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A RESISTÊNCIA DO EROTISMO NA ARTE DE TERESINHA SOARES:

SUBLIMAÇÃO E FEMININO

Letícia da Cunha Soares

Teresinha Soares, artista plástica brasileira nascida em Minas Gerais em 1927, é


conhecida principalmente por abordar o erotismo de forma psicodélica e trazer à luz a
sexualidade feminina, retratando a mulher em meio a uma sociedade violenta e
machista. Sua arte mistura erotismo, amor, agressividade, violência e uma forma muito
própria de abordar as figuras femininas, constantemente retratadas como protagonistas
em suas produções. O tempo de produção artística de Teresinha Soares, no entanto, não
durou muito. Suas obras não são vastas e foram produzidas em um curto período de
tempo – de meados da década de 1960 a meados da década de 1970.

É curioso perceber que esse curto período alvo da explosão criativa de Teresinha
Soares coincidiu com os chamados anos de chumbo – época de maior repressão e
violência da ditadura militar brasileira, iniciando-se em 1968 com a instauração do Ato
Institucional nº.5 (AI-5) e estendendo-se até o fim do governo do presidente Emílio
Médici, em 1974. Nesse período, episódios de tortura e violência estatal se tornaram
constantes e a censura atuou de forma opressora em todos os meios de comunicação. É
preciso considerar que as mulheres foram os principais alvos da repressão vigente nesse
período, visto que a violência sexual foi tomada como forma de combater os
movimentos feministas contra o governo, sendo a principal forma de tortura utilizada
pelos militares para humilhar e violentar aquelas que eram consideradas “subversivas”.

A produção artística de Teresinha Soares surge nesse contexto, banhada de


erotismo, feminino e retratos de violência. O fato de sua produção ter perdurado por
pouco tempo – e nos anos de maior repressão e utilização da sexualidade feminina como
forma de tortura – denunciam que sua criação não se deu apenas visando à valorização
comercial e econômica. Em suas próprias palavras, o ato de produzir denunciava a
necessidade de por para fora o que estava dentro de si (Martí, 2017). Não consideramos
coincidência o fato de suas produções serem recheadas de erotismo feminino em uma
época de tamanha repressão sexual. Entendemos a produção da artista como um ato
político sim, mas, sobretudo, como um movimento genuíno de dar tratamento ao gozo e
contornar o irrepresentável do vazio como um ato sublimatório.
À luz da construção teórica de Lacan (1959-1960) acerca da sublimação, é
possível perceber que a função primordial da arte é menos produzir algo belo e
socialmente aceitável do que a tentativa de inscrição de um gozo irrepresentável. Desta
forma, em um contexto de forte repressão, algo do sexual reprimido e rechaçado –
portanto, sem lugar – pôde escoar por meio da arte nas obras da artista, num ato de
resistência do erotismo frente à impossibilidade de dar outros destinos ao gozo. Não
temos por objetivo fazer um apelo ao belo e ao reconhecimento social na sublimação,
mas clarear os apontamentos lacanianos e analisar a produção da artista não por seu
valor de mercado, mas pela relação inegável entre sua criação e o contexto político e
social no qual sua obra foi produzida.

