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Revista do Laboratório de

Estudos da Violência da
UNESP-Marília Ano 2010 - Edição 6 - Número 06 Dezembro/2010 ISSN 1983-2192

IDENTIDADE BANDIDA:
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO ESTEREÓTIPO
MARGINAL E CRIMINOSO

TERRA, Lívia Maria1


Resumo
Nas últimas décadas do século XIX, inúmeras formas de pensar a realidade foram
importadas e re-significadas pela intelectualidade brasileira. Em virtude das
necessidades de construir o Estado-Nacional e o povo, bem como a “inserção” no
processo de cidadania de antigos escravizados e outros, e a implantação de um
liberalismo às avessas, os intelectuais construíram modelos de explicação que
justificavam a manutenção do status quo. Neste contexto, as taxas de detenções são
ampliadas e os criminosos ganham uma imagem própria, construída a partir de um
suporte biologicista e incorporada ao imaginário social. Este artigo intenta mostrar
a construção histórico-social e intelectual de uma “identidade bandida” que
alimentou a imaginação sobre o estereótipo da marginalidade e do criminoso, do
mesmo modo que a utilização da mesma por instituições repressoras ainda em
nossos dias.

Palavras-chave: 1. Identidade Bandida. 2. Polícia Militar. 3. Criminologia. 4.


Racismo. 5. Pensamento Social.

1
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras - UNESP - Araraquara.
Mestre em Sociologia pelo mesmo Programa e bacharel em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências e Letras - UNESP -
Araraquara. E-mail para contato: livia_terra@yahoo.com.br.
Ano 2010 - Edição 6 – Número 06 Dezembro/2010 Revista LEVS/Unesp-Marília

1. INTRODUÇÃO Posteriormente evidenciei a


construção do imaginário acerca do

E sse artigo
considerado
pode
um

intelectual desenvolvido entre os


anos 2008 e 2010 sob a forma de
ser
dos
resultados de meu trabalho
criminoso em potencial (o que
carrega a expectativa da ilegalidade),
ou seja, a identidade bandida sob a
forma propriamente de um conceito
cuja função é organizar a
dissertação de mestrado. A proposta interpretação sobre a interiorização
que se segue à execução deste texto do mesmo imaginário. Finalmente,
é definir de forma consistente o analisei os dispositivos
conceito de identidade bandida interpretativos da criminalidade para
(TERRA, 2010), gerado nas a Polícia Militar a partir de reflexões
discussões propostas anteriormente, sobre o conceito de identidade
seja a partir da dissertação, seja em bandida.
outras ocasiões de apresentação
sistemática dos resultados da
pesquisa. Originariamente, esbocei a 2. A QUESTÃO DA
articulação de um tipo específico de PERICULOSIDADE E
teoria, a criminologia, ao O INDIVÍDUO
pensamento social brasileiro, de SUSPEITO
modo a garantir a visualização da
construção intelectual, social e Muito se têm discutido após
histórica da periculosidade, e o processo de redemocratização do
consequentemente da suspeição. país sobre questões que envolvem a
Querer, contudo, esgotar o material diminuição da criminalidade, a
analítico da sociedade brasileira sob transformação das polícias em
este viés não constitui o que aqui é polícias democráticas e cidadãs, a
pretendido, muito menos reduzir a falência do modelo jurídico-
análise a meia dúzia de autores. As carcerário brasileiro, os programas
contribuições sobre o de prevenção de delitos em áreas
desenvolvimento da criminologia e consideradas de risco, etc.. Contudo,
outras teorias que desembarcaram pouco se fala sobre os mecanismos
no Brasil em finais do século XIX intelectuais que geraram tais
aparecem na obra de inúmeros preocupações de contenção da
autores de suma importância. criminalidade em determinados
Entretanto, assim como o fazem grupos sociais, em especial os
muitos intelectuais, algumas leituras pobres, os negros e os jovens.
e referências foram priorizadas - A ideia de suspeição, ainda
eleitas por assim dizer - em face de articulada pelos sistemas repressivos
outras. da sociedade brasileira
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contemporânea, como a Polícia analisar o desenvolvimento das


