino, há trezentos anos. Esse
novo rei dá-me a impressão de compreender onde deve
procurar homens de valor! Ide, meus filhos, vesti-vos com
o que tendes de melhor, e apres-sai-vos a ganhar o
caminho. Há, realmente, um pouco de justiça no céu, e
isso nos consolará das vergonhas que vossa irmã nos fêz
passar.
Estava mal recuperada de sua doença no verão.
Tornara-se pesada, perdera sua bela atividade de outrora, e
já não mostrava autoridade senão atormentando a criada
da cozinha. Deixara em mãos de seus filhos a direção do
pequeno domínio, que nem por isso ia melhor.
Os dois irmãos puseram-se, pois, a caminho, a
cabeça cheia de esperanças ambiciosas. O cavalo de Pedro
cabeceava tanto, ao chegar a Vincennes, que se poderia
supor que era aquela a sua última viagem.
— Tenho que conversar convosco sobre coisas
graves, meus jovens sires — disse-lhes Bouville,
acolhendo-os.
E mandou oferecer-lhes vinho com especiarias e
confeitos.
Os dois rapazes mantinham-se sentados na beirada
de suas cadeiras, como caipiras, e mal ousavam levar aos
lábios as grandes taças de prata.
— Ah! Eis a rainha que passa — disse Bouville. —
Está aproveitando a melhoria do tempo para tomar um
pouco de ar.
Os dois irmãos, com o coração batendo, esticaram o
pescoço para perceber, através dos vidros esverdeados,
uma forma branca, coberta com um grande manto,
avançando a passos lentos, escoltada por alguns
servidores. Depois, entreolharam-se, sacudindo a cabeça.
Tinham visto a rainha!
— É de vossa jovem irmã que desejo falar-vos —
recomeçou Bouville. — Estaríeis dispostos a levá-la de
volta? Será preciso que vos diga, antes de mais nada, que
ela amamentou o filho da rainha.
E explicou-lhes, com o mínimo de palavras
possível, o que era indispensável que soubessem.
— Ah! Tenho também uma boa notícia para vós —
continuou. — Aquele italiano que a engravidou... ela não
quer mais revê-lo, nunca mais. Compreendeu sua culpa, e
viu que uma jovem de sangue nobre não pode rebaixar-se
casando-se com um lombardo, por muito bem feito que
seja. Pois ele é um donzel encantador, devemos
reconhecê-lo, e vivo de espírito...
— Mas, enfim, não passa de um íombardo —
interrompeu a Senhora de Bouville que, dessa vez, assistia
à conversação. — Um homem sem palavra nem fé, como
provou.
Bouville baixou a cabeça.
“Também a ti preciso trair, meu amigo Guccio,
meu gentil companheiro de viagem, eis aí! Terei que
terminar meus dias renegando todos os que me tiveram
amizade?”, pensava. Calou-se, deixando à sua mulher o
cuidado de dirigir a operação.
Os irmãos estavam um tanto’ despeitados, o mais
velho sobretudo. Tinham esperado maravilhas, e tratava-se
apenas de sua irmã. Nenhum acontecimento lhes adviria
senão através dela? Quase lhe tinham ciúmes. Ama de rei!
E um alto personagem, como o camareiro, interessava-se
pela sua sorte! Que teria imaginado tal coisa?
A tagarelice da Senhora de Bouville não lhes dava
tempo de refletir.
— O dever do cristão — dizia ela — é auxiliar o
pecador em seu arrependimento. Tratai de agir como
gentis-homens.
Quem sabe se não foi pela vontade de Deus que
vossa irmã deu à luz no momento necessário, sem grande
proveito, infeliz mente, pois o reizinho morreu. Mas,
enfim, ela ajudou-o muito. A Rainha Clemência, para
mostrar seu reconhecimento, fará registrar em favor do
filho da ama uma renda de cinqüenta libras, que serão
recebidas anualmente de sua dotação. Além disso, um
dom de trezentas libras de ouro lhe será feito neste
momento. A soma aí está, num saco bordado.
Os dois irmãos Cressay mal puderam esconder sua
emoção. Era a fortuna que lhes caía do céu, o modo de
conseguirem levantar o muro que fechava o recinto de seu
solar arruinado, a certeza de terem a mesa bem fornida o
ano inteiro, a perspectiva de conseguirem, enfim, comprar
armaduras e equipar alguns de seus servos como criados
armados, a fim de poderem mostrar-se bem no
recrutamento das tropas de pendão! Deles havia-se de
falar nos campos de batalha (32)!
— Compreendei-me bem — precisou a Senhora de
Bouville — é à criança que esses dons são feitos. Se ela
fôr maltratada ou se alguma desgraça lhe acontecer, a
renda, está claro, será suprimida. Pois o fato de ser o
menino irmão de leite do rei confere-lhe uma distinção
que deveis respeitar.
— Sem dúvida, sem dúvida, eu aprovo... já que
Maria se arrepende — disse o irmão barbudo, pondo
ênfase em sua solicitude — e pois que seu perdão nos é
apresentado por pessoas tão altas como vós, Madame...
devemos abrir-lhe os braços.
A proteção da rainha apaga seu pecado. E que
daqui por diante, ninguém, seja nobre ou vilão, ouse rir-se
diante de mim: corto-o ao meio.
— E nossa mãe? — perguntou o mais moço.
— Tenho certeza de convencê-la — respondeu
João. — Sou o chefe da família desde que morreu nosso
pai, é preciso não esquecer isso.
— Ides, é evidente, jurar sobre os Evangelhos —
disse a Senhora de Bouville — que nada ouvireis ou
repetireis do que vossa irmã possa dizer-vos ter visto
enquanto esteve aqui, pois são assuntos da coroa, que
devem conservar-se secretos. Aliás, ela nada viu :
amamentou, eis tudo! Mas vossa irmã tem a cabeça um
tanto extravagante e gosta de contar fábulas: provou-vos já
isso... Hugo! Vai buscar os Evangelhos.
O livro santo de um lado, o saco de ouro do outro, e
a rainha que passeava no jardim... Os irmãos Cressay
juraram calar todas as coisas concernentes à morte do Rei
João I, e velar, alimentar e proteger a criança que
pertencia à sua irmã, assim como proibir a presença do
homem que a seduzira.
— Ah! Juramos de todo o coração! Que nunca mais
apareça! — exclamou o mais velho.
O mais novo mostrava menos convicção na
ingratidão. Não podia deixar de pensar : “Ainda assim,
sem Guccio...”
— Havemos, aliás, de nos informar, para saber se
vos mantendes atentos ao vosso juramento — disse a
Senhora de Bouville.
Ofereceu-se aos dois irmãos para acompanhá-los
naquele mesmo momento ao convento das Clarissas.
— É muito trabalho para vós, Madame — disse
João de Cressay. — Iremos sozinhos.
— Não, não, preciso ir também. Sem minha ordem,
a madre abadêssa não deixará Maria sair.
O rosto do barbudo ficou sombrio. Refletia.
— Que tendes? — perguntou a Senhora de
Bouville. — Vedes alguma dificuldade?
— É que eu queria... comprar antes uma mula, para
que nossa irmã montasse.
Quando Maria estava grávida, ele fizera a moça
viajar na garupa, de Neauphle a Paris. Agora, ela os
enriquecia, e o irmão fazia questão de que sua volta se
revestisse de dignidade. Depois, a mula que servia à dama
Eliabel rebentara havia um mês.
— Que não seja essa a dúvida — disse a Senhora
de Bouville — vamos dar-vos uma. Hugo! Manda selar
uma mula.
Bouville acompanhou sua esposa e os dois irmãos
Cressay até a ponte levadiça.
“Gostaria de estar morto”, pensava o infeliz
homem, emagrecido, fremente, olhando para a floresta
despida. “Assim cessaria de mentir e temer.”
* *
*
“Paris!... Enfim, Paris!”, dizia consigo Guccio Ba-
glioni, passando pela porta Saint-Jacques.
Paris estava melancólico e frio. O movimento da
vida, como acontecia sempre, depois das festas do Ano
Novo, parecia ter cessado e naquele janeiro mais do que
de costume, em conseqüência da partida da corte.
Mas o jovem viajante, que voltava depois de seis
meses de ausência, não via os véus de bruma presos aos
telhados, nem os raros transeuntes transidos. Para ele, a
cidade mostrara fisionomia de sol e de esperança, porque
aquele “Enfim, Paris!”, que repetia como se fosse a
canção mais feliz do mundo, queria dizer: “Enfim, vou
rever Maria!”
Guccio usava manto forrado de pele, e capa de
chuva, feita de lã de camelo. Sentia pesar à cinta uma
bolsa à-cul-de-vilain (33), repleta de boas libras marcadas
com o cunho do papa. Trazia na cabeça um elegante
chapéu de feltro vermelho, levantado atrás e formando
longa ponta sobre a testa. Era impossível estar melhor
vestido para agradar, nem sentir maior impaciência de
viver do que ele sentia.
Saltou da sela, no pátio da Rua dos Lombardos e,
avançando sua perna, sempre um tanto rígida depois do
acidente de Marselha, correu a atirar-se nos braços de
Tolomei.
— Meu caro tio, meu bom tio! Vistes meu filho?
Que tal é ele? E Maria, como passou nisso tudo? Que vos
disse ela? Quando me espera ver?
Tolomei, sem uma palavra, entregou-lhe a carta de
Maria de Cressay. Guccio leu-a duas vezes, três vezes...
Diante das palavras: “Sabei que fui tomada de grande
aversão pelo meu pecado e que não mais quero rever
aquele que foi a causa da minha vergonha. Quero redimir-
me dessa desonra...” — ele gritou:
— Não é verdade, não é possível! Ela não poderia
ter escrito uma coisa destas!
— Não é a letra dela? — perguntou Tolomei.
— É.
O banqueiro pousou a mão no ombro do sobrinho.
— Se tivesse sido possível, eu te preveniria a
tempo — disse. — Mas só anteontem recebi esta carta,
depois de ter ido ver Bouville...
Guccio, o olhar ardente e fixo, os dentes cerrados,
não o ouvia. Pediu o endereço do convento.
— No faubourg São Marcelo? Vou até lá! — disse
ele.
Pediu seu cavalo, que mal tinham terminado de
desselar, tornou a atravessar a cidade sem mais nada ver, e
foi bater à porta das Clarissas. Ali, responderam-lhe que
demoiselle de Cressay tinha partido na véspera, levada por
dois gentis-homens, um dos quais usava barba. Não lhe
adiantou brandir o sinête do papa, trovejar, fazer
escândalo. Nada mais obteve.
— A abadêssa! Quero ver a madre abadêssa! —
exclamou.
— Homens não podem entrar na clausura.
Terminaram por ameaçá-lo, dizendo que
chamariam os sargentos da patrulha.
Sem fôlego, o rosto acinzentado, os traços
contorcidos, Guccio voltou para a Rua dos Lombardos.
— Foram os irmãos, aqueles velhacos dos irmãos
que a vieram buscar! — declarou ele a Tolomei. — Ah!
Eu estive ausente por uma temporada grande demais. Que
bela fé, a que ela me jurou e que não durou seis meses!
Pois essas damas da nobreza, segundo nos contam nos
romances, esperam dez anos pelos seus cavaleiros que
estão na cruzada. Mas um lombardo, isto não é coisa que
se espere! Pois é isso, meu tio, não é outra coisa! Tornai a
ler os termos da carta! Só insultos e desprezos. Podiam
obrigá-la a não me ver mais, não poderiam obrigá-la a
esbofetear-me assim em plena face... Enfim, meu tio!
Estamos ricos, temos dezenas de milhares de
florins. Os mais altos barões vêm implorar-nos para que
paguemos suas dívidas, o próprio papa tomou-me como
conselheiro durante o conclave, e aqueles rústicos
camponeses cospem-me no rosto, do alto de seu castelo-
forte de taipa, que cairia com um empurrão! Foi bastante
que aparecessem aqueles dois gafentos, para que a irmã
me repelisse. Que engano, pensar que uma mulher não é
da mesma casta de seus parentes!
O desgosto, em Guccio, depressa se ia
transformando em cólera e os ressentimentos do orgulho
ajudavam-no a defender-se do desespero. Deixara de
amar, mas não deixara de sofrer.
— Eu não compreendo — dizia Tolomei, desolado.
— Parecia tão amorosa, tão feliz de pertencer-te... Eu
nunca pensaria... Vejo, agora, por que Bouville mostrava-
se tão constrangido no outro dia. Sabia algo com certeza.
Mas, então, êle preveniu os irmãos, depois da minha
visita... Entretanto, as cartas que eu dela recebi... Não
compreendo. Queres que eu vá procurar novamente
Bouville?
— Não quero nada, não quero mais nada! —
exclamou Guccio. — Já importunei demais os grandes da
terra, para que cuidassem daquela mulherzinha
enganadora. Até mesmo ao papa cheguei a pedir proteção
para ela... Amorosa, dizes? Acarinhou-te quando pensou
que estava sendo repelida pelos seus e só via proteção
entre nós. Entretanto, tínhamos casado! Não lhe faltava
impaciência para dar-se a mim, mas não sem a bênção do
padre. Disseste-me que passou cinco dias junto da Rainha
Clemência, servindo de ama! Com certeza ficou de cabeça
virada, vendo-se num trabalho que qualquer camareira
poderia fazer em seu lugar. Também eu estive junto da
rainha, e ajudei-a de outra forma! No meio da tempestade,
salvei-a...
Já não ligava suas idéias, divagava em seu furor e,
caminhando pelo aposento, a atirar a perna, já fizera bem
um quarto de légua.
— Talvez se procurasses a rainha...
— Nem a rainha, nem ninguém! Que Maria volte a
seu lugarejo lamacento, onde a gente enterra-se até os
tornozelos no estrume. Com certeza arranjaram-lhe um
marido, um boià marido, parecido com seus rústicos
irmãos. Algum cavaleiro peludo e tresandante, que criará
meu filho, o cornudo! Mesmo que ela agora viesse rojar-se
a meus pés, eu não a quereria mais, estás ouvindo? Eu não
a quereria mais!
