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1. Introdução
Por fim, contrapondo a ficção, a conclusão que chegamos com esse texto
acerca do processo de militarização da vida e hipermilitarização da segurança pública
na vida dos outros, se fundamenta na existência de certo imaginário, representação
social ou mesmo prática discursiva, dependendo do referencial abordado, que tem como
premissa o extermínio social entendido não só como necessário, mas como tratamento
merecido e lógico as baratas sociais.
2. A militarização da vida
5
No texto original utiliza-se o termo homens com o sentido plural. Como sabemos da relação profunda
entre o patriarcado e o militarismo, assim como, a força da linguagem na guerra, optamos por utilizar um
termo neutro que não torne antitético o conjunto do artigo, conforme a sugestão na introdução do livro:
Rufanges, Jordi Calvo (Org.). 2016. Mentes Militarizadas: Cómo nos educan para asumir la guerra y la
violencia. Barcelona: Icaria editorial.
Preambulo da Constituição da UNESCO,
16 de novembro de 1945
É importante que saibamos que o episódio em análise teve o roteiro baseado no
livro “Men Against Fire: The Problem of Battle Command” de 1947 “escrito por um
veterano de guerra que revela que somente um em quatro soldados realmente atira
para matar o seu inimigo”6 .
O episódio analisado da série distópica Black Mirror retrata uma questão que
foi identificada pelos estudos criminológicos oriundos das ciências sociais a quase um
século7: a seletividade e a identificação classes perigosas8. Se pensarmos nas bases
sociológicas que procuraram esclarecer como classificamos e damos sentido ao mundo
podemos retroagir a mais de um século. Um dos temas centrais da série é a tecnologia e,
portanto, no episódio Engenharia reversa há uma simplificação bastante interessante de
algo profundamente complexo, ou seja, como classificamos os outros.
6
Cf “Black Mirror: resenhas dos episódios e o que achamos da 3 a temporada - Séries por Elas”. 2017.
Acessado abril 7. https://seriesporelas.com.br/black-mirror-resenhas-episodios-3-temporada/.
7
Com a influência das ciências sociais, sobretudo, a partir de Durkheim, o estudo do crime e da
criminalidade se afasta das explicações biológicas e psicológica, para uma explicação que concentra sua
análise na noção de controle social, e com isso, permitindo desenvolver análises que permitiram
compreender a seletividade da punição. Cf. ANITUA, G. I. Histórias do pensamento Criminológicos. Rio
de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2008; e BARATTA, A. Criminologia Crítica e
Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan: Instituto
Carioca de Criminologia, 2002.
8
A noção de classe perigosa tem seu primeiro registro no século XIX, para identificar as populações não
incorporadas pelo processo de industrialização. E em que pese a aproximação histórica do termo com o
conceito marxista de lumpemproletariado, a ideia de classe perigosa deve ser entendida como grupo ou
população, e o perigo como um elemento simbólico. Cf. SOUZA, Aknaton Toczek; CAMARGO
Giovane Matheus; e ROSA, Pablo Ornelas. 2015. “Onde moram os perigosos?” In XVII Congresso
Brasileiro de Sociologia. Porto Alegre: Anais da XVII SBS.
9
DOUGLAS, Mary. 1966. Pureza e perigo: Ensaio sobre as noções de Poluição e Tabu. Lisboa: Edições
70
10
AGAMBEN, Giorgio. 2010. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua - I. Belo Horizonte: Editora
UFMG.
tornando-os matáveis, conforme podemos localizar nos estudos de Agamben (2010). A
metáfora do chip não é nova, sendo possível, por exemplo, extrair sentido semelhante da
alegoria da caverna de Platão, não apenas pela ideia de que não vemos a realidade, mas
também pelas consequências diante do depoimento daquele que viu que há um outro
mundo.
