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Claudia Cruz
Claudia Cruz
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
AGENCIAMENTOS COLETIVOS,
TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS E CAPTURAS
UMA ETNOGRAFIA DE MOVIMENTOS NEGROS EM ILHÉUS
AGENCIAMENTOS COLETIVOS,
TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS E CAPTURAS
Marcio Goldman
Orientador
AGENCIAMENTOS COLETIVOS,
TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS E CAPTURAS
UMA ETNOGRAFIA DE MOVIMENTOS NEGROS EM ILHÉUS
_________________________________________________
Marcio Goldman
(Doutor, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro)
_________________________________________________
Giralda Seyferth
(Doutora, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro)
__________________________________________________
Antonádia Borges
(Doutora, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro)
__________________________________________________
Olívia Maria Gomes da Cunha
(Doutora, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
__________________________________________________
Miriam Furtado Hartung
(Doutora, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social –
Universidade Federal de Santa Catarina)
Resumo
A partir da premissa de que tudo o que existe é feito de "encontros", o objetivo principal
deste trabalho é descrever os encontros que constituíram e constituem os blocos afro da cidade
de Ilhéus, no sul da Bahia. Estes blocos são definidos por seus membros a partir do fato de
desfilarem no carnaval utilizando elementos oriundos do que é por eles vivido como "cultura
negra", e da finalidade de preservar e divulgar esta última. Desde o surgimento do primeiro bloco
afro nos anos 70 na cidade de Salvador, a literatura especializada tem tratado o tema
concentrando a atenção e a análise no caráter étnico desses grupos. O principal resultado da
intensa pesquisa etnográfica junto aos blocos afro de Ilhéus, que serviu de base para este
trabalho, indicou, entretanto que, além dos desejos de afirmação e diferenciação, que
corresponderiam a investimentos no que em geral é considerado étnico, os mais diferentes
encontros estão articulados a desejos conectados a outras concepções de vida e do que possam
ser blocos afro – desejos igualmente constitutivos das experiências dos que deles participam.
Abstract
This dissertation is based on the premise that everything that exists is the result of
encounters. The main goal of this work is to describe the encounters that have been constituting
the Afro-Brazilian carnival parade groups (blocos) in the city of Ilheus (Southern Bahia, Brazil).
The participation of these blocos in the carnival parade is connected to what their members
experience as “black culture”. Thus, the necessity to preserve and publicize “black culture” plays
an important role in the definition of the blocos, according to their members. Since the first bloco
in the city of Salvador was created in the 1970s, the specialized bibliography about this subject
has emphasized the ethnic aspect of the blocos. However, the intensive ethnographic research on
which this dissertation is based has indicated that there are other relevant aspects in addition to
the desire for affirmation and differentiation that is generally associated with ethnicity. Different
encounters are related to desires connected to various definitions of life in general and of the
blocos in particular. These desires are constitutive dimensions of participants’ experiences in the
blocos.
Agradecimentos
Introdução ......................................................................................................................... 09
Introdução
“A vida é a arte do encontro”2. Mais do que isso, a vida, o mundo e tudo o que
existe nele se constituem no encontro. Como diz Rolnik, “(...) o mundo (...) [é] uma
construção permanente, efeito exatamente do encontro, que não é neutro, pois neste
No encontro não existe aquele que afeta e o que é afetado: alguma coisa acontece em
ambos (ou nos vários) elementos envolvidos. Esta é a idéia que guia este trabalho: o que há
são encontros, o que constitui um ser é seu encontro com outro ser, que também está aí se
constituindo.
diferentes encontros, que também podem ser definidos como agenciamentos de fluxos, que
1
Todas as citações oriundas de publicações estrangeiras que constam deste trabalho foram traduzidas por
mim a fim de facilitar a leitura.
2
Vinícius de Moraes e Baden Powell, em “Samba da Bênção”.
3
Agradeço à Cecília Mello a ‘inspiração’ para o uso do conceito, presente em Mello 2003.
10
de entidades que têm por objetivo a “preservação da cultura negra”, como consta da quase
totalidade de seus estatutos, sendo sua principal atividade desfilar no carnaval utilizando
maculelê e um grupo de capoeira que desfila como “levada”4, organizados numa entidade
Ainda que haja outros grupos na cidade constituídos segundo o mesmo objetivo, a
afro filiados ao Conselho recebem recursos e participam do desfile), garante que apenas
esses grupos sejam concebidos como parte do movimento afro-cultural. Este é considerado
por grupos auto-definidos como de atuação mais “política”, como o Movimento Negro
representantes de grupos de capoeira e por ex-membros de blocos afro que continuam a ser
movimento afro-cultural, sua participação costuma ser bastante pontual: no carnaval e nas
relativamente recente, o primeiro tendo sido ‘inventado’ em meados da década de 70, num
4
Os significados desses termos serão apresentados no primeiro capítulo.
11
semelhança aos afoxés, donde vieram alguns dos elementos inicialmente utilizados – tais
como a maioria dos instrumentos e o ritmo ijexá –, o primeiro bloco afro, o Ilê Aiyê do
bairro da Liberdade, foi concebido como algo inteiramente novo: “um bloco original”,
como consta de seu primeiro cartaz de divulgação (Agier 2000:72). Descrevê-lo como um
bloco de carnaval com motivos africanos pode parecer banal atualmente, mas o primeiro
que foi constatado por Gomes (1989) em sua pesquisa com jornais da época. A cidade já
candomblé ou na black music, com estilos musicais como o reggae fazendo sucesso em
bares alternativos da periferia. Porém, o desfile do Ilê Aiyê impunha uma diferença que
não passava só por uma forma de música, ou por uma forma de se vestir ou de dançar, mas
por tudo isso e pela afirmação de que haveria uma outra maneira de viver o mundo, a qual
em si, uma revolução no país da ‘democracia racial’, do ‘povo brasileiro’. Além disso,
blocos afro.
Para Antônio Risério, a criação do Ilê Aiyê foi responsável, ao lado da reativação
do Afoxé Filhos de Gandhi e da criação dos novos afoxés, por uma pequena revolução na
própria cidade de Salvador, ao menos em suas periferias e para a população negra mais
jovem, que viveu o momento que foi consagrado por esse autor como o de
seu mérito está na bem sucedida tentativa de apontar as variáveis, os caminhos, ou para
12
falar a partir da proposta deste trabalho, os encontros que produziram a emergência do Ilê
Aiyê, dos demais blocos afro e afoxés então existentes e de uma nova visão de mundo que
conhecimento, têm se dedicado ao estudo dos blocos afro, de alguns de seus elementos,
Como seria de se esperar, a literatura a respeito dos blocos afro tem na cidade de
Salvador seu foco principal 5. Além de ser o berço do movimento, ainda hoje é na capital
trabalhos refere-se aos chamados “cinco maiores” – Ilê Aiyê, Olodum, Ara Ketu, Muzenza
e Malê Debalê – e, dentre eles, o Ilê Aiyê e o Olodum, sem dúvida alguma, são os que
recebem mais atenção dos pesquisadores. Frank Ribard (1999) apresenta, assim, um
menos conhecidos, mas suas principais conclusões têm os grupos maiores como
referências da argumentação.
grandes blocos são, entre outras, a generalização e, como conseqüência, uma certa
distorção de várias das características atribuídas aos blocos afro. Os discursos dos mais
destacados dirigentes de blocos afro, como Vovô – do Ilê Aiyê – e João Jorge – do Olodum
– são usados em referência a quaisquer blocos, na verdade, ao bloco afro como ‘categoria
sociológica’. O que se sabe sobre blocos afro é o que foi escrito sobre esses blocos. É
evidente que não se trata de dizer que os discursos em si mesmos sejam falsos, mas que há
diferentes realidades que não podem ser recobertas pelas experiências das duas mais
5
O trabalho de Machado (1996) sobre o primeiro bloco afro da cidade do Rio de Janeiro, o Agbara Dudu, é
uma exceção.
13
para a fundação de um bloco afro e que este pode apresentar características diversas
em segundo lugar, a comparação entre trabalhos realizados com os grupos afro mais
famosos de Salvador e aquele realizado com blocos pequenos e distantes da capital baiana
e da mídia, como é o caso de Ilhéus, permite relativizar afirmações a respeito dos primeiros
a partir das práticas dos segundos, nesse caso, mostrando mais semelhanças do que as que
Há alguns temas recorrentes em torno dos quais gira a maior parte dos trabalhos
sobre blocos afro. Talvez porque um ritmo novo, o ‘samba-reggae’, tenha sido inventado
pelos blocos afro; ou porque sua música – é claro que me refiro aos grandes blocos – tenha
ultrapassado a função de ser tocada somente nos ensaios e no desfile e tenha se tornado
‘comercial’; ou porque a ‘letra’ da música seja uma forma de discurso que fornece
definições a respeito dos blocos afro, o fato é que a música é um desses temas. Alguns
buscando suas origens; outros mostram a trajetória dos blocos sob a perspectiva de seu
também aqueles que privilegiam a música dos blocos afro no contexto da diáspora e da
sobretudo a partir de suas letras, como discurso étnico. Na verdade, esta última
14
característica está presente na quase totalidade das obras, mesmo naquelas cujos interesses
estão voltados para aspectos técnicos ou históricos da música dos blocos afro6.
Um outro tema bastante trabalhado em relação aos blocos afro é a prática educativa
destes, seja como educação formal ou informal. Alguns poucos blocos afro possuem ou
possuíram projetos de educação formal, como a Escola Criativa do Olodum (que não mais
atua dessa forma) e a Escola Mãe Hilda, do Ilê Aiyê, entretanto, as oficinas oferecidas
transmissão do conhecimento, mas em objetivos mais amplos que estão relacionados com
A abordagem que concebe os blocos afro como ‘empresas’ ou enfoca seu poder de
gerar recursos e renda não apresenta uma quantidade tão grande de estudos quanto as
Dantas (1994 e 1996)8 e de Fischer (1993) são bastante citados para caracterizar o Olodum
que, além de ser seu objeto de pesquisa, sem sombra de dúvida é o bloco afro que melhor
pode ser pensado sob essa perspectiva. Nunes (1997) e Schaeber (1999), entre outros,
também são exemplos desse enfoque, que não deixa de estar vinculado à afirmação de
constituição de um bloco afro, assim como dos caminhos que ele segue, necessariamente
passa pelo desejo de ‘afirmar’ ou ‘produzir’ uma ‘identidade negra’. Na verdade, além de
6
Sobre música e blocos afro, ver, entre outros: Agier 1997; Armstrong 2001; Béhague 2000; Cambria 2002;
Carvalho 1993; Crook 1993; Dunn 2001; Godi 1997, 1999 e 2001; Guerreiro 1998, 1999 e 2000; Lima 1997,
1998 e 2001; Moura 1987; Nunes 1998; Pinho 1997; Schaeber 1998 e Stokes 1997.
7
Sobre educação e blocos afro, ver Andrade 1997; Carvalho 1994; Galiza 1995; Guimarães 1995; Silva 1991
e 1995; Silva 1997; Siqueira 1996 e Vários 1998.
15
estar nas abordagens acima resumidas, este tema, em si mesmo, é discutido, praticamente,
na totalidade dos trabalhos sobre blocos afro, sendo a ênfase no caráter étnico o que acaba
constituição/definição do bloco que poderiam ser qualificados, entre outros termos, como
de caráter econômico, político, associativo, lúdico etc., o que é denominado étnico, sem
dúvida alguma, sobrepõe-se aos demais, sobrecodificando-os, ou seja, fazendo com que os
desejos, as percepções, assim como os movimentos dos grupos afro sejam observados
bloco ou na crítica de outros setores do movimento negro ou de qualquer outro ator social
que interaja com o grupo afro. Contudo, o fato do caráter étnico sobrepor-se
freqüentemente enquanto discurso a outros aspectos, não significa que ele seja sempre a
principal motivação dos agentes sociais para as práticas que constituem o movimento em
unicamente ou principalmente a partir do viés étnico está nas análises resultantes dele, ou
seja, na ‘explicação’ que, em geral, se segue à etnografia. Em primeiro lugar, nem sempre
reconhecer mas desprezar outros elementos e planos de uma dada relação em favor do
8
Ver também Vários 1999 – trata-se de um debate sobre o carnaval de Salvador que conta com as presenças
de Dantas e de João Jorge Rodrigues, presidente do Olodum, entre outros.
16
étnico, a análise perde em capacidade explicativa, dado que a questão a ser colocada será
semelhança em relação a um determinado modelo de ação social, o que torna as ações que
fogem ao ‘padrão’ – que pretende determinar como os blocos afro deveriam ser –,
ininteligíveis.
dos estudiosos, tanto brasileiros quanto estrangeiros, que têm se dedicado ao tema desde o
início do século passado. A partir do momento que se toma como ‘dado’ que as relações
raciais no Brasil são distintas de outras também tomadas como ‘dados’ – e está-se falando
estas são concebidas como o que deveria ser, o que ocorre no Brasil parece ‘estranho’,
ininteligível e precisa ser explicado. É o que buscaram fazer Gilberto Freyre e sua tese de
Unesco e a argumentação de que a discriminação seria antes social do que racial; e até
dos militantes afro-brasileiros para mobilizar as pessoas sobre a base da identidade racial”,
presentes na literatura sobre relações raciais no Brasil, não é possível pensar sobre grupos
constituídos a partir de uma organização concebida também como racial, como é o caso
dos blocos afro, sem tocar nessas questões. Assim, ainda que indiretamente, a contribuição
9
Entre os muitos trabalhos sobre o assunto, estão Agier 1992, 2000 e 2001; Almeida 2000; Godi 1991;
Guerreiro 1994 e 1998; Morales 1990 e 1991; Moura e Agier 2000; Nascimento 1994; Olivieri-Godet 2001;
17
que esta pesquisa pretende dar à discussão passa, primeiramente, por dar inteligibilidade às
ações dos grupos afro, apresentando motivações e desejos que não estão vinculados à
questão étnica, que não estão relacionados a ter ou não ter ‘consciência negra’. Em
segundo lugar, uma das conclusões deste trabalho reside na idéia de que o racismo
praticado no Brasil e aquele existente em outros lugares têm mais semelhanças do que
“inclusão diferenciada” (Hardt e Negri 2001:213) próprio do capitalismo e não como uma
relação de alteridade.
Voltando aos temas abordados nos trabalhos sobre blocos afro, há de se destacar as
extensos de pesquisa, geralmente restritos a um único bloco 10, são as principais fontes que
fornecem elementos para pensar os grupos afro sob perspectivas não exclusivamente
diminuem a importância da ‘identidade étnica’ como razão de ser dos blocos afro. No
temática e ‘reverenciá-la’.
Os trabalhos de Agier (2000) e Ribard (1999) são alguns dos mais importantes
econômicos, sociais e políticos que regem as relações sociais. Do ponto de vista do objeto
Ribard 1999; Santos 2000; Siqueira 1993 e 1996; Souza 2001; Veiga 1991 e 1997.
10
Como já observado antes, o trabalho de Ribard (1999) é uma exceção, pois oferece um panorama de todo o
movimento dos blocos afro na cidade de Salvador, embora seja nítida sua maior aproximação de blocos
considerados grandes, como o Ilê Aiyê.
18
movimento, apesar de ter um dos blocos afro ilheenses como objeto privilegiado da
investigação12.
coloca entre o meu trabalho e a grande maioria dos outros sobre o mesmo tema: trata-se da
analítica. Pensar o mundo e tudo o que existe como produção de encontros que não cessam
de acontecer, em permanente construção, tal como afirmo nas primeiras linhas deste
trabalho, impede o uso do conceito de identidade, pois este sempre vai necessitar, ainda
que sejam feitas todas as ressalvas, de uma realidade anteriormente dada que provoque
uma ‘identificação’, mesmo que momentânea13. Não se trata de negar que o termo é
largamente utilizado nos meios militante e cultural. Por isso mesmo, é preciso pensá-lo
como mais um elemento da etnografia, quando for o caso, e não como algo capaz de tornar
(Ossowicki 2003), isto é, fazem a vida, produzida permanentemente nos mais variados
11
Destaque-se também Nunes 1997; Santos 2000 e Veiga 1991.
12
O investimento aprofundado junto ao Grupo Cultural Dilazenze foi uma opção interessante e necessária:
primeiramente, trata-se do bloco afro de Ilhéus de melhor estrutura organizacional, o que o torna mais ativo
do que os demais; em segundo lugar, seu presidente possui um excelente conhecimento sobre toda a trajetória
do movimento, além do melhor (mesmo único) acervo de documentos, inclusive a respeito de outros blocos;
por fim, por ter sido o Dilazenze também o foco da minha pesquisa de mestrado, muitas das questões
presentes neste trabalho nasceram daquele momento de observação e do diálogo com seus membros.
13
Mesmo “em situação”, segundo defendem autores como Cunha (1986) e Okamura (1981), os conceitos de
etnicidade e de identidade não deixam de produzir reificação de posições, fronteiras e rotulações, pois eles
serão sempre o resultado de um movimento de privilégio de uma identificação em detrimento de outra e,
portanto, de sua exclusão. Como bem lembra Malik (1996), a etnicidade (o que vale também para a
identidade) é pré-determinada por uma conjuntura dada histórica, espacial e socialmente. Assim, utilizar o
conceito de etnicidade em relação a um grupo social significa, de imediato, promover sua identificação e,
conseqüentemente, seu controle a partir de um quadro referencial de relações de poder já dado.
14
Discutir os conceitos de identidade e etnicidade não é o objetivo deste trabalho, que mereceria, como tem
acontecido, páginas e páginas de reflexão, tamanha é a importância dessas categorias para a antropologia e,
19
É claro que o adjetivo ‘afro’ que acompanha e qualifica o termo ‘bloco’ não é à toa.
Ele indica que sua constituição tem por objetivo uma diferenciação baseada em elementos
de tudo o que vem a ela vinculado, como formas de ser, de pensar e de sentir – impede a
percepção do que constitui essa diferenciação e de que elementos importam para construí-
la. Além disso, uma vez que o bloco afro é assim definido, suas outras características ou
para ‘denunciá-la’ ausente. Vê-se, assim, que o conceito apresenta-se insuficiente para
(Silva 1998) 15, cujo objeto empírico também é o movimento afro-cultural de Ilhéus.
Porém, no início da pesquisa, meu interesse no movimento era indireto: os blocos afro de
Ilhéus ocupavam um lugar que poderia ser de outros grupos em situação semelhante, pois
meu objetivo era refletir sobre o uso do conceito de cidadania, tão em voga em obras
trabalhos comunitários que desenvolvia e de ter, ao contrário dos grandes grupos afro de
Salvador, pouco contato com o discurso dominante sobre o conceito que seria investigado.
especificamente, para formulações a respeito dos blocos afro. A literatura sobre o assunto é muito extensa e
há inúmeras correntes teóricas. Para uma visão geral das teorias de etnicidade, ver, por exemplo, Banks 1996;
Jenkins 1996 e 1997 e Poutignat e Streiff-Fenart 1998. Para críticas às noções de identidade e/ou etnicidade,
ver, entre outros, Handler 1994; Herzfeld 1996; Ossowicki 2003 e Viveiros de Castro 1999.
15
Note-se que naquela ocasião, optei por usar nomes fictícios a fim de evitar possíveis constrangimentos
entre as pessoas com as quais trabalhei. Neste novo trabalho, o uso de nomes próprios é restrito, mas as
pessoas são facilmente identificadas a partir de cargos ou relações junto aos grupos afro. Assim, os leitores
20
No entanto, a pesquisa de campo fez perceber que seria mais profícuo tratar o
conceito de cidadania indiretamente, não o movimento. Logo ficou claro que o termo não
estava presente no discurso dos membros do Dilazenze, mas o que era entendido como
‘cidadania’ era perceptível em suas práticas. Assim, ao invés de investigar como ele era
concebido, melhor seria saber como era vivido. Isso foi possível porque o conceito de
cidadania está em constante interação com os atores sociais, dando significado a práticas
distintas que, no caso do movimento afro-cultural de Ilhéus, podiam ser identificadas com
outras categorias, como “trabalho social”, “trabalho comunitário”, “militância” etc. (Silva
1998)16.
etnográfico que seria difícil num novo campo. Além disso, aquele primeiro contato com o
que haveria coisas diferentes a dizer a partir de uma pesquisa etnográfica relativamente
trabalho. Isso permite, então, contabilizar como parte deste os cerca de três meses
especialmente interessados que forem buscar na dissertação de mestrado as referências feitas aqui vão se
defrontar com outros nomes, mas, como geralmente acontece, não será nada difícil descobrir quem são.
16
A continuidade da pesquisa ao longo dos anos seguintes mostrou que a relação existente hoje entre os
grupos afro – e não apenas o Dilazenze – e o uso do termo cidadania sofreu mudanças: o conceito está
presente nos discursos de seus dirigentes e em seus projetos. Naquele primeiro momento da pesquisa, esta
mudança estaria tendo início através do que chamei de “processo de cidadanização”, conforme se verá no
quarto capítulo deste trabalho.
17
E, graças ao uso da telefonia e por ter feito amigos no campo, mantive contato e, evidentemente, recebi
informações sobre o movimento afro-cultural de Ilhéus ao longo de todo este período e mesmo depois dele.
Além disso, é preciso dizer, tive o privilégio – e para muitos, e algumas vezes para mim mesma, o problema
– de dividir o campo com meu próprio orientador. Embora abordando temas diferentes, nossas pesquisas em
momentos alternados no campo proporcionaram a troca de informações e idéias que permitiu um
acompanhamento do movimento por todo o período da pesquisa, ainda quando longe de Ilhéus. Essa situação
21
A pesquisa foi realizada, quase que totalmente, junto aos dirigentes dos blocos afro.
E esta foi antes uma imposição empírica do que uma questão de opção metodológica,
restrito o número de componentes que vive o bloco afro ao longo do ano. Apesar de sua
estes se constituem em eventos, os quais são organizados por quem dirige o bloco afro e
alguém que não está “se comportando” como membro daquele bloco. Ao longo do ano,
quem pensa sobre os blocos afro são seus dirigentes, são eles que os fazem funcionar, os
termo adotado para denominar cada uma de suas partes é encontros. É evidente que se trata
de um ‘floreio’, mas que tem por objetivo realçar e ser coerente com a proposta deste
de Ilhéus. Assim, cada uma dessas partes corresponde a apresentações desses encontros,
preciso explicitar melhor o que significa a opção pelo uso de termos como encontros ou
agenciamentos de fluxos, como consta do início desta apresentação, e quais são suas
sui generis, por estar baseada em solidariedade e em cumplicidade, certamente contribuiu para o
enriquecimento da pesquisa e a melhor compreensão de alguns aspectos que se apresentaram no campo.
18
Agier (2000) ressalta a identificação dos moradores do Curuzu, no bairro da Liberdade, com o Ilê Aiyê,
afirmando que há um sentimento de fazer parte de uma mesma “família simbólica”, de que existe aí uma
“identidade coletiva” (:87).
22
Em “Carta a Réda Bensmaïa, sobre Espinosa”, Deleuze (1992) diz que Espinosa
escreve a “Ética” nas três formas de conhecimento: como conceito (segundo gênero do
conhecimento e diz respeito a “novas maneiras de pensar”), como afecto (primeiro gênero
Segundo o autor, “é por essa razão que rigorosamente todo mundo é capaz de ler Espinosa,
como orientação metodológica deste trabalho é como usar a ‘licença’ que Deleuze dá para
o entendimento que não-filósofos possam ter de Espinosa em relação a ele mesmo. Isso
significa que certamente não compreendo com precisão o que Deleuze expõe a respeito do
conceito de ‘encontros’ – que é de Espinosa – no curso que deu sobre este autor, onde
encontrei a idéia (ver Deleuze 1978). O conceito é muito mais complexo do que o uso que
proponho dele. Mas posso dizer que descobri-lo provocou emoções e, principalmente, deu-
me a sensação, mais do que a certeza, de que ele seria útil para pensar e organizar o
tudo o que existe se constitui a partir do encontro, de que cada encontro transforma os
corpos, compõe ou decompõe, e até mesmo produz um novo corpo19, parecia encaixar-se
com Antônio Risério e a idéia de que o que ele chamou de reafricanização do carnaval –
tema do primeiro dos próximos Encontros – é resultado da ‘mistura’, de “coisas [que] vão
se mesclando (...) da qual um terceiro sentido ou elemento deve ser extraído.” (1981:32-3).
A organização desta tese nasce, assim, de encontros entre mim, o movimento afro-cultural
19
“Então, num amor feliz, num amor de alegria, o que se passa? Você compõe um máximo de relações com
um máximo de relações do outro, corporal, perceptivo, todos os tipos de natureza. Certamente corporal, sim,
por que não; mas perceptivo também: ah bom... escuta-se a música! De uma certa maneira, não se pára de
inventar. Quando eu falo do terceiro indivíduo que os outros dois não são mais do que partes, isso não quer
dizer que esse terceiro indivíduo pré-existisse, é sempre ao compor minhas relações com outras relações, e é
23
Deleuze, Espinosa, meu orientador que me apresentou o texto de Deleuze... e muitos outros
agenciamentos.
empregado por Deleuze e Guattari que também diz respeito à idéia de composição e
decomposição dos seres. Diz Guattari em seu “Glossário de Esquizoanálise” (1986), que
agenciamento é uma “noção mais ampla do que aquela de estrutura, sistema, forma,
ordem biológica, social, maquínica, gnoseológica, imaginária.” (:287). Ou seja, uma coisa,
Ao defender que a noção de agenciamentos coletivos deveria ser utilizada para falar
sobre processos políticos, Guattari deseja, através dela, recusar a oposição bipolar entre
classes sociais em favor da multiplicidade (“os agenciamentos coletivos não são ambíguos:
eles são múltiplos”) dos grupos sociais. E, mais do que isso, mostrar que eles não cabem
em definições que seguem apenas parâmetros sexuais, políticos, etários, nacionalistas etc.
sob tal modelo, sob tal aspecto que eu invento esse terceiro indivíduo que o outro e eu mesmo não seremos
mais do que partes, sub-indivíduos.” (Deleuze 1981).
20
Talvez a seguinte passagem de Deleuze e Guattari torne a noção mais clara: “Uma menina tem um faz-
pipi? O menino diz sim, e não é por analogia, nem para conjurar o medo da castração. As meninas têm
evidentemente um faz-pipi, pois elas fazem pipi efetivamente: funcionamento maquínico mais do que função
orgânica. Simplesmente, o mesmo material não tem as mesmas conexões, as mesmas relações de movimento
e repouso, não entra no mesmo agenciamento no menino e na menina (uma menina não faz pipi de pé nem
para longe). Uma locomotiva tem um faz-pipi? Sim, num outro agenciamento maquínico ainda. As cadeiras
não o têm: mas é porque os elementos da cadeira não puderam tomar esse material em suas relações, ou
decompuseram a relação o bastante para que ela desse uma coisa totalmente diferente, um bastão de cadeira
por exemplo.” (1996:41).
24
Como agenciamentos que são, “eles podem surgir de um prazer muito imediato, por
exemplo aquele de estar junto, e também de preocupações mais políticas, sociais, (...).”
(1986:149). O uso dos conceitos de agenciamentos e de encontros neste trabalho tem esse
mesmo propósito: mostrar que os blocos afro, sendo agenciamentos coletivos, não podem
ser definidos por critérios apenas étnicos; que seus desejos, produtos ou produtores de seus
encontros, inventam diferentes maneiras de ser. Alguns desses desejos, desses encontros,
dessas ‘maneiras de ser’ dos blocos afro de Ilhéus é o que este trabalho pretende
apresentar.
necessariamente, começar por apresentar como nasceu o primeiro bloco afro, o Ilê Aiyê.
Encontros 1 é, então, dedicado a mostrar como se deram os encontros em Salvador que vão
atingiram Ilhéus e, a partir das conexões com fluxos que passavam pela cidade, produziram
outros que entraram em agenciamento com tantos outros que participaram do surgimento
dos primeiros blocos afro e continuam a produzir o movimento, compõem sua concepção
de mundo. O capítulo seguinte apresenta, então, fluxos que costumam ser mais diretamente
relacionados aos agenciamentos que geraram os primeiros blocos afro ilheenses. Eles
podem ser chamados de culturais, religiosos, midiáticos, musicais; alguns já passavam por
Ilhéus, enquanto outros foram ‘levados’ para lá por pessoas que viveram o que acontecia
em Salvador. Partindo da configuração que tem o movimento hoje chega-se aos primeiros
blocos afro e deles à capital baiana. A própria exposição desta genealogia já permite
perceber que elementos, que conexões foram importantes para a constituição dos blocos
afro em Ilhéus.
Os dois outros capítulos compõem a segunda parte deste trabalho, cujo objetivo
pode ser definido como o de descrever o funcionamento do movimento dos blocos afro em
Ilhéus a partir dos desejos de diferir, incluir e ser incluído e dos agenciamentos produzidos
entendido como território existencial, onde são produzidos modos de vida singulares,
desejos de diferir do mundo tal como ele existe – com suas relações de opressão – através
promovidas pelo bloco, especialmente aquelas que objetivam a preparação para o carnaval
condição de grupo racialmente organizado, que torna possível a ação da maioria sobre o
desejos de diferir, os blocos afro encontram-se com o capitalismo, que também constitui
um modo de existência que gera desejos de incluir e de ser incluído em seu sistema, desejo
singularização dos blocos afro em algo facilmente reconhecível por ele: trabalho, que pode
fuga, isto é, numa forma de escapar do modo de existência atual produzido pelo
captura, que ocorre através de agenciamentos produzidos tanto pela ‘forma-ong’, a partir
do desejo de incluir através dos trabalhos sociais, quanto pela ‘forma-empresa’ e o desejo
desejo de incluir é atualmente uma das maneiras mais usuais de defini-lo, ainda que seja
pela ausência de tal adequação. Isso ocorre porque tanto os blocos quanto os demais atores
sociais estão sendo afetados pela onguização, que aqui significa uma determinada
concepção de mundo, a qual tem a idéia de ‘inclusão’ como fundamento. Por outro lado,
dá forma ao mundo em que vivemos. Se o desejo de singularização que criou o bloco afro
relaciona-se com a idéia de aceitação do mundo tal como ele existe. Refletir sobre as
27
implicações resultantes da afetação do bloco afro pela forma-ong em relação com seu
Encontros 1
MOVIMENTOS NEGROS
E A INVENÇÃO DO BLOCO AFRO
“— Era negão prá cá, negão prá lá, todo mundo queria ser
negão”.
“— A gente começou a ver todo mundo se vestir estilo afro:
cabelo, bata, gorro”.
“— Um virava para o outro e cantava: ‘Eu sou negão, eu sou
negão. Meu coração é a Liberdade’”.