Militar, direciona as expectativas de formas jurídicas no mundo
ilegalidade sobre determinados ocidental,
sujeitos sociais, sendo que “[...] o
que define a expectativa de A noção de
ilegalidade – suspeição sobre uma periculosidade significa
pessoa – [...] é a somatória de que o indivíduo deve ser
categorias como idade, gênero, cor, considerado, pela
classe social, geografia, vestimenta, sociedade, pelo nível de
comportamento e situação de suas virtualidades e não
policiamento” (TERRA, 2010, p. ao nível de seus atos e
78). Assim, “[...] a contabilidade da suas infrações efetivas a
vigilância do espaço público ainda uma lei efetiva, mas das
dedica uma atenção especial às virtualidades de
‘classes de risco’, que incluem, comportamento que elas
evidentemente, os pobres, os jovens representam.
negros, os excêntricos e as minorias
sexuais” (MUNIZ, 1999, p. 45). Objetivamente, se organizava
As ditas classes de risco ou o suporte teórico embrionário para a
classes perigosas (ALVAREZ, 1996) concepção daquele que seria o
no Brasil passaram por processos de portador físico e moral da
demarcação física e social por quase suspeição, da periculosidade.
toda a história do país, mas Associado à questão da
ganharam uma roupagem específica periculosidade inata aos sujeitos
e politicamente defendida, sociais se desenvolve o saber da
sobretudo, a partir de meados do criminologia responsável pela
século XIX. Desse modo, é sob o sedimentação das expectativas de
conceito de “periculosidade” e os ilegalidade a partir da definição
desdobramentos da criminologia e biológica do tipo criminoso,
da racialização do ocidente que os principalmente através da
sujeitos sociais do período serão designação de criminoso atávico ou
classificados e determinados como tipo atávico2. Segundo OLIVEIRA
potencialmente perigosos. (2007, s/p), a criminologia constitui
A “periculosidade”
evidenciada no século XIX 2
A denominação “tipo atávico” é elaborada por
observava que os criminosos Lombroso (1887), na tentativa de classificar um tipo
deveriam ser avaliados e, portanto, específico de criminoso passível de identificação
física. Este, por sua vez, representava um ser
julgados, a partir de suas supostamente estagnado no processo de evolução
virtualidades, ou de suas qualidades humana, e, portanto, bio-psicológico e socialmente
distinto, incapaz e não desenvolvido. Além disso, a
morais, definidas tanto no traço da concepção de criminoso nato (LOMBROSO, 1887),
personalidade individual como na como um sujeito inerentemente criminoso, contribuiu
para a legitimação do discurso da perversão natural, da
própria genealogia. Para MICHEL degeneração humana a partir de suas raízes
FOUCAULT (1978, p.68) ao genealógicas, e da potencialidade criminosa em grupos
sociais naturalizados.
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“[...] um conjunto de conceitos racialistas, que viam a sociedade


