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Literalidade faz da presunção de

inocência uma garantia de impunidade


O propósito deste artigo é comentar o disposto no artigo 5, LVII da Constituição
Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória”. Tal dispositivo abriga o princípio da presunção de inocência. O
que se pretende demonstrar é que a utilização abusiva e inquestionada da literalidade
desse dispositivo, mudou o seu significado, transformando-se em uma presunção de
impunidade. Esse tema não é privativo dos criminalistas, mas, primordialmente, é
dos constitucionalistas, até porque está atualmente em debate no Supremo Tribunal
Federal.

Com efeito, aplicado em sua literalidade, no limite, esse dispositivo impediria


qualquer prisão cautelar ou preventiva e mesmo em flagrante delito, pois,
obviamente, nessas situações não há decisão transitada em julgado. Como se sabe,
todo direito é limitado e nenhuma norma jurídica pode ser aplicada isoladamente,
mas, sim, em face do contexto normativo do qual é um fragmento, considerando
também o ambiente fático e os valores que se pretende sejam protegidos.

Nos limites de um simples artigo jornalístico não é possível fazer uma análise
exaustiva, mas é preciso apontar alguns pontos essenciais para o desenvolvimento
do raciocínio. Primeiro, trata-se de uma simples presunção “juris tantum”, que
admite prova em contrário. Segundo, há, na Constituição Federal, uma hierarquia de
princípios: uns são meramente extraídos de normas específicas (como é o caso),
outros são enunciados como tais (artigo 37) e outros são referidos como princípios
fundamentais (Título I). Terceiro, como se sabe o direito é dinâmico (é um
“dinamismo” como diz o ministro Eros Grau), devendo sempre acompanhar a
evolução da realidade social.
Uma coisa é a aplicação correta dos direitos e garantias fundamentais, mas outra
coisa é o exacerbado “garantismo”, em detrimento dos interesses comuns da
coletividade. Já diziam os romanos que “summum jus, summa injuria”. Um exemplo
é sempre ilustrativo e esclarecedor. No Boletim de Notícias ConJur, de 20.2.18, está
transcrita decisão do STJ, no RE 1.705.690-SP, relatado pelo ministro Nefi
Cordeiro, que reformou sentença num caso de condenação por homicídio
qualificado.
Seguindo a jurisprudência dominante, o STJ decidiu anular a decisão que
determinou a quebra do sigilo telefônico, e as provas dele decorrentes, com base no
artigo 5º da Lei 9.296/96, dado que o juiz não apresentou justificativas suficientes ao
deferir o pedido da autoridade policial. Note-se que estão em colisão dois valores
fundamentais: a segurança da coletividade e o sigilo das comunicações.

Evidentemente, não se está pretendendo dizer que um princípio de interesse da


coletividade deve aniquilar outro princípio protetivo do direito individual. Na
verdade, como ensina a doutrina, “em relação aos princípios, os conflitos devem ser
resolvidos por intermédio de uma ponderação a respeito da sua importância, do seu
peso, para a solução do caso específico”. (Oscar Vilhena Vieira, Discricionariedade
Judicial e Interpretação Constitucional, in Constituição Federal de 1988,
coordenação Antônio Carlos Mathias Coltro, Editora Juarez de Oliveira, São Paulo,
1999, p. 426-427)
Outro caso ilustrativo está na revista Época, de 12.2.18, sob o expressivo título de O
DNA da impunidade. Relata-se que de março de 2014 a janeiro de 2016, seis
agências bancárias, em diferentes e bem distantes cidades brasileiras, tiveram seus
cofres explodidos. Em cada um desses locais foi possível coletar material genético
dos assaltantes. Colocadas essas informações nos bancos de perfis genéticos
existentes em 19 estados e na Polícia Federal, foi possível verificar que a mesma
pessoa esteve presente em todos eles, mas não se sabe quem é. Talvez isso pudesse
ser feito se a Lei 12.654, de 28.5.12 estivesse sendo fielmente cumprida. Essa lei
disciplina a criação de bancos de dados de perfis genéticos e estabelece que a
identificação criminal poderá incluir material biológico para determinar o perfil
genético, sendo que, no caso de crimes dolosos com violência contra pessoa, a
identificação do DNA é obrigatória.
Porém a constitucionalidade dessa lei está sendo questionada no STF, em Recurso
Extraordinário cujo relator é o ministro Gilmar Mendes. Conforme consta dessa
matéria jornalística, assinada por Débora Bergamasco, “Em um caso ocorrido em
Minas Gerais, o suspeito envolvido não autorizou que sua saliva fosse coletada para
um exame de DNA, como manda a lei. Seu defensor público levou o caso ao
Supremo, questionando a constitucionalidade da lei. Ele argumentou que a coleta é
uma possível violação de direitos da personalidade e da prerrogativa de alguém não
se autoincriminar. Em seu parecer, Raquel Dodge recomenda que o Supremo não dê
provimento ao recurso do defensor e mantenha a norma vigente. No texto, a
procuradora-geral afirma que não há “ofensa aos artigos 1º e 5º da Constituição
Federal”. Para ela, “a identificação criminal é direito do Estado voltado à promoção
da segurança pública”.” Apenas para completar, diz a Revista que a coleta de
material genético tem sido muito útil em casos de estupro, no qual a identificação do
DNA em um caso tem permitido a solução de diversos outros.

