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4/10/2017 0 QUE A GEOGRAFIA DEVE SER*

0 QUE A GEOGRAFIA DEVE SER*

Piotr Kropotkin

Era fácil prever que o grande renascimento das ciências naturais, o qual nossa geração tem
tido  a  sorte  de  acompanhar  desde  há  trinta  anos,  assim  como  a  nova  orientação  dada  à
literatura científica por um grupo de homens eminentes, que se dispuseram a apresentar os
resultados das mais complexas investigações científicas de forma acessível ao público em
geral, de veriam necessariamente provocar um renascimento equivalente na geografia. Esta
ciência, que toma em consideração as leis descobertas pelas suas ciências irmãs e coloca
em  pauta  as  suas  ações  e  efeitos  mútuos  em  relação  à  superfície  do  globo,  não  poderia
permanecer  à  margem  do  movimento  científico  em  geral;  e  assistimos  na  atualidade  o
despertar  de  um  interesse  pela  geo grafia  que  relembra  o  interesse  por  ela  suscitado  na
geração anterior, durante a primeira metade do nosso século**. 
É verdade que não contamos hoje com um viajante e filósofo tão capaz como foi Humboldt;
porém, as recentes expedições ao ártico e as investigações nas profundidades abissais, e,
mais  ainda,  os  rápidos  progressos  experimentados  pela  biologia,  pela  climatologia,  pela
antropologia  e  pela  etnologia  comparada,  têm  fornecido  aos  trabalhos  geográficos  uma
atração tão considerável e um significado  tão  profundo,  que  os  próprios  métodos  de  des ­
crição  da  Terra  vêm  experimentando  desde  há  algum  tempo  uma  profunda  modificação.
Reaparece novamente na literatura geo gráfica o mesmo nível de explicação científica e de
fundamentação filosófica  a  que  Humboldt  e  Ritter  nos  haviam  acostuma dos.  Não  se  deve
estranhar,  portanto,  que  os  livros  de  viagens  e  aqueles  de  descrições  geográficas  gerais
estejam voltando a ser o tipo mais popular de leitura.
Era também totalmente natural que o renascimento do inte resse pela geografia dirigisse a atenção do público
para a geografia na escola. Realizaram­se pesquisas e descobriu­se, com estupor, que havíamos conseguido
que esta ciência – a mais atrativa e sugestiva para pessoas de todas as idades – resulte em nossas escolas
como um dos temas mais áridos e carentes de significado. Nada interessa tanto às crianças como as viagens;
e nada é mais árido e menos atrativo, em muitas escolas, do que aquilo que nelas é batizado com o nome de
geografia. 0 mesmo podemos dizer, quase que com as mesmas palavras e com raras exceções, em relação a
física, à química, à botânica, à geologia, à história e às matemáticas. Uma reforma em profundidade no ensino
de todas as ciências e tão necessária quanto uma re forma na educação geográfica. Todavia, apesar da opinião
pública ter permanecido bastante indiferente á respeito de uma reforma geral de nossa educação científica –
mesmo  quando  os  homens  mais  eminentes  deste  século  a  tenham  preconizado  –,  ela  parece,  em  troca,  ter
entendido rapidamente a necessidade de reformar o ensino da geografia: a discussão recentemente ini ciada
pela Real Sociedade Geográfica Britânica tem sido acolhida com sim patia geral por parte da imprensa. Nosso
mercantilizado  século  parece  ter  entendido  melhor a  necessidade  de  uma  reforma  na  medida  em  que  foram
colocados em pauta os chamados interesses "práticos" da colonização e da guerra. Uma discussão ri gorosa
deve  forçosamente  demonstrar  que  não  se  pode  chegar  a  nada  de  sério  nesse  sentido  desde  que  não  se
empreenda uma correlativa, porém, muito mais ampla, reforma geral do nosso sistema educacional. 
É quase seguro que não existe outra ciência que possa tornar­se tão atrativa para a criança como a geografia,
e  que  possa  se  constituir  num  poderoso  instrumento  para  o  desenvolvimento  geral  do  pensamento,  assim
como para familiarizar o estudante com o verdadeiro método de investigação científica e para despertar sua
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afeição  pela  ciência  natural.  As  crianças  não  são  verdadeiras  admiradoras  da  natureza  enquanto  esta  não
tiver  alguma  ligação  com  a  humanidade.  0  sentimento  artístico,  que  desempenha  um  papel  tão  importante
papel no deleite intelectual do natu ralista, é demasiado débil na criança. As harmonias da natu reza, a beleza
de  suas  formas,  as  admiráveis  adaptações  de  seus  organismos,  a  satisfação  obtida  pela  inteligência  no
estudo das leis físicas – tudo isso pode vir depois, porém não ainda na primeira infância. A criança busca em
todas  as  partes  o  homem,  a  atividade  humana,  as  lutas  contra  os  obstáculos.  Os  mi nerais  e  as  plantas
deixam­na  fria;  ela  está  atravessando  uma  etapa  em  que  prevalece  a  imaginação.  Quer  dramas  humanos,  o
que  significa  que  a  melhor  maneira  de  suscitar­lhe  o  desejo  de  estudar  a  natureza  é  pelos  relatos  de
pescadores  e  caçadores,  de  navegantes,  de  enfrentamentos  com  os  perigos,  de  costumes  e  hábitos,  de
tradições  e  migrações.  Alguns  "pedagogos"  modernos  buscam  matar  a  imaginação  das  crianças.  Os
melhores  são  aqueles  conscientes  de  como  a  imaginação  constitui  uma  excelente  ajuda  para  o  raciocínio
científico. Entendem assim que não é possível uma explicação científica profunda sem a ajuda de um poder
de  imaginação  bastante  desen volvido;  e  utilizam  a  imaginação  da  criança  não  para  abarrotá ­la  de
superstições, mas sim para despertar a sua paixão pelos es tudos científicos. A descrição da Terra e de seus
habitantes constituirá com certeza um dos melhores meios para alcançar tal fim. Relatos do homem lutando
contra as forças hostis da natureza – o que poderá ser melhor do que isso para inspirar na criança o desejo de
averiguar  os  segredos  dessas  forças?  pirar  na  criança  o  desejo  de  averiguar  os  segredos  dessas  forças?
Pode­se despertar facilmente nas crianças a feição por "colecionar", transformar seus quartos em exposições
de curiosidades, ao passo que, nas idades mais prematuras,  não  é  fácil  despertar  o  desejo  de  investigar  as
leis da natureza; na da é mais fácil que despertar numa mente infantil a capacidade de comparação mediante o
relato das histórias de países distantes, de suas plantas e animais, de suas paisagens e fenômenos, sempre
que plantas e animais, ciclones e tormentas, ou erupções vulcânicas, guardem relação com o homem. Esta é
a  tarefa  da  geografia  na  primeira  infância:  tomando  a  humanidade  como  intermediária,  desenvolver  nas
crianças  o  interesse  pelos  grandes  fenômenos  da  natureza,  despertar  seu  desejo  de  conhecê­los  e  explicá­
los.
 