O CONTEXTO POLÍTICO POR TRÁS DA ARTE

Em abril de 1964, instaura-se no Brasil o golpe militar e o presidente Castelo


Branco vai ao poder. Difunde-se, então, uma atmosfera de forte repressão política e
social. Nesse contexto, a sexualidade feminina passa a ser fortemente reprimida por um
movimento coercitivo que concebia o sexo da mulher como propriedade do homem.
Moreira (2017) destaca a forte corrente de resistência feminina contra a opressão militar
que ganhou força, sobretudo, no início da década de 1970. As mulheres, consideradas
incapazes de ocuparem o ambiente político, lutavam contra a repressão e questionavam
as relações de poder e a violência exercida pelo Estado.
As mulheres militantes eram consideradas duplamente transgressoras, pois
transgrediam politicamente militando contra a ditadura e transgrediam rompendo com
os padrões tradicionais de gênero, visto que ocupavam o espaço público e o ambiente
político (Rosa, 2015). Por este motivo, a violência exercida por meio de tortura,
sequestro ou desaparecimento atingiu de forma brutal as mulheres, pois era realizada
pela violência de gênero. Desta forma, praticamente todo tipo de abuso e humilhação
exercidos contra as militantes era de cunho sexual. A diferença de gênero era uma
forma de oprimir e subjugar as mulheres, e a sexualidade feminina – tida como
propriedade do homem – constantemente utilizada como meio para o exercício da
crueldade e para a satisfação dos agentes militares. O corpo feminino passou a ser
tomado como objeto pelos torturadores, sofrendo todo tipo de abuso sexual.
Pelegrine (2019) salienta que as práticas de violência exercidas contra as
mulheres não representavam apenas ações políticas de aniquilamento de um inimigo
político visto nas mesmas condições de existência e valor que seu agressor, mas eram
retrato das relações assimétricas de poder fundamentadas no gênero que faziam parte do
cotidiano das mulheres. O crescente movimento feminista era considerado uma
subversão à ordem natural das coisas e os crimes de violência sexual foram tomados
como a solução para contê-lo. A violência passou a ter caráter de política de Estado,
atingindo níveis absurdos por ser fundamentada na relação entre o autoritarismo e as
representações patriarcais e sexistas (Pelegrine, 2019).
A estruturação da sociedade patriarcal fundamentada na hierarquia de gênero
refletiu-se na violência estatal, fazendo com que as mulheres fossem as principais
vítimas atingidas pelo Estado autoritário, principalmente quando a tortura passou a ser
uma política oficial – o que ocorreu, sobretudo, durante os chamados anos de chumbo
(Pelegrine, 2019). A grande onda de horror que manchou de sangue a história brasileira
no período da ditadura militar evidenciou que a prática de violência é um fenômeno
ancorado, dentre outros fatores, no gênero. Qualquer tentativa de subversão que
desafiava esse sistema era, portanto, duramente reprimida por uma onda de crimes não
só legitimada, mas praticada pelo próprio Estado.

A SUBLIMAÇÃO COMO TRATAMENTO POSSÍVEL DO GOZO

Em sua obra Os instintos e suas vicissitudes, Freud (1915/1996) aborda a


sublimação como um dos destinos da pulsão, juntamente com o recalque, a reversão a
seu oposto e o retorno ao próprio eu. Nesta obra, o autor confere especial atenção à
plasticidade da pulsão no que diz respeito ao objeto, visto que este último é sempre
variável. Nesse sentido, a característica contingencial do objeto da pulsão torna-se
determinante na sublimação, pois qualquer objeto pode ocupar este lugar e ser tomado
como passível de gerar satisfação – inclusive os objetos sublimados. Para Freud
(1908/1996), no entanto, o processo sublimatório é marcado pela troca do objetivo
sexual inicial por outro que não tenha caráter sexual.
Ao abordar o tema da sublimação, Lacan, tal como Freud, também a concebe a
partir de uma inibição em relação à meta sexual – inibição essa que não impediria a
satisfação pulsional, o que pode gerar certo paradoxo por apontar para uma possível
dessexualização da pulsão. Sobre esta questão, García-Roza (2004) salienta que a
mudança existente é em relação ao objeto, destacando que não há uma dessexualização
da pulsão – como se pode pensar a partir da leitura de alguns pós-freudianos –, mas sim
uma dessexualização de seu objeto, que seria um objeto não-sexual. Nesse sentido, na
sublimação, a transformação ocorre em relação à posição que o objeto passa a ocupar
para o sujeito, fazendo com que a pulsão se satisfaça com objetos não-sexuais,
mantendo, assim, seu caráter sexual preservado.
Lacan (1959-1960) salienta a mudança que o estatuto do objeto passa a ter na
sublimação ao afirmar que ele é elevado à dignidade da Coisa, apontando para uma
criação em torno do vazio – considerado o centro de toda produção. Sobre esta premissa
lacaniana, Metzger (2014) salienta:

Não se trata mais de uma mudança de meta no que tange ao sexual, mas sim
no que toca à posição do objeto da sublimação para o sujeito. No caso do
reconhecimento social, não estamos mais falando em algo simplesmente da
ordem de uma valorização social, mas sim do reconhecimento do vazio da
Coisa a que o objeto da sublimação deve aludir (Metzger, 2014, p.33).

