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AUGUSTO NUNES

A VERDADE
RESSUSCITADA
SELEÇÃO DE ARTIGOS PUBLICADOS NA REVISTA OESTE
AUGUSTO NUNES

A VERDADE
RESSUSCITADA
SELEÇÃO DE ARTIGOS PUBLICADOS NA REVISTA OESTE

©2022 – REVISTA OESTE E AUGUSTO NUNES

DIREITOS EM LÍNGUA PORTUGUESA PARA O BRASIL: OESTE MÍDIA

WWW.REVISTAOESTE.COM

TEXTOS DE AUGUSTO NUNES PUBLICADOS NA REVISTA OESTE


ENTRE 2020 E 2021

EDIÇÃO: DAGOMIR MARQUEZI

CAPA E EDIÇÃO DE ARTE: DANIELA GIORNO

REVISÃO: CLARA BALDRATI E MARCO ANTONIO RANGEL

FOTO DE CAPA: ARQUIVO PESSOAL/LUZIA LACERDA


TEMAS

APRESENTAÇÃO | PG. 05

DILMA JAZ NO MAUSOLÉU


DAS BESTAS QUADRADAS | PG. 10
RETRATO 3X4 (NÃO AUTORIZADO)
DE JOSÉ DIRCEU | PG. 19
CIRO BUTTON. OU
BENJAMIN GOMES | PG. 32
LULA É A VERSÃO DEGENERADA
DO SÃO JORGE DE BORDEL | PG. 41
PEQUENO GLOSSÁRIO DA NOVILINGUA
LULOESQUERDISTA | PG. 51
NUNCA HAVERÁ UMA PRIMAVERA
COMO AQUELA | PG. 71

AUTÓPSIA DE UMA CHICANA | PG. 80

DUAS MULHERES. OU DOIS


SUCOS DE LARANJA | PG. 89
TEMAS

O ESTRANHO CASO DE
ALEXANDRE DE MORAES | PG. 95
A QUARENTENA DOS DESVALIDOS
| PG. 105

OS VIGARISTAS DA ADVERSATIVA
| PG. 117

TERMO DE DECLARAÇÕES PRESTADAS


POR RENAN CALHEIROS | PG. 128
A VERDADE RESSUSCITADA
| PG. 138

O GENERAL DE CORDÃO
CARNAVALESCO | PG. 150
O CIRCO BRASIL VERMELHO
| PG. 161

CONCLUSÕES DA CPI DA CPI


| PG. 171

UM DEPUTADO É O ALVO PREDILETO


DO CARCEREIRO FORA DA LEI | PG. 189
OS IMODERADOS NO PODER
| PG. 206
APRESENTAÇÃO

APRESENTAÇÃO
O PRIVILÉGIO DE TER AUGUSTO NUNES
A
revista Oeste conta com as colunas de
Augusto Nunes desde seu número 1,
lançado em 27 de março de 2020. Logo
na primeira frase, Augusto arma com seu es-
tilo ao mesmo tempo arrasador e elegante:
“Quando Lula empunha o microfone,
fenômenos assombrosos se oferecem
aos olhos de quem trata o idioma com
alguma gentileza”.
Assim escreve o cidadão de Taquaritinga
quando dá sua opinião: afiado como um
bisturi e floreado como uma abertura de
romance. Augusto tem a seu favor alguns
fatores cada vez mais raros de encontrar no
jornalismo brasileiro: senso de humor, estilo
único, coragem e a experiência de quem já
fez um pouco de tudo na imprensa.
Os leitores de Oeste não têm o privilégio
de ter, como nós, da redação, a presença de
Augusto Nunes nas reuniões de pauta: alegre
como um menino, entusiasmado como um

Apresentação 06
novato, sempre à caça de uma boa piada para
resumir as mais complexas situações. Para
explicar os dilemas da profissão, Augusto
sempre tem na memória alguma situação
dramática pela qual passou em seu meio
século de experiência em redações, estúdios
de TV e de rádio. E que agora faz sucesso
com a multidão virtual das redes sociais.
Este livro reúne algumas das colunas
escritas por Augusto Nunes para a revista
Oeste em 2020 e 2021. Os assuntos que
determinaram nossa vida nesse maluco e
assustador início de década estão listados
nesta coletânea. Os heróis das esquerdas, tão
adulados na chamada imprensa velha, não
são poupados pela metralhadora de ideias de
Augusto: Dilma Rousseff, José Dirceu, Ciro
Gomes, João Pedro Stédile e, especialmente
(como define o autor), o “deus único da seita”,
Luiz Inácio Lula da Silva. Seu “Pequeno
Glossário da Novilingua Luloesquerdista”

Apresentação 07
está cada dia mais conveniente para que
a gente tenha na memória as razões pelas
quais não podemos nos dar ao luxo de insistir
num erro.
Temos neste 20/21 a tragédia da pandemia
de covid-19, que se tornou uma farsa nas mãos
de administradores, legisladores e políticos.
Para o circo da CPI da Covid, Augusto criou
a CPI da CPI. Como ele costuma dizer, o
Brasil vive o faroeste ao contrário, onde os
bandidos perseguem o xerife.
E temos também nestas páginas o outro
grande destaque de nossos tempos — o
Supremo Tribunal Federal, que se alimenta
de holofotes e autoritarismo. Deveria garantir
a Constituição, mas transformou o Brasil
num país com presos políticos. Os perfis
dos excelentíssimos juízes do STF são uma
das atrações deste livro.
Os tristes rumos da parcela da imprensa
brasileira entregue à militância estão

Apresentação 08
radiografados na verdadeira aula de redação
chamada “Os vigaristas da adversativa”.
Augusto Nunes mostra também seu lado de
cronista no patético “Duas mulheres. Ou
dois sucos de laranja”, sobre as desventuras
de dois jornalistas brasileiros num hotel de
Buenos Aires.
Assim foram os anos 2020 e 2021. 2022
chegou com novas emoções, temores e
esperanças. E o leitor da Revista Oeste já
sabe que vai contar com a escrita afiada de
Augusto Nunes para entender os fatos. E se
divertir enquanto lê.

Redação Oeste

Apresentação 09
IDEIAS
03 ABRIL 2020

DILMA JAZ
NO MAUSOLÉU
DAS BESTAS
QUADRADAS
A supergerente do Brasil foi só
um embuste vendido a multidões
de eleitores abúlicos por políticos
e jornalistas que perderam o juízo,
a sensatez ou a vergonha
FOTO: MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL
AUGUSTO NUNES

C
onfrontados com a notícia de que
Dilma Rousseff andava enxergando
um cachorro oculto por trás de cada
criança brasileira, os craques do duelo retó-
rico hoje sumidos da paisagem política bra-
sileira teriam destruído a usina de maluqui-
ces instalada na Presidência da República
com meia dúzia de frases de grosso calibre.
Um Carlos Lacerda, por exemplo,
provavelmente sugeriria que a chefe de
governo dedicasse ao exame dos incontáveis
problemas reais o tempo que desperdiçava em
visões mediúnicas. Um Jânio Quadros talvez
perguntasse se os cães de Dilma também
eram distribuídos de acordo com as classes
sociais. Nessa hipótese, emendaria Jânio,
acaso teria a senhora presidenta visto um
galgo afegão seguindo um pequeno favelado?
Ou uma matilha de vira-latas escoltando a
filharada da elite golpista?
Para sorte de Dilma, a Era da Mediocridade

DILMA JAZ NO MAUSOLÉU DAS BESTAS QUADRADAS 12


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transformou numa espécie em extinção a fina


linhagem dos grandes políticos bons de briga,
ágeis no raciocínio e rápidos no gatilho. O
adversário mal acabara de disparar uma bala
bêbada e lá vinha o revide certeiro e letal.
Dois exemplos. Na campanha presidencial
de 1989, Fernando Collor chamou Ulysses
Guimarães de “velho”. A réplica imediata:
“Posso ser velho, mas não sou velhaco”. Na
mesma campanha, Guilherme Afif Domingos
interpelou Mário Covas: “Com qual das duas
caras você vai se apresentar nesta eleição?”
Covas mirou na testa: “Eu acho que tenho
uma só cara. Mas, se tivesse várias, certamente
todas teriam vergonha.”
Em vez de topar com alguém pertencente a
essa estirpe que nunca nega fogo, que jamais
deixa de apanhar a luva atirada pelo oponente,
o neurônio solitário de Dilma lidou em 2010
e 2014 com adversários que insistiram em
valsar com quem só dançava quadrilha.

DILMA JAZ NO MAUSOLÉU DAS BESTAS QUADRADAS 13


AUGUSTO NUNES

Alheios a essa lição, nenhum dos candidatos


à Presidência em 2014 levou Dilma às cordas
com a história do cachorro oculto, contada um
ano antes numa discurseira em Porto Alegre.
Tratada como uma dama, Dilma passou duas
campanhas tão à vontade quanto Rosemary
Noronha num voo noturno do Aerolula.
Dois dias depois de aplicar o conto do canil
na capital gaúcha, a presidente foi mentir em
Itajubá. Caprichando na pose da supergerente
que chegou de trem-bala para passear de
barco nas águas já transpostas do Rio São
Francisco, a candidata à reeleição inaugurou
uma fábrica que não construiu, jurou em
comícios disfarçados de entrevistas que
não estava em campanha e, antes de seguir
viagem, deu conselhos aos interessados em
tomar-lhe o emprego. “Acredito que, para as
pessoas que querem concorrer ao meu cargo,
elas têm de se preparar, estudar muito, ver
quais são os problemas do Brasil”, disse a

DILMA JAZ NO MAUSOLÉU DAS BESTAS QUADRADAS 14


AUGUSTO NUNES

inventora do dilmês, subdialeto que proíbe


o usuário de dizer coisa com coisa.
Um Tancredo Neves teria revidado o
conselho com a constatação: a cabeça baldia
de Dilma é que precisava ser urgentemente
estudada — e por uma junta de especialistas.
Sempre gentis, os adversários se recolheram
ao mais estridente silêncio.
Essa reveladora mudez foi inaugurada na
campanha de 2010, ao longo da qual Dilma
repetiu que construiria 6 mil creches até o
fim de 2014.
Uma creche para cem crianças tem em média
600 metros quadrados, demora seis meses para
ficar pronta e custava, na época, no mínimo R$
300 mil. Admita-se que Dilma talvez estivesse
convencida de que governar é construir
creches. Faz de conta que decidira concentrar
na semeadura de unidades do gênero todas as
verbas destinadas a investimentos públicos.
Ainda assim, restariam problemas de bom

DILMA JAZ NO MAUSOLÉU DAS BESTAS QUADRADAS 15


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tamanho. Para cumprir a promessa, ela teria


de inaugurar 1.500 creches por ano. São 135
por mês. Mais de quatro por dia.

PARA SORTE DE DILMA, A ERA


DA MEDIOCRIDADE TRANSFORMOU
NUMA ESPÉCIE EM EXTINÇÃO
A FINA LINHAGEM DOS GRANDES
POLÍTICOS BONS DE BRIGA,
ÁGEIS NO RACIOCÍNIO
E RÁPIDOS NO GATILHO

O desfile de tapeações foi encerrado com


a louvação do deslumbramento sobre trilhos
que desde 2007 só apitou na imaginação
de Dilma. “Nosso projeto é que o trem-
bala esteja integralmente pronto em 2014
ou pelo menos o trecho entre Rio e São
Paulo”, reincidiu a babá do Brasil Maravilha
que Lula pariu. “Pretendemos ter os trens
em funcionamento para a Copa, até porque

DILMA JAZ NO MAUSOLÉU DAS BESTAS QUADRADAS 16


AUGUSTO NUNES

esta é uma região muito importante em


termos de movimentação na Copa.”
Com o fim da competição que será sempre
lembrada por aqueles 7 a 1, os estádios que
sangraram os cofres públicos viraram colossos
sem serventia, o trem-bala segue enfurnado
na cabeça de outra farsante e os milagres da
mobilidade urbana não desceram do palanque.
Os metrôs subterrâneos, de superfície ou
elevados, os trens metropolitanos com ar-
condicionado, o mundaréu de aeroportos,
as rodovias de matar gringo de inveja, nada
disso se tornou visível. A única obra de grande
porte inaugurada pela presidente de um país
cuja infraestrutura implora por socorros
urgentes fica em Cuba: o Porto de Mariel,
que engordou a Odebrecht e emagreceu o
BNDES em US$ 1 bilhão.
A supergerente do Brasil foi só um embuste
vendido a multidões de eleitores abúlicos por
políticos e jornalistas que perderam o juízo,

DILMA JAZ NO MAUSOLÉU DAS BESTAS QUADRADAS 17


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a sensatez ou a vergonha. Em contrapartida,


ganharam empregos, favores ou dinheiro. Dilma
foi despejada do emprego por incompetência
e malandragem. Fantasiada de vítima de um
golpe, tentou garantir o foro privilegiado
como senadora. Conheceu a morte política
em vida, decretada pelo eleitorado mineiro.
O fantasma ressurge com frequência por aí
— nas aparições mais recentes, confirmou
que torce pelo vírus chinês. Mas Dilma Vana
Rousseff já está alojada para sempre no
mausoléu das perfeitas bestas quadradas.

DILMA JAZ NO MAUSOLÉU DAS BESTAS QUADRADAS 18


17 ABRIL 2020

RETRATO 3X4
(NÃO AUTORIZADO)
DE JOSÉ DIRCEU
O colecionador de fiascos agora
planeja o Brasil socialista que virá
com o fim da pandemia
AUGUSTO NUNES

FOTO: REPRODUÇÃO
AUGUSTO NUNES

J
osé Dirceu de Oliveira e Silva, o mi-
neiro de Passa Quatro que virou líder
do movimento estudantil paulista em
1968 e provocou num único dia a prisão de
mais de mil militantes, o impetuoso guerri-
lheiro diplomado em Cuba com o codinome
Daniel que nunca disparou balas de verda-
de, o intrépido revolucionário que remode-
lou o nariz, fantasiou-se de comerciante de
gado, falsificou a carteira de identidade e
passou cinco anos escondido no interior do
Paraná, o capitão do time de Lula que seria
expulso de campo por ladroagem, o consul-
tor conhecido como Jay Dee que enriqueceu
como facilitador de negociatas, o Guerreiro
do Povo Brasileiro aclamado só pelas pla-
teias amestradas do PT — ele mesmo, o Zé
Dirceu velho de guerra resolveu dar um jei-
to na pandemia que anda assustando o Bra-
sil. Boa notícia para o vírus chinês. Faz qua-
se 60 anos que Zé Dirceu sai derrotado de

RETRATO 3X4 (NÃO AUTORIZADO) DE JOSÉ DIRCEU 21


AUGUSTO NUNES

todas as brigas que arruma, quebra a cara


em qualquer barulho que se meta.
O formidável acervo de fiascos foi inau-
gurado em 1968, quando o jovem presiden-
te da filial paulista da União Nacional dos
Estudantes resolveu tornar mais romântica
e emocionante a missão que lhe fora enco-
mendada no ano anterior: organizar o 30º
Congresso da UNE. De cara, ele resolveu que
o encontro seria clandestino. Cabeças me-
nos confusas ponderaram que talvez fosse
mais sensato realizar o evento no campus da
USP e à vista de todos. Embora o congresso
fosse proibido, argumentaram, a polícia he-
sitaria em invadir a universidade diante da
multidão de testemunhas.
Dirceu bateu o pé e pisou no acelerador:
os mais de mil participantes se reuniriam
numa fazenda nos arredores de Ibiúna, mu-
nicípio a 90 quilômetros de São Paulo com
menos de 10 mil habitantes. Até os cegos da

RETRATO 3X4 (NÃO AUTORIZADO) DE JOSÉ DIRCEU 22


AUGUSTO NUNES

cidadezinha contemplaram com estranheza


a passagem da procissão de forasteiros, qua-
se todos cobertos com um poncho. O ade-
reço cucaracha foi a salvação da lavoura.
O planejador do congresso não examina-
ra com a devida atenção detalhes relevantes.
Se fizesse uma visita prévia à fazenda, Dir-
ceu saberia que não havia acomodações para
mais de 200 pessoas. Se conferisse os bole-
tins meteorológicos, descobriria que anda-
va chovendo muito por lá — e mais ainda
choveria ao longo dos três dias de discursei-
ras e deliberações. Na primeira noite, cen-
tenas de jovens pouco familiarizados com
as coisas do campo tentaram dormir ao re-
lento, estendidos sobre o terreno enlamea-
do, com o poncho improvisado em cober-
tor e cobertura.
Na hora da alvorada, a turma da logísti-
ca constatou que esquecera de providenciar
mantimentos básicos. Dirceu mandou um

RETRATO 3X4 (NÃO AUTORIZADO) DE JOSÉ DIRCEU 23


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ordenança encomendar 1.200 pães por ma-


nhã a um padeiro que nunca fora além dos
300 por dia. Intrigado, o padeiro procurou
o delegado, que telefonou para o superior
hierárquico, que alertou o comandante da
Polícia Militar, que repassou o aviso ao se-
cretário de Segurança Pública. E todo mun-
do acabou na cadeia.
Foi a primeira das três temporadas na pri-
são. Com tempo de sobra, Dirceu planejou
o Brasil comunista com a mesma segurança
exibida na entrevista em que explicou como
será o Brasil pós-coronavírus. Poucas se-
manas de isolamento social bastaram para
concluir que a vitória sobre o coronavírus é
iminente. Antes de mais nada, aliás, o país
precisa reconhecer que só venceu a covid-19
porque Lula criou o SUS, a educação públi-
ca e gratuita, a merenda escolar, a Previdên-
cia e os bancos públicos, fora o resto. Tudo
somado, a nação deve a um ex-presidiário a

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montagem do que Dirceu chama de “Esta-


do de bem-estar social”.

SOCIALISMO, COMO ENSINA A


ESQUERDA DO PAÍS DO CARNAVAL
DESDE SEMPRE, É O COMUNISMO
QUE NÃO OUSA DIZER SEU NOME

Feita a constatação, ele revela os dois itens


da receita para liquidar a crise: calote da dí-
vida externa e congelamento da dívida in-
terna. Então chegaria a hora de rediscutir
o capitalismo. “O Brasil é rico, desenvolvi-
do”, anima-se o chefe da quadrilha do Men-
salão. O xis da questão está na estrutura tri-
butária, no sistema financeiro bancário e na
escandalosa concentração de renda. “É pre-
ciso uma revolução social no Brasil”, recita
o incansável lutador. “É preciso rediscutir o
capitalismo e repensar a forma de organiza-
ção da vida.” Tradução: é preciso moderni-

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AUGUSTO NUNES

zar o país com a instauração de uma ditadu-


ra socialista.
Socialismo, como ensina a esquerda do
País do Carnaval desde sempre, é o comu-
nismo que não ousa dizer seu nome. E en-
xergar o Mundo Novo numa velharia mor-
ta no parto e sepultada nos escombros da
União Soviética é o que Dirceu já fazia na
cadeia onde mofou entre outubro de 1968,
no desfecho do Woodstock sem cantoria
em Ibiúna, e setembro de 1969, quando foi
incluído no grupo de prisioneiros liberta-
dos em troca da sobrevivência do embai-
xador americano Charles Elbrick, seques-
trado no Rio por organizações partidárias
da luta armada.
Primeiro, o combatente cansado do ócio
na gaiola foi descansar na França. Empu-
nhou taças de vinho nos bistrôs de Paris até
decidir matricular-se no cursinho de guer-
rilheiro em Cuba. Em Havana, o esforçado

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AUGUSTO NUNES

calouro Daniel aprendeu a simular comba-


tes na cidade e no campo com fuzis de se-
gunda mão e balas de festim, submeteu-se
a uma cirurgia para ficar com o nariz adun-
co e declarou-se pronto para derrubar a ti-
ros o regime militar. Na primeira metade
dos anos 70, voltou ao Brasil para matar ou
morrer numa guerrilha rural que sucumbiu
antes do nascimento.
Ao ver que a guerra revolucionária era mais
feia do que imaginara, Dirceu optou pela
guerra conjugal. Em vez de trocar chum-
bo no campo, achou mais prudente trocar
alianças em Cruzeiro do Oeste. Apareceu na
cidade paranaense com o nome de Carlos
Henrique Gouveia de Mello, casou-se com
a dona da melhor butique do lugar e entrin-
cheirou-se por trás da caixa registradora do
Magazine do Homem. Só saía do esconde-
rijo para esconder-se em casa ou dar panca-
das em bolas de sinuca no bar da esquina.

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AUGUSTO NUNES

Ganhou o apelido de Pedro Caroço, aque-


le personagem de música que vivia de olho
na butique dela. Só em 1979, quando a anis-
tia foi decretada, a mulher com quem tivera
um filho cinco anos antes soube que vive-
ra ao lado do combatente comunista menos
combativo de todos os tempos. Livre de pe-
rigos, livrou-se da família, afilou o nariz com
outra cirurgia plástica e foi para São Paulo
ajudar a fundar o PT.
Antes de ameaçar São Paulo com a fracas-
sada candidatura a governador, governou
as bancadas do PT na Assembleia Legisla-
tiva e na Câmara dos Deputados. Em 2003,
depois de coordenar a campanha presiden-
cial, virou chefe da Casa Civil, foi promo-
vido a capitão do time de Lula e acreditou
que, ao fim de oito anos, seria o que Dilma
Rousseff foi. Mandou e desmandou até a ex-
plosão do escândalo protagonizado por Val-
domiro Diniz, o amigo vigarista com quem

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AUGUSTO NUNES

dividiu um apartamento em Brasília antes


de nomeá-lo assessor para Assuntos Par-
lamentares da Casa Civil. Em 2005, afun-
dado no escândalo do Mensalão, foi des-
pejado do gabinete no Planalto. Prometeu
lutar no Planalto e na planície, mobilizan-
do a companheirada dos “movimentos so-
ciais”. Conseguiu ser cassado por uma Câ-
mara dos Deputados que não pune sequer
serial killer de filme norte-americano.
Desempregado, descobriu que nascera
para prosperar como traficante de influên-
cia e facilitador de negócios urdidos por ca-
pitalistas selvagens. Em 2012, condenado
pelas bandalheiras do Mensalão, entrou no
presídio erguendo o braço esquerdo com
o punho cerrado enquanto uns gatos-pin-
gados saudavam o guerreiro do povo brasi-
leiro. Saiu da gaiola pronto para retomar a
vida bandida como oficial graduado da tro-
pa de ladrões multipartidários que compôs

RETRATO 3X4 (NÃO AUTORIZADO) DE JOSÉ DIRCEU 29


AUGUSTO NUNES

o maior esquema corrupto da história.


