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Mentes militarizadas

Aknaton Toczek Souza1


Pablo Ornelas Rosa2
Pedro Rodolfo Bodê de Moraes3

O artigo propõe uma reflexão sobre o processo sociabilização em um ambiente


militarizado e a sua consequência no processo de classificação e interpretação do mundo
social. Utilizando o episódio “engenharia reversa” da série de ficção Black Mirror
como plano distópico, proporemos uma análise acerca dos efeitos de certa biopolítica
criminal localizada nos processos de extermínio, segregação e hipermilitarização da
segurança pública brasileira, através da constatação de um emergente processo de
militarização das polícias e policialização das políticas públicas orientadas para
populações especificas identificadas como perigosas, inimigas ou baratas.

1. Introdução

Vitae necisque potestas.4


Brocardo Latino
A ficção e a distopia – especificamente – fornecem um importante mecanismo
de reflexão e tensão da realidade social, trazendo representações sociais, se olharmos a
partir de perspectivas cunhadas por Durkheim e até mesmo Bourdieu, por intermédio de
um método de hiperdimensionamento dos fatos sociais, ou mesmo nos permite constatar
de que forma certas verdades são produzidas a partir de práticas discursivas que
1
Aknaton Toczek Souza é doutorando em Sociologia (UFPR), mestre em Sociologia (UFPR), especialista
em Sociologia Política e em Direito Penal e Criminologia (ambas pela UFPR), é bacharel em Direito e
Advogado. É pesquisador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da
Universidade Federal do Paraná e participa do grupo de Pesquisa Subjetividade, Poder e Resistência.
Atualmente é professor de criminologia e direito penal da Secal.
(http://lattes.cnpq.br/8961574472191125).
2
Pablo Ornelas Rosa realizou o estágio Pós-Doutoral em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná
– UFPR, Doutorado em Ciências Sociais com área de concentração em Política pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Mestrado em Sociologia Política e Bacharelado em
Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Atualmente é Professor Titular I
nos Programas de Mestrado em Sociologia Política e em Segurança Pública da Universidade Vila Velha –
UVV e coordenador do Grupo de Pesquisa Subjetividade, Poder e Resistência.
(http://lattes.cnpq.br/1908091180713668)
3
Pedro Rodolfo Bodê de Moraes é Doutor e Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio
de Janeiro – IUPERJ, Mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional / Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ e graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Fluminense – UFF.
Atualmente é Professor Adjunto no Departamento de Sociologia, no Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR.
Coordenador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos.
(http://lattes.cnpq.br/9901027858838220).
4
“Poder da vida e da morte” do patriarca romano sobre os seus filhos, esposas e escravos, segundo a lei
das doze tábuas.
possuem certas intencionalidades voltadas para o controle populacional, caso
fundamentemos nosso olhar a partir da analítica foucaultiana. Quanto a impossibilidade
de análise científica, nos parece um equívoco, na medida em que as artes – incluindo as
ficções – pertencem ao social, e como tal, só transmitem e possuem sentido socialmente.
Por vezes, a ficção ao contar histórias a partir de um contexto, com outras relações e
circunstâncias nos permite ver com clareza a nossa realidade diluída no senso prático, e
assim, tal qual um antropólogo ao etnografar um rito social nos dá uma certa dimensão
dos nossos próprios rituais.

O episódio “engenharia reversa”, cujo título original é Men against fire,


oferece essa possibilidade, permitindo operacionalizar uma série de conceitos científicos
relativos ao processo de produção e classificação da realidade, em última análise: como
vemos as coisas. Por isso, inicialmente, problematizaremos o processo social
responsável por estabelecer formas de identificação e classificação da vida social,
especificamente relacionada a militarização.

Em um segundo momento apresentaremos as consequências inerentes a


militarização da vida, um processo tão difundido e diluído nas dinâmicas sociais que
torna comum e aceitável esse tipo de visão de mundo, proporcionando, assim como que
em uma ficção, sua maximização, a hipermilitarização da segurança pública.

Por fim, contrapondo a ficção, a conclusão que chegamos com esse texto
acerca do processo de militarização da vida e hipermilitarização da segurança pública
na vida dos outros, se fundamenta na existência de certo imaginário, representação
social ou mesmo prática discursiva, dependendo do referencial abordado, que tem como
premissa o extermínio social entendido não só como necessário, mas como tratamento
merecido e lógico as baratas sociais.

2. A militarização da vida

Já que as guerras nascem na mente das


pessoas, é na mente das pessoas que
devemos erguer os baluartes da paz.5

5
No texto original utiliza-se o termo homens com o sentido plural. Como sabemos da relação profunda
entre o patriarcado e o militarismo, assim como, a força da linguagem na guerra, optamos por utilizar um
termo neutro que não torne antitético o conjunto do artigo, conforme a sugestão na introdução do livro:
Rufanges, Jordi Calvo (Org.). 2016. Mentes Militarizadas: Cómo nos educan para asumir la guerra y la
violencia. Barcelona: Icaria editorial.
Preambulo da Constituição da UNESCO,
16 de novembro de 1945
É importante que saibamos que o episódio em análise teve o roteiro baseado no
livro “Men Against Fire: The Problem of Battle Command” de 1947 “escrito por um
veterano de guerra que revela que somente um em quatro soldados realmente atira
para matar o seu inimigo”6 .