— Acho que se ela entrasse agora, falarias de outra
forma — disse Tolomei, suavemente.
Guccio empalideceu, e escondeu os olhos na palma
das mãos. “Minha bela Maria...” Revia-a em seu quarto de
Neauphle. revia-a bem próxima dele e observava os
pontos dourados em seus olhos de um azul sombrio. Como
seria possível que semelhante traição se dissimulasse em
olhos tais?
— Vou embora, meu tio.
— Para onde? Voltas para Avinhão?
— Que belo papel faria eu lá! Anunciei a todo o
mundo que voltaria com minha esposa, e atribuí-lhe todas
as virtudes. O próprio Santo Padre será o primeiro a pedir-
me notícias dela...
— Bocácio disse-me, um dia destes, que os Peruzzi
vão sem dúvida arrendar a recebedoria das taxas da
senescalia de Carcassonne...
— Não! Nem Carcassonne, nem Avinhão.
— Nem Paris, com certeza... — disse, triste,
Tolomei.
A todo homem, por muito egoísta que tenha sido,
chega um dia, no crepúsculo da existência, em que ele se
sente cansado de trabalhar para si próprio. O banqueiro,
depois de ter esperado a presença de uma bonita sobrinha
e de uma família feliz em sua casa, via, de súbito, suas
próprias esperanças apagarem-se e, em lugar delas,
esboçar-se a perspectiva de longa velhice solitária.
— Não, eu quero partir — disse Guccio. — Nada
mais desejo desta França que prospera à nossa custa e
despreza-nos porque somos italianos. Que ganhei na
França, pergunto-te?
Uma perna dura, quatro meses de hospital, seis
semanas numa igreja, e, para terminar... isto! Eu deveria
ter compreendido que esta terra de nada me serviria.
Lembra-te! No dia seguinte da minha chegada, quase
derrubei na rua o Rei Filipe, o Belo. Não foi um bom
presságio! Sem falar das travessias de mar, nas quais por
duas vezes quase morri, e de todo o tempo passado a
contar bilhões* para os plebeus daquele burgo lamacento
de Neauphle, porque acreditava ter-me apaixonado ali.
— Apesar de tudo, conseguiste algumas boas
recordações — disse Tolomei.
— Bah! Na minha idade não se tem necessidade de
recordações. Quero voltar para a minha cidade de Siena,
onde não faltam belas jovens, as mais belas do mundo,
segundo me afirmam toda vez que digo que sou sienense.
Menos velhacas, em todo o caso, do que as daqui! Meu
pai mandou-me para junto de ti, a fim de que eu
aprendesse: penso que já aprendi bastante.

*
Pequena moeda de cobre da época. 218
Tolomei abriu seu olho esquerdo, pois tinha um
pouco de bruma sobre aquela pálpebra.
— Talvez tenhas razão — disse. — O desgosto
passará mais depressa, quando estiveres longe. Mas nada
deves lamentar, Guccio. O aprendizado que fizeste não foi
mau. Viveste, correste pelos caminhos, conheceste as
misérias dos pequenos e descobriste as fraquezas dos
grandes. Estiveste junto das quatro cortes que dominam a
Europa, as de Paris, Londres, Nápoles e Avinhão. Ficar
encerrado num conclave foi coisa que não aconteceu a
muita gente! Fizeste boa carreira nos negócios. Dar-te-ei
tua parte, e a soma é bem agradável. O amor levou-te a
fazer algumas tolices e deixas um bastardo no caminho,
como alguém que tenha viajado muito... E não tens mais
de vinte anos. Quando desejas partir?
— Amanhã, zio Spinello, amanhã, se não te
opuseres... Mas voltarei! — acrescentou Guccio, em tom
furioso.
— Oh! Eu espero que sim, meu rapaz! Espero que
não vás deixar que o teu velho tio morra sem te rever!
— Voltarei, um dia, e raptarei meu filho. Pois é
meu, afinal, tanto quanto dos Cressay! Por que haveria eu
de deixá-lo para eles? Para que o criem em sua cavalariça,
como a um cão de má raça? Eu o raptarei, estás ouvindo?
E esse será o castigo de Maria. Sabes o que se diz em
nossa terra: vingança de toscano...
Um grande estrépito, vindo do rés-do-chão,
interrompeu-o. A casa de vigas de madeira tremia sobre
seus fundamentos como se doze carros grandes de
transporte tivessem entrado no pátio. Portas batiam.
O tio e o sobrinho dirigiram-se para a escada de
caracol, que já ia sendo tomada por um ruído de assalto de
guerra. Uma voz tonitroou :
— Banqueiro! Onde estás, banqueiro? Preciso de
dinheiro.
E Monsenhor Roberto d’Artois apareceu no alto
dos degraus.
— Olha bem para mim, banqueiro meu amigo: saio
neste momento da prisão! — exclamou. — Acreditarias
numa coisa destas? Meu primo, o doce, o melífluo, o
zarolho... quero dizer, o rei, pois, ao que parece, ele o é...
lembrou-se, enfim, que eu estava apodrecendo na prisão
onde me atirara, e de volve-me ao ar livre, o amável
rapaz!
— Sede bem-vindo, Monsenhor — disse Tolomei
sem entusiasmo.
E inclinou-se sobre a escada, duvidando ainda que
tal passagem de furacão pudesse ser obra de um só
homem.
Baixando a cabeça para não esbarrar no lintel da
porta, o Conde d’Artois entrou no gabinete do banqueiro e
caminhou diretamente para um espelho.
— Olá! Mas estou com cara de defunto! — disse
ele, tomando as faces com ambas as mãos. — Para dizer a
verdade, com muito menos qualquer um enfraqueceria.
Sete semanas, imagina, sem ver a luz do dia senão por
uma trapeira recoberta com ferros cruzados, grossos como
o membro de um burro! Duas vezes por dia üma chanfana
que já produzia eólicas, antes de ser comida. Por
felicidade, meu Lormet arranjava-se para passar-me pratos
à moda dele, senão a esta hora eu não estaria vivo. E uma
cama... nem falemos! Em consideração pelo meu sangue
real, tinham-me feito a gentileza de uma cama. Tive que
partir-lhe a guarda para poder esticar os pés! Paciência:
tudo isso será levado à conta de meu caro primo.
Na verdade, Roberto não emagrecera uma onça
sequer, e a reclusão pouca diferença fizera à sua sólida
natureza. Se sua carnação mostrava-se menos viva, em
compensação seus olhos cinzentos, côr de sílex, brilhavam
mais maldosamente do que outrora.
— Bela liberdade, a que me dão! “Estais livre,
Monsenhor” — continuou o gigante, imitando o capitão
do Châtelet.
— “Mas... não podeis afastar-vos mais de vinte
léguas de Paris; mas os aguazis do rei devem saber onde
morais; mas a capitania d’Evreux, se fordes até vossas
terras, deve ser advertida.” Em outras palavras: “Fica aqui,
Roberto, batendo as ruas sob os olhos da patrulha, ou
então vai mofar em Conches.
Mas nem um pé em direção de Artois, nem um pé
em direção de Reims! Não querem saber de ti na sagração,
principalmente na sagração! Bem poderias cantar ali
algum salmo que não agradaria a todos os ouvidos!” E
escolheram bem o dia, para relaxar a minha prisão. Nem
muito cedo, nem muito tarde.
Toda a corte partiu: não há ninguém no Palácio,
não há ninguém em casa de Valois... Êle abandonou-me, o
primo!
E aqui estou, numa cidade morta, sem um liard na
bolsa para cear hoje e para encontrar alguma rapariga com
a qual expandir meu apetite amoroso! Porque há sete
semanas, compreendes, banqueiro... não, tu não podes
compreender. Isso é coisa que não deve incomodar-te
mais. Repara, repara bem: eu me refocilara bastante em
Artois, enquanto ali estive, para manter-me calmo durante
algum tempo. E por lá deve estar em andamento um bom
número de criadinhos que jamais virão a saber que
poderiam dizer “vovô”, falando de Filipe-Augusto.
Constatei, porém, uma coisa estranha, sobre a qual os
doutores e filósofos deveriam meditar; por que há nos
homens um membro que, quanto mais trabalho se lhe dá,
mais trabalho ele reclama?
Deu uma gargalhada, fêz estalar uma cadeira de
carvalho, sentando-se nela, e, subitamente, pareceu reparar
na presença de Guccio.
— E vós, meu lindinho, como vão os vossos
amores? — perguntou, o que, em sua boca, significava
apenas “bom dia”.
— Meus amores! Falemos deles, Monsenhor! —
disse Guccio, descontente ao verificar que uma violência
maior do que a dele o havia interrompido.
Tolomei, com uma careta, fêz sinal ao Conde
d’Artois, prevenindo que o assunto não era muito
propositado, no momento.
— Então — disse d’Artois, com sua habitual
delicadeza — uma bela vos deixou? Dai-me logo o
endereço dela, que eu correrei até lá! Vamos, não tomeis
esse ar triste. As mulheres são todas umas dissolutas.
— Sem dúvida, Monsenhor. Todas!
— Então! Folguemos, pelo menos, com as que o
são francamente! Banqueiro, preciso de dinheiro. Cem
libras. E levo teu sobrinho a cear comigo, para lhe tirar da
cabeça as idéias negras. Cem libras!... Sim, eu sei, eu sei,
já vos devo muito, e estais pensando que nunca chegarei a
pagar-vos. Estais enganado. Muito em breve vereis
Roberto d’Artois mais pode roso do que nunca. O Filipe
pode bem enterrar a coroa até o nariz, porque eu não
demorarei a fazer com que ela lhe salte da cabeça. Porque
vou contar-te uma coisa que vale mais de cem libras, e que
te servirá para teres cuidado com as pessoas às quais
emprestas dinheiro... Qual é o castigo dos regicidas?
Enforcamento, degolação ou esquartejamento? Assistireis,
bem depressa, a um espetáculo agradável: minha gorda tia
Mafalda, nua como uma prostituta, estirada por quatro
cavalos, e suas tripas rolando na poeira. E seu genro,
aquele texugo, estará com ela! É pena que não o possamos
supliciar duas vezes. Porque mataram dois, os celerados.
Eu nada disse enquanto estava no Châtelet, para que não
viessem, uma bela noite, sangrar-me como a um porco.
Mas pude manter-me ao corrente do que se passava.
Lormet... sempre o meu Lormet, aquele excelente homem!
Ouvi-me!
Depois de sete semanas de mutismo forçado, aquele
terrível falador compensava-se, e só retomava o fôlego
para falar ainda mais.
— Ouvi-me bem — continuou. — Um: Luís
confisca a Mafalda o condado de Artois, para devolver-
mo, e, imediata mente, Mafalda manda envenená-lo. Dois:
Mafalda, para ficar a coberto, impele Filipe para a
regência, contra Valois, porque este último teria mantido o
meu direito. Terceiro: Filipe consegue que aceitem seu
regulamento de sucessão, que exclui as mulheres da coroa
da França, mas não da herança dos feudos, vede bem!
Quatro: confirmado regente, Filipe* pode convocar a
hoste que me desalojaria de Artois, quando eu já estava
quase a reavê-lo inteiramente. Não sendo tolo, vim render-
me sozinho. Mas a Rainha Clemência vai dar à luz, é
preciso que tenham as mãos livres, e encarceram-me.
Cinco: a rainha dá à luz um filho. Leve pecado! Fecham
Vincennes, escondem a criança aos barões, conta-se que
ela não é viável, entram em conchavo com alguma parteira
ou ama, pelo pavor ou pelo suborno, e matam o segundo
rei. Depois do que, vão fazer-se sagrar em Reims. Eis,
meus amigos, como se obtém uma coroa. Tudo isso para
não me devolverem meu condado de Artois.
À palavra “ama”, Tolomei e Guccio haviam
trocado um breve olhar de inquietação.
— São coisas que toda a gente pensa — acabou
d’Artois — mas que ninguém ousa reclamar, pela falta de
provas. Acontece, porém, que eu tenho a prova! Vou
apresentar, agora, certa dama que forneceu o veneno.
Depois, será preciso fazer cantar um bocadinho, nos
borzeguins de madeira, aquela Beatriz d’Hirson, que
serviu de alcoviteira do diabo nesse belo jogo. É tempo de
pôr fim a ele, senão todos seremos atingidos.
— Cinqüenta libras, Monsenhor. Posso dar-vos
apenas cinqüenta libras.
— Avarento!
— É tudo o que sou.
— Seja. Ficas devendo-me, portanto, as outras
cinqüenta libras. Mafalda há de pagar-te tudo isso, com
juros.
— Guccio — disse, então, Tolomei — vem ajudar-
me a contar cinqüenta libras para Monsenhor.
E retirou-se, com seu sobrinho, para o aposento
vizinho.
— Meu tio — murmurou Guccio — acreditas que
haja alguma verdade no que ele acaba de dizer?
— Não sei, meu rapaz, não sei, mas acho que tens,
com toda a certeza, muita razão em querer partir. Não é
bom estar misturado demais com esse negócio, que cheira
mal. As maneiras estranhas de Bouville, a súbita fuga de
Maria... Sem dúvida, não se pode levar em conta todas as
agitações desse furioso, mas reparei, muitas vezes, que ele
não passava jamais muito longe da verdade, quando se
tratava de maldades: é mestre no assunto, e sente-lhe o
cheiro à distância. Recorda o adultério das princesas: fêz
com que fosse descoberto e já nos tinha prevenido. Tua
Maria... — disse o banqueiro, balançando sua mão gorda
num gesto de dúvida — talvez seja menos ingênua e
menos franca do que tínhamos julgado. Há nisso tudo,
sem dúvida, algum mistério.
— Depois de sua carta de traição, tudo se pode crer
— falou Guccio, cujo pensamento extraviava-se em vinte
direções diferentes.
—-Não creias em nada, não procures nada: parte. É
um bom conselho.
Quando Monsenhor d’Artois viu-se de posse das
cinqüenta libras, insistiu para que Guccio tomasse parte na
pequena festa com que contava festejar sua libertação.