devidamente sistematizados que humana cindida por raças
tratam da análise do perfil “desiguais”, em estágios
biopsicosocial do criminoso, do psicológicos definidos a partir da
fenômeno do crime na sociedade comparação em superior e inferior4.
[...] e dos mecanismos de controle Não seria errôneo, portanto,
social atenuantes sobre a afirmar que esse criminoso em
criminalidade”. potencial seria encontrado nos
De outra maneira, SOUZA povos e nos indivíduos sujeitados ao
(2005, p. 93) aponta que “[...] a domínio europeu e subjugados em
criminologia partiu de uma hipótese suas potencialidades humanas. “As
atávica: a inserção do populações que formavam as
comportamento do criminoso no Américas e a África, sobretudo,
indivíduo, em sua biografia, em sua negras, indígenas e mestiças, seriam
ascendência e em seu corpo”. consideradas como o que
Obviamente que a criminologia não LOMBROSO (1887) denominou de
agiu independentemente para ‘criminoso nato’” (TERRA, 2010, p.
construir a imagem do indivíduo 73).
suspeito, apoiando-se No Brasil, a noção de
metodologicamente nas técnicas periculosidade, a criminologia bem
desenvolvidos pela frenologia e pela como as técnicas auxiliares da
antropometria3 e nas análises frenologia, da antropometria, e as
análises racialistas foram
3
A frenologia diz ser capaz de presumir o caráter, a incorporadas pela intelectualidade à
personalidade e mesmo a criminalidade, a partir das medida que novos grupos sociais se
formas apresentadas pelo crânio. A teoria foi
desenvolvida pelo médico alemão Franz Joseph apresentavam com a possibilidade
Galton, por volta de 1800. Para muitos, dentre os quais de inserção na sociedade da época.
Paul Broca (SHWARCZ, 1993), fundador da
“Sociedade Anthropológica de Paris”, anatomista e
craniologista, além de defensor das teorias a Responsabilidade Penal no Brasil. Livraria
poligenistas, a mensuração da estrutura craniana Progresso Editora, 1957.
4
possibilitaria uma avaliação da capacidade humana O método comparativo, utilizado como suporte à
bem como uma análise sobre o comportamento dos teoria evolucionista, possibilitava aos cientistas
indivíduos em sociedade. Broca afirmava que através definirem modelos de desenvolvimento humano e, a
do estudo sistemático de frenologias e dos crânios partir destes, classificar todas as sociedades.
poder-se-ia constatar a diversidade humana, produto Designavam, então, as sociedades européias como
das diferenças na estrutura racial. A craniologia ápices do desenvolvimento físico e mental e a
técnica, assim, permitiria uma construção de tipos comparavam com outras sociedades. Desse modo, o
raciais específicos, o que, segundo seus colegas da método comparativo se fundava a partir das três
“Escola Craniológica Francesa” (Gall e Topinard), designações: selvageria, caracterizada por um estado
comprovaria a tese da “imutabilidade racial”. Os de desenvolvimento mental rudimentar; barbárie,
princípios da Frenologia também foram muito caracterizada por um desenvolvimento mediano do
utilizados nos estudos antropométricos de Lombroso. homem e das instituições e civilização, marcada pelo
No Brasil fizeram grande sucesso na Faculdade de pleno desenvolvimento cognitivo e institucional. O
Medicina da Bahia, principalmente com a figura de emprego desse método possibilitava, aos seus adeptos,
Nina Rodrigues e seus estudos práticos sobre o caráter analisar cada particularidade social e cultural fora de
da inimputabilidade a jovens aprisionados. Para seu contexto original e concreto, sem supostamente
maiores esclarecimentos sobre os adeptos da qualquer prejuízo a veracidade da análise. No entanto,
Frenologia consultar: SCHWRCZ, Lilia Moritz. O o que se produzia eram mecanismos de interpretação
Espetáculo das Raças. São Paulo: Companhia das que forneciam ao cientista uma precária classificação
Letras, 1993. Sobre a aproximação da Frenologia aos das sociedades e que, mais tarde, dariam legitimação à
estudos de Raimundo Nina Rodrigues, consultar: colonização e a neo-colonização, além de justificarem
RODRIGUES, Raimundo Nina. As Raças Humanas e a “desigualdade humana” (MORGAN, 1973).
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Fatos como a Abolição (1888) e a Os dados levantados por