O episódio analisado da série distópica Black Mirror retrata uma questão que
foi identificada pelos estudos criminológicos oriundos das ciências sociais a quase um
século7: a seletividade e a identificação classes perigosas8. Se pensarmos nas bases
sociológicas que procuraram esclarecer como classificamos e damos sentido ao mundo
podemos retroagir a mais de um século. Um dos temas centrais da série é a tecnologia e,
portanto, no episódio Engenharia reversa há uma simplificação bastante interessante de
algo profundamente complexo, ou seja, como classificamos os outros.

Enquanto na ficção um chip implantado no cérebro do personagem é


responsável por desconfigurar os seres humanos como alvos das perseguições, fazendo
com que sejam vistos como uma espécie de monstro – chamados de baratas –, uma
mutação incapaz de cura e humanidade, que emite grunhidos, além de ser violento, sujo,
um perigo para sociedade9, e por isso matável 10. Ainda que na realidade, até onde
saibamos, inexiste tal chip, ainda assim, a experiência da segurança pública brasileira
nos últimos anos tem demonstrado inúmeras vezes um comportamento semelhante
quando trata populações humanas como indesejáveis, com uma consequência idêntica,

6
Cf “Black Mirror: resenhas dos episódios e o que achamos da 3 a temporada - Séries por Elas”. 2017.
Acessado abril 7. https://seriesporelas.com.br/black-mirror-resenhas-episodios-3-temporada/.
7
Com a influência das ciências sociais, sobretudo, a partir de Durkheim, o estudo do crime e da
criminalidade se afasta das explicações biológicas e psicológica, para uma explicação que concentra sua
análise na noção de controle social, e com isso, permitindo desenvolver análises que permitiram
compreender a seletividade da punição. Cf. ANITUA, G. I. Histórias do pensamento Criminológicos. Rio
de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2008; e BARATTA, A. Criminologia Crítica e
Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan: Instituto
Carioca de Criminologia, 2002.
8
A noção de classe perigosa tem seu primeiro registro no século XIX, para identificar as populações não
incorporadas pelo processo de industrialização. E em que pese a aproximação histórica do termo com o
conceito marxista de lumpemproletariado, a ideia de classe perigosa deve ser entendida como grupo ou
população, e o perigo como um elemento simbólico. Cf. SOUZA, Aknaton Toczek; CAMARGO
Giovane Matheus; e ROSA, Pablo Ornelas. 2015. “Onde moram os perigosos?” In XVII Congresso
Brasileiro de Sociologia. Porto Alegre: Anais da XVII SBS.
9
DOUGLAS, Mary. 1966. Pureza e perigo: Ensaio sobre as noções de Poluição e Tabu. Lisboa: Edições
70
10
AGAMBEN, Giorgio. 2010. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua - I. Belo Horizonte: Editora
UFMG.
tornando-os matáveis, conforme podemos localizar nos estudos de Agamben (2010). A
metáfora do chip não é nova, sendo possível, por exemplo, extrair sentido semelhante da
alegoria da caverna de Platão, não apenas pela ideia de que não vemos a realidade, mas
também pelas consequências diante do depoimento daquele que viu que há um outro
mundo.

A dimensão e sentido da realidade está diretamente relacionado o espaço social


ocupado pelos agentes sociais, ou de forma concisa, “o real é relacional”11. Um
pensamento mais substancialista dos gostos e distinções, que é a do senso comum e do
racismo, trata de localizar as atividades e preferencias inscritas em uma essência
biológica ou cultural que fatidicamente nos levará a um erro de comparação e a uma
visão sintética e estática das práticas, na medida em que transforma a característica de
um dado momento segundo sua posição em um determinado espaço social em uma
propriedade necessária e intrínseca de um grupo12. Portanto, tal como a relação é
dinâmica e estratificada em diversos espaços sociais, os sentidos que atribuímos as
coisas também o são. Assim, utilizando-se de uma metáfora poderíamos dizer que cada
espaço social bem definido possui seu próprio chip que lhe permita compreender e dar
sentido pleno a suas práticas. E ao depor sua experiência ou representação do mundo a
outras pessoas distantes de seu espaço social, é possível não se fazer entender, ou até
mesmo, aquilo que racionalmente se entende como adequado e correto – no sentido
moral –, pode ser entendido racionalmente pelos outros como um desvio, tabu, ou até
mesmo, um crime.