Enjaulado de novo pelo que fez na qua-
drilha do Petrolão, recuperou o direito de ir
e vir graças à usina de habeas corpus geren-
ciada pelo ministro Gilmar Mendes. Com
mais de 30 anos a cumprir, o isolamento so-
cial o alcançou desfrutando da prisão domi-
ciliar. A milhagem da tornozeleira que de-
veria usar não chega a cem passadas. Para
quem já se qualificou de “cadeiero”, o con-
finamento imposto pelo vírus chinês é tão
penoso quanto uma caminhada de 50 me-
tros para maratonistas.
Aos 75 anos, o homem que poderia ter sido
e não foi tanta coisa perdeu todas, perdeu
quase tudo, mas não perdeu a pose. “Tenho
uma biografia a preservar”, vive recitando.
Como também colecionou casamentos, de-
ve-se deduzir que de vez em quando alguma
mulher enxerga uma biografia a preservar
no alentado prontuário a esconder. Como

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AUGUSTO NUNES

sabem disso todos os brasileiros com mais


de 40 neurônios, poucos leitores desavisa-
dos perderam tempo com o livro de me-
mórias, lançado meses atrás, que oculta as
derrotas sofridas por um perdedor voca-
cional e os crimes cometidos pelo melian-
te sem remédio. O livro vale tanto quanto
o autor: nada.

RETRATO 3X4 (NÃO AUTORIZADO) DE JOSÉ DIRCEU 31


03 JULHO 2020

CIRO BUTTON.
OU BENJAMIN
GOMES
O sessentão estacionado na primeira
infância quer brincar de Robin Hood
no gabinete presidencial
AUGUSTO NUNES

FOTO: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO CONTEÚDO


AUGUSTO NUNES

C
andidato à Presidência da Repúbli-
ca pela quarta vez, Ciro Gomes re-
solveu chegar ao Palácio do Planalto
pelo caminho do meio, o mais adequado a
quem pretende mostrar-se igualmente dis-
tante da extrema direita fiel a Jair Bolsona-
ro e da extrema ladroagem comandada por
Lula. (No Brasil, usa-se extrema ladroagem
porque, como ensinam os doutores em ideo-
logia, a antiga extrema esquerda se dissol-
veu na frente ampla composta pelos 70%
que declararam guerra ao fascismo em de-
fesa da democracia. A porcentagem inclui
os nostálgicos do stalinismo homiziados em
movimentos sociais e os órfãos do maoismo
acampados no PCdoB. Essa caricatura das
Diretas Já também sonha com a liberdade
dos corruptos, mas isso não é coisa a ser dita
em manifestos.) O problema de Ciro é que a
estrada escolhida só se pode percorrer sem
sobressaltos por homens públicos providos

Ciro Button. Ou Benjamin Gomes 34


AUGUSTO NUNES

de sensatez, tolerância, equilíbrio e coerên-


cia. Nada a ver com uma figura que primeiro
fala e pensa depois. Isso, quando pensa.
O beligerante cearense nascido no inte-
rior paulista nem precisa de adversários
para perder disputas presidenciais: em 1998,
2002 e 2018, Ciro Gomes deixou claro que
sabe melhor que qualquer um como se der-
rota um Ciro Gomes. Na primeira tentativa,
a candidatura começou a fazer água quan-
do Ciro chamou de “burro” um eleitor que
dele divergiu durante a conversa telefônica
transmitida ao vivo por uma emissora de rá-
dio. E afundou de vez no momento em que
o candidato definiu o papel a ser desempe-
nhado durante a campanha pela atriz Patrí-
cia Pillar, com quem estava casado: dormir
com o candidato, resumiu o maridão. Qua-
se vinte anos depois, ao chamar para a bri-
ga o juiz Sergio Moro, Ciro confirmou que,
quando se trata de gente, graves defeitos de

Ciro Button. Ou Benjamin Gomes 35


AUGUSTO NUNES

fabricação não têm conserto.


“Hoje esse… esse Moro resolveu prendê
um… um bloguero?”, desandou no meio de
uma entrevista o campeão de bravatas e ba-
zófias. “Ele que mande me prendê, que eu
recebo a turma dele na bala.” Endereçado ao
juiz que simboliza a Operação Lava Jato, o
tiro ricocheteou na língua portuguesa antes
de atingir, de novo, a testa do pistoleiro que
faz mira só depois do disparo. Se fosse mais
gentil com o idioma, Ciro receberia à bala,
nunca “na bala”, os agentes da Polícia Fede-
ral que formavam o que chamou de turma
do Moro. Se respeitasse a inteligência alheia,
não diria que o juiz federal “resolveu prendê
um bloguero”. Moro apenas determinara que
um blogueiro incluído entre os alvos de uma
investigação prestasse depoimento.
Por terem lido o conto ou assistido ao fil-
me, quase todos os leitores conhecem o es-
tranho caso de Benjamin Button. Criado pelo

Ciro Button. Ou Benjamin Gomes 36


AUGUSTO NUNES

escritor F. Scott Fitzgerald e interpretado no


cinema por Brad Pitt, o personagem chega
ao mundo com aparência de octogenário e
vai remoçando com o tempo. Ultrapassa a
velhice, chega à maturidade, desfruta da ida-
de adulta, alcança a adolescência, faz escala
na infância, desaprende a falar e morre com
o frescor de quem acabou de vir ao mundo.
Disso muita gente sabe. O que poucos nota-
ram é que há no Brasil uma versão degene-
rada da criatura forjada pela imaginação de
Fitzgerald. Seu nome é Ciro Gomes.
Ao pousar na casa da família em Sobral,
a criança que nem aprendera a falar já era
um velho coronel sertanejo. Adolescente,
tinha ideias tão grisalhas que se filiou ao
PDS, legenda surgida das cinzas da Arena
para garantir a supremacia do regime mi-
litar no Congresso e nas assembleias legis-
lativas. “Entrei no PDS porque era o parti-
do do meu pai”, recita o primogênito que se

Ciro Button. Ou Benjamin Gomes 37


AUGUSTO NUNES

tornou deputado estadual com pouco mais


de 20 anos. Ele nunca revelou quais laços
de sangue determinaram as sucessivas tro-
cas de partido. Depois do PDS, estagiou no
PSDB, no PMDB, no PPS, no PSB e no PROS.
Antes de pousar no PDT, Ciro foi prefeito de
Fortaleza, governador do Ceará, ministro do
governo Lula, deputado federal e três vezes
candidato à Presidência.

AO POUSAR NA CASA DA FAMÍLIA


EM SOBRAL, A CRIANÇA QUE NEM
APRENDERA A FALAR JÁ ERA UM
VELHO CORONEL SERTANEJO

As mudanças de partido e de cargo não


alteraram a trajetória de Ciro Button. Ou
Benjamin Gomes. Quarentão, lembrou um
jovem inconveniente ao qualificar a capital
cearense de “puteiro a céu aberto”. Chegara
aos 50 quando revelou à atriz Letícia Saba-

Ciro Button. Ou Benjamin Gomes 38


AUGUSTO NUNES

tella, com a delicadeza de colegial que briga


todo dia na porta do colégio, uma regra que
não pode ser esquecida por quem faz políti-
ca: “Tem de meter a mão na merda”.
Aos 62 anos, anda cada vez mais parecido
com um delinquente juvenil em gestação.
Ataca Lula, ofende FHC, elogia Lula, insul-
ta Bolsonaro, critica Lula, manda militantes
do PT “à puta que os pariu”, afaga Lula. No
dia seguinte chama um general de “canalha”
e de “filhos da puta” eleitores anônimos que
o provocaram ao passar diante do bar em
Fortaleza. Troca palavrões por discurseira
de ministro do Supremo quando aparece na
TV, desfia rosários de números em lives e faz
o diabo para manter-se em campanha.
Tanto faz que, para escancarar na grava-
ção de um vídeo a dor que sentia ao pensar
no sofrimento dos moradores de rua amea-
çados pela pandemia de coronavírus, capri-
chou na pose de menor abandonado e ten-

Ciro Button. Ou Benjamin Gomes 39


AUGUSTO NUNES

tou cair no choro. Não apareceu uma única


e escassa gota no canto de qualquer olho.
Então, Ciro escavou no semblante rugas e
vincos tão convincentes que acabou inven-
tando o pranto convulsivo sem lágrimas.
Nada de mais para quem prometeu em 2018
pagar todas as dívidas dos milhões de ina-
dimplentes e agora promete arrecadar R$ 3
trilhões em dez anos cobrando impostos pe-
sadíssimos dos detentores de grandes for-
tunas. Os ricaços do Brasil que se cuidem:
um sessentão estacionado na infância quer
ser presidente da República e Robin Hood
ao mesmo tempo.
Ao virar setentão, o Benjamin Button à bra-
sileira vai acordar aos berros os companhei-
ros de berçário enquanto troca a calça curta
pela fralda. Na última semana de vida, já sem
saber falar, fará cara feia para a babá. Ou para
um dos irmãos. Bebês de colo são tão impre-
visíveis quanto um Ciro Gomes.

Ciro Button. Ou Benjamin Gomes 40


21 AGOSTO 2020

LULA É A VERSÃO
DEGENERADA
DO SÃO JORGE
DE BORDEL
O ex-presidente presidiário
continua fingindo ignorar
o que aconteceu na zona do PT
AUGUSTO NUNES

FOTO: MONTAGEM REVISTA OESTE/SHUTTERSTOCK


AUGUSTO NUNES

N
os anos 60, sobretudo nas pequenas
cidades, não era fácil atender ao cla-
mor dos hormônios que acossavam o
corpo, a imaginação e a alma de quem che-
gava à adolescência. Antes da revolução dos
costumes desencadeada no fim daquela dé-
cada, a virgindade devia ser preservada até
o casamento, e, portanto, a esfregação dos
namorados nunca ia muito longe. Letreiro
em vermelho neon na fachada de um mo-
tel só aparecia em estradas de filme norte-
-americano e drive-in só existia num punha-
do de capitais.
O jeito era abrandar a inquietude com pe-
cados solitários e torcer pela aparição dos
primeiros fiapos de barba. A penugem inau-
gural avisava que chegara a hora de arrumar
dinheiro com o irmão mais velho, escalar
como acompanhante um amigo que já co-
nhecesse o lugar e caprichar na pose de qua-
se adulto no momento de cruzar a porta de

Lula é a versão degenerada do São Jorge de bordel 43


AUGUSTO NUNES

entrada da zona do meretrício. Vencido o


último obstáculo, convinha rezar para não
fazer feio na estreia. As testemunhas ocula-
res do fiasco nunca primaram pela discrição.
Toda cidade com mais de 10 mil habitantes
tinha uma zona — um punhado de três ou
quatro casas plantadas à beira de uma estra-
dinha de terra que cortava aquele território
impreciso onde a área urbana acabava sem
que tivesse começado o mundo rural. Na re-
gião em que nasci, a casa principal tinha o
nome da dona. O elenco de atendentes so-
fria oscilações, mas invariavelmente incluía
dois destaques que garantiam um conjunto
de respeito. Mudavam o mobiliário e o ta-
manho da sala de espera, mudavam a me-
tragem e a quantidade dos quartos. Algumas
casas possuíam a varanda lateral, outras dis-
punham de um quintal para churrascos.
Nada disso importava muito. O que não
podia faltar de jeito nenhum eram uma cama

Lula é a versão degenerada do São Jorge de bordel 44


AUGUSTO NUNES

de casal em cada quarto e, pendurado numa


das paredes da sala, o quadro que mostra-
va São Jorge matando o dragão. Fosse qual
fosse a casa, eram o mesmíssimo São Jor-
ge, o mesmíssimo dragão, as mesmíssimas
imagens. Não havia uma única e escassa di-
ferença entre um quadro e os outros.

A ZONA ERA UMA ZONA, MAS SÃO


JORGE PARECIA NADA VER, NADA
OUVIR E NADA ESTRANHAR

Aquele duelo tremendo poderia fazer bonito


em museus pouco exigentes. As vestes mul-
ticoloridas e o corcel branco com as patas
empinadas rimam com o capacete do san-
to guerreiro. A extremidade da lança já par-
cialmente enterrada no lombo do dragão é
empunhada pela mão direita. A esquerda se-
gura as rédeas e, simultaneamente, envolve
com os dedos a haste para empurrar a lâmi-

Lula é a versão degenerada do São Jorge de bordel 45


AUGUSTO NUNES

na que perfura a couraça da fera. É o espe-


táculo da coragem temerária, que contrasta
com a expressão beatífica do herói.
Sim, todo santo de retrato parece sereno,
mas nenhum deles se mete com monstros
que soltam fogo pelas ventas. Só um São Jor-
ge de bordel conseguiria arrostar tais perigos
com aquela placidez inabalável. Inteiramen-
te absorvido pelo embate mortal, o extermi-
nador de dragões nunca prestava a menor
atenção ao que acontecia fora do retrato. Na
sala da zona, a farra corria solta sobretudo
nos fins de semana. Duplas de desconheci-
dos negociavam o acordo que os levaria a um
dos quartos, dos quais não paravam de chegar
sons proibidos para menores de idade. Um
adolescente imberbe era expulso aos berros
por ter esquecido que em nenhuma casa da
zona estudantes pagavam meia. A zona era
uma zona, mas São Jorge parecia nada ver,
nada ouvir e nada estranhar.

Lula é a versão degenerada do São Jorge de bordel 46


AUGUSTO NUNES

Demorei a compreender que o santo esta-


va lá não para garantir a moral e os bons cos-
tumes, muito menos para transformar zona
em convento, mas para matar um dragão,
e quem peleja com um bicho daqueles não
tem tempo a perder com batalhas de alcova
ou guerras extraconjugais. E então entendi
por que era chamado de “São Jorge de bor-
del” todo homem da cidade que mantinha
a cara de paisagem enquanto prosseguia, a
um palmo do nariz, o cortejo de iniquida-
des, bandalheiras, delinquências e safade-
zas domésticas. O filho abandonara os es-
tudos, não tinha emprego fixo e voltava da
rua cada vez com mais dinheiro. A filha se
apaixonara pelo cafajeste do bairro e dizia
que estava estudando na casa de uma ami-
ga quando chegava às 6 da manhã. A mulher
vivia arrastando vizinhos para conhecer o
quintal, o irmão furtava o cofrinho do sobri-
nho, o cunhado roubava a pensão da avó. E

Lula é a versão degenerada do São Jorge de bordel 47


AUGUSTO NUNES

a tudo o chefe da família seguia indiferente.


Concentrado na luta para pagar as contas
da casa, ele não tinha tempo nem paciência
para outras incumbências. Como um São
Jorge de bordel.
Como um São Jorge de bordel agiu Luiz
Inácio Lula da Silva desde sempre. O ex-
-líder sindicalista que começava a carreira
política morou oito anos num apartamento
pertencente ao advogado Roberto Teixei-
ra. Concentrado na fundação do PT, nem
perguntou quanto custava o aluguel nem
se devia pagar a taxa do condomínio. Can-
didato profissional à Presidência da Repú-
blica, não tinha tempo para saber de onde
vinha o dinheiro para as campanhas. Empe-
nhado em acabar com a pobreza, nem no-
tou que o filho trocara o ofício de tratador
do zoológico de São Paulo pelo vidaço de
empresário do ramo de informática.
Só depois da entrada em cena da Lava

Lula é a versão degenerada do São Jorge de bordel 48


AUGUSTO NUNES

Jato ficou claro que Lula sempre soube de


tudo o que ocorria na zona do PT. Fingiu
ignorar a catarata de bandalheiras porque
delas foi, sucessivamente, beneficiário, só-
cio majoritário e mentor antes de assumir
a chefia do maior esquema corrupto da his-
tória do Brasil. Lula já se comparou a Ti-
radentes, Getúlio Vargas, Juscelino Kubi-
tschek, Nelson Mandela e Jesus Cristo. A
devassa das catacumbas do Petrolão pro-
vou que Lula é apenas uma versão degene-
rada do São Jorge de bordel.
Numa zona de antigamente, o santo do
quadro interromperia o duelo por um tempo
e desceria da parede para, em nome da casa,
pedir desculpas à turma na sala. Num Bra-
sil imbecilizado pela ascensão dos idiotas, o
São Jorge que só luta a favor da bandidagem
pretende baixar no Supremo Tribunal Fede-
ral para avisar que anular os processos que
o instalaram na cadeia é pouco. Ele também

Lula é a versão degenerada do São Jorge de bordel 49


AUGUSTO NUNES

quer a prisão dos procuradores engajados


na Lava Jato e a condenação de Sergio Moro
ao degredo perpétuo. Se for atendido, os su-
perjuízes amigos serão convidados para a
festa da vitória na zona de São Bernardo.

Lula é a versão degenerada do São Jorge de bordel 50


09 OUTUBRO 2020

PEQUENO
GLOSSÁRIO DA
NOVILINGUA
LULOESQUERDISTA
Conheça o real significado
das expressões recitadas
pelos democratas mais
intolerantes do planeta
FOTO: SHUTTERSTOCK
AUGUSTO NUNES

A
nalfabetismo: 1. Deficiência promo-
vida a virtude no começo do século 21
para apressar a chegada de um envia-
do da Divina Providência ao Palácio do Pla-
nalto. 2. Qualidade depreciada por reacio-
nários preconceituosos, integrantes da elite
golpista e louros de olhos azuis.

asilado político: Comunista condenado


pela Justiça de outro país por homicídio
ou atentado terrorista. (Ex.: Cesare Battis-
ti foi promovido pelo governo do PT a asila-
do político.)

blogueiro progressista: 1. Jornalista que ja-


mais conseguiu emprego ou fracassou nos
órgãos de comunicação considerados im-
portantes. 2. Indivíduo que, embora viva da
venda de textos, seria reprovado com lou-
vor na prova de português do Enem mes-
mo que tivesse comprado uma relação das

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 53


AUGUSTO NUNES

questões escolhidas pelos organizadores.

Bolívar (Simón): Herói das guerras de li-


bertação da América do Sul que reencarnou
no fim do século passado com o nome de
Hugo Chávez.

bolivariano: Comunista que finge que não


é comunista.

Bolsa Família: O maior programa oficial de


compra de votos do mundo.

Bolsonaro (Jair): Hitler (Adolf) em portu-


guês do Brasil.

BNDES: Instituição que usou dinheiro dos


brasileiros para financiar a construção em
outros países de portos, hidrelétricas, linhas
de metrô e outras obras com orçamento su-
perior a R$ 1 bilhão.

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 54


AUGUSTO NUNES

camarada de armas: Companheiro di-


plomado em cursinho de guerrilha que só
disparou tiros de festim; guerrilheiro que
ignora onde fica o gatilho do fuzil. (Ex.:
Dilma Rousseff e José Dirceu são camaradas
de armas.)

Campo Democrático e Popular: Ajunta-


mento de militantes de partidos marxistas,
leninistas, stalinistas ou trotskistas, boliva-
rianos brasileiros, sindicalistas, onguistas,
estudantes profissionais, terroristas apo-
sentados, órfãos da União Soviética, flage-
lados do Muro de Berlim e veteranos das
manifestações de esquerda ocorridas entre
1848 e 1968.

cartão corporativo: Objeto retangular de


plástico usado para comprar tapioca por Or-
lando Silva, indicado pelo PCdoB para che-
fiar o Ministério do Esporte do governo Lula.

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 55


AUGUSTO NUNES

Casa Civil: 1. Conjunto de salas no 4° an-


dar do Palácio do Planalto que, entre 2003
e 2016, foi controlado por casos de polícia
que entravam sem bater no gabinete presi-
dencial. 2. Esconderijo; tugúrio; catacumba.
3. Sede de quadrilhas formadas por amigos
ou parentes do ministro-chefe.

Comissão da Verdade: 1. Grupo de compa-


nheiros escalados para descobrir qualquer
coisa que ajude a afastar a suspeita, dissemi-
nada por Millôr Fernandes, de que a turma
da luta armada não fez uma opção política,
mas um investimento. 2. Entidade concebi-
da para apurar crimes cometidos por adver-
sários do lulopetismo.

companheiro: Qualquer ser vivo ou morto


que tenha ajudado (ou possa ajudar) Lula a
ganhar alguma eleição.
AUGUSTO NUNES

consultor: 1. Companheiro traficante de in-


fluência. (Ex.: Antonio Palocci é consultor.) 2.
Companheiro que facilita negócios escusos
envolvendo o governo e capitalistas selva-
gens. (Ex.: José Dirceu é consultor.) 3. Com-
panheiro que, enquanto espera um cargo no
governo federal, recebe mesadas e indeni-
zações de empresas que favoreceu no em-
prego antigo ou vai favorecer no emprego
novo. (Ex.: Fernando Pimentel é consultor.)

contrato sem licitação: Assalto aos cofres


públicos sem risco de cadeia.

controle social da mídia: Censura exerci-


da por sumidades do PT que adivinham o
que o povo deve ver, ler ou ouvir.

corrupção: 1. Malfeito envolvendo inimigos


do PT (Ver malfeito). 2. Praga surgida no go-
verno FHC e erradicada por Lula.