constituição da República (1889) são FAUSTO (1983) quanto ao número
significativos nesse sentido, uma vez de prisões efetuadas entre 1892 e
que lançavam na ordem social 1916 revelam o Estado como um
(patrimonial, oligárquica e senhorial) agente em sintonia com as
grupos antes controlados pelo preocupações das elites econômicas,
sistema de trabalho escravizado, e como um elemento que tangencia
considerados como “mercadorias”, a tradição da criminologia ao escopo
destituídos de direitos, e portanto, do controle social. Conforme os
da condição de ser humano. apontamentos de FAUSTO (1983),
A função encarregada à dentre as 178.120 pessoas
criminologia no país era o próprio apreendidas nos anos mencionados,
controle social. Em outras palavras, 147.839, ou seja, 83% foram
a identificação corpórea do suspeito, apreendidas para averiguação.
permitia a execução de práticas Assim,
como prisões preventivas, também
conhecidas como prisões para As figuras
simples averiguação - ou sem contravencionais, bem
processos penais vinculados - e a como as prisões para
viabilização de instituições como o ‘averiguações’ revelam
Instituto Disciplinar para Menores uma estrita preocupação
Abandonados e Delinqüentes (1902) com a ordem pública,
e o Gabinete de Identificação e aparentemente ameaçada
Estatística da Polícia Civil do por infratores das normas
Distrito Federal5 (na época o estado do trabalho, do bem
do Rio de Janeiro) em 1902. viver, ou simplesmente
pela indefinida figura dos
5
O Gabinete de Identificação e Estatística da Polícia
‘suspeitos’ (FAUSTO,
Civil do Distrito Federal recebe o nome de Instituto de 1983, p. 197).
Identificação Felix Pacheco. José Alves Felix Pacheco
(1879-1935) foi o introdutor da dactiloscopia no
Brasil. A prática da dactiloscopia é, hoje, chamada de Com isto, a questão da
identificação através do recolhimento das impressões
digitais dos indivíduos. A dactiloscopia tem sua vadiagem prevista no Código Penal
utilização evidenciada a partir de Francis Galton, em de 1890, é colocada como passível
1888, que ao analisar o material recolhido por William
James Herschel, em Bengala, na Índia, em 1859, como de punição e aqui não podemos ser
solicitação do governo britânico, buscou estabelecer ingênuos quanto às formas de
parâmetros de identificação física mais seguros que os
oferecidos pela antropometria. Assim, Galton lança as controle social delimitados pelo
bases científicas da impressão digital. Depois de uma Estado-Nacional que se queria
série de artigos publicados nos anos subsequentes
sobre o assunto, em 1902, Félix Pacheco inicia a construir. Tratava-se
tomada de impressões digitais nas fichas propositadamente da criminalização,
antropométricas. Em dezessete de julho do mesmo ano
é criado o Gabinete de Identificação Antropométrica ou de atribuir a expectativa de
em São Paulo e, em vinte e nove de dezembro, é ilegalidade, sobre sujeitos
adotada a identificação dactiloscópica no Rio de
Janeiro, capital do país no período. Dois anos depois,
em vinte e nove de julho é expedida a primeira carteira Cartão de Identidade, ainda usando assinalamentos
de identidade, denominada Ficha Passaporte ou antropométricos associados à dactiloscopia.
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discriminados pelo corpo, Exatamente em


especificamente pela cor. A decorrência da
vadiagem exercida por aqueles sem impossibilidade em se
uma função empregatícia fixa - em conseguir estabelecer
geral os negros abandonados à parâmetros analíticos
própria sorte em uma sociedade que seguros, os adeptos da
não os queria enquanto iguais em criminologia buscavam
direitos e amparados pela condição novos campos de
de cidadãos - é colocada como mais pesquisa após 1940,
um mecanismo de exclusão social, principalmente em
pois, abrigava a ideia de “viveiro disciplinas dispares como
natural da delinqüência” (FAUSTO, a psiquiatria, a
1983). psicopatologia, a
Nesse sentido, é possível até endocrinologia e a
mesmo compreender por que o psicanálise. Não obstante,
saber criminológico, o ocorreu a passagem de
evolucionismo, o darwinismo social uma abordagem biológica
e todas as elucubrações sobre a do crime para uma
racialização da humanidade são abordagem sociológica
incorporadas em detrimento de (SOUZA, 2005, p. 98).
outras formulações que também
buscavam analisar as sociedades SOUZA (2005) ainda aponta
humanas, como as elaborações de que para o médico Leonídio Ribeiro
DURKHEIM (1978;1989). Sendo na década de 1950, a centralidade
assim, a desigualdade social só conferida a noção de periculosidade
poderia ser naturalizada e, portanto, do criminoso possibilitou o suposto
legitimada através das teorias de vigor de práticas mais humanizadas
cunho criminológico-evolucionista. e justas do sistema jurídico-penal,
Da mesma forma, o controle social - do mesmo modo que permitiu a
em especial o uso legítimo da força defesa da sociedade a partir de
pelo aparelho policial no Brasil - só medidas - de segurança, prevenção
poderia ser efetivado a medida que de delitos e reincidências criminais -
essa desigualdade naturalizada por adotadas de acordo com a
tais saberes se solidificasse no personalidade do criminoso.
imaginário social, o que não seria Evidentemente, o que estava em
possível utilizando as teorias questão a partir da criminologia e de
durkheimianas, por exemplo. seus desdobramentos nos sistemas
As discussões sobre a penais e nas instituições de controle
criminologia como um recurso ao social não era mais somente o crime
sistema jurídico-penal continuam e sua gravidade perante a lei, mas
durante o século XX: principalmente, o criminoso, o
suspeito – a imagem que se fez a
partir da ideia da periculosidade e de
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um indivíduo propriamente interpretativas da criminologia (bem