       A Geografia deve cumprir, também, um serviço muito mais importante. Ela deve nos ensinar, desde nossa
mais tenra infância, que todos somos irmãos, independentemente da nossa nacionalidade. Nestes tempos de
guerras,  de  ufanismos  nacionais,  de  ódios  e  rivalidades  entre  nações,  que  são  habilmente  alimentados  por
pessoas que perseguem seus próprios e egoísticos interesses, pessoais ou de classe, a geografia deve ser –
na medida em que a escola deve fazer alguma coisa para contrabalançar as influências hostis – um meio para
anular esses ódios ou estereótipos e construir outros sentimentos mais dignos e humanos. Deve mostrar que
cada  nacionalidade  contribui  com  sua  própria  e  indispensá vel  pedra  para  o  desenvolvimento  geral  da
humanidade,  e  que  somente  pequenas  frações  de  cada  nação  estão  interessadas  em  manter  os  ódios  e
rivalidades  nacionais.  Deve reconhecer  que,  além  de  outras  causas  que  nutrem  as  rivalidades  nacionais,  as
diferentes nações não se conhecem suficientemente bem entre si; as espantadas perguntas  sobre  seu  país,
que  se  fazem  a  um  estrangeiro;  os  absurdos  preconceitos  mútuos,  que  se  estendem  aos  extremos  de  um
continente – e até a ambos os lados de um canal – são prova suficiente de que, mesmo entre aqueles que se
costuma  denominar  gente  culta,  a  geografia  e  apenas  conhecida  pelo  nome.  As  pequenas  diferenças  de
característícas  nacionais,  que  aparecem  especialmente  entre  as  clas ses  médias,  tendem  a  ocultar  a  imensa
semelhança  que  existe  entre  as  classes  trabalhadoras  de  todas  as  nacionalidades,  semelhança  que  se
converte  no  fato  mais  significativo  à  medida  que  se  obtém  um  maior  conhecimento.  É  tarefa  da  Geografia
esclarecer essa realidade, e com grande ênfase devido ao contexto de mentiras acumuladas pela ignorância,
presunção e egoísmo. Deve reforçar nas mentes das crianças que todas as nacionali dades são valiosas umas
para as outras; que quaisquer que se jam as guerras que tenham ocorrido, subjaz sempre no fundo destas o
mais míope dos egoísmos. (...)
 