Os chips implantados nos agentes das instituições responsáveis pela segurança


pública, que no caso brasileiro realizada pelo Sistema de Justiça Criminal – SJC –,
possuem semelhanças e uma interrelação que sustenta a dinâmica do sistema. É possível
pensar o chip como a noção de habitus desenvolvida principalmente por Pierre
Bourdieu, podendo ser entendida como a história cravada nos corpos, a interiorização
da exterioridade, a dinâmica entre o sujeito e a estrutura no qual aquele é
subjetivamente livre nos limites dado pela própria estrutura. “Produto da história, o
habitus produz as práticas, individuais e coletivas, portanto da história, conforme aos
esquemas engendrados pela história”13, são o princípio das práticas, os esquemas

11
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2005. P.16
12
Ibidem, p.17
13
BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009. P.90
classificatórios, princípios de classificação, de visão e divisão 14. Assim, as
particularidades dos diversos habitus estão relacionados com os diversos espaços
sociais, também chamados de campos, e por serem plurais e multidimensionais – tal
qual a vida – se intersecionam com outros campos, disputando posições e capitais. As
diversas instituições que compõem o SJC agem dessa forma, Juízes, Promotores de
Justiça e Policiais15, e ainda que disputem, concordam com o essencial gerando uma
interação homologa16.

O chip vai sendo implantado aos poucos, cotidianamente, no processo de


socialização, passando a ser reforçada pelas formas de sociabilidade e tendo seus efeitos
diversos na medida em que alteram a forma de compreensão e classificação do mundo –
eidos –, a postura corporal – hexis – e os valores – ethos – do grupo de soldados
destinados a caçar as baratas. Primeiro o eidos como uma forma específica de pensar, de
apreensão da realidade, “uma construção da realidade fundada em uma crença pré-
reflexiva no valor indiscutível nos instrumentos de construção e nos objetos
construídos”17, ou seja, o chip estabelece novas formas de classificação da realidade, e

14
Interessante pensar a relação saber/poder indicada por Foucault, sobretudo, em relação a uma política
geral da verdade, uma luta entorno da verdade. “O importante, creio, é que a verdade não existe fora do
poder ou sem poder (...). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e
nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdades, sua “política
geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira
como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção de
verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”, in:
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 27. ed. São Paulo: Graal, 2013. P. 10
15
O Sistema de Justiça Criminal é um conglomerado de instituições responsáveis pelo exercício da
violência legítima, por isso, podemos considera-lo como um meta-campo em disputa, e portanto, por isso,
não há uma paridade entre as instituições em disputa. Algumas delas possuem papeis secundários – em
relação a violência – , de contenção – e ao mesmo legitimação - do exercício da violência legitima, entre
elas, por exemplo a advocacia e defensoria pública. Em tempos de hipermilitarização outras instituições
que não possuem relação direta com o SJC podem participar e auxiliar, como os meios de comunicações,
associações comerciais, sistemas educacionais, faculdades, entre outras. Cf. SOUZA, Aknaton Toczek; e
MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de. 2016. “De farda ou de toga: uma análise sobre o sistema de justiça
criminal”. In Democracia e(m)Sistema Penal. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais.
16
Existe uma relação íntima entre a justiça e polícia, e essa relação é o núcleo duro do SJC. A justiça atua
de forma a criar um ritual de legitimação da atuação policial, que por sua vez, atua dentro dos limites
mínimos – por uma questão de senso prático – para garantir sua legalidade. Aparentemente existe um
certo equilíbrio entre essas instituições, todavia, a polícia é imperativa para o funcionamento do Estado,
enquanto o judiciário pode perder sua legitimidade ou outorga-la facilmente diante da força física.
Podemos tomar como exemplo a produção de provas para o processo penal, que no caso brasileiro é pífia,
existindo consolidada jurisprudência para assegurar a palavra dos policiais como prova, e mais, a
capacidade de criar outras provas como relatos informais, transeuntes anônimos, denúncias anônimas. Cf.
SOUZA, Aknaton Toczek. Perigo à ordem pública: um estudo sobre controle social perverso e
segregação. [Dissertação] Universidade Federal do Paraná, 2015.
17
THIRY-CHERQUES, Hermano Roberto. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de
Administração Pública, 2006. P.7
ainda, a cada chip corresponde a uma instituição, podendo-se dizer que o chip é
instituído aos poucos, ao invés de inserido em um momento originário.

No presente caso, estamos falando de instituições responsáveis pelo exercício


das políticas públicas de segurança18, e um chip específico que permita dinamizar e
otimizar sua atividade, os inúmeros casos19 e os estudos desenvolvidos pelas ciências
sociais demonstram o processo de criação da realidade 20. O senso de realidade por ser
relacional é também simbólico, na exata medida em que os sentidos, as classificações
que atribuímos as coisas, são oriundas do processo socialização, ou seja, fruto da
interação humana em uma determinada configuração social, e portanto, variável, sendo
bastante seguro afirmar que não há um sentido ontológico às coisas. E um dos
dispositivos instituídos pelo chip é uma visão militarizada da vida social que
minimamente estabelece uma “deformação do potencial humano dentro das
hierarquias de raça, classe, gênero e sexualidade (...)”21.