bandido. como os demais suportes teóricos e
metodológicos da mesma) ao longo
do tempo, grosso modo,
simbolizaram a constituição daquilo
que BOURDIEU (2001) considerou
como habitus.
3.
A IDENTIDADE O habitus, aqui aplicado de
BANDIDA: DISCUSSÕES forma sumária, consiste em uma
CONCEITUAIS disposição intelectual e social de
atores sociais inseridos em certo
Quando incorporada e contexto histórico. Pensando na
constantemente re-significada, a constituição da camada de
criminologia se tornou um intelectuais do país nas últimas
dispositivo de saber que legitimou décadas do XIX, em geral herdeiros
inúmeras formas de poder, tanto a da grande propriedade privada que
partir do sistema jurídico como no cursaram universidades européias,
campo do aparelho policial. Para os brancos, militares, profissionais
intelectuais responsáveis por sua liberais, e outros (NOGUEIRA,
difusão nos centros acadêmicos do 1981; ALONSO, 2002) - detentores,
país - nas Faculdades de Direito e logo, de capitais culturais,
nas Faculdades de Medicina, em econômicos, artísticos, etc. -
especial a Faculdade de Medicina da compreendemos a maneira como
Bahia - as categorias da criminologia estes empregavam o saber
representavam uma determinada criminológico em seu modo de agir
visão sobre o mundo natural e social e pensar, fato que os definiam no
que possibilitava antever e, portanto, espaço social que ocupavam. Dessa
prevenir os “males” da sociedade forma, a interiorização dos capitais
moderna, industrial e capitalista que culturais era exteriorizada e a
se queria construir no Brasil. exteriorização dos mesmos
Legitimada pelo status de interiorizada, construindo
“ciência”, as categorias paulatinamente disposições sociais
interpretativas da criminologia estruturadas por capacidades
permitiram aos intelectuais treinadas. Como uma das funções
estabelecerem um jogo, senão uma do habitus é consolidar o sentimento
disputa, sentida através dos embates de pertença do ator social a uma
de fins do século XIX. Assim - para determinada classe e criar
justificar a realidade social e disposições de interpretação da
consequentemente a hierarquia realidade comum à mesma classe, a
social estabelecida por meio da articulação e interiorização da
distribuição da propriedade privada criminologia (consequentemente das
e da própria cidadania - a noções de periculosidade inata) aos
interiorização das categorias mecanismos de controle social
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colaborou para a consolidação do demarcado a partir do corpo pela


que chamamos aqui de “identidade criminologia) pode ser facilmente
bandida” (TERRA, 2010). controlado desde que se exerça
A identidade bandida, não sobre ele a vigilância constante, a
obstante, representa uma disposição abordagem e a prisão para simples
adquirida e compartilhada a partir averiguação. A ele, se não cabe mais
das categorias interpretativas a chibata e o açoite, cabe o pau de
discutidas, cuja principal finalidade é arara, cabe o rebenque do bastão.
demarcar a partir do corpo, grupos Os mestiços considerados como
sociais considerados bio-psicológico degenerados (RODRIGUES, 1957),
e moralmente desiguais. A ideia que para a criminologia constituem
assinala uma “forma de ver, um caso particularizado à medida
compreender, imaginar e associar” que não se pode defini-los somente
(comumente partilhada) o outro, o a partir dos caracteres físicos, devem
diferente, construída intelectual- ser avaliados de acordo com sua
sócio-historicamente e alocada genealogia. As mulheres e os
sobre o outro (grupo social ou menores representam segmentos
indivíduos que carregam as marcas sociais que devem permanecer sob
físicas que os definem como tutela, seja da instituição familiar,
suspeitos e perigosos) por aqueles seja do próprio Estado, visto que
que detêm o domínio das categorias careceriam também de maturidade
interpretativas da criminologia intelectual para definir seus atos e
(intelectuais, sistema jurídico-penal, suas escolhas (BARRETO, 2003).
aparelho policial, médicos). É claro, como percebemos ao
É uma identidade construída longo do texto, que a criminologia e
e imaginada sobre tipos sociais consequentemente a “identidade
específicos, quais sejam os negros, bandida” não se mantiveram com os
os mestiços, as mulheres, os mesmos aspectos construídos a
pauperizados e os menores, cujo partir do século XIX. Ambos foram
desenvolvimento intelectual- sensivelmente re-estruturados e re-
psicológico supostamente seria significados no decorrer do século
questionável. Os negros seriam XX, principalmente através dos
definidos como potencialmente avanços nas ciências sociais, em
perigosos (bandidos naturais) especial na sociologia. Entretanto, o
conforme seu grau de estigma (GOFFMAN, 1988)
desenvolvimento na evolução das deixado pela construção
raças humanas, o que definiria sua estereotipada da identidade bandida
relação cognitiva sobre as próprias - da marginalidade e da
ações e a impossibilidade da escolha, criminalidade - permanece ainda no
do livre arbítrio. Relegado ao campo século XXI, tanto nos meios de
da imaturidade cerebral, portanto, comunicação como nos discursos
do domínio sobre a razão e o dos aparelhos repressivos do
querer, o negro (identificado e Estado, seja na ideia de que o
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criminoso pode ser identificado pelo [sic] Na minha visão o