              Esta  segunda  tarefa  é  suficientemente  importante.  Porém,  existe  uma  terceira,  que
talvez  o  seja  ainda  mais:  a  de  combater  os  preconceitos  que  nos  foram  inculcados  em
relação às chamadas “raças inferiores” – e isto numa época que tudo nos leva a crer que os
contatos  que  vamos  ter  com  elas  vão  ser  cada  vez  mais  intensos.  Quando  um  político
francês proclamava recentemente que a missão dos  europeus  é  civilizar  essas  raças  –  ou
seja,  com  as  baionetas  e  as  matanças  [genocídios]  –  não  fazia  mais  do  que  elevar  à
categoria  de  teoria  esses  mesmos  fatos  que  os  europeus  estão  praticando  diariamente
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[notadamente  na  África  e  na  Ásia,  no  final  do  século  XIX].  E  não  poderia  ser  de  outra
maneira, pois desde a mais tenra infância inculca­se o desprezo pelos “selvagens”, ensina­
se a considerar como se fosses verdadeiros crimes determinados hábitos e costumes dos
“pagãos”,  a  tratar  as  “raças  inferiores”,  como  são  chamadas,  como  se  fossem  um
verdadeiro câncer que somente deve ser tolerado enquanto o dinheiro ainda não penetrou. 
Até agora os europeus têm "civilizado os selvagens" com whisky, tabaco e seqüestros; os
têm inocula do com seus vícios; os têm escravizado. Porém, é chegado o mo mento em que
nos  devemos  considerar  obrigados  a  oferecer­lhes  algo  melhor  –  isto  é,  o  conhecimento
das  forças  da  natureza,  a  ciência  moderna,  a  forma  de  utilizar  o  conhecimento  científico
para construir um mundo melhor. 
 
Assim, o ensino da Geografia deve perseguir três objetivos principais: despertar nas crianças a afeição pela
ciência na tural em seu conjunto; ensinar­lhes que todos os homens são irmãos, quaisquer que sejam as suas
nacionalidades; e deve ensinar­lhes a respeitar as chamadas “raças inferiores”. Desde que se admita isso, a
reforma da educação geográfica  é imensa: consiste nada menos que na completa renovação da totalidade do
sistema de ensino de nossas escolas. (...) 
 
