Você está na página 1de 2

Especial: Dossiê

Estudos de Brincar
Psicologia para7(1),
2002, 163
quê?163-164

12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012
12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012
12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012
E S P E C I A L : D O S S I Ê
12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012
12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012
12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012
12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012
12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012

Brincar para quê? Uma abordagem etológica ao estudo da brincadeira


Apresentação

E
ste dossiê teve origem em um simpósio apresen- diferentes, há pontos de aproximação quanto à maneira
tado na XXXI Reunião Anual da Sociedade Bra- como os indivíduos imaturos se comportam. Isto signifi-
sileira de Psicologia em 2001. Nesse simpósio, fo- ca que há a possibilidade de interpretar o comportamento
ram apresentados e discutidos os três primeiros traba- das mais diferentes espécies, a humana incluída, através
lhos e, ao dossiê, foi acrescentado o trabalho de Vieira e de conceitos que levam em consideração as pressões
Sartorio. A motivação para discutir esse tema partiu do evolutivas que a espécie enfrentou.
interesse comum das organizadoras sobre o fenômeno O trabalho de Spinelli, Nascimento e Yamamoto des-
do brincar sob uma perspectiva etológica ou evolutiva. creve a brincadeira em botos cinza em seu ambiente natural,
A identificação deste comportamento é, em geral, fá- uma espécie diferente do homem em vários aspectos, não o
cil pela sua visibilidade e altos níveis de atividade, assim menor deles o seu hábitat. As brincadeiras descritas são
como por algumas características comuns à sua ocorrên- categorizadas como locomotora e social, as mesmas catego-
cia em praticamente todas as espécies investigadas. Ape- rias descritas para mamíferos terrestres. A participação pre-
sar de bastante estudado (ver Fagen, 1981 e Bekoff & ferencial de imaturos, a repetição de padrões
Byers, 1998, para revisões), sua função é polêmica, com comportamentais, e ausência aparente de função mostram,
alguns autores propondo benefícios unicamente igualmente, a afinidade com o comportamento de outros
evolutivos, de longo prazo, enquanto outros acreditam mamíferos. Neste trabalho é discutida principalmente a fun-
que a brincadeira se mantém pelos benefícios imediatos ção da brincadeira na aprendizagem do comportamento de
que proporciona aos indivíduos. Spinka, Newberry e predação, fundamental para uma espécie carnívora.
Bekoff (2001) apresentam uma proposta inovadora, que O segundo trabalho, de Resende e Ottoni, trata da brinca-
agrupa em uma única e ampla função aquilo que foi pro- deira com objetos em uma espécie próxima do homem, o
posto anteriormente. Estes autores propõem que a brin- macaco-prego. Também aqui se discute a possível função
cadeira tem, em primeiro lugar, uma função adaptativa da brincadeira para a aprendizagem de um comportamento
evidenciada pela ubiqüidade em todas as ordens importante na vida adulta destes animais, a utilização de ins-
mamíferas e pelos padrões comuns presentes em todas trumentos. A tolerância que adultos mostram em relação a ima-
as espécies estudadas. Isto sugere uma unidade turos, a semelhança entre os comportamentos exibidos na brin-
filogenética e funcional condizente com a evolução em cadeira e aqueles que são funcionais na aquisição do alimento,
resposta a pressões seletivas semelhantes. Em segundo evidenciam novamente características presentes em outras es-
lugar, propõem como função única da brincadeira o trei- pécies, incluindo a do trabalho anterior com golfinhos.
no para o inesperado, do ponto de vista motor e emocio- Utilizando a mesma abordagem, Carvalho e Pedrosa
nal, permitindo ao animal ensaiar seqüências discutem a brincadeira em crianças muito jovens. Este tra-
comportamentais semelhantes àquelas que serão utiliza- balho aborda a especificidade biológica do homem como uma
das em situações biologicamente importantes, como fu- espécie cultural, e discute de que forma isso se reflete na
gir de predadores, agir como um predador ou em brincadeira das crianças. Os episódios de brincadeira des-
interações sociais diversas. critos ilustram três aspectos básicos da vida sócio-cultural:
A proposta de Spinka et al. (2001) encontra resso- a recuperação da cultura do ambiente social imediato, a cri-
nância nos trabalhos que compõem este dossiê e que ação de rituais lúdicos novos que podem tornar-se parte da
fornecem evidências, a despeito da diversidade das es- microcultura do grupo e a assimilação de aspectos dessa
pécies estudadas, de semelhanças na exibição deste com- microcultura. A ocorrência desses processos entre crianças
portamento. Este dossiê é abordado do ponto de vista pequenas, sem interferência de adultos, é discutida como
comparativo, pedra de toque do estudo do comporta- evidência da pré-adaptação humana à vida sócio-cultu-
mento. O que se mostra aqui é, como em espécies tão ral. Seriam essas manifestações culturais qualitativamen-
164 Especial: Dossiê Brincar para quê?