Lacan (1959-1960) aborda essa mudança a partir do campo de das Ding – aquele
em torno do qual gravita o além do princípio do prazer. O campo de das Ding evidencia
o que do real padece do significante, sendo aquilo que escapa à representação psíquica –
o que faz com que Lacan (1959-1960) afirme que das Ding é, ao mesmo tempo,
“interior excluído” e “excluído no interior” (p.125). Elevar o objeto à dignidade da
Coisa não diz respeito a realizar um processo de idealização ou substituição, mas
desvelar o caráter de coisidade do objeto, extraindo dele a possibilidade de ser elevado à
dignidade do irrepresentável que é atributo do objeto da sublimação. Sendo, portanto,
um campo, diversos objetos podem ocupar o lugar referente a das Ding.
Na sublimação, portanto, o vazio é determinante. Como um destino da pulsão, a
sublimação encarna uma relação específica com o real do campo de das Ding e com o
vazio inerente a ele – substancial para nortear o desejo. Desta forma, a pulsão tem um
objeto delineado enquanto vazio, enquanto posição a ser ocupada por qualquer objeto
que cause o desejo – o que evidencia que das Ding traz em si o estatuto do real do
objeto que, posteriormente, será transformado por Lacan em objeto causa do desejo
(Metzger, 2014). O vazio ao qual se refere Lacan (1959-1960) é, no entanto,
constitutivo a todo sujeito, não sendo passível de ser preenchido. Sendo um vazio que
aponta para o real, a Coisa não pode ser achada ou apreendida, apenas contornada.
Compreendida a partir de das Ding, a sublimação revela-se num para além do
princípio do prazer, visto que das Ding, enquanto fora da cadeia significante, opõe gozo
e desejo – este sim ligado ao significante (Miller, 1999). Nesse sentido, o gozo é
entendido a partir dos excessos, apontando para o campo do real, num para além do
princípio do prazer – enquanto o desejo liga-se ao princípio do prazer e é homeostático,
situando-se na cadeia significante (Marcos, 2007). Desta forma, o campo de das Ding
aponta para o gozo enquanto real – mudo, vazio, fora do simbólico –, aproximando a
satisfação pulsional deste campo irrepresentável.
Marcos (2007) salienta que em O Seminário, livro 11, com o desenvolvimento
do conceito de objeto a, o acesso ao gozo pode ser pensado a partir de um trajeto da
pulsão que contorna o objeto, indo do impossível de das Ding a uma possibilidade de
inscrição do gozo. Assim, a sublimação possibilitaria um modo de dar tratamento ao
gozo pela possibilidade de inscrição, ainda que parcial. Nesse sentido, viabilizaria uma
forma de contornar o vazio de das Ding a fim de organizar simbolicamente o real,
permitindo que, nesse lugar de ausência, algo do gozo se inscreva – apontando sempre
para um fracasso do simbólico em dar conta do real (Marcos, 2007).
Lacan (1959-1960) aborda a arte como sendo um modo de organização em torno
desse vazio, assim como a religião e o discurso da ciência, por exemplo. No entanto, o
autor vai além da arte na definição de sublimação, visto que o processo sublimatório
não está ligado ao belo ou apenas ao reconhecimento social da obra, mas sim à
existência do vazio da Coisa e ao processo criativo em torno dele. Desta forma, para que
um processo seja considerado sublimatório, é preciso que o objeto remeta à Coisa – esse
objeto do vazio, impossível de ser representado e que aponta para o real.
Nesse sentido, a sublimação enquanto tratamento do gozo se dá pela plasticidade
do objeto da pulsão, na direção de uma criação em torno do vazio. Dar tratamento ao
gozo, portanto, diz respeito às possibilidades que se abrem ao sujeito para que,
ocupando a posição de agente, possa dar um destino ao gozo por meio do que se produz
em volta do vazio constitutivo a todo sujeito. Desta forma, a partir da obra lacaniana,
entendemos a sublimação como uma possibilidade de dar tratamento ao gozo, na
medida em que, sendo um dos destinos da pulsão, provoca este movimento em torno do
irrepresentável inerente a das Ding.