                Existe  atualmente  em  pedagogia,  devemos  reconhece­lo,  uma  tendência  no  sentido  de  cuidar
demasiadamente da mente infantil, até o ponto de frear o raciocínio individual e de restringir a originalidade; e
existe  também  uma  tendência  dirigida  no  sen tido  de  facilitar  em  demasia  a  aprendizagem,  até  o  ponto  de
produzir  uma  criança  desacostumada  a  realizar  qualquer  esforço  intelectual  próprio,  ao  invés  de  fazer  o
contrário,  a  acostumar  a  criança  a  realizar  esforços  intelectuais  cada  vez  mais  complexos.  Concedamos  a
nossos educandos mais liberdade para seu desenvolvimento intelectual!  Deixemos mais espaço para o seu
trabalho independente, sem mais ajuda do professor do que a estritamente necessária. (...) 
     Onde encontrar professores para levar a cabo essa imensa tarefa de educação?  Esta é,
nos  retrucam,  a  grande  dificulda de  que  todo  plano  de  reforma  do  ensino  encontra.  Onde
encon trar, de fato, várias centenas de milhares de Pestalozzis e Frobels***, que dêem uma
instrução  verdadeiramente  sólida  às  nossas  pequenas  crianças?    Seguramente  não  nas
filas desse triste exército de professores aos quais condenamos a ensinar durante toda sua
vida, desde a juventude até o túmulo; que são envia dos a um povo com o qual carecem de
toda relação intelectual de reciprocidade, e que prontamente se acostumam a considerar o
seu trabalho como uma maldição. Seguramente que não nas fileiras daqueles que somente
enxergam  o  ensino  como  uma  profissão  assalariada  e  nada  mais  além  disso.    Apenas
personalidades excepcionais podem continuar sendo bons professores, nessas condições,
até  uma  idade  avançada.  Estes  homens  e  mulheres  preciosos  devem  constituir,  cumpre
dize­lo,  os  irmãos  maiores  de  um  exército  de  educadores  cujas  fileiras  devem  ser
preenchidas  com  voluntários  orienta dos  em  seu  labor  por  aqueles  que  tem  consagrado
toda sua vida à nobre tarefa da pedagogia. Jovens, homens e mulheres,  que dediquem um
ano de sua  vida  ao  ensino  porque  são  movidos  pelo  desejo  de  ajudar  os  mais  novos  em
seu  desenvolvimento  intelectual;  gente  de  mais  idade,  que  está  disposta  a  consagrar
determinadas  horas  a  ensinar  temas  de  sua  preferência  –  uns  e  outros  constituirão
provavelmente  o  exército  de  educadores  de  um  sistema  de  educação  menos  organizado.
Em todo caso, claro está que não é precisamente convertendo o ensino em uma profissão
assalariada  que  conseguiremos  uma  boa  educação  para  nos sas  crianças,  e  manteremos
em nossos pedagogos esse espírito aberto e receptivo que é imprescindível para ajustar­se
às  crescententes  necessidades  da  ciência.  0  professor  somente  será  um  verdadeiro
professor quando sinta verdadeiro amor tanto pelas crianças como pelos temas que ensina,
e  esse  sentimento  não  pode  perdurar  durante  anos  se  o  ensino  é  apenas  uma  profissão.
Pessoas dispostas a dedicar suas energias e ensinar, e sufi cientemente capazes de faze­lo,
não  faltam  em  nossa  sociedade.  Falta  saber  como  descobri­las,  como  interessá­las  pela
educação  e  combinar  seus  esforços;  e  em  suas  mãos,  com  a  ajuda  de  gente  mais
experimentada,  nossos  colégios  serão  muito  rapidamente  diferentes  do  que  são  agora.
Serão  lugares  onde  jovens  gerações  assimilarão  conhecimentos  e  experiências  das  mais

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velhas, ao passo que estas, em contato com as primeiras, recuperarão novas energias para
um trabalho conjunto em benefício da humanidade.

*“What Geography ought t be”, excertos selecionados e traduzidos de Antipode: a Radical Journal of Geography, vol.10/11, n° 1/3,
1976, pp. 6­15. Mas este ensaio de kropotkin foi originalmente publicado in The Nineteenth Contury, XXI, Londres, dezembro de
1885. [Seleção, tradução e notas de José William Vesentini].

