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Hamlet em análise
Literatura Dramática I
Fevereiro.2022
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Introdução
“Será que Shakespeare queria despertar o lado criativo no espectador?”. Esta é uma
daspergunta que me desafio a tentar perceber neste trabalho.
Em paralelo a esta análise realizada nas aulas, estava a ler o livro O Espectador
Emancipado de Jacques Rancière. O primeiro capítulo desenvolve a ideia de um espectador
criativo. Um espectador que olha para o que vê e com todas as suas experiências pessoas, cria
um novo objeto artístico na sua cabeça, questiona-se do que está a ver, tira a sua própria
interpretação do que lhe é mostrado e tem liberdade para expressar-se. Tornando-se assim
alguém com a função de criativo e não só com a função de ver o que está a acontecer e não agir.
Rancière defende isto mesmo, defende que o espectador tem liberdade para também ser um
membro criativo, que o espectador não tem apenas a mera função de se sentar e ver o que está a
acontecer à sua frente, sem tirar qualquer tipo de leitura. Defende que dentro de cada cabeça
existe uma história. O espectador poderá pegar nas suas experiências e tirar as conclusões que
lhe parecerem mais corretas, não fica fechado dentro de uma caixa.
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Na análise de Hamlet e dos seus enigmas, alguns pontos surgiram em destaque na
minha cabeça. Começo por realçar os enigmas e depois tentar explicá-los um a um.
A antic disposition, como falado em aula, é a expressão com que o próprio Hamlet
designa o seu estranho comportamento. Ao longo da peça vemos o comportamento de Hamlet a
alterar vezes sem conta, hoje em dia poderíamos considerá-lo bipolar, na peça definem/
questionam se é louco. Fica durante toda a peça a pensar em vingar-se de quem matou o seu pai
ou se simplesmente finge que não sabe de nada, poderei então dizer que se encontra numa
guerra interior, encontra-se “entre a espada e a parede”, poderei também questionar se esta
incerteza de Hamlet não é insegurança. Insegurança de não ser capaz, de não ser capaz de
realizar tal ação. Questiono se Shakespeare desenvolveu assim Hamlet, fazendo o público ver-se
a si próprio. Em aula, chegou-se à conclusão que Shakespeare se tinha baseado na narrativa
original que, o mesmo leu, em Belleforest, para escrever Hamlet, mas, na versão original, a
loucura de Hamlet faz sentido, toda a gente na corte sabe que quem matou o pai de Amelothi foi
o seu tio (Feng) e ambos entram numa guerra de que só um poderá viver, então Amelothi finge-
se louco para, aos olhos do seu tio se tornar inofensivo, não ser mais um adversário. Na peça de
Shakespeare, não é isto que acontece, Hamlet é o único que sabe quem matou o seu pai, pois é
visitado pelo mesmo, em forma de fantasma (irei tentar desenvolver este ponto mais tarde), não
se torna um adversário para o tio porque o mesmo não tem conhecimento de que Hamlet sabe
do assassinato. Então, porque será que Hamlet se finge de louco?, Será que está mesmo a fingir
ou realmente está louco?, Será que a sua guerra interior o levou à loucura?, Será que
Shakespeare já estava a ir mais além e estava a desenvolver um pensamento sobre as doenças
mentais? ou será que Shakespeare queria retratar o público que se encontrava à sua frente?
Todos nós temos momentos de dúvida, todos temos alturas em que não sabemos que
será melhor, seja para nós ou para outros, entramos nesta guerra interior de pensamentos que
Hamlet entrou. Mas quero levar este pensamento mais longe e questionar se esta guerra que
Shakespeare provoca não é entre o que o espectador vê e o que o espectador sente. Em palco,
temos uma personagem que começa a enlouquecer depois do seu pai, morto, visitá-lo, na
realidade não sabemos se realmente enlouqueceu, temos uma guerra familiar em que a mãe
acaba por se casar com o irmão do pai de Hamlet, tudo isto causa dúvidas ao público. Lembrar
que estamos por volta do século XVI, um momento de exploração e descoberta, questiono se
não estaria a surgir também a descoberta de um novo gênero de espectador, um espectador
ativo, que fosse questionado e realiza-se questões. Questões como Hamlet coloca a si mesmo.
Cito Rancière no seu Espectador Emancipado: “Em primeiro lugar, olhar é o contrário
de conhecer. O espectador permanece face a uma aparência, ignorando o processo de produção
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dessa aparência ou a realidade que a aparência encobre. Em segundo lugar, olhar é o contrário
de agir. A espectadora fica imóvel no seu lugar, passiva. Ser espectador é estar separado ao
mesmo tempo da capacidade de conhecer e do poder de agir. Este diagnóstico abre caminho a
duas conclusões diferentes. A primeira é a de que o teatro é uma coisa absolutamente má, um
palco de ilusão e de passividade que é necessário suprimir em benefício daquilo que ele
interdita: o conhecimento e a acção, a acção de conhecer e a acção conduzida pelo saber. É a
conclusão outrora formulada por Platão: o teatro é o lugar onde gente ignorante é convidada a
ver homens que sofrem.” (página 9). Olhando para a perspetiva apresentada por Rancière,
poderei questionar também se Shakespeare terá deixado a loucura de Hamlet sem explicação
concreta “para gente ignorante ser convidada a ver homens que sofrem”.