11
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2005. P.16
12
Ibidem, p.17
13
BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009. P.90
classificatórios, princípios de classificação, de visão e divisão 14. Assim, as
particularidades dos diversos habitus estão relacionados com os diversos espaços
sociais, também chamados de campos, e por serem plurais e multidimensionais – tal
qual a vida – se intersecionam com outros campos, disputando posições e capitais. As
diversas instituições que compõem o SJC agem dessa forma, Juízes, Promotores de
Justiça e Policiais15, e ainda que disputem, concordam com o essencial gerando uma
interação homologa16.
14
Interessante pensar a relação saber/poder indicada por Foucault, sobretudo, em relação a uma política
geral da verdade, uma luta entorno da verdade. “O importante, creio, é que a verdade não existe fora do
poder ou sem poder (...). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e
nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdades, sua “política
geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira
como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção de
verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”, in:
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 27. ed. São Paulo: Graal, 2013. P. 10
15
O Sistema de Justiça Criminal é um conglomerado de instituições responsáveis pelo exercício da
violência legítima, por isso, podemos considera-lo como um meta-campo em disputa, e portanto, por isso,
não há uma paridade entre as instituições em disputa. Algumas delas possuem papeis secundários – em
relação a violência – , de contenção – e ao mesmo legitimação - do exercício da violência legitima, entre
elas, por exemplo a advocacia e defensoria pública. Em tempos de hipermilitarização outras instituições
que não possuem relação direta com o SJC podem participar e auxiliar, como os meios de comunicações,
associações comerciais, sistemas educacionais, faculdades, entre outras. Cf. SOUZA, Aknaton Toczek; e
MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de. 2016. “De farda ou de toga: uma análise sobre o sistema de justiça
criminal”. In Democracia e(m)Sistema Penal. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais.
16
Existe uma relação íntima entre a justiça e polícia, e essa relação é o núcleo duro do SJC. A justiça atua
de forma a criar um ritual de legitimação da atuação policial, que por sua vez, atua dentro dos limites
mínimos – por uma questão de senso prático – para garantir sua legalidade. Aparentemente existe um
certo equilíbrio entre essas instituições, todavia, a polícia é imperativa para o funcionamento do Estado,
enquanto o judiciário pode perder sua legitimidade ou outorga-la facilmente diante da força física.
Podemos tomar como exemplo a produção de provas para o processo penal, que no caso brasileiro é pífia,
existindo consolidada jurisprudência para assegurar a palavra dos policiais como prova, e mais, a
capacidade de criar outras provas como relatos informais, transeuntes anônimos, denúncias anônimas. Cf.
SOUZA, Aknaton Toczek. Perigo à ordem pública: um estudo sobre controle social perverso e
segregação. [Dissertação] Universidade Federal do Paraná, 2015.
17
THIRY-CHERQUES, Hermano Roberto. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de
Administração Pública, 2006. P.7
ainda, a cada chip corresponde a uma instituição, podendo-se dizer que o chip é
instituído aos poucos, ao invés de inserido em um momento originário.
Por fim, o ultimo efeito do chip é estabelecer valores partilhados por aqueles que
o possuem. Esses valores estão em um estado prático, em forma não consciente, um
conjunto sistemático de disposições morais, princípios práticos. Para que, por exemplo,
aqueles em que se instituíram o chip da militarização, cujo as profissões e instituições
foram desenvolvidas para combater determinada parcelas da população, possam
repousar suas cabeças e dormirem tranquilamente. Ainda que haja contradições, via de
regra, a consciência dos sujeitos é consoante com suas práticas, ou seja, se em toda
tomada de decisão a prática fosse posta sobre o crivo da dúvida e da autorreflexão, a
dinâmica exigida pela sociedade neoliberal da segurança pública cairia por terra.