Precisava de um companheiro, e preferiria embebedar-se
com seu cavalo a ficar só.
Pôs tanta insistência naquilo, que Tolomei acabou
por cochichar ao sobrinho:
— Vai, senão ele ficará ofendido conosco. Reprime
tua língua, porém.
Guccio terminou, pois, o dia exaspérante numa
taverna, cujo proprietário pagava tributo aos oficiais da
patrulha para que o deixassem fazer um pouco de tráfico
de lupanar. Tudo quanto ali se dizia, aliás, era repetida
pelos aguazis.
Monsenhor d’Artois apresentou em suas melbortes
disposições, insaciável no pichei de vinho, prodigioso de
apetite, vociferando, desbocado, transbordante de ternura
humana para com seu jovem companheiro, e erguendo as
saias das raparigas para mostrar a todos o verdadeiro rosto
de sua tia Ma-falda.
Guccio, estimulado com aquilo, não resistiu muito
ao vinho. Os olhos brilhantes, os cabelos em desordem, e
o gesto hesitante, gritava :
— Também eu sei coisas... Ah! Se eu quisesse
falar...
— Fala, fala, pois!
— O papa... — disse ele. — Sei muito sobre o
papa.
Subitamente, começou a chorar, verdadeiro rio,
sobre o ombro de uma prostituta; depois, esbofeteou-a,
porque via nela a imagem da traição feminina.
— Mas eu voltarei... e hei de raptar-lho!
— A quem? Ao papa?
— Não, o seu filho!
A noitada ia fazendo-se confusa, os olhares
vacilavam, as raparigas fornecidas pelo dono do lupanar já
quase não tinham roupa sobre a pele, quando Lormet
aproximou-se de Roberto d’Artois, para dizer-lhe ao
ouvido:
— Lá fora há um homem que vos espia.
— Mata-o! — respondeu negligentemente o
gigante.
— Está bem, Monsenhor.
Assim a Senhora de Bouville perdeu um de seus
criados, que pusera no rasto do jovem italiano.
Guccio jamais saberia que Maria, com o seu
sacrifício, poupara-lhe, certamente, terminar seus dias de
ventre para o ar, sobre a corrente do Sena.
Chafurdado num leito duvidoso, sobre os seios da
rapariga que esbofeteara, e que se mostrava compreensiva
em relação aos desgostos do homem, Guccio continuava a
insultar Maria, e imaginava vingar-se dela, magoando uma
carne mercenária.
— Tens razão! Eu também não gosto das mulheres,
são todas umas mentirosas — dizia a prostituta, de cujos
traços Guccio jamais se recordaria.
No dia seguinte, o chapéu enterrado até os olhos, os
membros fatigados e a alma e o corpo igualmente
enojados, Guccio tomava o caminho da Itália. Levava bem
agradável fortuna, sob a forma de uma cambial assinada
por seu tio, e que representava sua parte nos lucros dos
negócios de que tratara naqueles últimos dois anos.
No mesmo dia, o Rei Filipe V e sua esposa Joana,
bem como a Condêssa Mafalda, com todo o seu trem de
casa, chegavam a Reims.
As portas do solar de Cressay já se haviam fechado
sobre a bela Maria, que ali vivia, inconsolável, em
perpétuo inverno.
O verdadeiro rei de França iria crescer ali, como
um bastardozinho. Daria seus primeiros passos no pátio
lamacento, entre os patos, rolaria pelos prados de íris
amarelos, ao longo do Mauldre, naquele prado em que
Maria, cada vez que por ele caminhasse, encontraria o
rosto de seu sedutor sienense e a passagem fugaz de seus
amores mortos. Manteria o juramento, e durante trinta
anos guardaria seu segredo, para confiá-lo, enfim, em seu
leito de morte, a um religioso espanhol que por ali viria a
passar.
Maria de Cressay viera marcada por estranho
destino. Amorosa condenada à solidão, e que em toda sua
vida só deixaria seu lugarejo natal a fim de ser empurrada,
inocente, impotente, para o núcleo de um drama dinástico,
sua confissão, um dia, perturbaria a Europa*.

*
A história dessa confissão, e a vida dramática do filho de
Clemência da Hungria, serão objeto de um. dos volumes da
segunda época dos REIS MALDITOS: “O Lis e o Leão”.
IX
A VÉSPERA DA SAGRAÇÃO

AS PORTAS de Reims, rematadas com as armas


reais, tinham sido pintadas de novo. As ruas estavam
ornadas com tecidos brilhantes, tapetes e sedas, os
mesmos, aliás, que haviam servido um ano e meio antes
para a sagração de Luís X. Junto do palácio arquiepiscopal
vinham de ser edificadas apressadamente três grandes
salas de madeira: uma para a mesa do rei, outra para a
mesa da rainha, e a terceira para os grandes oficiais, a fim
de que toda a corte se banqueteasse.
Os burgueses de Reims, que estavam obrigados às
despesas da sagração, achavam a carga um tanto pesada.
— Se começam a morrer tão depressa no trono —
diziam — e todos os anos tivermos a honra de coroar um
rei, acabaremos por fazer uma única refeição em doze
meses, para a qual teremos de vender a última camisa!
Clóvis, fazendo-se batizar aqui, já nos custou muito
dinheiro! Se alguma outra cidade do reino quiser comprar
a âmbula sagrada, estamos dispostos a fazer o negócio.
Aos constrangimentos da tesouraria juntava-se a
dificuldade de reunir, em pleno inverno, as provisões
suntuárias que tantas bocas exigiam. E os burgueses de
Reims enumeravam oitenta e dois bois, duzentos e
quarenta carneiros, quatrocentos e vinte e cinco vitelas,
setenta e oito porcos, oitocentos coelhos e lebres,
oitocentos capões, mil oitocentos e vinte gansos, mais de
dez mil galinhas e de quarenta mil ovos, sem falar nos
barris de esturjões que tinham mandado vir de Malines,
dos quatro mil lagostins pescados em água fria, e salmões,
solhas, tencas, bremas, percas e carpas, três mil e
quinhentas enguias destinadas à fabricação de quinhentos
pâtés. Dispunham de dois mil queijos, e esperavam que
trezentos toneis de vinho produzido, felizmente, na região,
seriam o suficiente para satisfazer tantas bocas sedentas,
que se iriam banquetear durante três dias, ou mais.
Os camareiros, chegados antecipadamente para
organizar a ordem dos festejos, mostravam exigências
singulares. Pois não resolveram que seriam apresentadas,
num só serviço, trezentas garças reais assadas? Esses
oficiais assemelhavam-se bem a seu amo, a esse rei
apressado, que encomendava sua sagração de uma semana
para outra, por assim dizer, como se se tratasse de uma
missa de dois liards, por intenção de uma perna quebrada!
Há dias já que os pasteleiros vinham montando
suas fortalezas de massa de amêndoas, pintadas com as
cores da França.
E a mostarda! Não tinham recebido a mostarda!
Seriam necessários trinta e um sesteiros. Além disso, os
convivas não iam comer na própria mão. Tinham feito
muito mal em vender, a preço vil, as cinqüenta mil
escudelas de madeira da sagração precedente: teria sido
mais lucrativo lavá-las e guardá-las. Quanto às quatro mil
bilhas, tinham sido quebradas ou roubadas. As roupeiras
embainhavam às pressas duas mil e seiscentas varas de
guardanapos, e podiam contar que a despesa total se
elevaria a cerca de dez mil libras (34).
Para dizer a verdade, os habitantes de Reims não se
saíram mal em suas contas, pois a sagração atraíra muitos
mercadores lombardos e judeus, que pagavam taxas sobre
suas vendas.
A coroação, com todas as cerimônias reais, passou-
se num ambiente de quermesse. Era um espetáculo
ininterrupto que se oferecia ao povo, naqueles dias, e
todos vinham de longe para vê-lo. As mulheres faziam
questão de vestir roupas novas; os elegantes não
desprezavam as jóias; os bordados, os belos tecidos, as
peles vendiam-se facilmente. A fortuna pertencia aos mais
hábeis, e os lojistas que mostrassem um pouco de
solicitude no servir à freguesia, podiam, numa semana,
obter cinco anos de abastança.
O novo rei estava instalado no palácio
arquiepiscopal, diante do qual a turba estacionava
permanentemente, para ver os soberanos aparecer, e
deslumbrar-se diante do carro da rainha, um carro forrado
de escarlate.
A Rainha Joana, cercada pelas suas damas da
nobreza, presidia, com agitação de mulher mimada pela
sorte, à abertura de doze malas, quatro baús, um cofre de
calçados, um cofre de especiarias. Seu guarda-roupa era,
sem dúvida alguma, o mais belo que jamais teve uma
dama de França. Um trajo especial fora previsto para cada
dia, e quase para cada hora desta viagem triunfal.
Sob uma capa de tecido dourado, forrado de
arminho, a rainha fizera sua entrada solene na cidade,
enquanto que ao longo das ruas ofereciam aos esposos
reais representações, mistérios e divertimentos. Na ceia da
véspera da sagração, que teria lugar a seguir, a rainha
apareceria com um vestido de veludo violeta rematado
com menu-vair. Para a manhã da coroação tinha um trajo
de tecido dourado da Turquia, um manto de escarlate e
uma vasquinha acobreada. Para o jantar, um vestido
bordado com as armas da França. Para a ceia, um vestido
de tecido dourado e dois mantos de arminho diferentes.
No dií seguinte, usaria um vestido de veludo verde,
a seguir um outro de camocas celeste, com romeira de
petit-gris. Jamais, aparecia em público com o mesmo trajo
ou com as mesmas jóias (35).
Aquelas maravilhas exibiam-se num quarto cuja
decoração tinha sido também trazida de Paris: armações
de seda branca bordadas com mil trezentos e vinte e um
papagaios de ouro, e mostrando no centro as grandes
armas dos Condes de Bor-gonha, com leões de goles.
Dossel do leito, coberta e almo-fadas estavam ornadas
com sete mil trevos de prata. No chão, haviam atirado
tapetes com as armas da França e do Condado de
Borgonha.
Várias vezes Joana entrara no aposento de Filipe, a
fim de oferecer à sua admiração a beleza de um tecido, a
perfeição de um trabalho.
— Meu caro Sire, meu bem-amado — exclamava
— como me fazeis feliz!
Por pouco inclinada que fosse às demonstrações
muito vivas, não podia evitar que seus olhos se
umedecessem. Sua própria sorte deslumbrava-a, sobretudo
quando recordava a época recente em que se encontrava
na prisão, em Dourdan. Que prodigiosa reviravolta do
destino, em menos de dezoito meses! Pensava em
Margarida, a morta, pensava em sua irmã Branca de
Borgonha, sempre encerrada em Château-Gaillard...
“Pobre Branca, que tanto gostava dos enfeites. Como
estaria alegre, hoje!”, pensava, experimentando um cinto
de ouro, incrustado com rubis e esmeraldas.
Filipe estava preocupado, e os entusiasmos de sua
esposa faziam-no ainda mais sombrio. Examinava as
contas com seu tesoureiro-mor.
— Alegra-me bastante, minha querida, que tudo
isso vos dê prazer — terminou respondendo. — Podeis
ver, estou agindo como meu pai, que conheceste bastante
seguro em suas despesas mas nunca demonstrando
avareza quando se tratava da majes tade real. Mostrai bem
essas belas roupas, porque elas são para o povo, que com
seu trabalho as forneceu, tanto como para vós. E tende
bastante cuidado com elas, pois tão cedo não podereis ter
iguais. Depois da sagração, precisaremos fazer economias.
— Filipe — perguntou Joana — não quereríeis
fazer alguma coisa neste dia por minha irmã Branca?
— Já fiz, já fiz. Está sendo novamente tratada como
princesa, com a condição de não sair das muralhas do
castelo em que está. É preciso que haja uma diferença,
entre ela que pecou, e vós, Joana, que sempre fôstes pura e
a quem acusaram falsamente.
Tinha pronunciado estas derradeiras palavras
levantando para a esposa um olhar onde era possível ler
mais preocupações pela honra real do que pela certeza do
amor.
— Depois — acrescentou — seu marido só me dá
aborrecimentos, neste momento. Mostra-se um mau
irmão!
Joana compreendeu que seria inútil insistir, e que
faria melhor se nunca mais tocasse naquele assunto.
Enquanto Filipe fosse rei, havia de recusar-se a libertar
Branca.
Joana retirou-se e Filipe recomeçou o estudo das
longas folhas carregadas de cifras, que Godofredo de
Fleury lhe apresentava.
As despesas não se limitavam apenas aos vestuários
do rei e da rainha. Filipe recebera, na verdade, alguns
presentes. Assim, o trajo de escumilha que usava naquele
dia fora presente de sua avó Maria de Brabante, a viúva de
Filipe II, e Mafalda oferecera o tecido de lã e seda, feito
com fios de diversas cores, que serviriam para os trajos
das princesinhas e do jovem Luís-Filipe. Mas isso tudo era
pouca coisa, comparado ao resto.
O rei tinha precisado vestir novamente seus
cinqüenta e quatro sargentos-de-armas e seu chefe, Pedro
de Galard, mestre dos besteiros. Adão Héron, Roberto de
Gamaches, Guilherme de Seriz, os camareiros, tinham
recebido, cada um, dez varas de riscado de Douai, para
que fizessem cotas de estilo arrojado. Henrique de
Meudon, Furant de la Fouaillie, Jeannot Malgeneste, os
monteiros, tinham ganho novo equipamento, assim como
todos os archeiros. E como vinte cavaleiros iam ser
armados depois da sagração, eram ainda vinte trajos a dar!
Aqueles presentes em vestimentas constituíam a
gratificação do costume, e o costume mandava, também,
que o rei acrescentasse, ao cofre das relíquias de Saint-
Denis, uma flor-de-lis de ouro, constelada com esmeraldas
e rubis.
— Total? — perguntou Filipe.
— Oito mil quinhentos e quarenta e oito libras,
treze soldos e doze dinheiros, Sire — respondeu o
tesoureiro. — Talvez pudésseis pedir uma contribuição
relativa a acontecimento festivo?