“— Essa música virou febre aqui na Bahia”.
a famosa música de Gerônimo, de título obscuro: “Macuxi Muita Onda”, mais conhecida
como “Eu sou Negão”, gravada em 1986 (Guerreiro 2000:21). Enquanto ouvíamos a
música repetidamente – o LP não estava nas melhores condições, além do mais, parte da
letra é indecifrável, tal como o título, e parte é falada –, eles me contavam que Gerônimo
teria composto a música enquanto presenciava um dos encontros mais famosos e mais
comuns do carnaval baiano, o encontro do bloco afro – no caso, o Ilê Aiyê – com o trio
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elétrico. A parte falada reproduz um diálogo hipotético entre os cantores dessas entidades.
elétrico. Guerreiro reproduz uma declaração de Gerônimo sobre a música, na qual ele diz
que “o que estava em jogo naquele momento era a luta pelo respeito às manifestações
baiana são, ao lado da explosão midiática do Grupo Cultural Olodum em 1987, uma
espécie de auge, resultado, mas também parte constituinte de um momento muito especial,
cujo início costuma ser datado em meados da década de 70, com o surgimento do primeiro
bloco afro, o Ilê Aiyê. A partir de então, organizações formadas por motivações de caráter
racial foram ganhando cada vez mais visibilidade e o movimento negro começou a se
Unificado Contra a Discriminação Racial, o atual MNU, era fundada em 1978, acontecia
surgimento dos blocos afro e dos novos afoxés. Esse também foi o grande momento de
falar dos grupos de teatro, de dança e grupos de estudo que tinham a questão negra como
uma linha de fuga sobretudo, mas não exclusivamente, étnica. Sendo assim, ao falar de
movimentos negros não se está falando de algo estático, mas de alguma coisa que se
constitui pela e na movimentação – ou, para usar uma palavra cara aos movimentos
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função de um objetivo. Tratam-se de subjetividades que vão sendo afetadas por outras
porque mais clara, de visualizar, de perceber o que se passa é através da idéia de fluxos,
que é palavra-movimento. Fluxos que passam, que afetam, que geram novas
subjetividades, que geram outros fluxos, que passam, que afetam e assim por diante.
pelos movimentos produzidos pelo candomblé, pelo samba, pelos antigos afoxés e pelos
Havia outros fluxos que, como pólens, foram levados para a capital baiana pelos ventos
‘política’ e ‘cultural’1, com ênfase para os bailes de soul music do Rio de Janeiro e dos
grupos políticos negros de São Paulo. Fluxos que atravessaram o Atlântico, cuja origem
está nas lutas de independência dos países africanos, e que favoreceram um reforço na
‘libertação’ dos ‘negros’ e de ‘poder negro’ (black power) que ocorriam nos Estados
desejos... fluxos que se encontraram com ventos de cá que sopravam outros fluxos, novos
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explicar o que estava acontecendo com o carnaval e com a vida em geral de uma parcela
significativa da juventude negra de Salvador no final dos anos 70 e início dos 80 foi
Antônio Risério com seu Carnaval Ijexá: notas sobre afoxés e blocos do novo carnaval
afrobaiano, de 1981. Sua obra é tão fundamental que não há trabalho sobre o mesmo tema
que não parta de suas premissas, de suas informações – mesmo quando elas são apenas
‘opinativas’, pois Risério, como ele mesmo explica, nunca teve “a intenção de ser
siga suas indicações, suas pistas, que alguns autores chegam mesmo a dar status de ‘dados
sociológicos’.
Dado que este trabalho pretende descrever os encontros que tornaram possível o
movimento dos blocos afro em Ilhéus, que têm conexões diretas com o movimento de
Salvador, o qual foi primeiramente analisado por Risério, cujas informações e pistas são
muito valiosas para a compreensão daquele momento e do movimento, este autor será
também a base para a minha empreitada. É preciso, porém, deixar bem claro o que
significa o estatuto de ‘base’ aqui concedido a Risério: trata-se de trabalhar sua obra como
1
As aspas simples indicam que esses termos não têm um sentido único, já dado. Eles serão alvo de reflexão
em vários momentos deste trabalho.
2
Diversos autores iniciam sua descrição do período que virá a ser o auge do movimento negro em Salvador
a partir da grande mudança econômica vivida pela cidade nos anos 50 e 60 com a industrialização e,
principalmente, com a implantação do Pólo Petroquímico de Camaçari, atribuindo a esta mudança uma
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elementos ou de discordar daqueles indicados por ele. A proposta deste primeiro ‘relato de
pelas de outros autores, mostrar como se deram os encontros em Salvador que vão
Para tanto, este Encontros 1 está dividido em quatro partes. Na primeira, o objetivo é
entender o que Risério denomina ‘reafricanização’, do que se está falando ao usar o termo;
nas segunda e terceira partes, a idéia é apresentar quais foram esses fluxos que se
maiores blocos da capital baiana, cujas influências são claramente percebidas nos blocos
afro de Ilhéus. Por isso, a última parte consiste de um resumo sobre cada um deles.
O próprio título de Carnaval Ijexá: notas sobre afoxés e blocos do novo carnaval
afrobaiano traz algumas questões: por que novo carnaval? Ele se diferencia de outros em
constituído entre o fim dos anos 70 e início dos 80 foi de ‘re-africanização’, quando e
É o próprio Risério quem explica: a presença maciça dos afoxés e dos blocos afro
nas ruas de Salvador no carnaval o fez “lembrar uma antiga afirmação de Nina Rodrigues,
expectativa de mobilidade social até então inexistente entre os negros pobres e, até mesmo, a criação de uma
classe média negra em Salvador. Este tema será objeto de discussão ainda neste capítulo.
3
Haja vista que a única obra de Antônio Risério sobre o assunto é Carnaval Ijexá... , de 1981, doravante as
citações a ele serão feitas apenas com seu nome e o número da página referida.
33
década do século XIX e dos primeiros anos do XX, quando “clubes carnavalescos
desfilavam pelas ruas de Salvador como os préstitos da elite branca. As primeiras notícias
sobre estes últimos são de meados da década de 80, enquanto os préstitos organizados por
Além de Risério, vários outros autores comentam sobre os famosos clubes africanos, tais
África, entre outros, que se apresentavam como cortejos reais, luxuosamente trajados e
faziam referência direta à África, não apenas através da ‘realeza’, mas também com
Fry et alli (1988) recorrem a Nina Rodrigues para mostrar que esses clubes
expressavam diferentes ‘Áfricas’: uns exibiam uma “África nobre, com seus faraós e reis
africanas” que eram ‘atualizadas’ no Brasil (:261). Segundo Nina Rodrigues, estes últimos
seriam representantes da “África inculta que veio ao Brasil escravizada” (apud Fry et alli
1988:261). Vieira Filho argumenta que a apresentação de uma “África civilizada e culta”
seria uma “estratégia” dos clubes negros para “reforçar a auto-estima e o valor positivo
das raízes africanas (...) conhecida hoje como auto-afirmação”. Em nota de rodapé, ele diz
que “essa estratégia foi reutilizada nas décadas de 1970 e 80 pelos movimenos negros”
4
Ver, entre outros, Fry et alli (1988:251), onde há a descrição de um préstito do Pândegos d’África
reproduzida de Manoel Querino 1955; Moura (2001:165) relata o conteúdo de um ‘manifesto’ enviado pelo
clube Embaixada Africana à polícia de Salvador; o mesmo manifesto está transcrito em Vieira Filho
(1997:45-6), onde também há uma descrição jornalística do carnaval de 1899 do mesmo clube, cujo tema foi
34
(1997:50). Sem dúvida alguma, ‘auto-estima’, valorização das ‘raízes africanas’ e ‘auto-
afirmação’ fazem parte do vocabulário e das práticas dos movimentos negros recentes.
Contudo, ainda que sem “perder a dimensão da africanidade”, o próprio autor ressalta o
desejo desses grupos de fazerem uso de “uma nova forma de expressão, aceita pela
sociedade” (:54). E neste ponto eles estão bem mais próximos da Frente Negra Brasileira,
movimento negro dos anos 30, do que dos movimentos negros das décadas de 70 e 80:
Além dos clubes negros, havia também os batuques, cuja ocorrência era mais
visível na periferia da cidade. Nas reproduções de notícias jornalísticas dos primeiros anos
do século XX, retiradas de Nina Rodrigues (1905) e que constam do artigo de Fry et alli
publicados, até 1913 (:256). É claro que a proibição não significou a extinção dos
batuques, mas a retirada dos grandes clubes africanos da cena principal do carnaval baiano
Por volta de 1920, segundo Guerreiro (2000:71), os afoxés, que já existiam desde o
século XIX mas que também enfrentaram a proibição das ‘manifestações africanas’,
desfile, aos préstitos dos clubes negros proibidos na década anterior. Conhecidos como
“candomblés de rua”, os afoxés resistiram por todo o século XX, com momentos de
o Egito (:49-50); Guerreiro (2000:69-70) dedica um pequeno capítulo ao tema (“Os Clubes Negros”) e
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presença dos afoxés no carnaval, é preciso ressaltar que a prática de “costumes africanos”
cerimônias públicas, desde que pedissem autorização à polícia. A licença só deixou de ser
No capítulo que dedica ao Afoxé Filhos de Gandhi, Risério (:52-54) reproduz uma
1949, teria ocorrido, então, num momento de revitalização dos afoxés, que vieram a sofrer
cujo resgate é atribuído a Gilberto Gil na segunda metade da década de 70. Risério
reafricanização do carnaval baiano” (:53). O primeiro seria a fundação do Bloco Afro Ilê
Aiyê (:38) e o terceiro, a fundação do Afoxé Badauê (:63), chamado por ele de ‘novo’
batas, torsos e turbantes, colares e búzios, ao som dos atabaques e de cantigas bainagôs”
fez Risério (:16) aproximar esse momento daquele descrito por Nina Rodrigues em 1905.
durante vários anos, a emergência dos blocos afro e dos novos afoxés, além da presença
marcante do Filhos de Gandhi nas ruas, vieram modificar o carnaval, torná-lo outro,
não deve deixar perder de vista que os [res]surgimentos desses grupos tanto são produtos
quanto produtores de novos desejos, de novas formas de perceber o mundo que não se
restringem aos dias da festa carnavalesca, como tão bem o diz Risério:
Ventos de lá
décadas de 60 e 70, que produziram fluxos que, em maior ou menor grau, entraram em
função dos produtos dos encontros, não é rentável tratá-los isoladamente, como
opção foi por destacá-los dos movimentos internos – os ‘ventos de cá’, título
Nos anos 70, a influência africana sobre os movimentos negros brasileiros foi
intensa. Tal afirmação soa de modo estranho a partir da ótica de que, no limite, qualquer
manifestação negra nas Américas é de origem africana, nascida da diáspora. Como ‘raiz’,
jazz, ou como ‘tradição’, ‘lembrança’, o continente africano sempre esteve presente, mas
5
A emergência dos blocos afro e dos ‘novos’ afoxés será descrita adiante.
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sempre enquanto passado (perdão pelo trocadilho), seja como passado longínquo, na
origem de tudo, ou como passado mítico. Em relação ao primeiro caso, observe-se, por
exemplo, a construção do mito de formação do povo brasileiro a partir das ‘três raças’: o
‘índio’ estava aqui, era o ‘dono da terra’; o branco veio da Europa ‘civilizada’ para
‘desenvolver’ o lugar; e o ‘negro’ veio da África para ‘contribuir’ com seu trabalho e seus
Mesmo para ser negada, a África estava lá, quando, por exemplo, nos elogios da
imprensa baiana aos préstitos dos clubes negros nos carnavais do final do século XIX e do
início do XX, que se distanciavam dos ‘batuques africanos’, como já observado na seção
anterior, para falar de uma África de reis e rainhas, uma ‘África nobre’ (Nina Rodrigues,
1905). Segundo Pinto (1995), a postura do movimento negro antes da década de 70 era a
de valorizar a África e seus habitantes como ancestrais do povo brasileiro, mas criticando
suas guerras, sua não aceitação do modo de vida ocidental. O colonialismo também não
era alvo de críticas e parecia “ser encarado como algo natural” (:118). Dessa forma, a
África ‘primitiva’ e idealizada era valorizada, enquanto a África vivida era depreciada.
brasileiros vem das notícias que chegam de uma África real, do presente. O interesse dos
de fatores, melhor dizendo, de encontros de fluxos que mudaram o foco através do qual
comunicação, especialmente da TV; fluxos da Guerra Fria; fluxos dos movimentos negros
6
Versão bastante simplificada e resumida de um senso comum construído ao longo do século XX por
governo e intelectuais, mas ainda presente em livros didáticos e mais ou menos reproduzida nas
comemorações dos 500 anos do ‘Descobrimento do Brasil’, em 2000.
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Nos anos 70, como já observado anteriormente, diferentes grupos sociais que não
podiam ser contemplados pelas lutas travadas na esfera das relações de produção nem pela
política stricto senso – já que eram excluídos delas –, organizaram-se com base em suas
machismo, o racismo” (Santos 1997:258) – que não passavam pelas questões trabalhistas e
foram chamados pela sociologia de novos movimentos sociais (o movimento sindical era o
‘velho’ movimento social). Entre as novas organizações estavam aquelas formadas a partir
do objetivo comum de promover uma melhor qualidade de vida para a população negra,
proposta integracionista da maior parte dos movimentos negros conhecidos até então, era
preciso investir na diferença para mostrar que o problema do ‘negro’ era diferente do
problema do ‘operário’, ou seja, que não se tratava de uma questão de classe, mas de
racismo; que não bastaria ‘educar’ ‘o negro’ para inseri-lo na ‘sociedade brasileira’, tal
como defendiam a Frente Negra Brasileira, os chamados ‘clubes de negros’ ou até mesmo
dos maiores nomes na luta contra a discriminação racial no Brasil. Assim, para denunciar
que a ‘democracia racial’ era um ‘mito’, que a condição de ser negro – assim como de ser
7
Refiro-me às entidades chamadas ‘culturalistas’ e as ditas ‘políticas’, sendo ambos os termos usados como
definição ou como acusação por militantes e estudiosos.
8
“Esse movimento [Frente Negra Brasileira], transformado em partido político em 1936 e interditado no ano
seguinte, como todos os outros partidos políticos do país pela ditadura de Getúlio Vargas, e todos os demais
movimentos negros que apareceram e desapareceram entre 1945 e 1970 (por ex.: Primeira Convenção
Nacional do Negro, Teatro Experimental do Negro) estavam preocupados em dar ao negro uma nova
imagem, semelhante àquela proposta pela ideologia de ‘democracia racial’. Todos escolheram a escola e a
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Fazendo uma síntese das leituras de intelectuais e militantes negros a respeito dos
rumos da luta anti-racista no Brasil nos anos 70, Cunha (2000) explica a argumentação de
Lélia González – antropóloga, intelectual e militante negra das mais ativas – de que a
‘elementos’ são dados por uma ‘origem’ comum e pelas experiências de um povo – o
escravidão –, fica fácil entender porque o interesse pela África e pelo que pudesse ser
entendido como de origem africana se fez tão presente nos movimentos negros brasileiros
nos anos 70 e 80. Nesse contexto, a “cultura negra” era “resistência contra a opressão”
educação como campo de batalha. Pensavam eles que o racismo, filho da ignorância, terminaria graças à
tolerância proporcionada pela educação” (Munanga 1999:97).
9
Ver, entre outros, Munanga (1999), especialmente o Capítulo V, em que o autor discute a tese de Darcy
Ribeiro sobre a formação de uma ‘etnia nacional’. Note-se ainda que, embora trinta anos tenham se passado
desde o início desse processo, a maior parte dos argumentos contra a adoção de políticas de cotas atualmente
40
talvez tudo ao mesmo tempo, o reforço de uma idéia pan-africanista e as influências dos
dos movimentos guerrilheiros para a população negra brasileira era motivo de orgulho e
provocou “um verdadeiro boom (...) de entidades e grupos voltados para a celebração da
África Negra” (:37), o que é refletido nas fantasias, nas músicas, nos temas apresentados
pelos blocos afro nos desfiles de carnaval. Nas quatro páginas que dedica ao assunto,
Risério aponta diferentes elementos que ajudaram a produzir a enorme repercussão que
esquerda...
Dos anos 20 aos 60, organizou cinco congressos pan-africanos na França, na Inglaterra e
nos Estados Unidos (Silva 2001:20). Enquanto movimento que pretendia aglutinar as
nações do continente africano contra o poder colonial ocidental, ele não foi bem sucedido.
continua baseada na invisibilidade da população negra, ou seja, na alegada dificuldade de se definir ‘quem é
negro’ no Brasil.
41
No entanto, sua importância não pode ser menosprezada, principalmente no que diz
respeito a formulações de conceitos como ‘negritude’ – sobre o qual Munanga diz que o
para a constituição dos movimentos negros contemporâneos. Seu legado foi o de colocar a
‘cultura africana’ como centro de convergência, posto que é origem, dos povos da
Como diz Silva, “da relação entre consciência negra e pan-africanismo poderíamos
com a África como origem, como “raiz-afro-mãe” – expressão que ele toma emprestada
do Afoxé Badauê (:37) – e de solidariedade entre ‘os negros’ do mundo. Este sentimento
fez com que fosse muito importante para os ‘negros’ brasileiros tanto a luta por
independência dos ‘negros’ africanos quanto a luta contra a discriminação racial dos
‘negros’ norte-americanos.
noção de cultura negra enquanto estratégia de mobilização, tal como exposto acima, mas
também de uma série de outros fatores que, por sua vez, também provocavam maior
africanas e contribuíam para o desejo das pessoas de se mobilizarem para viver sua
‘cultura negra’.
42
Governo Geisel (1974-1979): “seja como for, a política externa brasileira permitiu que
fosse mais intensa e mais ampla, entre nós, a repercussão das revoluções africanas”
(Risério:36). Na página anterior a essa colocação, o autor comenta sobre sua satisfação em
uma relação intensa com os países africanos, quando alguns ainda eram colônias
como liderança desses frente às grandes potências com o argumento de ser “o maior
também observou que “a política externa de Geisel está[va] mais próxima da política
externa de Jânio Quadros, que condecorou Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul,
e do projeto de João Goulart, do que da política externa de Castelo Branco” (:35)10. Como
comprovação dessa tendência do governo Geisel, observe-se que em 1974 foi criado um
10
Com o intuito de situar o leitor que ignore história do Brasil em relação às colocações de Santos e de
Risério, eis um pequeno resumo: Jânio Quadros foi eleito presidente do país em 1960, com o apoio da
direita, e teve João Goulart como seu vice, apoiado pelo PTB e pelo PSB, então partidos representantes da
esquerda. O governo de Jânio durou apenas sete meses, mas nesse período ele reatou relações com a União
Soviética (‘desobedecendo’ as orientações dos Estados Unidos) e, como já observou Risério, condecorou
Che Guevara, um dos líderes da Revolução Socialista de Cuba. Com a renúncia de Jânio, João Goulart
assumiu o governo em 1961 e aí permaneceu até 1964, quando as Forças Armadas tomaram o poder e
governaram sob um regime de ditadura militar até 1985. O marechal Castelo Branco foi o primeiro
presidente militar (1964-1967) e o general João Figueiredo, o último (1979-1985). O período do governo
43
(Santos 2000:128).
Menos entusiasmado do que Risério – que critica a “esquerda brasileira” por sua
admitindo que o comércio poderia ser uma motivação (:35) –, Santos mostra que a relação
Brasil como uma democracia racial. Longe de pretender estabelecer uma relação de
como uma nação racialmente misturada [“mixed-race”] facilitou os esforços do Brasil para
(1998:120).
fluxos, que nos encontros entre si e com outros produziram novas subjetividades, que
baiano, que desde os anos 50, e ainda mais explicitamente nos 60 e 70, investem esforços
Ernesto Geisel (1974-1979) ficou conhecido como de ‘distensão’ do regime militar. Já o seguinte, de
Figueiredo, foi o da ‘abertura democrática’.
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proposta para este capítulo que divide os ‘ventos de lá’ e os ‘ventos de cá’, este tema será
novo lugar à África de maneira semelhante aos movimentos negros brasileiros e sua
aposta de mobilização em torno da ‘cultura negra’. Além disso, seguindo o espírito deste
plausível imaginar que uns e outros investimentos tenham se afetado mutuamente, ainda
repercussão desses acontecimentos fosse “mais intensa e mais ampla entre nós” (:36),
pode-se dizer o mesmo dos movimentos de esquerda brasileiros. Voltando a Santos (1998)
e à política externa brasileira em relação à África, o autor diz que as mudanças do governo
leitura estava correta. Os movimentos guerrilheiros das ex-colônias tinham uma orientação
socialista: em meados da década de 60, Cuba chegou a enviar soldados para o Congo,
tendo Che Guevara à frente e, após a independência, Angola e Moçambique contaram com
tanto internos aos países quanto organizados pela África do Sul e que eram apoiados pelos
Estados Unidos (Silva 2001:27) – era a Guerra Fria em curso. Baseados no ideal do
11
As elites brasileiras pregam a ausência de racismo no país desde a independência, como argumenta Flory
(1977), cuja tese será explicitada no próximo capítulo. Na verdade, negar qualquer tipo de ‘problema racial’,
45
para seguir Risério, a cidade de Salvador. Mais uma vez, tal como foi dito acima a respeito
das construções das noções de ‘cultura afro-brasileira’ e ‘cultura negra’, tem-se governo e
Como diz Silva: “Ao seguir uma linha que dava respostas à radicalização colonial,
diáspora.” (2001:26). Tal referência é bastante explícita na fala de João Jorge, líder do
Olodum, que diz que os movimentos negros culturais não buscavam uma África mítica,
conceber a nação como ‘misturada’, foi um recurso utilizado pelas elites latino-americanas de modo geral
(ver, p. ex., Cunha 1991:14 sobre a Jamaica).
12
Mas não exclusivamente destes, como observa Cunha (2000:337-8): “É importante ressaltar que as críticas
do que se concebia como ‘culturalismo’, ao lado do que se imaginava caracterizar a cultura política das
relações entre as classes dominantes e as classes populares – a cooptação –, não penetraram exclusivamente
nos domínios da militância negra. Ao contrário, fizeram parte de uma espécie de ethos político que percorria
vários movimentos sociais e grupos de esquerda no mesmo período. A ‘politização’, por exemplo, que se
dava num momento de distensão do regime militar, era vista como objetivo principal num momento de
reorganização popular, diante da dispersão provocada pela censura e pelo terror”.
13
Agier (2000:123-4) informa, por exemplo, que o Ilê Aiyê, ainda que não regularmente, costuma
comemorar a Independência de Angola em 11 de novembro.
46
70, assim como a luta contra o apartheid na África do Sul, também agiram sobre os
movimentos por direitos civis nos Estados Unidos que, por sua vez, tiveram uma forte
70, e especialmente o movimento que ficou conhecido como Black Power – menos uma
sobremaneira no Brasil. Foi pela TV que o Brasil viu dois atletas negros americanos
erguerem os pulsos cerrados cobertos por luvas pretas – símbolo do Black Power – quando
Também foi através da TV que chegou ao Brasil uma ‘imagem’ de como se vestia e se
47
comportava, de qual era a música do ‘negro’ adepto do Black Power: Risério comenta
sobre a “intensa influência” dos Jackson Five sobre o “comportamento da juventude negra
baiana” através de seu seriado semanal (:28). O grupo Jackson Five era só mais um
representante da soul music, que Risério define como “música feita por negros, dentro da
o ser negro e a beleza negra, dirigida a um público essencialmente negro” (:29). Mas a
soul music chegava ao Brasil também por outras vias, sendo James Brown seu maior
ídolo.
inicialmente no Rio de Janeiro, depois outras grandes cidades como São Paulo, Campinas
for direcionada aos movimentos de caráter ‘mais’ político ou ‘mais’ cultural e também
quanto ao lugar do objeto a ser discutido – Rio/São Paulo ou Salvador, mas a descrição do
movimento black, como se costuma dizer, não muda muito de enfoque de um autor para
A soul music chegou ao Brasil pelos bairros do subúrbio da Zona Norte do Rio de
Janeiro. Os grandes bailes de ‘disco soul club’ eram organizados por ‘equipes’ e reuniam
milhares de jovens negros nos ginásios de clubes sociais ou esportivos – Risério fala de 5
realização desses bailes ficou conhecido como Black Rio e provocou uma grande polêmica
entre intelectuais e militantes do movimento negro da época. Risério, por exemplo, cita a
antropóloga Lélia Gonzalez como sendo uma dessas pessoas que condenavam o
movimento por sua “alienação” e por ser uma “imitação terceiromundista da juventude
negra dos EUA” (:30). Crítica esperada de uma esquerda que vivia sob uma ditadura
48
militar apoiada pelos Estados Unidos em plena Guerra Fria, além de ter por orientação
capacidade de ‘guiar’ a ‘massa’. Assim, um movimento de massa que, como frisa Mitchell
(1985:108), “tem tons políticos, embora não o seja exatamente”, que não fosse coordenado
pela vanguarda de esquerda, só poderia mesmo ser criticado por ela. O movimento Black
direcionados a uma classe média branca, o que fez o movimento ser incorporado à
movimento. Como já referido acima, era comum tratá-lo como ‘imitação’ do movimento
negro norte-americano, em bastante evidência no início dos anos 70, e isso ocorria por
parte da esquerda e da direita brasileiras. Além de não ter o movimento sob seu controle, a
‘nação’ – esforço muito acentuado durante a ditadura militar – para o que era necessário
reforçar a imagem do Brasil como democracia racial. Por sua importância na formulação
perigo que um movimento como esse provocava, a saber: “introduzir, num Brasil que
cresce plena e fraternalmente moreno – o que parece provocar ciúmes nas nações que
também são birraciais ou trirraciais –, o mito da negritude, (...) que às vezes traz a ‘luta de
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classes’ como instrumento da guerra civil”14. Hanchard informa que, embora não seja
Apesar das críticas, era preciso reconhecer a importância do movimento, ainda que
esta fosse dada por sua possível conseqüência: os bailes possibilitavam a reunião de
pessoas negras que propunham uma estética negra, uma dança negra, uma música negra, o
Gonzalez admite a relevância do movimento por sua “aglutinação de negros” (:32), que
também é destacada por Mitchell: “[o Black Soul] é um sinal de conflitos raciais trazidos à
difusa.” (:109). Hanchard segue esta mesma linha afirmando que o melhor do movimento
Black Soul foi provocar a reação das elites brancas e a “valorização de formas de auto-
expressão e identificação que eram anteriormente reprimidas ou negadas tanto por brancos
americano”. Contudo, assim como para os autores citados acima, também para Risério o
preto brasileiro com o preto norte-americano (...) no terreno da negritude”. Foi uma
maneira do “preto brasileiro” tornar-se “mais negro” (:31). Mas, a partir daí, Risério
diferencia-se dos demais, pois ele destaca o que seria a conseqüência boa do movimento
black soul: o que era de ‘fora’, mas era ‘negro’, fez a passagem para o que era ‘negro’ de
14
Artigo publicado em 15 de maio de 1977, no jornal Diário de Pernambuco citado por Hanchard 2001:138.
50
‘dentro’, ou seja, o interesse pela negritude norte-americana fez com que a população
na Bahia, onde se deu “a passagem do soul ao ijexá, do black ao afro” (:31). Os dançarinos
de destaque dos blocos afro e afoxés começaram nos salões de soul music. A palavra de
ordem black is beautiful e a extrema valorização de uma estética black foram de suma
a partir do reggae e dos blocos afro. Aliás, na primeira música apresentada pelo Ilê Aiyê,
em seu primeiro desfile, essa influência pôde ser muito bem percebida: “somos crioulo
doido, somos bem legal / temos cabelo duro, somos black pau” 15.
O reggae e o rastafarianismo
agenciamentos com tudo o mais que estava acontecendo em Salvador e teve uma
de ser entendido como um movimento que é mais do que musical porque também é
étnica da Bíblia e que tem o reggae como principal forma de divulgação, prega o retorno à
15
“Que bloco é esse?”, de Paulinho Camafeu. Aproveito o ensejo para fazer duas observações. A primeira é
que a expressão ‘cabelo duro’, que nesta composição é símbolo de ‘negritude’, também foi utilizada pelo
compositor em um outro grande sucesso seu, a música “Fricote”, mais conhecida como “Nega do Cabelo
Duro” e que indignou o movimento negro na ocasião, “que via ali uma manifestação de racismo” (Guerreiro
2000:141). A outra observação diz respeito a especulações sobre a expressão ‘black pau’, grafada desta
forma no encarte do disco. Não há dúvidas de que se trata de uma corruptela da expressão ‘black power’.
Risério reproduz a música com a grafia “bleque pau” (:134). E Agier (2000:121), o segue, mas propõe uma
‘explicação’: o autor informa em nota que a expressão Black Power é escrita em português como é
pronunciada, ou seja, “bleque pau”, porém, de acordo com suas conclusões, esta ‘transformação” lingüística
51
pela sua libertação através da destruição da ‘Babilônia’ – “termo usado como referência
Cunha:
sua fusão com o rock steady, que por sua vez já era uma fusão de ritmos ‘afro-caribenhos’
com música afro-americana (Pinho 1997), nasceu o reggae, apropriado pelo movimento
rastafari como sua principal forma de divulgação18. Até 1962, a Jamaica era uma colônia
considerado o ponto de partida para a sua difusão, especialmente pelos países da ‘diáspora
negra’.
seria proposital, pois a palavra ‘pau’ introduziria “uma ambigüidade sobre o sentido da expressão: ‘pau’ é
tanto o ‘pênis’ (em português) quanto o ‘poder’ (power)”.
16
“A redenção dizia respeito à interpretação da África como sendo a ‘pátria mãe’ e a Etiópia como ‘paraíso
ancestral’ às quais se referiam os textos bíblicos. Sob este prisma havia a negação da cidadania americana
em troca de um reconhecimento religioso e histórico da ancestralidade africana. Identificar-se como
‘africano’ era reconhecer essa filiação e rejeitar os conceitos de ‘inferioridade’ e ‘atraso mental’ imputados
aos escravos e seus descendentes” (Cunha 1991:18, sobre as idéias de Marcos Garvey, líder negro precursor
da doutrina rastafari).
17
Sobre rastafarianismo e reggae no Brasil, especialmente em Salvador, ver principalmente Cunha (1991 e
1993), também Godi (2001) e Pinho (2001), entre outros; e Silva (1995) sobre São Luís/MA, considerada a
capital do reggae no Brasil.
18
Para uma versão bem mais aprofundada, ver Cunha 1991, capítulo I.