** Isto é, do século XIX.
*** Tanto Pestalozzi como Fröbel foram importantes educadores do século XXI, ambos admirados por Kropotkin, que viveu de
1842 a 1921. A seguir, há um pequeno texto sobre cada um desses educadores: 

Johann Heinrich Pestalozzi (1746­1827) foi um reformador da educação de nacionalidade suíça. Suas teorias criaram os
fundamentos do moderno ensino primário. Em 1799 inaugurou uma escola para crianças, na qual durante vinte anos colocou em
prática os seus métodos. Aí as crianças aprendiam por meio da prática e da observação, bem como da utilização natural dos
sentidos. Pestalozzi defendia a individualidade da criança e o seu desenvolvimento integral. Ele foi um amigo e até certo ponto
mentor pedagógico de Karl Ritter, que afirmava que o ensino da geografia deveria ter como base as idéias de Pestalozzi. 

Wilhem Friedrich Fröbel (1782­1852 ), de nacionalidade germânica, é considerado o criador dos jardins­de­infância. Trabalhou
alguns anos com Pestalozzi e desenvolveu idéias para a educação de crianças em idade pré­escolar, dos 3 aos 7 anos. Suas
idéias, que tinham como ponto central estimular o desenvolvimento natural das crianças pequenas através de brincadeiras
educativas e de jogos, eram demasiado inovadoras para serem aceitas pelo público e pelas autoridades da época, razão pela qual,
em 1851, o governo prussiano fechou as portas de todos os jardins­de­infância do país. Mas seus discípulos promoveram a
expansão desses jardins para a Europa Ocidental, Estados Unidos e América Latina.

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE O TEXTO

      Para alguns, especialmente os mais jovens, embora também para determinadas pessoas
mais experientes todavia acomodadas intelectualmente, é difícil entender o significado de um
texto já antigo, neste caso do final do século XIX –  de 1885. É que eles absolutizam o
conhecimento – normalmente o dicotomizando e classificando em gavetas ou rótulos simplistas
do tipo “novo” e “velho” ou então “positivista” e “dialético” –  e com isso não percebem que
toda fala, toda mensagem deve ser contextualizada, deve ser analisada em função dos seus
interlocutores, daqueles conceitos, idéias ou valores com os quais ela dialoga ou trava um
combate intelectual. 
      Qual era e como era a época de Kropotkin?  O que ele gostaria de mudar – tanto na
geografia como na sociedade – e como? Que tipo de escola existia e afinal com quem ele
dialogava? 
      Temos que lembrar que o final do século XIX era um momento de colonialismo, de partilha
da Ásia e especialmente da África pelas potências européias, que justificavam essa dominação
– que implicava até mesmo em genocídios, no uso do trabalho exaustivo e compulsório, na
tentativa de imposição aos colonizados dos idiomas, valores e hábitos dos colonizadores –
através da idéia de que os europeus tinham a nobre “missão” de levar a verdadeira “civilização”
para os demais povos ou “raças”, termo bastante empregado naquele momento histórico. Além
disso, havia um clima de nacionalismos exarcebados, de ferrenhas disputas entre as potências
européias por terras e mercados, algo que se refletia até mesmo no ensino. Basta lembrar dos
livros didáticos de geografia dessa época, que normalmente estereotipavam os “outros”, os
estrangeiros, e supervalorizavam a “sua” nação, chegando até mesmo a arrolar o número de
soldados ou de navios de guerra que cada país “importante” tinha, sempre subestimando o
potencial dos “eternos adversários” (por exemplo: a Alemanha e a Inglaterra, no caso da
França, e vice­versa) e inflando os dados sobre a “nossa pátria”.  E inúmeros geógrafos, que em
grande parte eram mais viajantes ou exploradores a serviço do colonialismo, participavam
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intensamente dessa aventura expansionista, seja produzindo idéias pretensamente científicas
sobre a superioridade do modelo civilizatório europeu, seja pela compilação de dados sobre os
recursos naturais e humanos de uma dada região: mapeamentos e estudos sobre minérios, rios e
lagos, relevo e solos, climas, povoamento e suas características, etc. A Royal Geographical
Society of London, fazendo juz ao próprio nome, contava com membros da família real – além
de comerciantes, banqueiros, industriais interessados no alargamento de seus negócios, etc. –
em suas concorridas reuniões. A título de parêntesis poderíamos lembrar do filme Mountains of
the Moon  (As montanhas da Lua, de Bob Rafelson, de 1989 e já amplamente disponível em
vídeo ou DVD nas locadoras), que mostra algumas dessas reuniões dessa instituição com
ênfase na polêmica entre dois geógrafos (Richard F. Burton e John H. Speke) a respeito da
nascente do rio Nilo. Kropotkin participou em várias dessas reuniões da Royal Geographical
Society ; inclusive este seu texto sobre “o que a geografia deveria ser” foi uma intervenção sua
nessa sociedade, que depois foi ampliada e publicada numa revista científica.
 