O nojo, expressão de asco, uma postura agressiva ou soberba perante o outro é


um dos efeitos do chip. Essas reações configuram uma verdadeira linguagem, uma
comunicação, e portanto, uma relação com o outro, visando influir em alguma medida
no comportamento alheio. O viver é pesado e por isso nos marca, tal qual instrumento já
deformado pelo uso de um velho artesão, porém, tal marca em nosso comportamento
18
É possível estender a interpretação do que são as “políticas de segurança pública”, no caso brasileiro
este tipo de política está relacionado com a atuação penal e policial, assim como, é possível pensar que a
atuação – crescente – policialesca difusa em outras políticas públicas gerando uma “policialização das
políticas públicas”, cf. MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de; KULAITIS, Letícia Figueira Moutinho. 2013.
“Controles social perverso e a policialização das políticas públicas: o caso da Segurança com Cidadania”.
In Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas: aproximando agendas e
agentes. Araraquara: Anais.
19
A atuação da magistratura, e de outros operadores do SJC, é profundamente subjetiva, imersa em pré-
noções e motivações morais que permitem e facilitam a sua atuação. Seja na divisão em série do trabalho
judicia, tratando de forma mecanicista os casos – o que permite a divisão de trabalho entre estagiários e
assessores – dando a celeridade exigida e a tranquilidade necessária para os magistrados. Sentenças
prontas para cada tipo de caso é um bom exemplo, além, de absurdos como mandado de busca e
apreensão coletivo para comunidades periféricas, a tolerância com casos cujo a legitimidade é facilmente
questionável. Em relação a este último, a homologação de flagrantes por tráfico de drogas ocorridos em
residências, durante a madrugada, sem investigação prévia ou qualquer outro elemento que comprovem a
veracidade dos fatos, além da evidente fala dos policiais, compromissadas em dar legitimidade a sua ação.
Cf. SOUZA, Aknaton. Toczek, 2015, op.cit.
20
SOUZA, Aknaton Toczek; ROSA, Pablo Ornelas; e MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de. 2016.
“Empreendedorismo de si e Empreendedorismo Moral na Magistratura: as representações dos juízes de
Direito de Ponta Grossa sobre os ‘usuários de drogas’”. In Perspectivas em Segurança Pública.
Florianópolis: Insular.; e SOUZA, Aknaton Toczek; CAMARGO Giovane Matheus; e ROSA, Pablo
Ornelas. 2015a. op.cit.
21
BOVÉ, Gemma Amorós. La militarización de las relaciones: la construcción del enemigo. Mentes
militarizadas: Cómo nos educan para asumir la guerra y la violencia, 2016. Barcelona: Icaria editorial.
P.41
pode ser uma exigência/consequência institucional, dado a sua posição perante o outro.
O juiz de direito oriundo das classes mais abastadas, com uma renda, ocupando um
espaço social absolutamente distante daqueles que estão julgando, reflete um
comportamento que afasta o poder de fala (e verdade já que ela é relacional),
hierarquizando e silenciando. A postura agressiva típica de um processo de
hierarquização social22, fruto de uma vida militarizada, gera uma visão estereotipada dos
outros, entendidos como baratas. A visão de uma viatura com soldados de batalhões
especiais para a caça de baratas representa bem o efeito do chip instituído, armas à
mostra, uma feição belicosa, uma fala hostil, comunicando a todos seu intento e
posição. Em suma, o chip institui princípios que são interiorizados pelo corpo e
revelados em posturas e expressões corporais.