52
faziam parte as lutas pela descolonização no continente africano e pelos direitos civis nos
Estados Unidos. Esses movimentos geraram fluxos que produziram novas visões de
mundo e solidariedade entre as populações negras, sem perder de vista que eles próprios
movimento rastafari a adoção deste ou daquele elemento: cabelos dreadlocks, roupas nas
cores vermelho, verde, amarelo e preto19, objetos que simbolizem a África, a Bandeira da
19
“O uso dessas cores tem como inspiração a bandeira da Unidade Africana, idealizada por Marcus Garvey:
o vermelho representa o sangue dos ‘mártires negros’, o preto a ‘cor da pele do povo africano’ e o verde a
vegetação e as ‘obras da criação’. Assim como, o uso das cores verde, vermelha e amarela representam as
53
que ele privilegia) com o ijexá, ritmo originado no candomblé e utilizado, principalmente,
pelos afoxés (:115). Essa relação, existente ou não em termos de teoria musical, será
(1981) e consagrado anos depois como o ritmo próprio dos blocos afro 20. Naquela ocasião,
dado que se trata de um movimento, não foi apenas musicalmente que o reggae entrou no
Aliás, vale lembrar que o reggae não participou dessa “emergência geral de uma
nova negritude” como ‘coadjuvante’. A denúncia do racismo sofrido pela população negra
carnaval e da cidade. E elas começaram a chegar antes mesmo da fundação do Ilê Aiyê. A
primeira gravação de reggae no Brasil foi de Caetano Veloso ainda em 1972 (Pinho
2001:195). Neste mesmo ano, um primeiro disco foi gravado inteiramente com músicas no
estilo21. Além disso, segundo Godi (2001:215), Jimmy Cliff esteve pela primeira vez no
em 1978 (Pinho 1997:182-3), a vinda de Bob Marley em 1980 ao Rio de Janeiro e sua
declaração de que “samba e reggae são a mesma coisa, eles têm o mesmo sentimento de
raízes africanas” (Vidigal 1996 apud Pinho 2001:195) e seu retorno a Salvador em 1981;
ainda em 1980, Jimmy Cliff e Peter Tosh no Brasil; a fundação do Bloco Afro Muzenza,
em 1981, conhecido como o bloco do reggae... São fluxos se encontrando e criando planos
chama a atenção para esse aparente paradoxo ao assinalar que se trata de “um movimento
que surge a partir da inversão de símbolos religiosos que são concebidos como artifícios
invenção de novos símbolos, mas na “reinvenção” destes; não se recusa a Bíblia, mas sua
leitura é outra; é preciso voltar à África, especialmente à Etiópia, mas para isso não há
outra forma senão usando os “instrumentos privilegiados pelo Sistema como eficazes
através da ‘conscientização’ dos ‘negros’ com as armas que ela mesma utiliza: as
síntese formulada por Pinho (1997:195), o Atlântico Negro seria um “espaço formado
55
pelos fluxos culturais e econômicos entre África, Caribe, América e Europa, como uma
e das demandas dos descendentes de escravos por ela geradas, uma e outras imanentes à
‘modernidade’, pois essas demandas nascem da própria nova condição de cidadãos, e não
que gerem “melhores formas possíveis de existência social e política” (:99). A expressão
artística em geral, mas a música especificamente, é a forma por excelência de fazer essa
crítica, pois recusa a separação entre cultura e política estabelecida pelo ‘Ocidente’ e
e o mundo que a produziu. Pinho argumenta, então, que o reggae seria um ponto de
conjunção com elementos locais, novas relações entre o “Ocidente e seus outros”, os
A contracultura
imposta pela ‘cultura ocidental’, Pinho (1997 e 2001) e Gilroy (2001) concebem o reggae
promoveram o que ficou conhecido como ‘revolução cultural’ nos anos 60.
segundo, não nasceram atrelados a esses movimentos, mas foram associados a eles. E não
como diz Risério (:23), como um forte elemento de aproximação e de influência mútua
entre eles, sendo a música eletrônica também um fator fundamental na relação. Como
ressalta Godi (1997:93), Eric Clapton gravou Bob Marley e os Rolling Stones estavam nos
costumes de oposição à ordem social vigente. E é claro que o encontro produziu mudanças
também na juventude negra, especialmente através de informações às quais ela não tinha
acesso (: 23).
(1988:195), mas uma matéria jornalística de 1971, em parte reproduzida por Santos
(2000:172), afirma que a mesma busca por alternativas ao modelo de vida concebido
como ‘ocidental’ que levava “americanos e europeus” à “Índia, chamados pela concepção
oriental do mundo”, fazia com que brasileiros procurassem pelo candomblé, “religião de
origem africana, a qual oferece um universo primitivo e fantástico” (Revista Veja, n.161,
57
novo encontro.
conforme anunciado, os fluxos que circulavam por aqui e que a partir de seus encontros
com outros fluxos produziram o movimento negro na capital baiana nas décadas de 70 e
80. Antes de prosseguir, entretanto, é preciso reiterar que ‘vir de lá’ ou ‘estar por aqui’ são
produzem novos fluxos e assim a vida social se produz – não admite um ‘antes’ e um
‘depois’, um ‘de fora’ e um ‘de dentro’, um ‘global’ e um ‘local’. Nesse sentido, citar o
Jamaica ou nos Estados Unidos – portanto, lá – e trazidos para o Brasil como se fossem
‘peças’ que pudessem ser modificadas, retrabalhadas, influenciadas por fluxos produzidos
aqui, não conseguiria expressar o processo de mistura22, a idéia do encontro. Ainda que
fosse possível – o que não é – determinar o primeiro disco de reggae ou de soul que entrou
no país ou a primeira pessoa que ouviu o estilo fora do país – no caso do reggae, alguns
autores sustentam que ele foi trazido por Gilberto Gil e Caetano Veloso que o teriam
ouvido enquanto estavam no exílio, em Londres –, não se poderia garantir que a ‘vida’
desses movimentos começou no Brasil nesse instante. Um cabelo diferente, uma camiseta
de tal cor, um toque de improviso num instrumento, uma especulação, uma notícia... Antes
58
mesmo do que seria o primeiro contato, um disco ou uma música ou uma idéia ‘de fora’
poderiam estar conectados com esse suposto ‘de dentro’, produzido com e por outros ‘de
Assim, embora separando os fluxos trazidos pelos ‘ventos de lá’ dos ‘ventos de
cá’, a proposta deste trabalho se distingue muito da de Sansone (1997). Analisando o funk
nas cidades do Rio de Janeiro e de Salvador, ele pretende mostrar que fenômenos musicais
aspectos locais (:221). Sansone entende que nos “países do terceiro mundo”, na “periferia
globais. Eles têm uma origem – anglo-saxônica – e são reinterpretados pelas culturas
econômicas de cada lugar. Assim, Sansone afirma que as cidades do Rio e de Salvador,
por não poderem consumir, por exemplo, reggae e hip-hop da mesma forma que Nova
Iorque, Londres ou Amsterdam, “mantêm uma posição periférica também com relação ao
‘Atlântico Negro’ e ao centro emissor da maioria dos símbolos e mercadorias dentro dos
(:236). O autor ainda aponta, com base nos mesmos argumentos, que haveria, também,
uma hierarquização entre Rio de Janeiro e Salvador: a primeira cidade, por ter um maior
poder aquisitivo e maior contato com os centros produtores, teria uma “subcultura juvenil”
22
Segundo a Química, mistura não seria o melhor termo, sendo mais apropriado falar de reação química:
quando uma substância entra em contato com outra e afinidades existentes entre si fazem com que este
encontro as transforme num novo produto.
59
como inegável. No mesmo artigo trabalhado acima, Sansone, por exemplo, refere-se a
“uma indubitável globalização do universo da cultura juvenil” (:221), e ele está longe de
ser o único a defender essa concepção. Pinho (2001) também valoriza o aspecto cultural
refutação do conceito, pois este pressupõe sempre dicotomias que não se sustentam, como
local/global, ocidente/outros, centro/periferia etc. Pinho, por exemplo, diz que os “afro-
modernidade” na relação entre o “Ocidente e seus Outros” (:197). Mas, seriam mesmo os
de ‘outros’ pela hierarquização do ‘Atlântico Negro’, como já assinalado. Além disso, sua
todo em relação a diversos outros – no Brasil, ele analisa ‘baianos’ e ‘cariocas’ como
‘outros’ distintos, o que faz pensar que haveria, então, vários ‘outros’. Por outro lado, ele
mesmo diz que “ser rastafari hoje não é a mesma coisa em Kingston, Londres ou
23
Apenas como um exemplo a mais entre tantos possíveis, ver Perrone e Dunn (2001), uma coletânea de
artigos sobre música no Brasil e sua relação com o que seria um contexto global, da qual o artigo citado de
Pinho é parte.
24
Dicotomias como ocidente/oriente, tradicional/moderno e tantas outras são recusadas da mesma forma.
60
A dicotomia local/global, ou qualquer outra que lhe faça as vezes, é falsa porque
para que ela exista é necessário imaginar um lugar que produza uma homogeneização que,
por sua vez, atingirá um outro lugar, natural e anteriormente heterogêneo àquele. Negri e
Então, globalidade ou localidade são produzidas de acordo com o momento, com o que é
privilegiado.
O que está sendo defendido aqui é que o agenciamento de fluxos sempre provoca
sobrecodificar outros, mas há aqueles que escapam da sobrecodificação, fazendo com que
saia algo realmente novo daí. Parece possível especular que o reggae que chegou a
Londres por imigrantes jamaicanos e que daí foi difundido para outras cidades tenha
sempre diferentes.
No capítulo que relaciona o movimento Black Rio com os blocos afro e os novos
afoxés, Risério termina ressaltando que não se trata de um antes e um depois, que “essas
coisas vão se mesclando, se superpondo, numa mistura total”. O último trecho desse
capítulo é também a idéia que guia este trabalho, pois, como ele diz: “Primeiro o fubá,
depois o dendê, mas sem esquecer a nega baiana que sabe mexer. E que não pára de mexer
Ventos de cá
Tal como já foi mais do que frisado, a separação entre fluxos de lá e fluxos de cá
tem apenas a intenção de facilitar a exposição, pois cada um dos fluxos apresentados já é
em si mesmo uma mistura de vários outros que não respeitaram separação alguma. Além
disso, a própria apresentação da seção anterior mostrou que, mesmo quando o elemento é
considerado ‘de fora’, ele só tem sentido neste trabalho pelas conexões que foi capaz de
fazer e que geraram outros fluxos cujos encontros produziram os blocos afro e a
dos países africanos ou a soul music foram expostos como ‘vindos de fora’, mas já na sua
apresentação foi preciso dizer o que foi gerado a partir de sua chegada, melhor dizendo, de
seus primeiros encontros. Cabe fazer a mesma advertência para esta seção, haja vista que
Janeiro... também foram gerados por outros vindos de fora, cujas conexões serão
Os afoxés
significa “enunciação que faz (alguma coisa) acontecer”, “a fala que faz”,
rivalidade, eles trocavam “afoxês (no sentido de fórmula mágica) entre si” (:12). Vieira
Filho diz que as informações sobre o significado do termo são muito distintas, no entanto,
o que parece ser consenso entre vários estudiosos é que os afoxés teriam origem comum
aos maracatus de Recife/PE, sendo ambas as manifestações derivadas dos antigos desfiles
62
dos Reis Congos, uma mistura de elementos ‘africanos’ e ‘católicos’ (1997:51-2; ver
também Risério:55).
Em seu estudo sobre o carnaval baiano no período de 1880 a 1930, Vieira Filho
chama a atenção para o pouco valor atribuído ao afoxé, pois nem a imprensa fazia
no início deste capítulo, foram bastante registrados pelos jornais. Outra diferença entre os
em seus préstitos, os afoxés não desfilavam com mais de cem (:53). Há diferenças também
em “seus temas e suas intenções”. Para Vieira Filho, os clubes uniformizados negros
mostrar uma África ‘civilizada’, que tinha uma ‘história’, enquanto os afoxés queriam
os terreiros de candomblé, resistiram por todo o século XX, com momentos de maior e de
maior evidência dos afoxés no carnaval de Salvador. Fundado em 1949 por um grupo de
mais famoso afoxé da cidade. A adoção do nome ‘Gandhi’ reflete tanto a posição
que acontecia no mundo – o líder indiano Mahatma Gandhi fora assassinado em 1948 –
depoimentos de alguns dos organizadores, a idéia era mostrar que se tratava de um grupo
pacífico para evitar a repressão policial, afinal, eram estivadores, ligados ao movimento
sindical – vistos como ‘comunistas’ –, negros e, muitos deles, adeptos do candomblé. Para
63
tanto, fizeram de Gandhi, o “precursor da paz”, seu símbolo; adotaram o uso exclusivo de
roupas brancas (cor de Oxalá, mas também cor da paz); e proibiram mulheres e bebida no
inimaginável entre fluxos tão díspares quanto aqueles gerados pelo candomblé e aqueles
gerados pela luta de um pacifista hindu contra a dominação britânica imposta sobre a
Índia.
Segundo Morales (1991), o Filhos de Gandhi não surgiu como um afoxé. Era um
bloco de estivadores, assim como havia blocos carnavalescos ligados a outras categorias
profissionais, como o Filhos do Mar, formado por marinheiros, o Filhos do Porto, por
adoção do formato de afoxé não demorou a acontecer. Michel Agier, antropólogo francês
que realizou anos de pesquisa junto ao bloco afro Ilê Aiyê25, também assume o termo
Risério, ele propõe outros três momentos-chaves para o processo. O primeiro é justamente
negra, de suas ‘práticas’, de sua religião, mas em tom extremamente pacífico. E isso num
Quase nada é dito sobre afoxés no período entre o nascimento do Filhos de Gandhi
e sua revitalização em 1976. Outros afoxés são citados, mas não se estabelece quando nem
reproduzida pela maior parte dos autores, a década de 60 é dedicada aos blocos de índio,
64
assunto que também será tratado adiante. O que consta desses trabalhos é que no final dos
anos 60 havia poucos afoxés desfilando e que o Filhos de Gandhi já quase não existia.
Morales chega a dizer que ele passou por um período de recesso entre 1972 e 1976
(1988:270), ano em que voltou a desfilar e que foi para Risério o segundo momento-chave
pelo Filhos de Gandhi, que contou com a presença altamente midiática de Gilberto Gil por
seis anos, outros afoxés surgiram a partir de então. Risério denomina-os ‘novos afoxés’,
sendo o Badauê, fundado em 1978, o mais famoso deles. Sua emergência representou para
desses ‘novos afoxés’ para os antigos está principalmente na relação de seus componentes
com os terreiros de candomblé. Embora sempre haja uma mãe ou pai-de-santo para
‘proteger’ o grupo e realizar os ‘trabalhos’ necessários, ele não pertence a uma casa de
gera outras diferenças nos cânticos, que não são de candomblé, nas danças e na
O candomblé
afoxés’. Além de fornecer o ritmo – o ijexá é um dos mais executados pelos blocos afro –
utilizados pelos blocos são inspirados na religião. E, mesmo que o vínculo a um terreiro de
25
Vários artigos resultaram deste trabalho, alguns dos quais serão utilizados aqui. Sua obra de maior fôlego
sobre o tema é Anthropologie du Carnaval. La ville, la fête et l’Afrique à Bahia, de 2000.
65
definição de bloco afro, uma grande parcela deles mantém uma proximidade com algum
terreiro. E isso certamente se deve, entre outras coisas, à relação estreita do Ilê Aiyê –
considerado o primeiro bloco afro de Salvador e que, num certo sentido, definiu o que
seria um ‘bloco afro’ – com uma casa de candomblé, o Ilê Axé Jitolu, cuja mãe-de-santo é
mãe carnal de um dos fundadores e presidente do bloco. Essa ‘relação estreita’ não se
existência do Ilê Aiyê 26. Outros blocos observam uma postura mais distanciada em relação
ao candomblé, mas nunca é indiferente. Em geral, cada grupo tem devoção a um orixá
especial, às vezes concebido como seu patrono, seu protetor, ou é o orixá da mãe-de-santo
homenageia-se Omolu, orixá maior do terreiro de Mãe Hilda (Agier 2000:143); Olodum é
“termo diminutivo de Olodumaré” (Guerreiro 2000:43); o Ara Ketu tem Oxóssi por
Em seu livro A Trama dos Tambores (2000), Goli Guerreiro tem por objeto a
música afro-baiana, passando por suas influências e chegando até o cenário atual. Nesse
relato do aprendizado através do candomblé é uma constante, seja por experiência própria,
seja por um mestre vinculado à religião. A título de ilustração, o depoimento de Bira Reis,
26
Assunto que será abordado mais detalhadamente adiante.
27
Em entrevista a Ribard, o presidente do Malê Debalê diz que “Nós estamos situados numa área onde há
grandes terreiros, como Oba Falomi que é o terreiro que a entidade freqüenta e Oxum que está ao lado do
Malê, nas águas da Lagoa de Abaeté. Ela é a grande protetora do bloco com outros orixás que velam por
nós” (1999:407).
66
candomblé olhar ou então conhecia um cara que era do candomblé. Em Salvador, a coisa é
A coreografia dos blocos afro em seus desfiles é muito inspirada nas danças dos
orixás. Não são imitações destas, mas há muitos elementos das danças praticadas no
interior dos terreiros compondo as apresentações dos blocos. Guerreiro informa que o
Malê Debalê “estiliza todo ano um ritual de candomblé” (:251) na avenida. Na mesma
conversa que deu início a este ‘relato de encontros’, na casa do presidente do Dilazenze,
de Ilhéus, ele informou que as famosas coreografias que viraram uma espécie de ‘marca
registrada’ das bandas de axé music nasceram nos ensaios nas quadras dos blocos afro. De
fato, não é difícil perceber traços das danças dos orixás nas coreografias das músicas
‘afro-pop’ baianas mais badaladas. Definindo a axé music como “o encontro da música
dos blocos de trio com a música dos blocos afro”, como um “estilo mestiço”, Guerreiro
também informa que as coreografias das bandas de axé são resultado dessa mistura
(2000:133-4).
tomou conta da cidade de Salvador nos anos 70 e 80. Nesse período, ou mesmo anterior a
ele, surgiram inúmeros grupos de teatro, de dança ou grupos folclóricos cuja temática
adquirida por essa religião depois de décadas de perseguição. Risério faz referência ao
Engenho Velho e o Axé Opô Afonjá, além de ialorixás como Mãe Menininha do Gantois e
Olga de Alaketu (:20), que têm, nesse momento, projeção nacional e até internacional:
Mãe Menininha posa para uma propaganda de máquina de escrever e Olga de Alaketu é a
Para além de sua ampla disseminação na capital baiana (Risério diz que “a Bahia
tem três vezes mais terreiros de candomblé do que igrejas católicas” (:22) e Silveira
informa que no final dos anos 80 havia cerca de 1.500 terreiros registrados na Federação
pela polícia’ para ‘símbolo da Bahia’ foi fruto de um grande investimento estatal que teve
início nos anos 50, como demonstra Santos (2000). Nesse momento de industrialização do
excelência, da baianidade. Junto com a capoeira e a culinária, ele foi incorporado pela
mídia, por órgãos públicos, empresas privadas como uma das marcas registradas da
Bahia” (:78). O governo federal, com o intuito de construir uma ‘cultura nacional’, como
do então presidente Juscelino Kubitschek compareceram ao Ilê Axé Opô Afonjá pelas
seus orixás, além da distribuição ao turista do calendário litúrgico dos terreiros. Mas é
importante destacar que toda essa mistura de candomblé, culinária, capoeira, “herança
africana”... tudo isso deveria resultar em um “jeito baiano” (:96-7), não em ‘negritude’ ou
com que o elemento ‘afro’ só possa ser visto como herança misturada a outras heranças.
expressiva, que Santos (2000) dedica todo um capítulo de sua tese de doutoramento à
análise da relação entre esta religião e o poder público na Bahia (“O Candomblé como
‘imagem-força’ do estado”). Ele informa, por exemplo, que em 1972, o então governador
Antônio Carlos Magalhães criou a Bahiatursa, órgão de turismo do estado, que incentivava
estatal chegou “a financiar certos candomblés para tornar suas cerimônias mais
preservação das religiões de origem africana” (Santos 2000:166). ACM conserva até hoje
uma relação estreita com as principais lideranças dos terreiros de candomblé da Bahia, o
que em muitas situações – especialmente nos anos 70, mas não exclusivamente – foi/é
Os ‘blocos de índio’
Na maior parte das narrativas que se propõem a contar uma história do carnaval
na década de 60, eles são considerados os antecessores dos blocos afro. Tal relação, quase
69
filiativa desses últimos para com os primeiros, advém de três fatores que, penso, são de
diferentes níveis. O primeiro deles refere-se ao público que ambos atingiam: jovens pobres
cronológica que é dita existir entre eles, já que os blocos de índio surgiram na década de
60 e os blocos afro são da década seguinte, ocorrendo, então, uma relação inversamente
faz com que, aparentemente, haja uma migração dos participantes dos blocos de índio para
os blocos afro. De fato, a trajetória de algumas lideranças dos primeiros blocos afro passa
pelos blocos de índio e corrobora ambos os fatores descritos acima. Contudo, o terceiro
fator que identifico na literatura sobre o carnaval afro-baiano que relaciona esses
movimentos está situado num nível diferente dos anteriores. Enquanto estes referem-se a
constatações observadas nas formações desses grupos, o terceiro fator está condicionado a
uma conclusão daí advinda, a de que os blocos de índio teriam uma intenção de
organização ‘étnica’, assim como os blocos afro, o que permite que logo surja entre uns e
outros uma linha de filiação. “De índio a negro, ou o reverso” é o título eloqüente de uma
artigo de Antônio Godi (1991), o qual expressa uma espécie de síntese da proposta
serviria de base para a afirmação da ‘identidade’ propriamente negra nos blocos afro, a
partir de uma ‘tomada de consciência’. Para ele, enquanto nos blocos de índio haveria uma
“assunção travestida” de “uma singularidade étnica”, nos blocos afro, ela seria “explícita”
(:51).
de reafricanização do carnaval. Antes dos blocos afro e dos novos afoxés, era aí que “as
brincavam seus carnavais com fantasias e motivos inspirados nos índios norte-
Risério não tem dúvidas. Mas sua crônica encaminha-se no sentido de responder “por que,
entre a enxurrada de elementos culturais estrangeiros aqui aportados, a escolha foi recair
política e culturalmente” (:67) semelhantes é sua resposta. E essa identificação não estaria
presente apenas na indumentária e nos nomes adotados pelos grupos, mas também no
aos blocos de índio28 – que Risério considera “sociologizável” pois representaria “rebeldia
social” de “caráter classista” (:68) – seria inspirada, para não dizer espelhada, na reação
dos índios aos brancos ‘desbravadores’ do oeste americano. Contudo, tanto a violência
quanto os próprios blocos de índio eram reduzidos à medida que crescia “o processo de
autoconscientização dos negros” (:69). Este é o conteúdo básico utilizado pela maior parte
Para Agier (2000:51), o surgimento dos blocos de índio constitui a segunda etapa
primeira etapa a fundação do Filhos de Gandhi em 1949 e a terceira e última, a criação dos
blocos afro, em 1974. A importância dos blocos de índio para esse processo reside no fato
de ter aí sido formado um espaço ocupado por jovens negros em busca de uma
Maria Rosário de Carvalho (1994) a idéia fica mais clara. A partir de uma nova conjuntura
28
Sobre os blocos de índio, diz Gomes (1989:177): “Eles serão os personagens mais constantes a figurar nas
colunas policiais relacionadas ao carnaval durante toda a década de 70, nas quais se exige a ação imediata
dos poderes públicos e de órgãos de segurança.”
71
sócio-política estabelecida nos anos 60 e 70, trabalhada também aqui páginas atrás, tanto
‘índios’ quanto ‘negros’ passariam a buscar a obtenção de direitos que lhes eram negados
que os “índios (...) têm uma certa vantagem sobre os negros” (:114) porque “encarnaram
muito cedo e perfeitamente a figura do outro étnico” (:110), ao passo que os ‘negros’
foram ‘integrados’ à sociedade brasileira e colocados numa posição inferior, fazendo com
que fosse necessário “dar um novo sentido a uma diferença racial já construída pela
negro em meados dos anos 60 “impor um espaço próprio e uma diferença evidente no
cenário do carnaval” (:115). Mais tarde, já com a formação dos blocos afro, a juventude
negra vai “progressivamente recusar aos blocos de índio (...) a representação de uma
Ribard (1999) segue pelo mesmo caminho considerando que a apropriação que os
jovens negros fazem da imagem do ‘índio’ ocorreria pela ‘identificação’ dos primeiros
com o segundo por sua condição compartilhada de minorias étnicas buscando alcançar
reconhecimento diante da sociedade nacional, tal como também afirmam Agier e Carvalho
(1994). Nesse sentido, o autor pensa o ‘índio’ como uma “figura de transição na dinâmica
modelo de inspiração ser o índio norte-americano dar-se-ia porque “ambos têm em comum
“coragem e mesmo a não submissão que lhe conduz ao sacrifício de sua vida pela
liberdade de seu povo” (:190). Seguindo a ‘fórmula’, Ribard conclui que os blocos de
naquele momento ainda era “inconsciente”, “instintivo” (:191). O posterior declínio dos
blocos de índio – em 1995, ano em que realizou sua pesquisa, Ribard encontrou apenas
também afirmar, como Risério, que os jovens negros buscavam na representação por
situação de exclusão vivida por eles no dia-a-dia, “ou seja, o negro se disfarça de índio
para manifestar sua força no espaço do carnaval”. Discurso semelhante é assumido por
Morales, para quem os blocos de índio dos anos 60 eram um “movimento de reação à
identificação do negro com o índio colonizado em luta com seus dominadores” (1991:76).
escolas de samba, utilizando o samba como ritmo e a formação das baterias das escolas.
Guerreiro considera-os uma reatualização dos blocos de índio que desfilavam na capital
baiana em fins do século XIX e início do XX, porém, segundo a autora, naquela época as
inspirações eram “os aborígenes do Brasil” e os “índios do México” (2000:85). Tal como
os clubes negros e os afoxés, esses blocos também foram proibidos em 1905. Já Godi
(1991) apresenta uma versão que, embora não seja excludente em relação à de Guerreiro29,
29
A autora não fornece referências para sua versão, que não é abordada por nenhum dos outros autores
consultados. Quando afirmo que as versões não são excludentes é porque, apesar da origem diferente, é
possível que houvesse uma memória dos antigos blocos que fez com que a qualificação ‘bloco de índio’
pudesse codificar um outro modelo. Além disso, é sabido que grupos carnavalescos chamados de ‘blocos de
índio’, ainda que muito diferentes daqueles conhecidos em Salvador, são comuns em municípios do interior
do estado da Bahia, o que pode ter feito o termo permanecer de alguma forma presente por todo o tempo.
73
parece mais plausível e dá pistas interessantes para refletir sobre a ‘identificação étnica’
Salvador, fundado entre 1966 e 1967 por membros da Escola de Samba Juventude do
Garcia. Seu primeiro presidente, que também pertencia à diretoria da escola de samba na
ocasião, contou a Godi que o bloco nasceu “baseado” no bloco Cacique de Ramos, da
cidade do Rio de Janeiro (1991:53), que alguns componentes da escola haviam conhecido.
escola, vista como trabalho, responsabilidade. Isso é o que pode ser deduzido do
camarada gastava para desfilar e não brincava muito”. Ele conta ainda que em 1969, ano
em que o bloco foi oficializado, a fantasia foi mesmo copiada do Cacique de Ramos e que
tornado hors concurs e ter, por isso, ficado de fora da competição daquele ano (:53-4).
Apaches acabou se tornando o mais famoso bloco de índio da cidade e, segundo Godi, a
intenção era “fazer frente ao Caciques do Garcia, celebrando uma rivalidade entre os
bairros vizinhos, Tororó e Garcia, que existia desde as batucadas e que persistira ainda no
mundo das escolas de samba” (1991:54). Se a motivação para a fundação do Apaches era
rivalizar com o Caciques do Garcia, então, aquele deveria poder ser comparável a este, o
que implicava produzir semelhanças e, é claro, ser melhor do que o rival nelas. Assim, o
74
nome ‘Apaches’ nasce da necessidade de ser ‘nome de índio’30 e este era, sem dúvida, o
grupo indígena mais conhecido, fosse pela TV, embora ainda não tão popularizada na
Apaches de que este nasceu como uma reação ao anterior, Godi não parece satisfeito e
pergunta “por que bloco de índio?”, não sem primeiro mostrar um certo espanto, assim
como Risério, com o fato de que jovens negros de Salvador tenham se “identificado
exatamente com aqueles que eram sempre colocados como os vilões, os selvagens e que
mesmo necessário buscar explicações para além do que é dito pelos fundadores dos blocos
a fim de que se entenda por que alguém se identificaria com aqueles que eram vistos muito
mais como ‘vilões’, como ‘maus’, até como ‘fracos’ ou ‘perdedores’ do que como
indígena sempre teve nas manifestações negras no Brasil, com ênfase na figura do
caboclo. Além disso, “as fantasias de índio [brasileiro ou norte-americano] têm sido parte
do índio norte-americano era fortemente representada na Bahia dos anos 60 através dos
filmes de faraoeste e que “as camadas negras do final da década de sessenta se fascinavam
por estes dramas épicos, em que o Bem e o Mal se defrontavam e as injustiças eram
30
Depoimento de Agildo Oliveira, um dos fundadores do Apaches: “o nome surgiu espontaneamente, sem
ligação nenhuma com tribo americana ou outro indígena qualquer, não houve isso, e sim, se tinha o
Caciques, então pensamos em Apaches, que são figuras fortes entre os indígenas (...)” (Godi 1991:56).
75
sempre resolvidas a bala e sangue.” (:61). Mas por que as “camadas negras (...) se
fascinavam” com esses filmes, e não também as ‘brancas’? Afinal, dada a desigualdade
econômica existente entre populações negra e branca, ainda que os cinemas na década de
60 fossem mais populares do que são hoje, certamente eram mais freqüentados pelas
Por fim, Godi relaciona a forma como os jovens negros dos blocos de índio eram
tratados pela polícia com o tratamento dispensado aos índios norte-americanos pelas
pois seriam vistos como “estrangeiros” (:64), índios tanto lá como aqui. Não seria
necessária a experiência de campo junto ao movimento negro de Ilhéus para saber que, via
de regra, o tratamento que alguns policiais conferem a jovens negros, seja nessa cidade,
bloco de índio. Risério diz que a palavra “índio” passou a ser usada como gíria de classe
média para ser referir à periferia da cidade – “terra de índio” – tanto quanto para definir o
localizam a gíria num momento anterior, quando os rapazes das áreas ricas de Salvador
“primitivos, rudes, bárbaros, incivilizados”. Para Serra, a formação dos blocos de índio
permitiu dar um novo significado à palavra porque “o pessoal assim chamado assumiu e
tornou positivo o rótulo, relacionando-o com ‘raça’, isto é, com a coragem dos peles-
31
Experiências pessoais como moradora de um município pobre da região metropolitana do Rio de Janeiro e
como professora das primeiras séries do ensino fundamental há anos atrás, me permitem afirmar que a
palavra “índio” como forma de ofensa e associada à violência e à baderna não é exclusividade de Salvador.