— Meu advento será mais festivo se eu não
impuser novas taxas. Vamos agir de outra maneira —
disse o rei.
Foi naquele momento que anunciaram o Conde de
Valois. Filipe levantou as mãos para o teto:
— Eis o que tínhamos esquecido em nossas somas.
Vereis, Godofredo, vereis! Esse tio vai custar-me mais
caro, sozinho, do que dez sagrações. Vem negociar
comigo. Deixai-me a sós com ele.
Ah! Como se mostrava esplêndido Monsenhor de
Valois! Bordado, agaloado, duplicado de volume pelas
peles, que se abriam sobre um trajo repleto de pedras
preciosas! Se os habitantes de Reims não soubessem que
seu novo rei era jovem e magro, teriam tomado aquele
senhor pelo próprio soberano.
— Meu caro sobrinho — começou — estou
bastante desgostoso... bastante desgostoso por vós. Vosso
cunhado da Inglaterra não virá.
— Há muito tempo, meu tio, que os reis de além
Mancha não mais assistem às nossas sagrações ■—-
respondeu Filipe.
— Sem dúvida. Mas fazem-se representar por
algum parente ou grão-senhor de sua côrte, para ocupar
seu lugar de Duque da Guyenne. Ora, Eduardo não enviou
ninguém, o que vem confirmar que não vos reconhece. O
Conde da Flandres, que pensáveis ter engodado com o
vosso tratado de setembro, também não veio, nem o
Duque da Bretanha.
— Eu sei, meu tio, eu sei.
— Quanto ao Duque de Borgonha, nem falemos,
pois bem sabíamos que não compareceria. Em
compensação, sua mãe, nossa tia Agnes, acaba de fazer
sua entrada ainda há pouco, e não suponho que venha
trazer-vos precisamente seu apoio.
— Eu sei, meu tio, eu sei — repetia Filipe.
Aquela chegada imprevista da última filha de São
Luís inquietava Filipe mais do que deixava transparecer.
De início, pensara que a Duquesa Agnes vinha propor
negociação, mas ela não mostrava pressa em se
manifestar, e o rei decidira que não seria ele a dar o
primeiro passo. “Se o povo, que me aclama quando
apareço e considera-me digno de inveja, soubesse de
quantas hostilidades e ameaças estou rodeado!”, dizia
consigo.
— De maneira que não tendes nenhum dos seis
pares leigos que devem sustentar amanhã vossa coroa —
recomeçou Valois (36).
— Tenho, sim, meu tio. Esqueceis a Condêssa
d’Artois... e vós mesmo.
Valois fêz um gesto brusco com o ombro.
— A Condêssa d’Artois! — exclamou. — Uma
mulher para sustentar a coroa, quando vós mesmo, Filipe,
tirastes vossos direitos apenas da evicção das mulheres.
— Sustentar a coroa não é colocá-la sobre a própria
cabeça — disse Filipe.
— Mafalda deve ter ajudado muito em vossa
ascensão ao trono, para que assim a engrandeçais! Ides
aumentar o crédito que se dá a todas as mentiras que por aí
circulam. Não falemos no passado, mas, enfim, Filipe, não
era Roberto quem deveria figurar no assento de par, pelo
Artois?
Filipe fingiu não prestar atenção às últimas palavras
de seu tio.
— Seja como fôr, os pares eclesiásticos estão aqui
— disse.
— Estão aqui, estão aqui! — falou Valois,
sacudindo seus anéis. — Já são apenas cinco, quando
deveriam ser seis. E que imaginais que vão fazer esses
pares da Igreja, quando virem do lado do reino uma só
mão, e que mão! — para coroar-vos?
— Mas, meu tio, não contais convosco?
Foi a vez de Valois ignorar a pergunta.
— Vosso próprio irmão está amuado — disse.
— É que Carlos, sem dúvida — falou suavemente
Filipe — não sabe, meu tio, como estamos em boa
concordância, e talvez acredite servir-vos, desservindo-
me... Mas, tranqüilizai-vos: mandou avisar que chegará
amanhã.
— Por que não lhe conferis o pariato? Vosso pai
fez isso comigo, e vosso irmão Luís convosco. Assim, eu
me sentiria menos só para sustentar-vos.
“Ou menos só para me trair”, pensou Filipe, que
falou:
— É por Roberto ou por Carlos que vindes pedir?
Ou desejais falar-me de vós mesmo?
Valois fêz uma pausa, ajeitou-se com firmeza em
sua cadeira, olhou para o brilhante que cintilava em seu
indicador.
“Cinqüenta... ou cem mil”, perguntava Filipe a si
próprio. “Zombo dos outros, mas ele me é necessário, e
sabe disso. Se recusa e faz escândalo, arrisco-me a ter de
adiar a sagração.”
— Meu sobrinho — disse, por fim, Valois —
sabeis bem que não recalcitrei, e que fiz, mesmo, grandes
despesas com roupas e com séquito, para vos honrar. Mas,
constatando que os outros pares estão ausentes, penso que
vou retirar-me também. Que se diria, se vissem apenas a
mim de vosso lado?
Que me comprastes, apenas.
— Eu deploraria muitíssimo tal coisa, meu tio.
Mas, que quereis? Não vos posso obrigar a fazer o que vos
desagrada. Talvez, tenha chegado a ocasião de renunciar a
esse costume que manda os pares levantarem a mão sobre
a coroa...
— Meu sobrinho! Meu sobrinho! — exclamou
Valois.
— ... e se fôr preciso consentimento por eleição —
continuou Filipe — talvez seja o momento de pedi-lo, não
mais a seis grandes barões, mas ao povo, meu tio, que
fornece homens para os exércitos e subsídios para o
Tesouro. Será esse o papel dos Estados que vou reunir.
Valois não se pôde conter, e, saltando de sua
cadeira, começou a gritar:
— Blasfemais, Filipe, ou estais perdendo por
completo a cabeça! Já se viu acaso um monarca eleito
pelos seus súditos?
Bela inovação, a de vossos Estados! Isso vem
diretamente das idéias de Marigny, que nascera plebeu e
que foi tão prejudicial para vosso pai. Digo-vos que se
começarmos assim, dentro de cinqüenta anos o povo nos
dispensará, e escolherá para rei qualquer burguês
enriquecido, algum doutor do Parlamento ou salsicheiro
que tenha feito fortuna no roubo. Não, meu sobrinho, não.
Desta vez, estou realmente decidido: não sustentarei a
coroa de um rei que só faz o que entende, e que deseja,
além disso, que essa coroa, muito breve, seja pasto dos la-
bregos.
Inteiramente congestionado, deambulava a grandes
passos.
“Cinqüenta mil... ou cem mil?”, continuava a
perguntar Filipe a si próprio. “Com que quantia será
preciso feri-lo?”
— Seja, meu tio, não sustenteis nada — disse. –
Mas permiti então que eu chame imediatamente meu
tesoureiro-mor.
— Para quê?
— Para fazer com que modifique a lista das
doações, que eu devia assinar amanhã, como sinal de
jubiloso advento, e na qual estáveis em primeiro lugar,
com... com cem mil libras.
A estocada alcançara o alvo. Valois ficou interdito,
os braços afastados do corpo.
Filipe compreendeu que ganhara, e, por muito caro
que lhe custasse aquela vitória, precisou esforçar-se para
não sorrir diante do aspecto que lhe apresentava o rosto do
tio. Este último, aliás, não demorou muito a sair de sua
confusão. Fora detido num movimento de cólera, e
retomou-o. A cólera, nele, era uma forma de tentar a
perturbação do raciocínio alheio, quando o seu tornava-se
fraco demais.
— Antes de mais nada, todo o mal vem de Eudes
— lançou ele. — Eu o reprovo muito, e hei de escrever-
lhe! E que necessidade tinham o Conde da Flandres e o
Duque da Bretanha de tomarem o partido dele, e recusar
vossa convocação? Quando o rei manda chamar-nos para
sustentar sua coroa, devemos vir! Não estou aqui? Esses
barões, na verdade, ultrapassam seus direitos. É assim,
com efeito, que a autoridade arrisca-se a passar aos
pequenos vassalos e aos burgueses. Quanto a Eduardo da
Inglaterra, que fé pode merecer um homem que se
comporta como mulher? Estarei, pois, a vosso lado, para
dar-lhes uma lição. E o que contáveis dar-me, agora eu o
aceito, por espírito de justiça. Porque é justo que aqueles
que são fiéis ao rei sejam tratados de uma forma diferente
daqueles que o traem. Governais bem. Esse... esse dom,
que é uma prova de vossa estima por mim, quando ides
assiná-lo?
— Agora, meu tio, se assim o desejardes... mas
com data de amanhã — respondeu Filipe V.
Pela terceira vez, e sempre por meio de dinheiro,
tinha amordaçado o Conde de Valois.
— Era tempo que se fizesse minha coroação —
disse Filipe a seu tesoureiro, quando Valois foi embora —
porque se tivesse que discutir ainda, penso que da próxima
vez seria obrigado a vender meu reino.
E como Fleury se espantasse diante da enormidade
da soma prometida:
— Tranqüilizai-vos, tranqüilizai-vos, Godofredo —
acrescentou. — Ainda não determinei quando será feita
essa doação.
Êle a receberá por pequenas frações, apenas... Mas
poderá fazer empréstimos sobre ela... Agora, vamos cear.
O cerimonial indicava que, depois da refeição da
noite, o rei, rodeado pelos seus oficiais e pelo cabido,
fosse à catedral, para ali recolher-se e orar. A igreja estava
já toda pronta, com suas tapeçarias penduradas, centenas
de círios nos lugares, e o grande estrado erguido no coro.
As preces de Filipe foram curtas, mas ainda assim passou
tempo considerável recebendo instruções, uma última vez,
quanto ao desenrolar-se dos ritos e dos gestos que teria de
fazer. Foi verificar os fechos das portas laterais,
assegurou-se das disposições de segurança, e perguntou
qual seria o lugar de cada um.
— Os pares leigos, os membros da família real e os
grandes oficiais, ficam sobre o estrado — explicaram-lhe.
— O condestável fica a vosso lado. O chanceler fica ao
lado da rainha. Esse trono, diante do vosso, é o do
arcebispo de Reims, e as cadeiras dispostas em torno do
altar-mor são para os pares eclesiásticos.
Filipe percorreu o estrado a passos lentos,
abatendo, com a ponta do pé, um canto erguido do tapete.
“Como é estranho”, pensava. “Eu estava aqui, neste
mesmo lugar, no ano passado, para a sagração de meu
irmão... Não prestei, absolutamente, atenção a todos esses
porme-nores.”
Sentou-se um momento, mas não no trono real.
Temor supersticioso impedia-o de ocupá-lo já. “Amanhã,
amanhã serei verdadeiramente o rei.” Pensava em seu pai,
na linhagem de avós que o tinham precedido naquela
igreja. Pensava em seu irmão, suprimido por um crime de
que era inocente, mas de cujos benefícios gozava agora.
Pensava no outro crime, cometido em relação à criança,
crime que também não ordenara, sendo dele, entretanto, o
cúmplice mudo, e quase o inspirador... Pensava em sua
morte, em sua própria morte, e nos milhões de homens,
seus súditos, nos milhões de pais, de filhos, de irmãos, que
até lá governaria.
“Serão todos como eu, criminosos se tiverem
ocasião, inocentes apenas por impotência, e prontos a se
servirem do mal para realizar suas ambições? Entretanto,
quando eu estava em Lião, só tinha desejos de justiça.
Será assim mesmo?... A natureza humana é de tal maneira
detestável, ou é a realeza que nos faz assim? O tributo que
se paga para reinar, será o de descobrir-se a si próprio tão
impuro e desonrado... Por que Deus nos fêz mortais, já
que é a morte que nos torna detestáveis, tanto pelo medo
que dela temos, como pelo uso que dela fazemos?...
Talvez tentem matar-me esta noite.”
Olhava as vastas sombras que oscilavam nas altas
ogivas, entre as colunas. Não sentia arrependimento,
apenas ausência da felicidade de reinar.
“Eis o que sem dúvida chamam orar, e eis por que
nos aconselham, na noite anterior à sagração, este estágio
na igreja.”
Julgava-se lucidamente tal como era: um homem
mau, com dotes de grande rei.
Não tinha sono, e teria, de bom grado, ficado ali,
por muito tempo ainda, a meditar sobre si próprio, sobre o
destino humano, sobre a origem dos nossos atos, e a fazer
a si próprio as únicas grandes interrogações do mundo,
para as quais jamais encontramos as respostas.
— Quanto tempo durará a cerimônia? — indagou.
— Duas horas completas, Sire.
— Vamos! Esforcemo-nos por dormir, pois
precisamos estar dispostos para amanhã.
Mas, assim que chegou novamente ao palácio
arquiepiscopal, entrou nos aposentos da rainha e sentou-se
à beira da cama. Conversou com sua mulher sobre coisas
sem interesse evidente: falava dos lugares na catedral,
preocupava-se com os vestidos de suas filhas...
Joana estava já meio adormecida. Lutava para se
conservar atenta, e discernia em seu marido grande tensão
nervosa, uma espécie de angústia crescente, e contra a
qual ele procurava proteção.
— Meu amigo — perguntou — quereis dormir
junto de mim?
Êle pareceu hesitar.
— Não posso: o camareiro não está prevenido.
— Sois rei, Filipe — disse Joana, sorrindo. —
Podeis dar ao vosso camareiro as ordens que vos aprouver.
Êle levou algum tempo a decidir-se. Aquele jovem,
que sabia, pelas armas ou pelo dinheiro, dominar seus
mais poderosos vassalos, sentia constrangimento em
informar seus servidores que ia, tomado de imprevisto
desejo, partilhar o leito de sua esposa.
Enfim, chamou um dos camareiros que dormiam no
aposento vizinho, e mandou que ele fosse prevenir Adão
Héron de que não o esperasse naquela noite, nem se
deitasse junto de sua porta.