Por fim, o ultimo efeito do chip é estabelecer valores partilhados por aqueles que
o possuem. Esses valores estão em um estado prático, em forma não consciente, um
conjunto sistemático de disposições morais, princípios práticos. Para que, por exemplo,
aqueles em que se instituíram o chip da militarização, cujo as profissões e instituições
foram desenvolvidas para combater determinada parcelas da população, possam
repousar suas cabeças e dormirem tranquilamente. Ainda que haja contradições, via de
regra, a consciência dos sujeitos é consoante com suas práticas, ou seja, se em toda
tomada de decisão a prática fosse posta sobre o crivo da dúvida e da autorreflexão, a
dinâmica exigida pela sociedade neoliberal da segurança pública cairia por terra.
O extermínio da população barata pelo SJC no Brasil, o descaso com a tortura 23,
a desproporcionalidade de tratamento 24, ainda que seja feito racionalmente, é apagado
da consciência pelo chip ao dispor ao operador das políticas se segurança um rol de
22
O sistema de escravidão na América é uma boa referência histórica, dado a sua intensa hierarquização
segundo critérios étnicos e a violência exigida para manutenção dessa dinâmica. Cf. DAVIS, David
Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
23
CONECTAS:DIREITOS HUMANOS. Como as instituições do sistema de Justiça perpetuam a
violência nas audiências de custódia. Disponível em:
<http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/Sumário executivo_Tortura Blindada_Conectas Direitos
Humanos.pdf>. Acesso em: 4/4/2017.
24
Aqui o rol é imenso, usaremos apenas um, que representa ao menos 1/3 dos presos brasileiros. Traficar
drogas é um crime cometido sem violência, despido de brocardos e linguagem jurídica, consiste
basicamente, em possuir – em diversas modalidades como ter em deposito – uma substância considerada
ilícita. A finalidade pela qual o sujeito possui a substância – arbitrariamente e historicamente –
considerada ilícita é estabelecida por critérios subjetivos, imprecisos e lacunosos. Assim, é rotineiro
jovens, negros, com menos de 10 gramas de maconha serem considerados traficantes, e por isso,
condenados a uma pena mínima de 5 anos de prisão. Sem realizar comparações com outros crimes que
possuem a medida da pena inferior, como estupro, lesão corporal, roubo, fraudes, sonegação, apenas por
possuir uma substância – que em caso de compra e venda é realizada voluntariamente – sofrer a violência
física e mental da privação da liberdade cujo as consequências são absolutamente perversas, e no caso
brasileiro, pode ser uma sentença de morte.
disposições morais que permitam se justificar. E mais, permite um senso prático que
dinamiza, indicando rapidamente como agir em cada situação imposta cotidianamente,
assim, os juízes sabem que não se pode confiar nos réus, pois eles são mentirosos; ou
ainda, usuários de drogas são perigosos, e se não cometeu crime, em algum momento
cometerá; isso é o chamado faro policial. Entre tantas outras possibilidades, essa
consequência do chip apresenta uma forma para agir diante da vida.
A militarização é implantada como um chip na cabeça dos responsáveis pelas
políticas públicas de segurança, e tal qual, a distopia uma vez retirada pode gerar muitos
problemas para a manutenção da ordem. Por isso, muitos aceitam, aderem e atuam
permanentemente reimplantado o chip para que possa tolerar as práticas que lhe são
exigidas, porém, nem todos conseguem, não se sabe o motivo exatamente, talvez alguns
possuam os conectores estragados. O fato é que aqueles que reagem ao chip e seus
efeitos, sofrem sérias consequências, seja pelos seus colegas de ofício ou por aqueles
responsáveis pela instalação do chip, ainda que a retomada de consciência pode ser um
problema. A lembrança do que faz, a compreensão da sua atuação e função social,
podem ser danosos, resultando que os profissionais da segurança pública possuem os
níveis elevados de suicídio, depressões e outros problemas psiquiátricos 25. Ademais
praticamente todos os chips possuem certos traços da militarização, já que os seus
dispositivos encontram hoje difusos e espalhados na sociedade. Militarizou-se as
palavras, a educação, a diferença, a vida.

3. A hipermilitarização

O aparelho judiciário teve efeitos


ideológicos específicos sobre cada uma
das classes dominadas. [...] A burguesia
propôs as seguintes escolhas: ou vai para
prisão ou para o Exército; ou vai para a
prisão ou para as colônias; ou vai para a
prisão ou entra para a polícia. De modo
que a plebe não proletarizada foi racista
quando foi colonizadora; foi nacionalista
e chauvinista quando foi militar; foi
fascista quando foi policial. Michel
Foucault26
25
Cf. MIRANDA, Dayse. Diagnóstico e prevenção do comportamento suicida na polícia militar do
Estado do Rio de Janeiro. 1a ed. Mórula Editorial, 2016; e MINAYO, Maria Cecília de Souza; e SOUZA,
Edinilsa Ramos de. Missão prevenir e proteger: condições de vida, trabalho e saúde dos policiais
militares do Rio de Janeiro. Editora FIOCRUZ, 2008.
26
FOUCAULT, Michel, 2013, Op.cit., p. 112.
A militarização é humana, uma invenção, entre outras coisas, uma forma de
perceber o mundo. O chip apenas facilita um processo de sociabilização em uma
cultura militarizada, além de ajudar a evitar maiores problemas com a consciência
humana. E ela tem relação com as fronteiras étnicas e morais construídas em relação
aos outros. As características dos outros em si são variadas, todavia, imprescindível é
essa relação entre mundos, lógicas, etnias, etc..., diferentes. O antropólogo Levi-
Strauss faz uma reflexão cara à nossa a análise:

A humanidade acaba nas fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, por


vezes mesmo, da aldeia; a tal ponto que um grande número de populações
ditas primitivas se designam por um nome que significa os "homens" (ou
por vezes - digamos com mais discrição -, os "bons", os "excelentes", os
"perfeitos"), implicando assim que as outras tribos, grupos ou aldeias não
participem das virtudes - ou mesmo da natureza - humanas, mas são,
quando muito, compostos por "maus", "perversos", "macacos terrestres";
ou "ovos de piolho.27

Com o aumento da complexidade da vida social, principalmente pelo aumento


das populações, migrações, colonização, em suma, as interações de grupos realizadas ao
longo da história, principalmente a partir da consolidação do Estado nacional, todos
foram submetidos a conviverem. Com poder político absolutamente desigual 28, muitas
vezes tendo suas vozes, saberes, práticas, silenciadas na disputa pelo político econômico
da verdade. Ao fazer uma análise da microfísica do poder, relacionando-o com a
produção de saber, poder e assim, de verdade, Foucault (2010) desenvolveu o conceito
de biopolítica, e entre as consequências dessa dinâmica contemporânea da relação
poder/saber está a criação de um novo personagem, a população. E com isso uma
tentativa de fazer uma bio-regulamentação por parte do Estado, uma tentativa de
regular a vida para maximizá-la, normatizá-la, e assim, ampliá-la e precavê-la29.