TERESINHA SOARES: SUBLIMAÇÃO E FEMININO

Teresinha Soares atuou como artista plástica durante os conhecidos anos de


chumbo. Neste tempo, produziu diversas obras que traziam à luz temas que envolviam o
corpo e o erotismo, problematizando a normatividade imposta no campo social no que
diz respeito à experiência erótica. A artista contribuiu para o questionamento dos
valores patriarcais dos anos de 1960 e 1970, visto que explorava de forma artística as
maneiras de perceber e lidar com o corpo em uma época de forte repressão. A censura
atuava em todos os meios de comunicação e também na arte, o que evidencia que as
obras de Teresinha Soares são uma verdadeira transgressão aos valores patriarcais
vigentes na época. Seus trabalhos suscitavam fortes críticas ao modo como o sujeito
feminino era visto e tratado na sociedade patriarcal.
Em sua série Acontecências (1966 – 1967), a artista trata de temas como a
exploração, a violação e o assassinato das mulheres numa sociedade machista. Nela,
pinta desenhos com tinta a óleo inspirados em manchetes de jornal, misturando frases
de anúncios e criando novas significações para esse conjunto de fragmentos (Leal,
2019). Na obra Casa suspeita (Figura 1), de 1966, a artista faz paródias de propagandas
de casas de prostituição que eram anunciadas nos jornais da época, aludindo à imagem
da mulher objetificada.
As figuras de Teresinha Soares dão margem para a criatividade daquele que as
observa, parecendo construir diferentes contornos e formas singulares – por vezes até
estranhas – e abrindo possibilidades para novas construções de sentido. Na obra Morra
usando as legítimas alpargatas (Figura 2), de 1968, corpos se entrelaçam sem deixar
claro quantas pessoas estão representadas na imagem, tampouco quais são suas
identidades de gênero, o que evidencia que a quebra dos padrões de gênero e o tema da
androginia são muito frequentes nas obras da artista.
Teresinha Soares pertence à geração de artistas brasileiras que atua pela
emancipação política, social e comportamental da mulher, por isso suas obras falam do
corpo feminino, do desejo, do erotismo, da sexualidade e da liberdade de expressão
artística (Ribeiro, 2018). O erotismo presente na obra de Teresinha Soares não tem por
objetivo provocar o desejo e o prazer no homem, mas explicita o prazer da mulher
enquanto dona de seu próprio corpo (Ribeiro, 2018). Os tabus em torno da sexualidade,
as relações entre homens e mulheres e a luta feminina pela liberdade sexual – frequentes
em suas obras – expressam as inquietudes de se viver em meio a tanta repressão.

Para Ribeiro (2018), as obras produzidas por Teresinha Soares durante as


décadas de 1960 e 1970 são consideradas transgressoras, políticas e originais, visto que
estão firmadas na confluência de uma celebração descomplexada do erótico e do
feminino, somando-se à crítica da repressão vivida nos anos da ditadura e
experimentada pelas mulheres em uma sociedade patriarcal. Teresinha Soares relata, em
entrevista, que foi motivada a fazer arte por sua condição de ser mulher, criando, em
suas obras, uma linguagem própria e autêntica como meio de se expressar enquanto
sujeito feminino (Morais, 2017, apud Leal, 2019b). A sexualidade da mulher, tão
duramente reprimida, encontrou na arte seu mais puro meio de expressão.