     Como se percebe facilmente, Kropotkin era uma “voz vencida”, alguém visto com um misto
de benevolência e curiosidade – afinal ele era de uma aristocrática família russa e ao mesmo
tempo, de forma paradoxal, anarquista e conseqüentemente um utopista que acreditava numa
humanidade sem guerras e sem as intensas desigualdades de classe, de gênero, de etnias, etc.
Como um exilado russo que viveu em Londres durante décadas, ele polemizou com os
“grandes nomes” da geografia britânica do período – a começar por Sir Halford Mackinder.
Mackinder apregoava, de forma “realista” (isto é, em consonância com o que de fato ocorria
com a geografia britânica), que a geografia “deve servir aos homens do Estado e aos
comerciantes”, embora também deva satisfazer “os reclames do sistema escolar”1. Kropotkin,
ao contrário, exorcizava qualquer tipo de serviço para o Estado e principalmente para “os
comerciantes” (ou seja, os interesses colonialistas) e tinha uma clara aversão ao tipo de
geografia que era ensinado nas escolas fundamentais e médias. Ele acreditava no progresso
como algo inexorável – e na ciência moderna como o modelo por excelência do conhecimento
– e no princípio de que os seres humanos são iguais por natureza e que as divisões em nações,
classes, gêneros, grupos étnicos ou religiosos, etc., seriam apenas provisórias e tenderiam a se
anular com o desenrolar da história humana. Daí a sua idéia de que a educação deveria
combater qualquer forma de ufanismos nacionalistas, de preconceitos ou estereótipos, qualquer
tipo de racismo ou de discriminação por etnias ou “raças”; e também a sua idéia de que ao
invés de “civilizar” os asiáticos e africanos, a melhor coisa que a Europa poderia lhes fornecer
seria a ciência moderna, as “leis” da natureza como uma forma de a humanidade controlar o
seu meio ambiente – sem depreda­lo –  e construir uma sociedade mais rica e mais justa. E
como um bom seguidor das idéias de Pestalozzi e de Fröbel, Kropotkin advogava um ensino
que não fosse meramente discursivo e sim alicerçado em trabalhos de campo, em observações
da realidade, em uma gradativa construção pelos educandos de conceitos, valores e atitudes. 
      Como avaliar a importância das  idéias de Kropotkin para a sua época? E qual seria a sua 
(possível) atualidade? 
 
      Sem dúvida que Kropotkin deve ser visto como uma das vozes daquele rico e diversificado
grupo de pensadores “de esquerda”, tal como eles se posicionavam a partir do exemplo da
Revolução Francesa: os “socialistas” em geral – os anarquistas, socialistas utópicos, marxistas
– da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Ele foi amigo de
Élisée Reclus, também geógrafo e anarquista e um dos líderes da Comuna de Paris de 1871, e
leu com atenção as principais obras “socialistas” desse período, desde as de Marx até as de
Phoudon e Bakunin, passando pelos escritos de Owen, Fourier, etc. Mas esse grupo, convém
reiterar, era extremamente heterogêneo e possuía idéias muitas vezes antinômicas. Por
exemplo: Marx e também alguns outros pensadores de “esquerda” da época, ao contrário de
Kropotkin, não criticavam o colonialismo europeu na África e na Ásia e até mesmo chegaram a
http://www.geocritica.com.br/texto08.htm 5/6
4/10/2017 0 QUE A GEOGRAFIA DEVE SER*