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 57


AUGUSTO NUNES

crime comum: Assassinato de um prefei-


to do PT por motivos políticos e financei-
ros, amplificados por divergências entre in-
tegrantes de um esquema de arrecadação de
dinheiro sujo para bancar campanhas elei-
torais. (Ex.: A morte de Celso Daniel foi um
crime comum.)

Cuba: 1. Ditadura que obriga o povo a ser fe-


liz o tempo todo. 2. Berço de uma forma de
democracia em que o governante, em vez de
ser escolhido pelo povo, escolhe o povo que
vai governar e prende o resto do eleitorado.

cueca: Traje íntimo usado por petistas cea-


renses também como cofre para transporte
de moeda estrangeira adquirida criminosa-
mente.

democracia popular: Ditadura chefiada por


um esquerdista. (Ex.: A Venezuela de Nicolás

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 58


AUGUSTO NUNES

Maduro é uma democracia popular; Cuba é a


mais perfeita democracia popular.)

direita: Categoria em que devem ser enqua-


drados todos os partidos e indivíduos que
não admiram Lula nem apoiam candidatos
do PT.

ditador: Tirano a serviço do imperialismo


estadunidense. (Ver líder)

ditadura: Qualquer tipo de regime chefia-


do por um direitista, mesmo que tenha sido
eleito pelo voto popular.

ditadura fascista: Qualquer espécie de go-


verno liderado por Jair Bolsonaro ou Benito
Mussolini.

ditadura do proletariado: Forma de de-


mocracia popular tão avançada que dispen-

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 59


AUGUSTO NUNES

sa o povo de votar ou dar palpites porque os


companheiros dirigentes sabem tudo o que
o povo quer, mas é melhor não dizer isso em
público porque os trabalhadores comuns
não vão entender direito porque viver sem
liberdade é muito bom.

doutor honoris causa: Diploma conferido


por universidades federais a um ex-presi-
dente que nunca leu um livro, não sabe es-
crever e acha que “honoris” é um Honório
com erro de revisão.

elite golpista: Ajuntamento que abrange to-


dos os bilionários, os ricos, os integrantes
da classe média, os pobres e os miseráveis
que não votam no PT.

espetacularização do nada: Expressão de-


corada por Dilma Rousseff para ensinar que
o que parece um tremendo escândalo é só

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 60


AUGUSTO NUNES

uma distorção visual causada por um tipo de


miopia decorrente de efeitos especiais pro-
duzidos pela imprensa.

esquerdista: 1. Democrata puro. 2. Defen-


sor da liberdade de expressão que só proíbe
opiniões divergentes. 3. Quem assina qual-
quer manifesto contra o governo fascista.

fascista: 1. Indivíduo que votou em Jair Bol-


sonaro. 2. Misógino, racista, homofóbico. 2.
Quem não segue os mandamentos do cam-
po democrático. (Ver campo democrático)

faxineira ética: Fantasia usada por Dilma


Rousseff para fingir que varreu o lixo em-
purrado para baixo do tapete ou guardado
no bolso do avental.

Foro de São Paulo: 1. Feira internacional


que agrupa remanescentes de espécies ideo-

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 61


AUGUSTO NUNES

lógicas extintas na Europa e ainda existen-


tes na América Latina. 2. Quermesse desti-
nada a arrecadar fundos para a Irmandade
dos Órfãos do Muro de Berlim.

greve: 1. Forma de luta a serviço dos opri-


midos (quando a paralisação prejudica go-
vernos contrários ao PT). 2. Forma de chan-
tagem a serviço dos opressores do povo
(quando a paralisação prejudica governos
controlados pelo PT).

Hitler (Adolf): Bolsonaro (Jair) em alemão.

impeachment: 1. Instrumento político-jurí-


dico concebido para afastar governantes que
tenham cometido crimes de responsabilida-
de, quando aplicado a presidentes conserva-
dores. (Ex.: Fernando Collor foi afastado pelo
impeachment.) 2. Instrumento político-jurí-
dico manipulado por direitistas para camu-

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 62


AUGUSTO NUNES

flar um golpe de Estado contra governantes


que só pensam no povo, quando aplicado a
esquerdistas. (Ex.: O impeachment de Dilma
Rousseff foi golpe.)

imprensa popular: 1. Ajuntamento de meios


de comunicação que publicam textos escri-
tos por quem serve ao PT por vassalagem,
idiotia ou dinheiro.

inclusão social: Milagre inventado pela es-


querda brasileira que permite a transferên-
cia de pobres para a classe média sem au-
mento salarial.

Jair Bolsonaro: 1. Grande Satã; demônio;


capeta; anticristo; satanás; diabo. 2. Fascis-
ta. 3. Nazista. 4. Nome que, mencionado per-
to do SuperLula, provoca no herói brasileiro
efeitos semelhantes aos observados no Su-
per-Homem perto da kriptonita verde.

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 63


AUGUSTO NUNES

líder: Ditador esquerdista. (Ex.: Fidel Castro


foi líder de Cuba por quase meio século.)

malfeito: Caso de corrupção protagoniza-


do por esquerdistas. (Ver corrupção)

maracutaia: 1. Expressão popularizada por


Lula no século passado em discurseiras que
denunciava o que todos os outros partidos
faziam. 2. Expressão abolida por Lula desde
que o PT passou a usá-la mais e melhor que
todos os ladrões concorrentes.

Mensalão: O segundo maior esquema cor-


rupto desde o Descobrimento do Brasil.

meu querido/minha querida: 1. Expressões


usadas por Lula quando recebe de Dilma
Rousseff papéis levados por um certo “Bes-
sias”. 2. Expressões usadas por Dilma Rou-
sseff quando está conversando em público

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 64


AUGUSTO NUNES

com jornalistas ou ministros e não pode sol-


tar o palavrão entalado na garganta.

mídia golpista: Imprensa independente.

militância: Rebanho formado por ovelhas


tão obedientes que, se o Grande Pastor or-
denar, tentará atravessar o despenhadeiro
sem ponte.

MST: 1. Entidade liderada por um campo-


nês (ou campesino) incapaz de distinguir
uma enxada de um trator. 2. Aglomerado de
lavradores que só viram de perto uma foi-
ce e um martelo nas bandeiras da falecida
União Soviética.

Né?: Corruptela de “não é?” adotada por Dil-


ma Rousseff para permitir que o neurônio
solitário repouse alguns segundos depois de
uma frase sem pé nem cabeça e antes de ou-

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 65


AUGUSTO NUNES

tra que não tem começo, meio ou fim.

no que se refere: Expressão usada por Dil-


ma para avisar que lá vem besteira.

Nuncaantesnestepaís: 1. Expressão deco-


rada por Lula para ensinar ao rebanho que
o Brasil começou em 1° de janeiro de 2003.

PAC. A maior concentração de canteiros de


obras abandonados do planeta.

Palestrante: Ofício que rendeu a sumidades


da retórica como Lula até 100 mil dólares por
noite, pagos por empresários dispostos a ou-
vir em 50 minutos o que o ex-presidente pas-
sou oito anos dizendo de graça todo santo dia.

PT: Seita que tem Lula como único deus.

perseguido político: Esquerdista que inves-

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 66


AUGUSTO NUNES

tiu na luta armada quando jovem para pros-


perar na velhice com indenizações e mesa-
das bancadas pelos pagadores de impostos.

petista: 1. Devoto de Lula. 2. Indivíduo que


acredita que o Mensalão e o Petrolão não
existiram. 3. Virgem de bordel (fig).

Petrobras: 1. Estatal transformada por Lula


em patrocinadora de campanhas eleitorais.
2. Conjunto de cofres saqueados por políti-
cos do PT, aliados de Lula, empreiteiros e de-
mais integrantes do esquema do Petrolão.

Petrolão: O maior esquema corrupto ocor-


rido desde o Dia da Criação que, segundo os
lulopetistas, nunca existiu.

Predo II: Dom Pedro II quando evocado


em discursos de Lula. (Ver Transposição do
São Francisco)

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 67


AUGUSTO NUNES

pré-sal: Presente que Lula ganhou de Deus


por ter dispensado o Criador de continuar
cuidando do Brasil.

Presidenta: Forma de tratamento usada na


presença de Dilma Rousseff por companhei-
ros apavorados com a reprise daquele pito
que fez José Sérgio Gabrielli cair no choro.

preso político: Chefões do PT punidos com


temporadas na cadeia por corrupção e lava-
gem de dinheiro. (Ex.: Lula foi o mais injusti-
çado dos presos políticos do Brasil.)

recursos não contabilizados: Dinheiro


extorquido sem recibo de empresários que
prosperaram com a ajuda do governo, em-
preiteiros de obras públicas ou publicitários
presenteados com contratos sem licitação.

sindicalista: Ex-operário que abando-

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 68


AUGUSTO NUNES

nou o emprego regular no século passa-


do para exercer o lucrativo ofício de pe-
lego neste milênio.

Sírio-Libanês: Hospital a que recorrem Al-


tos Companheiros com problemas de saúde
para que o SUS ofereça mais vagas aos po-
bres e miseráveis. (Ver SUS)

SUS: Filial em tamanho gigante do Sírio-Liba-


nês reservada a quem não tem dinheiro para
internar-se na matriz. (Ver Sírio-Libanês)

Transposição do São Francisco: Gastança


multibilionária inventada pelo ex-presiden-
te Lula para transformar a República em rei-
no e virar Dom Pedro III. (Ver Predo II)

trem-bala: Trem fantasma que partiu da ca-


beça de Lula, estacionou na cabeça de Dil-
ma Rousseff, descarrilou em algum trecho

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 69


AUGUSTO NUNES

imaginário da linha Rio-São Paulo e nunca


mais foi visto.

União Nacional dos Estudantes (UNE):


1. Entidade que representou os universitá-
rios brasileiros até ser estatizada em 2003 e
transformar-se na União Nacional dos Estu-
dantes Amestrados (UNEA), premiada pela
vassalagem ao governo com uma sede nova
projetada por Oscar Niemeyer que nunca
foi construída. 2. Antigo balcão de venda de
carteirinhas que garantiam meia-entrada.
3. Clube recreativo dirigido por estudantes
que demoram pelo menos 15 anos para con-
cluir um curso que dura cinco.

Pequeno Glossário da Novilingua Luloesquerdista 70


13 NOVEMBRO 2020

NUNCA HAVERÁ
UMA PRIMAVERA
COMO AQUELA
Assim era a vida no Brasil que sabia
praticar o convívio dos contrários
FOTO: MONTAGEM REVISTA OESTE/ SHUTTERSTOCK
AUGUSTO NUNES

O
s assombros daquela primavera co-
meçaram com a chuva de rã que teve
como epicentro o jardim na frente da
casa de Eulália Menon Montenegro. De pé na
soleira da porta de entrada, com o semblan-
te sereno de quem já não se surpreende com
nada, ela olhava alternadamente para os pe-
quenos objetos voadores que continuavam
desabando na grama ou nas roseiras e para
o sobrinho encolhido na cadeira de balan-
ço austríaca, pálido de susto, com um gibi
do Flash Gordon na mão direita, a esquer-
da agarrada ao braço de madeira e tentando
decifrar o que estava acontecendo naquele
fim de tarde de 27 de setembro de 1957.
“Essa é a maior que já vi”, murmurou Eu-
lália. Fez uma pausa e completou: “Quando
chove rã, coisas estranhas acontecem em se-
guida”. Assim ela avisou que nunca haveria
uma primavera como a de 1957, que come-
çou com a tempestade de batráquios e pros-

Nunca haverá uma primavera como aquela 73


AUGUSTO NUNES

seguiu com uma sequência de esquisitices,


sempre envolvendo o céu, e acabou engo-
lindo todas as estações seguintes até cessar,
tão misteriosamente quanto chegou, no iní-
cio da primavera de 1958.
Duas semanas depois da chuva de rã, soube
pela minha mãe que a estrelinha que pisca-
va no céu desde 4 de outubro era a primeira
nave espacial lançada pelos comunistas rus-
sos. Não entendi direito por que a invenção
do Sputnik 1 representava uma humilhação
para os norte-americanos e uma ameaça à
liberdade, mas alistei-me na guerra contra
a Rússia e o restante da União Soviética ao
descobrir que o Sputnik 2, com decolagem
marcada para 4 de novembro, seria tripula-
do pela cadela Laika numa viagem só de ida.
Vi nos jornais o olhar tristíssimo da ca-
chorra condenada sumariamente à morte
sem culpa e estava pronto para esquentar a
Guerra Fria quando o povo do lugar quase

Nunca haverá uma primavera como aquela 74


AUGUSTO NUNES

caiu de costas com a cena de cinema: pen-


durada num paraquedas, uma cadela que só
podia ser Laika saiu do meio das nuvens,
aproximou-se sem pressa da superfície da
terra, pousou na estradinha que começava
onde as casas acabavam e foi recolhida por
dois homens a bordo de um jipe que acele-
rou rumo a um destino ignorado. Os 10 mil
moradores curaram a frustração com a cer-
teza de que Laika não morreu. Voltou à Ter-
ra e aterrissou na cidade em que nasci.

NINGUÉM PROMETIA, COMO AGORA


É MODA, “UNIFICAR” AS TROPAS
QUE REGRESSAVAM DO FRONT

Os meses seguintes produziram assom-


bros sempre vindos lá do alto. Miniaturas
de paraquedas desceram do céu com a re-
gularidade de um voo comercial, para pre-
sentear meus conterrâneos com abridores

Nunca haverá uma primavera como aquela 75


AUGUSTO NUNES

de garrafas da Antártica; um paraquedista


contratado pela prefeitura para abrilhantar
a festa do aniversário da cidade saltando de
um teco-teco e descendo bem no centro do
campo de futebol foi traído pelos ventos e
se enroscou de tal forma na mangueira do
colégio das madres salesianas que só con-
seguiu chegar ao solo depois de socorrido
por bombeiros de Araraquara; a imagem de
Nossa Senhora refletida numa castigada lata
de banha juntou no local do milagre uma
multidão de devotos dispersada aos berros
pelo padre Lourenço Cavallini; uma crate-
ra de bom tamanho surgiu de manhã num
trecho de terra que era plano até a noite an-
terior, provando que um disco voador visi-
tara sem aviso prévio a Fazenda Paraguaçu;
em setembro de 1958, enfim, um pequeno
avião pousou na pista de terra da Fazenda
Contendas — e Jânio Quadros apareceu em
Taquaritinga. Entre tantas aparições estra-

Nunca haverá uma primavera como aquela 76


AUGUSTO NUNES

nhíssimas, nenhuma pareceu-me tão inve-


rossímil. Ainda convalescendo do choque,
ouvi meu pai comunicar que nós éramos ja-
nistas. Os outros, os adversários, esses eram
ademaristas, pois o chefe da seita a que per-
tenciam se chamava Ademar de Barros.
A polarização, como se vê, nada tem de
nova. A diferença é que nos anos 50, so-
bretudo nas pequenas cidades do Brasil, a
temperatura política só rondava o ponto
de combustão nas campanhas eleitorais.
Antes e depois do tiroteio retórico nos co-
mícios, os antagonistas praticavam com
adorável naturalidade o convívio dos con-
trários. Mais: filhos de janistas e ademaris-
tas dividiam todos os quintais — muitos
se tornariam amigos de uma vida inteira
— e mulheres dos candidatos rivais troca-
vam receitas enquanto os maridos troca-
vam chumbo verbal nos palanques.
Se os líderes janistas e ademaristas fossem

Nunca haverá uma primavera como aquela 77


AUGUSTO NUNES

devidamente interrogados a respeito, talvez


não conseguissem identificar as razões das
desavenças. Em ambos os lados faltava um
conjunto de ideias e princípios a defender
ou a atacar. Havia apenas dois líderes popu-
listas a venerar. “Confesso que tenho sau-
dade do Ademar”, disse-me Jânio Quadros
em 1980. Faz sentido: nenhum teria existido
politicamente sem o outro. E nenhuma das
seitas sobreviveu à morte física do sumo sa-
cerdote. Quem vencia a eleição municipal,
claro, garantia que governaria para toda a
cidade, mas as coisas paravam por aí. Nin-
guém prometia, como agora é moda, “unifi-
car” as tropas que regressavam do front.
Cabe a um candidato vitorioso pôr em prá-
tica o programa que defendeu, alcançar as
metas que fixou e compreender que não se
deve perder tempo com vinganças e desfor-
ras. A convivência civilizada depende dos
eleitores: só existirá se ficar estabelecido

Nunca haverá uma primavera como aquela 78


AUGUSTO NUNES

que a democracia genuína é inseparável do


convívio dos contrários. Os que sonham
com a inexistência de gente que pensa di-
ferente são órfãos de ditaduras à caça do
regime de partido único.
Todos os países livres (e mesmo os parti-
dos) vivem divididos. Isso é da vida. O pro-
blema é enxergar em quem discorda um
inimigo a exterminar. Mao Tsé-tung, por
exemplo, acreditava que “a política é a guer-
ra sem mortos, e a guerra é a política com
mortos”. Mais uma evidência de que o fun-
dador da ditadura chinesa foi uma perfeita
besta quadrada.

Nunca haverá uma primavera como aquela 79


11 DEZEMBRO 2020

AUTÓPSIA
DE UMA CHICANA
Gilmar Mendes está treinando
para ser o pior decano
da história do Supremo
FOTO: MONTAGEM REVISTA OESTE/STF/SCO
AUGUSTO NUNES

N
o recesso do lar, Gilmar Mendes usa
linguagem de gente, diz frases inte-
ligíveis e até encurta palavras. Sua
mulher, Guiomar Feitosa, por exemplo, vi-
rou simplesmente Guio. Em retribuição, ela
passou a chamá-lo de Gil. Além de economi-
zarem duas consoantes e uma vogal, os ape-
lidos têm um som mais carinhoso. Também
os trajes caseiros são singelos. O Gilmar do-
méstico gosta da linha bermudão, camisa de
mangas curtas, meias soquete e par de tênis
novinho em folha. É esse o combo popula-
rizado pelas fotos que o mostram zanzando
por Lisboa, sempre perseguido por algum
turista brasileiro com um celular na mão e
um cacho de insultos na ponta da língua.
As coisas mudam quando está em ação o
ministro do Supremo Tribunal Federal. Ter-
no escuro e gravatas sombrias, óculos de pri-
meiro da classe no grupo escolar, os instintos
mais primitivos traduzidos nas caras e bocas

Autópsia de uma Chicana 82


AUGUSTO NUNES

desenhadas pelos lábios possantes, o cen-


troavante rompedor do Timão da Toga faz
bonito com seu repertório de jogadas repul-
sivas. Carrinhos por trás, gols de mão, coto-
veladas no nariz do adversário, cravos da
chuteira pisoteando braços de goleiro, pon-
tapés no tornozelo — é vasto o repertório
de lances abjetos assimilados pelo bacharel
em Direito nascido em Mato Grosso que ga-
nhou do presidente Fernando Henrique Car-
doso uma vaga no STF. Foi a recompensa pe-
los serviços prestados aos chefes e amigos no
comando da Advocacia-Geral da União.
A toga que o cobre adverte: sai Gil e en-
tra no Pretório Excelso o Eminente Minis-
tro Gilmar Mendes, o Maritaca de Diaman-
tino, o Gerente-Geral da Fábrica de Habeas
Corpus para Culpados, o Morubixaba da Se-
gunda Turma, o Juiz dos Juízes, o Doutor
em Tudo. Muda o dialeto. Nos votos, troca
“proibição” por “vedação”, “caminho” por

Autópsia de uma Chicana 83


AUGUSTO NUNES

“senda”, “proteger” por “albergar”. Nada


acontece contra alguém, mas “em desfavor
de”. Nenhum assunto é discutido: está “em
comento”. Ao latinório e ao juridiquês cas-
tiço, Gilmar adiciona citações de juristas
alemães e trechos em inglês sem tradução.
No fim do texto impenetrável, o supermi-
nistro condensa o espetáculo da arrogância
em três palavras: “É como voto”.
Essa é a última linha do inverossímil pala-
vrório em que Gilmar Mendes tentou provar
que é inconstitucional o trecho da Consti-
tuição que proíbe a reeleição dos presiden-
tes da Câmara e do Senado. As 64 páginas
caberiam na seguinte frase: “Para que não
haja perigo de melhorar, vamos manter onde
estão o Rodrigo Maia e o Davi Alcolumbre”.
Ao optar por um calhamaço que funde todos
os truques, trejeitos e trapaças que marcam
seu estilo, Gilmar ministrou uma aula mag-
na de tapeação. E produziu um documento

Autópsia de uma Chicana 84


AUGUSTO NUNES

que merece figurar como fecho glorioso de


uma História Universal da Chicana.

