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Quando a mídia é o escândalo


Igor Fuser

A s eleições presidenciais de 2006


trouxeram duas novidades na rela-
ção entre mídia e poder político. Em primei-
ro lugar, derrubaram o mito da onipotência
dos meios de comunicação. Os grandes gru-
pos da mídia impressa e eletrônica utiliza-
ram seu controle sobre a difusão de notícias
com o objetivo de influenciar os eleitores em
favor de um candidato que terminou derro-
tado, por larga margem. A outra novidade é Mídia: crise política e
que, nesse esforço, o papel dos meios de co- poder no Brasil
municação como um ator no cenário políti-
co – e não como a instituição supostamente Venício A. de Lima
imparcial, acima dos interesses em disputa
São Paulo: Fundação Perseu
– se revelou com um grau inédito de trans- Abramo, 2006, 176 p.
parência. A manipulação das denúncias de
corrupção atingiu o ponto em que a cobertu- meios de comunicação apresentaram meras
ra midiática dos escândalos políticos se tor- suspeitas como se fossem provas incrimina-
nou, ela própria, um escândalo. Ou haveria doras, enquanto os fatos que se contrapu-
outra palavra para definir o comportamento nham à maré denuncista eram omitidos ou
da Rede Globo, que, na véspera do primeiro minimizados. Todos os nomes que vinham
turno, chegou a retardar por mais de três ho- a público eram tratados como culpados até
ras a divulgação da notícia da queda de um prova em contrário, numa inversão da nor-
avião de passageiros na Amazônia para que ma elementar do direito realizada em pre-
essa tragédia não diluísse o impacto das de- juízo, especialmente, dos integrantes do PT,
núncias levadas ao ar no Jornal Nacional? já que as denúncias relacionadas com outros
O livro do sociólogo Venício A. de Lima, partidos, como o PSDB, igualmente envolvi-
Mídia: crise política e poder no Brasil, consti- do com o “valerioduto”, permaneceram em
tui o melhor roteiro para entender o papel da segundo plano.
imprensa nos escândalos políticos que vieram Venício Lima ilustra, por meio de epi-
à tona nos últimos dois anos. Entre os arti- sódios reveladores, a manipulação dos fatos
gos que integram essa coletânea, destaca-se pelo denuncismo da mídia conservadora.
uma análise da conduta das empresas jorna- Um lugar de destaque, evidentemente, é con-
lísticas no chamado “escândalo do mensalão”. cedido à revista Veja, que entre maio de 2005
Com rigor e didatismo, o autor destrincha os e janeiro de 2006 dedicou nada menos que
atropelos à ética que marcaram a cobertura vinte capas à crise política, inclusive, como
midiática da crise política de 2005-2006, de- lembra o autor, associando o PT a animais
flagrada com as revelações de corrupção nos como o burro e o rato. Entre essas reporta-
Correios e com as acusações do deputado fe- gens de capa, é analisada a inesquecível “no-
deral Roberto Jefferson ao PT. tícia” de uma suposta conexão entre o PT e
A marca dessa cobertura, segundo o livro, os guerrilheiros das Forças Armadas Revolu-
reside na “presunção de culpa” em relação aos cionárias da Colômbia (Farc). A revista abre
políticos denunciados. Sistematicamente, os sua narrativa com ares de denúncia: “Docu-
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mentos secretos nos arquivos da Abin (Agên- Os demais artigos se somam ao primeiro
cia Brasileira de Inteligência) informam que para expor os fatores que fazem dos meios
a narcoguerrilha colombiana Farc deu 5 mi- de comunicação um baluarte da resistência
lhões de dólares ao PT” – um dinheiro que a transformações democráticas na sociedade
teria ingressado no Brasil por meio de “cer- brasileira. Nas duas décadas após o fim do
ca de 300 empresários (sic) amigos do PT”. regime militar, a concentração da mídia nas
Depois de fazer um enorme estardalhaço em mãos de um punhado de grandes empresá-
torno dessa suposta informação, a própria rios se acentuou ainda mais. As nove famílias
revista alerta que “não encontrou elemen- que monopolizavam a mídia em 1990 se re-
tos consistentes” capazes de sustentá-la. Ou duziram, em 2006, a apenas cinco: Abravanel
seja: antes que esse pseudo-jornalismo fosse (SBT), Civita (Abril), Frias (Folha), Marinho
desmascarado, com os previsíveis processos (Globo) e Saad (Bandeirantes). A eles se so-
judiciais por calúnia e difamação, seus pró- mam grupos regionais, como o RBS, que atua
prios praticantes admitiram, preventiva- no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, em
mente, que tudo o que tinham acabado de parceria com a Rede Globo. A concentração
escrever podia ser mentira. tem se agravado, após a queda das barreiras ao
Exemplos da cobertura de outros veícu- ingresso do capital estrangeiro nas comunica-
los, como a revista Época e os jornais O Glo- ções, com a internacionalização.
bo e Folha de S.Paulo, são apresentados por As poucas restrições legais à concentração
Venício Lima, que demonstra claramente da mídia e à propriedade cruzada de meios de
as intenções manipuladoras desses veículos. comunicação – ou seja, TV, rádio, jornal etc. em
Um caso escabroso é o da matéria da capa mãos do mesmo dono – não são cumpridas no
de Época, em 12 de agosto de 2006, intitu- Brasil. Pior ainda: as mudanças introduzidas na
lada “Lula sabia”. No texto, o presidente do Constituição de 1988, que retirou as concessões
Partido Liberal (PL), Valdemar Costa Neto, de TV da alçada do Poder Executivo e as trans-
afirma que Lula tinha conhecimento das ne- ferirou ao Congresso Nacional, tiveram um efei-
gociações, ocorridas durante a campanha to oposto ao almejado. Em lugar de contribuir
eleitoral de 2002, para a participação do PL para a democratização da mídia, facilitaram às
na chapa do então candidato a presidente da elites econômicas regionais o controle das co-
República. O importante é que em nenhum municações. Os estudiosos do assunto cunha-
momento Costa Neto diz que o presiden- ram até um nome para esse fenômeno: “o novo
te sabia que o acordo envolveria dinheiro e, coronelismo”. Com todo o avanço da tecnologia
muito menos, que esse dinheiro seria ori- das comunicações, a informação no Brasil ainda
ginário de “caixa dois”. Ainda assim, como é monopolizada pelos latifúndios da mídia, nas
assinala o autor do livro, o Jornal Nacional mãos de velhos e novos “coronéis”.
reproduziu a entrevista publicada em Época,
destacando os trechos em que o presidente Igor Fuser é jornalista, professor na Facul-
do PL diz que “o presidente sabia”. Um teles- dade Cásper Líbero, pesquisador no Centro
pectador desatento em relação às nuances da Interdisciplinar de Pesquisa (CIP) e douto-
política veria nessas afirmações uma prova rando em Ciência Política na Universidade
de cumplicidade. de São Paulo.

LÍBERO - Ano X - nº 19 - Jun 2007

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