Atualmente é lícita e insuscetível de sanção a recusa em fornecer material (genético


ou não, como é o caso da escrita e da voz – para comparações) na coleta de provas,
que é dever e encargo de quem acusa. Já cuidamos desse assunto em artigo
publicado neste espaço (Interesse Público, 21.9.17 – Colaboração premiada e
direito de mentir são incompatíveis) enfocando o disposto no inciso LXIII, do
artigo 5º da Constituição: “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o
de permanecer calado...”. Esse direito de permanecer calado significa que nenhum
acusado é obrigado a se auto incriminar, ou a colaborar com a acusação. O silêncio
não pode ser tomado como confissão. Juridicamente, quem cala não consente.
Como todo e qualquer direito o de não se auto incriminar (redundância expletiva)
também tem limites. Levado ao extremo poderia chegar à proibição do uso de
câmeras de segurança. Mais ainda, poderia impedir a identificação do acusado,
como é o caso da fotografia e da coleta das impressões digitais. No caso
especificamente em exame, da coleta de material biológico para a montagem de um
banco de informações genéticas, o que se tem é simplesmente um novo processo de
identificação, resultante da evolução tecnológica, que não pode ser ignorada na
interpretação e aplicação das disposições constitucionais.
Conforme, desde longa data, já ensinava Antonino Pensovecchio Li Bassi(L'
Interpretazione delle Norme Costituzionale, Milano, 1972, p. 62 e 81), numa
tradução para o português, "O intérprete das normas constitucionais deve aplicar no
seu trabalho também o critério evolutivo, atentando para com a realidade e referindo
as normas isoladas a um sistema constitucional em contínua evolução, como
decorrência das mutações das exigências político-sociais da coletividade. Deve
aplicar as normas não com base no sistema no qual o dispositivo historicamente
nasceu, mas, sim, com base no sistema atual no qual vive."
A doutrina brasileira mais moderna aponta para a mesma direção. Egon Bockmann
Moreira (Exploração Privada dos Portos Brasileiros: Concessão Versus
Autorização, in Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, Ano 1, maio-
junho, Revista dos Tribunais, 2013, p.33), alertando que o mandamento contido na
norma constitucional sempre depende da interpretação de seu enunciado, pondera:
“Porém, a interpretação constitucional não é tarefa mecânica e abstrata, como se o
sentido e o alcance da norma pudessem ser revelados por meio da aplicação de uma
sequência predefinida de técnicas formais – independentemente de sua materialidade
e papel desempenhado no respectivo espaço-tempo. Mais: a interpretação/aplicação
constitucional não é nem declaratória nem estática, mas sim constitutiva, que sempre
precisa evoluir e se transformar”.
Interpretar os textos jurídicos, para aferir o real significado de seus mandamentos,
não é um fim em si e nem uma atividade lúdica. O trabalho do intérprete é
instrumental ou, pelo menos, deve estar voltado para a busca da solução mais
adequada e mais justa dos problemas suscitados.

Afaste-se o intérprete sério e realmente preocupado com a realização da Justiça


segundo a Constituição, daqueles que, conforme destaca José Roberto Dromi,
(Derecho Administrativo, Ed. Ciudad Argentina, 4ª ed. 1995, Buenos Aires, p. 35),
entendem o sistema jurídico como uma máquina de impedir, orientada pelo código
do fracasso, cujos mandamentos são: art. 1º - não pode; art. 2º - no caso de dúvida,
abstenha-se; art. 3º - se é urgente, espere; art. 4º - sempre é mais prudente não fazer
coisa alguma.
Sem ousar, o direito não evolui. Mas ousar não é agir irresponsavelmente; é, sim,
procurar extrair da Constituição o máximo de seu conteúdo como fundamento para a
concretização de seus princípios mais importantes, de maior hierarquia, que estão
muito acima de meras normas isoladas ou de fragmentos de normas isoladas.

A presunção de inocência, na prática, transformou-se numa garantia de impunidade


para alguns brasileiros, em clara ofensa ao princípio fundamental da igualdade,
inerente à república e ao estado democrático de direito, e redundantemente afirmado
no “caput” e no inciso I, do artigo 5º, da Constituição. Seria pura hipocrisia negar
que, atualmente, pessoas economicamente poderosas podem se valer de
questiúnculas processuais em infinitos recursos, até alcançar a prescrição. Exemplos
não faltam, mas a prisão de Paulo Maluf, depois de dezenas de anos dos delitos
praticados, mostra o ponto fora da curva e a mais absoluta exceção. A reafirmação
da possibilidade de prisão, após decisão de segundo grau, é um imperativo
determinado pela redução das desigualdades, afirmada como um dos objetivos
fundamentais da República, pelo inciso III, do artigo 3º, da Constituição Federal.
A politização do Judiciário, a exacerbada ideologização das questões institucionais e
a divulgação pelos meios de comunicação de falsas notícias levaram o autor deste
artigo a buscar uma visão provavelmente mais neutra e equilibrada, qual seja o do
professor suíço, Manuel Eisner, diretor do Centro de Estudos da Violência da
Universidade de Cambridge: ”Chama a minha atenção o fato de o Brasil ser
caracterizado por uma cultura de falta de respeito pela lei, o que se espalha por todo
o sistema: a chance de um assassino ser preso é mínima, a corrupção está espalhada,
e os agentes da polícia quase nunca são responsáveis por execuções extrajudiciais”
(OESP, 18.02.18 p. A18). Ninguém contesta que é preciso mudar esse cenário, mas,
como é lugar comum, não é possível obter resultados diferentes, fazendo-se sempre
as mesmas coisas.

Em resumo: a interpretação evolutiva dos dispositivos e princípios constitucionais é


uma exigência de ordem lógica. Mudar o que está visivelmente errado é uma
simples questão de racionalidade. Buscar a maior eficácia possível dos valores mais
elevados da nacionalidade é um dever de todo brasileiro.

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