SEGUNDO GILMAR, TODOS OS


REGIMES E ÉPOCAS PROVAM
QUE NÃO HÁ DEMOCRACIA SEM
REELEIÇÃO NO LEGISLATIVO

Chicana, explicam os dicionários, é um


substantivo feminino que significa “proces-
so artificioso, abuso de recursos e formalida-
des em questões judiciais; querela de má-fé,
cavilação; ardil, sofisma”. O voto de Gilmar
é tudo isso — e mais um pouco. O objetivo
era jogar no lixo o parágrafo do artigo 54 que
fixa em dois anos o mandato dos membros
das mesas do Congresso, “vedada a recon-
dução para o mesmo cargo na eleição ime-
diatamente subsequente”. Para deixar claro
que não é bem assim, o ministro da defe-
sa de bandidos faz uma viagem no tempo e

Autópsia de uma Chicana 85


AUGUSTO NUNES

no espaço que tem vaga assegurada na mais


exigente Antologia das Discurseiras de Por-
ta de Cadeia.
O voo do Maritaca de Diamantino come-
ça pelo Parlamento britânico, faz uma es-
cala nos Estados Unidos, avança para a Es-
panha renascida das cinzas da ditadura de
Francisco Franco, recua para os tempos do
imperador Pedro II, sobrevoa a República
Velha, ameaça pousar no Brasil dos anos 50,
arremete ao topar com a ditadura militar
instaurada em 1964 e acaba reduzido a des-
troços pela colisão com os fatos.
Segundo Gilmar, todos os regimes e épocas
provam que não há democracia sem reelei-
ção no Legislativo. E por que não no Brasil?
Porque a Constituição de 1988 incorporou
um entulho autoritário legado pelos gene-
rais-presidentes, mais especificamente por
Artur da Costa e Silva. Foi o pai do Ato Insti-
tucional nº 5 quem resolveu livrar-se de par-

Autópsia de uma Chicana 86


AUGUSTO NUNES

lamentares que, na chefia das casas do Con-


gresso, viviam colocando pedras no caminho
dos liberticidas. Gilmar louva sobretudo dois
heróis da resistência: o senador paulista Auro
de Moura Andrade e o deputado mineiro José
Bonifácio Lafayette de Andrada.
Haja safadeza. Quem conhece a Histó-
ria aprendeu que foi Auro quem, em 2 de
abril de 1964, declarou vaga a Presidência
da República porque João Goulart deixara
o país sem autorização do Legislativo. Até
o gramado da Praça dos Três Poderes sabia
que João Goulart estava em Porto Alegre. O
descendente de José Bonifácio de Andrada
e Silva, o Patriarca da Independência, era o
presidente da Câmara em 13 de dezembro
de 1968, a sexta-feira em que foi decretado o
AI-5. Zezinho Bonifácio apareceu no plená-
rio para avisar que o Congresso entraria em
recesso por tempo indeterminado. Irritado
com a tranquilidade do presidente, o depu-

Autópsia de uma Chicana 87


AUGUSTO NUNES

tado Celso Passos, do MDB mineiro, berrou


o desafio: “Seja mais Andrada e menos Ze-
zinho”. O desafiado preferiu a segunda op-
ção: olhou na direção de Passos, fechou o
punho direito, cruzou os braços e revidou
com uma “banana”.
Entre uma mentira e um soco na verdade,
Gilmar infiltra citações dos atuais ministros
do Supremo que nada têm a ver com o caso
da reeleição. Todos menos Marco Aurélio
Mello. A exceção faz sentido. Marco Aurélio
é o atual decano. E Gilmar herdará o pos-
to em julho de 2021, com a aposentadoria
do ministro indicado pelo primo Fernando
Collor. Aos olhos do Maritaca de Diamanti-
no, Marco Aurélio é um interino que exerce
imerecidamente as funções do Pavão de Ta-
tuí. A autópsia da chicana disfarçada de voto
informa que Gilmar Mendes já está treinan-
do para entrar na história como o pior de-
cano de todos os tempos.

Autópsia de uma Chicana 88


22 JANEIRO 2021

DUAS MULHERES.
OU DOIS SUCOS
DE LARANJA
A derrapagem do embaixador
chinês lembrou o fiasco dos jornalistas
em Buenos Aires
FOTO: MONTAGEM REVISTA OESTE/ SHUTTERSTOCK
AUGUSTO NUNES

N
o fim da tarde, os dois jornalistas da
revista Veja desembarcaram em Bue-
nos Aires com a imaginação bailando
ao som de sensualíssimas letras de tango.
Do aeroporto foram para o hotel no centro
da cidade com a libido repartindo com Car-
los Gardel a interpretação de Por una Cabe-
za. Apressaram o check-in e subiram para o
apartamento prontos para a missão notur-
na definida já na decolagem no Brasil.
— Hoje vamos pegar mulher — repetiu o
repórter sem ter sequer desafivelado a mala.
— Vamos — endossou o fotógrafo antes
de terminar a contagem dos cabides enfilei-
rados no canto do guarda-roupa.
— Começamos pela Corrientes — ale-
grou-se o repórter, caprichando na pose de
expert em noite argentina.
— La calle que nunca duerme… — animou-
-se o fotógrafo, tentando camuflar a escassa
intimidade com o sotaque portenho.

Duas mulheres. Ou dois sucos


de laranja 91
AUGUSTO NUNES

Saíram do hotel às 9 da noite. Nas cinco


horas seguintes, com sucessivas escalas em
pizzarias, bares, churrascarias e cabarés,
exercitaram as pernas num buquê de ruas e
avenidas — Corrientes, Florida, Rivadavia,
Maipu, Tucumán e outras relíquias do ve-
lho centro. Poucas esquinas deixaram de ver
passar a dupla movida a libido, mas a noita-
da foi um fiasco: nenhum deles conseguiu
companhia feminina. Os dois estavam a 5
metros da entrada do hotel quando o repór-
ter resolveu que ainda não chegara a hora da
rendição. Haveria uma tentativa derradeira.

POUCAS ESQUINAS DEIXARAM DE VER


PASSAR A DUPLA MOVIDA A LIBIDO,
MAS A NOITADA FOI UM FIASCO

— Você faz de conta que está muito bra-


vo, vai para o elevador sem cumprimentar
ninguém e deixa o resto comigo — disse

Duas mulheres. Ou dois sucos


de laranja 92
AUGUSTO NUNES

ao fotógrafo.
Também com cara amarrada, o pai da
ideia rosnou um “buenas noches” ao cruzar
a portaria guardada por um homem de ca-
belos brancos, que pareceu intrigado com
as carrancas da dupla que, ao deixar o ho-
tel horas antes, exibia o sorriso do mais
otimista amante latino. Os dois subiram
pelo elevador em silêncio e mudos entra-
ram no apartamento. O repórter sentou-se
numa das camas de solteiro, empunhou o
telefone, discou o número da portaria e
fez a encomenda com voz de sargento que
perdeu a paciência:
— Yo quiero dos mujeres!
O homem de cabelos brancos não enten-
deu direito que o queria exatamente aque-
le brasileiro de humor instável. E pediu-lhe
que repetisse a solicitação.
— Dos mujeres! — subiu o tom o repórter.
— Dos mujeres! Dos chicas! Dos muchachas!

Duas mulheres. Ou dois sucos


de laranja 93
AUGUSTO NUNES

E então desabou a réplica tempestuosa.


Muitos decibéis acima do necessário para
que também o fotógrafo ouvisse tudo, o
porteiro quis saber se aquele estrangeiro
insolente por acaso achava que hotel era
puteiro, perguntou se estavam confundin-
do a Argentina com um imenso viveiro de
messalinas, sugeriu que requisitasse mu-
lheres aos familiares no Brasil, sublinhan-
do cada frase com insultos e palavrões.
Grogue com a bronca, o repórter esperou
que o temporal amainasse para murmurar
o pedido alternativo:
— Entonces, yo quiero dos jugos de naranja.
Pôs o telefone no gancho, doou ao fotó-
grafo o segundo suco de laranja e foi ten-
tar dormir.

Duas mulheres. Ou dois sucos


de laranja 94
26 FEVEREIRO 2021

O ESTRANHO
CASO DE
ALEXANDRE
DE MORAES
Muita gente desconfia que
o professor e o ministro não
são uma pessoa só
FOTO: STF/SCO
AUGUSTO NUNES

Q
uem lê um livro de Alexandre de Mo-
raes e ouve um improviso de Alexan-
dre de Moraes desconfia que o pro-
fessor de Direito Constitucional e o ministro
do Supremo Tribunal Federal não são uma
pessoa só. Muita gente continua acreditan-
do na versão espalhada pelos estudantes da
Faculdade do Largo de São Francisco: os Ale-
xandres formam uma dupla de gêmeos se-
parados ao nascer, que usam o mesmo nome
só para confundir.
As dúvidas fazem sentido. Os textos que
Alexandre publica são gentis com o idioma
tratado com ferocidade pelo Alexandre que
fala (sem um papelório nas mãos). Os livros
que assinou têm sido fonte de consulta para
incontáveis advogados em gestação. Os im-
provisos são tão imprestáveis quanto as dis-
curseiras de Lula.
A espécie a que pertence Alexandre de Mo-
raes, convém ressalvar, não deve ser confun-

O estranho
caso de Alexandre
de Moraes 97
AUGUSTO NUNES

dida com a tribo que tem no ex-presidente


presidiário um pajé exemplar. Quando Lula
agarra um microfone, a gramática se refu-
gia na embaixada portuguesa, a concordân-
cia se asila em velhos dicionários, a regência
verbal se esconde no sótão da escola aban-
donada, o raciocínio lógico providencia um
copo de estricnina sem gelo, a razão pede
a proteção da ONU para livrar-se de outra
sessão de tortura, os plurais saem em desa-
balada carreira e a verdade se dirige à dele-
gacia mais próxima para jurar que é mentira.
O ministro Alexandre também guilhotina
SS e RR, declama maluquices com a pose de
quem está fazendo um pronunciamento à
nação, muda de ideia conforme as circuns-
tâncias e mente mais do que respira. Mas
Lula é da turma que fugiu da escola e se or-
gulha da ignorância vitoriosa. Alexandre di-
plomou-se nas Arcadas e virou professor no
Largo de São Francisco. Para seviciar o por-

O estranho
caso de Alexandre
de Moraes 98
AUGUSTO NUNES

tuguês, vale-se de um repertório maior que o


vocabulário de 300 palavras decoradas pelo
palanque ambulante.
O ministro do Supremo tampouco se en-
quadra na linhagem de Dilma Rousseff —
até porque ninguém mais no mundo sabe
falar o subdialeto que a ex-presidente in-
ventou, muito menos suas ramificações.
Há o dilmês rústico, o vulgar, o castiço e
o erudito. Ela domina todas essas formas
complicadíssimas de não dizer coisa com
coisa. Numa recente live no Instagram, por
exemplo, discorreu sobre o vírus chinês.
Cientistas, governantes, negacionistas in-
curáveis, crédulos de nascença, vacinados
e infectados continuam sem saber direito
o que está acontecendo.
Dilma, que nada sabe sobre tudo, entrou
no assunto com a segurança de Ph.D. em pan-
demia. “Nós estamos enfrentando um vírus
com a capacidade de transmissão muito…

O estranho
caso de Alexandre
de Moraes 99
AUGUSTO NUNES

muito… solerte”, decolou a ex-presidente,


que em seguida tentou traduzir o que aca-
bara de dizer: “Ele é… é… é esperto. O vírus
chega devagarzinho… fica… tem um tempo
de incubação significativo e pode, portan-
to, surpreender”. Em seguida, prescreve a
receita para combater o inimigo invisível:
“Esse método é o isolamento social. E o iso-
lamento social é horizontal”. E se antecipa
à pergunta que perturba as cabeças na pla-
teia: “Por que que é horizontal? Porque as
famílias são horizontais. Você tem as famí-
lias… tem várias gradações”.
Não há outra maneira de ganhar a guer-
ra, insiste Dilma, que em seguida capricha
no fecho glorioso: “Até que toda essa bus-
ca por uma vacina resulte em algo concreto,
ou que se tenha um vácuo capaz de tratar
essa doença, nós teríamos só essa forma de
lidar com ela. Primeiro porque, caso con-
trário, todos os modelos matemáticos mos-

O estranho
caso de Alexandre
de Moraes 100
AUGUSTO NUNES

tram que, se você não fizer nada, o nível de


mortandade é algo estarrecedor, na faixa de
1 milhão de pessoas”.
Alguém aí entendeu? Ninguém? Não se
preocupem. A moça no alto da tela que ten-
ta traduzir a discurseira em linguagem de
Libras também não está entendendo nada.
E a própria Dilma certamente não entende
o que diz. Alexandre de Moraes, é verdade,
também estaciona em reticências sem rumo,
tropeça em vírgulas bêbadas, escava fossos
entre sujeito e predicado, junta palavras que
não conversam entre si e produz sopas de
letras intragáveis. Mas seria injusto equipa-
rá-lo à singularíssima criadora do dilmês.
O clube que Alexandre frequenta abrange,
por exemplo, os que nunca chegam a algu-
ma cidade. Sempre chegam em. Também são
sócios eméritos os que jamais entenderão a
diferença entre onde e aonde, ou que os dois
advérbios se referem a algum lugar, nunca a

O estranho
caso de Alexandre
de Moraes 101
AUGUSTO NUNES

um espaço de tempo. “Estou falando da se-


mana aonde me encontrei com o governa-
dor”, disse o candidato a ministro, mais de
uma vez, na sabatina no Senado que chan-
celou sua indicação para a vaga aberta pela
morte de Teori Zavascki. O escolhido por
Michel Temer seria reprovado em qualquer
prova oral para ingresso na magistratura. Os
senadores validaram sorrindo a indicação,
fingindo que haviam compreendido o fala-
tório truncado por travessões que transfor-
maram as falas do sabatinado numa enxur-
rada de frases que nunca chegavam ao fim.
Neste fevereiro, o carrasco de vogais e
consoantes conseguiu que os dez ministros
que completam o Timão da Toga aprovas-
sem por unanimidade duas invencionices
que produziu para consumar a prisão ilegal
do deputado Daniel Silveira. Ao expedir um
mandado de prisão em flagrante, e justificá-
-lo com a fantasiosa teoria de que a flagrân-

O estranho
caso de Alexandre
de Moraes 102
AUGUSTO NUNES

cia só se encerraria quando fosse banido da


internet o vídeo promovido a prova do cri-
me, o ministro criou o flagrante eterno. Ao
decidir que há limites para o artigo da Cons-
tituição segundo o qual nada do que diz um
congressista pode ser enquadrado como
crime, concebeu a imunidade relativa. Deve
ser prima da democracia relativa proclama-
da pelo general-presidente Ernesto Geisel
nos anos 1970.

O CLUBE QUE ALEXANDRE


FREQUENTA ABRANGE, POR EXEMPLO,
OS QUE NUNCA CHEGAM A ALGUMA
CIDADE. SEMPRE CHEGAM EM

Pensando bem, o enigma dos Alexandres


nada tem de misterioso para quem sabe
como nascem certos livros. Para textos, bas-
ta contratar um ghost writer discreto e um
revisor atento. Improvisos verbais não po-

O estranho
caso de Alexandre
de Moraes 103
AUGUSTO NUNES

dem ser terceirizados. Existe um único Ale-


xandre, o torturador do idioma. Só uns pou-
cos jornalistas bem-humorados insistem na
tese dos gêmeos univitelinos. Esses juram
que, no momento da separação, o Alexan-
dre que escreve levou também o cérebro do
Alexandre que fala.

O estranho
caso de Alexandre
de Moraes 104
16 ABRIL 2021

A QUARENTENA
DOS DESVALIDOS
Os governantes fingem ignorar
a existência de um Brasil maior
e mais populoso que o conhecido
pelos loucos por lockdowns
FOTO: DIVULGAÇÃO
AUGUSTO NUNES

N
este 13 de abril, o governador João
Doria foi enfim confrontado com a
pergunta que não queria ouvir — e
nenhum jornalista havia ousado formular
nas mais de 200 entrevistas coletivas so-
bre a pandemia de coronavírus concedi-
das desde março de 2020: o que pretende
fazer para ao menos reduzir as aglomera-
ções nos ônibus, trens metropolitanos e
vagões do metrô?
O repórter tinha numa das mãos fotogra-
fias que escancaravam o tumor medonho:
amontoada em ambientes opressivos e mal
ventilados, a multidão de passageiros con-
firmava que, todos os dias, esquadrilhas de
vírus chineses sobrevoam os meios de trans-
porte público para expandir a morte e o medo
no maior conglomerado urbano do país. O
que tinha a dizer sobre isso o líder do com-
bate ao inimigo invisível na frente paulista?
Os doutores que compõem o Centro de

A quarentena dos desvalidos 107


AUGUSTO NUNES

Contingência da Covid-19, codinome do Al-


tíssimo Comando da Guerra Sanitária em
São Paulo, que tem em Doria o Chefe Supre-
mo, certamente trataram dessa questão. As
sumidades ali aglomeradas (com as devidas
cautelas aconselhadas pelo distanciamento
social, ressalvam) tratam de tudo.
Já faz mais de um ano que se juntam qua-
se todos os dias para decidir o que pode e o
que não pode, o que ajuda e o que atrapa-
lha, o que é verdade e o que é negacionismo.
Como Doria, recitam de meia em meia hora
que estão lá para salvar vidas. Conhecem a
covid-19 só de vista, mas estão sempre grá-
vidos de certezas. Não é atormentado por
dúvidas quem ouve o tempo todo a voz da
Ciência e os conselhos da Saúde.
No fim da semana, o grupo comunica ao
governador — que tem a última palavra —
quais municípios merecem ser alojados, por
exemplo, na fase amarela, e quais devem

A quarentena dos desvalidos 108


AUGUSTO NUNES

continuar de castigo na fase vermelha, an-


tessala da temida fase emergencial. (Nasci-
da há poucas semanas, a emergencial seria
batizada de “fase preta” se alguém não ti-
vesse advertido que poderia parecer coisa
de racista.)

O SORRISO DE QUEM VIVE ENTRE


O CHUVEIRO E UMA SALA COM AR-
CONDICIONADO AVISA QUE O QUE ALI
SE VÊ É UM BANDO DE HIPÓCRITAS

Claro que o conselho de sábios tratou do


assunto. Mas a reação de Doria ao ouvir a
expressão “transporte público” lembrou a
do avô surpreendido pelo neto que, no meio
do jantar da família, resolve contar aos ber-
ros um segredo do clã transmitido aos sus-
surros por sete gerações. Num longo cir-
cunlóquio, o governador ressaltou que tal
problema não é uma exclusividade paulis-

A quarentena dos desvalidos 109


AUGUSTO NUNES

tana. Outras capitais são assoladas com su-


perlotações do gênero. Tampouco se trata
de uma complicação restrita ao Brasil: Lon-
dres, Paris, Nova York — mesmo metrópo-
les mais avançadas ainda não descobriram
como adaptar a mobilidade urbana a estes
tempos estranhos. Já avisando que a entre-
vista chegara ao fim, Doria disse que o go-
verno estadual recomendou mais de uma
vez o uso de horários alternativos inviáveis
e reiterou que os passageiros devem lavar as
mãos com álcool em gel, além de proteger o
rosto com máscara.
O próprio orador desconfiou que discur-
sava sobre o nada, compreendeu que seria
difícil debitar mais esse pecado na conta de
Jair Bolsonaro e partiu para a ofensiva. “Não
posso impedir o deslocamento de trabalha-
dores de serviços essenciais”, subiu o tom.
Como vetar o embarque no metrô da enfer-
meira que salva vidas, do bombeiro que sal-

A quarentena dos desvalidos 110


AUGUSTO NUNES

va vidas, do policial militar que salva vidas?


