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A cidade e a floresta

“O retorno a uma condição mais natural não é compensado pela perda de algo que, embora mau,
existia e existe de indispensável na cidade. O silêncio, a solidão, o tédio e a repetição levam a uma
sensação de estática e de morte ainda mais insuportáveis que uma existência vivida na tensão, na
febre de construir, na fictícia ilusão de conservar a vida na pedra que caracteriza o drama da cidade”
(Roberto Guiducci, A Cidade dos Cidadãos)

“Fui para os bosques viver de livre vontade,


Para sugar todo o tutano da vida…
Para aniquilar tudo o que não era vida,
E para, quando morrer, não descobrir que não vivi!” (Thoreau)

Leitor apaixonado de Thoreau não levo, contudo, ao pé da letra as caminhadas a pé e a vida nos
bosques que ele apregoa. Entendo – e até acho estranho nenhum marxista que eu conheça ter feito a
analogia – a vida modelada em Walden como aquela na qual a alienação está totalmente afastada,
nela só há espaço para os valores de uso e ao trabalhar em cada mínima tarefa de cada mínima coisa
a ser feita se sente a vida e o trabalho de forma integral.
A sociabilidade humana - afirmam por exemplo Huxley e Desmond Morris – é limitada e
imperfeita, concebida para pequenos grupos comunitários e não para as enormes multidões urbanas.
Traduzido o conceito nas palavras que ouvi de um taxista paulistano “aqui não se vive vida de
gente”.
Estou muito longe de qualquer padrão de sociabilidade – às vezes sinto-me como aqueles santos
coptas que subiam ao alto de pilastras no deserto e lá ficavam meses – e às vezes participar de uma
reunião ou evento com grande número de pessoas é quase um martírio, embora na maior parte do
tempo goste da conversa individual. Levo Walden dentro de mim e lá estou mesmo quando preso
em um engarrafamento ou em uma plataforma de metrô lotada.
Mas toda aversão a grande cidade parece-me extremamente injusta. Há algo de indescritível, de
riqueza impar, que contrabalança todo seu potencial para a dissociação e a alienação. Acho uma
tristeza que a maior parte das pessoas que dedicam-se a pensar a cidade não a amem de fato, por
mais inóspita e fria que possa ser São Paulo há algo nela que enaltece a humanidade em nós em seu
sentido mais profundo de oposto ao animal – e neste sentido Huxley e Morris estão certos porque é
a nossa parcela animal que grita agoniada por ter de conviver em círculos mais amplos do que a
nossa genética permite.
A dimensão comunitária, por exemplo de Pessoa cantando a sua aldeia como maior que
A oposição entre o Downtown e a Suburbia revela toda a contradição e impossibilidade de dar um
passo atrás na civilização e retomar a mediocridade da vida comunitária depois de ter
experimentado o fascínio da grande cidade. As belas flores coloridas dos jardins de Suburbia não
fazem frente à beleza oculta nos cinzas do Downtown, como não cansam de demonstrar os cineastas
americanos que criaram e demoliram a Suburbia.
O grau de especialização ou generalização possível à metrópole, até mesmo a dimensão da sua
competição que faz com que se saiba se é realmente bom em algo ou não, tornam a metrópole desde
sempre – desde muito antes da era industrial que apenas deu dimensão exponencial ao processo – o
destino desejado de todos os talentos.
Não significa que a metrópole não poderia ser mais solidária, não poderia coexistir mais com os
laços comunitários de novo tipo que se constroem e reformulam-se – ainda que na maior parte do
tempo para criar fundamentalismos e resistências diversas.
Também não significa que não se possa levar a metrópole consigo – assim como se leva Walden –
nesta era da informação digital. Passo dias sem ver ser vivo salvo os familiares, mas só em poucas
horas do dia não estou interagindo com várias outras pessoas, algumas do outro lado do mundo,
outras tão próximas mentalmente falando que trabalhamos em um texto a quatro, seis ou oito mãos
como se estivéssemos na mesma sala. Estivesse eu nas profundezas de uma floresta em Concord e
ainda assim estaria no coração da metrópole.
Há várias antíteses aqui cuja proximidade semântica faz com que se confundam mas não são, de
forma alguma, as mesmas oposições. A oposição entre Suburbia e Downtown não é a mesma que
existe entre a cidade e a floresta, nem a mesma construída entre Comunidade e Sociedade ou entre a
aldeia e a cidade. Paradoxal que entre os elementos extremos – a grande cidade e a floresta fechada
e selvagem – é que se encontrem as metáforas mais usuais – mas não banais.
A metrópole registrada como selva de pedra ou a floresta pintada como populosa e rica demonstram
que na verdade aquele que as vê está mais ou menos equidistante de ambas. É o morador da aldeia,
da pequena cidade, o camponês emigrado que teme tanto a densa metrópole quanto a complexa
floresta. É o herdeiro deste camponês emigrado que tenta reconstruir a aldeia medíocre na Suburbia,
ou nas áreas que tenta isolar da metrópole.
Por outro lado boa parte da população da metrópole só sobrevive a moenda de vida desumana e
impessoal por conta dos laços comunitários que trazem ou reconstroem, pelas formas antigas ou
novas de solidariedade e luta com as quais percorrem as trilhas selváticas da grande cidade.
Há como construir uma metrópole humana, estou certo disto, ainda que não tenha as respostas
prontas, nem mesmo todas as perguntas formuladas de forma adequada.
Por

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