Em entrevista dada aos curadores do Museu de Arte de São Paulo (MASP)


Camila Bechelany e Rodrigo Moura, Teresinha Soares afirmou que se inspirava em
manchetes policiais para produzir sua arte, construindo suas pinturas a partir das
histórias de violência de gênero que lia nos jornais. A artista afirma:

As coisas que aconteciam ao meu lado, eu via no jornal. Mulher que se


divorciava era puta. Mulher não podia sair sozinha, não podia entrar em um
bar, não podia ter sede na rua, nem entrar e pedir um copo d’agua. Mulher
tinha que estar junto com o marido, em uma coleira. [...] A gente não pode
aceitar isso, de maneira nenhuma. Eu já vi coisas incríveis: mulher com
marca de ferro de passar roupa. A gente não pode concordar com isso, não
(Moura & Bechelany, 2017, p.105).

Em sua obra A história de um homem mau (Figura 3), de 1966, é possível


perceber a influência da notícia policial na obra da artista. A pintura parece retratar uma
cena familiar de violência doméstica, mais precisamente de um pai contra a filha,
supostamente porque esta última rompeu com algum padrão imposto por ele
(Bechelany, 2017). No entanto, a artista também atribui o protagonismo dos atos de
violência, muitas vezes, à mulher, como ocorre na obra Sem título (Ciúme de você)
(Figura 4), de 1967. Para Bechelany (2017), ao deixar de ser vítima do homem, a
mulher passa a ocupar o lugar de agressora, sendo retirada da posição passiva à qual
sempre foi associada desde o inicio da história da arte.
Por meio da análise de poucas obras de Teresinha Soares, é possível perceber
que a arte lhe proporcionou criar algo que talvez de outra forma não se pudesse
expressar. Algo de sexual impossível de encontrar saída de outras formas pôde
encontrar na arte um meio de vir à tona, ainda que em meio à censura vigente nos anos
de chumbo. A criação, enquanto falta a ser que marca todo sujeito dividido pela
linguagem, revela o movimento em torno do vazio que não pode ser apreendido, apenas
contornado – evidenciando que a arte é uma forma de assim fazê-lo. Para Regnault
(1997, p.26, apud Marcos, 2007, p.218), “revela-se então que o vazio não tem somente
uma função espacial, mas também simbólica. Ele é da ordem do real, e a arte utiliza o
imaginário para organizar simbolicamente o real”.
Do que aparece nas obras de Teresinha Soares como sem contorno, disforme e
estranho é que um saber sobre o feminino – e por que não dizer sobre o gozo – se
inscreve. O caráter de estranheza que as figuras produzidas pela artista suscitam remete
ao que Freud (1919/1996) desenvolveu em sua obra O estranho. O autor aborda a
experiência psíquica de estranhar o que é familiar e caracteriza o estranho da realidade
psíquica como assustador e provocador de medo, mas que também alude ao que é
conhecido. Desta forma, o estranho “não é nada novo ou alheio, porém algo que é
familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do
processo de repressão” (Freud, 1919/1996, p.258).
Freud (1919/1996) parece abordar uma ambivalência que diz respeito à
inquietude do sujeito pelo retorno do que era conhecido e foi recalcado, mas que volta
no momento presente como desconhecido e assustador. No entanto, também alude
àquilo que não pode ser inscrito pela realidade psíquica, algo que assombra caso dela se
aproxime demais. Pode-se pensar, desta forma, no caráter de estranheza que o vazio da
Coisa parece possuir – estranheza essa que muitas vezes transborda na criação inerente
ao processo sublimatório. A obra, nesse sentido, pode ser pensada como lugar
privilegiado de inscrição de um gozo – mantendo o que há de imprevisível no objeto,
mas dando a ver algo que de outro modo não se veria (Marcos, 2007).
Nesse sentido, na produção artística de Teresinha Soares algo do feminino
transborda, parecendo apontar para o irrepresentável do gozo que Lacan (1972-
1973/1985), em seu O Seminário, livro 20, associa ao feminino – sendo este resistente
ao campo do simbólico por estar para além da lógica fálica. O que do feminino e do
gozo referente a ele não cessa de não se inscrever (Lacan, 1972-1973/1985) parece
encontrar na criação de Teresinha Soares um meio de organizar pela via imaginária da
arte o irrepresentável, encontrando alguma via de significação, ainda que parcial.
A arte, portanto, abre a Teresinha Soares possibilidades para que, ocupando a
posição de agente, possa dar um destino ao gozo por meio da produção em torno do
vazio da Coisa. Dando ao sujeito o estatuto de autor daquilo que se produz, a
sublimação permite o movimento em torno do vazio inerente a das Ding, possibilitando
ao sujeito fazer algo com aquilo que aponta para o real. Enquanto possibilidade de dar
tratamento a um gozo sem lugar, a arte assume um caráter de potência simbólica,
permitindo à Teresinha Soares lidar com algo que talvez só pelo laço possibilitado pela
arte pudesse encontrar alguma via de simbolização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