Quem imagina que desde o início da pande-
mia apenas esses profissionais usam o trans-
porte não faz ideia do mundo que se espre-
me em qualquer vagão da Linha Vermelha,
nem viu por dentro algum ônibus que leva
do centro da cidade a Sapopemba.
Nesses mosaicos do Brasil, espremem-se
nos horários de pico camelôs, desemprega-
dos, assaltantes, domésticas, pedintes de es-
quina, babás, garçons, pequenos negocian-
tes, gente honesta, vigaristas, vendedores de
bugigangas, aposentados e jovens à procura
de trabalho, além de incontáveis brasileiros
forçados a exercer a profissão na clandesti-
nidade porque a ordem é ficar em casa.
Ou na semiclandestinidade exigida pelo
farisaísmo: os cabelos bem cortados dos
homens e os penteados impecáveis das mu-
lheres denunciam a passagem recente de
barbeiros e cabeleireiras que mantêm seus

A quarentena dos desvalidos 111


AUGUSTO NUNES

salões fechados por determinação dos ilus-


tres fregueses. Para chegar às casas dos
clientes loucos por lockdowns, falta a esses
trabalhadores de serviços considerados não
essenciais dinheiro para chamar um Uber.
Usam o transporte público. Se ficassem em
casa, o elenco que protagoniza as entrevis-
tas coletivas no Palácio dos Bandeirantes
estaria parecido com uma tribo de hippies
dos anos 70.
A boa aparência, sublinhada por máscaras
customizadas e pelo sorriso de quem vive
entre o chuveiro e uma sala com ar-condi-
cionado, avisa que o que ali se vê é um ban-
do de hipócritas. Portadores de miopia se-
letiva, fingem não enxergar os milhões de
excluídos da quarentena feita sob medida
para integrantes da classe média alta, fun-
cionários públicos indolentes, ricos, advo-
gados de corruptos, corruptos com bons
advogados e o restante da elite nativa. Seria

A quarentena dos desvalidos 112


AUGUSTO NUNES

excessivo esperar que essa turma se preocu-


pe com aglomerações decorrentes do isola-
mento dos excluídos.
Previsivelmente, os fechadores compulsi-
vos de bares, restaurantes, templos, museus,
cinemas, teatros, shopping centers, prate-
leiras de supermercados, salões de cabelei-
reiros, barbearias, escolas, fábricas, lojas e
outras vítimas da epidemia de autoritaris-
mo fecharam os olhos à dramática piora da
paisagem formada pelas favelas brasileiras,
onde sobrevive uma imensidão de gente que
ajuda a transformar o transporte público no
maior e mais alarmante foco de dissemina-
ção do coronavírus do Brasil.
O palavrório das entrevistas coletivas não
incluiu sequer um asterisco sobre os brasi-
leiros amontoados em barracos. Também
não foi nem será dedicada uma mísera vír-
gula à pesquisa feita entre 9 e 11 de fevereiro
pelo Instituto Data Favela, em parceria com

A quarentena dos desvalidos 113


AUGUSTO NUNES

a Locomotiva – Pesquisa e Estratégia e com


a Central Única das Favelas (Cufa).
Foram entrevistados habitantes de 76 fa-
velas espalhadas por todos os Estados brasi-
leiros. As constatações são desoladoras. Nas
duas semanas anteriores ao levantamento,
por exemplo, em ao menos um dia 68% dos
moradores não tinham conseguido dinheiro
para comprar comida. As refeições diárias
caíram de 2,4 em agosto de 2020 para 1,9 em
fevereiro, e 71% das famílias agora sobrevi-
vem com menos da metade da renda obtida
antes da pandemia. Nove em cada dez fave-
lados receberam alguma doação. Sem esse
gesto solidário, oito em cada dez famílias
não teriam condições de se alimentar, com-
prar produtos de higiene e limpeza e pagar
contas básicas.
Nas favelas, o número de casos confirma-
dos e óbitos é o dobro do registrado nos bair-
ros nobres, mas apenas 32% procuram seguir

A quarentena dos desvalidos 114


AUGUSTO NUNES

as medidas de prevenção. Outros 33% ten-


tam de vez em quando ajustar-se às regras,
30% afirmam que não conseguem segui-las
e 5% abdicaram de tentativas. É certo que,
do começo de fevereiro para cá, esse cená-
rio se tornou ainda mais cinzento.
A imprensa velha está fora do universo
pesquisado. Os moradores não entendem o
que dizem comentaristas da Globo, o grego
antigo lhes parece menos complicado que o
subdialeto falado por ministros do Supremo
e o alcance da internet é muito menor que
nas regiões habitadas por quem desfruta de
três refeições por dia. Mas também nos bar-
racos se manifesta a sabedoria subjacente
do povo brasileiro.
Os favelados sabem o que fez e faz cada
governante e cada instituição no Brasil da
pandemia. Acuados pela fome e pela inse-
gurança, usam o transporte público para
buscar algum dinheiro em outros pontos da

A quarentena dos desvalidos 115


AUGUSTO NUNES

cidade. Sabem que as aglomerações nos ôni-


bus, trens urbanos e vagões do metrô são pe-
rigosas. Mas os participantes involuntários
do isolamento dos desvalidos acham muito
mais perigoso esperar num barraco a salva-
ção que não virá.

A quarentena dos desvalidos 116


04 JUNHO 2021

OS VIGARISTAS
DA ADVERSATIVA
Se aparece uma notícia boa,
os integrantes da tribo infiltram
alguma ressalva desanimadora depois
do ‘mas’ precedido pela vírgula
FOTO: SHUTTERSTOCK
AUGUSTO NUNES

A
ofensiva contra o presidente que se
instalara no Palácio do Planalto em 1º
de janeiro de 2019 não respeitou se-
quer a trégua de praxe, fixada em cem dias.
Assim que foi divulgada a queda sofrida pelo
Produto Interno Bruto no primeiro trimes-
tre, o segundo foi sitiado pela tribo dos pro-
fetas agourentos. Entre o início de abril e o
fim de junho, previram 999 em cada mil su-
midades da economia espalhadas pela im-
prensa, ocorreria outro baque — e o Brasil
mergulharia no pântano da “recessão téc-
nica”. Nenhum dos especialistas explicou
direito o que era aquilo, mas os textos em
economês castiço deixaram claro que era
coisa grave. E todos debitaram na conta de
Jair Bolsonaro o desastre em gestação nos
13 anos de desgoverno do PT e parido em
2015 por Dilma Rousseff.
Confrontados com o crescimento de 0,4%,
jornalistas sérios se renderiam aos fatos.

Os vigaristas da adversativa 119


AUGUSTO NUNES

Os adivinhos de picadeiro não ficaram se-


quer ruborizados com o naufrágio das pre-
visões. Trataram de imediatamente erguer
com manchetes malandras um monumen-
to à tapeação. INVESTIMENTO EMPURRA
PIB, MAS RECUPERAÇÃO SEGUE LENTA,
desconversou a Folha. PIB CRESCE 0,4% E
SURPREENDE, MAS RETOMADA É LEN-
TA, concordou o Estadão.
No blog que mantinha no site da Veja, re-
gistrei no dia seguinte a aparição de uma
nova aberração jornalística: o vigarista da
adversativa. Cada vez mais prolífica nas re-
dações da imprensa velha, a espécie segue
uma receita singela: quando aparece uma
boa notícia que ameace melhorar a imagem
do governo Bolsonaro e a vida do leitor, de-
ve-se anabolizar uma informação secundá-
ria ruim, conferir-lhe o mesmo peso da que
merece ocupar sozinha a manchete e, sem-
pre depois de um “mas” precedido pela vír-

Os vigaristas da adversativa 120


AUGUSTO NUNES

gula, infiltrar a ressalva que proíbe alegrar-


-se com o fato animador.
(Em artigos e declarações entre aspas, a
ordem se inverte: a mentira antecede a vír-
gula e só depois do “mas” a verdade emer-
ge. Um exemplo: “Sou a favor da Lava Jato,
mas acho que ocorreram exageros e irregu-
laridades que comprometem a operação”.
O palavrório identifica devotos da seita que
sempre rezou pelo estancamento da sangria.
Outro exemplo: “Reconheço que o PT er-
rou, mas é preciso valorizar o legado social e
econômico de Lula e Dilma”. A lenga-lenga
pós-vírgula desnuda mais um comparsa da
cavalgadura incapaz de dizer coisa com coisa
e do corrupto juramentado que, ao contrário
de Getúlio Vargas na carta-testamento, saiu
da História para entrar na vida bandida.)
Se o presidente da República reaparecer
sorrindo depois de um período de profunda
depressão, exemplifiquei no artigo do blog,

Os vigaristas da adversativa 121


AUGUSTO NUNES

nossos campeões assim resumiriam o acon-


tecimento: BOLSONARO PARECE ANIMA-
DO, MAS LONGE DO ESTADO DE EUFO-
RIA. Não havia exagerado, constatei num
domingo de 2020 ao topar com a primeira
página da Folha: SOB BOLSONARO, CRIME
CAI E EMPREGO CRESCE, MAS ÁREA SO-
CIAL PIORA”. Quem efetivamente acredita
que a área social melhora se a criminalidade
aumenta e a taxa de emprego diminui é uma
besta quadrada sem chances de sobreviver
como jornalista profissional, certo? Errado.
No caso do autor da manchete, trata-se de
um sócio fundador do clube dos vigaristas
da adversativa. Visto de perto, é mais um
torturador da verdade disposto a tudo para
impedir a divulgação de notícias que preju-
diquem a luta contra a permanência no car-
go de um governante eleito em 2018 pelo
voto popular. Mas todos os integrantes da
espécie capricham na pose de veteranos da

Os vigaristas da adversativa 122


AUGUSTO NUNES

guerra travada desde o berçário em defesa


da democracia, da liberdade, da ética, da mo-
ral, dos bons costumes e do Lula Livre.

OS VIGARISTAS DA ADVERSATIVA
FIZERAM O POSSÍVEL PARA
MATAR DE MEDO QUEM NÃO
MORRESSE DE COVID-19

Nesta primeira semana de junho, os cra-


ques do estelionato informativo se viram
subitamente sob o cerco de ótimas notí-
cias, nenhuma delas antecipada pelas edi-
torias de economia. No primeiro trimestre,
o PIB brasileiro cresceu 1,2% em relação ao
anterior (contra 0,6% da China e 0,4% da
União Europeia). Instituições sérias revisa-
ram prontamente seus cálculos e agora pre-
veem que a taxa anual subirá para 5,5% em
2021. A bolsa de valores registrou uma alta
sem precedentes, a cotação do dólar enfim

Os vigaristas da adversativa 123


AUGUSTO NUNES

caiu e foram criados em abril 121 mil empre-


gos com carteira assinada.
Atarantada com o excesso de notícias favo-
ráveis ao seu Grande Satã, a tropa do quanto
pior melhor confinou os fatos restantes em
espaços mofinos para concentrar-se o cres-
cimento do PIB. Paralelamente, houve uma
inovação estilística. Para introduzir ressal-
vas pilantras, os especialistas em tapeação
só usavam “mas” (certamente por ser me-
nor e bem mais familiar aos brasileiros que
“contudo”, “porém”, “todavia” e demais ir-
mãs). Era muito “mas” para uma página só,
deve ter advertido algum soldado da desin-
formação. E ocorreu a alguém sugerir que o
ponto e vírgula fosse promovido a conjun-
ção adversativa. PUXADO POR EXPORTA-
ÇÕES, CRESCIMENTO SUPEROU PRO-
JEÇÕES DO MERCADO; CONSUMO DAS
FAMÍLIAS FICOU ESTAGNADO, avisou o
Estadão na edição de 2 de junho, no subtítu-

Os vigaristas da adversativa 124


AUGUSTO NUNES

lo da manchete dedicada ao salto do PIB.


A novidade estreou na Folha naquele mes-
mo dia, no subtítulo da manchete do cader-
no Mercado: PIB CRESCE 1,2%, ACIMA DO
ESPERADO; SETORES QUE MAIS EMPRE-
GAM, NO ENTANTO, AINDA PATINAM.
Na manchete da edição, o jornal manteve a
adversativa oficial: PIB SOBE E VOLTA AO
PRÉ-COVID, MAS GANHO NÃO CHEGA
A POBRES, berraram vogais e consoantes
grávidas de ressentimento. A turma decer-
to achou pouco e engrossou o calibre. ECO-
NOMIA VAI BEM; POVO MIÚDO VAI MAL,
alertou o título do artigo de outro vidente
decepcionado.
A opção preferencial por notícias ruins,
péssimas, desoladoras e apavorantes che-
gou ao clímax na página 4, no pé da coluna
Painel. Ali foi reproduzida a interrogação
que anda atormentando Eduardo Morei-
ra, uma mistura de economista doidão e

Os vigaristas da adversativa 125


AUGUSTO NUNES

adestrador de cavalos que escoiceia fatos


com medonha ferocidade: “Com milhões
em insegurança alimentar e desemprego
em alta, pergunto a quem comemora: você
come PIB?”. Não se deve perder tempo com
quem prefere o crescimento das multidões
dependentes da cesta básica ao crescimen-
to do PIB. Mas respondo: a menos que te-
nha sido adestrada por Moreira, qualquer
mula sabe que quanto mais musculoso é o
PIB de um país maior é o número de habi-
tantes que conseguem comida.
Para os vigaristas da adversativa, 2020 é o
ano que não deveria ter terminado. Eles fi-
zeram o possível para matar de medo quem
não morresse de covid-19. Ouviram nitida-
mente o som de milhares de tambores e cla-
rins quando o primeiro coronavírus pousou
no Brasil, quando a crise econômica se agra-
vou ou quando o impeachment do presidente
da República pareceu a alguns minutos de

Os vigaristas da adversativa 126


AUGUSTO NUNES

distância. Em 2021, a vacinação começou, a


pandemia vai recuando, a esperança foi res-
gatada. Péssimas notícias para carrascos de
informações animadoras. Se as coisas conti-
nuarem melhorando, vão todos acabar afun-
dados na mais cava depressão.
11 JUNHO 2021

TERMO DE
DECLARAÇÕES
PRESTADAS
POR RENAN
CALHEIROS
Colunista interroga relator da CPI
FOTO: JEFFERSON RUDY/AGÊNCIA SENADO
AUGUSTO NUNES

Escalado para uma reportagem sobre a CPI


da Covid, este colunista solicitou uma entre-
vista ao relator Renan Calheiros. A contra-
proposta chegou minutos depois: por sen-
tir-se muito mais à vontade quando depõe
em tribunais e delegacias, o senador prefe-
ria “aquela fórmula que vocês usaram com
o Aécio Neves”. Assim se fez. O resultado foi
o depoimento abaixo transcrito.

A
os oito dias de junho de dois mil e
vinte e um, em São Paulo, às duas
horas da madrugada, numa sala des-
ta instância jornalística, compareceu José
Renan Vasconcelos Calheiros, filho de Ola-
vo Calheiros Novais e Ivanilda Vasconce-
los Calheiros, com 65 anos de idade, natural
de Murici, Alagoas, de cor branca, residen-
te em Brasília, sabendo ler e escrever; aos
costumes, disse nada; interpelado pelo sig-
natário, declarou que, embora formado em

Termo de declarações prestadas por Renan Calheiros 130


AUGUSTO NUNES

Direito, é político profissional, filho de polí-


tico profissional, irmão de políticos profis-
sionais, tio de políticos profissionais, pai de
político profissional e, se Deus quiser, futu-
ro avô de políticos profissionais; que já exer-
ceu os cargos de deputado estadual, depu-
tado federal, ministro da Justiça do governo
Fernando Henrique Cardoso (que até hoje
tenta justificar a escolha com a alegação de
que ignorava as três ou quatro anotações
no prontuário ainda em seu começo), sena-
dor e, por duas vezes, presidente do Senado;
que só não se elegeu governador de Alagoas
por ter sido atraiçoado pelo ex-inimigo, en-
tão amigo, depois novamente inimigo e hoje
amigo Fernando Collor; que tem a sensação
de ser meio governador depois que o filho
Renanzinho foi eleito para o cargo; que a vo-
cação política do clã é tanta que desde 1992
um dos seus irmãos e um dos muitos sobri-
nhos se revezam na prefeitura de Murici, e

Termo de declarações prestadas por Renan Calheiros 131


AUGUSTO NUNES

que o povo é tão agradecido aos Calheiros


que resolveu em 2020 eleger prefeito e vi-
ce-prefeito dois sobrinhos do depoente; que
só maledicentes de nascença ousam atribuir
ao depoente e seus familiares o recorde al-
tamente constrangedor registrado em 2016,
quando se constatou que Murici tinha o pior
IDH entre as centenas de municípios nos
quais a tocha olímpica fez escala; que todos
os habitantes honestos sabem que tal equí-
voco resultou da presença na cidade de uma
multidão de desvalidos procedentes de vila-
rejos vizinhos, e que essa mesma afluência
dos forasteiros em busca de diversão gratui-
ta ou de empregos oferecidos pelo Eldora-
do sertanejo explica a versão divulgada pelo
IBGE segundo a qual 60 por cento dos mo-
radores de Murici são pobres ou miseráveis;
que os 46 óbitos por covid-19 contabiliza-
dos pelo Ministério da Saúde até 15 de maio
foram provocados não pela pandemia, mas

Termo de declarações prestadas por Renan Calheiros 132


AUGUSTO NUNES

pelo presidente que utilizou um vírus chi-


nês como pretexto para estarrecer o país e o
mundo com um genocídio muito maior que
o Holocausto dos judeus na Alemanha na-
zista, já que Jair Bolsonaro é mais cruel que
Adolf Hitler e um ministro como Eduardo
Pazuello transforma em amador qualquer
Hermann Goering (ou Góringui, na pronún-
cia do depoente); que não se considerou im-
pedido de assumir o cargo de relator por ser
pai de um governador suspeito de envolvi-
mento no Covidão amparado na certeza de
que Renanzinho é tão honesto quanto o ge-
nitor; que a CPI não deve perder tempo in-
terrogando autoridades estaduais e munici-
pais supostamente metidas em ladroagens
que até podem ter ampliado o patrimônio
dos larápios que existem em qualquer lugar,
mas não mataram ninguém, em vez de ca-
çar culpados alojados no outro lado da Pra-
ça dos Três Poderes; que, embora não pare-

Termo de declarações prestadas por Renan Calheiros 133


AUGUSTO NUNES

ça, trata com urbanidade e respeito todos os


convocados, convidados ou intimados, se-
jam do sexo masculino ou fêmeas, democra-
tas que se opõem ao capitão golpista ou fas-
cistas irrecuperáveis, devotos da ciência ou
negacionistas, e só perde a estribeira quan-
do é afrontado por mentirosos compulsivos,
pois sempre amou a verdade acima de todas
as coisas; que pretende aproveitar as investi-
gações para sepultar velhas falsidades, como
a história do amigo lobista a serviço da em-
preiteira Mendes Jr. que pagou meses a fio
o aluguel do apartamento e demais despe-
sas de Mônica Veloso, com quem o depoen-
te teve entre 2003 e 2004 um caso extra-
conjugal e uma filha, ambos atribuídos pelo
senador quase cinquentão a um arroubo de
jovem romântico; que, conforme explicou
na época, acertou todas as contas com o di-
nheiro obtido como único comerciante da
história da pecuária que comprava e vendia

Termo de declarações prestadas por Renan Calheiros 134


AUGUSTO NUNES

gado sem ser dono de fazenda, sítio ou chá-


cara, obstáculo que superou vendendo tão
rapidamente o que comprara que os reba-
nhos mudavam de proprietário já na chega-
da a Murici, o que dispensava o senador pe-
cuarista de providenciar terra, água e pasto;
que, ao contrário do que propagam jorna-
listas tendenciosos e adversários inclemen-
tes, está indiciado não em 17, mas em apenas
8 inquéritos no Supremo Tribunal Federal,
onde jaz um processo em que figura como
réu à espera da absolvição mais do que certa,
porque considera os ministros do STF mais
sábios e justos do que qualquer juiz de ver-
dade; que o implante capilar produzido por
numerosas sessões numa clínica do Recife
não custou um único centavo ao Congres-
so, que só patrocinou o avião e o combustí-
vel a que tem direito um senador da Repú-
blica; que sempre retribuiu essas gentilezas
involuntariamente financiadas pelos paga-

Termo de declarações prestadas por Renan Calheiros 135


AUGUSTO NUNES

dores de impostos trabalhando mais de 24


horas por dia, como aliás tem feito desde a
posse na gerência da CPI; que tamanha de-
dicação aos interesses da pátria explica por
que o relatório ficou pronto antes que as in-
vestigações tivessem início, e já na primei-
ra sessão restou decidido quem é culpado e
quem é inocente, mostrando ao povo que,
se o presidente da República fosse um dos
sete senadores que controlam a CPI, a vaci-
nação dos brasileiros teria começado antes
da descoberta da vacina; que não vê nada de
mais na escolha de um campeão de inqué-
ritos e processos para uma CPI tão relevan-
te, já que o presidente Omar Aziz também
foi acusado de envolvimento em casos de
polícia, coincidência que facilita o entendi-
mento entre duas vítimas de calúnias e in-
fâmias; que tem dormido bem e bastante,
o que não surpreende nenhum dos colegas,
pois se portadores de fichas sujas atraves-

Termo de declarações prestadas por Renan Calheiros 136


AUGUSTO NUNES

sassem a madrugada acordados o Congres-


so brasileiro abrigaria a maior concentração
de insones do mundo. Nada mais disse nem
lhe foi perguntado.