Depois, entre as tapeçarias cheias de papagaios, sob
os trevos de prata do dossel da cama, despiu-se, e
insinuou-se sob os lençóis. E aquela grande angústia, da
qual todas as tropas do condestável não podiam defendê-
lo, porque era angústia de homem e não angústia de rei,
acalmou-se ao contacto daquele corpo de mulher, contra
aquelas pernas firmes e altas, aquele ventre dócil, aqueles
seios cálidos.
— Minha amiga — murmurou Filipe, o rosto
mergulhado nos cabelos de Joana — minha amiga,
responde-me: tu me enganaste? Responde-me sem receio,
pois mesmo que outrora me tivesse traído, podes
considerar-te perdoada.
Joana estreitou os longos flancos, secos e robustos,
onde a ossatura era sensível sob seus dedos.
— Nunca, Filipe, eu posso jurar-to — respondeu.
— Estive tentada a fazê-lo, confesso-te, mas não cedi.
— Obrigado, minha amiga — murmurou Filipe. —
Nada falta, pois, à minha realeza.
Nada faltava mais à sua realeza, porque ele, na
verdade, era igual a todos os homens de seu reino: tinha
necessidade de uma mulher, de uma mulher que fosse bem
sua (37).
X
OS SINOS DE REIMS

ALGUMAS horas mais tarde, deitado num leito de


cerimônia*, ornado com as armas da França, Filipe,
vestido com um trajo longo de veludo vermelho, as mãos
juntas à altura do peito, esperava os bispos que deveriam
conduzi-lo à catedral.
O primeiro camareiro, Adão Héron, também
suntuosamente vestido, mantinha-se de pé, junto do leito.
A manhã pálida de janeiro espalhava no aposento seu
clarão leitoso.
Bateram à porta.
— Quem procurais? — disse o camareiro.
— O rei.
— Quem o quer?
— Seu irmão.
Filipe e Adão Héron entreolharam-se,
surpreendidos e descontentes.
— Bem, que entre — disse Filipe, soerguendo-se
ligeiramente.

*
Leito onde ficava exposto o corpo do rei morto, usado
também para a cerimônia da sagração.
— Dispondes de bem pouco tempo, Sire... — fêz
notar o camareiro.
O rei, com um bater de pálpebras, assegurou-lhe
que a conversa não duraria muito.
O belo Carlos de La Manche usava um trajo de
viagem. Acabava de chegar a Reims e só havia parado um
momento para falar com seu tio Valois. Em seu rosto e em
seus passos havia cólera.
Por muito irritado que estivesse, a visão de seu
irmão, revestido de purpura e assim estendido em atitude
hierática, impôs-se-lhe. Fêz uma pausa, os olhos
arregalados.
“Como ele gostaria de estar em meu lugar!”,
pensou Filipe. Depois, em voz alta:
— Então aqui estais, meu irmão. Agradeço-vos por
terdes compreendido vosso dever e por tornardes
mentirosas as más línguas, pois elas sustentavam que
estaríeis ausente na cerimônia da minha sagração.
Agradeço-vos. Agora, correi a vestir-vos, porque não
podeis aparecer assim. Chegareis atrasado.
— Meu irmão — disse La Marche — antes preciso
conversar convosco sobre coisas importantes.
— Coisas importantes ou coisas que vos importam?
O importante, neste momento, é não deixar que o clero
espere.
Dentro de alguns instantes os bispos virão buscar-
me.
— Pois bem, terão um pouco de paciência! —
exclamou Carlos. — Cada um por sua vez encontra vossos
ouvidos para ouvi-lo, e disso tira proveito. Só a mim
pareceis não levar em conta: desta vez haveis de ouvir-me.
— Então, conversemos, Carlos — disse Filipe,
sentando-se à beira do leito. — Mas quero prevenir-vos
que teremos de ser breves.
La Marche teve um movimento de cabeça que
queria dizer: “Veremos, veremos”. Sentou-se, esforçando-
se por estufar o peito e manter o queixo erguido.
“Esse pobre Carlos”, pensava Filipe, “quer imitar
as atitudes de nosso tio Valois, mas não tem a sua
envergadura”.
— Filipe — recomeçou La Marche — eu vos pedi,
por muitas vezes, que me désseis o pariato, e aumentásseis
meu apanágio assim como a minha renda. Pedi-vos ou
não?
— Que família... — murmurou Filipe.
— E sempre fizestes ouvidos moucos. Agora, digo-
vos pela última vez: vim a Reims, mas não assistirei a
vossa sagração, dentro de alguns momentos, a não ser que
tenha minha cadeira de par. Não sendo assim, volto.
Filipe olhou para ele por um momento, sem nada
dizer, e, sob aquele olhar, Carlos sentiu-se diminuir,
fundir-se, perder toda a segurança própria, e tôda a
importância.
Diante de Filipe, o Belo, o jovem sentia, outrora,
idêntica sensação da própria insignificância.
— Um instante, meu irmão — disse Filipe.
Levantou-se e foi falar com Adão Héron, que se retirara
para um canto do aposento.
— Adão — perguntou^ em voz baixa — os barões
que foram buscar a âmbula sagrada na abadia de Saint-
Remy já voltaram?
— Sim, Sire, e já estão na catedral, com o clero da
abadia.
— Bem. Então, as portas da cidade... como em
Lião.
E, com a mão, fêz três movimentos apenas
perceptíveis, que significavam: as grades, as trancas, as
chaves.
— No dia da sagração, Sire? — murmurou Héron,
estupefato.
— Justamente, no dia da sagração. Providenciai.
O camareiro saiu e Filipe voltou para o leito.
— Então, meu irmão, que me pedíeis?
— O pariato, Filipe.
— Ah! Sim... o pariato. Pois bem, meu irmão, eu
vo-lo concederei, eu vo-lo concederei de bom grado. Mas
não imediatamente, pois proclamastes demais vosso
desejo. Se eu cedesse assim, diriam que não o fiz
voluntariamente, e sim coagido, e todos se sentiriam
autorizados a comportar-se como vós. Sabei, pois, que não
haverá mais apanágios criados ou aumentados antes que
eu tenha promulgado uma ordenação que declarará
inalienável qualquer parte do domínio real (38).
— Mas, enfim, não tendes mais necessidade do
pariato de Poitiers! Por que não mo dais? Convinde que
minha parte é insuficiente!
— Insuficiente? — exclamou Filipe, que começava
a encolerizar-se. — Nascestes filho de rei, sois irmão de
rei. Pensais, verdadeiramente, que a parte seja insuficiente
para um homem de vosso cérebro, e para os méritos que
tendes?
— Meus méritos? — disse Carlos.
— Sim, vossos méritos, que são pequenos. Porque
é preciso que eu acabe por dizer-vos francamente, Carlos:
sois um tolo! Sempre o fôstes, e não melhorastes com a
idade. Quando éreis apenas uma criança, já parecíeis tão
atoleimado a todos, de espírito tão pouco desenvolvido,
que mesmo nossa mãe sentia desdém por vós, a santa
mulher! Chamava-vos “o papalvo”. Lembrai-vos, Carlos:
“o papalvo”. Isso éreis, e isso vos conservastes. Nosso pai
dava-vos assento em nosso conselho: que aprendestes ali?
Ficáveis embasbacado olhando as moscas, enquanto os
negócios do reino eram discutidos, e eu me recordo que
jamais foi ouvida uma palavra vossa que não provocasse
um dar de ombros de nosso pai ou de messire Enguerrand.
Acreditais, portanto, que eu faça assim tanta questão de
tornar-vos mais poderoso, pelo belo auxílio que me iríeis
dar, quando há seis meses não cessais de manobrar contra
mim? Poderíeis ter obtido tudo por outro caminho.
Pensais, então, que sois de natureza forte e contais ver os
outros dobrarem-se diante de vós? Ninguém esqueceu a
lamentável figura que fizestes em Maubuisson, quando
vos puseste a balir: “Branca, Branca!” e a chorar vosso
ultraje diante da corte.
— Filipe! Cabe-vos dizer-me isso? — exclamou La
Marche, levantando-se, o rosto desfigurado. — Vós, cuja
esposa...
— Nem uma palavra contra Joana! Nenhuma
palavra contra a rainha! — cortou Filipe, com a mão
levantada. — Sei que para prejudicar-me, ou para sentir-
vos menos só em vosso infortúnio, continuais a enredar
mentiras.
— Inocentastes Joana porque desejáveis conservar
a Borgonha, porque, como sempre, fizestes passar vossos
interesses antes de vossa honra. Também a mim,
entretanto, talvez minha esposa infiel não tenha cessado
de servir.
— Que quereis dizer?
— Quero dizer o que digo! — replicou Carlos de
La Marche. — E também vos declaro que se me
desejardes ver, daqui a momentos, na sagração, ali quero
sentar-me numa cadeira de par. O pariato, ou vou-me
embora!
Adão Héron tornou a entrar no aposento e advertiu
o rei, com um movimento de cabeça, de que suas ordens
tinham sido transmitidas. Filipe agradeceu-lhe da mesma
maneira.
— Ide-vos, pois, meu irmão — disse. — Só uma
pessoa me é necessária, hoje: o arcebispo de Reims, que
deve sagrar-me. Sois arcebispo? Não sois. Logo, podeis ir-
vos embora. Parti, se isso vos agrada.
— Mas por que — exclamou Carlos — por que
nosso tio Valois obtém sempre o que quer, e eu nunca?
Pela porta entreaberta ouviam-se os cânticos da
procissão que se aproximava.
“Quando penso que se eu viesse a morrer esse
imbecil deveria ser regente!”, pensava Filipe. Pousou a
mão no ombro do irmão:
— Quando tiverdes prejudicado o reino por tantos e
tão longos anos como acontece com nosso tio, podereis
exigir a mesma paga. Mas, graças a Deus, sois menos
diligente na tolice!
Com os olhos, designou-lhe a porta, e o Conde de
La Marche saiu, lívido, atormentado de raiva impotente,
para esbarrar com um grande número de clérigos.
Filipe tornou a dirigir-se para o leito, e retomou a
posição deitada, mãos cruzadas, pálpebras fechadas.
Bateram à porta. Dessa vez, eram os bispos, que
batiam com suas cruzes.
— Quem procurais? — disse Adão Héron.
— O rei — respondeu uma voz grave.
— Quem o deseja?
— Os bispos pares.
Os batentes foram abertos e os bispos de Langres e
de Beauvais entraram, de mitra na cabeça e relicário no
pescoço. Aproximaram-se do leito, ajudaram o rei a
levantar-se, apresentaram-lhe a água benta, e, enquanto ele
se ajoelhava sobre um pequeno tapete de seda, fizeram a
oração.
Depois, Adão Héron colocou sobre os ombros de
Filipe um manto de veludo escarlate, semelhante ao de seu
trajo. E, subitamente, estalou uma querela de precedência.
Normalmente, o Duque-Arcebispo de Laon devia tomar
lugar à direita do rei. Ora, a cadeira de Laon, na época,
estava sem titular. O bispo de Langres, Guilherme de
Durfort, supunha-se, devia substituir o ausente. Mas Filipe
designou o bispo de Beauvais para ficar à direita. Tinha
suas razões para isso: por um lado, o bispo de Langres
havia acolhido com facilidade um tanto excessiva, em sua
diocese, os antigos Templários, dando-lhes lugares de
clérigos. Por outro lado, o bispo de Beauvais era um
Marigny — parente do grande Enguerrand e de seu irmão,
o arcebispo de Sens — e Filipe fazia questão de prestar
homenagem, senão à pessoa, pelo menos ao nome que
usava.
Assim, o rei encontrou-se com dois prelados à sua
direita e nenhum à esquerda.
— Sou o arcebispo-duque, e eu é que devo ficar à
direita — disse Guilherme de Durfort.
— A cadeira de Beauvais é mais antiga do que a de
Langres — respondeu Marigny.
Seus rostos começavam a corar, sob as mitras. —
Monsenhores, o rei decide — disse Filipe.
Durfort obedeceu e mudou de lugar.
“Mais um descontente”, pensou Filipe.
Desceram assim, entre as cruzes, os círios e a
fumarada do incenso, até a rua, onde toda a corte, a rainha
à frente, já se formara em cortejo. Caminharam até a
catedral.
Imensos clamores levantavam-se à passagem do
rei. Filipe estava bastante pálido e apertava seus olhos
míopes. Parecia-lhe que a terra de Reims se tinha tornado
dura, subitamente, sob seus pés: tinha a impressão de que
caminhava sobre mármore.
Na porta principal da igreja, houve uma pausa para
novas orações. Depois, num estrondejar de órgão, Filipe
adiantou-se pela nave, em direção ao altar, dirigindo-se
para o estrado, para o trono, onde, finalmente, sentou-se.
Seu primeiro gesto foi para designar à rainha a cadeira
preparada ao lado da sua.
A igreja estava repleta. Filipe via apenas um mar de
coroas, de peitos e ombros bordados, de jóias e casulas
brilhando sob os círios. Um firmamento humano estendia-
se a seus pés.
Transportou o olhar para regiões mais próximas, e
voltou a cabeça para a direita e para a esquerda, a fim de
distinguir quem estava presente sobre o estrado. Ali
estavam Carlos de Valois, e Mafalda d’Artois,
monumental, cascateante de bordados e veludos. Ela
sorriu-lhe. Luís d’Evreux estava um pouco mais afastado.
Mas Filipe não via Carlos de La Marche, nem Filipe de
Valois, que o pai parecia também procurar com os olhos.
O arcebispo de Reims, Roberto de Courtenay, que
os ornamentos sacerdotais faziam pesado, levantou-se de
seu trono fronteiro ao trono real. Filipe imitou-o, e veio
prosternar-se diante do altar.
Todo o tempo que durou o Te-Deum, Filipe
perguntou a si próprio: “Terão sido bem fechadas as
portas? Minhas ordens terão sido fielmente cumpridas?
Meu irmão não é homem para ficar no fundo de um
quarto, enquanto eu estiver sendo coroado. E por que
estará Filipe de Valois ausente? Que estarão me
preparando? Eu devia ter deixado Galard lá fora, para
estar em melhores condições de comandar seus besteiros”.