As obras de Teresinha Soares evidenciam a sublimação – e, nesse caso, a arte –


como forma de dar tratamento ao gozo, como um meio possível de contorná-lo. O fato
de a artista ter se dedicado à arte por tão pouco tempo e o fato de ela mesma não saber
responder o motivo da interrupção de sua produção evidenciam que, para ela, a arte não
tinha apenas um valor de mercado, mas se fez um processo necessário – talvez o único
possível – para lidar com algo que não poderia ser tratado de outra forma. A artista
afirmava não objetivar uma produção feminista (Leal, 2019b), o que evidencia que sua
produção também não visava servir a nenhum movimento social, mas pode ser
entendida como uma explosão criativa que se deu naturalmente, certamente não por
acaso, durante os anos de chumbo da ditadura militar brasileira.
As obras de Teresinha Soares exprimem um além da palavra impossível de se
pôr no discurso, sendo passível de construir algo sobre o feminino e apontar para sua
relação com o real e o gozo – com a parte do feminino que, segundo Lacan (1972-
1973/1985), escapa ao campo do simbólico. Suas obras, que vão além da linguagem,
evidenciam a relação do feminino com a criação e com o gozo atribuído por Lacan
(1972-1973/1985) à mulher. Nesse sentido, fica evidente a afirmação de Lacan (1959-
1960) de que toda arte se caracteriza por certo modo de organização em torno do vazio
de das Ding, fazendo com que o artista seja capaz de encontrar na via imaginária da
produção artística um meio de por no laço social aquilo que é irrepresentável.
Tendo em vista o excesso do real e a insuficiência do campo do simbólico para
dar conta dele, a produção artística pode ser tomada como meio de contornar este
irrepresentável vazio da Coisa. Na aposta de abordar a arte de Teresinha Soares como
um processo sublimatório, sua produção pode ser entendida como um movimento
criativo em torno do vazio – movimento que, nas obras da artista, também possui
caráter político e transgressor. Como resistência do erotismo frente à repressão dos anos
de chumbo, fica evidente que, nas obras da artista, coloca-se no laço compartilhado um
gozo que só se faz passível de ser inscrito por meio da criação – criação essa capaz de
dar um destino àquilo que outrora permanecia sem lugar.
ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1: Casa suspeita (1967), série Acontecências (1966-1967), 67x52 cm, óleo e
colagem sobre tela. Fonte: (Leal, 2019).

Figura 2: Morra usando as legítimas alpargatas (1968), série Vietnã, 116 x 152,8 x 2,5
cm, técnica mista. Fonte: (Leal, 2019).
Figura 3: A história de um homem mau (1966), série Acontecências, 72 × 52,5 cm, óleo
e colagem sobre tela, coleção da artista, Belo Horizonte. Fonte: (Bechelany, 2017).

Figura 4: Sem título (Ciúme de você) (1966), 67 × 51,5 cm, óleo sobre tela, coleção da
artista, Belo Horizonte. Fonte: (Bechelany, 2017).
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