defender as brutalidades e as matanças com o argumento de que, apesar dos pesares, isso seria
“progressista” no sentido de acelerar a história – isto é, o desenvolvimento do capitalismo e,
posteriormente, do socialismo – nessas regiões do globo2. E também o sistema escolar era visto
por uns (Owen, Fourier, Kropotkin) como “progressista” no sentido de possibilitarem uma
maior igualdade entre as pessoas e a inculcação de novos valores e atitudes mais igualitários,
sendo que para outros (como Marx, por exemplo), a luta pela universalização e democratização
do ensino – por ele visto como “burguês” – era algo superficial e até mesmo histriônico3. E por
fim Kropotkin jamais professou a crença numa “classe predestinada” a fazer a revolução, o
proletariado, mas, pelo contrário, sempre realçou os inúmeros “sujeitos” ou campos de lutas
que deveriam ser levados em consideração com a mesma ênfase: a natureza com a sua
dinâmica e o seu equilíbrio que deveria ser respeitado (e nunca aquele desprezo absoluto pela
“natureza em si” que existe em alguns socialistas desse período), as classes trabalhadoras (no
plural), as crianças e os jovens, as mulheres, as etnias minoritárias e as “raças” tidas como
inferiores, os povos estrangeiros, em especial aqueles mais diferentes de “nós” e dessa forma
mais discriminados, etc. Neste sentido, será que poderíamos ver em Kropotkin um pensador
mais próximo daquilo que a partir dos anos 1970 seria rotulado como a pós­modernidade?
     Sim, o pensamento de Kropotkin tem uma certa atualidade. Quando consultamos um bom  
texto sobre como deve ser a educação no século XXI – por exemplo, o excelente trabalho de
Edgar Morin4 ou então o relatório de um grupo de pesquisadores/educadores realizado a pedido
da Unesco5 – logo notamos que ele sublinha que a educação não deve ser um mero
ensinamento de conceitos e sim uma oportunidade para o educando aprender a aprender, a ser,
a conviver (combatendo assim todas as formas de preconceitos) e a fazer. Mais importante do
que levar o aluno a assimilar um conceito ou mesmo a aprender a escrever corretamente é faze­
lo perceber o absurdo dos preconceitos e estereótipos, é contribuir para nele desenvolver
atitudes democráticas e o hábito do diálogo. E o sistema escolar nada tem de burguês, mas, pelo
contrário, deve sim ser visto como um passaporte para a cidadania, que inclusive deveria ser
global ou planetária segundo Edgar Morin, ou então como a maior herança ou tesouro da
humanidade, tal como aparece naquele mencionado estudo da Unesco. E finalmente o ensino
da geografia, como já preconizava Kropotkin no final do século XIX, deve sim levar o aluno a
adquirir um paixão pela natureza e pela sua conservação racional, e isso sem entrar num atrito
cego ou mítico com a ciência moderna, e deve sim ter como uma de suas preocupações
essenciais o mostrar que a humanidade é uma só apesar das diferenças, que todos ou povos ou
“culturas” (Kropotkin falaria em “raças”, mas esse termo era absolutamente normal na sua
época) contribuem à sua maneira para a rica complexidade de toda a humanidade.  
[José William Vesentini]
­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­

1 Cf. MACKINDER, H.J. “On the Scope and Methods of Geography”. In:  Proceedings of the Royal Geographical Society, IX,
1887, pp.159­60.

2
Cf. MARX, K. “O domínio britânico na Índia”. In: MARX, K. e ENGELS, F. Sobre o colonialismo. Vol.I, Lisboa, Estampa,
1974, especialmente pp.47­8 e 103­4.

3
Cf. MARX, K. Critica ao Programa de Ghota. Porto, Portucalense Editora, 1971, pp.32­3.

4
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo, Cortez/Unesco, 2000.

5
DELORS, J. (Org.). Educação, um tesouro a descobrir. Brasília, MEC/Unesco, 1998.

http://www.geocritica.com.br/texto08.htm 6/6

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