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SUBLIMAÇÃO E FEMININO
É curioso perceber que esse curto período alvo da explosão criativa de Teresinha
Soares coincidiu com os chamados anos de chumbo – época de maior repressão e
violência da ditadura militar brasileira, iniciando-se em 1968 com a instauração do Ato
Institucional nº.5 (AI-5) e estendendo-se até o fim do governo do presidente Emílio
Médici, em 1974. Nesse período, episódios de tortura e violência estatal se tornaram
constantes e a censura atuou de forma opressora em todos os meios de comunicação. É
preciso considerar que as mulheres foram os principais alvos da repressão vigente nesse
período, visto que a violência sexual foi tomada como forma de combater os
movimentos feministas contra o governo, sendo a principal forma de tortura utilizada
pelos militares para humilhar e violentar aquelas que eram consideradas “subversivas”.
Não se trata mais de uma mudança de meta no que tange ao sexual, mas sim
no que toca à posição do objeto da sublimação para o sujeito. No caso do
reconhecimento social, não estamos mais falando em algo simplesmente da
ordem de uma valorização social, mas sim do reconhecimento do vazio da
Coisa a que o objeto da sublimação deve aludir (Metzger, 2014, p.33).
Lacan (1959-1960) aborda essa mudança a partir do campo de das Ding – aquele
em torno do qual gravita o além do princípio do prazer. O campo de das Ding evidencia
o que do real padece do significante, sendo aquilo que escapa à representação psíquica –
o que faz com que Lacan (1959-1960) afirme que das Ding é, ao mesmo tempo,
“interior excluído” e “excluído no interior” (p.125). Elevar o objeto à dignidade da
Coisa não diz respeito a realizar um processo de idealização ou substituição, mas
desvelar o caráter de coisidade do objeto, extraindo dele a possibilidade de ser elevado à
dignidade do irrepresentável que é atributo do objeto da sublimação. Sendo, portanto,
um campo, diversos objetos podem ocupar o lugar referente a das Ding.
Na sublimação, portanto, o vazio é determinante. Como um destino da pulsão, a
sublimação encarna uma relação específica com o real do campo de das Ding e com o
vazio inerente a ele – substancial para nortear o desejo. Desta forma, a pulsão tem um
objeto delineado enquanto vazio, enquanto posição a ser ocupada por qualquer objeto
que cause o desejo – o que evidencia que das Ding traz em si o estatuto do real do
objeto que, posteriormente, será transformado por Lacan em objeto causa do desejo
(Metzger, 2014). O vazio ao qual se refere Lacan (1959-1960) é, no entanto,
constitutivo a todo sujeito, não sendo passível de ser preenchido. Sendo um vazio que
aponta para o real, a Coisa não pode ser achada ou apreendida, apenas contornada.
Compreendida a partir de das Ding, a sublimação revela-se num para além do
princípio do prazer, visto que das Ding, enquanto fora da cadeia significante, opõe gozo
e desejo – este sim ligado ao significante (Miller, 1999). Nesse sentido, o gozo é
entendido a partir dos excessos, apontando para o campo do real, num para além do
princípio do prazer – enquanto o desejo liga-se ao princípio do prazer e é homeostático,
situando-se na cadeia significante (Marcos, 2007). Desta forma, o campo de das Ding
aponta para o gozo enquanto real – mudo, vazio, fora do simbólico –, aproximando a
satisfação pulsional deste campo irrepresentável.
Marcos (2007) salienta que em O Seminário, livro 11, com o desenvolvimento
do conceito de objeto a, o acesso ao gozo pode ser pensado a partir de um trajeto da
pulsão que contorna o objeto, indo do impossível de das Ding a uma possibilidade de
inscrição do gozo. Assim, a sublimação possibilitaria um modo de dar tratamento ao
gozo pela possibilidade de inscrição, ainda que parcial. Nesse sentido, viabilizaria uma
forma de contornar o vazio de das Ding a fim de organizar simbolicamente o real,
permitindo que, nesse lugar de ausência, algo do gozo se inscreva – apontando sempre
para um fracasso do simbólico em dar conta do real (Marcos, 2007).
Lacan (1959-1960) aborda a arte como sendo um modo de organização em torno
desse vazio, assim como a religião e o discurso da ciência, por exemplo. No entanto, o
autor vai além da arte na definição de sublimação, visto que o processo sublimatório
não está ligado ao belo ou apenas ao reconhecimento social da obra, mas sim à
existência do vazio da Coisa e ao processo criativo em torno dele. Desta forma, para que
um processo seja considerado sublimatório, é preciso que o objeto remeta à Coisa – esse
objeto do vazio, impossível de ser representado e que aponta para o real.
Nesse sentido, a sublimação enquanto tratamento do gozo se dá pela plasticidade
do objeto da pulsão, na direção de uma criação em torno do vazio. Dar tratamento ao
gozo, portanto, diz respeito às possibilidades que se abrem ao sujeito para que,
ocupando a posição de agente, possa dar um destino ao gozo por meio do que se produz
em volta do vazio constitutivo a todo sujeito. Desta forma, a partir da obra lacaniana,
entendemos a sublimação como uma possibilidade de dar tratamento ao gozo, na
medida em que, sendo um dos destinos da pulsão, provoca este movimento em torno do
irrepresentável inerente a das Ding.
Figura 1: Casa suspeita (1967), série Acontecências (1966-1967), 67x52 cm, óleo e
colagem sobre tela. Fonte: (Leal, 2019).
Figura 2: Morra usando as legítimas alpargatas (1968), série Vietnã, 116 x 152,8 x 2,5
cm, técnica mista. Fonte: (Leal, 2019).
Figura 3: A história de um homem mau (1966), série Acontecências, 72 × 52,5 cm, óleo
e colagem sobre tela, coleção da artista, Belo Horizonte. Fonte: (Bechelany, 2017).
Figura 4: Sem título (Ciúme de você) (1966), 67 × 51,5 cm, óleo sobre tela, coleção da
artista, Belo Horizonte. Fonte: (Bechelany, 2017).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Moura, R.; Bechelany, C. (2017). O artista e a arte são um, não se dividem – Entrevista de
Teresinha Soares a Rodrigo Moura e Camila Bechelany. In Pedrosa, A.; Moura, R.
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Marcos, C. (2007). Do que se pode ler em Clarice Lispector: sublimação e feminino. Rev.
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Martí, S. (2017). Obra erótica e psicodélica de Teresinha Soares volta aos holofotes no
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https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/04/1878790-obra-psicodelica-de-
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