76
discriminados, pois, como diz um de seus fundadores em entrevista a Godi, eles eram
“negros e pobres” (1991:63). E é possível que esta percepção tenha se tornado mais clara à
medida que a década de 70 foi se tornando ‘reafricanizada’, conforme tentei mostrar até
aqui. É certo também que o movimento de formação dos blocos de índio no fim dos anos
dos jovens negros das periferias que, em menos de 10 anos, criaram 13 entidades desse
tipo, que congregavam milhares de pessoas, a ponto de ter sido decretada a proibição de
desfiles de blocos com mais de mil componentes. Além disso, as experiências de futuros
membros de blocos afro nos blocos de índio, como as de Apolônio e Vovô, ambos
fundadores do Ilê Aiyê, sendo o primeiro no Apaches e o segundo no Viu Não Vá (Agier
2000:69), sem dúvida foram importantes para a constituição do movimento negro, mas
também o foram as experiências nos afoxés e nas escolas de samba, tanto pelo desejo de
se fazer carnaval, quanto pelo ensino da percussão, pois esses espaços, assim como os
terreiros de candomblé, foram escolas para os grandes percussionistas dos blocos afro, do
‘negros baianos’ com ‘índios norte-americanos’ pode ser percebida como uma digressão
movimento foi levado para Salvador. Formado por rapazes de uma família ligada à
Meu município era chamado de “terra de índio” por moradores e não moradores para defini-lo como lugar
sem ordem e, em alguns casos, violento; quando crianças faziam muita algazarra ao subir escadas, por
exemplo, era comum ouvir alunos e professores dizerem: “parecem uns índios”.
77
umbanda, cujos nomes, em função dessa relação religiosa, eram de origem indígena em
característica do modelo, foi concebida a partir do nome proposto para o bloco, baseada na
imagem indígena presente no cotidiano, a do índio norte-americano dos filmes, dos gibis,
dos brinquedos infantis, das representações escolares e, é claro, das fantasias de carnaval.
A economia
Além dos agenciamentos produzidos por fluxos que podem ser chamados de
entram na composição das novas configurações assumidas tanto pelo carnaval baiano
quanto pelos movimentos negros nos anos 70. A instalação do Pólo Petroquímico de
econômico” nos anos 60 e a desilusão provocada por ele nos 70, assim como o aumento
socioeconômica que costumam ser evocados por vários autores como elementos
importantes para as mudanças sociais que promoveram o surgimento dos blocos afro.
32
A política de universalização do ensino nos anos 70 está sendo entendida aqui como ‘fluxo de economia’
por sua implementação ser fundamental, apesar de não ter se realizado plenamente, para as metas de
industrialização e desenvolvimento do país, ‘prioridades’ dos governos militares. O mais famoso e
abrangente programa de alfabetização de adultos conhecido no Brasil, o MOBRAL, é dessa época.
78
Salvador, é preciso lembrar o que o senso comum historiográfico costuma dizer sobre a
cidade. Durante quase todo o período colonial, a capital baiana era também a capital do
Brasil, condição perdida para o Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII. Rica
de riqueza do país foi transferida para o sul com o início das plantações de café. A partir
daí, é dito que a cidade permaneceu economicamente estagnada até a década de 50.
bairros distantes do centro (Ribard 1999:179-80). Agier ressalta que essas mudanças
econômicas tiveram dois efeitos secundários para a população negra e pobre de Salvador.
O primeiro foi que passou a haver uma expectativa de mobilidade social através do
emprego, da carreira, antes inexistente, já que a melhoria das condições de vida dependia
negra e pobre não tinha acesso. Por outro lado, a possibilidade do emprego, da mobilidade
através da carreira e de sua freqüente negação, tornaram mais clara a discriminação racial
sofrida pela população negra, que ocupava sempre os cargos de menor qualificação,
79
recebia os salários mais baixos e, em grande parte, continuou excluída dos benefícios
ainda hoje verificado no país33, de que quanto maior a qualificação profissional, maior é
também a diferença salarial entre brancos e negros. Isso explicaria por que “os
movimentos negros de caráter social e político foram mais desenvolvidos” no sul do país
racial, quanto qualifica o movimento negro, que tem nos meios universitários um ambiente
Hanchard (2001) chega à mesma conclusão de Agier. Ele diz que “ao lhes serem negadas
desenvolveram uma consciência racial que até então não tinham”. É interessante notar que
33
Ver, por exemplo, as seguintes matérias: “Desigualdade por cor no Brasil é maior do que por sexo”,
Jornal do Brasil on line, 12/06/03; “Brancos ganham 50% mais que negros”, Jornal do Brasil, 13/06/03;
“Abismo Racial”, Folha de São Paulo, 08/01/02; “Racismo: desigualdade não mudou, diz estudo”, Folha de
São Paulo, 30/01/02.
80
do negro “em número maior, na vida do país” (:74) a partir de sua crescente escolarização
e intelectualização, por outro ele ajudou a criar uma nova visão de mundo, mais sensível
milagre”. Como não existia mais o respaldo do sucesso econômico para garantir o apoio
popular à ditadura, diversos setores levantaram a voz contra o regime e a organização dos
anteriormente. Vê-se assim que tanto no apogeu quanto em seu declínio, os fluxos de
desse processo, ainda que pequena, têm uma relação direta com a narrativa que poderia ser
chamada de mito de origem do Ilê Aiyê. A maior parte dos autores apenas aponta que os
fundadores do Ilê eram trabalhadores da indústria petroquímica, o que significava ter boas
negra. Num estudo mais detalhado, Agier (2000) mostra que, de fato, por serem filhos e
mas apenas Apolônio o concluiu (:89-92). Um nível de ensino mais elevado do que a
ser considerados bons, associados a uma postura de ‘orgulho negro’, criaram uma imagem
de seus líderes como pertencentes à ‘elite’, imagem esta que se estende ao grupo. Para
Agier, a concepção do Ilê Aiyê como uma elite não está baseada no perfil socioeconômico
81
de seus componentes, dos quais 95% foram considerados ‘pobres’ pelo autor na pesquisa
realizada em 1992 (: 94). Esta imagem de elite seria, então, formada no âmbito do ritual e
o sucesso do Ilê seria “fazer todo mundo crer que seus convidados eram mesmo de uma
elite social negra!” (Moura e Agier 2000:376). Isto é dito como resposta ao
palavra ‘elite’: segundo este autor, ora Agier refere-se a uma elite imaginária, ora a uma
elite real, ou seja, econômica. E o próprio Moura classificaria o grupo com a segunda
opção utilizando-se do senso comum de que seus fundadores foram trabalhadores do Pólo
Petroquímico (:370). É preciso observar, primeiramente, que o grupo não pode ser
considerado “elite de fato”, como diz Moura, apenas porque dois de seus fundadores eram
funcionários da indústria petroquímica. Por outro lado, o próprio Agier afirma que os
componentes do Ilê “se situam maciçamente no meio dos grupos de prestígio médio”
(Moura e Agier 2000:375). Ora, diante da pobreza que assola a maioria esmagadora da
população negra baiana, a condição de ‘prestígio médio’ já é destacada. Além disso, Agier
mostra em seu trabalho que as fantasias do grupo, ao menos no período de sua pesquisa,
eram consideradas caras, as mais caras entre os blocos afro e mesmo entre alguns blocos
de trio. Acrescento ainda uma idéia que será desenvolvida em outro momento, mas que
relaciona o fato do Ilê Aiyê estar diretamente ligado a uma casa de candomblé com o
reforço dessa imagem de elite. Os terreiros de candomblé costumam ser percebidos como
pai-de-santo e seus familiares são vistos como elite, desde que bem entendida enquanto
Risério define o Ilê Aiyê e o Badauê – bloco afro e afoxé – como “entidades negras
(:76). Vê-se que em 1981, quando Risério escreveu Carnaval Ijexá..., a distinção e a
acusação mútua entre movimentos políticos e movimentos culturais estava a pleno vapor.
Na verdade, trata-se de um discussão que ganhou força já no início dos anos 70 e que
permanece ainda muito atual, pelo menos em Ilhéus, como será apresentado no Encontros
5. Mas isso não significa dizer que os movimentos políticos e culturais permaneçam
distantes e isolados uns dos outros. Desde seus primeiros momentos de formação, eles
Como já foi observado, os blocos afro surgiram num momento em que vários
outros grupos de estudos, de teatro, de dança, todos ligados à temática ‘afro’, também
eram formados. A literatura sobre o movimento negro baiano concentra-se na história dos
sobre outros grupos. Silva (1988) cita alguns “grupos culturais preocupados com a questão
política do negro” surgidos em meados da década de 70, entre eles, o Malê Cultura e Arte
Não se pode esquecer que além desses grupos, ainda havia aqueles grupos folclóricos,
trecho do jornal do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro feita por Bacelar (2003) explicita a
diferença entre as propostas dos “grupos preocupados com a questão política do negro”,
34
O ator e dançarino Mário Gusmão, importante personagem da história do movimento afro-cultural em
Ilhéus, fez parte do grupo de dança do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, assunto do Encontros 3. Sobre
Mário Gusmão, ver Bacelar 2003.
83
Havia também grupos de estudos formados por intelectuais, como o SECNEB – Sociedade
de Estudos da Cultura Negra no Brasil, fundado pela antropóloga Juana Elbein dos Santos
CEAO da UFBa, criado bem antes, em 1959 (Santos 2000:25). Entre os grupos que
poderiam ser considerados mais estritamente ‘políticos’, estava o Grupo NEGO – Estudos
sobre a problemática do negro brasileiro, que viria a ser a base do futuro MNU de
(2001:146) fornece um bom exemplo, ainda que esteja se referindo a São Paulo. Ele conta
que um dos grupos que inicialmente integraram o Movimento Negro Unificado, no fim
dos anos 70, tinha origem na Convergência Socialista, organização clandestina baseada no
e ativista negro de Trinidad enquanto esteve exilado no México, nos anos 30. As
esses grupos ‘políticos’ eram formados, sobretudo, no meio universitário, longe dos
grupos de amigos e vizinhos de bairros pobres que gostavam de carnaval, saíam em afoxés
acabaram por fundar o primeiro bloco afro, o que já colocava uma boa distância entre eles.
‘culturalistas’. Pelo fato de ocuparem a mesma cidade, por exemplo, pode-se supor que
uns e outros poderiam ser afetados pelos mais diferentes encontros, fosse com uma notícia
na imprensa ou com um panfleto convidando para uma reunião ou para um festa; fosse
com um grupo se apresentando na rua ou com um familiar ou amigo que morasse perto de
um grupo afro... Mas é claro que havia também contatos mais diretos.
MNUCDR em São Paulo, foi a Salvador convidada pela prefeitura municipal para um
debate. Ela conta que sua discussão envolveu diversos grupos, inclusive blocos e afoxés, e
que daí surgiu um “novo grupo”, cuja “novidade” foi, segundo Gonzalez, “articular de
MNUCDR, organizado meses depois, os blocos afro não sejam citados. Risério também
comenta sobre uma conversa que aponta para esta aproximação. Membros do Ilê Aiyê,
sendo alguns fundadores, ‘reclamam’ do assédio do Movimento Negro, pois “[as pessoas
Cunha informa que a aproximação de intelectuais e militantes junto aos blocos afro se
dava por meio dos “núcleos de apoio” ou “assessorias”, que “visavam, sobretudo,
preencher uma constante lacuna entre uma proposta estritamente voltada para o carnaval e
Cunha quanto Risério 35, o Bloco Afro Malê Debalê esteve por algum tempo muito mais
como núcleo de apoio do bloco, com o qual rompeu após três anos e tornou-se um grupo
35
Risério escreveu Carnaval Ijexá... durante esse momento.
85
Este ainda não é o lugar para uma discussão mais aprofundada sobre a questão
política versus cultura, que ficará para adiante e será retomada a partir da etnografia dos
políticos e aqueles chamados culturais. Essas influências, combinadas com tantas outras,
Os espaços negros
cabelos foram africanizados: desfilavam pela cidade cabelos trançados, boinas, sandálias e
roupas inspiradas no candomblé e, principalmente, nas imagens que se tinha acesso dos
países africanos. Fluxos que se formaram desses encontros e se espalharam pela cidade,
quadras e ruas, também os bairros onde estão situados os blocos afro ganharam outras
era habitado por uma imensa maioria negra muito antes do Ilê Aiyê, mas o nascimento do
grupo reatualiza a sua origem como ‘quilombo’, tornando-o o “novo quilombo” (Agier
2000:63). O mesmo pode ser dito para o Pelourinho em função da relação estabelecida
86
como o lugar do Olodum36. A partir do mesmo movimento, até os bares podem ser
Célia, ambos fundadores do Ilê Aiyê, situado no Garcia e inicialmente só freqüentado por
“pretos e mulatos” (:106). Aos poucos, a freqüência se diversificou, mas Risério faz uma
minuciosa descrição para mostrar que o bar apresenta uma série de objetos que deixam
clara sua condição de “bar criado por pretos ligados ao Ilê Aiyê e enraizado na cultura
exemplo37, assim como o ‘Bar do Cravo’, citado por Cunha como sede do Movimento
Rastafari Brasileiro (1991:161). Os bares são pontos de encontro por excelência, por onde
passam os mais diferentes fluxos que geram outros e traçam novas composições. Nas
narrativas de origem dos blocos afro, a cerveja e a mesa de bar estão presentes com
freqüência nas conversas nas quais surgem as idéias para um novo grupo. Esse é o caso do
Ilê Aiyê, primeiro bloco afro de Salvador, e é também o caso do Lê-guê Depá, um dos
36
A relação dos blocos com sua comunidade, concebida também como território, abre caminhos para um
leque de considerações, que deverão ser realizadas no Encontros 5.
37
Uma pequena etnografia do Bar do Reggae pode ser encontrada em Pinho 1997.
87
dissociado dessa nova Bahia apresentada, mais do que nunca, como ‘afro-brasileira’ já nos
anos 60. Foi observado anteriormente como as políticas governamentais, tanto no que diz
forjar uma nova imagem da cidade de Salvador. Havia já aí um clima africanizado que
permeava toda a cidade e que fez, por exemplo, com que em 1973 cinco mil turistas
capoeira e samba de roda, entre outros oriundos da África”38 ou a Polícia Militar baiana
Assim, foi nesse clima, mais ou menos como descrito até aqui, que bares, cabelos,
O trabalho desenvolvido até aqui teve o propósito de fornecer uma visão geral dos
formação dos blocos afro, tomando a obra de Antônio Risério como referência básica. Ao
longo do texto, muito já foi dito a respeito dos blocos, especialmente do Ilê Aiyê,
38
Jornal A Tarde, de 23/03/73 apud Santos 2000:131.
88
consagrado pela grande maioria dos autores como o primeiro bloco afro39. Não obstante, é
complementar com outras, incluindo outros grupos. Nesse sentido, a última parte desta
Para Risério, o surgimento do Ilê Aiyê, primeiro bloco afro, representa o primeiro
passagem do lance black para o lance afro” ou “do carnaval indígena para o carnaval afro-
brasileiro” (:38). Já Agier, considera o fato como a terceira etapa do mesmo processo41,
projeto político e cultural” (1999:193). Haveria ainda muitos outros autores a citar que
estabelecem relações muito diretas entre o surgimento dos blocos afro e ‘identidade’ ou
‘consciência étnica’, o que faz com que essas idéias estejam sempre juntas em seus
Ilê Aiyê
Antes de ter acesso a qualquer trabalho sobre o Ilê Aiyê e antes mesmo de
imaginar que faria um trabalho sobre blocos afro, eu tinha conhecimento, pela imprensa
talvez, que o Ilê era um bloco afro no qual só podiam desfilar pessoas negras. Ele teria
sido fundado como reação a uma atitude racista de um bloco carnavalesco de elite, que
39
Moura (Moura e Agier 2000) é o único autor, entre os consultados, que faz uma objeção nesse sentido em
sua resenha à obra de Agier sobre o Ilê Aiyê, de 2000.
40
Lembrando que os seguintes são o ressurgimento do Afoxé Filhos de Gandhi e a criação do ‘novo afoxé’
Badauê.
89
teria vetado a entrada de Vovô e de outras pessoas. Diante disso, pensou-se em criar um
bloco só para ‘negros’. Não encontrei essa história reproduzida em local algum, no
entanto, é certo que há blocos ‘de brancos’ que não permitem a participação ‘de negros’42.
E ainda que não tenha ocorrido um ato de discriminação direta contra qualquer fundador
do grupo, fazia todo sentido criar um bloco exclusivo para pessoas negras diante do
sempre se reunindo para bater papo, promover festas, ir à praia e fazer excursões.
Especificamente para este último fim, organizaram-se sob o nome de “A Zorra”, que
Agier denominou “empresa de lazer” (2000:68). Vovô e Apolônio, dois dos principais
fundadores, haviam estudado na mesma escola, faziam parte de uma banda e jogavam
futebol juntos (:66). Apolônio desfilava no bloco de índio Apaches do Tororó, Vovô
afoxé Filhos de Gandhi, conta Risério (:39). Ele conta também que Vovô lhe disse que a
idéia surgiu de uma conversa entre esses amigos: “A gente tava conversando, batendo
papo, começou a beber... Tava na época daquele negócio de poder negro, black power,
então a gente pensou em fazer um bloco só de motivos africanos” (:38), embora Agier
Liberdade e, segundo Agier (2000:73), foram oitenta os sócios fundadores, mas o primeiro
41
Iniciado em 1949, com o Filhos de Gandhi, tendo como segundo momento os blocos de índio na década
de 60.
42
Guerreiro (2000:127-129) cita a CEI (Comissão Especial de Inquérito) do racismo instalada na Câmara
Municipal de Salvador em 1999 “para investigar o processo de seleção de associados dos blocos
carnavalescos Eva, Nú Outro Eva, A Barca, Pinel e Beijo, denunciados formalmente à Justiça por
90
desfile, no carnaval do ano seguinte, contou com cerca de cem a cento e cinqüenta
cada ano, o crescimento era considerável, chegando ao número de dois mil em 1983 (:75).
Sobre a história do Ilê, nesse momento importa registrar que seu primeiro disco foi
construção de sua sede em 1994 em um terreno comprado com verbas doadas pelo
governo do estado no ano anterior. Em 1987, foi inaugurada a primeira escola ‘primária’
comunitária do grupo (:80). Guerreiro (2000:32) diz que atualmente “as escolas atendem a
até 4 mil crianças” e ainda há as oficinas de profissionalização. Por fim, ainda é preciso
dizer que em 1981 Apolônio deixou o Ilê Aiyê e fundou o Orunmilá, outro bloco afro
Segundo Agier, o segundo bloco afro teria surgido em 1978 e chamava-se Alufã
Tendé (2000:77). Depois dele, viriam, apenas citando os mais famosos, Malê Debalê e
Olodum em 1979; Araketu em 1980 e Muzenza em 1981. Com exceção do bloco surgido
em 1978, os demais, junto com o Ilê Aiyê, são considerados os cinco grandes blocos afro
de Salvador, dedução sugerida por Guerreiro (2000) ao dedicar um capítulo para cada um
deles e por Ribard (1999)43, que apresenta essa divisão entre “os cinco maiores” e “os
outros” como uma “dicotomia” comum no “mundo afro”, que costuma qualificar os
discriminação”. Ela informa ainda que Antônio Risério e outro “intelectual”, Paulo Miguez, elaboraram a
primeira versão do relatório da CPI, na qual afirmaram a existência de discriminação no carnaval baiano.
43
Sua obra de quase quinhentas páginas tem o mérito de oferecer uma visão mais ampla do que os demais
trabalhos sobre os blocos afro de Salvador por fazer uso de dados e entrevistas que abrangem também os
pequenos blocos.
91
organização de entidades de representação desses blocos também indica que a tal divisão é
‘nativa’: no início dos anos 90, os ‘outros’ criaram a Associação dos Blocos Afro da Bahia
– ABAB; meses depois44, os ‘cinco’ criaram a Federação dos Blocos Afro do Brasil –
FBAB (:356-7). Embora não seja possível tirar conclusões da informação a seguir, é
interessante saber que ao menos um bloco afro de Ilhéus foi informado por documento da
assinado pelo presidente da entidade, João Jorge, do Olodum, e por quatro vice-
ocorrido em novembro de 1993 também não deixa dúvidas quanto à não participação de
outras entidades de Salvador, ao menos no que diz respeito à organização do evento: todas
as atividades culturais promovidas após os debates são ensaios dos cinco grandes blocos.
Malê Debalê
O Bloco Afro Malê Debalê foi fundado em 1979, no bairro de Itapoã, próximo à
famosa Lagoa de Abaeté e desfilou pela primeira vez no ano seguinte. Risério refere-se ao
Malê Debalê por sua proximidade ao Movimento Negro político. Nos três primeiros anos,
o grupo contava com um ‘núcleo de apoio’ formado por militantes e intelectuais, o Niger
Okhan, que se desligou do grupo e tornou-se uma entidade unicamente de caráter político
Dos cinco grandes grupos, o Malê Debalê é o que menos recebe atenção da mídia.
Como o Ilê Aiyê e diferentemente dos outros três, o grupo se recusa a incorporar
44
Ribard não fornece o ano de criação das entidades, mas um documento a que tive acesso através de um
dirigente de bloco afro de Ilhéus informa que a FEBAB, aqui grafada tal como consta do documento, foi
fundada em junho de 1993.
92
Mesmo sem a presença do Níger Okhan, o grupo continuou a ser considerado como o mais
politizado entre os maiores. Falando sobre diretorias e eleições, assunto que será abordado
no último dos Encontros deste trabalho, Ribard ressalta que no Malê Debalê a estrutura
organizativa é mais participativa do que nos demais blocos. Há eleições de fato para a
Olodum
Tanto ou mais do que o Ilê Aiyê, o Olodum recebe atenção de um grande número
sucesso na mídia, sobre sua capacidade de ter se tornado uma empresa de fato, um
desfile no ano seguinte. Já em 1981, há o primeiro racha que gerará a criação do Muzenza
nesse mesmo ano. De acordo com Guerreiro (2000:41), o Olodum nem desfilou em 1983,
tamanha era sua desmobilização. Nesse momento, João Jorge e Neguinho do Samba,
fundador e mestre de bateria do Ilê Aiyê por vários anos, além de outros ex-componentes
Em 1987, ano em que tematizou o Egito em seu desfile com a música “Deuses,
que teria sido criado por Neguinho do Samba, na época, mestre de bateria do Olodum e
esse ano passou a ser o que Guerreiro chamou de “momento-marco em que o samba-
45
Sobre o trabalho do Olodum como empresa, ver Dantas 1994, no qual a definição de holding cultural
aparece já no título, e 1996; também Fischer et alli. 1993.
93
reggae vai além dos espaços musicais afro-baianos e a estética negra torna-se visível no
Em 1990, o Olodum gravou com Paul Simon, artista pop americano mundialmente
famoso e conquistou espaço no mercado internacional. Em 1996, foi a vez do super astro
pop Michael Jackson gravar um clip com o Olodum, no Pelourinho (Nunes 1997).
Criativa do Olodum, instituição que além de percussão e outras oficinas ligadas à arte,
também oferece o ensino de primeiro grau (Guerreiro 2000:111). Além da Escola Criativa,
empresa... tudo isso fez com que o grupo gerasse uma grande polêmica em torno dos
limites de mudança de um bloco afro, ou mais do que isso, na própria concepção de bloco
Ara Ketu
O Bloco Afro Ara Ketu é do bairro de Periperi e foi fundado em 1980 por Vera
Lacerda, presidente do bloco, e outras pessoas da família, que saíam em blocos separados.
A partir do desejo de formar um bloco de carnaval que unisse a família e os amigos, foi
Antes e com mais ênfase do que o Olodum, o Ara Ketu foi o primeiro bloco afro a
‘eletrificar’ seu som, formando uma banda em 1991 e entrando no mercado da axé music.
Segundo Guerreiro, “no decorrer dos anos 90, o Ara Ketu se afastou cada vez mais de seu
formato original e acabou por se descaracterizar enquanto bloco afro” (2000:37). Não
obstante, o grupo participa do carnaval como bloco afro, integra o grupo dos cinco
maiores e realiza trabalhos sociais, que têm sido uma das marcas mais características dos
94
blocos afro. Em 1997, o Ara Ketu fundou sua escola de percussão, que também oferece
(1995) informa que antes mesmo da fundação da instituição educativa, já eram realizados
Muzenza
Fruto de uma primeira cisão do Olodum, o Bloco Afro Muzenza foi fundado em
1981, no bairro da Liberdade, meses antes da morte de Bob Marley, maior ídolo do reggae
e da religião rastafari, com os quais o bloco se identificou e passou a ser conhecido como
pessoas negras (cf. Veiga 1997:131-2 e Guerreiro 2000:47). Por essa razão, tanto Veiga
conseguiu mudar o nome da rua para Avenida Kingston (:48), em homenagem à capital da
Haveria muito mais a dizer sobre cada um desses grupos e sobre a história do
lugar, esta não é a intenção deste trabalho; em segundo lugar, os blocos afro de Salvador
terão lugar em outras situações ao longo do texto, através das quais será possível
fluxos que produziram o surgimento dos blocos afro de Salvador como parte e produto do
95
agenciamentos. Como tais, eles geraram fluxos que se encontraram com outros e logo
também aí. Os dois próximos capítulos têm a intenção de descrever esses fluxos e permitir
cidade, pela qual fundamentalmente passou o surgimento dos blocos afro. O capítulo
seguinte deverá ser uma apresentação desses e dos agenciamentos mais diretamente
Encontros 2
Por que uma coisa é isso e não aquilo? Tudo depende dos agenciamentos entre os
capítulo anterior teve o propósito de apontar alguns desses fluxos que, em agenciamento,
surgimento do movimento dos blocos afro na capital baiana. Guattari (1986) diz que “um
estéticas, microssociais, etc.” (:155-6). Pode-se dizer que o que está em agenciamento é
tudo o que ‘está em jogo’ na produção de determinada coisa. E tudo está em jogo: o clima,
98
E é a concepção de que as coisas se passam deste modo que faz com que este
Encontros 2 e o próximo capítulo sejam tentativas de fazer para o movimento dos blocos
afro de Ilhéus o que foi feito para o de Salvador: descrever fluxos e agenciamentos que
Ilhéus. Note-se que dizer que são ‘tentativas’ de descrição e não utilizar o artigo definido
‘os’ antes dos termos ‘fluxos e agenciamentos’ acima visa frisar que não é possível
aqueles que mais me afetaram, aqueles que mais fui capaz de perceber como importantes
e outros que entram em agenciamento com tantos outros e geram subjetividades, visões de
gerados pelos antigos carnavais de Ilhéus, pelo candomblé, pelo teatro e pela dança e,
principalmente, pelo movimento dos blocos afro de Salvador, cujos fluxos foram levados
para a cidade pela TV, pelo rádio, pelos jornais, mas, acima de tudo, por pessoas que
À
99
sobre a cidade de Ilhéus, conforme já foi observado, não está sendo proposta neste trabalho
apenas como cenário no qual uma ação se passa – no caso, o surgimento dos blocos afro.
como as relações estabelecidas com este local por moradores e não moradores; as versões
de história local que ‘explicam’ situações, papéis assumidos, hierarquias sociais baseadas
Também é necessário frisar que a cidade de Ilhéus não está sendo concebida como
uma totalidade social ou cultural fechada. O recorte é feito em função da constituição dos
realmente orienta as formulações e ações dos grupos, assim como dos demais setores com
cacaueira” é muito presente na cidade, assim como também nos demais municípios. Talvez
a monocultura do cacau seja uma das razões para que isso ocorra em função dos
organismos governamentais de atuação regional por ela produzidos, tais como o Instituto
serão fornecidas à medida em que forem pertinentes para a compreensão das questões
levantadas1.
Não se pretende que esses dados forneçam qualquer idéia de uma “realidade
objetiva”. Assim como os dados etnográficos propriamente ditos, ou seja, aqueles obtidos a
relacionados. Uns e outros são formas de olhar. A intenção de reproduzi-los neste trabalho
é dar pistas de como foi formado meu olhar e aquele das pessoas com as quais trabalhei.
É preciso dizer ainda que não se trata da história de Ilhéus, mas das histórias dos
historiadores. Estes não são neutros e, conseqüentemente, suas produções também não.
Mahony (1996), também historiadora produzindo sua versão sobre Ilhéus, mostra que a
também o grupo opositor se apropriou dela segundo seus próprios interesses. A produção
diz que “não há exercício de poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que
funcionam nesse poder; a partir e através dele” (1999:28). O discurso histórico faz parte
dessa economia.
Ainda seguindo Foucault, é preciso levar em conta que o poder tem um caráter
relacional, ou seja, ele não é propriedade de alguém ou mesmo de um grupo – “não se dá,
nem se troca, nem se retoma” (1999:21) – e só existe em ato, em relação, onde não há o
lado do “poder infinito” nem o lado do “poder zero” (:200). Então, eventualmente, os
relações, e também para ser ponto de resistência a esse poder. As versões históricas
dominantes em Ilhéus são utilizadas pelos grupos afro-culturais em seu dia-a-dia, entre
1
Ver localização do município de Ilhéus no mapa do Estado da Bahia em Anexo 1.
101
outras coisas, para explicar a forma como são tratados pela elite política e econômica da
cidade, assim como para reivindicar mudanças nesse tratamento. Além disso, não há
versões históricas de oposição, mas análises críticas dessas versões, como a tese de
doutoramento de Mary Ann Mahony (1996) que será muito utilizada neste trabalho 2.
Assim, não se pretende reproduzir aqui o que é chamado de história de Ilhéus. Para
problemas sociais graves que afetam sobretudo os moradores dos bairros periféricos do
nas formas de agir tanto por parte dos grupos quanto de seus interlocutores. Apenas a título
de exemplo, existe quase que um consenso entre governo, militantes do movimento negro
chamado de político e dos grupos afro de que bloco afro deve realizar “trabalhos sociais”
com crianças “em situação de risco social” para “tirá-las das ruas”, “afastá-las das drogas,
crianças nas ruas em conjugação com vários outros, entre os quais, aqueles gerados por um
2
Agradeço a Mary Ann Mahony, professora doutora em História da Universidade de ??? pelos
esclarecimentos prestados em suas palestras no Rio de Janeiro em junho de 2002.
3
Ver, por exemplo, Adonias Filho 1976, Andrade 1996; Asmar 1983; Barbosa 1994; Campos 1981; Falcón
1995; Garcez e Freitas 1979; Gasparetto 1986; Mahony 1996; 1998; Vinháes 2001.
4
Toda essa discussão será aprofundada em Encontros 5.
102
Antes de concluir esta introdução ao capítulo, é preciso frisar que não se trata
apenas de apresentar o ‘contexto’ da pesquisa em seu sentido mais clássico, ou seja, como
termo que engloba a exposição de dados históricos, sociológicos, estatísticos etc. e que
costuma preceder a etnografia propriamente dita. Não bastasse o fato de que todos esses
dados são uma das formas possíveis de apresentar elementos que se encontram e produzem
subjetividades, sua exposição neste trabalho tem também a função de mostrar a conexão
das pessoas, o que é imprescindível no debate sobre relações raciais no Brasil, seja no
Ainda se pode ler e ouvir declarações que desvinculam cor e desigualdade, que negam a
existência de racismo na ‘sociedade brasileira’, ou até que o admitem, mas como atitude
individual, que parte deste e atinge somente aquele ou aquele outro, e não como um
última parte deste capítulo pretende, a partir de registros etnográficos, reforçar a idéia de
que esses dados têm cor e endereço e que eles afetam a existência e as ações dos blocos
afro.