Retomando ao tema da visita do rei em forma de fantasma, Antonin Artaud no seu livro
O Teatro e o Seu Duplo, explica o seu pensamento sobre a existência dos fantasmas nas peças
de teatro. “É notável que a primeira das pequenas peças que constituem o espectáculo, na qual
nos é dado ver as objecções de um pai dirigidas à filha que escarnece da tradição, principie com
uma entrada de fantasmas; as personagens, masculinas e femininas, que irão desenvolver um
assunto dramático, familiar, surgem-nos primeiro sob forma espectral e são vistas nessa
pespectiva alucinante que é própria de toda a personagem teatral, antes de as situações contidas
nesta espécie de esboço simbólico serem desenvolvidas.” (página 65). Deste pequeno excerto,
concluo que as personagens apresentadas como fantasmas surgem, quase como que com a
função de coro, explicar a ação ao público, interligar o público com a história, desenvolver
conflitos, e consolidar todas as cenas da peça teatral.
Na história original, existe uma prostituta que Feng (tio de Amelothi), envia ao quarto de
Amelothi para testar a autenticidade da loucura do mesmo, conseguindo assim perceber se ainda
é seu adversário e se ainda terá capacidade de derrotá-lo. Na peça de Shakespeare, Ofélia é
também enviada para testar a autenticidade da loucura de Hamlet, mas não tem qualquer
parecença com uma prostituta. Ofélia é pura, inocente e o amo que sente por Hamlet é real.
Embora que Ofélia seja caracterizada desta forma, no encontro que tem com Hamlet, o mesmo,
trata-a como uma prostituta. Fazendo parecer que, Shakespeare se torna incoerente, deixando
em questão o porquê da existência desta personagem. Com esta atitude de Hamlet, só aumenta a
dúvida de se o mesmo, está realmente louco ou não.
Para que servirá então Ofélia? Servirá para quebrar o final feliz? Hamlet, parte-lhe o
coração, Ofélia acaba por morrer, quebra a tradição do casal ficar feliz no final. Mas será que há
mais para lá do que acabar com o final feliz? Será que Shakespeare queria provar a
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autenticidade de Ofélia? Todos dizem que Ofélia é pura, inocente, e é assim que é caracterizada
durante toda a peça, mas da mesma maneira que Hamlet é o único que sabe que quem matou o
seu pai foi o seu tio, será que também só ele sabe que Ofélia não é aquilo que parece?
No seu livro Jacques Rancière diz: “Não sou, por certo, o primeiro a pôr em causa a
tradição da crítica social e cultural no seio da qual a minha geração cresceu. Não poucos autores
declararam que o tempo dessa crítica passou. Ainda não há muito tempo, dizem eles, qual
individuo podia entreter-se a denunciar a sombria e sólida realidade escondida por trás da
estridência das aparências. Porém, nos nossos dias, já não haveria nenhuma realidade sólida que
pudesse ser contraposta ao reino das aparências, nenhum reverso sombrio capaz de ser
contraposto ao triunfo da sociedade de consumo.” (página 39). Este pequeno excerto leva-me ao
pensamento de que Shakespeare cria assim, a apresentação de duas realidades numa só
personagem, a realidade perfeita, a que todos querem ver, a que é a mais correta e a realidade
sombria, a que fica escondida no obscuro. Começa a demonstrar ao público não só aquilo que
ele quer ver, mas uma outra realidade que também existe, mas que é preferível nunca ser visível.
O documento refere-se a Portugal mas a verdade é que aconteceu o mesmo no reino unido. No
site: https://www.coladaweb.com/sociologia/prostituicao , podemos ler:
“Durante a Idade Média europeia, a igreja cristã tentou sem sucesso eliminar a prostituição, mas
a sociedade, orientada pelo culto do amor cortês, em que os casamentos eram arranjados com
finalidades políticas ou econômicas, favorecia o florescimento da atividade. A prostituição
passou a ser regulamentada e protegida por lei e a constituir uma importante fonte de ingressos
para o poder público. As cortesãs também foram dignamente tratadas nas cortes do
Renascimento italiano. No século XVI, uma epidemia de doenças sexualmente transmissíveis
somou-se ao puritanismo da Reforma religiosa para lançar uma ofensiva contra a prostituição.
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Com a industrialização, as aglomerações urbanas voltaram a oferecer condições de expansão
para a prostituição.”
Estas informações só comprovam que a prostituição não era bem vista a todos os olhos,
que Shakespeare incluindo uma prostituta na sua peça naquela época poderia ter que acarretar
consequências e que se realmente a prostituição era um dos lados obscuros da sociedade da
altura.
Estando a viver numa época tão religiosa, Gertrudes ter realizado adultério era um
pecado muito grande. Talvez esta seja a justificação pela qual Shakespeare retirou a
cena de adultério entre Gertrudes e Claudius que estava descrita na peça original. Tiro
estas conclusões perante a visão da religião cristã que existia.
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10 e 11). Retirei este excerto do livro Espectador Emancipado de Rancière, e, seguindo
algumas ideias a que se refere, considero que, ou Shakespeare pensou que alguém do
público se poderia identificar com o que estava a ver, conseguindo criar uma maior
relação com o público, ou quis criar este “espectáculo estranho” a que Rancière se
refere, e deixar assim este e os outros dois enigmas referidos neste trabalho como
principio para uma investigação exterior e interior do próprio espectador.
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Fontes consultadas:
https://conhecimentocientifico.com/puritanismo-o-que-e/
https://www.coladaweb.com/sociologia/prostituicao