Ora, enquanto o rei assim se inquietava, seu irmão
mais moço patinhava num charco.
Saindo, furioso, do aposento real, Carlos de La
Marche se havia precipitado para o alojamento dos Valois.
Não encontrara ali seu tio, que já partira para a catedral,
mas apenas Filipe de Valois, acabando de preparar-se, e
ao qual contara, quase sem fôlego, o que chamava a
“felonia” de seu irmão.
Os dois primos tinham temperamentos muito
semelhantes, com a diferença de ser Filipe de Valois
maior e mais forte do que Carlos. Quanto ao espírito,
completavam-se bem, em vaidade e tolice.
— Se é assim, também não assistirei à cerimônia, e
parto contigo — declarara Valois, o jovem.
Com isso, trataram de reunir sua escolta e
dirigiram-se altivamente para uma porta da cidade. Sua
soberba teve de inclinar-se diante dos sargentos de armas.
— Ninguém entra e ninguém sai. Ordem do rei.
— Mesmo os príncipes de França?
— Mesmo os príncipes. Ordem do rei.
— Ah! Êle quer coagir-nos! — exclamara Filipe de
Valois, que agora tomava o caso à sua conta. — Pois bem,
ainda assim sairemos.
— Como queres sair, se as portas estão fechadas?
— Finjamos voltar para o meu alojamento, e deixa-
me agir.
Daí seguiu-se uma empresa de garotos: os
escudeiros do jovem Conde de Valois tinham sido
enviados em busca de escadas, logo levantadas no fundo
de um beco-sem-saída, em lugar onde os muros não
pareciam estar guardados. E os dois primos, nádegas ao
léu, fizeram a escalada, sem suspeitar que do outro lado os
esperavam os pântanos do Vesle. Por meio de cordas
desceram para o fosso. Carlos de La Marche perdeu pé no
meio da água lamacenta e gelada, e se afogaria, se seu
primo, que tinha-seis pés de altura e músculos sólidos, não
o tivesse pescado a tempo. Depois, meteram-se, como
cegos, pelos charcos. Já agora, para eles, não mais se
tratava de renunciar ou não. Avançar ou recuar dava no
mesmo. Arriscavam sua vida, e teriam ainda três grandes
horas pela frente até conseguirem sair daquele tremedal.
Os poucos escudeiros que os haviam seguido, patinhavam
em torno deles, e não faziam cerimônia para amaldiçoá-
los em voz alta.
— Se conseguirmos sair daqui — gritava La
Marche para sustentar a coragem — sei bem para onde
irei, sei bem. Para Château-Gaillard!
Valois, o jovem, banhado em suor, apesar do frio,
mostrou uma cabeça estupefata, acima dos caniços
apodrecidos.
— Tens ainda apego a Branca? — perguntou.
— Não, mas há coisas que poderei saber através
dela. É a única, a última que nos pode dizer se a filha de
Luís é bastarda, e se Filipe é cornudo, como eu! Com o
testemunho dela, poderei, por minha vez, infamar meu
irmão, e fazer com que a coroa seja dada à filha de Luís.
O som dos sinos de Reims, bimbalhando
estrondosamente, chegava até eles.
— Quando penso, quando penso que é por ele que
os sinos tocam! — dizia Carlos de La Marche, a metade
do corpometida na lama e a mão estendida para a cidade...
Na catedral, os camareiros acabavam de despir o
rei. Filipe, o Longo, de pé diante do altar, não tinha mais
sobre o corpo senão duas camisas superpostas, uma de
tecido fino, sobre a pele, e a outra de seda branca, ambas
largamente abertas no peito e sob as axilas. O rei, antes de
ser revestido das insígnias da majestade, apresentava-se à
assembléia de seus súditos quase como um homem nu, e
tomado de arrepios.
Todos os atributos da sagração estavam dispostos
sobre o altar, sob a guarda do abade de Saint-Denis, que
os trouxera. Adão Héron tomou das mãos do abade os
chausses, longos calções de seda, bordados com flôres-de-
lis, e ajudou o rei a vesti-los, assim como a calçar os
sapatos, também de tecido bordado. Depois, Anseau de
Joinville, na ausência do Duque de Borgonha, prendeu as
esporas de ouro nos pés do rei e imediatamente retirou-as.
O arcebispo abençoou a grande espada, que diziam ser a
de Carlos Magno, e colocou-a à ilharga do rei, com o
boldrié, recitando:
— Accipe hunc gladium cum Dei benedictione...*
— Gaucher, aproxima-te — disse o rei.
Gaucher de Châtillon adiantou-se, e Filipe,
desfazendo-se do boldrié, entregou-lhe a espada.
Jamais condestável algum, em toda a história das
sagrações, merecera mais sustentar, pelo seu soberano, a
insígnia do poder militar. Aquele gesto, entre eles, era
mais do que o cumprimento de um ritual. Trocaram um
longo olhar: o símbolo confundia-se com a realidade.
Com a ponta de uma agulha de ouro, o arcebispo
tomou, da âmbula sagrada, que lhe apresentava o abade de
Saint--Remy, uma parcela do óleo que diziam enviado do
céu, e, com o dedo, misturou-o com o crisma preparado
sobre uma pátena. Depois, o arcebispo ungiu Filipe,
*
Recebe este gládio com a bênção de Deus, para resistir pela
virtude do Espírito Santo a todos os teus inimigos...
tocando-o no alto da cabeça, no peito, entre os ombros, e
nas axilas. Adão Héron tornou a cerrar os anèizinhos e
ganchos que fechavam a túnica. A camisa do rei seria
queimada mais tarde, porque tinha roçado pela santa
unção.
O rei foi, então, vestido com os trajos tomados de
sobre o altar: primeiro a cota de cetim vermelho, bordada
com fios de prata, depois a túnica de cetim azul bordada
com pérolas e semeada de flôres-de-lis de ouro, por cima
da dalmática do mesmo tecido, e, ainda por cima, o soq,
grande manto quadrado, acolchetado sobre o ombro
direito com uma fíbula de ouro. De cada vez que uma peça
era colocada, Filipe sentia seus ombros mais pesados. O
arcebispo fêz a unção das mãos, insinuou no dedo de
Filipe o anel real, colocou-lhe na mão direita o pesado
cetro, a mão de justiça* na mão esquerda. Depois de uma
genuflexão diante do tabernáculo, o prelado levantou,
enfim, a coroa, enquanto o camareiro-mor começava a
chamada dos pares presentes.
— Magnífico e poderoso senhor, o conde...
Exatamente nesse instante, uma voz alta, imperiosa,
elevou-se pela nave:
— Pára, arcebispo! Não coroes esse usurpador: é a
filha de São Luís quem te ordena.
Vasta movimentação percorreu a assistência. Todas
as cabeças voltaram-se para o ponto de onde viera o grito.

*
Mão de marfim, com os dedos abertos e levantados, que
rematava o bastão real, e era símbolo de sua justiça.
Sobrr o estrado e entre os oficiantes, trocavam-se olhares
aflitos. As fileiras da assistência abriram-se.
Rodeada por alguns senhores, uma mulher de
grande estatura, rosto ainda belo, queixo firme, olhos
claros e encoleri-zados, com o diadema estreito e o véu
das viúvas sobre a massa dos cabelos quase brancos,
caminhava para o coro.
À sua passagem, as pessoas cochichavam:
— É a Duquesa Agnes: é ela!
Esticavam-se pescoços para vê-la. Havia surpresa
ao constatar quanto ainda era jovem de aparência e firme
de passo. Como era filha de São Luís, a idéia que faziam
dela enquadrava-se no recuo dos tempos. Acreditavam-na
uma antepassada, sombra completamente alquebrada em
um castelo da Borgonha. Subitamente, ela aparecia tal
qual era, mulher de cinqüenta e sete anos, ainda cheia de
vida e de autoridade.
— Pára, arcebispo — repetiu, quando estava a
alguns passos apenas do altar. — E ouvi, todos vós...
Lede, Mello! — acrescentou, falando com seu
conselheiro, que a acompanhava.
Guilherme de Mello desenrolou um pergaminho, e
leu: — Nós, muito nobre dama Agnes de França, Duquesa
de Borgonha, filha do Senhor São Luís, em nosso nome e
no de nosso filho, muito nobre e poderoso Duque Eudes,
dirigimo-nos a vós, barões e senhores aqui presentes, ou
que estejam fora deste reino, para evitar que se reconheça
como rei o Conde de Poitiers, que não é o herdeiro
legítimo da coroa, e exigir que a sagração seja adiada até
que tenham sido reconhecidos os direitos de Madame
Joana de França e Navarra, filha e herdeira do falecido rei,
e de nossa filha.
Sobre o estrado, a angústia aumentava, e
começavam a distinguir-se rumores no fundo da igreja. A
multidão aglomerava-se.
O arcebispo parecia embaraçado com a coroa, não
sabendo se devia repousá-la sobre o altar ou continuar a
cerimônia.
Filipe conservara-se imóvel, a cabeça nua,
impotente, com quarenta libras de ouro e brocados
pesando-lhe sobre os ombros, as mãos ocupadas com o
Poder e a Justiça. Nunca se sentira tão desprevenido, tão
ameaçado, tão sozinho. Um guante de ferro apertava-lhe o
peito, bem no meio. Sua calma era assustadora. Fazer um
só gesto, abrir a boca naquele instante, iniciar uma
controvérsia, seria arriscar-se ao tumulto, e, sem dúvida, à
derrota. Ficou imobilizado, entre a ganga de seus
ornamentos, como se a batalha se passasse abaixo dele.
Ouviam-se os pares eclesiásticos cochicharem:
— Que devemos fazer?
O prelado de Langres, que não esquecia a
humilhação sofrida naquela manhã, era de opinião que se
interrompesse a cerimônia.
— Retiremo-nos, e discutamos o caso — propunha
outro.
— Não o podemos, o rei já é o ungido do Senhor. É
rei, coroai-o — replicou o bispo de Beauvais.
A Condêssa Mafalda inclinou-se para sua filha
Joana, e murmurou-lhe :
— A velhaca! Merece rebentar, por causa disto.
Havia veneno no ar.
Com suas pálpebras de tartaruga, o condestável fêz
sinal a Adão Héron para que recomeçasse a chamada.
— Magnífico e poderoso senhor Conde de Valois,
par do reino — pronunciou o camareiro.
Toda a atenção refluiu, então, para o tio do rei. Se
ele respondesse ao chamado, Filipe ganhara, porque seria
a caução dos pares leigos, do poder real, que Valois traria
consigo. Se recusasse, Filipe estava perdido.
Valois não mostrava grande solicitude, e o
arcebispo, que, sendo um Courtenay, era seu parente por
aliança, esperava, visivelmente, a sua decisão.
Filipe, então, esboçou, ainda assim, um
movimento: virou a cabeça para seu tio, e o olhar que lhe
lançou valia cem mil libras. Jamais a Borgonha pagaria o
mesmo.
O ex-imperador de Constantinopla levantou-se, o
rosto crispado, e veio colocar-se atrás de seu sobrinho.
“Como fiz bem em não me mostrar avaro com ele”,
pensou Filipe.
— Nobre e poderosa dama Mafalda, Condêssa
d’Artois, par do reino — chamou Adão Héron.
O arcebispo levantou o pesado círculo de ouro,
rematado por uma cruz na parte da frente, pronunciando,
enfim:
— Coronel te Deus.
Um dos pares leigos devia tomar imediatamente a
coroa para sustentá-la sobre a cabeça do rei, e os outros
pares pousariam ali apenas um dedo simbólico. Valois já
estendia as mãos, mas Filipe, com um movimento de seu
cetro, deteve-o.
— Sustentai vós a coroa, minha mãe — disse ele a
Mafalda.
— Obrigada, meu filho — murmurou a gigantesca
mulher.
Recebia, com aquela designação espetacular, o
agradecimento pelo seu duplo regicídio. Tomava o lugar
de primeiro par do reino, e a posse do condado de Artois
lhe estava confirmada para sempre.
— Borgonha não se curva! — exclamou a Duquesa
Agnes.
E, reunindo seu séquito, caminhou em direção à
saída, enquanto, lentamente, Mafalda e Valois
reconduziam Filipe a seu trono.
Quando ele ali sentou-se, seus pés repousando
sobre a almofada de seda, o arcebispo depôs sua mitra e
veio beijar o rei na boca, dizendo:
— Vivat rex in aeternum.
Os outros pares imitaram-lhe o gesto, repetindo:
— Vivat rex in aeternum.
Filipe sentia-se cansado. Acabava de ganhar sua
última batalha, após sete meses de incessantes lutas para
chegar àquele poder supremo, que de agora em diante
ninguém mais poderia disputar-lhe.
Os sinos estrondejavam no ar, soando pelo seu
triunfo. Lá fora, o povo ululava, desejando-lhe glória e
longa vida. Todos os seus adversários tinham sido
dominados. Possuía um filho para assegurar sua
descendência, uma esposa feliz para partilhar de suas
alegrias e desgostos, e o reino da França.
“Como estou cansado, tão cansado!”, pensava
Filipe.
Àquele rei de vinte e três anos, que se impusera
através de uma vontade tenaz, que aceitara as vantagens
do crime e que possuía todas as características de um
grande monarca, nada, em verdade, parecia faltar.
O tempo dos castigos ia começar.
NOTAS HISTÓRICAS
(1) Carlos de Valois (ver nossos volumes
precedentes) se gundo filho de Filipe HT e de Isabel de
Aragão, irmão mais novo de Filipe, o Belo, foi designado,
com a idade de treze anos, pelo Papa Martinho IV, para
receber o trono de Aragão, tirado de seu tio Pedro de
Aragão, excomungado depois do massacre das Vésperas
Sicilianas. Coroado, por formalidade, em 1284, no curso
de uma desastrosa campanha levada a efeito por Filipe III,
o Ousado, que devia morrer logo depois, Valois jamais
chegou a ocupar seu trono, e a ele renunciou,
definitivamente, em 1295.
Mais tarde, tendo desposado em segundas núpcias
Catarina de Courtenay, herdeira titular do reino latino do
Oriente, usou, de 1301 a 1313, o título de imperador de
Constantinopla.