Na distopia parece operar do mesmo modo, pois todas as mortes, massacres,


assassínios, engendrados pelo Estado geralmente são feitos em defesa da sociedade30.
Obviamente aqui é necessário um outro dispositivo, afinal, a ideia de sociedade pode
27
LEVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. 2a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. P. 4
28
Basta imaginar a colonização portuguesa na América ou na África e a relação entre os povos originários
e a figura do Estado nacional. Pode-se pensar também na escravidão negra na América e a centena de
anos por reconhecimento e direitos civis. Cf. DUVERNAY, Ava. 13a Emenda. Estados Unidos da
América: Netflix, 2016
29
Notem que o surgimento dessa nova dinâmica de poder/saber e suas consequências, unificada na noção
de biopolítica não suprime as outras formas já descritas pelo autor. Podendo, por exemplo, existir uma
dinâmica entre biopolítica e poder disciplinar. A medicina, sugere Foucault, é um exemplo de poder/saber
que incide sobre o corpo – poder disciplinar – e sobre a população – biopolítica.
30
Diversos provérbios populares refletem o problema das boas intenções, que não raro pavimentam o
caminho para o inferno.
sugerir unicidade, porém, deve ser entendido como pluralidade, portanto, sociedades. O
Estado brasileiro possui sociedades, grupos sociais, interagindo cotidianamente,
sobretudo, quando se fala em proteger a sociedade, deve-se pensar em qual sociedade,
ou seja, em quem está sendo protegido contra quem. Porém, para que a biopolítica
possa matar é necessário que intervenha aquilo que Foucault (1999) chamou de o
racismo de Estado, uma nova leitura da raça, não mais relacionada essencialmente a
etnia, mas enquanto uma população, fragmentando biologicamente os grupos sociais.
“Isso vai permitir ao poder tratar uma população como uma mistura de raças ou, mais
exatamente, tratar a espécie, subdividir a espécie de que ele se incumbiu em subgrupos
que serão, precisamente, raças”31. E mais, essa relação permite pensar a morte como
vida, já que determinadas populações passam a ser identificadas como perigosas, uma
ameaça a vida e suas qualidades, sua morte representará mais vida para o outro grupo.
“Quanto mais você deixar morrer, mais, por isso mesmo, você viverá” 32, essa relação
não foi criada pela biopolítica, e sim pela relação guerreira, porém, foi o racismo que
fez isso de forma nova, pois agora não se trata apenas de uma relação de enfrentamento
militar e guerreira, simplesmente para proteção da segurança pessoal ou do grupo. Mas
sim, uma relação pautada pela biologia, onde o outro é inferior, onde a sua morte, a
morte da raça ruim¸ da raça inferior, do anormal, do degenerado moral vai deixar a
vida mais sadia e pura.

A militarização das polícias e da sociedade33 pode ser entendida como uma


ampliação da participação dos estamentos militares na política, economia e educação. E
com isso, noções de grupos perigosos, inimigos sociais, a naturalização da violência e o
nacionalismos passam a ter mais relevância e força. “Afirmamos que o militarismo é a
ideologia que sustenta os processos de militarização das sociedades, com incidência no
político, econômico e social, e que justifica a via militar e, portanto, o uso da força
marcada no momento de fazer frente a um conflito”34. No Brasil o militarismo é
evidenciado nas polícias militares fruto da ditadura civil-militar e na ausência de uma
justiça de transição diante do processo de redemocratização, todavia, a militarização se
31
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo:
Martins Fontes, 1999. P. 305
32
Ibidem, p.305
33
“A militarização das sociedades é, por sua parte, a promoção de valores e atitudes militares na
educação, cultura e costumes combinados com uma elevada presença e protagonismo de militares e
corporações de segurança em um país” in: RUFANGES, Jordi Calvo. La militarización de la educación y
los valores. Mentes militarizadas: Cómo nos educan para asumir la guerra y la violencia, 2016.
Barcelona: Icaria editorial. P.14.
34
Ibidem, p.14
estende a outras polícias, uma vez que estamos falando de um chip implantado que
permite tratar determinados grupos sociais como inimigos, e tratando a diferença como
um conflito a ser combatido com armas.

A biopolítica localizada no aforisma “fazer viver, deixar morrer” em


confluência com a militarização não só intensifica “deixar morrer” como transforma a
morte em fazer viver. “Militarizamos as relações quando aceitamos os discursos de
ódio contra os que são diferentes, quando convertamos o ‘outro’ em inimigo, quando
aceitamos que se queremos paz temos que nos preparar para a guerra, e não para
paz”35, e ao ter ethos castrense aceita-se o uso da violência e extermínio para resolução
de conflitos sociais. Em uma relação de poder/saber que propõem uma verdade, uma
lógica própria como a lógica das coisas, hierarquiza a sociedade – certos e errados,
normais e anormais, cidadãos de bem e baratas – criando não só o sujeito como também
o sujeitado. Em síntese, a lógica militarizada só sobrevive diante da figura do inimigo, e
aí está a sua principal utilidade36.