Termo de declarações prestadas por Renan Calheiros 137


30 JULHO 2021

A VERDADE
RESSUSCITADA
Documentário sobre Cuba
rasga fantasias dos devotos de ditaduras
FOTO: ZOLTAN VARGA PHOTOGRAPHER/SHUTTERSTOCK
AUGUSTO NUNES

C
om o uniforme de oficial de cordão
carnavalesco, um charuto hospedado
no canto da boca, Fidel Castro está de
saída do Congresso do Partido Comunista
Cubano promovido em 1975. No poder há 16
anos, o ditador quarentão está em boa for-
ma: depois de discursar por 20 horas segui-
das, não exibe sinais de cansaço. Só parece
intrigado com aquele carrinho de bebê ao
lado de três cinegrafistas que acompanham
a movimentação da lenda em seu apogeu.
Fidel se aproxima do carrinho que, em
vez de passageiros da primeira infância,
transporta instrumentos indispensáveis a
quem trabalha no mundo do cinema. Mira
o jovem desconhecido e pergunta quem
carrega aquilo: ele ou ela? Ele é Jon Alpert,
ainda um novato na arte que o transforma-
ria em celebridade. Ela é Keiko Tsuni, mu-
lher de Alpert. Câmeras de vídeo digital da
primeira geração são bastante pesadas, ex-

A verdade ressuscitada 140


AUGUSTO NUNES

plica o marido. Fidel ensaia a retirada e é


detido pelo convite audacioso: “Tem uma
mensagem para o povo dos Estados Uni-
dos?”. Assim começou a primeira conversa
entre o jornalista principiante e o homem
que havia dois anos não concedia entrevis-
tas à imprensa ianque.
O mais loquaz orador do Caribe ficou uns
poucos segundos em silêncio antes de de-
clamar a mensagem. Louvou as virtudes dos
norte-americanos comuns, elogiou os esfor-
ços dos intelectuais e trabalhadores e dese-
jou-lhes sorte. “Quanto ao governo”, res-
salvou, “todos sabem que não há nenhuma
simpatia entre os governos de Cuba e dos
Estados Unidos.” Foi a primeira (e a mais
curta) das muitas conversas que teriam nas
quatro décadas seguintes.
Em 2016, às vésperas do 90º aniversário
do ditador aposentado, encontraram-se pela
última vez na casa de Fidel em Havana. O

A verdade ressuscitada 141


AUGUSTO NUNES

anfitrião depauperado autografa o colete de


trabalho do visitante. Agora um sessentão
grisalho, Alpert beija o rosto da lenda em
seu crepúsculo. Ele voltaria semanas depois
para filmar o sepultamento do fundador do
regime comunista. Ao partir de Havana, le-
vava o material que faltava para a edição do
melhor de todos os grandes documentários
que concebeu: Cuba e o Cameraman, lança-
do nos EUA em 2017 e incorporado recen-
temente ao catálogo brasileiro da Netflix.
Documentaristas interessados no resga-
te de períodos históricos vivem derrapando
em roteiros que enfileiram entrevistas cara
a cara tão excitantes quanto um desfile mi-
litar na Bolívia. Alpert reconstituiu a traje-
tória de Cuba entre os anos 70 e a morte de
Fidel amparado num microcosmo compos-
to de interlocutores selecionados com ar-
gúcia e sensibilidade — e dividido em três
núcleos. Os irmãos Borrego são agriculto-

A verdade ressuscitada 142


AUGUSTO NUNES

res que aram a terra com juntas de bois. O


negro Luis Amores e seus amigos sobrevi-
vem com transações comerciais situadas na
difusa fronteira que separa a contravenção
do crime. E Caridad tenta resistir ao lado
do casal de filhos à desesperança que come-
çou com a renúncia ao sonho de prosperar
como enfermeira.
Os diálogos e imagens resultantes das vi-
sitas aos vértices desse triângulo e das con-
versas com Fidel fazem de Cuba e o Came-
raman o mais soberbo, tocante, honesto e
revelador documentário sobre a Era Fidel.
Graças às sucessivas incursões pela ilha, Al-
pert se torna uma espécie de primo norte-
-americano dos integrantes do elenco e um
amigo temporão do líder revolucionário.
Nada disso impede que veja as coisas como
as coisas são e conte o caso como o caso foi.
Na primeira viagem a Havana, era um ad-
mirador dos revolucionários triunfantes. A

A verdade ressuscitada 143


AUGUSTO NUNES

visita derradeira foi feita por mais um feri-


do pela decepção. Em nenhum momento o
cameraman emite juízos de valor, opina ou
argumenta. O que mostra dispensa mani-
festos e discurseiras. Ao longo de 114 minu-
tos, o palco do drama estaciona no tempo
ou piora. Só não mudam os carrões norte-a-
mericanos que sacolejam nas ruas seja qual
for o ano, o dia ou a hora da visita de Alpert.
Sem barulhos nem berreiros, o documen-
tário implode mitos e crendices plantados
pelos jardineiros do paraíso socialista no Ca-
ribe. O sistema de educação é gratuito e uni-
versal, certo? “Gostaria de comer mais”, diz
uma estudante instada a revelar seu maior
desejo. Nenhum cubano passa fome? “Nin-
guém consegue carne há muitos meses”, la-
menta uma mulher na fila do racionamento
ao saber que, naquela semana, sua família
teria de contentar-se com um pão por dia.
Num encontro com os Borrego, Alpert

A verdade ressuscitada 144


AUGUSTO NUNES

constata que um dos irmãos perdera a voz


para o câncer na garganta. Na cena seguin-
te, ele conversa no hospital desprovido de
remédios onde o lavrador ficara internado.
Assombrado com a aparência e a idade do
instrumento jurássico utilizado na cirurgia,
Alpert pergunta ao jovem médico quanto
o governo lhe paga por mês. Vinte dólares,
ouve. Desolado, o documentarista apare-
ce na visita seguinte com um aparelho que,
acoplado ao pescoço, reproduz um som va-
gamente parecido com a voz humana. A eu-
foria do agricultor octogenário revela as di-
minutas dimensões dos sonhos possíveis.
Em 1975, as gordas mesadas remetidas
pela União Soviética espalharam pela ilha a
sensação de que as promessas revolucioná-
rias seriam enfim cumpridas. A enxurrada
de rublos financiou casas populares, novas
escolas, equipamentos hospitalares, meda-
lhas olímpicas, mais comida e outras razões

A verdade ressuscitada 145


AUGUSTO NUNES

para animar os intermináveis discursos de


Fidel com gritos de Patria o Muerte.

O MAIS REPULSIVO DOS


NEGACIONISMOS É NEGAR QUE UMA
DITADURA É UMA DITADURA

Nos anos 80, prédios em decomposição, a


universalização da falta de água, o sumiço da
coleta de esgoto e outras carências aflitivas
prenunciaram mais uma estação tempestuo-
sa. A queda do Muro de Berlim em 1989 e a
dissolução da União Soviética dois anos de-
pois anteciparam o pior dos invernos.
É o único trecho do documentário que
mostra Fidel Castro, um poço de certezas
aparentemente inesgotável, sem saber o que
dizer. Em algumas aparições, para espanto
da plateia, vê-se um homem ligeiramente
parecido com gente como a gente. Sempre
traduzindo em voz alta para o inglês o que

A verdade ressuscitada 146


AUGUSTO NUNES

ele próprio acabara de dizer em espanhol,


Alpert filma e narra momentos em que Fidel
exibe o peito nu para provar que não usava
coletes à prova de bala, ou garante que não
teme atentados porque só morreria quando
chegasse a sua hora, ou esparrama o corpo
pela cama do quarto na Missão Cubana em
Nova York, onde baixara para discursar
na Assembleia-Geral da ONU. A bordo do
avião que o trouxera de Havana havia um
único cidadão norte-americano. Jon Alpert,
naturalmente.
Cuba e o Cameraman confirma que o em-
bargo decretado pelos Estados Unidos
causa estragos de bom tamanho, mas infi-
nitamente inferiores aos provocados pela
economia planificada. Somem a cerveja, o
rum, o leite, a carne. Multiplicam-se os ex-
ploradores do mercado negro, os trafican-
tes de drogas, os ladrões, entre os quais os
que consumiram em churrascos os animais

A verdade ressuscitada 147


AUGUSTO NUNES

que compõem o patrimônio dos Borrego.


Camuflada pela ditadura comunista, a pe-
núria em expansão é escancarada no docu-
mentário que, ao mostrar Cuba como Cuba
é, torna bem menos surpreendente a onda
de protestos que agitou a ilha há poucas se-
manas. Pena que Alpert não estivesse lá para
filmar a verdade torturada por liberticidas
sem remédio. O mais repulsivo dos negacio-
nismos é negar que uma ditadura é uma di-
tadura. E não há patrulha mais torpe do que
a que tenta silenciar quem enxerga a nudez
do reizinho de estimação.
Essas torpezas ajudam a entender por que
a chegada ao Brasil de Cuba e o Cameraman
foi escondida pela Netflix e ignorada pelos
segundos cadernos dos jornais. No País do
Carnaval, os chamados críticos de cinema
ficam com cara de criança que viu Nossa Se-
nhora quando topam com idiotices do cali-
bre de Democracia em Vertigem. E têm orgas-

A verdade ressuscitada 148


AUGUSTO NUNES

mos múltiplos quando Petra Costa capricha


na voz de quem canta incelenças desde o
estágio no berçário. O documentário so-
bre Cuba comprova que uma Petra só teria
chances de juntar-se à equipe que o produ-
ziu caso se escondesse no carrinho de bebê.
Nesse caso, é provável que Fidel preferisse
afastar-se às pressas. E não teria conhecido
Jon Alpert.

A verdade ressuscitada 149


20 AGOSTO 2021

O GENERAL
DE CORDÃO
CARNAVALESCO
Se não tivesse capitulado na hora
errada, Stédile ganharia um habeas
corpus perpétuo do Supremo
FOTO: DIVULGAÇÃO
AUGUSTO NUNES

P
or tratar como caso de polícia o que
era uma questão social, o presiden-
te Washington Luís antecipou a che-
gada à senilidade precoce da República Ve-
lha, enterrada sem honras pela Revolução
de 1930. Por tratarem como questão social
o que sempre foi um caso de polícia, os pre-
sidentes Lula e Dilma Rousseff retardaram
a chegada à maioridade da democracia bra-
sileira. Os líderes do incipiente movimen-
to operário do século passado, que apre-
sentavam reivindicações elementares, não
mereciam cadeia. Mereciam de Washing-
ton Luís mais atenção. Os chefes de velha-
rias ideológicas que se arrastam pelo sé-
culo 21 berram exigências tão descabidas
quanto a restauração da monarquia. Não
mereciam a vida mansa que o PT lhes pro-
porcionou. Mereciam cadeia.
É o caso de João Pedro Stédile e seu min-
guante Movimento dos Trabalhadores Ru-

O GENERAL DE CORDÃO CARNAVALESCO 152


AUGUSTO NUNES

rais Sem Terra. Se tivessem genuíno in-


teresse pela vida de agricultor e alguma
intimidade com as coisas do campo, os mi-
litantes do MST estariam lavrando a terra
há muito tempo. Sempre preferiram carre-
gar as lonas pretas das barracas pelos ca-
minhos da destruição, que não pouparam
residências, plantações e laboratórios.
Stédile não sabe a diferença entre um ca-
fezal e uma plantação de cacau. Se tentasse
manusear um machado, entraria para a His-
tória como o primeiro revolucionário a de-
cepar a própria cabeça. Se resolvesse acom-
panhar o general com uma enxada, qualquer
subordinado se arriscaria a amputar o pé. To-
dos só viram foices e martelos ao desfralda-
rem bandeiras da defunta União Soviética.
Quando o impeachment de Dilma Rousseff
começou a desenhar-se, Lula resolveu falar
grosso: “Se for preciso, eu chamo o exérci-
to do Stédile”, ameaçou. Sorte dele não ter

O GENERAL DE CORDÃO CARNAVALESCO 153


AUGUSTO NUNES

chamado. Soldados e oficiais, que esbanja-


ram ousadia em ataques a fazendas indefe-
sas, na depredação de casas e máquinas e
na destruição de laboratórios rurais, deser-
taram pouco depois da queda do governo
do PT. Com o sumiço dos privilégios fede-
rais, que incluíam mesadas, verbas e cestas
básicas (além da garantia de impunidade),
os combatentes deram o fora antes que a lei
começasse a ser cumprida.
Na Quarta-Feira de Cinzas de 2016, Stédi-
le ainda fingia não saber disso. Caprichando
na pose de general de cordão carnavalesco,
anunciou a iminente mobilização de tropas
que permanecem aquarteladas na garganta
do rufião da reforma agrária. Como nunca
perdeu nenhuma chance de escolher o lado
errado da guerra, resolvera protagonizar ti-
roteios imaginários na Venezuela, “em defe-
sa do regime popular e democrático do pre-
sidente Nicolás Maduro”. Até hoje o homem

O GENERAL DE CORDÃO CARNAVALESCO 154


AUGUSTO NUNES

que é visitado por Hugo Chávez em forma


de passarinho espera a chegada da imensa
infantaria inexistente.
Maduro não foi o único vizinho tapea-
do por Stédile. Em 2008, por exemplo, ele
avisou que o colosso invisível entraria em
ação assim que começasse a guerra contra
os imperialistas que falam português. Se
o Itamaraty não topasse rever o Tratado
de Itaipu, e curvar-se sem chiadeira a to-
das as exigências e reivindicações do sócio
que fala espanhol, pelotões compostos de
soldados sem-terra se juntariam às Forças
Armadas do país vizinho e reforçariam a
vanguarda da invasão do Brasil. Berrada a
bravata, esqueceu a promessa e foi discur-
sar em palanques bolivarianos.
Quando a Lava Jato avançou na devassa
da folha de serviços criminosos acumulados
por Lula, o fundador da versão brasileira do
exército de Brancaleone reincidiu na bazó-

O GENERAL DE CORDÃO CARNAVALESCO 155


AUGUSTO NUNES

fia: promoveria uma ofensiva tremenda con-


tra quem ousasse tratar como bandido um
fora da lei. O ex-presidente foi duas vezes
condenado em duas instâncias e finalmen-
te engaiolado sem que aparecesse um úni-
co estafeta de Stédile, que preferiu despejar
bazófias em outras freguesias — e cuidar
dos preparativos para mais uma capitulação
vergonhosa na Venezuela de Maduro.
O problema é que o exército da lona pre-
ta inspira tanto medo quanto os movimen-
tos sociais que José Dirceu jurou que mo-
bilizaria em 1968 (para derrubar o governo
militar), em 1973 (para reeditar a revolução
cubana no oeste do Paraná), em 2005 (para
livrar-se da cassação do mandato decreta-
da pela Câmara dos Deputados), em 2012
(para mostrar ao Supremo Tribunal Fede-
ral que um guerreiro do povo brasileiro não
pode ser confundido com chefe de quadri-
lha), em 2016 (para salvar Dilma Rousseff

O GENERAL DE CORDÃO CARNAVALESCO 156


AUGUSTO NUNES

do impeachment) e, há poucos meses, para


ensinar a diferença que existe entre “ganhar
a eleição” e “tomar o poder”.

CORAGEM, STÉDILE. O VENTO


SOPRA A FAVOR DOS ARROGANTES
— POR ENQUANTO

Uma tropa liderada por Dirceu não hesi-


taria em render-se incondicionalmente caso
um recruta do tiro de guerra de Taquari-
tinga disparasse um único e escasso tiro de
festim. Os comandantes Dirceu e Stédile só
matam de vergonha seus comandados e fa-
zem morrer de rir seus inimigos. Mas o he-
rói dos campos culpa o presidente Jair Bol-
sonaro pelo sumiço da soldadesca. “Ainda
existem 4 milhões de famílias do campo que
gostariam de ter terra, mas não são loucas
de virar bucha de canhão para a polícia, para
esse Capitão insano que está por aí”, cho-

O GENERAL DE CORDÃO CARNAVALESCO 157


AUGUSTO NUNES

ramingou em agosto passado. Em 2019, as


invasões foram cinco. Em 2020 houve uma.
Neste ano, nenhuma.
Em 2007, primeiro ano do segundo man-
dato de Lula, chegou a 298 a soma dos aten-
tados ao direito de propriedade. Em 2014,
a sucessora Dilma Rousseff foi saudada por
200 invasões. As cifras começaram a baixar
no governo Temer, quando os mandados de
reintegração de posse deixaram de dormir
nas gavetas dos tribunais ou nas mesas dos
governadores amáveis. Bolsonaro nem pre-
cisou agir com rigor: bastou o corte dos pri-
vilégios para avisar que a festa acabara. Sté-
dile imediatamente entendeu que a melhor
opção era a rendição sem luta.
Capitulou na hora errada, informa o
crescente acervo de arbitrariedades, in-
solências e ilegalidades colecionadas pe-
los 11 superjuízes. Se conhecesse direito o
Timão da Toga, Stédile hoje estaria atro-

O GENERAL DE CORDÃO CARNAVALESCO 158


AUGUSTO NUNES

pelando sem perigo de cadeia o direito de


propriedade, a democracia e a paciência
dos brasileiros decentes.
O Supremo Tribunal Federal sempre se
fez de estrábico quando confrontado com
esses pontapés nos códigos legais. Mas nos
últimos tempos passou da leniência à cum-
plicidade ativa. Os ministros só enxergam
atos contra a democracia e ameaças às ins-
tituições se captados pela vista direita. Des-
de que não critique nenhum ministro, não
seja tolerante com o tratamento precoce da
covid-19 nem concorde com uma única vír-
gula dita por Jair Bolsonaro em sua live, o
mais medonho terrorista de esquerda será
premiado com um habeas corpus perpétuo
pela Corte, que, aliás, acaba de ganhar um
decano à altura dos atuais componentes:
Gilmar Mendes. Os demais ministros me-
recem Gilmar. Gilmar merece os demais
ministros. Sobretudo Alexandre de Moraes,

O GENERAL DE CORDÃO CARNAVALESCO 159


AUGUSTO NUNES

que em nome do Estado de Direito tortura


e assassina os direitos assegurados pelo re-
gime democrático.
Coragem, Stédile. O vento sopra a favor
dos arrogantes — por enquanto. Todo se-
mideus de picadeiro que trata o povo bra-
sileiro como se fosse um bando de idiotas
acaba na cova rasa reservada às perfeitas
bestas quadradas.

O GENERAL DE CORDÃO CARNAVALESCO 160


10 SETEMBRO 2021

O CIRCO BRASIL
VERMELHO
Ainda não desisti de juntar no mesmo
picadeiro todas as subespécies
do comunismo à brasileira
MONTAGEM REVISTA OESTE COM ILUSTRAÇÃO SHUTTERSTOCK
AUGUSTO NUNES

P
or falta de um BNDES irresponsavel-
mente perdulário, como o que torrou
bilhões de reais nos tempos de Lula e
Dilma, jamais saberei se o Circo Brasil Verme-
lho me transferiria dos apartamentos da classe
média para as coberturas dos ricaços. A ideia
foi parida pelos eventos de dimensões side-
rais ocorridos no último quarto do século 20.
Como um personagem de Nelson Rodri-
gues, acompanhei com o olho rútilo e o lábio
trêmulo a queda do Muro de Berlim, em 1989,
o meteórico derretimento da União Soviéti-
ca, em 1991, e, num mundo redesenhado em
dois anos, o fim da Guerra Fria. Convalescia
do espanto quando constatei, assombrado, o
sumiço da espécie que proliferava desde 1848
no Velho Continente: o comunista europeu.
Nenhum desses filhotes da Mãe Rússia resis-
tira à surpreendente orfandade.
Marx, Engels, Lenin, Stalin e outros al-
vos da adoração da seita pareciam coisa de

O Circo Brasil Vermelho 163


AUGUSTO NUNES

tempos remotíssimos. Mais grisalhas que o


Império Romano, mais antigas que as pirâ-
mides do Egito, as divindades sem devotos
não espantariam ninguém se revelassem que
haviam testemunhado o desentendimento
inaugural entre Abel e Caim.

TODOS ACHAM QUE CUBA SÓ


NÃO VIROU UMA INGLATERRA EM
ESPANHOL POR CAUSA DO BLOQUEIO
IMPOSTO PELOS EUA

E então bateu-me a certeza de que nada


disso ocorreria no impávido colosso nasci-
do para desafiar a lógica e desmoralizar a ra-
zão. Só o Brasil fala português. No subcon-
tinente amalucado, foi império enquanto a
vizinhança proclamava a independência de
republiquetas, virou República sem abdicar
da nostalgia pelos dois Pedros e, depois de
exigir nas ruas a volta das eleições diretas

O Circo Brasil Vermelho 164


AUGUSTO NUNES

para presidente, é frequentemente governa-


do por vices dispensados da luta pelo voto.
Na terra em que se plantando tudo dá, é
compreensível que tenha vicejado — e seja
hoje amplamente majoritário — o comu-
nista que esconde que é comunista. Com a
morte de Luiz Carlos Prestes e Oscar Nie-
meyer, comunistas confessos tornaram-se
tão raros quanto a ararinha-azul.
Os militantes do Partido da Causa Operária
(PCO), mesmo quando não estão a bordo da
van em que cabe a turma toda, não ocultam
o sonho de reprisar no Brasil o pesadelo im-
posto por 70 anos às nações subjugadas pelo
império soviético. Em contrapartida, até
os filiados ao Partido Comunista do Brasil
(PCdoB) preferem negar o que o nome de
batismo afirma. Seguindo o exemplo dos pri-
mos ideológicos homiziados no PT, no Psol e
em outras legendas, declaram-se apenas es-
querdistas, recitam juras de amor ao Estado

O Circo Brasil Vermelho 165


AUGUSTO NUNES

Democrático de Direito e fazem de conta que


a busca obsessiva da ditadura do proletariado
foi substituída pela construção da socieda-
de socialista. Todos capricham nas fantasias.
Mas não é difícil reconhecer um comunista
sob a camuflagem de guerreiro da liberdade.
O disfarce desanda quando a conversa é
desviada para questões internacionais. To-
dos acham que Cuba só não virou uma In-
glaterra em espanhol por causa do bloqueio
imposto pelos Estados Unidos. Amam o pa-
raíso caribenho, mas rejeitam a socos e pon-
tapés a ideia de lá morar porque antes pre-
cisam dar um jeito no Brasil. Queriam ser
Fidel quando crescessem e mantêm pendu-
rado num velho guarda-roupa aquele pôster
de Guevara. Depois da segunda dose de rum
e da terceira baforada, miram a fumaça do
charuto enquanto murmuram a doce lição
do carrasco do paredón: “Hay que endurecer,
pero sin perder la ternura”.