Histórias de Ilhéus
entre dez distritos, sendo o distrito-sede urbano e os demais distritos rurais. Em 1535, na
carta de doação do rei de Portugal a seu donatário, a capitania hereditária de Ilhéus possuía
50 léguas, indo do Morro de São Paulo, situado hoje no município de Valença, à barra do
o limite seria o Tratado de Tordesilhas5. Ao longo dos séculos, áreas que pertenciam à
foi fundada a Vila de São Jorge dos Ilhéus, no Morro de São Sebastião6. A vila só foi
cacaueira. Em geral, começa-se a história com os grupos indígenas que habitavam a região.
A forma como Vinháes (2001) e Castro (1981) expõem o tema pode ser vista como
exemplo de uma espécie de senso comum historiográfico local: Vinháes afirma que a
região da capitania de Ilhéus era habitada pelos “Tupiniquim (...), índios dóceis e de fácil
convívio, habitantes do litoral, e [pel]os Tapuia ou Jê (os temíveis Aimoré), que viviam no
da capitania, após a “prosperidade (...) nos primeiros anos” (1981: 28), foram os ataques do
maior parte dos historiadores informa que a região sul da Bahia permaneceu praticamente
inabitada até meados do século XIX, quando levas de migrantes “humildes”, especialmente
vindos das regiões de Sergipe e do sertão baiano fugindo da seca, chegaram a Ilhéus,
cidade com a implantação do cacau, ainda que dispusessem de poucos recursos e apenas de
seu próprio trabalho, isto é, não tinham condições econômicas para usar a mão-de-obra
escrava. Em linhas gerais, este é o mito de origem do cacau na região e sobre o qual não há
5
O Tratado de Tordesilhas foi assinado em 1494 na cidade espanhola de mesmo nome. Trata-se de um
acordo estabelecido entre Espanha e Portugal que dividia as terras já conhecidas ou que viessem a ser
encontradas situadas a oeste da Europa entre esses dois países. Pelo acordo, uma linha imaginária situada a
370 léguas a oeste de Cabo Verde seria o marco divisório. No Brasil, essa linha passava no que hoje é o
Estado de Goiás.
104
se, assim, que o mito de origem do cacau é também o mito de origem do “progresso”, da
partir da derrubada da mata para o plantio do cacau. Como nas cidades fundadas por
entre 1912 e 1915 e importante líder de oposição às famílias tradicionais (no início do
século XX, a política em Ilhéus era dividida entre ‘pessoístas’ e ‘adamistas’, partidários de
(Barros 1915) – que já nasceu com dimensão de história oficial – ajuda a entender porque a
história de Ilhéus é repetida tal como resumida acima, ou seja, abordando praticamente
apenas o início da colonização e daí saltando para o final do século XIX e para o século
XX. Mahony argumenta que foi intenção de Pessoa deixar a elite açucareira à margem da
história; para isso, era necessário mostrar a cacauicultura como um fenômeno recente e que
nada tinha a ver com a elite oligárquica e escravocrata dos engenhos de açúcar – que estava
sendo acusada de ser responsável pelo atraso do país naquele momento – mas sim com
homens que enriqueceram por si mesmos, que eram “produtos de seus próprios esforços”,
6
No Oiteiro de São Sebastião encontra-se o “marco de fundação” da cidade, inaugurado na comemoração
dos 450 anos de fundação da Vila de São Jorge dos Ilhéus (Heine 1996:52).
7
Ver Amado 1933; 1943; 1944; 1958; 1981; 1984 e 1991. Ver também Adonias Filho 1946; 1952, 1962;
1968; 1971; 1975 e 1976, sendo esta última uma obra de caráter sociológico, não ficcional como as outras.
8
Por ser um termo caro à antropologia, é preciso ressaltar que a palavra identidade está entre aspas porque
possui, nesse contexto, o mesmo estatuto das palavras progresso e civilização: são termos êmicos, ou seja,
são utilizados tanto por historiadores quanto pelos atores sociais para exprimir uma determinada imagem de
si. A palavra identidade enquanto instrumento analítico será debatida no quarto capítulo deste trabalho.
9
Sobre “pioneirismo” como símbolo de “identidade” de grupos teuto-brasileiros, ver Seyferth 1999.
105
exportado pelo porto de Ilhéus (até então era levado para Salvador), uniam tanto pessoístas
quanto a elite tradicional na condição de produtores. Não era, pois, interessante que
estivessem divididos e nenhum esforço foi feito por parte dessa elite para negar a versão da
origem do cacau popularizada na época de Pessoa. Além disso, os primeiros dados oficiais
sobre a produção cacaueira legitimam tal versão: o Instituto de Cacau da Bahia, criado em
1931 por Getúlio Vargas para salvar os grandes produtores dando-lhes crédito, divulga
dados estatísticos a partir de 1890, fazendo parecer que não havia produção de cacau antes
dessa data, assim como latifúndios e riqueza (1996:499-503). Mahony aponta algumas
outras razões para a predominância do “mito pessoísta”: as evidências físicas dos grandes
riqueza em Salvador, ao contrário dos “novos ricos” do cacau que precisavam demonstrar
seu poderio econômico na cidade a fim de aspirar ao poder político10; e, por fim, as
valorizava o grupo que estava ocupando o poder naquele momento juntamente com a
histórico-políticas que perduram até hoje. A “verdade da história”, o “saber histórico”, que
10
São desse período áureo da economia cacaueira os mais importantes prédios históricos da cidade, entre
eles: Palácio Paranaguá, de 1907; Associação Comercial, de 1912; Palacete Misael Tavares, de 1922.
106
econômica, ela ainda ocupa lugar de destaque no cenário político. Isso acontece porque o
Até mesmo quando se trata de buscar alternativas econômicas, como no caso do turismo,
demonstrado adiante.
Para Mahony (1996), o mito de origem do cacau não é uma “mentira”, mas dá uma
“falsa impressão do passado” por focalizar uma “limitada porção da história pela exclusão
de outras” (:23). Ao contar o que seria a parte excluída da história pelo mito, a autora
região, havia famílias ricas, proprietárias de latifúndios, que possuíam escravos, que
trabalhavam com o açúcar e com a madeira e, posteriormente, com o cacau. Essas famílias
começaram a investir no cacau antes de 1890 – Mahony afirma que por volta de 1860
quase todos os proprietários cultivavam cacau, ainda que não fosse muito (1996:271-2) – e
continuaram a dominar o cenário político, mesmo perdendo um pouco de sua força com a
entrada de novos atores, inicialmente com os “novos ricos” (como eram chamadas as
“cultura” da região cacaueira que tem como uma de suas principais características ser
que será melhor tratada adiante, o mito afirma que qualquer pessoa que tivesse seu pedaço
107
de terra poderia vir a enriquecer e isso seria possível mesmo a escravos, ex-escravos e
mulatos vindos do interior nordestino. A lavoura cacaueira ofereceria, então, uma real
possibilidade de mobilidade social, mesmo para negros, fossem livres ou escravos. Essa
Mahony (1998:98-101), ela pode mesmo ter ocorrido, mas apenas num primeiro momento.
A autora diz que a lei de terras estadual baiana, de 1897, transformava terras devolutas –
pequenas e médias propriedades, proibindo a formação de latifúndios. Mas já nos anos 10,
a maior parte dos pequenos produtores havia perdido suas terras, tanto em função das
tiveram recursos para obter o título da terra. Os custos muito altos para obtenção do título
proprietários à perda da terra. A obtenção de créditos junto aos bancos oficiais só era
possível para quem tivesse o título da terra, o que excluía os pequenos proprietários. Estes,
por sua vez, não tinham outra saída senão tomar dinheiro emprestado aos grandes
empréstimo, terminavam por perder a terra, única garantia de que podiam dispor (ou até
mesmo a vida, segundo um certo senso comum histórico sobre os tempos “áureos” do
cacau). Como ressaltam Garcez e Freitas, “esse foi, inclusive, um dos processos mais
eficazes de concentração das terras do cacau.” (1977:26). Mahony (1998) apresenta dados
do Censo de 1920 que mostram menos donos do que propriedades, o que faz constatar que,
11
Mahony (1998) conta, por exemplo, que em 1912 vários processos de requisição de propriedade foram
queimados no Palácio do Governo da Bahia, em Salvador, mas a grande maioria dos pequenos proprietários,
em geral analfabetos, não foram avisados que deveriam requerer novamente seus títulos (:102).
108
embora ainda não houvesse muitos latifúndios, uma mesma pessoa poderia possuir várias
pelo cacau acaba por ser defendida, pelo menos nesse primeiro período de implantação da
lavoura cacaueira, até mesmo por autores que se colocam em oposição no campo
intelectual. Adonias Filho e Jorge Amado, só para citar os mais famosos escritores da
(expressão muito utilizada por autores, mas também por moradores de Ilhéus) e que os
latifúndios começaram a se formar somente depois de 1890. Sua diferença está no que
seria o momento seguinte à implantação do cacau, sobre que “tipo de sociedade” resultou
daí.
violência atribuída aos coronéis do cacau, assim como nega a prática da grilagem. Ele
desrespeita as leis. Adonias Filho insiste que o fazendeiro de cacau luta por terras no
interior do sistema judiciário, não com violência. Por isso, o advogado “é o grande e
de seus [do coronel] empregados” (:79). Para Adonias Filho, o coronel contratava o
12
Para Adonias Filho, essa “civilização do cacau” existe em função de uma “uniformidade ecológica” da
região, de uma estrutura social e de uma organização econômica próprias que fornecem “normas,
convivências, identidades e fins que asseguram regionalmente a integração” (1976:17).
13
Garcez e Freitas (1977:77) comentam sobre a influência dos “coronéis” no poder judiciário através dos
advogados, que constituíam uma espécie de “acessório esclarecido ao lado da força armada”, a “jagunçada”.
109
jagunço para cuidar de questões morais, referentes a um “código de honra”, que não
Já para Jorge Amado, o ‘tipo de sociedade’ forjado pela economia cacaueira em seu
momento posterior à implantação da cultura não tem nada de democrático. Essa economia
criou uma elite de homens rudes, humildes, mas também violentos e exploradores; que
tratavam os trabalhadores das fazendas como escravos e tomavam terras dos pequenos
judiciário. Em suas obras sobre a região cacaueira, o autor afirma que antes de chegarem
sistema feudal. Seus livros mostram vários aspectos dessa versão da história de Ilhéus: as
lutas violentas pela terra e a expropriação dos pequenos agricultores; a exploração dos
fazendeiros com o poder político; a prepotência da elite local que se julga descendente da
aristocracia...
Amado. Certamente isso ocorre entre os historiadores mais tradicionais e nas versões da
elite local, que ainda hoje é atuante política e economicamente e continua reproduzindo sua
visão sobre a cidade de Ilhéus. Dois exemplos um tanto exóticos dessa visão de mundo da
escravidão em Ilhéus: do açúcar ao cacau”. Essa atividade era parte do “Seminário novas
André Rosa Ribeiro, professor da UESC, e ambos tinham o mesmo propósito: mostrar a
14
O seminário foi realizado nos dias 30/06 e 01/07 no Centro de Convenções Luiz Eduardo Magalhães, como
parte das atividades de inauguração do espaço. A título de ilustração, convém informar que o auditório onde
110
utilizados por Mahony em sua exposição foi a apresentação de documentos sobre a morte
de escravos em cativeiro. Ao final da palestra, uma senhora disse que “nem todos os donos
de escravos eram tão perversos” e que sabia que seus antepassados “eram bons, eram
amigos de seus escravos”. O outro exemplo também foi gerado a partir da fala de Mahony.
Além de vasto material de arquivo, a historiadora recorreu a Jorge Amado para provar que
havia escravos e citou uma passagem em que o autor conta que a filha de um “coronel” do
cacau com uma escrava vivia na sede da fazenda, embora não fosse tratada como filha,
mas como “agregada”. Se Mahony recorreu a Jorge Amado por julgar que seus relatos,
embora fictícios, possuem a qualidade de informar sobre uma possível realidade dos
realidade, identificou-se como neta do coronel citado e perguntou se “um livro de Jorge
Amado pode ser considerado verdadeiro”; negou que seu avô tivesse feito tal coisa [ter
uma filha ilegítima com uma escrava] e, dirigindo-se à platéia, disse: “Jorge Amado tinha
que escrever essas coisas para que vocês comprassem os livros dele”. Para completar a
situação de mistura entre ficção e realidade, estava na platéia o Sr. Sá Barreto15, chamado
em Ilhéus como “o último dos coronéis”, também amigo e personagem de Jorge Amado.
argumentos semelhantes àqueles de Jorge Amado – adotados pela esquerda já nos anos 40
movimento de luta pela reforma agrária nessa região, quando comparada com outras, à
o evento foi realizado chama-se “Nacib”; há também as salas “Gabriela”, “Tonico Bastos” e novamente
“Nacib”, todos personagens de Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado.
15
Falecido em 2003.
111
lavoura cacaueira em função do baixo índice de concentração fundiária que ela gerou,
também quando comparado com índices de outras regiões. O grande número de pequenas e
médias propriedades, ainda que várias delas pertencentes a um mesmo proprietário, e a não
regularização fundiária de boa parte do território (que permitia aos grandes proprietários
tomarem posse das terras dos pequenos, mas não permitia a configuração legal dessa
situação), faz com que o índice de concentração fundiária seja baixo ainda hoje. Além
fácil”, originada na relação de expropriação que a elite cacaueira sempre teve com a terra:
uma vez implantado, o cacaual não requer muitos cuidados, o que fazia, segundo diz o
senso comum na região, com que os proprietários – filhos e netos dos primeiros produtores
– fossem morar nos grandes centros urbanos e deixassem o cacau produzindo nas mãos de
empregados. Essa “cultura”, ainda de acordo com o que pode ser chamado de senso
comum crítico, haja vista que é largamente repetido, também seria responsável pelo
que trabalharam em roças de cacau, sobre as péssimas condições de trabalho, até mesmo a
proprietários. Costuma-se dizer que a atual crise do cacau é uma “resposta da terra” ou “da
universidade pública na região 16, assim como a popularização ainda maior da literatura de
Jorge Amado na cidade, alimentam essa versão contrária à da elite. Assim, vê-se que as
retóricas sobre o passado estão em disputa constante. Em Ilhéus, o turismo tem um papel
Sobre essa disputa de versões, cabem três observações. A primeira é que a obra de
Adonias Filho mais utilizada é Sul da Bahia: Chão de Cacau, de 1976, ou seja,
relativamente recente e que teria sido escrita como uma resposta à telenovela Gabriela17,
exibida em 1975.
cacau que investem no setor de turismo em Ilhéus – de acordo com informações obtidas
eles constituem cerca de 50% do empresariado desse setor (1998:79). Por outro lado, há a
atual política de turismo da prefeitura que, especialmente nos últimos anos, vem
concentrando sua estratégia de promoção da cidade na pessoa e nas obras de Jorge Amado.
segundo mandato (1997-2000) do atual prefeito, agora em sua terceira gestão (2001-2004).
O uso do nome de Jorge Amado como principal atração turística de Ilhéus estava só
16
A UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz –, situada na Rodovia Ilhéus-Itabuna, investe grandes
esforços no estudo da região cacaueira. Os departamentos de História e de Letras, por exemplo, possuem
disciplinas na graduação e cursos de pós-graduação voltados para o estudo regional.
17
Baseada na obra Gabriela Cravo e Canela, de Jorge Amado (1958).
113
começando18. Naquele ano, houve a inauguração da Casa de Jorge Amado e sua última
visita a Ilhéus, justamente nessa ocasião. Porém, ao longo dos anos seguintes, muitos
outros investimentos foram realizados19. Se, por um lado, o nome de Jorge Amado ajuda a
fortalecer o turismo nas fazendas de cacau por ser a economia cacaueira o maior mote de
sua literatura para essa região, por outro essa retórica turística participa da disputa de
supor que, para além de motivações de ordem técnica, há dois fatores que, de certa forma,
dos mais importantes produtores de políticas de turismo dos últimos anos são pessoas de
fora da cidade, não envolvidas, portanto, com as famílias tradicionais ilheenses. O segundo
fator refere-se à imagem do atual prefeito, formada a partir da idéia de oposição à chamada
Goldman (2001) mostra com números o que já foi dito aqui sobre a influência
política dos produtores de cacau na cidade: “até 1976, dos 24 intendentes e prefeitos de
locais” (:60). Esse foi o ano em que Jabes Ribeiro, atual prefeito de Ilhéus, foi candidato a
vice-prefeito com apenas 23 anos. Sua chapa não foi eleita (o governo municipal foi
assumido por Antônio Olímpio), mas ele ocupou a Secretaria de Educação. Candidatou-se
novamente em 1982 e venceu as eleições. Goldman chama a atenção para o fato de que
18
Isso não significa que Jorge Amado não fosse importante para Ilhéus anteriormente. É provável que sua
“presença” na cidade tenha se intensificado a partir da gravação da telenovela Gabriela, em 1975. Já em
1983, primeiro ano do primeiro mandato de Jabes Ribeiro, foi fundado o “Circo Folias da Gabriela”, uma
lona para a apresentação de espetáculos populares. Foi também em 1988, último ano da primeira gestão de
Jabes, que Ilhéus comemorou o aniversário de 30 anos do romance Gabriela, Cravo e Canela com vários
eventos.
19
Entre outros exemplos, podemos citar a fachada do Bataclan, famoso bordel de Gabriela... que foi
reconstruída (mas o resto do prédio não existe); o bar Vesúvio que foi reformado tal como era na época
retratada no romance; e o “circuito turístico cultural” chamado “Quarteirão Jorge Amado”, criado pela
Ilheustur e pela Fundação Cultural. Segundo consta de seu folheto de propaganda, ele é dividido em dois
roteiros, o “Cravo” e o “Canela”, onde se pode “fazer uma viagem ao tempo dos coronéis, revivendo as
histórias e as fantasias de personagens e lugares”. Por fim, o slogan da Ilheustur em todos os eventos
turísticos na cidade no ano de 2001 era “Vejo você na terra de Jorge Amado”.
114
Jabes é filho de um motorista, portanto, “não se adequava ao perfil histórico dos principais
políticos locais”, não estando vinculado às famílias e aos líderes políticos tradicionais da
economia cacaueira. Além disso, sua campanha visou mostrar seu afastamento em relação
à política que era realizada em Ilhéus através de termos como “mudança”, “renovação”,
“povo” (:61). A relação que Jabes tem com a política hoje é certamente bem diferente
daquela de 82. No início de sua carreira política, ele foi membro do chamado “MDB
autêntico”, partido que agregava parte da esquerda ainda durante a ditadura e que se
transformou posteriormente no PMDB, onde Jabes permaneceu por algum tempo, até
transferir-se para o PSDB (Partido Social Democrata Brasileiro), partido pelo qual se
elegeu em 1996 e se reelegeu em 2000, e hoje é filiado ao PFL (Partido da Frente Liberal),
político representantes das famílias do cacau. No entanto, ainda hoje a imagem cultivada
em torno do nome de Jabes é a de alguém que tem “origem humilde” e que “deu certo”;
alguém “de fora” em relação à elite dos coronéis do cacau que conseguiu “vencer na
primeiro pé de cacau teria sido plantado “na margem direita do Rio Pardo”, hoje município
de Canavieiras, em 1746; na segunda, citando Campos (1981), ele diz que os primeiros
cacaueiros também podem ter sido plantados em 1789; numa terceira versão, a economia
115
do cacau teria sido implantada por volta de 1780 e, por fim, na quarta, cita os anos de 1755
Mahony (1996) não cita uma data, mas apresenta indícios de que a lavoura
cacaueira já tinha alguma importância na primeira metade do século XIX. Ela cita, por
exemplo, uma obra de 1838 que fazia uma descrição do melhor método para o plantio do
cacau (:218). Ribeiro (2001:61) é mais contundente e afirma que “a partir de 1835, o cacau
triplicaram a cada década entre 1830 e 1890”. Garcez e Freitas informam que em 1834 o
cacau já aparecia como produto de exportação, embora ainda com crescimento bastante
moderado, e chegam a dizer que naquele ano foram exportadas 26,5 toneladas de cacau
(1979:21). De qualquer forma, o que importa registrar é que o cacau já era o principal
produto econômico da região no fim do século XIX, sendo cultivado em, praticamente,
primeira do XX. Segundo Mahony, é possível dizer que quase todas as fazendas, mesmo as
menores, possuíam no mínimo mil pés de cacau enquanto as maiores poderiam chegar a ter
duzentos mil pés (1996:275-6). Em 1910, Ilhéus já era o segundo maior produtor de cacau
municípios de Ilhéus e Itabuna (emancipado em 1912) cobertos com pés de cacau (Mahony
1998:94). O cacau teve sua cotação mais elevada em 1926. Porém, no final da década de
20, tem lugar a primeira grande crise da economia cacaueira: entre 1928 e 1931, os preços
despencaram, assim como a taxa de emprego na região. Atendendo aos apelos dos
(ICB) para perdoar dívidas e dar mais crédito aos grandes produtores, pois só era permitida
116
‘emergenciais’ (cf. Garcez e Freitas 1979:44), semelhantes aos do ICB: perdoar dívidas e
dar financiamento aos cacauicultores. A CEPLAC, que em sua criação tinha um caráter
transitório – note-se que se tratava de uma ‘Comissão Executiva’ para implantar um ‘Plano
mais forte crise da lavoura cacaueira, iniciada na década de 80 e que perdura até o
momento.
sempre foi uma “atividade econômica monocultora de exportação”, ou seja, sempre esteve,
uma quantidade cada vez menor de cacau na produção do chocolate provocou a diminuição
Na década de 80, quando teve início a última crise com o advento da vassoura-de-
bruxa, o cacau ainda era a cultura mais lucrativa da região. Nessa época a produção era
subsidiada pelo governo federal, o que fazia com que, de acordo com o depoimento de um
técnico da CEPLAC, o cacau fosse plantado “até em cima de pedra”, empregando cerca de
região cacaueira segundo uma nota do jornal O Globo de 08/03/99 (Vinháes 2001:232). O
de até vinte mil arrobas de cacau por ano no início da década de 80, hoje 20 produzem
apenas mil arrobas e, em alguns casos extremos, as fazendas foram abandonadas por seus
proprietários que mantêm somente um ou alguns poucos trabalhadores para “tomar conta”.
toneladas de cacau e produtos derivados21; em 2000, foram 61.454, mas o pior ano foi o de
trabalhadores das fazendas, pois a maior parte das atividades econômicas dos centros
Apesar de haver uma espécie de senso comum no município que condena que a
economia continue baseada na monocultura, já que “não se pode confiar no cacau”, ele
20
Depoimento concedido no ano 2000.
21
Em seu trabalho de 1979, portanto anterior à disseminação da praga, Garcez e Freitas informam que,
naquele momento, a política do governo com relação ao cacau visava expandir muito a produção nacional e
previa que esta seria de setecentas mil toneladas em 1990 (:100).
118
referência para o dado) o cacau tinha a maior quantidade de área plantada, com 60.952
hectares; o segundo produto era a borracha, com apenas 1.528 hectares e, em terceiro
lugar, ficava o coco-da-baía, com 148 hectares. Em 2000, segundo dados apresentados no
site do governo da Bahia, a área plantada de cacau em todo o Estado foi de 608 mil
hectares, tendo Ilhéus a maior participação, com cerca de 70 mil hectares e sendo também
o maior produtor, com 10.137 toneladas23. Um outro dado relevante é quanto à mão-de-
obra empregada na lavoura. No ano de 2000, o cacau foi o terceiro produto da Bahia em
mandioca (134.923,23)24. Considerando que estes dois últimos produtos são cultivados em
todo o Estado, diferentemente do cacau que é plantado apenas nessa região, pode-se ter
uma idéia do que representa seu declínio para os municípios que sempre o tiveram como
única fonte de renda. Do ano de 1999 para 2000, o cacau empregou cerca de dez mil
pessoas a menos25, o que significa dizer, grosso modo, que foram mais dez mil
municípios como Ilhéus e Itabuna, que recebem esse contingente de pessoas em busca de
oportunidades de sobrevivência.
22
Dados retirados da tabela “Quantidade das exportações de cacau e derivados, Bahia – 1989-2000”. Fonte:
SECEX/MINIFAZ/PROMO (www.sei.ba.gov.br).
23
Dados da tabela “Área plantada e colhida, quantidade produzida, rendimento médio e valor das principais
culturas permanentes, segundo os municípios, Bahia – 2000”. Fonte: PAM/IBGE (www.sei.ba.gov.br).
Interessante notar que o segundo município maior produtor de cacau foi Itamaraju, com metade da produção
de Ilhéus plantada numa área equivalente a menos de um quarto da utilizada nesse município.
24
Dados retirados da tabela “Ocupação da mão-de-obra agrícola em Equivalentes-Homens-Ano (EHA),
segundo as culturas pesquisadas – Bahia”. Fonte: SEI/EBDA/SEADE (www.sei.ba.gov.br).
119
esse auxílio e a maior parte tornou-se inadimplente em função dos juros altos e dos prazos
muito curtos, de acordo com recorrentes manifestos, editoriais e matérias dos jornais
esteve em Ilhéus para visitar a CEPLAC e anunciar uma nova liberação de recursos da
ordem de quinhentos milhões de reais pelos próximos três anos, sendo que cerca de cento
internacional sediando a 64a Assembléia Geral da Aliança dos Países Produtores de Cacau
(Jornal Agora, 29/09 a 05/10/01), fizeram com que ressurgisse um clima de “esperança” na
economia cacaueira. Ela ainda é apontada como o “futuro” da cidade (“Jabes: o futuro de
importância econômica (com movimento anual de cerca de 1,5 bilhão de dólares 27), o
apelo do cacau é também ecológico, pois por necessitar de sombra em seu cultivo, ele é
plantado sob a mata. Alguns ambientalistas atribuem a esse fator que 8% de Mata Atlântica
25
Foram 138.068,42 empregados segundo tabela citada na nota anterior.
26
Jornal A Região, 26/08/01 (“Fernando Henrique Cardoso cria Conselho do Agronegócio do Cacau”);
23/09/01 (“Representação da lavoura é ampliada no Agronegócio do Cacau”). Jornal Agora, 14 a 20/07/01
(“Lançamento do novo programa do cacau termina com pancadaria na Uesc”); 25 a 31/08/01 (“FHC anuncia
novo plano para o cacau e faz discurso conciliatório”); Jornal do Brasil, 25/08/01 (“FH: ‘Engoli muitos sapos
na Bahia’ – Presidente dá alfinetada em ACM ao anunciar diante de senadores carlistas plano de recuperação
da lavoura de cacau”).
27
Jornal Agora, 28/07 a 03/08/01.
120
222.127 pessoas em Ilhéus, cerca de vinte mil habitantes a menos do que mostrou a
cacaueira tem início na década de 80, é possível supor que esse crescimento populacional
já seja reflexo do desemprego provocado pela crise, o que fez com que a população dos
Não fosse isso, poder-se-ia pensar que a população ficou estabilizada nesse período pelo
crescimento da população rural em torno de 50%. Dos doze municípios com mais de cem
mil habitantes existentes no Estado da Bahia atualmente, Ilhéus é o que apresenta o menor
grau de urbanização (72,99%), possuindo, ainda, uma zona rural bastante expressiva. A
observação dos números de habitantes dos censos em municípios vizinhos sugere que
houve uma migração de sua população para Ilhéus, até mais do que para Itabuna, em
busca, primeiramente, de trabalho ainda nas roças de cacau – daí o aumento da população
121
município de Itabuna28 sugere que as pessoas foram buscar emprego no comércio, já que a
de 97,21%). Deve-se observar ainda que das quinze regiões econômicas do Estado, apenas
duas tiveram decréscimo populacional entre 1991 e 2000, sendo uma delas a região
denominada “Litoral Sul”29, que coincide em parte com o que é chamado pelo IBGE de
Demográfico de 1991 31. Segundo os critérios utilizados pelo próprio instituto (“cor ou
raça” “branca”, “preta”, “parda”, “amarela” e “indígena”), a soma das pessoas que se
população, o que faz dela uma cidade majoritariamente negra. Embora este seja um
procedimento comum, adotado inclusive oficialmente pelo IBGE, pelo menos na década de
ia argumentar que o recurso à soma desses critérios falseia a realidade uma vez que é
sabido que o termo “parda” abriga as mais variadas designações de cor/raça, que poderiam,
inclusive, tender a ser agrupadas na categoria “branca” mais do que na categoria “preta”,
caso “parda” fosse extinta do censo. Essa hipótese é derivada da constatação de Harris et
28
Número de habitantes em Itabuna: 1980: 153.342; 1991: 185.277; 1996: 183.403; 2000: 196.675. Fonte:
Censo Demográfico – IBGE, 2000.
29
Esta é uma forma de divisão geográfica empregada pelo site do governo da Bahia (www.sei.ba.gov.br). A
outra região a perder população é Piemonte da Diamantina.
30
Dados retirados da tabela “Taxa de Crescimento Populacional – 1991-2000”. Fonte: Censos Demográficos
1991 e 2000, IBGE in www.sei.ba.gov.br.
31
Os números produzidos pelo Censo Demográfico 2000 ainda não foram disponibilizados para consulta
pública em seu site.
122
alli (1993), a partir da análise de uma pesquisa realizada pelo próprio Marvin Harris na
década de 60, de que as pessoas que se autoclassificam como morenas quando a opção é
livre, preferem ser abrigadas sob a categoria “branca” no questionário fechado formado
somente pelas opções oferecidas pelo IBGE. Telles diz o mesmo: “(...) a pessoa próxima a
uma fronteira cromática tende a ‘passar’ para a categoria mais clara” (1993:6). Assim,
somar os números referentes às categorias “parda” e “preta” para mostrar que a grande
legítimo.
Saber onde passa a “linha de cor” – ou dizer se ela existe ou não – no Brasil é
problema antigo nos estudos sobre relações raciais 32, assim como determinar quem é negro
afirmativa por algumas instituições universitárias e da polêmica então gerada. Estes são
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) em 1976: a partir da pergunta “Qual
32
Para uma descrição sucinta da questão, ver Andrews 1998:379-392 (Apêndice B: “Terminologia Racial
Brasileira”).
33
Ver, entre outros, Byrne e Forline 1997; Harris 1990; 1993; Maggie 1996; Posada 1989; Silva 1996; Telles
1995.
34
Por exemplo: “Racismo Cordial” – Suplemento Especial da Folha de São Paulo, 25/06/95; “Cores e nomes
– IBGE testa este ano novas categorias de cor seguindo onda politicamente correta” – Folha de São Paulo,
02/11/97; “A invisibilidade no Censo – Movimento Negro contesta contagem do censo, que registra 45% de
‘pardos’ e 50% de brancos no caldeirão racial brasileiro” – Jornal do Brasil, 17/05/98.