vestuário, ainda pelo corpo, seja na racismo não seria a cor.
relação que se conforma entre a Seria o econômico.
pobreza e a criminalidade, entre Talvez uma pessoa com
áreas de risco e grupos sociais com maior poder econômico
maior possibilidade de se engajarem seja menos criminoso e
no “mundo do crime”. tenha menos tendência a
ser um criminoso do que
uma pessoa com baixo
4. ANALISANDO A valor econômico. O
“IDENTIDADE BANDIDA”: problema é que a pessoa
REFLEXÕES SOBRE OS com maior poder
DISPOSITIVOS aquisitivo, com uma
INTERPRETATIVOS DA situação financeira
POLÍCIA MILITAR NO melhor, ela consegue
SÉCULO XXI burlar, ela consegue
maquiar melhor as
Se as expectativas de intenções e a forma que
ilegalidade recaíam, no século XIX, ela pratica o crime, uma
sobre a imagem do negro, hoje as vez que uma pessoa que
expectativas recobrem o indivíduo não tenha tanta condição
empobrecido. Este pobre, como o financeira acaba sendo
negro, demonstraria incapacidade de mais clara, ela não
frear seus instintos e os seus desejos, consegue disfarçar o
assim como de balizar suas ações crime que ela praticou
sobre o que é considerado em nossa (Soldado PM – 13º
sociedade como certo ou errado. BPM/I).
Em entrevistas concedidas ao [sic] Eu acho que o
estudo6, recolhemos os seguintes preconceito hoje no
depoimentos: Brasil é muito mais
econômico do que racial.
Porque uma pessoa que
6
não tem condições
As entrevistas foram concedidas por policiais
militares membros do 13º BPM/I da cidade de econômicas, em alguns
Araraquara. Realizamos vinte e uma entrevistas com lugares ela é barrada. O
policiais na ativa, sendo que doze eram do sexo
masculino e nove do sexo feminino. O grupo negro é dificilmente
entrevistado abarcava graduações e patentes que iam barrado, mesmo porque a
desde Capitães a Soldados PM, com o mínimo de sete
anos de carreira e com no máximo vinte e cinco anos lei tá dando todas as
de profissão policial. Maiores informações sobre o garantias, com a máxima
grupo pesquisado podem ser encontrados em TERRA,
Lívia Maria. "egro Suspeito, "egro Bandido: um razão. Eu acho que o
estudo sobre o discurso policial. 2010. 255f. preconceito é muito mais
Dissertação (mestrado) Programa de Pós-Graduação
em Sociologia, Universidade Estadual Paulista, econômico. O pobre
Faculdade de Ciências e Letras, Campus de
Araraquara, 2010.
sofre muito mais
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preconceito do que o A imagem do suspeito