te diversas das evidenciadas em outros primatas, por exem- cipalmente a social, que requer a avaliação constante da
plo no trabalho de Resende e Ottoni? situação e do parceiro, é muito clara na brincadeira des-
Finalmente, o trabalho de Vieira e Sartorio apresenta crita por Carvalho e Pedrosa. Finalmente, a preocupação
uma revisão da brincadeira em roedores. Este é talvez, pela procura da função evolutiva da brincadeira aparece
juntamente com os primatas, o grupo melhor estudado em todos os quatro trabalhos, que em termos comparati-
no que diz respeito a esta temática. A facilidade de cria- vos também iluminam a especificidade dessa função em
ção em cativeiro, os pequenos grupos, a alta taxa de re- diferentes espécies: sobreviver não requer as mesmas
produção e o curto período de imaturidade tornam este habilidades em espécies diferentes.
um grupo privilegiado para o estudo experimental da brin- Por isso nossa pergunta inicial “Brincar para quê?”.
cadeira. Esta revisão apresenta alguns desses resulta- Acreditamos que todos os trabalhos trazem contribuições
dos, mostrando que em situações pouco naturais é pos- importantes para esta questão, e que, respeitadas as peculi-
sível alterar os níveis de brincadeira, porém não suas ca- aridades de metodologias e espécies estudadas, mostram uma
racterísticas, novamente em linha com a proposta de impressionante aproximação dos comportamentos descritos.
Spinka et al. (2001). Nossa idéia inicial de que a função é provavelmente uma só
Acreditamos que este dossiê possibilita a discussão – embora, evidentemente, com especificidades por espécie,
dos fatores biológicos envolvidos na determinação do como ilustram os dois trabalhos referentes a primatas, que
comportamento, que ao lado dos fatores ambientais, se- focalizam a aprendizagem sócio-cultural, aparentemente
jam eles sociais ou individuais, permitem uma avaliação inexistente nos outros dois casos – e de que este é um com-
mais ampla do comportamento e uma compreensão mais portamento que apresenta unidade filogenética é reforçada
abrangente. Vários pontos comuns a todos os textos res- pelos trabalhos que compõem este dossiê.
saltam os aspectos que têm sido, repetidamente, aborda- Cabe ressaltar finalmente que a pergunta “Brincar para
dos na literatura. O primeiro deles é a dificuldade de defi- quê?” é funcional e não se refere a causas próximas (Alcock,
nição da brincadeira, ressaltada, curiosamente, pelos três 2001). Essa distinção é muito clara na teorização etológica,
trabalhos que estudaram animais, mas não pelo trabalho mas pode gerar interpretações distorcidas na comunicação
com crianças. Uma vez que a brincadeira infantil descrita com outras vertentes do pensamento em Psicologia. A atri-
por Carvalho e Pedrosa é basicamente verbal, a lingua- buição de funções adaptativas ao brincar não implica que o
gem talvez seja o meio pelo qual a definição se apresenta comportamento individual, do ponto de vista ambiental, fi-
e a dificuldade é superada. A dificuldade de definir (ou de siológico ou sócio-cultural, seja determinado por essas fun-
identificar) a brincadeira aparece em humanos quando ções: o indivíduo não brinca porque isso o torna mais com-
estudada em crianças pré-verbais? Um estudo anterior petente, seja no ambiente imediato ou no futuro; o compor-
de Pedrosa e Carvalho (1995) sugere que não. Uma expli- tamento de brincar, do ponto de vista próximo, é motivado
cação alternativa é que, em humanos, o viés do próprio intrinsecamente, pela própria atividade. Essa motivação é
pesquisador torna a identificação da brincadeira mais fá- que foi criada ao longo da evolução devido às conseqüênci-
cil e o problema de definição não apresenta a sutileza que as adaptativas (funcionais) do brincar. São justamente a
acompanha o estudo desse tema em espécies não huma- motivação intrínseca e ausência de conseqüências imediatas
nas. Aparentemente, no caso da criança há pistas faciais para o indivíduo que fazem do brincar um fenômeno tão
e corporais mais reconhecíveis para o etólogo, como o peculiar e digno de atenção.
riso e a descontração, que permitem distinguir a brinca-
deira de outros eventos, mesmo nos casos em que al- Maria Emilia Yamamoto
guns padrões comportamentais se sobrepõem, como na Ana Maria Almeida Carvalho
brincadeira de luta e na agressão. De qualquer maneira, a
mediação verbal é única aos humanos tanto na expressão
quanto na definição da brincadeira, e seria interessante Referências
comparar em que ela torna este comportamento diferente Alcock, J. (2001). Animal Behavior. Sunderland: Sinauer.
do apresentado pelos animais, principalmente quando Bekoff, M., & Byers, J. A. (Orgs.). (1998). Play: Evolutionary, comparative
partimos do pressuposto que a espécie humana se inclui and ecological perspectives. Cambridge: Cambridge University Press.
na unidade filogenética e funcional proposta por Spinka Fagen, R. M. (1981). Animal play behavior. Nova York/Oxford: Oxford
University Press.
et al. (2001). Um segundo ponto comum diz respeito à
Pedrosa, M. I., & Carvalho, A. M. A. (1995). A interação social e a
relação com o desenvolvimento cerebral, que se não é construção da brincadeira. Cadernos de Pesquisa, 93, 60-65.
citado no trabalho com crianças, é certamente um pressu- Spinka, M., Newberry, R. C., & Bekoff, M. (2001). Mammalian play:
posto. A demanda cognitiva exigida pela brincadeira, prin- Training for the unexpected. Quarterly Review of Biology, 76, 141-168.

Você também pode gostar