A biopolítica, muito mais sutil e difusa que outras demais formas de poder,
articulada com a lógica militar, permite que o chip da militarização se popularize,
saindo da caserna. A visão de inimigo, combate, luta, nós e eles, se tornam valores
comuns, permitindo o exercício de estratégias, técnicas e práticas de violência
extremadas sem causar estranheza37. A hipermilitarização é um assoberbamento que se
dá quando os chips passam a ser distribuídos para a população, ou seja, quando a
biopolítica se cruza com a militarização e a dinâmica entre o saber/poder é articulado
com saberes castrenses. Com a hipermilitarização todo o Sistema de Justiça Criminal se
apresenta militarizado, tornando-se a lógica normativa, jurídica, legislativa e política
típica do neoliberalismo, em que todos nós nos tornamos concomitantemente
empreendedores e soldados, que serão capturados e chipados através de um processo de
sujeição e/ou assujeitamento.

35
BOVÉ, Gemma Amorós. op.cit., p.51.
36
A criação de grupos perigosos é o sustentáculo para uma série de instituições, como sugere Foucault:
“De modo que temos finalmente duas noções que se deparam e que vocês logo veem quão próximas e
vizinhas são: a noção de “perversão”, de um lado, que permite costurar uma na outra a série de
conceitos médicos e a série de conceitos jurídicos; e, de outro lado, a noção de “perigo”, e de
“indivíduo perigoso”, que permite justificar e fundar em teoria a existência de uma cadeia ininterrupta
de instituições médico-judiciárias”, in: FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France.
2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. P. 30
37
Cf. ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
4. O que fazer com baratas!
Soberana é a esfera na qual se pode
matar sem cometer homicídio e sem
celebrar um sacrifício, e sacra, isto é,
matável e insacrificável, é a vida que foi
capturada nessa esfera. Giorgio
Agamben38
Diante do expansionismo das noções militares para outros campos sociais,
vemos surgir nas representações sociais ou práticas discursivas, se preferir, um rol de
inimigos sociais difusos, ambíguos e diversificados, sendo todos eles unificados pelo
trato das diferenças e desigualdades com conflitos sociais a serem eliminados através da
guerra. Ao mesmo tempo, verifica-se a emergência de certa dinâmica social de caça às
bruxas, ou seja, uma espécie de bode-expiatório no qual se possa jogar a culpa de todas
as mazelas sociais. Orquestrada pelo direito penal, a guerra permanente, se torna o traço
principal das disputas políticas, dos desejos comuns e da esperança vaga de dias
melhores.

O medo do outro, do desconhecido, do imigrante, do estrangeiro foi a base do


temor durante um bom período da idade média no ocidente 39. E quando o
expansionismo colonial criou a raça como um dispositivo de hierarquização social que
justificasse o morticínio e o controle físico e violento dos corpos, ainda o medo foi
importante40, posteriormente, com a consolidação dos Estados nacionais, as populações
cujo a potência de insurgência se dava pelas condições sociais por elas vividas, que
passaram a ser o alvo do medo 41. Criamos fronteiras dentro das cidades e nações, e
dentro dessa miscelânea de contradições e abusos, estrangeiros/nacionais,
inimigos/cidadãos, cidadãos de bem/bandidos.

O medo fortalece as instituições responsáveis pela violência que constituem o


Estado. A polícia e o judiciário são o braço armado e o oráculo responsável por
legitimar e justificar as práticas e consequências da guerra42. Assim, quanto mais
inimigos e mais difundida a ideia de guerra, mais importância essas instituições
ganham, transpassando sua influência para toda a sociedade. O medo não é algo

38
AGAMBEN, Giorgio. op.cit., p. 85.
39
Cf. DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.
40
Cf. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco: O Negro no Imaginário das
Elites Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; e DAVIS, D. B. op.cit.
41
Cf. MACHADO DA SILVA, Luiz. Antonio. Vida sob cerco: violência e rotnia nas favelas do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
42
necessariamente vinculado a um fato real43, é algo relacional e, por isso, simbólico,
orientando nossas práticas, valores e formas de compreender e classificar o mundo. O
famoso teorema de Thomas é esclarecedor nesse sentido: "Se as pessoas definem certas
situações como reais, elas são reais em suas consequências"44, pois as pessoas orientam
suas ações segundo o sentido atribuído às coisas.