O extermínio da população barata pelo SJC no Brasil, o descaso com a tortura 23,
a desproporcionalidade de tratamento 24, ainda que seja feito racionalmente, é apagado
da consciência pelo chip ao dispor ao operador das políticas se segurança um rol de
22
O sistema de escravidão na América é uma boa referência histórica, dado a sua intensa hierarquização
segundo critérios étnicos e a violência exigida para manutenção dessa dinâmica. Cf. DAVIS, David
Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
23
CONECTAS:DIREITOS HUMANOS. Como as instituições do sistema de Justiça perpetuam a
violência nas audiências de custódia. Disponível em:
<http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/Sumário executivo_Tortura Blindada_Conectas Direitos
Humanos.pdf>. Acesso em: 4/4/2017.
24
Aqui o rol é imenso, usaremos apenas um, que representa ao menos 1/3 dos presos brasileiros. Traficar
drogas é um crime cometido sem violência, despido de brocardos e linguagem jurídica, consiste
basicamente, em possuir – em diversas modalidades como ter em deposito – uma substância considerada
ilícita. A finalidade pela qual o sujeito possui a substância – arbitrariamente e historicamente –
considerada ilícita é estabelecida por critérios subjetivos, imprecisos e lacunosos. Assim, é rotineiro
jovens, negros, com menos de 10 gramas de maconha serem considerados traficantes, e por isso,
condenados a uma pena mínima de 5 anos de prisão. Sem realizar comparações com outros crimes que
possuem a medida da pena inferior, como estupro, lesão corporal, roubo, fraudes, sonegação, apenas por
possuir uma substância – que em caso de compra e venda é realizada voluntariamente – sofrer a violência
física e mental da privação da liberdade cujo as consequências são absolutamente perversas, e no caso
brasileiro, pode ser uma sentença de morte.
disposições morais que permitam se justificar. E mais, permite um senso prático que
dinamiza, indicando rapidamente como agir em cada situação imposta cotidianamente,
assim, os juízes sabem que não se pode confiar nos réus, pois eles são mentirosos; ou
ainda, usuários de drogas são perigosos, e se não cometeu crime, em algum momento
cometerá; isso é o chamado faro policial. Entre tantas outras possibilidades, essa
consequência do chip apresenta uma forma para agir diante da vida.
A militarização é implantada como um chip na cabeça dos responsáveis pelas
políticas públicas de segurança, e tal qual, a distopia uma vez retirada pode gerar muitos
problemas para a manutenção da ordem. Por isso, muitos aceitam, aderem e atuam
permanentemente reimplantado o chip para que possa tolerar as práticas que lhe são
exigidas, porém, nem todos conseguem, não se sabe o motivo exatamente, talvez alguns
possuam os conectores estragados. O fato é que aqueles que reagem ao chip e seus
efeitos, sofrem sérias consequências, seja pelos seus colegas de ofício ou por aqueles
responsáveis pela instalação do chip, ainda que a retomada de consciência pode ser um
problema. A lembrança do que faz, a compreensão da sua atuação e função social,
podem ser danosos, resultando que os profissionais da segurança pública possuem os
níveis elevados de suicídio, depressões e outros problemas psiquiátricos 25. Ademais
praticamente todos os chips possuem certos traços da militarização, já que os seus
dispositivos encontram hoje difusos e espalhados na sociedade. Militarizou-se as
palavras, a educação, a diferença, a vida.
3. A hipermilitarização
A biopolítica, muito mais sutil e difusa que outras demais formas de poder,
articulada com a lógica militar, permite que o chip da militarização se popularize,
saindo da caserna. A visão de inimigo, combate, luta, nós e eles, se tornam valores
comuns, permitindo o exercício de estratégias, técnicas e práticas de violência
extremadas sem causar estranheza37. A hipermilitarização é um assoberbamento que se
dá quando os chips passam a ser distribuídos para a população, ou seja, quando a
biopolítica se cruza com a militarização e a dinâmica entre o saber/poder é articulado
com saberes castrenses. Com a hipermilitarização todo o Sistema de Justiça Criminal se
apresenta militarizado, tornando-se a lógica normativa, jurídica, legislativa e política
típica do neoliberalismo, em que todos nós nos tornamos concomitantemente
empreendedores e soldados, que serão capturados e chipados através de um processo de
sujeição e/ou assujeitamento.