Os laços de família entre Carlos de Valois e
Clemência da Hungria são, sem dúvida, dos mais
complicados que jamais existiram: Valois era primo de
Clemência, pois ambos descendiam, um pela terceira e
outra pela quarta geração, do Rei Luís VIII da França. Era,
também, duas vezes seu tio, por aliança, antes de mais
nada por se ter casado em primeiras núpcias com
Margarida d’Anjou-Sicilia, tia de Clemência, e, em
seguida, porque tinha feito com que essa última se casasse
com seu sobrinho Luís X.
Valois estava ainda ligado à família d’Anjou de
outra forma, tendo casado em 1313 a primeira filha que
tivera de Catarina de Courtenay, Catarina de Valois, com
Filipe, príncipe de Tarento, irmão de sua primeira mulher.
Dessa maneira, era tio-avô, por aliança, da Rainha
Clemência.
Foi por ocasião do casamento Valois-Tarento que a
coroa titular de Constantinopla, ligada à herança de
Catarina de Valois, teve de ser abandonada por Carlos, em
benefício de seu genro Filipe.
(2) Essas definições foram extraídas do Elixir dos
filósofos, do Cardeal Tiago Duèze, Papa João XXII.
Destacam-se naquela obra, além de um léxico dos
principais termos de alquimia, receitas curiosas, tais como
esta, para “purificar” a urina de criança: “Toma-a, deita-a
em pote, deixando-a repousar por três ou quatro dias;
depois coa-a ligeiramente; deixa-a repousar de novo, até
que a sujeira fique no fundo. Cozinha-a bem, e escuma-a
até que ela se reduza à terça parte. Destila-a, depois,
através de feltro e guarda-a em vasilha bem vedada, para
evitar a corrupção do ar”,
(3) Foi somente em meados de seu pontificado, em
1325, que Tiago Duèze (João XXII) começou a sustentar
em diversos sermões e estudos sua tese da visão beatífica.
É possível supor, entretanto, que o problema de há muito o
interessava.
Sua teoria foi objeto de apaixonados debates entre
todos os teólogos da Europa, debates que duraram vários
anos e quase produziram um cisma. A Universidade de
Paris condenou as proposições de João XXII, e chegou-se
a falar em depor aquele, a quem, por escárnio, chamavam
“o Papa de Cahors”. Duèze retratou-se na véspera de sua
morte, em seu leito de agonia, preocupado, sem dúvida,
em preservar a unidade da Igreja. Tinha, então, noventa
anos.
Entre outras teses que professou esse estranho e
fascinante pontífice, devemos notar a que concerne ao
poder legislativo dos papas. Para ele, um papa podia
modificar toda a legislação instituída pelos seus
predecessores. Considerava, com efeito, que os papas,
sendo homens, são incapazes de tudo ver e de tudo prever,
e, assim, seus regulamentos sofrem as conseqüências das
modificações sobrevindas ao universo, necessitando novas
regras de conduta.
João XXII pronunciou-se igualmente contra a
Imaculada Conceição da Virgem Maria, considerando,
todavia, que se Maria tinha sido concebida com o pecado
original, Deus a purificara antes de seu nascimento, mas
num momento, acrescentava, difícil de precisar.
Teria sido também ele, a seguir-se a opinião de
Viollet-le-Duc, quem teria acrescentado à tiara a terceira
coroa, da qual, realmente, não se encontram vestígios nas
efígies dos papas anteriores ao seu reinado.
(4) Os senhores soberanos de Viennois usavam o
nome de “delfim” por causa do delfim que ornava seu
capacete e suas armas, daí a designação de Delfinado dado
ao conjunto da região sobre a qual exerciam sua soberania,
e que compreendia: o Grésivaudan, o Roannez, o
Champsaur, o Briançonnais, o Am-brunois, o Gapençais,
o Viennois, o Valentinois, o Diois, o Tricastinois, e o
principado de Orange.
No início do século IV, a soberania era exercida
pela terceira casa dos delfins de Viennois, a da Tour du
Pin. Somente no fim ao reinado de Filipe VI de Valois,
pelos tratados de 1343 e 1349, u Delfinado foi cedido por
Humberto II à coroa da França, sob a condição de que o
filho mais velho dos reis de França tomasse, dali por
diante, o título de Delfim.
(5) A grande maioria dos autores dá o total de vinte
e três cardeais para o conclave de 1314-1316. Anotamos
vinte e quatro.
O partido dos “romanos” contava seis italianos:
Tiago Co-lonna, Pedro Colonna, Napoleão Orsino,
Francisco Caetani, Tiago Stefaneschi-Caetani, Nicolau
Alberti (ou Albertini) de Prato; um angevino de Nápoles:
Guilherme de Longis, e, enfim, um espanhol, Lucas de
Flisco (às vezes chamado Fieschi) irmão do rei de Aragão.
Esses cardeais eram criações anteriores ao pontificado de
Clemente V e à instalação do papado em Avinhão. O
chapéu cardinalício fôra-lhes conferido entre 1278 e 1303,
durante os reinados de Nicolau III, Nicolau IV, Celestino
V, Bonifácio VIII e Bento XI.
Todos os outros tinham sido criados por Clemente
V. O partido chamado “provençal” compreendia:
Guilherme de Man-dagourt, Béranger de Frédol, o velho,
Béranger de Frédol, o jovem, Tiago Duèze, de Cahors, e
os normandos Nicolau de Fréauville e Miguel du Bec.
Enfim, os gascões, em número de dez, Arnaldo de
Pélagrue, Arnaldo de Fougères, Arnaldo Nouvel, Arnaldo
d’Auch, Raimundo--Guilherme de Farges, Bernardo de
Garves, Guilherme-Pedro Godin, Raimundo de Got, Vidal
du Four e Guilherme Teste.
Em nossos volumes precedentes falamos na morte
de Clemente V, na agressão de Carpentras e no conclave
errante.
(6) Até meados do século XII, a cidade de Lião
esteve sob o poder dos condes de Forez e de Roannez, sob
a suserania puramente nominal do imperador da
Alemanha.
A partir de 1173, o imperador tendo reconhecido ao
arcebispo de Lião, primaz das Gálias, direitos soberanos, o
Lyonnais foi separado do Forez e o poder eclesiástico
passou a governar a cidade, com direito de justiça, de
cunhar moeda e de recrutar tropas.
Esse regime desagradou à poderosa comuna de
Lião, composta unicamente de burgueses e de
negociantes, os quais, durante mais de um século, lutaram
para se emancipar. Depois de várias revoltas infelizes,
apelaram para o Rei Filipe, o Belo, que, em 1292, tomou
Lião sob sua proteção.
Vinte anos mais tarde, em 1O de abril de 1312, um
tratado, concluído entre a comuna, o arcebispado e o rei,
reunia definitivamente Lião ao reino da França.
Apesar das reivindicações de João de Marigny,
arcebispo de Sens, e que controlava a diocese de Paris, o
arcebispo de Lião conseguiu conservar o primado das
Gálias, única de suas prerrogativas que lhe foi assegurada.
No fim da Idade Média, Lião contava cerca de 24
taverneiros, 32 barbeiros, 48 tecelões, 56 costureiros, 44
peixeiros, 36 açougueiros, especieiros e salsicheiros, 27
sapateiros, 36 panificadores e padeiros, 25 hoteleiros, 87
notários, 15 ourives ou joalheiros, 2O mercadores de
tecidos.
A cidade era administrada pela “comuna”,
constituída de burgueses comerciantes, que nomeavam, no
dia 21 de dezembro de cada ano, doze cônsules, sempre
notáveis e escolhidos entre as famílias ricas. Esse corpo
consular chamava-se “o sindical”.
(7) A família dos Varay, mercadores de tecidos e
cambistas, era uma das mais antigas e das mais
consideráveis do Lyonnais.
Trinta e um de seus membros usaram o título de
cônsul, alguns foram freqüentemente reeleitos, e um deles
chegou a sê-lo dez vezes. Contavam-se oito Varay entre os
cinqüenta cidadãos que os lioneses escolheram para seus
chefes, em 1285, a fim de lutar contra o arcebispo e obter
a anexação à França.
(8) Os “cavaleiros seguidores”, criação de Filipe V
no início de seu reino, eram nomeados pelo rei, a fim de o
acompanharem e aconselharem: deviam estar junto dele
em todas as viagens, mas não todos ao mesmo tempo.
Contam-se entre eles parentes próximos do rei,
como o Conde de Valois, o Conde d’Evreux, o Conde de
La Marche, o Conde de Clermont, os grandes senhores
como os Condes de Forez, de Bolonha, de Sabóia, de
Saint-Pol, de Sully, d’Harcourt e de Comminges; grandes
oficiais da coroa, tais como o con-destável, os marechais,
o chefe dos besteiros, assim como outros personagens,
membros do conselho secreto ou do “conselho que
governa”, jurisconsultos, administradores do tesouro,
burgueses enobrecidos e amigos pessoais do rei.
Registram-se nome como os de Mille de Noyers, Giraud
Guette, Guy Florent, Guilherme Flotte, Guilherme
Courteheuse, Martinho des Essarts, Anseau de Joinville.
Esses cavaleiros foram uma espécie de prefiguração
dos “gentis-homens da Câmara”, instituídos por Henrique
III, e que subsistiram até Carlos X.
(9) A igreja romana jamais vendeu, como
pretendem seus adversários, absolvição. Fêz, entretanto, o
que é bastante diferente, com que os culpados pagassem o
preço das bulas que lhes eram entregues como atestados
da absolvição da sua culpa.
Essas bulas eram necessárias porque, tendo sido
público o crime ou o delito, era preciso fornecer prova de
absolvição para ser novamente admitido aos sacramentos.
O mesmo princípio era aplicado, em direito civil,
nas cartas de mercê e remissão, concedidas pelo rei. A
entrega dessas cartas e sua inscrição nos registros eram
taxadas. Esse uso, muitíssimo antigo, remontava aos
costumes dos francos, antes mesmo de sua conversão ao
cristianismo. A idéia de João XXII foi, com seu Livro de
Taxas e com a instituição da Santa Penitenciaria
Apostólica, codificar e generalizar esse uso, idéia que
deveria trazer à Igreja somas consideráveis, tal como
prova o estado muito florescente do tesouro pontificai,
quando da morte daquele papa.
Os membros do clero não eram os únicos sujeitos a
essas bulas. Havia taxas igualmente previstas para os
leigos. As tarifas eram calculadas em gros, moeda que
valia aproximadamente seis libras.
Assim, o parricldio, o fratricídio ou o assassinato
de um parente, entre leigos, estavam taxados entre os
cinco e sete gros, bem como o incesto, a violação de uma
virgem, ou o roubo de objetos sagrados. O marido que
espancara a mulher ou fizera com que abortasse, estava
sujeito a pagar seis gros; e sete, se houvesse arrancado os
cabelos da esposa. A multa maior, ou seja, de vinte e sete
gros, referia-se à falsificação de cartas apostólicas, isto é,
da assinatura do papa.
As taxas subiam com o tempo, paralelamente com a
desvalorização da moeda.
Mas, ainda uma vez, não se tratava da compra da
absolvição, e sim de um direito de registro, para
fornecimento de provas autenticadas.
Os inúmeros panfletos consagrados a essa questão,
e que circularam a partir da Reforma, para desacreditar a
Igreja Romana, apoiaram-se todos nessa confusão
voluntária.
E digno de nota, além disso, que na mesma ocasião
em que João XXII instituía a Santa Penitenciaria, o Rei
Filipe V, de seu lado, reorganizava o funcionamento da
chancelaria real, e revisava suas tarifas.
(10) Os Frades Pregadores, ou Dominicanos, eram
também chamados Jacobinos por causa da Igreja Saint-
Jacques que lhes tinham dado, em Paris, e em torno da
qual haviam instalado a sua comunidade.
O convento de Lião, onde se realizou o conclave de
1316, fora edificado em 1236, em terrenos situados atrás
da casa dos Templários. O conjunto do mosteiro estendia-
se da atual praça dos Jacobinos até a praça Bellecour.
(11) Godofredo Coquatrix (sem dúvida do termo
coquatier, negociante de ovos e aves) casado antes com
Maria La Marcelle, depois com Joana Gencien, conservou
até sua morte, em 1321, todos os cargos que havia
acumulado sob três reinados, sem jamais prestar contas
deles. Foi somente o filho de Carlos de Valois, Filipe VI,
quem, depois de 1328, resolveu pedir essa prestação de
contas aos herdeiros de Godofredo Coquatrix. Teve que
renunciar a isso e, finalmente, deu os filhos como quites
da obrigação de justificar a administração de seu pai, em
troca de uma soma de 15.00O libras, a título de
compensação.
(12) Esses argumentos foram utilizados, de início,
nos Estados Gerais de fevereiro de 1317; depois, por
ocasião da morte de Filipe V e da de Carlos IV, quando a
sucessão da coroa de França apresentou-se nas mesmas
condições. Poucas dúvidas restam sobre o fato de ter o
condestável Gaucher de Chatillon, que viveu e conservou
seu cargo até 1329, desempenhado papel preponderante na
evicção das mulheres.
(13) Esquecem, geralmente, o primitivo caráter
eletivo da monarquia capetiana, que precedeu seu caráter
hereditário ou, pelo menos, coexistiu com ele.
Quando da morte acidental do último carolíngio,
Luís V, o Indolente, desaparecido aos vinte anos, após um
reinado de alguns meses, os duques e os condes
concordaram em eleger um entre eles. Escolheram Hugo,
duque de França, cujo pai, conde de Paris, duque de
França e de Borgonha, tinham exercido o governo de fato
durante os últimos reinados.
Hugo Capeto (isto é, Hugo, o chefe, Hugo, o
cabeça) associou imediatamente ao trono seu filho
Roberto II, fazendo-o eleger como seu sucessor e sagrar,
durante o ano de sua própria sagração. Aconteceu
praticamente a mesma coisa durante mais cinco reinados,
inclusive o de Filipe-Augusto. Assim que o filho mais
velho do rei era designado herdeiro presuntivo, os pares
tinham que ratificar essa escolha, e o novo eleito recebia a
sagração ainda em vida de seu pai.