Se a realidade nos apresenta uma sociedade com alto grau de regulamentação e


normatização, estabelecendo padrões de diferenciação, aqueles que não se enquadram
passam a ser identificados como anormais, perigosos, criminosos45. Uma classificação
arbitrária que estabelece uma oposição tal qual a verdade e a mentira, nós e eles,
amigos e inimigos. Uma realidade onde instituições são responsáveis pela gestão desses
conflitos sociais através da violência e que possuem intrinsecamente o objetivo de se
perpetuar, e para tal, precisa reinventar, ressignificar as tradições e objetos que lhe
justificaram sua existência. Assim, instituímos sujeitos e sujeitados, soldado e traficante
em uma reprodução a partir de uma dinâmica onde a instituição institui sujeitos e tais
sujeitos sustentam a instituição.

Os operadores do SJC incorporam e reproduzem as regras do jogo estabelecidas


dentro dos campos sociais e das instituições, sendo a planificação das ações e sentidos
atribuídos por esses operadores um exemplo dessa dinâmica. E se explica pelo habitus -
chip – instituído para facilitar as ações, o senso prático, o reducionismo, simplificação e
pré-noções da realidade, são instrumentos facilitadores da ação humana, permitindo
atribuir significado e tomar decisões rapidamente. O faro policial, a experiência do
magistrado que vê a mentira no olhar, o ministro da justiça que identifica o traficante
pela feição, são facetas de uma biopolítica militarizada, uma hipermilitarização,
justamente pelo senso-prático comum atribuído à essas instituições – e tantas outras –
de identificar e classificar populações inimigas. Como uma boa ficção há aqueles que
resistem ao chip e acabam por enlouquecer, por serem perseguidos e tendo uma posição

43
Cf. GLASSNER, Barry. Cultura do Medo. Brasilia: Francis, 2003
44
O teorema de Thomas influenciou toda uma geração de sociólogos da Escola de Chicago, sendo uma
referência para o estudo das interações simbólicas. Cf. BECKER, Howard. Outsiders: hacia una
sociología de la desviación. 1a ed. Buenos Aires: Siglo XXI, 2009.
45
Aqui o rol é imenso, favelado, morro asfalto, até mesmo vulnerabilidade, cf. SOUZA, Aknaton Toczek;
CAMARGO, Giovane Matheus; e ROSA, Pablo Ornelas. Vulnerabilidade, Risco, Tratamento e Prisão:
Categorias que operam como dispositivos de intervenção no contexto da biopolítica. XVII Congresso
Brasileiro De Sociologia. Anais, 2015. Porto Alegre: Anais da XVII SBS.
marginal dentro da instituição, outros ainda, que se organizam para combater o chip46,
mantendo um ponto de inflexão importante, todavia, ainda minoritário.

A ficção apresentada no episódio engenheria reversa não é tão incrível quanto


a realidade. Lá se entende que a espécie humana não é capaz de exterminar
racionalmente, conscientemente, sua própria espécie, justamente pelos traumas e
consequências do exercício da violência. Para tal, existe um chip implantado
responsável por facilitar e otimizar o extermínio das populações indesejadas, que
passam a serem vistas como uma mutação, algo não humano, intratável e perigoso. Ao
invés de gritos por misericórdia, lamurias, gemidos de dor e desespero, o soldado
apenas escuta grunhidos ininteligíveis, incompreensíveis, e por isso, silenciados,
ignorados. As baratas são tratadas como uma anormalidade, inaudíveis, cuja a morte
instiui paradoxalmente a proteção da vida.
A realidade da segurança pública brasileira não pode soar como ficção. Não
estamos falando de imaginação, atores e cenários, mas de famílias, seres humanos
exterminados cotidianamente pelas forças de segurança. Comunidades inteiras vivendo
sob cerco47, impossibilitadas de falar, silenciadas, consideradas como perigosas,
criminosas, inferiores em um sentido biológico e social, populações inteiras deixadas
para morrer, pessoas cuja morte e a dor é invisibilizada, quando não desejada. Campos
de concentração onde submetemos centenas de milhares de pessoas indesejadas,
anormais, garantindo que essa experiência marque um rótulo permanente e permitindo
que sua vida possa ser segregada e exterminada. Um judiciário conivente com a tortura,
com a precarização das provas e dos princípios que certifiquem um mínimo de garantia
diante desse moedor de corpos que possui cor, classe e território, permitindo mandados
de busca e apreensão coletivos. Considerando a atuação da polícia, é curioso verificar
disparos de centenas de tiros por uma metralhadora em um helicóptero para caçar uma
barata, quando elas adentram em seu território, para assim evitar matar seres humanos.
E diante de tantas mortes, violações, racionalidades para exterminar pessoas já
não se sabe mais o que é real e o que é ficcional, mas podemos dizer que a nossa
realidade é mais extrema que a ficção, nossos operadores do SJC sabem que são seres
humanos, não há chip algum, exceto vidas e verdades que legitimam inúmeras mortes.

46
Há diversas organizações formado por operadores do SJC, propondo uma crítica séria e organizada as
suas instituições, procedimentos e práticas, tais como a Law Enforcement Against Prohibition com
diretório brasileiro ou a Juízes para a Democracia.
47
MACHADO DA SILVA, Luiz. Antonio. op.cit.
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