123
a cor do(a) senhor(a)?”, sem a apresentação prévia de opções, foram registradas 135
foi analisado diversas vezes: através da apresentação de fotos de pessoas com diferentes
características físicas para cem ‘respondentes’, ele conseguiu detectar 492 termos para
enquadrar numa das cores/raças propostas. A novidade da pesquisa do PNAD de 1976 foi
“cores” – e, em seguida, o pedido para que essas mesmas pessoas optassem por um dos
termos de classificação, tal qual a abordagem do IBGE nos censos. Como no modelo
supostamente mais objetivo designar alguém como negro ou não, aliás, como branco ou
1998:379).
35
Essas “cores” estão reproduzidas no suplemento especial da Folha de São Paulo, já citado, e
posteriormente em Turra e Ventura 1995.
36
No original “race-color”. Em nota, Harris et alli esclarecem que preferem o termo usado desta forma
porque nem raça nem cor designam exatamente o que se pensa no Brasil: características fenotípicas
diferentes são utilizadas como determinantes, como a cor da pele, mas também o tipo de cabelo, o nariz ou os
lábios (Harris et alli 1993:460).
124
Sabe-se, entretanto, que mesmo nos Estados Unidos, essa suposta objetividade só
funciona em relação a instrumentos – também eles tidos por objetivos – como o censo.
média onde a existência de ‘mestiçagens’ no que tange à cor da pele assim como a gostos e
hábitos culturais torna a relação entre cor da pele e cultura muito menos óbvia do que a
antropologia ou a sociologia costumam afirmar, o que faz com que ser negro ou ser branco
– já que são as categorias disponíveis – seja muito mais uma escolha a partir de histórias
pensando a demografia como fruto da biopolítica, nome pelo qual Foucault designa a nova
tecnologia de poder instalada no século XVIII, que, por sua vez, pode ser melhor
A demografia é, então, uma forma de produção de saber da biopolítica, que terá como
objeto a “população”, noção que se constitui como uma novidade também introduzida por
125
para que os resultados sejam de equilíbrio global, pois o que importa não é o indivíduo,
mas a média, a estatística, enfim, a espécie humana (:294). Assim, seus instrumentos de
Herzfeld chama a atenção para esse poder de reificação do censo quando trata dos
pretendida pelos estados-nação (1996). Ele utiliza o caso grego para mostrar que o censo é
partir da demanda de “precisão demográfica” exigida pelo estado (:77), como, por
censo grego (...) pode ter feito mais para criar aquela categoria do que qualquer
cumpre, evidentemente, sua função essencializadora, mas o estado brasileiro tem sido
habilidoso para manter sua hegemonia e evitar a explicitação de conflitos raciais, um dos
principais “perigos” apontados por Herzfeld. Um pequeno artigo de Thomaz Flory (1977)
mostra essa preocupação por parte do império brasileiro desde o período pós-
Pernambuco, por exemplo, a população de “negros” e “pardos” livres era maior do que a
do estado com um discurso racial ainda incipiente – mas já com uma certa força, até
porque era também utilizado pelos conservadores (neste caso, ficou conhecido como a
“imprensa mulata”). A fim de cuidar para que esses fatores não se potencializassem, a
opção do estado foi por legislar com restrições sociais e não raciais, o que mantinha a elite
branca no poder e evitava o discurso de discriminação racial que poderia levar a revoltas
A forma como o tema “cor/raça” vem sendo tratado ao longo dos censos
demográficos no Brasil mostra essa mesma preocupação. Ele não foi incluído nos censos
Posada (1989:223). Sendo um pouco mais irônico, Hasenbalg diz, especialmente sobre o
censo de 1970, realizado durante a ditadura militar, que isso ocorreu por “motivos
técnicos” – as aspas são do autor (1996:239). Os censos de 1872 e 1890 têm em comum o
fato de que os termos “mulato” ou “pardo” agregavam pessoas que não se enquadravam
(ameríndios). Também em 1940, o termo “pardo” foi utilizado para classificar aqueles que
não eram “brancos”, “pretos” ou “amarelos”. Somente no censo de 1950 ele fez parte da
somente em 1990 a categoria censitária “indígena” fez parte das opções. Além da ausência
do item cor já citada nos censos de 1900, 1920 e 1970, nota-se que os termos “pardo” e
37
É claro que o estado nem sempre foi tão sutil em sua proposta de evitar conflitos raciais. Agier (1992:61) e
Hasenbalg (1996:239) comentam sobre a preocupação da ditadura militar com denúncias de racismo no
Brasil. Este último diz que o tema foi transformado em “questão de ‘segurança nacional’” e que “em 1969, as
aposentadorias compulsórias atingiram os mais destacados representantes da escola paulista de relações
raciais”.
127
“mulato”, quando estiveram presentes nos censos tanto como opção de classificação
quanto como forma de abrigar o que seriam os outros, não refletem uma identificação
racial – agregam os racialmente misturados e sugerem uma identificação por cor, já que
afrodescendentes, ou seja, a categoria “pardo” faz com que a idéia de “identidade negra”,
sem “raças” muito bem distintas e, portanto, sem conflitos raciais. No entanto, embora não
agrade a gregos nem a troianos, o termo “pardo” foi mantido no censo de 2000 e a
experiência realizada pelo PNAD de 1976 continua importante como justificativa para isso.
Apesar das famosas “135 cores”, a maior parte dos entrevistados no PNAD de 1976
identificou-se com as opções clássicas do censo, com exceção dos 37,2% que se
identificaram com o termo “morena”, que não é critério censitário. Na segunda etapa da
desse dado, parece óbvio concluir que o termo “pardo” é próprio dos registros oficiais,
tanto por parte dos pesquisadores oficiais quanto das pessoas diante de uma situação
oficial, como o censo é considerado. Sobre isso, é preciso lembrar também que o termo não
está restrito ao censo, sendo ele uma categoria utilizada na certidão de nascimento,
primeiro documento oficial da vida de uma pessoa e que faz dela membro do estado-nação
realidade: basta percorrer as ruas da cidade para perceber isto; em segundo lugar,
e a carga semântica pejorativa atribuída a ela faz com que muitas das pessoas que se
critério “branca”, seria possível supor que o percentual de “brancos” em Ilhéus, que é de
14%, seria ainda menor38; em terceiro lugar, como argumentam Andrews (1998:391) e
Telles (1993:6), dados estatísticos sobre mobilidade social e renda podem até apontar para
diferenças nas condições de vida entre “pardos” e “pretos”, mas elas são muito pequenas e
atingem apenas uma pequena parte da população “parda”; em quarto lugar, seria muito
difícil fazer uma tal distinção levando-se em conta que filhos de um mesmo casal podem
ter sido registrados como “pardos” e “pretos”, situação comum em Ilhéus e, penso, na
maioria das famílias brasileiras; e, por fim, os dados históricos revelam uma grande
produziam açúcar e madeira utilizando mão-de-obra escrava. Não há muitos dados sobre a
se, sobretudo, ao Engenho de Santana, onde ocorreu um dos mais famosos episódios da
Santana foi o maior da região por séculos, até que em 1724 era o único (Marcis 2000:22).
Desde o início utilizou mão-de-obra escrava de índios e negros. O inventário feito após a
38
Os demais valores percentuais são: “pardas”: 77%; “amarelas”: 0,05%; “indígenas”: 0,1%; “sem
129
morte de Mem de Sá registrava 130 escravos em 1573. Entre 1618 e 1759, o Engenho foi
administrado pelos jesuítas. Consta que no ano de 1730, havia 178 escravos na propriedade
(Schwartz 1988).
Manuel da Silva Ferreira” (Marcis 2000:66). Durante sua administração ocorre a Revolta
do Engenho de Santana, cuja importância histórica reside no fato de que não se tratou de
teriam sua mesma “garra” e “coragem”) quanto como tema dos desfiles de diferentes
rebelião no mesmo engenho que perdurou por três anos, até que tropas de Ilhéus, Valença e
a quilombos muito bem estruturados nas imediações da vila (Reis e Silva 1989:124-7).
Bittencourt e Câmara, com 183 escravos. A família Sá tornar-se-ia uma das maiores
escravos em 1860, além de dominar o poder político municipal durante quase todo o século
segunda metade do século XIX, mesmo após a proibição do tráfico em 1850 (1996:279).
(:331) ressalta que a curva demográfica para a população escrava em Ilhéus é semelhante à
das regiões de café no sul e no sudeste do país, cujo crescimento vai até 1872 e só então
começa a cair, lembrando que a abolição é decretada dezesseis anos depois, quando o
contrabando de escravos em Ilhéus por mais de 20 anos após a proibição do tráfico (:250-
1). O censo de 1872 registra a presença de 226 estrangeiros em Ilhéus, sendo 56 europeus e
que Ilhéus experimentasse o mesmo movimento vivido pelo Recôncavo de vender escravos
para o sul do país. Além de necessitar da permanência dos escravos que já trabalhavam nas
antes do cacau –, Ilhéus ainda atraiu um grande número de pequenos produtores que
traziam consigo seus poucos escravos (:253). Segundo dados apresentados por Mahony
(1998:92), a população de Ilhéus em 1818 era de 2.400 habitantes, sendo um quarto dela
131
oficialmente e foram contabilizados 1.034 escravos, número este que representava 18% da
população (1996:328); em 1881, havia dez mil pessoas habitando Ilhéus, sendo escravas
cerca de 10% delas (1998:92). Esses números confirmam que a lavoura cacaueira foi
desenvolvida também com mão-de-obra escrava, fato negado pelo mito de origem do
Por outro lado, o cacau também teve seu desenvolvimento favorecido em função da
pequena mão-de-obra e essa foi uma razão para a facilidade de sua implantação e expansão
num momento em que a Bahia teve seu número de escravos reduzido em função da
país. Mas o crescimento muito rápido das plantações de cacau requereu um grande número
de trabalhadores, o que fez com que o maior número possível de escravos permanecesse na
região (1996:317-8) e propiciou aos grandes fazendeiros (só eles possuíam numerosos
verdade, a escravidão foi fundamental para a expansão da lavoura cacaueira: como a maior
parte do território de Ilhéus era formado por terras devolutas, ou seja, que pertenciam ao
Estado (de domínio público) (1998: 98), era mais fácil para os trabalhadores pobres
conseguir terras para eles mesmos do que trabalhar para alguém, o que fazia com que
trabalhador fosse uma “mercadoria escassa”. Essa situação perdurou até o final do século
perdendo suas terras, em função das dívidas e da grilagem dos grandes fazendeiros) e
somente por escravos. E em Ilhéus não era diferente. “De acordo com o Censo de 1872,
71% da população, incluindo escravos e livres, eram pardos ou negros” (Mahony 1998:93).
Entre os livres, 65% eram pardos ou negros. Em 1890, eles constituíam 75% da população.
“Por volta de 1880, milhares de pessoas estavam chegando a Ilhéus, particularmente das
comunidades do nordeste da Bahia e do sul de Sergipe (...) Tantos vieram, que a população
Desses milhares de migrantes que buscaram a região cacaueira entre o fim do século XIX e
o início do XX, a maior parte era de ‘negros’ e ‘pardos’ e muitos eram ex-escravos.
camponeses sem casa e sem terra criados pela seca tornou-se um objeto de grande
preocupação para os oficiais da província tanto quanto para as elites, que temiam a
terra e, em alguns poucos casos, ao sucesso com o cacau, sustenta a tese de que a economia
brasileiros na área do cacau” (1998:92) e afirma que no fim do século XIX havia alguns
fazendeiros de cacau que tinham sido escravos e muitos que eram “afro-brasileiros.” (:96).
Sua conclusão é de que nem o “legado da escravidão” nem o racismo impediram que
propriedade. Além dos problemas que atingiam a todos os pequenos fazendeiros, tais como
técnicas agrícolas impróprias; falta de recursos para legalizar a propriedade; juros altos;
legislação que favorecia os credores e flutuação dos preços do cacau no mercado externo
(:102), ela acredita que o analfabetismo, comum à grande maioria dos fazendeiros “afro-
brasileiros”, e o sistema social hierárquico brasileiro criaram uma “distância social” entre
grandes proprietários, o que tornou “mais difícil para a maioria dos afro-brasileiros
Mahony não chega a afirmar que a diferença racial tenha determinado o sucesso ou
o fracasso de fazendeiros negros. Contudo, é fato que eles eram, em sua quase totalidade,
Números
40
Entendam-se por independentes aqueles pequenos proprietários que não se aliaram a algum grande
fazendeiro e, portanto, não tiveram sua proteção.
134
final da década de 80, vem provocando um efeito devastador sobre a região. Seria
município de Ilhéus, uma das duas principais cidades da região cacaueira, estejam entre os
melhores do Estado, isso não quer dizer que sua população não passe por sérios problemas
Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), no ano de 1998, quando houve a última atualização
(IDE)41 entre os 415 municípios do Estado até então. O índice de desenvolvimento social
(IDS)42 já não era tão bom, ficando Ilhéus com o 16 o lugar. No ranking do Estado, a
situação da cidade pode ser considerada regular, mas é preciso lembrar que a Bahia é um
estado pobre. A cidade de Salvador, que ocupa o primeiro lugar em ambos os índices
acima, tem o sexto melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) 43 entre as doze
maiores cidades brasileiras, segundo estudo da ONU (Organização das Nações Unidas)
realizado com dados recolhidos entre 1995 e 199944. A divulgação desse dado foi feita no
41
O IDE é dado por uma média entre os índices de Infra-estrutura (INF), de Qualificação de Mão-de-obra
(IQM) e do Produto Municipal (IPM), nos quais Ilhéus ocupa os 8o, 9o e 13o lugares, respectivamente
(www.sei.ba.gov.br).
42
O IDS é dado por uma média entre os índices de Nível de Saúde (INS), de Nível de Educação (INE), de
Serviços Básicos (ISB) e de Renda Média dos Chefes de Família (IRMCH), nos quais Ilhéus ocupa as
seguintes posições: 112o em saúde, 5o em educação, 37o em serviços básicos e 27o em renda dos chefes de
família (www.sei.ba.gov.br).
43
IDH: criado pela ONU em 1990, ele varia entre 0 e 1 e é baseado em três indicadores: acesso ao
conhecimento, ao trabalho e aos recursos monetários (Jornal do Brasil, 24/03/01).
44
Jornal do Brasil, 24/03/01.
135
cidade do Rio de Janeiro. Pela primeira vez no mundo, foi mensurado o IDH de bairros e o
interesse desse estudo para este trabalho está na coincidência do relatório ter utilizado a
cidade de Ilhéus como termo de comparação. Entre os 161 bairros do Rio de Janeiro
considerados pela ONU, Acari, no subúrbio, ocupa o penúltimo lugar, com IDH de 0,53,
Bolívia e Gabão. O relatório diz ainda que seriam necessários 101 anos, mantendo o atual
ritmo de desenvolvimento, para que a zona rural de Santa Cruz, pior IDH (0,51) da cidade
levantados pelo Censo Demográfico 2000, ele utiliza variáveis diferentes daquelas do
número 2.935. A comparação com os índices de Salvador e de Itabuna torna mais clara a
situação de Ilhéus: a capital baiana ocupa o primeiro lugar no Estado, mas o 471 o no país; o
significa que o 22o lugar de Ilhéus no Estado indica problemas sociais graves.
Ilhéus, mas oferecer ao leitor alguns dados disponíveis sobre o município que
45
Relatório de Desenvolvimento Humano do Rio de Janeiro (ONU/Ipea/Prefeitura do Rio).
46
Jornal do Brasil, idem.
47
Realizado pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, pela Fundação João Pinheiro – Governo
de Minas Gerais e pela Nações Unidas, divulgado no site do IPEA (www.ipea.gov.br)
136
proporcionem uma melhor visualização das condições de vida da grande maioria das
A pauperização que o município de Ilhéus vem sofrendo nas duas últimas décadas é
bem visível nos processos de ocupação e de favelização da maioria de seus morros. Muitos
deles são de ocupação antiga, mas eram, até recentemente, áreas pouco habitadas, onde
hoje estão aglomeradas várias famílias. A área onde está localizado o Grupo Afro Cultural
Dilazenze é um bom exemplo desse processo: uma parte significativa do que hoje constitui
a Av. Brasil era, até a década de setenta, a chácara de “Dona” Roxa e de “Seu” Valentim,
avós do presidente do grupo. O terreno foi cortado pela Av. Brasil e o Censo Demográfico
aproximadamente, três mil pessoas 50. Os setores censitários são muito mais abrangentes do
que a área que corresponde ao que era a chácara, mas a informação é relevante para dar
novas áreas, sendo necessário construir no terreno da família, quanto pela chegada de
48
As variáveis e os respectivos índices para Ilhéus são: 1- esperança de vida ao nascer: 66,128 anos; 2- taxa
de alfabetização de adultos: 0,794; 3- taxa bruta de freqüência escolar: 0,796; 4- renda per capita: R$
170,219; 5- índice de longevidade: 0, 685; 6- índice de educação: 0,795; 7- índice de renda: 0,630.
49
Teria sido interessante fazer um levantamento socioeconômico dos integrantes dos blocos, tal qual Agier
(2000) realizou em sua pesquisa sobre o Ilê Aiyê, bloco afro de Salvador (:93-95 e tabelas em anexo – pp.
237-241). No entanto, isso não foi possível devido a três fatores: (i) embora o Ilê seja um dos maiores blocos
de Salvador, a pesquisa de Agier concentrou-se apenas nele, diferente desta que trabalhou com treze grupos
em Ilhéus; (ii) a estrutura dos blocos afro de Ilhéus é bastante distinta daquela dos blocos de Salvador e a não
existência de um cadastro de filiados – fonte utilizada por Agier – é uma das diferenças; (iii) um
levantamento específico das comunidades abrangidas pelos blocos afro também teria sido importante, mas
demandaria recursos financeiros e humanos não disponíveis durante a pesquisa.
50
Campos (1937:474) informa que em 1934 havia 2.000 habitantes em todo o Alto da Conquista.
51
Ver como Anexo 2 o mapa de evolução da expansão populacional urbana de Ilhéus, que mostra com
clareza o quão este é um processo recente e intenso. A ocupação populacional dos Carilos, subregião do
bairro da Conquista onde se localiza o Dilazenze, teria ocorrido entre os anos 70 e 80. As invasões do
manguezal que formam bairros como o Teotônio Vilela são ainda mais recentes, já, provavelmente, fruto da
crise do cacau nos anos 80.
137
Ilhéus tinha dezessete mil domicílios nessa situação 52. Este número corresponde a 31% dos
estrutura dos domicílios de Ilhéus também não são bons 53. Em relação ao abastecimento
das residências urbanas por rede de água, a cidade é uma das duzentas que se encontram
abaixo da média do Estado, ocupando o 69o lugar entre estas, com 84,7% dos domicílios
Ilhéus ocupa a 71a posição do Estado, entre os 118 municípios que se encontram acima da
média, abastecendo 71,2% das residências urbanas. O IBGE informa também que 17,7%
dos domicílios ilheenses não têm banheiro nem sanitário e que, nesse quesito, há 55
Ilhéus ocupa a 29a posição entre os municípios abaixo da média da Bahia, atendendo a
1991 e de 2000, mas ele ainda é muito alto. Em 1991, a taxa de analfabetismo era de
Cor e território
Embora não haja dados que desagreguem os números acima em função de “raça”
ou “cor”, é legítimo supor que os problemas sociais que eles refletem atinjam em cheio a
52
Pesquisa de Informações Básicas Municipais, IBGE 1999.
53
Os dados que se seguem foram todos obtidos no Censo Demográfico 2000 (IBGE 2000).
138
população negra55, seja porque os índices nacionais – estes sim desagregados – mostrem
esta mesma relação56, seja porque a simples observação a olho nu dos bairros situados na
periferia de Ilhéus permita perceber que eles são ocupados quase que totalmente por essa
neles. O bairro da Conquista, onde estão situados atualmente quatro blocos afro, é um bom
exemplo disso pois, poder-se-ia, no mínimo, estabelecer para este bairro a mesma
para o município, ou seja, é possível afirmar que, pelo menos, 85% dos seus moradores são
bairro – que é muito grande e uma estimativa razoável é de que ele abrigue 10% da
mais representativo investimento de pesquisa sobre o tema das relações raciais no país, o
conclusões dos pesquisadores do projeto UNESCO garantiram, de certa forma, que o país
defendiam, com mais ou menos veemência, que o racismo no Brasil é mais social do que
54
Tabela “Classificação dos municípios, segundo a taxa de analfabetismo da população residente de 10 anos
ou mais de idade, em relação à média do Estado, Bahia – 1991-2000” – Censos Demográficos 1991 e 2000 –
IBGE.
55
Doravante referir-me-ei assim à soma das pessoas que se declararam de “cor” ou “raça” “preta” ou
“parda”, já que no que tange aos índices sociais e econômicos, não há razão nem modo de distinguir esses
grupos.
56
A título de exemplo, vale a informação de que, de acordo com a “Síntese de Indicadores Sociais 2002” do
IBGE, divulgada no dia 12/06/03, a diferença de rendimentos entre brancos e negros ou pardos no Brasil é de
50%. Os dados informam também que o 1% mais rico da população é formado por 88% de brancos e que os
10% mais pobres são constituídos por 68% de negros ou pardos (Jornal do Brasil, 13/06/03).
139
majoritariamente por uma população negra e se ele apresenta sérios problemas sociais,
entre essas proposições uma relação causal; elas admitem apenas uma relação conectiva,
população negra é predominante neste lugar não parece nenhum absurdo, pelo menos de
acordo com uma espécie de senso comum compartilhado por alguns estudiosos do tema
população afro-descendente, tomando esses termos tal como eles são utilizados no âmbito
dessa visão. Essa situação seria fruto de uma dada ordem cultural. “Separar a análise
análise característicos dos pesquisadores do projeto UNESCO. Este raciocínio reflete ele
mesmo uma idéia de hierarquização racial que atribui uma ‘cultura’ a um grupo
minoritário em função de sua cor/raça sem estabelecer uma relação entre este grupo e o
fato de que ele só se encontra nessa condição – de minoria – como conseqüência do que
poderia ser visto também como ‘cultura’ do grupo dominante, nesse caso, o racismo.
atualmente uma das formas mais eficazes de manutenção da desigualdade social/racial por
57
Há uma terceira relação possível de ser encontrada, cuja formulação não se explicita como tese acadêmica,
mas é muito presente no senso comum: trata-se de pensar a condição de ser pobre como conseqüência da cor
da pele: ‘é negro, logo, é pobre’. Essa visão vem acompanhada de estereótipos raciais – e racistas,
evidentemente – que implicam ‘incapacidade’, ‘deficiência moral’ etc. da população negra. Um dos
corolários desse tipo de formulação é o de que ‘progredir’, ‘vencer na vida’, ‘ser alguém’ é uma questão de
‘vontade’ e ‘esforço’, qualidades que diferenciariam alguns da maioria.
140
parte de grupos majoritários. Malik (1996) mostra como a associação de uma ‘cultura’ a
grupos que podem ser definidos racial ou nacionalmente, permite e explica a manutenção
de desigualdades sociais sem que seja necessário o uso da politicamente incorreta teoria
racial, banida dos meios acadêmicos já nas primeiras décadas do século XX. A exaltação
social.
‘grupo minoritário’, ‘grupo dominante’, que serão melhor definidos adiante, não estão
sendo adotados como descrições quantitativas, obviamente. Tais noções passam pela
posição de um determinado grupo numa relação de poder assim como pelo tipo de
Dado que a palavra cultura abriga conceitos muito diferentes, torna-se necessário
precisar o sentido aqui empregado, que se refere a práticas e a determinadas formas de ver
e de viver o mundo que são, necessariamente, muito diversas daquelas da maioria 58. Desse
ponto de vista, cultura é algo que uma maioria atribui a minorias: ‘o negro’, ‘o índio’
‘mostram’, ‘perdem’, ‘resgatam’ sua ‘cultura’. Nesse caso, a ‘maioria’ só ‘tem cultura’,
58
Assim colocado, o conceito fica muito próximo da forma usualmente trabalhada pela Antropologia. E
talvez não haja mesmo diferença se concordarmos que o conhecimento antropológico é produzido pela
maioria – onde está situado o antropólogo – e atribuído a minorias, isto é, independente da concepção de
trabalho de campo ou de narrativa etnográfica que se tenha, é certo que o antropólogo diz o que os grupos
sociais fazem, pensam, vivem. Como diz Guattari (1996:18): “as sociedades primitivas descobrem que
“fazem cultura”; elas são informadas, por exemplo, de que fazem música, dança, atividades de culto, de
mitologia etc. E descobrem isso sobretudo no momento em que pessoas vêm lhes tomar a produção para
expô-la em museus ou vendê-la no mercado de arte ou para inseri-la nas teorias antropológicas científicas em
circulação”.
141
tomada nesse mesmo sentido, quando se trata ‘d’o brasileiro’, da ‘cultura nacional’59. Não
quero dizer que não seja legítima a apropriação por parte de grupos minoritários do termo
“cultura” entendido como uma forma singular de produção de subjetividade em sua luta
indicam graves problemas sociais e sua concentração em locais de maioria negra, é preciso
dizer que certamente o bairro da Conquista em Ilhéus não é um gueto no sentido que em
geral é atribuído aos locais de segregação racial nos Estados Unidos. Buscando evitar que
o pesquisador naturalize distinções estabelecidas pelo senso comum e/ou pelo grupo
majoritário e, pelas mais variadas razões, adotadas por quem é o alvo da distinção, a
No entanto, no presente estudo, a literatura que faz uso do conceito de gueto pode
viés unicamente econômico para dar-lhe também61 uma conotação racial: se há aí quatro
blocos afro porque a população que habita o bairro é majoritariamente negra, a situação
59
Sobre o uso, no Brasil, de símbolos relacionados às ‘culturas’ de minorias, “símbolos étnicos”, como
“símbolos nacionais”, ver o famoso artigo de Peter Fry (1977) e a reflexão de Goldman (2001:83), feita a
partir de Fry, de que a questão passa pelos “níveis segmentares considerados”.
60
Wacquant opõe o “gueto comunitário” dos anos seguintes ao pós-guerra ao “hipergueto”, característico dos
anos 90, que o autor resumidamente define como “uma nova formação sócio-espacial que conjuga a exclusão
de classe e de raça sob a pressão da retração do mercado ao abandono do Estado, levando assim a uma
‘desurbanização’ de grandes áreas do centro da cidade” (1998:214).
61
Não se trata de negar a relação entre a história da população negra no Brasil e sua atual situação
socioeconômica. Os dados apresentados sobre a população negra em Ilhéus e sua posição na economia
cacaueira tiveram esse propósito neste trabalho. Tomando novamente emprestada a argumentação de
Wacquant sobre o gueto americano, também penso que “é nesse espaço objetivo de posições e recursos
materiais e simbólicos que se radicam as estratégias empregadas pelos moradores do gueto para imaginar
quem eles são e quem podem ser” (1994:103).
142
econômica experimentada por essa população também deve ser pensada pelo mesmo
racial. Ele diz que “a ausência, no Brasil, de guetos raciais nitidamente delineados tem
levado com freqüência à idéia de que existe nos espaços urbanos uma segregação
residencial das classes sociais, mas não dos grupos raciais” (1996:240). Além do trabalho
cidades de Rio de Janeiro e São Paulo (1989)62, uma outra referência obrigatória sobre a
questão no Brasil é o estudo de Telles (1993). Ele mostra com dados estatísticos que no
Brasil há o que ele chama de “segregação residencial moderada por cor” que não pode ser
explicada só por questões econômicas pois, segundo este autor, ela ocorre entre membros
de uma mesma faixa de renda (:16), embora “o isolamento residencial dos brancos [seja] é
(:12).
estaria mais próximo, segundo a descrição de Wacquant, do outro local que ele utiliza para
62
A definição desta autora para “territórios negros” não passa simplesmente por um lugar de alta
concentração de população negra. A forma como Rolnik se refere às favelas como ‘território negro’ explicita
bem sua proposta: as favelas são “os espaços mais caracterizadamente negros da cidade” porque “para ali
afluiu uma mistura peculiar de histórias, um caminho singular que passou pela África, pela experiência da
senzala e pelo deslocamento e marginalização operados pela abolição e a República.” (1989:35). É a partir
dessa perspectiva, a ser melhor trabalhada em Encontros 4, que o conceito poderá ser aplicado aos blocos
afro.
63
A literatura sobre guetos raciais é vasta e os trabalhos estão remetidos, sobretudo, aos guetos negros
americanos, embora o conceito também seja trabalhado e, conseqüentemente, relativizado para dar
compreensão ao fenômeno de segregação espacial de imigrados que vem ocorrendo na Europa nas últimas
décadas – e a França tem sido um campo privilegiado para tal investigação. Tanto para guetos negros
americanos quanto para bairros de imigrados na França, ver, entre outros, Gutwirth 1987; Peralva 1995;
Pétonnet 1982 e 1986; Taguieff 1987; Wacquant 1992, 1994 e 1995; Wilkinson 1992.
143
O próprio autor ressalta que, dessa perspectiva, as cités parisienses não seriam guetos – não
negativos” (:80). Mas é a estigmatização o que afeta todos esses lugares. Ainda segundo
Wacquant, “o estigma é a característica mais saliente da experiência vivida por aqueles que
se encontram encurralados nestas áreas” (:68). E ainda que não seja bem esse o caso da
questão racial salta aos olhos. Rolnik (1989) mostra como, no Brasil, a estigmatização
sempre acompanhou os “territórios negros”, fossem eles a senzala, o cortiço ou favela, para
Desde minha primeira visita a Ilhéus, ainda em 1997, eu já era alertada pelos
Conquista por ser um bairro “violento”. Em 2000 e 2001, alguns eventos envolvendo
situações seguidos de morte, passaram a fazer parte da ‘rotina’ das pessoas por algum
tempo. Eles não eram diários, mas eram entendidos dessa forma pelas pessoas que, ao
144
menos idealmente, diziam mudar seus hábitos em função disso: evitavam ficar até mais
tarde nas calçadas conversando, evitavam deixar as crianças brincando na rua à noite,
evitavam passar por locais ditos mais perigosos... Assim, tanto na Conquista quanto no
gueto americano estudado por Wacquant (1994), a violência é cometida por moradores
modificou as regras do confronto masculino nas ruas, de forma que fornecem combustível
Antes desses eventos, a subregião do Dilazenze não era listada entre as mais
violentas do bairro e, quando algum furto ou assalto ocorria lá, era dito ser provocado por
rapazes de outras subregiões consideradas mais pobres. Mas já em 2000 e, ainda mais
fortemente em 2001, a Av. Brasil, endereço do grupo, passou a ser um local a ser evitado
por entregadores de bebida, de pizza e de gás, além de taxistas e outros. Durante um certo
recusavam a dar, eram assaltados. Eu mesma passei a ter um horário para ir embora pois,
“conhecidos” aceitavam fazer esse percurso e, obviamente, valorizavam ainda mais seu
Embora o bairro da Conquista não possa ser chamado de gueto, é possível percebê-
ocorre na Conquista, são característica do gueto: “[os moradores do lugar] lançam mão de
interior do conjunto como um todo que, com efeito, possui um significado apenas
9). Nesse mesmo movimento de diferenciação interna, as pessoas “exageram seu valor
moral como indivíduos (ou como membros da família)” (:75) e acabam por assumir o
discurso de fora que reforça o estigma do local. No caso do Dilazenze, eram comuns os
nas ruas da Conquista, até mesmo “em frente de nossas próprias casas”, diziam. Mas, ao
explicitamente racial, embora também não fosse qualificada de nenhuma outra forma – em
relação à ação da polícia, essa era, às vezes, justificada pelas atitudes de outros moradores
– no caso dos adolescentes e daqueles que os acobertavam: “É por causa desse tipo de
desprezo e a acusação de “querer ser o que não é”. Wacquant coloca que no caso do gueto
negro americano, quem tenta “avançar na estrutura de classes” e sair do gueto é acusado de
“querer tornar-se branco” (:77). Na Conquista, dizer que uma pessoa é um “um negro
metido a besta” tem o mesmo significado e diz respeito a alguém que quer distanciar-se de
“sua origem”. Referindo-se a um conhecido que se destaca na política local, uma das
pessoas do grupo disse que “ele sempre se vestiu diferente, (...) sempre trabalhou com a
elite, sempre se comportou como tal, embora sua família sempre tenha sido pobre,
moradora da Conquista...”.
que o grupo, assim como o terreiro ao qual ele está diretamente vinculado, tem uma
relação para fora do bairro e sua sobrevivência enquanto grupo depende dela –
que pode que este não tem nenhuma relação com os elementos que considera serem parte
146
Dois dos adolescentes responsáveis por aquele momento de violência dos anos de 2000 e
2001 eram filhos da mestre de bateria mirim e um deles já havia sido assistente do mestre
de bateria principal. Tendo se afastado do grupo por conta própria, numa tentativa de
mais intensa, era notória a pequena quantidade de pessoas assistindo às festas do terreiro;
quanto ao grupo, seu presidente pensava que era melhor não promover nada, “pois
render recursos para o grupo assim como para quem o administrasse, permanecia fechado.