Só a partir de Luís VIII, duzentos e vinte e sete
anos depois de Hugo Capeto, foi que se abandonou a
formalidade da eleição prévia.
Luís VIII recebeu a coroa da França, por morte de
Filipe-Augusto, no dia 14 de julho de 1223, exatamente
como teria recebido a herança de um feudo. E foi a partir
desse 14 de julho que a monarquia francesa tornou-se
realmente hereditária.
No tempo da regência de Filipe, o Longo, o novo
costume tinha, pois, menos de um século.
(14) Dá-se, geralmente, nas genealogias, o prenome
de Luís ao filho de Filipe V, nascido em julho de 1316.
Ora, nas contas de Godofredo de Fleury, tesoureiro de
Filipe, o Longo, e que começou a redação de seus livros
naquele mesmo ano, exatamente no dia 12 de julho,
tomando suas funções, a criança é designada pelo nome de
Filipe.
Outros genealogistas mencionam dois filhos, dos
quais um teria nascido em 1315 e, portanto, teria sido
concebido enquanto Joana de Borgonha estava presa em
Dourdan, o que parece incrível quando se sabe dos
esforços de Mafalda para reconciliar a filha com o genro.
A criança que foi fruto dessa reconciliação recebeu,
provavelmente, diversos prenomes, entre eles os de Luís e
Filipe e, tendo vivido pouco, os cronistas posteriores
fizeram, sem dúvida, confusão.
(15) A tomada do poder por Branca de Castela não
foi feita, aliás, sem dificuldades. Embora designada por
um ato do Rei Luís VIII, seu marido, com tutôra e regente,
Branca esbarrou com violenta hostilidade por parte dos
grandes vassalos, a quem repugnava a idéia de que uma
mulher pudesse exercer a guarda do reino.
“A França está se arruinando,
Senhores barões, escutai,
Pois que a mulher vai mandando”
escreveu Hugo de La Ferté. 254
Mas Branca de Castela era mulher de tempera bem
diferente da de Clemência de Hungria. Além disso, era
rainha há dez anos e tinha doze filhos. Venceu os barões,
graças ao apoio do Conde Thibaud de Champanha, que lhe
atribulam como amante. Dizia-se, mesmo, que ela se
servira daquele homem para envenenar seu marido: nada,
porém, permite dar caráter sólido a tal suspeita.
(16) Constata-se impressionante similitude entre a
loucura de Roberto de Clermont e a que atacou Carlos VI,
duas vezes seu sobrinho-segundo, na quinta geração, pelos
homens, e na quarta, pelas mulheres.
Nos dois casos a demência teve início num choque
produzido por armas, com traumatismo craniano em
Clermont, sem traumatismo em Carlos VI, mas que
determinou mania furiosa tanto num como noutro:
mesmos períodos de crises frenéticas, seguidas de longos
períodos de cura, onde o doente retomava comportamento
e aparência normais. O mesmo gosto maníaco pelos
torneios, que não podiam impedi-los de organizar, e nos
quais apareciam, embora às vezes em estado de delírio.
Clermont, demente e perigoso como era, ainda assim tinha
autorização para caçar no conjunto de seu domínio real.
Apresentou-se, mesmo, na hoste de Filipe, o Belo, durante
uma das campanhas da Flandres, assim como Carlos VI,
louco já há vinte anos, assistiu, durante seu reino, ao cêrco
de Bourges e a todos os combates contra o Duque de
Berry.
Clermont morreria no dia 7 de fevereiro de 1317,
um mês depois da coroação de Filipe V.
(17) Gritos regulamentares que marcavam o início
do torneio.
(18) As duas crianças deveriam casar-se, mais
tarde, recebendo a coroa de Navarra.
(19) Os brinquedos e brincadeiras de crianças
praticamente não variaram desde a Idade Média até os
nossos dias. Já eram, então, bolas e balões feitos de couro
ou de pano, arcos, piões, bonecas, cavalos de pau e
malhas. Brincava-se de cabra-cega, de barra, de palhinhas,
de pegador, de esconde-esconde, de pula-sela, bem como
de fantoches. Os meninozinhos possuíam, quando de
famílias ricas, imitações de armamentos, feitos sob
medida: elmos de ferro leve, trajos de malha, espadas sem
fio, ante passados das panóplias de generais e de cow-boys
de nossos dias.
(20) A segunda filha de Agnes de Borgonha, Joana,
casada com Filipe de Valois, futuro Filipe VI, coxeava,
como seu primo-irmão Luís I de Bourbon, filho de
Roberto de Clemont.
A claudicação existia apenas no ramo colateral dos
Anjou, pois que o Rei Carlos II, avô de Clemência da
Hungria, tinha o apelido de Coxo. Uma tradição,
retomada, aliás, por Mistral nas Iles d’Or, diz que quando
o embaixador do rei da França, portanto o Conde de
Bouville, veio pedir Clemência em casamento para seu
senhor, exigiu que a princesa se despisse diante dele, a fim
de certificar-se de que possuía pernas retas.
O defeito de Joana de Borgonha era acompanhado
de uma perversidade patológica que, assim que ela subiu
ao trono, valeu-lhe o apelido de “a rainha má da França”,
ou “a rainha coxa”.
A lista de suas vítimas é longa. Talvez tenham
atribuído a Margarida de Borgonha (que, entre todas as
taras da família, parece ter sido afetada apenas por uma
excessiva sensualidade) grande parte das crueldades de
sua irmã mais nova.
Entre outros exemplos, Joana tentou desembaraçar-
se do Bispo João de Marigny, mandando preparar-lhe um
banho envenenado. Fabricava, também, sentenças de
morte, que selava com o sinête de seu marido, sem que
esse último o soubesse. Filipe VI, tendo tomado
conhecimento disso, certa vez, deu-lhe uma surra de vara,
e com tamanha violência que quase a matou.
Quando ela morreu de peste, em 1349, o povo viu
naquilo, com satisfação, o castigo do céu.
(21) A broigne era uma vestimenta de pele, de
tecido ou de veludo, sobre a qual vinham costuradas
malhazinhas de ferro, e que tinha substituído a cota de
malhas propriamente dita. Por cima daquela broigne, e
para reforçá-la, começaram a aparecer os elementos
chamados “placas” — de onde vem o nome de armadura
de placas — que eram partes unidas de metal, forjadas no
feitio do corpo, e articuladas, à moda da cauda dos
lagostins.
(22) Mafalda organizou uma lista minuciosa dos
roubos e depredações cometidos em seu castelo de
Hesdin, relatório que compreendia mais de cento e vinte e
nove artigos.
Intentou um processo junto ao Parlamento de Paris,
para ser indenizada, o que lhe foi parcialmente concedido
pela sentença de 9 de maio de 1321.
(23) Dizia-se “zarolho” por “míope”. Filipe V foi
chamado, Longo, o Grande ou, o Zarolho.
(24) Há três formas de eleição no conclave:
1º — Por escrutínio secreto, completado, se
necessário, por um segundo escrutínio, chamado “de
acessão”. A maioria deve ser de dois terços dos votantes.
2º — Por compromisso, se os cardeais entregam,
unanimemente, a alguns dentre eles, o cuidado de designar
o eleito em nome de todos.
3º — Por “inspiração” ou por “aclamação”.
Certos autores dizem que Tiago Duèze foi
designado por compromisso. E: uma opinião que pode
estar apoiada nas numerosas “negociações” de que foi
objeto a sua eleição. Mas, na verdade, Duèze foi realmente
eleito por voto regular, pois houve ali quatro
escrutinadores, cujos nomes são conhecidos.
(25) O menu-vair era uma pele, cinzenta de um
lado e branca do outro, produzida por uma espécie de
esquilo. E o que se chama hoje petit-gris.
(26) Era de uso, então, nas famílias reais e
principescas, dar às crianças numerosos padrinhos e
madrinhas, às vezes alcançando o total de oito. Assim,
Carlos de Valois e Gaucher de Châtillon estavam entre os
padrinhos de Carlos de La Marche, o terceiro filho de
Filipe, o Belo. Mafalda era madrinha daquele príncipe,
como de muitas crianças da família. Sua designação para
levar às fontes do batismo o filho póstumo de Luís X, não
tinha, portanto, nada de surpreendente. Não a escolher é
que teria parecido prova de desfavor.
(27) O batismo, naquela época, era sempre
realizado no dia seguinte ao do nascimento.
A ablução por imersão total na água fria, foi
praticada só até o início do século XIV.
Um sínodo, reunido em Ravena, em 1313, resolveu,
pela primeira vez, que o batismo poderia ser dado também
por aspersão, se houvesse escassez de água-benta ou se
fosse de temer que a imersão completa comprometesse a
saúde da criança.
Somente no século XV, entretanto, desapareceu
verdadeiramente a prática da imersão.
Se acrescentarmos a essa forma de batismo as
deploráveis condições de higiene em que se processavam
os partos, em dificuldade compreenderemos o alto índice
de mortalidade de recém-nascidos, na Idade Média.
(28) A Rainha Clemência tinha sido atingida,
segundo tudo leva a crer, de febre puerpéral.
(29) Quando um recém-nascido apresentava
sintomas de doença, não era a ele próprio que se
administravam os remédios, e sim à ama-de-leite.
(30) Essas disposições visavam tanto o registro dos
atos particulares como a outorga de patentes, autorizações
de residência ou de comércio para estrangeiros, e os
diplomas dos oficias reais. Se nos reportarmos à lei de
1321, notaremos, por exemplo, que os atos concernentes
aos lombardos ou judeus estavam submetidos a idênticas
tarifas: 11 soldos para uma carta de apêndice simples, 7
libras e 10 soldos para uma carta de duplo apêndice, e 9
libras, se os selos apostos sobre os ditos apêndices fossem
de cera verde, côr reservada para o sinête real. As cartas
de nomeação para cargos pagavam 51 soldos, para os
bailios e senescais, 6 soldos para os aguazis e funções
pequenas.
Mesmo os dons graciosos ou rendas concedidas
pelo soberano deviam ser certificados através de
documento taxado.
O papel timbrado, utilizado hoje pelos tabeliães, é
uma sobrevivência daquele regulamento.
(31) Os sinais de desequilíbrio mental deviam
acentuar-se rapidamente. João XXII, que sempre protegera
Clemência, posto que era princesa d’Anjou (não chegara
ele a conceder, quando soube de seu parto, vinte dias de
indulgência a quem rezasse pela rainha e por seu filho?)
foi forçado, no mês de maio seguinte, a admoestar por
carta a jovem viúva, pedindo-lhe que vivesse
apagadamente, na castidade, na humildade, que fosse
sóbria à mesa, modesta em suas palavras como em seus
trajos, e que não aparecesse apenas em companhia de
gente jovem. Ao mesmo tempo, intervinha junto a Filipe
para a fixação da dotação de viúva de Clemência, coisa
que não foi feita sem dificuldade.
O papa escreveu ainda a Clemência, por várias
vezes, exor-tando-a a reduzir suas despesas suntuárias e
pedindo-lhe com firmeza que pagasse suas dívidas, em
particular aos Bardi, de Florença. Finalmente, em 1318,
ela precisou fazer retiro, por alguns anos, no convento de
Santa Maria de Nazaré, junto de Aix, na Provença. Mas,
antes de se enclausurar, foi obrigada, a fim de satisfazer as
exigências de seus credores, a depositar suas jóias como
penhor.
Quando morreu, dez anos mais tarde, em Paris, no
Palácio dos Templários, que Filipe V lhe havia dado em
troca do castelo de Vincennes, todos os seus bens foram
vendidos em leilão.
(32) Os irmãos João e Pedro de Cressay seriam
armados cavaleiros por Filipe VI, de Valois, vinte anos
mais tarde, em 1346, no campo de Batalha de Crécy, na
véspera da famosa derrota.
(33) Bourse-à-cul-de-vilain: chamava-se assim as
bolsas de ventre redondo, e estreitas na boca. Eram
muitíssimo ornamentadas, e os nobres ali levavam
freqüentemente seu sinête, além de dinheiro.
Esses números foram extraídos das contas da
sagração de Filipe VI, doze anos depois. Nem os preços
nem as quantidades tinham variado muito. Em
compensação, todos os pormenores do guarda-roupa, da
decoração, que damos durante o capítulo, referem-se, de
fato, à sagração de Filipe V, e foram tirados do livro de
seu tesoureiro.
(35) Entendia-se por robe (vestido), em termos de
enxoval, um trajo completo, composto de várias peças
denominadas garnement, e todas do mesmo tecido. A robe
de aparato compreendia: dois surcots (espécie de casaco
que se usava sobre a cota, às vezes sem manga), um aberto
e outro fechado; uma housse (capa inteiriça), uma
garnache (manto longo), um chaperon (chapéu, capuz,
guarnição para a cabeça, que variava de feitio de acordo
com a situação social do portador) e um manto de atavio.
(36) Os eleitores de Hugo Capeto — daí o título de
pares, isto é, iguais ao rei — tinham sido: o Duque de
Borgonha, o Duque da Normandia, o Duque de Guyenne,
o Conde de Champanha, o Conde da Flandres, o Conde de
Toulouse.
Nenhum dos possuidores, hereditários ou titulares,
dos seis partidos, estavam presentes à sagração de Filipe
V.
(37) Alguns meses depois, em setembro de 1317, o
papa escreveu ao confessor da rainha Joana para lhe dar
poderes de absolvê-la “de todos os pecados que confessara
três anos antes”. Parece duvidoso que Filipe V pedisse ao
seu amigo Duèze essa absolvição oficial, se não
acreditasse firmemente na inocência de sua esposa, pelo
menos na parte que se referia ao adultério.
(38) Cinco séculos mais tarde, em seu discurso de
21 de março de 1817, diante da Câmara dos Pares e
relativo a uma lei de finanças, Chateaubriand encontrou
argumentos nesse de creto de Filipe, o Longo, promulgado
em 1318, e pelo qual o domínio da coroa fora considerado
inalienável.

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