O Circo Brasil Vermelho 166


AUGUSTO NUNES

Comovidos com o sofrimento dos palesti-


nos, admitem que não seria má ideia afogar
Israel no Mar Vermelho, ou dissolver a única
democracia da região com uma bomba atô-
mica de procedência iraniana. Ainda incon-
formados com a partida precoce de Hugo
Chávez, aprovam o desempenho de Nicolás
Maduro com um único reparo: na Venezuela
há democracia até demais. Torceram pelas
FARC contra os presidentes eleitos pelos co-
lombianos, e agora exigem uma anistia am-
pla, geral e irrestrita para os colecionadores
de sequestros e assassinatos.
Quem não tiver paciência para enfrentar
o tsunami de cretinices pode chegar à ver-
dade pelo caminho mais curto: basta cha-
mar de “americano” alguém nascido nos Es-
tados Unidos. O certo é norte-americano,
ouvirá no segundo seguinte. Melhor ainda:
estadunidense. As incontáveis correntes,
tendências, alas e facções em que se divide

O Circo Brasil Vermelho 167


AUGUSTO NUNES

o conglomerado dos comunistas brasucas


aprende ainda no berçário que qualquer fi-
lho da América é americano.
É preciso, portanto, revogar com urgência
urgentíssima outra afronta arquitetada pelo
país que, por considerar-se dono do plane-
ta, expropria até palavras. A esquerda não se
une nem na cadeia, dizia-se nos botequins
em que se agrupavam guerrilheiros de festim.
Errado. Todas as ramificações sempre esti-
veram unidas no ódio ao imperialismo ian-
que. É esse o Grande Satã universal, o inimi-
go comum e irremissível, a origem de todas
as angústias, dores e tragédias que afligem o
resto da galáxia, o Mal a ser erradicado.
O balaio esquerdista festejou o 11 de se-
tembro de 2001 e chorou quando Osama Bin
Laden virou banquete de peixe. Agora cele-
bra a reconquista do Afeganistão pelo Tali-
bã. Não está claro se mudará de lado com a
entrada em cena da dissidência do Estado

O Circo Brasil Vermelho 168


AUGUSTO NUNES

Islâmico que acha moderados demais tanto


os decepadores de cabeças quanto os que
garantem que mulher sem burca é homem
— e outro infiel a explodir.
A ideia do Circo Brasil Vermelho amadu-
receu quando entendi que as extravagâncias
aglomeradas nas malocas do comunismo
à brasileira dariam um zoológico e tanto.
Por que não juntar num mesmo picadeiro
representantes de cada subespécie, e enri-
quecer com excursões pelo mais civilizado
dos continentes?
Quem nasceu depois de 1980 não perde-
ria a chance de conhecer, por um punhado
de euros, tantas evidências de que o melhor
do realismo mágico é menos delirante que
o acervo de esquisitices que abundam por
aqui. Em vez de ursinhos ciclistas, por exem-
plo, a plateia veria a filósofa Márcia Tiburi,
escalada pelo PT, empunhando um megafo-
ne para resumir em duas frases a Teoria da

O Circo Brasil Vermelho 169


AUGUSTO NUNES

Supremacia Anal: “O xx é sobretudo laico.


A gente tem de libertar o xx”.
Em vez de afligir-se com os voos dos trape-
zistas, os espectadores se divertiriam com o
jornalista designado pelo Partidão. Inventor
do Uber gratuito para terroristas, ele con-
taria como conseguiu resistir bravamente a
torturas sofridas por outros presos. Um jo-
gral do PCdoB declamaria pensamentos do
homicida albanês Enver Hoxha. O decano
do PSTU berraria “morte à burguesia” em
javanês. E o mais recente filiado ao Psol re-
petiria em linguagem tupi a primeira coisa
que diz o filho do casal de devotos que aca-
bou de aprender a falar: “Morte ao imperia-
lismo ianque”. A segunda é “mamãe”.
Trinta anos depois da implosão do Levia-
tã soviético, a paisagem política brasileira
não ficou tão diferente. As atrações de pica-
deiro continuam por aí. Não devo desistir
de virar dono de circo.

O Circo Brasil Vermelho 170


29 OUTUBRO 2021

CONCLUSÕES
DA CPI DA CPI
A Controladoria de Pilantras
e Impostores resume verdades que Renan
e seus parceiros tentam esconder
FOTO: MONTAGEM COM FOTO DE EDILSON RODRIGUES/SENADO FEDERAL DO BRASIL
AUGUSTO NUNES

N
o mesmo dia em que foram escala-
dos titulares e suplentes da Comissão
Parlamentar de Inquérito instaura-
da no Senado para investigar delinquências
ocorridas durante a pandemia de covid-19, a
direção de Oeste entendeu que aquilo me-
recia atenções especiais. A lista de convoca-
dos parecia chamada oral em pátio de cadeia.
A surpresa virou espanto com a escolha do
relator: Renan Calheiros, um notório pron-
tuário ainda em liberdade.
Sim, no faroeste à brasileira produzi-
do pela Era PT é o vilão que persegue o
xerife. Mas incumbir Renan de investigar
patifarias é algo como instalar Marcola, o
chefão do PCC, no Ministério da Justiça e
da Segurança Pública. Uma CPI desse ca-
libre exigiu a montagem na redação desta
revista de uma Controladoria de Pilantras
e Impostores, formada por jornalistas que
nunca tratam a verdade a socos e ponta-

Conclusões da CPI da CPI 173


AUGUSTO NUNES

pés. Assim nasceu a CPI da CPI.


A orientação repassada aos investigadores
limitou-se a dois lembretes: 1) ver as coisas
como as coisas são; 2) contar o caso como
o caso foi. Honrado com o cargo de rela-
tor, tive a missão facilitada pelo esforço dos
engajados na força-tarefa e, sobretudo, por
constatações feitas por J.R. Guzzo e Silvio
Navarro. O resumo das conclusões traduz o
bom trabalho da CPI da CPI. Aos fatos.
A origem
Os inimigos de Jair Bolsonaro jamais acei-
taram o resultado das eleições de 2018. As-
sim que a apuração dos votos terminou, os
devotos do derrotado tentaram impedir a
posse do vitorioso, com o pretexto de que
teria feito mau uso das redes sociais duran-
te a campanha. De lá para cá, o governo fe-
deral não conheceu um só minuto de sos-
sego. Mesmo nos fins de semana, feriados e
dias santos, continua a luta da tropa forma-

Conclusões da CPI da CPI 174


AUGUSTO NUNES

da pela esquerda parlamentar, por políticos


que só têm compromissos com os próprios
interesses, por figurões do Judiciário que
enxergam um imperador quando contem-
plam o espelho e por uma imprensa que vê
na derrubada do presidente da República a
razão de sua existência. Os conspiradores
fazem o diabo para impedir que o governo
funcione. A mais recente ofensiva ficou por
conta da CPI instaurada pelo Senado, por
ordem do Supremo Tribunal Federal, para
provar que o vírus chinês, no Brasil, não ma-
tou ninguém. Os mais de 600 mil mortos
foram vítimas do genocídio praticado por
Jair Bolsonaro.
O G7
Os partidos que deveriam defender o go-
verno conseguiram quatro vagas no time ti-
tular. Apenas Marcos Rogério, de Rondônia,
soube enfrentar com competência a feroci-
dade dos sete oposicionistas, escolhidos en-

Conclusões da CPI da CPI 175


AUGUSTO NUNES

tre o que há de pior no Senado. Já na sessão


inaugural, o relator Renan Calheiros, de Ala-
goas, o presidente Omar Aziz, do Amazonas,
e seu vice Randolfe Rodrigues, do Amapá,
deixaram claro que o parecer estava pronto
e as conclusões estavam concluídas. Mas fi-
cariam seis meses em campo para que a tor-
cida brasileira conhecesse melhor os inte-
grantes do que ficaria conhecido como G7.
Má ideia. Quem ainda ignorava o caso fi-
cou sabendo que Aziz foi anexado à fila de
investigados no Supremo Tribunal Federal
por ter tripulado um desvio de verbas desti-
nadas à saúde que somaram R$ 260 milhões.
Envolvidos no mesmo caso de polícia, fo-
ram presos a mulher e dois irmãos do agora
conselheiro. Em julho, Arthur Virgílio Neto
afirmou que Aziz só escapou de uma CPI da
Pedofilia instaurada pela Assembleia Legis-
lativa graças à interferência do ex-senador
e ex-prefeito de Manaus. “A pedido de sua

Conclusões da CPI da CPI 176


AUGUSTO NUNES

mãe, respeitável e querida senhora, livrei-o


de uma dura condenação penal e da desmo-
ralização completa”, contou Virgílio.
O Brasil que pensa e presta foi apresenta-
do aos chiliques e faniquitos de Randolfe,
uma voz de castrato à procura de ministros
do STF interessados em aumentar a
confusão. A plateia entendeu também que as
semelhanças entre o relator e o presidente
não apareceram agora. Faz tempo que os dois
são casos de polícia. Ganharam notoriedade
ou voltaram ao palco outros integrantes do
G7. (Nada a ver com o grupo das equipes que
lideram o campeonato brasileiro de futebol.
Esse G é de Gangue, com maiúscula.)
O senador Otto Alencar, da Bahia, é médi-
co formado, mas não veste um jaleco há mui-
tas décadas. Para mostrar que ainda lembra
que o antibiótico chegou depois da sulfa, re-
solveu animar o auditório com pegadinhas.
Por pouco não perguntou a alguma Vossa

Conclusões da CPI da CPI 177


AUGUSTO NUNES

Senhoria se sabia a diferença entre um ví-


rus e um ovário.
O senador Humberto Costa, de Pernam-
buco, mostrou-se tão preparado para socor-
rer algum doente quanto Otto Alencar. Mas
meio mundo lembrou que o mais aflitivo so-
prano do PT foi aquele ministro da Saúde
que se meteu no escândalo dos sanguessu-
gas e acabou ganhando do Departamento de
Propinas da Odebrecht o codinome Drácula.
O covidão
O G do G7 foi escancarado já na largada pela
demarcação das fronteiras do território a ser
devassado pela CPI. Na linha de tiro estavam
Bolsonaro e todos os que se moveram desde
março de 2020 nas cercanias do presidente
da República. Ficaram fora os 27 governado-
res e mais de 5.500 prefeitos do Brasil.
O alto comando da CPI fez de conta que
estava na China, combatendo o inimigo no
berço, quando o Supremo Tribunal Federal

Conclusões da CPI da CPI 178


AUGUSTO NUNES

resolveu que caberiam aos administradores


estaduais e municipais a montagem e a exe-
cução da estratégia para a guerra contra a
pandemia. Cuidariam da missão como bem
entendessem e com plena autonomia. Ne-
nhuma decisão tomada por governadores e
prefeitos poderia ser modificada, muito me-
nos vetada, pelo governo federal.
Cabia ao Planalto arranjar a verba e pagar
auxílios de emergência a quem perdeu em-
prego e renda por causa da repressão ao tra-
balho, à produção e à atividade econômica
imposta pelas “autoridades locais”. Previ-
sivelmente, juntaram-se aos estragos feitos
pelo coronavírus surtos de incompetência,
desperdício de bilhões de reais e uma ladroa-
gem explícita de dimensões amazônicas.
A decretação do estado de calamidade pú-
blica é uma gazua que, graças à dispensa de
licitações e concorrências públicas, permite
queimar e embolsar dinheiro até com a po-

Conclusões da CPI da CPI 179


AUGUSTO NUNES

lícia por perto. As “autoridades locais” re-


ceberam ao longo do último ano, em verbas
federais, cerca de R$ 60 bilhões para cuidar
da epidemia. Cuidaram do que acharam mais
urgente. Aumentar o patrimônio da família,
por exemplo.
Entre março de 2020 e julho de 2021, re-
gistraram-se bandalheiras bilionárias em to-
dos os Estados. Provas robustas acumulam-
-se nos porões de centenas de prefeituras.
Ainda assim, a CPI pilotada por sete sena-
dores que viravam oito, nove ou dez quan-
do se tornava necessária a solidariedade de
suplentes negou-se a enxergar a portentosa
onda de saques.
Wilson Witzel conseguiu a proeza de ser
despejado do governo do Rio antes de che-
gar à metade do governo. Pousou na CPI
como “convidado”, berrou um falatório de
inocente injustiçado, combinou com os an-
fitriões uma “sessão secreta” e foi dispensa-

Conclusões da CPI da CPI 180


AUGUSTO NUNES

do de explicações sobre o caso dos hospitais


de campanha que foram pagos sem terem
existido. Intimados por uma CPI de verda-
de, o prefeito de Araraquara, Edinho Silva,
talvez reencontre na Assembleia Legislativa
do Rio Grande do Norte seu “irmão de alma”
Carlos Gabas, que por decisão do Consórcio
Nordeste chefiou o combate à pandemia e o
ataque às verbas federais.
Fraternalmente, foram poupados pelos
detetives de picadeiro que até o começo des-
ta semana agiram em Brasília. Será mais di-
fícil driblar a CPI potiguar, que sabe como
tratar fabricantes de álibis mambembes.
O relator
Em 2007, ao tropeçar em outra pilha de
patifarias, Renan Calheiros era presidente
do Senado. Encorajado pelo acervo de dos-
siês que coleciona e, segundo a lenda, guar-
dam um colosso de deslizes protagonizados
por dezenas de políticos, propôs um acor-

Conclusões da CPI da CPI 181


AUGUSTO NUNES

do aos colegas: toparia renunciar se o man-


dato não fosse cassado. Escapou por pouco
da aposentadoria precoce, atestam trechos
de um bate-boca com o cearense Tasso Je-
reissati ocorrido quando a degola ainda lhe
ameaçava o pescoço:
— Renan, não aponte esse dedo sujo pra cima
de mim! Estou cansado de suas ameaças.
— Esse dedo sujo infelizmente é o de Vossa
Excelência. São os dedos dos jatinhos que o
Senado pagou.
— Cangaceiro, cangaceiro de terceira categoria!
— Seu merda… — rebateu Renan.
Nesta semana, lá estava a assinatura de
Tasso, representante do PSDB na CPI, en-
dossando o palavrório que ergue um monu-
mento à pilantragem e à impostura. O se-
nador cearense não pode ter esquecido o
que Renan fez antes daquele duelo verbal
em 2007 — nem ignora o que andou fazen-
do nos últimos 15 anos. Mas também Tasso

Conclusões da CPI da CPI 182


AUGUSTO NUNES

parece achar que o Grande Satã a exorcizar


é Jair Bolsonaro, e que essa tarefa patriótica
justifica as mais repulsivas tessituras.
Alianças do gênero exigem prodigiosas
acrobacias. Deve-se esquecer, por exemplo,
que a CPI passou ao largo dos governadores
larápios para evitar que a relação de depoen-
tes incluísse Renan Filho, candidato ao Se-
nado, ou Helder Barbalho (filho do suplente
Jader Barbalho), em busca de um segundo
mandato no Pará.

TENTATIVAS DE INTIMIDAÇÃO
MAIS DE UMA VEZ
PROVOCARAM, EM VEZ DE TEMOR,
GARGALHADAS NACIONAIS

Dez inquéritos em tramitação no Supremo


Tribunal Federal atestam que Renan ainda
é o recordista na modalidade bandidagem
com direito a foro privilegiado. Outros três

Conclusões da CPI da CPI 183


AUGUSTO NUNES

correm em sigilo ou sob segredo de Justiça.


A marca seria ainda mais impressionante se
o reincidente compulsivo não tivesse con-
seguido arquivar dez inquéritos por falta de
provas, por decurso de prazo ou por amiza-
de incestuosa entre réu e juiz.
“É falso que sejam 17 os inquéritos em
tramitação no Supremo Tribunal Federal
que envolvem Renan Calheiros. São nove”,
comunicou há poucos meses uma agência
de checagem. A subserviência da impren-
sa velha e suas agências natimortas induziu
Renan a dar um passo bem maior do que
a perna. O relator pediu a quebra do sigilo
bancário da rádio Jovem Pan, de uma pro-
dutora de documentários e de alguns sites
conservadores, sob a acusação de que dis-
seminavam fake news sobre a pandemia.
Causou estranheza a abrangência da de-
vassa nas contas: Renan queria que fosse
examinada a movimentação financeira a

Conclusões da CPI da CPI 184


AUGUSTO NUNES

partir de 2018, quando ninguém podia pre-


ver a aparição do vírus chinês. A reação dos
próprios aliados aconselhou-o a transferir
para Drácula a ideia de jerico e a confor-
mar-se com os agrados do jornalismo eu-
foricamente submisso.
Tentativas de intimidação mais de uma
vez provocaram, em vez de temor, gargalha-
das nacionais. Foi assim ao comparar o Bra-
sil de Bolsonaro à Alemanha de Hitler. Ao
dissertar sobre Hermann Goering, divertiu
a plateia ao pronunciar em cangacês castiço
o nome do temido nazista: “Góringue”. Du-
rante o depoimento do empresário Luciano
Hang, resolveu emparedar o depoente com
a interpelação fulminante: perguntou-lhe se
também lidava com “creptomoeda” e “bi-
ticóio”. Hang replicou com o jab na testa:
“Nem sei o que é isso”.
Mas nenhuma ousadia resultou tão de-
sastrosa quanto a ideia de transformar

Conclusões da CPI da CPI 185


AUGUSTO NUNES

Bolsonaro em “genocida”. Na véspera da


apresentação do relatório, Renan foi aler-
tado por advogados: seria mais fácil para o
relator provar que é um homem honrado
do que convencer qualquer juiz da perti-
nência da acusação. A retirada da sandi-
ce que julgava suficientemente grave para
garantir o impeachment transformou o se-
nador alagoano no disseminador da mais
desprezível fake news registrada desde o
começo da pandemia.
Ansioso por safar-se da desmoralização,
Renan piorou as coisas. Colocou na cabeça
— e no relatório — que Bolsonaro deveria
pelo menos ser punido por “epidemia com
resultado de morte”. O Código Penal infor-
ma que só se enquadra nesse crime quem
causa um surto de bom tamanho “median-
te a propagação de germes patogênicos”.
Teria Bolsonaro capturado num laborató-
rio chinês um bando de vírus responsáveis

Conclusões da CPI da CPI 186


AUGUSTO NUNES

pelo maior desastre sanitário dos últimos


100 anos, e saído pelo mundo contaminan-
do amigos e inimigos?
Ouça o conselho amparado nas conclu-
sões da CPI da CPI, senador: agora sosse-
gue. Melhor curtir enquanto é tempo a liber-
dade inexplicável. E leve junto Omar Aziz.
Os dois, como o resto da turma, devem des-
culpas aos homens e mulheres agredidos e
afrontados numa CPI que, como constatou
J.R. Guzzo, nunca se dispôs a apurar com
honestidade erros eventualmente ocorri-
dos no combate à pandemia.
O G7 não investigou coisa alguma. O que
fez foi ocultar crimes. Comportou-se nos
interrogatórios como uma delegacia poli-
cial de ditadura; ofendeu, perseguiu e piso-
teou os direitos das testemunhas como ci-
dadãos e como seres humanos. A seita dos
insolentes e a tropa de choque arrogante
só acusaram, como se os interrogados fos-

Conclusões da CPI da CPI 187


AUGUSTO NUNES

sem criminosos comprovados e já estives-


sem condenados antes que pudessem abrir
a boca. A CPI da CPI concluiu que, ao fim
dos interrogatórios, os inquisidores é que
deveriam ouvir dos depoentes a merecidís-
sima voz de prisão.

Conclusões da CPI da CPI 188


COVID

12 NOVEMBRO 2021

UM DEPUTADO É
O ALVO PREDILETO
DO CARCEREIRO
FORA DA LEI
Alexandre de Moraes inventou
o perseguido político meio preso
e meio solto
FOTO: MICHEL JESUS
AUGUSTO NUNES

É
improvável que a Guerra das Malvinas
tivesse acontecido se o general Leo-
poldo Galtieri, ditador da Argentina,
não fosse tão parecido fisicamente com o
ator George C. Scott, que interpretou no ci-
nema a figura do general George Patton, que
fez bonito na Segunda Guerra Mundial.
Em 2 de abril de 1982, o tirano portenho
exagerou no uísque, meteu na cabeça que
era uma reencarnação do militar america-
no, decidiu que chegara a hora de retomar
da Inglaterra o arquipélago que só o país vi-
zinho chama de Malvinas e ordenou a inva-
são das ilhas que o resto do mundo chama
de Falkland. A Marinha britânica topou o
desafio, atravessou o oceano com um filho
da rainha Elizabeth na nau capitânia e liqui-
dou a pendência a tiros de canhão. Galtieri
rendeu-se em 14 de junho, renunciou ao po-
der quatro dias depois e sumiu na poeira da
História até morrer, em 2002. Confundir o

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 191


AUGUSTO NUNES

intérprete com o personagem é um perigo.


Alexandre de Moraes, ministro do Supre-
mo Tribunal Federal, acha-se parecido com
o ator Yul Brynner, que em 1960 fez bonito
no papel do pistoleiro do bem Chris Adams
em Sete Homens e um Destino. (O título ori-
ginal é ainda mais excitante: The Magnificent
Seven. A tradução literal resultaria em algo
como Os Sete Magníficos, Os Sete Glorio-
sos, Os Sete Soberbos ou Os Sete Grandio-
sos. Não é pouca coisa.)
O protagonista, vivido por Brynner, é
contratado por moradores de um lugare-
jo na fronteira com o México, atormenta-
dos pela opressão da quadrilha chefiada
pelo brutal Calvera, e cumpre a missão de
libertá-los da rotina de violências lideran-
do outros seis anti-heróis. Pelo que anda
fazendo, Moraes também parece enxergar
no espelho não um sósia de Yul Brynner,
mas um Chris Adams de toga.