É claro que havia outros motivos para isso, mas naquele momento, o motivo mais
fortemente alegado era o perigo que o funcionamento do bar poderia representar para os
moradores, por ser um local de aglutinação de pessoas, além da expectativa de que haveria
pouco movimento. Esta também é uma característica comum ao gueto, como diz
dúvida, não é um problema que atinge apenas o Dilazenze. É possível afirmar que todos os
blocos afro da cidade sofrem com a violência local e com o estigma atribuído a seus
bairros. E o mesmo ocorria com o Olodum, um dos mais famosos blocos afro do país e
64
Este é um discurso importante para a própria constituição do bloco afro em sua relação com a comunidade
e será melhor trabalhado adiante, em Encontros 5.
147
a cessão de cestas básicas por parte do governo municipal ou de “ajuda” de igrejas e/ou
outras organizações. Na Conquista, uma vez por semana, à noite, a igreja católica do bairro
Os adultos da família dizem que não são eles nem seus vizinhos mais próximos que fazem
uso dessa ajuda, mas conhecem “muita gente que precisa mesmo que mora ali perto”66.
saírem do gueto devido à falta de investimento do Estado em moradias populares fora dele
habitação voltadas para a população de renda mais baixa, o que faz com que as pessoas
tenham de construir suas casas nos terrenos da própria família (em geral, constróem-se
que o gueto é o produto de determinadas ações políticas que envolvem raça, classe e
espaço urbano (:102), ele quer ressaltar que o “isolamento [racial] (...) não é uma expressão
65
É muito comum em todo o país, especialmente em regiões de maior desemprego, que um grande número
de pessoas dependa da única renda “certa” mensal que é a aposentadoria ou a pensão de um ou mais
membros da família.
66
Mas não se pode negar que a distribuição da sopa consiste num ‘programa’ para as crianças da família,
pois nos dias marcados para a distribuição, as crianças esperam com ansiedade o momento de pegar a sopa e
tomam-na com um apetite que, dizem seus pais, não costumam ter para “a comida de casa”.
148
gueto, mas pensá-lo como se fosse uma ‘opção’, retira de cena o processo histórico que o
constituiu, naturalizando-o:
negra constitui um ‘território negro’, segundo Rolnik (1989)67 – entendido enquanto auto-
transformar num instrumento de luta e de mobilização política. É claro que para isso
acontecer é necessário que esse local tenha o estigma racial mediando sua relação com um
culturais no fim dos anos 70, como foi visto no capítulo anterior. A fim de dar
defende que os blocos afro e afoxés são “espaços sociais negros”, ou seja, instituições e
espaços marcados mesmo fisicamente que seriam percebidos como locais de refúgio pela
população negra, onde é “bom assumir a negritude”, onde é possível sentir-se respeitado
positivada do ponto de vista da luta contra o racismo. Para Agier, a constituição desses
“espaços urbanos próprios, reapropriados ou liderados por negros” (:109) são uma forma
67
Ver nota 61deste trabalho.
68
O tema dos blocos afro como ‘espaços sociais negros’ será retomado em Encontros 4.
149
cités parisienses ajudaram a pensar as condições de vida da população residente dos bairros
periféricos de Ilhéus em relação com o fato da maioria dessa população ser negra, tomando
a Conquista como um caso privilegiado, sem que fosse preciso pensar esses bairros como
guetos. Da mesma forma, tomando emprestada a Agier a idéia de atuação dos blocos afro a
partir de uma “perspectiva de gueto”, é possível pensar desse ponto de vista o desejo dos
idéia fixa, presente durante todo o tempo – os grupos assumem que fazem parte e que estão
situados em zonas segregadas da cidade, onde existe uma dimensão racial fortemente
atividades realizadas pelos blocos afro em suas sedes – ou na rua da sede ou, nos casos dos
blocos que não possuem sede, na casa do presidente e/ou fundador (que em geral é a
referência do bloco e seu endereço oficial) – são justificadas pela necessidade de dar
69
Agier identifica na Bahia (em Salvador) um tipo de racismo que “não tem uma forma de
exclusão/segregação, mas uma maneira, difusa e inconfessada, de integração e dominação” (1992:62).
150
opções de lazer à população. Um argumento bastante utilizado pelos dirigentes dos grupos
segregação espacial, embora não tenham usado tais termos, como o maior problema da
população negra em Ilhéus. É claro que não há nenhuma proibição real que impeça as
pessoas de freqüentar este ou aquele lugar, mas há “o receio de que você não seja bem
visto nesses lugares. Você não vai para evitar um problema maior, um constrangimento”,
preponderante, mas ele não justifica tudo: pode-se gastar tanto dinheiro num bar “perto de
casa” quanto se gastaria num bar no Centro, mas o primeiro é quase sempre preferível ao
segundo.
afro devem ser realizados na Conquista para que as comunidades dos grupos compareçam,
costumam dizer os dirigentes dos blocos. Por outro lado, esta mesma percepção leva ao
argumento oposto: de que os shows devem ser feitos no Centro para que as pessoas das
quando estão falando da população negra – entendam que a cidade também lhes “pertence”
e para que “elas possam se sentir melhor em sua própria cidade”. Essas visões não variam
de grupo para grupo, nem mesmo de dirigentes para dirigentes dentro de um mesmo grupo,
Afro, vinculada à Igreja Católica, e com o “apoio” do governo municipal, ‘mediado’ pelo
secretário de Esportes, ambos também, nesta época, representantes de grupos afro. Numa
das reuniões de preparação para o dia 20 de Novembro, dia dedicado a Zumbi dos
Palmares e é quando ocorre o evento mais importante da Semana, um longo tempo foi
destinado à discussão de onde deveria ser realizado o show dos blocos afro e a exposição
iriam, mas as atividades teriam maior visibilidade, o que seria bom para o fortalecimento
do “movimento afro-cultural”; se fosse na Conquista, “por ser o bairro com maior número
blocos, seria possível aglutinar muito mais gente para assistir ao espetáculo, porém, a
repercussão na cidade seria pequena. Tanto num caso quanto no outro, os argumentos
negra de Ilhéus: se o show fosse no Centro, o evento poderia ter repercussão na TV e nos
espectadores, seria um evento de lazer para uma população que quase não o tem... a
população negra de Ilhéus se sentiria prestigiada. A conclusão foi de que o evento deveria
70
É importante observar que o fator distância não seria um impedimento para o deslocamento dos moradores
152
Pastoral Afro, tiveram uma participação bem mais efetiva na organização da Semana da
de uma missa em estilo afro numa igreja situada no bairro da Conquista, próxima à quadra
do Dilazenze, em função dos vários blocos afro sediados neste bairro e de seus membros.
O presidente do Dilazenze, que atuava como representante dos blocos, argumentou que
questionada. Primeiramente pelo secretário, que preferia que as palestras que ele estava
sugerindo com pessoas famosas e que atrairiam, segundo ele, um bom público
tem capacidade para mil lugares. Argumentou que era preciso “pensar grande”, que as
pessoas dos blocos pareciam estar “com medo quanto à sua capacidade de colocar muita
gente no Centro de Convenções”. Para contrapor-se a ele, o representante dos blocos afro
retomou uma colocação do padre a respeito da dificuldade das pessoas de “assumirem sua
negritude”, justificando que embora a população negra de Ilhéus fosse muito grande, isso
não significava que todas as pessoas “tivessem vontade de ouvir alguém falar sobre
da Conquista para a Praça da Catedral: da Praça da Conquista, onde se costuma realizar os shows, à Praça da
Catedral não se leva mais de dez minutos a pé.
153
sinais de apoio à idéia – sorriam e balançavam a cabeça em sentido vertical. Talvez porque
não quisessem discordar diretamente do padre, não chegaram a argumentar nada. Quando o
assunto foi encerrado com a decisão final de realizar todos os eventos na Conquista, uma
das mulheres disse, com um ar de decepção e ainda como se fosse uma última tentativa de
argumentação, que todas as atividades deveriam ocorrer “bem cedo [no início da noite]
para que os eventos não fossem realizados no bairro. Seu comentário, obviamente, é
bloco, o espaço/a comunidade e a questão racial – ressaltando que do meu ponto de vista
nenhuma relação estabelecida entre esses três ou quatro termos é óbvia e imanente –, os
grupos afro podem ser considerados, então, “espaços sociais negros”, como sugere Agier
(1992:64). Porém, como já foi alertado antes, nem sempre a questão racial está colocada e
os grupos afro podem ser apenas ‘espaços sociais’, estabelecendo com a comunidade uma
relação que passa pelo sentimento de pertencimento local, do tipo ‘tal bloco é de tal bairro’
ou ‘de tal comunidade’. Essa conexão pode ser evocada, por exemplo, durante o desfile no
localização na cidade. Iniciar o desfile nas ruas do bairro, como fazem o Dilazenze, o Miny
Kongo e o Rastafiry, por exemplo, ou caminhar por elas depois do resultado do carnaval
(quando se é campeão, é claro), como tem feito o Dilazenze nos últimos cinco anos, são
71
Associação do Resgate da Identidade e da Cultura Negra e Necessitados. Sobre esta entidade e sua relação
com os blocos afro, informações mais detalhadas serão apresentadas nos capítulos seguintes.
72
Apesar da decisão de realizar todas as atividades na Conquista, o secretário, por conta própria, organizou
uma palestra com um deputado federal num outro espaço, à qual compareceram cerca de dez pessoas, sendo
três dirigentes de blocos afro, dois representantes da Alufá-Gê, o padre era um deles, eu e um outro
pesquisador e três alunos da escola onde seria realizada a palestra. É claro que havia também assessores do
deputado e um vereador, além de funcionários da Assessoria de Imprensa do município para registrar o
evento. E é claro também que a palestra não aconteceu em função do pequeno público.
154
formas de interação com ‘a comunidade’. A relação do grupo afro com sua comunidade, do
‘comunitário’ tem muitas outras implicações, cada vez mais fortes e presentes no cotidiano
também nos conflitos entre gangues de bairros, o que já gerou, pelo menos, uma morte.
Quando uma gangue de um bairro está em conflito com uma gangue de um outro bairro, é
aconselhável que o bloco afro do primeiro não vá tocar no segundo, ou vice-versa, mesmo
que não haja componentes dos grupos envolvidos com as gangues. Há casos de grupos que
foram fazer apresentações em locais que lhe haviam sido proibidos e tiveram problemas;
recusaram a ir.
estatísticas, de ocupação do espaço urbano etc., o próximo também pensará sobre fluxos de
histórias, mas de histórias dos blocos afro, dos carnavais da cidade, dos personagens
Encontros 3
causaria impacto, que era realmente “um bloco original”, tal como propagandeava seu
primeiro cartaz de divulgação, o Ilê Aiyê cantou: “Que bloco é esse?/Eu quero saber/É o
mundo negro/Que viemos mostrar prá você”2. Quem conhece um pouco do movimento
negro na Bahia, seja pela literatura sobre o assunto ou empiricamente, já viu/ouviu esse
trecho algumas ou várias vezes. Ele está presente na maioria dos trabalhos sobre blocos
afro, ora como epígrafe, ora como citação ou até mesmo como título de algum capítulo ou
seção. Isso ocorre por dois motivos, ambos muito óbvios: primeiramente por ter sido a
primeira música, do primeiro bloco afro, sendo utilizada tanto quando há a intenção de
genealogia dos grupos, pois o Ilê Aiyê é o “ancestral”, o “pai” de todos os blocos; o
1
Música-tema do Grupo Cultural Dilazenze no desfile do carnaval em 2000, cujo tema foi “Mundo Negro Ilê
Aiyê”.
156
segundo motivo tem a ver com a própria letra da música, muito propícia para introduzir o
tema, pois, praticamente, transforma-o num ‘conceito’ ou em algo a ser explicado. A partir
da pergunta “que bloco é esse?”, seguem-se descrições e definições do que é um bloco afro
Salvador. E a experiência do Ilê Aiyê é sempre o ponto de partida, ainda que o objeto em
movimento em Ilhéus – quando surgiram os dois primeiros blocos afro da cidade – está
negro de Salvador. Assim, ao remontarem sua genealogia, os blocos afro de Ilhéus também
chegam à capital e ao Ilê Aiyê. Por outro lado, pelo menos em Ilhéus, a pergunta “que
bloco é esse?” continua pertinente. Quando, com o Ilê Aiyê, surgiu o que só depois veio a
ser chamado de “bloco afro”3, ele era algo realmente novo, mas ainda hoje, quase trinta
anos depois, o que vem a ser um bloco afro é tema de discussão e de propostas de
definição.
2
“Que bloco é esse?”, de Paulinho Camafeu.
3
O termo “bloco afro” foi “inventado” pela Bahiatursa, órgão de turismo do governo do Estado, no final dos
anos 70, quando já havia em Salvador outros blocos com as mesmas características e a empresa estatal
desejou diferenciá-los dos demais para fins de definição de recursos e de horários de desfile, transformando-
os em uma “categoria”.
157
cultural de Ilhéus. Para tanto, cada bloco será resumidamente apresentado, formando uma
espécie de ‘árvore genealógica’ dos grupos, porém, de baixo para cima, ou seja,
começando pelo último bloco afro surgido em Ilhéus, em 2000, e terminando nos
São dois os primeiros blocos afro de Ilhéus porque há uma divergência sobre a
natureza (bloco afro ou afoxé) daquele que seria o primeiro. A data de fundação do Miny
este último desfilou primeiro. Isso faz com que o aspecto cronológico não encerre a
questão e outras duas observações quanto à natureza dos grupos sejam consideradas: a
primeira refere-se ao fato de que o Miny Kongo foi fundado, mas não desfilou
imediatamente, assim, segundo este argumento, ele não teria existido como bloco afro
desde a sua fundação; a segunda diz respeito à forma como o Lê-guê Depá se apresentou:
seus ritmos, suas músicas, seus instrumentos seriam de afoxé, não de bloco afro, fazendo
do Miny Kongo o primeiro bloco de Ilhéus. Eis aí um exemplo de que a definição de bloco
afro ainda suscita calorosas discussões. O Miny Kongo e o Lê-guê Depá são o tema da
segunda seção.
dos blocos afro em Ilhéus ou mesmo as histórias que os mais novos contam sobre eles,
logo fica claro que vários fatores contribuíram concomitantemente para a sua emergência.
As experiências dos fundadores dos primeiros blocos no carnaval e sua relação com o
movimento negro de Salvador é um desses fatores e faz parte da própria história dos
grupos, contada na seção anterior. Por isso, dar uma noção do que era o carnaval ilheense
158
em seus “bons tempos” e de como ele chegou à atual configuração é o objetivo da terceira
seção.
Também constitui fator de influência sobre o movimento negro de Ilhéus a ida para
a cidade de pessoas que viveram o surgimento dos blocos na capital, reconhecidas como de
suma importância para a constituição do movimento. Nesse último item, sem dúvida, o
nome mais lembrado é o de Mário Gusmão, ator de teatro e de cinema, além de dançarino,
cuja importância para o movimento em Ilhéus é até relativizada, mas nunca é negada.
e devem ser registrados, como a relação da cidade com o continente africano através do
pessoas que viveram determinadas situações ou ouviram falar delas – que estão claramente
instante.
simplesmente “Conselho”, é composto por quinze grupos 4: doze blocos afro, um afoxé, um
4
Além dos treze grupos que se apresentaram nos desfiles de carnaval dos anos de 2002 e 2003, estão
incluídos entre os quinze o D’Logun, que não tem desfilado nos últimos anos, mas cujo representante é o
159
grupo de maculelê e uma “levada” 5 de um grupo de capoeira. Dos quinze grupos, treze
vêm participando com mais ou menos regularidade dos desfiles de carnaval e têm
constituído uma das principais atrações da cidade durante esse período. Entre eles, o mais
antigo é o grupo de maculelê, conhecido como “Pauzinhos”6, mas cujo nome é Embaixada
Gêge Africana e tem como fundação o ano de 1976. O mais recente é o bloco afro
determinado plano, isso é o que os identifica. Por outro lado, esses grupos são muito
diferentes. Pode-se dizer que os ‘Pauzinhos’ e o afoxé Filhos de Ogum são remanescentes
de uma outra época do carnaval ilheense, quando havia outros grupos de maculelê e muitos
outros afoxés, além de diversas escolas de samba. Às vezes, os Pauzinhos são convidados
igrejas. Já o afoxé e a ‘levada’, restringem-se ao carnaval, como lhes é próprio, pois esses
grupos não têm existência fora daquele momento. O afoxé Filhos de Ogum está constituído
formado por filhos e filhas-de-santo do Ilê Axé Loi-Loyá e pela comunidade do Alto do
Coqueiro, onde o terreiro está situado; já a “levada da capoeira”, como é chamada, tem por
muitos outros terreiros em Ilhéus e tantos outros grupos de capoeira, mas somente esse
atual presidente do Conselho (gestão 2001-2003), e o Força Negra, que participou pela última vez como
grupo na eleição para a atual diretoria do Conselho, em 2001, embora não desfile mais há muitos anos.
5
Levada nada mais é do que um bloco sem alegoria, sem tema. Os blocos afro quando saem “só de camisa”
também são chamados assim.
6
O apelido é explicativo: maculelê é um misto de dança e luta com bastões (ou facões). Em apresentações de
palco, alguns grupos utilizam facões que quando batidos um no outro provocam faíscas e fazem o espetáculo
ficar ainda mais bonito. Porém, no desfile de carnaval só bastões são utilizados.
160
características muito peculiares que os diferenciam entre si e coloca-os, mas apenas nesse
plano, em oposição aos blocos afro, que constituem a base do CEAC e o núcleo do que se
Os blocos afro, embora sejam grupos carnavalescos, isto é, seu propósito maior é o
desfile no carnaval, têm uma existência como entidade que se pretende permanente. Dizer
que um bloco “só aparece no carnaval” ou “só trabalha no carnaval” é uma acusação, em
geral feita por dirigentes de outros blocos ou por militantes do movimento negro. O
argumento é que um bloco afro “deveria realizar atividades o ano todo”. Além disso, como
1997 e os Pauzinhos só em 2001, e idealmente – já que na prática não é bem assim – são
etc. Somente sua existência nesses moldes permite que eles se constituam num
‘movimento’.
candomblé, Agier (1992a:109) diz que são três os princípios que os organizam e
blocos afro, estes se vêem, de acordo com Agier (1992b:70)7, e são vistos pela maioria dos
estudiosos do tema, conforme descrito no primeiro capítulo deste trabalho, na ponta final
de uma linha do tempo que começaria com o batuque como divertimento dos escravos,
passando pelos afoxés e pelos blocos de índio, até chegar ao Ilê Aiyê, o primeiro bloco
afro. Daí, todos os blocos traçam uma linha genealógica com este último e o nascimento
161
de cada novo grupo se dá por segmentação. Como diz Agier, para que um bloco seja
identificar-se como uma segmentação desse campo” (1992a:109), que é o que lhe
exposta na introdução deste trabalho –, Goldman (2001) deseja introduzir o uso da noção
de segmentaridade como uma aposta de que tal conceito pode dar mais inteligibilidade à
proposta é investigar a política stricto senso, isto é, “partidária e de Estado” (:58), do ponto
de vista do movimento negro da cidade. Para tanto, Goldman inicia seu artigo tomando
emprestado o modelo de análise de Agier (1992b) e mostra que ele pode ser aplicado em
Ilhéus: assim como em Salvador, os blocos afro ilheenses também se representam por
modelo genealógico e cada novo bloco é formado a partir de uma ruptura com um bloco
anteior, ou seja, por segmentação. Os primeiros blocos afro de Ilhéus deram origem, assim,
a duas linhas genealógicas. Goldman também observa que “as rupturas que dão origem aos
blocos são atribuídas a brigas entre seus componentes, a maior parte ligada a problemas
as disputas internas eram uma preocupação de Antônio Risério, que estava vendo “a
conversão das rixas em rachas”. Essas ‘rixas’ que provocavam ‘rachas’ podiam ter por
origem a rivalidade entre bairros ou disputas pessoais – “inclusive amorosas”, ele ressalta.
Mas, ao que parece, o tipo de racha que mais lhe preocupava era aquele provocado pelas
ganhando a nível nacional (:125)8. Em Ilhéus, embora não seja possível apontar nenhum
7
Embora façam referência ao mesmo tema e tenham muitos trechos em comum, esses artigos de Agier
(1992a e 1992b), um em francês e outro em português, não constituem exatamente traduções.
8
Ribard (1999:337) também chama a atenção para as rivalidades internas que geram novas entidades.
162
tipo de regularidade, quem rompe, por que rompe e a origem, isto é, de que grupo o
alianças. Além disso, a posição de “dono” de bloco, que gera ‘poder e prestígio social’ é
As duas linhas genealógicas originadas nos primeiros blocos afro de Ilhéus deram
origem a cerca de quinze grupos ao longo de quase vinte anos de movimento10. E essa
expansão do movimento é o “lado positivo” das rupturas que levam à segmentação, como
disse um dos fundadores do Miny Kongo: “foi bom que houvesse dissidências porque
O Grupo Guerreiros de Zulu é o bloco afro mais recente e nele se cruzaram as duas
linhas genealógicas. Como banda afro, o grupo nasceu em 1998 com o nome de “Babilônia
Jah”, mas até o carnaval de 2000, seus fundadores ainda desfilavam no Zambi Axé e no
Miny Kongo, de onde saíram para fundar o Guerreiros de Zulu como bloco afro em abril
de 2000. O grupo possui uma pequena sede, na verdade uma sala, no Alto Soledade,
localizado entre os bairros do Malhado e de São Miguel. Seus ensaios são realizados numa
praça, que é o ponto mais alto do morro, ou na Av. Ubaitaba, nos ensaios que antecedem o
carnaval e reúnem um maior número de pessoas. O grupo conta ainda com um salão cedido
O Grupo Zambi Axé foi fundado em 1994, como grupo de dança. Seu primeiro
desfile foi em 1997. Na ocasião, assim como outros grupos, o Zambi Axé saiu com uma
9
Mas essas reflexões estão reservadas para o Encontros 5.
10
Em algumas poucas situações, dois ou três outros grupos são lembrados. Alguns constituíram-se apenas
como grupo de dança, como o Raça Negra, também do Alto da Conquista. Outros tiveram uma vida muito
curta. Entre eles está o Obatalá, de Sambaituba, distrito rural de Ilhéus, que foi o único bloco afro formado
fora do distrito sede que chegou a desfilar na Avenida por dois ou três anos no início da década de 90.
163
saiu melhor caracterizado como bloco afro. O Zambi Axé foi formado por dissidentes d’Os
sede foi no bairro do CSU, na Rua do Cano; depois passou a ser no Basílio (na casa de um
Ilhéus. Embora não possua uma sede própria, conta com o apoio de um terreiro de
umbanda para guardar instrumentos e utilizar como sede. Filhos carnais da mãe-de-santo
participam ativamente do grupo. Seus ensaios são num largo em frente ao terreiro.
Outro grupo nascido como dissidência d’Os Gangas é a Associação Afro Cultural e
componente dos Gangas. Outros fundadores d’Os Malês haviam desfilado no Lê-guê
Depá, que já não desfilava há quatro anos. O grupo Os Malês não possui sede própria. Sua
O Grupo ‘Os Gangas’ foi fundado em 1986 como uma dissidência do Lê-guê Depá.
Sua sede era no Alto do Basílio. Desde sua fundação até 1997, quando ainda se fazia
presente como entidade embora não tenha desfilado naquele ano, o bloco desfilou de cinco
a seis vezes. Atualmente não existe mais. Seu último presidente converteu-se ao
protestantismo e hoje é vereador. Assim, por essa linha, chega-se ao Lê-guê Depá, cuja
Miny Kongo. Porém, antes dele, passo para o outro bloco mais recente, o Leões do
Reggae, que também descende diretamente do Miny Kongo, pois seus fundadores também
desfilaram nele, embora tenham passado por uma banda afro, que não se constituiu como
O Grupo Leões do Reggae foi fundado em 1997. Inicialmente, atuou somente como
banda afro. Seu primeiro desfile no carnaval ocorreu em 1999, junto com o Raízes Negras.
164
O grupo não desfilou nos dois anos seguintes e seu primeiro desfile individual foi em 2002.
A casa de seu presidente, que funciona como sua sede, está situada na Rua Santarém, entre
deixaram este último em 1990. O grupo não possui sede própria, mas seus ensaios
acontecem numa das regiões mais turísticas da cidade, a Praia do Pontal, ao lado do Morro
de Pernambuco, ou na Av. Lomanto Júnior, que beira a Baía de Ilhéus. Seus componentes,
quase todos jovens, são moradores do bairro do Pontal, considerado um bairro de classe
média, e de Nova Brasília, uma espécie de sub-bairro do Pontal, cuja população é de baixa
renda. O grupo desfila apenas com percussionistas e poucos dançarinos, como se fosse
uma grande banda afro na Avenida. Seu estilo lembra menos um bloco afro do que a
Timbalada, grupo de Carlinhos Brown em Salvador que também desfila como bloco afro,
antigos do Oiteiro de São Sebastião – seu pai era o principal responsável pela organização
Sindicato dos Estivadores. Os irmãos Barreto desfilavam no Miny Kongo e deixaram este
fossem moradores do Oiteiro, o grupo ensaiava e saía do Pontal, lugar onde hoje ensaia o
componentes antigos não desfilam mais e sua sede é no bairro Teotônio Vilela, uma antiga
invasão, localizada na periferia da cidade, que é outro dos bairros mais populosos e mais
vocalista do Dilazenze.
165
O Grupo D’Logun seria considerado não mais existente, não fosse pelo fato de que
seu presidente tornou-se, em 2001, o presidente do CEAC. Havia alguns anos que o grupo
não desfilava e, mesmo seu presidente tendo assumido a presidência do Conselho, isso não
voltou a acontecer. O grupo foi fundado em 1992 e é o mais novo dos blocos afro situados
no Alto da Conquista, mais exatamente numa sub-região conhecida como Alto Formoso.
Seus fundadores saíram do Raízes Negras, mas em mais de uma ocasião esses blocos se
Também está situado na Conquista. Seus ensaios acontecem na Praça de uma área
Reggae.
1982, embora seu primeiro desfile só tenha sido realizado em 1987. Durante todo esse
período, seus fundadores continuaram a desfilar no Miny Kongo. O grupo possui uma
pequena sala como sede no térreo da casa de seu presidente. Seus ensaios acontecem num
mirante próximo à Praça Santa Rita, a principal do bairro da Conquista. Dos blocos ainda
Novamente chega-se ao Miny Kongo, mas ainda é preciso falar de outros blocos
antes dele.
cidade. Alguns outros possuem sedes próprias, mas a do Dilazenze é a única que é uma
quadra, o que permite que os ensaios e vários eventos sejam realizados aí. Foi fundado em
1986 por ex-componentes do Axé Odara. Também está situado na Conquista, numa sub-
região conhecida como “Carilos”, uma referência ao dono da fazenda ali situada há muitos
166
anos atrás, avô de Luiz Carilo, fundador do Lê-gue Depá. Alguns de seus componentes
Rodrigues foi presidente do CEACI no início dos anos 90. Marinho Rodrigues, presidente
CEAC quando este foi reativado como uma nova entidade (gestão 1997-2000)11. Nei
três são irmãos e isso revela mais uma característica do grupo: há uma rede familiar
extensa responsável por sua sustentação. O Dilazenze foi o campeão consecutivo dos
O Grupo Cultural Axé Odara foi fundado por ex-integrantes e, mais do que isso,
por fundadores do Miny Kongo, em 1984. Eles formavam a base do grupo de dança deste
último. Sua saída provocou um grande abalo na estrutura do Miny Kongo. Entre os
Ilhéus. Embora tenha se constituído como bloco afro, a proposta do Axé Odara estava
muito mais direcionada para sua formação como grupo de dança e de teatro, cujos
espetáculos tinham um caráter mais politizado. Segundo seu estatuto, sua sede ficava na
Av. Princesa Isabel, mas seus ensaios aconteciam no Circo Folias de Gabriela, criado para
a realização de shows populares, na Av. Soares Lopes. O grupo tinha um número reduzido
de componentes e não tinha uma “comunidade”, uma ‘base territorial’. Ainda assim,
chegou a ser campeão do carnaval ilheense. Desde o início da década de 90, ele atua na
11
Na verdade, Marinho Rodrigues já havia assumido a presidência da entidade alguns anos antes, quando o
antigo presidente, Mirinho, se afastou. Contudo, os anos de 1995 e 1996 foram um momento de
desmobilização do movimento, tanto que foi preciso fundar uma nova entidade em 1997, até porque todos os
documentos da anterior foram perdidos numa enchente na casa de Mirinho. A cronologia da organização dos
blocos afro em Ilhéus será detalhada no próximo capítulo.
167
cidade de Porto Seguro como grupo de dança e é dirigido por um de seus fundadores, mas
O Grupo Força Negra também foi fundado por ex-integrantes do Miny Kongo.
Quando houve a saída daqueles que fundaram o Axé Odara, foram esses integrantes que
Católica, onde costumava se reunir até uma divergência com o bispo, desde então passando
a utilizar o Sindicato dos Bancários até o início da década de 90, quando deixou de existir.