35
BOVÉ, Gemma Amorós. op.cit., p.51.
36
A criação de grupos perigosos é o sustentáculo para uma série de instituições, como sugere Foucault:
“De modo que temos finalmente duas noções que se deparam e que vocês logo veem quão próximas e
vizinhas são: a noção de “perversão”, de um lado, que permite costurar uma na outra a série de
conceitos médicos e a série de conceitos jurídicos; e, de outro lado, a noção de “perigo”, e de
“indivíduo perigoso”, que permite justificar e fundar em teoria a existência de uma cadeia ininterrupta
de instituições médico-judiciárias”, in: FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France.
2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. P. 30
37
Cf. ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
4. O que fazer com baratas!
Soberana é a esfera na qual se pode
matar sem cometer homicídio e sem
celebrar um sacrifício, e sacra, isto é,
matável e insacrificável, é a vida que foi
capturada nessa esfera. Giorgio
Agamben38
Diante do expansionismo das noções militares para outros campos sociais,
vemos surgir nas representações sociais ou práticas discursivas, se preferir, um rol de
inimigos sociais difusos, ambíguos e diversificados, sendo todos eles unificados pelo
trato das diferenças e desigualdades com conflitos sociais a serem eliminados através da
guerra. Ao mesmo tempo, verifica-se a emergência de certa dinâmica social de caça às
bruxas, ou seja, uma espécie de bode-expiatório no qual se possa jogar a culpa de todas
as mazelas sociais. Orquestrada pelo direito penal, a guerra permanente, se torna o traço
principal das disputas políticas, dos desejos comuns e da esperança vaga de dias
melhores.
38
AGAMBEN, Giorgio. op.cit., p. 85.
39
Cf. DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.
40
Cf. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco: O Negro no Imaginário das
Elites Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; e DAVIS, D. B. op.cit.
41
Cf. MACHADO DA SILVA, Luiz. Antonio. Vida sob cerco: violência e rotnia nas favelas do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
42
necessariamente vinculado a um fato real43, é algo relacional e, por isso, simbólico,
orientando nossas práticas, valores e formas de compreender e classificar o mundo. O
famoso teorema de Thomas é esclarecedor nesse sentido: "Se as pessoas definem certas
situações como reais, elas são reais em suas consequências"44, pois as pessoas orientam
suas ações segundo o sentido atribuído às coisas.
43
Cf. GLASSNER, Barry. Cultura do Medo. Brasilia: Francis, 2003
44
O teorema de Thomas influenciou toda uma geração de sociólogos da Escola de Chicago, sendo uma
referência para o estudo das interações simbólicas. Cf. BECKER, Howard. Outsiders: hacia una
sociología de la desviación. 1a ed. Buenos Aires: Siglo XXI, 2009.
45
Aqui o rol é imenso, favelado, morro asfalto, até mesmo vulnerabilidade, cf. SOUZA, Aknaton Toczek;
CAMARGO, Giovane Matheus; e ROSA, Pablo Ornelas. Vulnerabilidade, Risco, Tratamento e Prisão:
Categorias que operam como dispositivos de intervenção no contexto da biopolítica. XVII Congresso
Brasileiro De Sociologia. Anais, 2015. Porto Alegre: Anais da XVII SBS.
marginal dentro da instituição, outros ainda, que se organizam para combater o chip46,
mantendo um ponto de inflexão importante, todavia, ainda minoritário.
46
Há diversas organizações formado por operadores do SJC, propondo uma crítica séria e organizada as
suas instituições, procedimentos e práticas, tais como a Law Enforcement Against Prohibition com
diretório brasileiro ou a Juízes para a Democracia.
47
MACHADO DA SILVA, Luiz. Antonio. op.cit.
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