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 192


AUGUSTO NUNES

Os acordes da lira do delírio que já há al-


guns anos ditam o ritmo da trilha sonora
do STF se tornaram especialmente agudos
quando Dias Toffoli, então presidente da
Corte, promoveu Moraes a gerente do inve-
rossímil inquérito das fake news.
Impetuoso como um Leopoldo Galtieri
à paisana, o ministro fez da maluquice co-
nhecida como “inquérito do fim do mundo”
a arma mais letal na guerra contra solertes
inimigos do STF, das instituições e da demo-
cracia. Na fase de aquecimento, o juiz durão
pendurou no peito uma imaginária estrela
de xerife para censurar revistas digitais, in-
timar meia dúzia de possíveis admiradores
de ditaduras e colocar na alça de mira sites
infectados por ideias caras ao presidente Jair
Bolsonaro. No passo seguinte, Moraes pro-
curou inibir com arbitrárias temporadas na
cadeia quem usa a internet para criticar o
Supremo. No começo deste ano, acumulan-

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 193


AUGUSTO NUNES

do os papéis de vítima, investigador, acusa-


dor e juiz de todos os processos que tratem
de fake news, a versão nativa de Chris Adams
enfim encontrou seu Calvera na figura de
Daniel Silveira, eleito deputado federal em
2018 pelo PSL do Rio de Janeiro.
O mais imbecil dos alunos da pior faculda-
de de Direito do Brasil sabe recitá-la em la-
tim, vertê-la para o português e apreender o
significado da frase que resume um irrevogá-
vel mandamento jurídico: Nullum crimen nulla
poena sine praevia lege. Perfeito: “Não há crime
nem pena sem lei anterior que o defina”.
O gordo currículo de Alexandre de Mo-
raes avisa que o futuro jurista deve ter de-
clamado esse latinório dois minutos depois
de aprender a falar. O autor de uma pilha
de livros sobre temas associados ao Direito
Constitucional está cansado de saber que
um “mandado de prisão em flagrante”, como
o que expediu para engaiolar Silveira, tem o

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 194


AUGUSTO NUNES

mesmo valor de uma cédula de R$ 4. Sabe


que o instituto da imunidade parlamentar
impede que um integrante do Congresso
seja punido por palavras que pronunciou ou
escreveu, opiniões que emitiu ou votos que
efetivaram alguma opção. Sabe que a proibi-
ção de ser juiz em casos em que se é vítima
é um dos pilares do Poder Judiciário.
Mas Moraes também sabe que, no Brasil
destes tempos estranhos, ministros do Su-
premo são tão inimputáveis quanto os be-
bês de colo, os índios de tribos isoladas ou
os Napoleões de hospício.

AOS OLHOS DAS AUTORIDADES


AMERICANAS, O JORNALISTA APENAS
EXERCEU O DIREITO À LIBERDADE
DE EXPRESSÃO

Disposto a tudo para mostrar quem manda


no País do Carnaval, o ministro resolveu que

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 195


AUGUSTO NUNES

a melhor maneira de manter a democracia


intocada era mandar às favas o Estado De-
mocrático de Direito. Inventou o flagrante
perpétuo, demitiu por justa causa a imuni-
dade parlamentar, exonerou princípios jurí-
dicos seculares, atropelou cláusulas pétreas
da Constituição e, com a insolência de um
fora da lei de nascença, deformou o Código
Penal e o Código de Processo Penal com in-
terpretações paridas às pressas.
Ao concluir as manobras que resultaram
no encarceramento de Daniel Silveira, Mo-
raes havia ressuscitado a figura do preso
político, incompatível com o regime que
simultaneamente louva e espanca. Óscar
Arias, ex-presidente da Costa Rica contem-
plado com o Prêmio Nobel da Paz, ensi-
na que “não existem presos políticos nas
democracias. Se houver algum, o país não
é democrático”. Na América Latina, só há
presos políticos em Cuba, na Venezuela, na

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 196


AUGUSTO NUNES

Nicarágua e, graças ao STF, no Brasil.


No momento, permanecem ilegalmente
na cadeia o ex-deputado Roberto Jefferson
e o caminhoneiro Zé Trovão. O jornalista
Allan dos Santos teria engordado a lista se
não estivesse vivendo nos Estados Unidos.
Para abrandar a frustração, o carcereiro
compulsivo transformou Allan em foragi-
do, determinou sua inclusão nos cartazes
da Interpol e solicitou à Justiça america-
na que o extraditasse. Só então descobriu
que o tratado subscrito pelo Brasil e pelos
Estados Unidos restringe a extradição a
autores de atos considerados criminosos
por ambos os países.
Aos olhos das autoridades americanas,
o jornalista apenas exerceu o direito à li-
berdade de expressão. Se o caso chegasse
à Corte Suprema dos EUA, Alexandre de
Moraes é que viraria réu por abuso de auto-
ridade. E acabaria enquadrado nos artigos

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 197


AUGUSTO NUNES

que tratam de juízes que perseguem e pu-


nem — sem a indispensável participação do
Ministério Público, sem o acesso dos advo-
gados aos autos, sem o devido processo le-
gal, sem o direito de ampla defesa — quem
ousar dizer ou escrever coisas que pareçam
ofensivas a algum titular do Timão da Toga
ou à equipe inteira.
No começo desta semana, ao decretar o
fim da “prisão preventiva” de Daniel Silvei-
ra, o ministro deixou claro que é ele o seu
perseguido predileto. Se fosse assaltado por
um surto de humildade, reproduziria a gran-
de imagem de Nelson Rodrigues: sentado
no meio-fio, estaria chorando lágrimas de
esguicho e pedindo perdão aos transeuntes.
Se não fosse um prepotente de berço, ele
simplesmente determinaria a soltura do de-
putado — e ponto final.
Em vez disso, mostrou que nunca perde a
chance de afrontar a sensatez, zombar dos

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 198


AUGUSTO NUNES

genuínos juristas e esticar as filas que se es-


tenderão, no próximo Carnaval, diante das
barracas abarrotadas de máscaras que simu-
larão a carranca do campeão de impopula-
ridade. “Os atos criminosos cometidos pelo
réu são gravíssimos”, reiterou Moraes, “e
ainda serão julgados pelo plenário do STF.”
Tais atos, fantasiou, “não só atingiram a
honorabilidade e constituíram ameaça ile-
gal à segurança dos ministros do SUPRE-
MO TRIBUNAL FEDERAL, como se reves-
tiram de claro intuito de tentar impedir o
exercício da judicatura, notadamente a in-
dependência do Poder Judiciário e a manu-
tenção do Estado Democrático de Direito,
em claro descompasso com o postulado da
liberdade de expressão, dado que o denun-
ciado propagou a adoção de medidas anti-
democráticas contra a CORTE, insistiu em
discurso de ódio e a favor do AI-5 e de me-
didas antidemocráticas”.

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 199


AUGUSTO NUNES

O falatório pernóstico não resiste a três


ou quatro perguntas em língua de gente. Por
exemplo: se os exageros verbais de Silveira
foram “crimes gravíssimos”, em qual cate-
goria figuram as medonhas execuções per-
petradas por bandidos que o Supremo vive
soltando? Onde o ministro enxergou a imi-
nente interrupção do funcionamento do Ju-
diciário? Em que trecho de qual código está
escrito que ameaças não consumadas dão
cadeia? Se sentir saudade do AI-5 é caso de
polícia, que castigos merecem os que amam
a ditadura do proletariado?
A continuação da conversa fiada ressalvou
que a soltura chegaria escoltada por duas
“medidas cautelares”, e com isso Moraes
conseguiu inventar uma brasileiríssima cre-
tinice: o meio solto e meio preso. O depu-
tado poderá sair de casa, tomar café no bar
da esquina, engraxar os sapatos, até mesmo
bronzear-se na praia, tudo isso liberado da

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 200


AUGUSTO NUNES

tornozeleira eletrônica. É provável que logo


esteja percorrendo os corredores da Câma-
ra (que endossou sua prisão por 364 votos
contra 130) e concedendo entrevistas.
Mas não poderá fazer tudo o que é per-
mitido aos demais beneficiários do direito
de ir e vir. A primeira restrição o proíbe de
“ter qualquer forma de acesso ou contato”
com outros investigados no inquérito do
fim do mundo, a menos que também sejam
deputados federais. A segunda medida cau-
telar é um desfile de minúcias amalucadas.
O meio preso e meio solto está proibido de
“frequentar toda e qualquer rede social, em
nome próprio ou ainda por intermédio de
sua assessoria de imprensa ou de comuni-
cação e de qualquer outra pessoa, física ou
jurídica, que fale ou se expresse e se comuni-
que (mesmo com o uso de símbolos, sinais e
fotografias), em seu nome ou indiretamen-
te, de modo a dar a entender esteja falando

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 201


AUGUSTO NUNES

em seu nome ou com o seu conhecimento,


mesmo tácito”.
Proibir o acesso de um deputado federal
a redes sociais equivale a condená-lo à der-
rota na tentativa de reeleger-se. É precisa-
mente esse o objetivo do advogado formado
pela Faculdade do Largo de São Francisco
que foi promotor público, procurador-geral
do Estado, supersecretário na administra-
ção do prefeito Gilberto Kassab, secretário
de Justiça e depois da Segurança Pública
em dois mandatos do governador Geraldo
Alckmin e já parecia a caminho da precoce
aposentadoria política quando o destino se
somou à sorte e à esperteza para colocá-lo
na antessala de um gabinete no Supremo
Tribunal Federal — o sonho perseguido
desde o berçário.
Ele era secretário de Segurança do gover-
no paulista quando comandou com a dis-
crição necessária a localização e captura do

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 202


AUGUSTO NUNES

hacker que invadira o celular de Marcela Te-


mer, mulher de Michel Temer. A gentileza
seria retribuída depois que o impeachment
da presidente Dilma Rousseff instalou no
Palácio do Planalto o marido agradecido.
Promovido a ministro da Justiça, acabou
transferido para o outro lado da Praça dos
Três Poderes graças à vaga aberta pela mor-
te de Teori Zavascki.
Para surpresa do doutor em Direito Cons-
titucional Alexandre de Moraes, o político
Alexandre de Moraes topou virar juiz do STF
antes que Temer terminasse de formular o
convite. Na tese que apresentou ao concluir
o curso de doutorado na Universidade de
São Paulo, o atual ministro sustentou que
deveria ser abolida a indicação para o Pre-
tório Excelso de quem ocupa um cargo de
confiança do presidente da República.
“A vaga na Corte não se presta a demons-
trações de gratidão política, nem pode ser-

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 203


AUGUSTO NUNES

vir de prêmio pessoal para demonstrações


de fidelidade político-partidária”, argu-
mentou o premiado pela fidelidade a Mi-
chel Temer. Se o Moraes de toga tivesse
compromisso com o que escreveu no sé-
culo passado o Moraes de terno, não teria
concordado com a transformação do STF
num simulacro de vara criminal que julga
questões sem quaisquer vestígios de pa-
rentesco com as reais atribuições da Corte.
No livro Constituição do Brasil Interpretada,
o futuro carcereiro supremo afirmou que
o STF deveria ser “um tribunal exclusiva-
mente constitucional, deixando de atuar
como última instância em causas variadas”.
Se ainda pensasse como o homônimo que
existiu no século 20, não estaria piorando a
imagem da Corte com o caso Daniel Silvei-
ra. (E tampouco teria determinado, como
fez há dias, o afastamento da presidência
nacional do PTB do ex-deputado federal

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 204


AUGUSTO NUNES

Roberto Jefferson, outro hóspede involun-


tário do seu cativeiro particular.)
Nosso Chris Adams de chanchada cavalga
rumo ao destino em companhia de cinco ho-
mens (Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Ricardo
Lewandowski, Luís Roberto Barroso e Edson
Fachin) e uma mulher (Cármen Lúcia, que
se reveza com Rosa Weber). Pelo desempe-
nho do elenco, pode estar em gestação um
clássico do faroeste à brasileira, que sempre
termina com o triunfo dos bandidos. No fil-
me de 1960, a vitória do personagem inter-
pretado por Yul Brynner livra os habitantes
indefesos da submissão a uma quadrilha. Na
versão protagonizada pelo Chris Adams de
toga, graças às proezas dos sete cavaleiros
do Apocalipse brasileiro, o bandido Calvera
pode virar xerife do vilarejo.
Com reportagem de Cristyan Costa.

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei 205


03 DEZEMBRO 2021

OS IMODERADOS
NO PODER
O Supremo Tribunal Federal confessa
que resolveu governar o Brasil
FOTO: ROSINEI COUTINHO/SCO/STF
AUGUSTO NUNES

S
e tivesse mais intimidade com os as-
sombros já acontecidos, por aconte-
cer ou em andamento no colosso ao
sul de Macondo, Gabriel García Márquez
talvez ficasse tentado a alterar a abertura
de Cem Anos de Solidão, para avisar que mui-
tos anos depois, diante do pelotão de fuzi-
lamento, o coronel Aureliano Buendia lem-
braria aquele dia remoto em que seu pai
resolveu contar-lhe coisas espantosas que
só ocorrem no Brasil. E com tamanha fre-
quência que o mundo de terras e florestas,
que nunca foi para amadores, agora desafia
também os ditos especialistas e logo esta-
rá a uma distância sideral da compreensão
de sumidades estrangeiras ou aqui nascidas.
Nesta terceira década do terceiro milênio, o
Brasil decididamente não faz sentido — se
é que algum dia já fez.
É verdade que não estamos sós no sub-
continente sempre em desvario. Há mui-

Os imoderados no poder 208


AUGUSTO NUNES

to tempo os que não demitiram a sensatez


desconfiam que basta mudar as inscrições
nas placas para que toda a América do Sul
se transforme, sem mudar rigorosamente
nada e sem que o resto do mundo estranhe,
no que Dilma Rousseff qualificaria de maior
hospício da galáxia. Nenhuma tribo escapa.
Ao sul, a saga argentina compõe o mais
extenso, dramático e enlouquecido dos tan-
gos. Num trecho da letra escrita em pouco
mais de dois séculos, os hermanos canoni-
zam a primeira-dama que fazia bonito num
cabaré antes de brilhar na Casa Rosada,
transformam em moeda de troca o cadáver
de Evita, mantêm insepulta por anos a fio
primeira mulher de Juan Perón, devolvem
o poder ao viúvo já casado com a futura
sucessora também recrutada num cabaré e
assim tornam inevitável a reedição piorada
do golpe militar dos anos 1950. Em outro
trecho do tango, o general que proclamara

Os imoderados no poder 209


AUGUSTO NUNES

a ditadura 18 meses antes exagera no uísque


e decide recuperar a tiros de canhão ilhas
pertencentes ao império britânico. Perdeu
a guerra e o emprego.
Ao norte, há o país mais pobre da Améri-
ca Latina onde houve no fim do século 20
a Venezuela Saudita, assim batizada por as-
sentar-se num oceano de petróleo compa-
rável ao que continua garantindo a gastança
da família que domina o reino árabe. O que
foi o latifúndio de Hugo Chávez e agora é
o fazendão de Nicolás Maduro precisou de
apenas 22 anos para, neste fim de 2021, su-
perar o Haiti no ranking dos miseráveis que
sobrevivem no centro e na parte meridional
do continente americano.
Enquanto percorria em alta velocidade a
trilha da falência, Chávez bancou o abas-
tecimento de Cuba, vendeu barris a preços
de pai para filho aos parceiros bolivarianos,
arrendou a alta oficialidade do Exército e

Os imoderados no poder 210


AUGUSTO NUNES

exumou a ossada de Simón Bolívar para


conferir a suspeita: o Herói da Independên-
cia morreu envenenado ou não? Decepcio-
nado com a resposta negativa, Chávez re-
nunciou ao papel de Bolívar reencarnado.
Morto em 2013, o exterminador do futuro
tem visitado Maduro em forma de passa-
rinho, talvez para ampliar o fiasco da dita-
dura bolivariana com os conselhos que pia
nos ouvidos do herdeiro.

TOFFOLI ACABA DE INFORMAR


DURANTE UM PASSEIO EM LISBOA
QUE O REGIME ESTABELECIDO PELA
CONSTITUIÇÃO FOI SUBSTITUÍDO
PELO SEMIPRESIDENCIALISMO

A vizinhança, como se vê, vive tentando


provar que o Brasil não é tão diferente assim.
Mas a realidade do País do Carnaval anda
superando com perturbadora constância as

Os imoderados no poder 211


AUGUSTO NUNES

páginas mais delirantes do realismo mági-


co. O coronel Aureliano Buendia combateu
em 32 revoluções, e montou numa delas um
sistema de segurança tão rigoroso que, ao
visitar Macondo, nem a mãe foi autorizada
a aproximar-se e abraçá-lo. Mas em nenhum
livro do admirável autor colombiano aparece
algum país governado por uma junta de juí-
zes que, sem golpes, fraudes nem quartela-
das, se promove a Poder Moderador, revoga
o regime presidencialista, proclama em se-
gredo a República Parlamentarista Judiciá-
ria e, favorecida pela omissão popular e pela
covardia do Poder Legislativo, trata a socos
e pontapés a Constituição que lhe cumpre
defender. É o que fez nos últimos anos, con-
tinua fazendo e não pretende parar de fazer
o grupo formado pelos ministros do Supre-
mo Tribunal Federal.
Examinados individualmente, nenhum
dos três parteiros da conspiração parecia

Os imoderados no poder 212


AUGUSTO NUNES

perigoso. Gilmar Mendes, chefe da Advo-


cacia-Geral da União no governo Fernando
Henrique Cardoso, gastava tanto tempo no
esforço para tornar lucrativa a instituição
de ensino que explora que sobravam poucos
minutos para lidar com processos. Lewan-
dowski, que chegou ao Supremo porque Ma-
risa Letícia morava ao lado da família com
sobrenome estrangeiro e contou ao mari-
do presidente que ouvira da mãe rasgados
elogios ao filho sabido, sempre se limitou a
provar que no Brasil qualquer bacharel em
Direito pode virar ministro. Tal constatação
era diariamente ratificada por Toffoli, o úni-
co juiz da história do tribunal que ganhou
uma toga depois de reprovado duas vezes
no concurso que autoriza o ingresso na ma-
gistratura paulista.
Depois que a bancada que lideram se tor-
nou amplamente majoritária, os três parcei-
ros subiram na vida. Proibido de lidar em

Os imoderados no poder 213


AUGUSTO NUNES

primeira instância com briga de bêbado em


Marília, onde nasceu, Toffoli acaba de in-
formar durante um passeio em Lisboa que
o regime estabelecido pela Constituição foi
substituído pelo semipresidencialismo, que
estamos a caminho do parlamentarismo e
que, desde o começo da pandemia de coro-
navírus, o STF acumula as funções de Poder
Moderador. Gilmar se gaba de ter atraído
para o grupo a outrora voluntariosa Cármen
Lúcia, a mesma que reagiu a pancadas na li-
berdade de expressão com uma velha e boa
frase-síntese: “Cala a boca já morreu”.
Morreu nada, está cansada de saber. Só
que agora quem tortura o Estado Democrá-
tico de Direito é a turma com a qual convi-
ve. Enquanto o pai viveu, a filha ligava todo
dia para conversas de bom tamanho. Órfã,
a ministra se fez adotar por Celso de Mello
e, depois da aposentadoria do Pavão de Ta-
tuí, por Gilmar Mendes. Além do pai, Cár-

Os imoderados no poder 214


AUGUSTO NUNES

men Lúcia perdeu o rumo.


O STF se tornou bem mais impetuoso com
a entrada em campo do centroavante rom-
pedor Alexandre de Moraes, artilheiro do
Timão da Toga. E as divergências sumiram
com a rendição de antigos desafetos de Gil-
mar. Edson Fachin trabalha de cócoras des-
de que implodiu a Lava Jato com a anula-
ção, por motivos geopolíticos, dos processos
que instalaram Lula na gaiola. Luís Roberto
Barroso, que via no Maritaca de Diamanti-
no uma figura horrível, agora parece achar
que, dependendo do cenário e do ângulo de
visão, o Juiz dos Juízes pode exibir até uma
faceta sedutora. Nesta semana, chegou a vez
do presidente Luiz Fux, único integrante do
Supremo que foi juiz de carreira.
No discurso de posse, entre outras pro-
messas, Fux garantiu que decisões impor-
tantes seriam decididas no plenário, pelos
votos dos 11 ministros. A medida reduziria

Os imoderados no poder 215


AUGUSTO NUNES

os poderes das duas turmas e, sobretudo, er-


radicaria a praga do voto monocrático, que
confere a uma única toga o direito de remo-
ver as fronteiras que separam os três Pode-
res, legislar em territórios alheios ou espan-
car impunemente a Constituição. No último
dia de novembro, Fux valeu-se do voto mo-
nocrático para revogar a decisão do Tribu-
nal de Justiça do Rio que anulou um decreto
do prefeito Eduardo Paes sobre a obrigato-
riedade do passaporte sanitário. Deve ter
achado pouco. No texto em que tenta jus-
tificar a arbitrariedade, o presidente do Su-
premo comunicou aos juízes da primeira e
segunda instâncias do Poder Judiciário que
estão todos proibidos de contrariar o prefei-
to. Fux revogou antecipadamente decisões
que ainda não existem. Talvez queira matar
de inveja Alexandre de Moraes.

Os imoderados no poder 216


FOTO: DIVULGAÇÃO

AUGUSTO NUNES
Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-
chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal
do Brasil, do Estado de São Paulo, do Zero Hora e da
revista Época. Atualmente, é comentarista do Jornal da
Manhã e do programa Os Pingos nos Is, ambos da Rádio
Jovem Pan. Também é colunista do R7 e comentarista
do Jornal da Record. Apresentou durante oito anos
o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos
seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram
a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas.
Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de
Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança
Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.
LINKS

Dilma jaz no mausoléu


das bestas quadradas

Retrato 3X4 (não autorizado)


de José Dirceu

Ciro Button. Ou Benjamin Gomes

Lula é a versão degenerada


do São Jorge de bordel

Pequeno Glossário da Novilingua


Luloesquerdista

Nunca haverá uma primavera como aquela

Autópsia de uma chicana

Duas mulheres. Ou dois sucos de laranja

O estranho caso de Alexandre de Moraes

A quarentena dos desvalidos


LINKS

Os vigaristas da adversativa

Termo de declarações prestadas


por Renan Calheiros

A verdade ressuscitada

O general de cordão carnavalesco

O Circo Brasil Vermelho

Conclusões da CPI da CPI

Um deputado é o alvo predileto


do carcereiro fora da lei

Os imoderados no poder
LE IA M A I S E M

R E V I S TA O E S T E . C O M

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