negro (Capitão PM – 13º associada à figura do pobre pende,
BPM/I). mais uma vez, para a ideia
naturalizada sobre criminalidade
Para estes policiais militares, inata nos negros, como pretendia a
evidentemente, os pobres afeitos criminologia no século XIX? Neste
pelas condições sociais que lhes são caso sim, se considerarmos que no
impostas não são de fato “maus”. Brasil a distribuição de renda
Contudo, e aqui lembramos constitui um fator sintomático
ROUSSEAU (1994) com o seu também de demarcação étnico-
“bom selvagem”, para os membros racial. A pobreza no país tem cara,
da corporação policial militar, a cor e local de existência. De acordo
sociedade capitalista (civilização) com pesquisa realizada, no ano de
corrompe os sujeitos empobrecidos, 1995, pelo Data Folha e Folha de
não apenas nos momentos em que São Paulo, de 597 negros, 50%
incita um consumo sobre o que não possuíam renda mensal individual
se pode ter, mas também na medida de até dois salários mínimos, 71%
em que não fornece as condições possuíam somente o ensino
educacionais necessárias para o fundamental (antigo 1º grau) e,
pleno desenvolvimento. Assim, o apenas 4% possuíam ensino
pobre é visto como uma criança que superior completo, enquanto que
- sem desenvolvimento cognitivo dos 2487 brancos entrevistados 40%
sobre as ações resultante do atingiam a mesma faixa salarial, 57%
processo de aprendizagem escolar e possuíam ensino fundamental e
familiar e fruto de um meio do qual 13% o ensino superior completo.
não consegue se desvencilhar - A compreensão que se tem
necessita ser constantemente sobre a propensão à criminalidade
tutelado, vigiado e controlado. revela, assim, a suspeição não
Na compreensão que apenas sobre o pobre, mas
estabelecem sobre a realidade principalmente sobre o negro pobre
criminal, o pobre não representa um vivente em localidades periféricas.
monstro social, mas um sujeito Isto justifica até mesmo as práticas
infantilizado que mal consegue de prevenção da criminalidade em
dissimular as intenções pretendidas áreas consideradas de risco, sobre
(mentir) dada sua suposta limitação grupos considerados vulneráveis por
psicológica. Essa “identidade bandida”, suas condições não apenas sociais,
diga-se de passagem, remete às mas também condições intelectuais,
primeiras formulações sobre o o que remete diretamente para o
conceito, demonstrando a re- controle das “classes perigosas” e
significação da imagem do para os fatores de suspeição já
criminoso estereotipada, demarcada mencionados: condição econômica,
através do corpo. localidade, grupo social, grupo
étnico e demais minorias sociais.
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Visando o combate ao evidenciam ainda práticas policiais


número de homicídios pela Polícia que se sustentam sobre uma
Militar no estado de São Paulo, que expectativa de ilegalidade produzida
até 1993 contabilizava uma morte a no decorrer da história intelectual e
cada seis horas (BICUDO, 1994), e social do Brasil, mantendo em uma
a amenização da incorporação da sociedade que se pretende
(do que chamamos aqui de) democrática e de direitos após 1988,
“identidade bandida” pelos policiais, estereótipos da criminalidade e,
foi implementado no ano de 2002, portanto, identidades bandidas.
nas PMs do estado, o chamado Enquanto isso, o imaginário
Procedimento Operacional Padrão social - auxiliado pelas conclusões
(PINC, 2007). O POP, como é disfóricas de uma imprensa que não
conhecido entre os policiais, se é comprometida com a verdade, por
constitui por uma série de normas intelectuais que ainda reificam a
de conduta que objetiva biologia, a psicologia e outras
regulamentar, sob os mesmos disciplinas de caráter determinístico
parâmetros, o sistema de abordagem como forma de análise da
policial - um dos momentos em que criminalidade e do criminoso, pelos
a suspeição ocorre - além de policiais que exercem suas funções
orientar os agentes de policiamento de controle social, manutenção da
na melhor maneira de exercer a ordem pública e garantia da
abordagem, que por natureza se propriedade privada sem refletirem
define como uma ocasião sobre as mesmas - contribui para
extremamente tensa e conflituosa que as discussões que afirmam a
para as partes envolvidas - tanto identidade étnica, e todas as demais
policial como suspeita. de cunho político-críticas e
No entanto, o POP não verdadeiramente democráticas, se
compõe uma iniciativa obrigatória e percam na tradição de uma
impositiva para os policiais, o que sociedade que marginaliza seus
garante a autonomia do agente grupos sociais.
policial nos momentos em que
exerce a suspeição sobre outrem
(PINC, 2007), bem como o Referências Bibliográficas
emprego de sua visão sobre quem
considera como uma ameaça em ALONSO, Angela. Ideias em
potencial à ordem estabelecida. movimento: a geração de 1870
Sem o devido controle na crise do Brasil - Império.
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