O MEPI possuía uma espécie de núcleo voltado para a “questão negra” e um grupo de
“dança de clube”, no estilo black soul, que também chegou a Ilhéus. Em 1980, alguns
militantes foram convidados para participar da fundação do Miny Kongo e logo passaram a
compor também seu grupo de dança afro. Em 1988, embora ainda fizessem parte do Miny
foi dado o nome de Força Negra. Eles saíram do grupo de dança do Miny Kongo, mas não
do bloco. Apenas dois anos depois de formado, o Força Negra passou a desfilar no
Conquista. O grupo teve uma vida relativamente curta: uma de suas lideranças, Alzidério,
que também teve muito destaque na história do movimento em Ilhéus (participou do Miny
Kongo e foi fundador do Axé Odara), faleceu. Além disso, seu presidente, liderança do
rede familiar era, em grande medida, responsável pela sustentação do grupo. Em 1997,
desde alguns anos inativo, houve uma tentativa de reativar o Força Negra por parte de
do grupo não foi bem sucedida, pois nunca conseguiram desfilar. A última vez que seus
representantes se posicionaram como entidade foi nas últimas eleições para o CEAC, em
2001, em função de uma decisão dos organizadores de que votariam aqueles dirigentes que
Com o Força Negra conclui-se a rápida apresentação de cada um dos blocos afro
em Ilhéus gerados pelos dois primeiros em duas linhas genealógicas, que se iniciam
O início
Era o ano de 1981 em Salvador. Antônio Risério publicava Carnaval Ijexá: notas
sobre afoxés e blocos do novo carnaval afrobaiano, texto sempre citado pelos trabalhos
sobre blocos afro em Salvador como a primeira reflexão sobre o ‘novo movimento’, sobre
meados da década de 70. Isso significa que no início da década de 80, o movimento dos
blocos afro já tinha tomado corpo, já era conhecido e reconhecido, se ainda não no Brasil –
o que vai acontecer com força com a explosão do Olodum, em 1987 –, pelo menos na
Bahia.
Era o ano de 1980 em Ilhéus. Como diz Luiz Carilo, personagem importante do
movimento. Aí, no Oiteiro de São Sebastião, apareceu um movimento afro e eles fundaram
São Sebastião: estava sendo fundado o Lê-guê Depá, sendo Carilo um de seus fundadores.
169
O Lê-guê Depá desfilou no carnaval desse ano; o Miny Kongo só saiu em 1982. Essa
diferença de datas sobre fundação e desfile é um dos ingredientes da polêmica que ainda
hoje alimenta discussões em Ilhéus sobre qual foi o primeiro bloco afro da cidade. Por
enquanto essa discussão ficará de lado para ser retomada adiante. Agora, o que importa
Ele não explicita que movimento é esse, mas percebe-se que se trata do mesmo movimento
chegando13.
O Lê-guê Depá
Luiz Carilo é dançarino, ator, produtor artístico, professor. Passou vários anos de
sua juventude em Salvador, participando ativamente da vida cultural da cidade, pela qual,
como ele conta, era encantado: adorava o som do berimbau dos grupos de capoeira nas
Largo... Chegou a ingressar na Faculdade de Dança em 1974, mas não terminou o curso.
Trabalhou com artistas que “foram presos pelo DOPS”. Diz que “vivenciei[ou] a
interesse por candomblé e por teatro, aproximou-se de Ilza Rodrigues, ou D. Ilza, como
12
Ver Anexo 3 com o quadro das linhas genealógicas traçadas entre os grupos e Anexo 4 com o mapa de
Ilhéus e a localização da área de atuação dos blocos, tomando como referência a numeração que consta em
Anexo 3.
13
Conforme já anunciado, ver-se-á nas próximas páginas que há algumas divergências sobre o início dos
blocos afro em Ilhéus, contudo, a informação de Barbosa (1994:50) reproduzida por Cambria (2002:45) de
que os blocos surgiram após ou a partir do espetáculo “África Presente”, de Mário Gusmão, é totalmente
equivocada. Em primeiro lugar, como já registrado, os primeiros blocos são de 1980 e 1981, enquanto o
espetáculo é de 1985, cuja estréia ocorre dias antes do primeiro carnaval do Axé Odara, grupo que encena o
espetáculo, fundado no ano anterior. E em segundo lugar, todos os blocos posteriores ao espetáculo foram
fundados por ex-integrantes dos blocos anteriormente existentes.
14
Pai Pedro foi um dos mais conhecidos pais-de-santo de Ilhéus. Faleceu no início do ano de 2003.
170
doravante será chamada aqui. D. Ilza é a mãe-de-santo do Terreiro Euá Tombency Neto,
localizado nos “Carilos”. O terreno onde hoje está situado o terreiro já foi bem maior. Era a
chácara de D. Roxa, mãe carnal de Ilza, sua antecessora no cargo maior do Tombency e
anteriormente, parte da fazenda do avô de Luiz Carilo, a quem D. Roxa e Sr. Valentim, seu
esposo, conheceram.
grupo de teatro e de dança com Pedro Matos, ator, produtor, diretor de teatro. No carnaval,
saía em todos os blocos, afoxés e escolas de samba que podia. Como ela conta, “nem vinha
em casa para trocar de roupa para não perder tempo. Levava a roupa do outro bloco e
trocava lá na Avenida mesmo”. Seu encontro com Carilo e com Pedro Matos produziu
vários espetáculos, nos mais diferentes eventos da cidade. Ela levava junto seus filhos mais
velhos, que também participavam ativamente, tocando e dançando. Com Luiz Carilo, ela
outubro de 1980. Era uma associação de artistas de dança, teatro e música. Algum tempo
D. Ilza via bloco afro na TV, mas afoxés, danças e ritmos do candomblé, ela
conhecia muito bem. Carilo vira e vivera o burburinho do movimento afro em Salvador
bem em seu início, embora não tivesse desfilado em nenhum bloco. Nas entrevistas que me
concederam, cada um deles disse que foi do outro a idéia de formar um bloco afro em
Ilhéus. Gilmar, um dos filhos de D. Ilza, contou que a idéia nasceu “numa mesa de bar”,
em um dos vários encontros que o grupo de teatro e dança fazia nos fins-de-semana, em
bairros diferentes, para “fazer samba de roda e de viola para o pessoal ficar mais
171
conseqüente fundação do Miny Kongo já haviam ocorrido. Carilo, D. Ilza, seus filhos e
outros decidiram que fariam a Lavagem da Escadaria da Catedral já como bloco e, se desse
certo, desfilariam no carnaval. Era, então, janeiro de 1981, ano do “Centenário de Ilhéus”
(comemoração de sua elevação da categoria de vila para cidade) e uma série de eventos
Terreiro Tombency 16. Lê-guê Depá é o nome de “uma qualidade de Xangô”, é um “Xangô
menino”. Assim, as cores escolhidas para o bloco foram vermelho e branco, as cores do
orixá homenageado.
desfile. O tema escolhido foi uma homenagem a Oxalá. Além de Oxalá, representado pelo
próprio Carilo, três outros orixás foram homenageados. Eram os “destaques” do bloco,
“luxuosamente vestidos”. O bloco foi dividido em alas e desfilou com cerca de 150
pessoas. Havia a ala dos destaques, a ala das baianas e outra de pessoas vestidas de abadá,
de pedaços de tecido trançados no corpo e até mesmo “lençóis brancos amarrados”, como
conta D. Ilza. Carilo esclarece algo que D. Ilza também já disse várias vezes: as pessoas de
santo (diretamente ligadas ao candomblé) “não saíam” – ou “não saem”, ou “não deveriam
sair” – vestidas com roupas de santo para “não confundir as coisas”, para “mostrar
15
Tal como foi destacado em Encontros 1, mesas e bares constituem espaços privilegiados para encontros e
novas composições.
172
respeito”. Assim, vestiam-se de orixás ou de baianas somente pessoas que não tinham
cargos no candomblé ou que não “viravam no santo”, ou seja, que não entravam em
possessão.
Segundo Carilo, a divisão em alas já fazia parte de sua preocupação em frisar que
se tratava de um bloco e não de um afoxé. E este será o principal argumento contra o título
reivindicado pelo Lê-guê Depá como o primeiro bloco afro de Ilhéus: dirão que ele era um
afoxé, não um bloco afro. Sobre isso, cabe observar que na matéria do dia 10 de março de
entre os nove afoxés que desfilariam naquele ano17. Em 1982, já contando com a presença
também do Miny Kongo, ambos são citados como “blocos afro” na programação do
carnaval divulgada pelo mesmo jornal, nos dias 20 e 21 de fevereiro. Neste ano, o Lê-guê
Em 1983, o Lê-guê Depá desfilou sem fantasias, sem tema, praticamente sem
principalmente pelos filhos de D. Ilza) e Carilo quanto ao ritmo que seria empregado, os
primeiros deixaram o bloco e foram para o Miny Kongo, então em seu segundo ano de
desfile. Embora tivesse conseguido novos instrumentos, Carilo entendia que era preciso
continuar com o ritmo ijexá, “próprio de afoxé”, como dizem ex-integrantes do Lê-guê
Depá, para “manter a tradição”, confirma o próprio Luiz Carilo. Além disso, não havia
recursos para trabalhar o bloco18. Com poucos integrantes, fantasias somente as de baianas
16
Xangô também é o padroeiro do Dilazenze, grupo afro que seria fundado anos depois por filhos mais
novos de D. Ilza.
17
A “Embaixada Gêge Africana” (os Pauzinhos) também está incluída como um afoxé na programação.
18
Era o primeiro ano do primeiro governo de Jabes Ribeiro. Não foi possível verificar o que a imprensa disse
na época porque o primeiro semestre de 1983 do jornal Diário da Tarde não está disponível no acervo do
Centro de Documentação da UESC, onde foi realizada a pesquisa com jornais. Porém, em fevereiro de 1984,
uma matéria ressalta que não houve competição de blocos no ano anterior, o que sugere que a prefeitura não
disponibilizou recursos para as entidades.
173
– que as pessoas tinham ou era possível conseguir – e poucos percussionistas, o bloco não
foi bem.
para lá, ou seja, ele deixou de ensaiar e de sair do Tombency, embora D. Ilza continuasse
Carilo conta que recebeu apoio também financeiro de comerciantes locais – e deu fôlego
ao Lê-guê Depá para desfilar por mais cinco anos, até 1988. O bloco foi campeão dos
carnavais de 1984 e 1985, com os temas “Revolução dos Malês” e “Iniciação de Iaô”,
respectivamente.
conhecimento sobre “folclore e costumes da região”, através das “pesquisas” que ele
realizava. O bloco não existia só pelo carnaval ou pelo teatro, mas “pelo conhecimento”.
O Miny Kongo
como fundador do Miny Kongo fez com que essas influências ficassem em segundo plano.
Há algumas opiniões divergentes, mas a ele é atribuída a fundação do grupo, assim como o
Branco, uma das escolas de samba mais famosas e lembradas de Ilhéus. Ele também
gostava muito de carnaval e conta que esteve em Salvador, observou os blocos afro e
174
pensou que seria bom “levar um movimento desse para Ilhéus porque lá não tem nada”.
Era o ano de 1980. E foi num passeio para Olivença, distrito hidromineral e turístico de
Ilhéus, enquanto ele apresentava as músicas e as “batidas” que aprendera em Salvador para
outras pessoas, que surgiu a proposta de fundar um bloco afro. A data oficial de fundação
Embora haja uma versão um pouco diferente para o nascimento do grupo, ela não é
incompatível com a de Atanagildo. Acredito que se trate de uma questão de dar prioridade
a este ou àquele momento de um mesmo processo. De acordo com essa outra versão, a
vontade de formar um bloco afro teria surgido no grupo de dança criado por Mário
Gusmão, na Academia Raiz, onde começou a dar aulas em 1981, ano de sua vinda de
Salvador para Ilhéus. Logo que chegou, Mário foi morar no Oiteiro e convidou algumas
pessoas do lugar para que fossem ter aulas de dança com ele, notadamente de dança afro,
na Academia Raiz. Eram cerca de dez pessoas que viriam a ser a base do grupo de dança
do Miny Kongo e, mais tarde, do Axé Odara, que Mário Gusmão também ajudou a fundar
e do qual foi diretor. Dado que a fundação formal do bloco aconteceu em 1980, mas não
foi possível desfilar em 1981, pode-se pensar que esta era uma idéia que existia, mas que
Gusmão, que teria dito a Veludo (também fundador do Miny Kongo) e a Atanagildo: “faça
mesmo, crie mesmo esse bloco” – e de sua experiência, que já participara no Ilê Aiyê e
vivera intensamente todo o início do movimento negro na capital. Dessa forma, ambas as
Atanagildo não fazia parte do grupo de dança e, além de ser liderança do grupo,
junto ao poder público. Mas não apenas isso: o bloco está registrado em cartório em seu
nome, prática comum também a outros blocos. Segundo conta, o nome do grupo é uma
homenagem a Ogum, seu orixá. Miny Kongo seria, então, segundo ele, uma qualidade de
Ogum. Além disso, o nome seria bom porque criaria uma relação com a África, dando a
zuela (cantiga) dedicada a Oxóssi na qual aparecem os termos “Banda Miny Kongo”,
forma como o bloco era chamado logo no início 19. Essa zuela foi cantada na Avenida no
primeiro desfile do grupo, o que também o caracterizaria como afoxé. Contudo, embora
relação aos instrumentos: havia muitos atabaques e agogôs – “por falta de instrumentos [de
contou com a ajuda de Jabes Ribeiro doando todo o tecido que seria utilizado nas fantasias
do bloco. Jabes estaria concorrendo ao cargo de prefeito naquele ano pela primeira vez.
Alguns instrumentos foram tomados emprestados nos terreiros de Pedro Farias, ou Pai
Pedro, e de uma parente de Atanagildo. Pai Pedro tornou-se, então, padrinho do bloco e lhe
deu um grande apoio. Um dos fundadores diz que o bloco “saiu com muito atabaque
também. Tudo começou com muito atabaque”. Outros instrumentos “próprios de bloco
Samba Vermelho e Branco, também situada no Oiteiro. Em seu primeiro carnaval, o Miny
Kongo já foi campeão, desfilando com cerca de 250 pessoas, pelos cálculos de Atanagildo.
176
no Miny Kongo: a batida, o ritmo já não seria de afoxé, como no ano anterior. Embora
daquele ano, a batida ainda não havia mudado muito. Renato, com a ‘autoridade’ de ex-
deslocamento dos percussionistas do Lê-guê Depá para o Miny Kongo. A influência dos
blocos afro de Salvador pode ser notada não só pela participação de ex-integrantes do Ilê
Aiyê e do Olodum, mas também porque os blocos da capital eram o modelo a ser seguido.
Se não havia blocos afro em nenhum outro lugar e se aqueles eram chamados de blocos
afro, era preciso fazer, ser como eles para ser também reconhecido como tal – era preciso
entrar na linha de pureza que Agier menciona. Atanagildo conta que, em função disso, ele
chegou a levar “os meninos do Miny Kongo” (percussionistas e dançarinos) para Salvador.
A hospedagem era a casa de sua irmã, onde permaneciam por cerca de uma semana. Nesse
período, iam aos ensaios do Ilê Aiyê, do Muzenza para aprender as músicas, as danças, os
ritmos a fim de reproduzi-los no Miny Kongo. É preciso ressaltar que Missião também já
havia desfilado no Ilê Aiyê duas vezes antes da fundação do Miny Kongo.
Em 1984, o Miny Kongo experimentou, pela primeira vez em Ilhéus, ser um dos
protagonistas de um episódio que viria a se repetir algumas vezes e que se tornaria uma
bloco afro se encontra com o trio elétrico na Avenida. Naquele ano, o trio elétrico em
questão foi nenhum outro senão o primeiro e mais famoso da Bahia e do Brasil, o de Dodô
19
No jornal Diário da Tarde de 20 e 21/02/82 e de 29/02/84, o grupo é citado como “Bloco Afro Filhos da
Banda Minicongo” e “Bloco Afro Banda MiniKongo”, respectivamente.
20
Comparando essa informação com a história do Olodum, presume-se que a ‘autoridade’ concedida a
Renato fosse pelo fato de estar vindo de Salvador, já que o Olodum ainda estava no início e já em
decadência, pois só em 1983 ele seria assumido por João Jorge, Neguinho do Samba e outros ex-
componentes do Ilê Aiyê que promoveram seu renascimento (ver Encontros1).
177
e Osmar. O incidente daquele ano foi bem resolvido pois, como manda a ‘etiqueta’ do
carnaval, o trio, que é bem mais potente e ‘barulhento’, deve silenciar-se para o bloco afro
passar. E foi o que aconteceu. Além disso, Osmar pediu desculpas dizendo que não foi
Salvador e já aconteceram algumas vezes em Ilhéus. Como esses episódios são, em geral,
tratados na chave da discriminação racial sofrida pelo bloco afro, essa discussão será
A polêmica sobre qual foi o primeiro bloco afro de Ilhéus só costuma ser levantada
por pessoas que participaram da fundação de um dos dois blocos em questão, o que
significa dizer que ela não é muito importante para o conjunto dos militantes do
movimento. O que pode ser chamado de ‘senso comum’ da história do movimento negro
em Ilhéus afirma que o Miny Kongo foi o primeiro bloco afro e que Mário Gusmão foi seu
relevante porque oferece dados e reflexões a respeito da própria concepção de bloco afro,
pois não se trata apenas de um problema cronológico – embora nem mesmo este seja tão
que o Miny Kongo seria o primeiro. Mas não é bem assim. Contra o que parece ser um
fato, um dado, pessoas que participaram da fundação do Lê-guê Depá argumentam que o
Miny Kongo foi fundado, mas não se constituiu como bloco afro: “Primeiro bloco afro que
existiu aqui dentro de Ilhéus foi o Lê-guê Depá. A primeira entidade afro foi o Lê-guê
Depá. O Miny Kongo se queixa que foi o primeiro bloco a ser fundado. Aí pode ser. Mas o
178
primeiro a desfilar foi o Lê-guê Depá. Ele foi fundado um ano antes, mas não desfilou”.
Por outro lado, mesmo para fundadores do Miny Kongo, o argumento das datas parece não
justamente para as características dos grupos: “Lê-guê Depá não era bloco, era afoxé.
Além dos temas dos desfiles, das roupas de orixás usadas principalmente nos dois
filhos de D. Ilza, apresentava o bloco a partir de Xangô: “Lê-gue, lê-gue, lê-gue, lê-gue /
Lê-gue, lê-gue, lê-gue, lê-gue / Lê-guê Depá / Sou menino, sou orixá / Eu sou Xangô / No
reino do Lê-guê Depá”. Em outros anos, foram utilizadas versões de músicas de ‘novos
afoxés’ famosos de Salvador, como o Zanzibar e o Badauê. Uma versão de uma música do
Zanzibar faz com que o próprio Lê-guê Depá se chame de afoxé: “Morena linda / Não
fique triste / Você tem que se alegrar / Jogue a tristeza para o alto / E venha para o afoxé
Lê-guê Depá”.
terreiro”, especialmente a música (zuela) de onde foi tirado o nome do bloco, dedicada a
O Miny Kongo foi fundado em novembro de 1980; o Lê-guê Depá, menos de dois
meses depois, em janeiro de 1981. O Lê-guê Depá desfilou em 1981; o Miny Kongo só em
1982. O Lê-guê Depá saiu pela primeira vez somente com instrumentos de afoxé, cantando
músicas de candomblé e de afoxés, mas nasceu com a “intenção” de ser bloco afro: “Eles
[do Miny Kongo] colocaram na cabeça que foram o primeiro bloco afro de Ilhéus. Mas a
179
intenção da gente foi colocar um bloco afro”, diz Ilza Rodrigues; o Miny Kongo desfilou
pela primeira vez com instrumentos de afoxé e instrumentos de percussão, tocou em ritmo
de afoxé, cantou músicas de afoxé, de candomblé, mas também cantou músicas do Ilê
Em seu primeiro desfile, em 1975, o Ilê Aiyê também saiu com instrumentos de
afoxé, embora não fosse a totalidade deles, cantando composições próprias, mas também
“música de terreiro” em ritmo de candomblé21. Não havia, nesse momento, outro bloco no
qual se espelhar para se dizer se era ou não era um bloco afro. Aliás, como já foi observado
anteriormente, o termo “bloco afro” nem existia. Mas havia afoxés e o Ilê Aiyê não queria
ser mais um afoxé. O que havia era o desejo de ser “apenas um bloco original”, como o Ilê
Também já havia referências à África: uma foto de pessoas caminhando numa rua de
segundo ano de desfile, esse desejo ficou muito mais claro e as referências à África foram
mais marcantes. Numa ótima conversa num fim de tarde no quintal da casa de D. Ilza em
que músicas do Lê-guê Depá e do Miny Kongo foram lembradas e cantadas, alguns de seus
ritmo, uma diferença importante entre bloco afro e afoxé é que a referência do primeiro são
Eles disseram que no início dos blocos afro, a “África” era sempre o tema dos desfiles, das
roupas, das músicas. Gomes (1989:180) aponta a “ênfase aos temas ‘africanos’” como a
21
O ritmo ijexá ainda hoje é a base da batida do Ilê Aiyê.
180
reafricanização.
Não cabe aqui ‘bater o martelo’ a respeito da polêmica sobre o primeiro bloco afro
de Ilhéus, nem mesmo haveria argumentos suficientes para isso, como espero ter
demonstrado. Mas vale ressaltar que ‘ser bloco afro’ era desejo do Miny Kongo, do Lê-guê
Depá e do próprio Ilê Aiyê, e foi esse desejo que criou tudo. Porque o desejo é a base de
criação de qualquer coisa, é o que gera fluxos que se encontram, que se agenciam e
inventam a vida. Como dizem Deleuze e Guattari (1996:98): “um fluxo é sempre de crença
pesquisa sobre o tema, tarefa mais apropriada para um historiador. Além disso, não há nem
mesmo uma bibliografia sobre o assunto e informações sobre o carnaval antigo da cidade
anteriormente, dado que a relação que os fundadores dos primeiros blocos afro tinham com
o carnaval foi mais um fator que concorreu para seu envolvimento com eles, melhor
dizendo, para a produção do desejo de formar um bloco afro, é preciso dar ao leitor alguma
noção do que era o carnaval ilheense anterior e concomitante ao início dos blocos. Essa
‘noção’, que também é a minha, foi formada a partir de comentários das pessoas com as
quais trabalhei conjugados com informações encontradas em outras fontes. E assim são,
em geral, os dados etnográficos: eles são ouvidos, vistos, lidos, mastigados, digeridos,
22
A temática dos blocos passou por modificações, especialmente por causa do Olodum, que começou a
enfocar outros temas, como a história da população negra no Brasil ou outros locais externos à África Negra,
como Cuba, Egito e Madagascar, respectivamente nos carnavais de 1986, 1987 e 1988 (Gomes 1989:183;
185).
181
é o que se diz sobre um objeto ou o que fundamenta tudo o que se diz. Mas apresentar os
‘dados’ é um recurso para facilitar a transmissão da ‘idéia’. Por isso, na medida do possível
pessoas, mas também de jornais e da pouca bibliografia disponível para descrever o que sei
começou a ser comemorado no final do século XIX. Não há muitas informações além de
informação interessante dada por Vinháes (:312) é que em 1950 Pedro Farias criou o afoxé
Filhos da África, o qual teria existido até 1970. Vinháes ainda escreve sobre o carnaval de
Ilhéus por mais quatro páginas e chega até o carnaval de 1999, mas o de Pai Pedro é o
único afoxé citado por este autor. Além de Vinháes, também Carilo em sua entrevista a
admiração que tinham pelo afoxé de Pai Pedro. Já alguns filhos de D. Ilza disseram que
preferiam o Filhos de Xapanan, que sempre passava pela Conquista. Hoje quase não há
afoxés na cidade. Existe o afoxé Filhos de Ogum que é filiado ao CEAC e “um ou dois
ainda desfilam de vez em quando”. Mas nem sempre foi assim. A decadência dos afoxés,
assim como das escolas de samba de Ilhéus e dos blocos de arrasto mais tradicionais, foi
No carnaval de 1981, foram nove os afoxés que desfilaram 24. Ao longo dos anos,
este número foi diminuindo. Por não serem registrados, os afoxés não recebiam
23
Ver, por exemplo, Barbosa 1994, Campos 1981, Borges 2002 e Vinháes 2001.
182
publicada no Diário da Tarde de 27/02 do mesmo ano, apenas dois afoxés desfilaram. E,
dez anos depois, novamente apenas dois se filiaram ao CEAC, justamente o Filhos de
Ogum, que desfila até hoje e o Filhos de Xapanan, que desfilou pela última vez em 1998.
muitos blocos de arrasto. As escolas de samba de Ilhéus são dos anos 60 e “não deixavam
nada a dever para as do Rio de Janeiro”, foi o que ouvi mais de uma vez em Ilhéus. Borges
(2002) diz que nos primeiros anos da década de 60 “a sociedade de Ilhéus brindava as
notícias da imprensa: o terceiro melhor carnaval do país.” (:25). Talvez haja um certo
exagero nessas declarações, mas o fato é que nessa época o modelo de carnaval era o do
Rio de Janeiro25 e as escolas de samba ilheenses despertavam paixões nos foliões, havendo
uma grande rivalidade entre elas. Interessante notar que seus nomes eram os de suas cores.
As mais conhecidas escolas de samba de Ilhéus foram a Azul e Branco, a Verde e Branco,
carnaval da Bahia que em Ilhéus certamente contribuiu para o fim das escolas de samba e
dos afoxés. Começava o reinado do trio elétrico, embora eles já fizessem parte da festa
desde a década de 70 (Borges 2002:36). No dia 14/02/85, havia uma nota falando sobre o
disponibilizados. Por isso, as escolas de samba – aquelas que ainda desfilavam, mas não
diz quais – e alguns blocos de arrasto não desfilariam nesse ano, “em solidariedade às
24
Incluindo o Lê-guê Depá, registrado como afoxé pelo Diário da Tarde, de 10/03/81.
25
Gomes (1989:172), referindo-se a Salvador, também diz que “durante toda a década de 60 e início dos anos
70, o modelo de carnaval carioca exerce grande influência nos festejos baianos”.
183
página do Diário da Tarde é “Para a maioria, o carnaval foi decepcionante”. Segue, então,
Turismo teria feito declarações de ofensa às escolas dizendo que “elas queriam mesmo era
prefeitura pagou cento e cinqüenta milhões de cruzeiros para o trio elétrico de Baby e
Pepeu, além das despesas com sua comitiva, de dezessete pessoas, inclusive seus filhos,
babás e a mãe de Baby. O jornal diz também que no ano anterior, a prefeitura pagou “uma
fortuna” ao trio de Dodô e Osmar, “o que só serviu para fazer Jabes” – então prefeito –
“blocos de branco” que competirão com os blocos afro, mas este assunto será abordado
adiante.
Além dos afoxés e das escolas de samba, os blocos de arrasto faziam muito sucesso
em Ilhéus. Até o início da década de 80, eles desfilavam no ‘horário nobre’ e competiam
entre si. O apoio do governo municipal era fundamental para a organização dessas
agremiações, como ainda é. Dois prefeitos, em especial, são sempre destacados nessa
carnaval. Um deles era Herval Soledade. Borges (2002:24) comenta sobre o grande
incentivo ao carnaval popular que ele deu em sua primeira gestão (1955-59). Para ela,
atitudes populares como a promoção do carnaval popular e o “natal dos bairros” teriam
favorecido sua reeleição em 1963. Vale a pena reproduzir aqui uma fala de Herval
“... O povo não deve apenas pagar impostos, disse eu várias vezes,
quando censurado e chamado de louco, baderneiro e batuqueiro, por
patrocinar o carnaval, ajudar os foliões, promover concursos e enfeitar
a cidade. É dever do poder público promover meios a que o povo
184
alegre o espírito e esqueça, por três dias em cada ano que seja, os
seus sofrimentos e as suas finalidades [sic]. E assim procedi,
atendendo a minha consciência e o desejo popular” (grifo meu).
Naquela época, apresentar-se para o prefeito, “era uma tradição”, que já “deixava
uns barris de chope, comida....” para os blocos, é o que “contam os mais velhos”, segundo
Cardoso, ex-prefeito de Ilhéus (1973-76). Todos os blocos que iriam desfilar tinham de ir
até sua casa, na Conquista. Até hoje os Pauzinhos se apresentam em frente à casa de
Ariston Cardoso antes de seguirem para o desfile na Avenida. D. Ilza conta que alguns
blocos também iam até o terreiro para se apresentar para D. Roxa, sua mãe.
Vários blocos de arrasto e “de sujo” continuam desfilando ainda hoje, mas não há
mais competição entre eles, que costumam passar pela Avenida à tarde e entre um bloco
afro e outro. O ‘horário nobre’ agora é dos blocos afro, embora seus dirigentes não o
considerem tão nobre assim, pois o melhor horário, “quando a rua está mais cheia”, fica
1, é dito que os afoxés e os blocos de índio, estes últimos surgidos na década de 60, foram
precursores dos blocos afro, pois essas entidades reuniam a população negra e moradora da
periferia da cidade. Em Ilhéus não havia blocos de índio. Eram os grupos de maculelê que,
hoje desfila no carnaval e é filiado ao CEAC, havia um outro grupo famoso em Ilhéus, o de
Cabo Jonas, que saía do Pontal. Os filhos mais velhos de D. Ilza eram foliões dos
Pauzinhos – ‘Seu’ Jurassi, dirigente do grupo, é um dos ogãs mais antigos do Terreiro
Tombency – e lembram da rivalidade que havia entre os grupos. Houve uma época em que,
185
bastão, a pessoa seria presa. O encontro dos dois grupos sempre terminava em “uma briga
arretada”: “Eles cantavam ‘cana via, pegou fogo, é de vera...’. Quando falava ‘é de vera’,
O carnaval de Ilhéus da década de 80 foi marcado pela quase extinção das escolas
movimento afro-cultural.
Miny Kongo. O mesmo aconteceu nos dois anos seguintes. Em 1985, no “Carnaval da
da República civil, dois novos blocos afro estrearam na Avenida: Axé Odara e
Embaixadores da África (que só desfilou este ano). Em 1986, desfilaram Lê-guê Depá,
Miny Kongo, Axé Odara e o estreante Zimbabuê. O “Carnaval da Vitória”, em 1987 – uma
homenagem à vitória de Waldir Pires nas eleições ao governo do Estado de 1986 (Diário
da Tarde 17/02/87) e do qual Jabes viria a ser secretário do Trabalho em 1989, para em
1990 se eleger deputado federal (Goldman 2001:61) – foi o primeiro ano de desfile de três
número de blocos afro cresceu, embora nem todos tivessem sempre condições de desfilar.
apresentações de suas bandas nos hotéis e bares da cidade, além de haverem se tornado a
principal atração do carnaval de Ilhéus. Em 1993, o Diário da Tarde registrava que seriam
26
Em cada ano, a comissão de carnaval da prefeitura escolhe um tema para ser trabalhado nas chamadas de
propaganda turística para o carnaval, assim como nos adereços que enfeitam o local do desfile e as principais
186
blocos afro também sofreram com a falta de investimento no carnaval por parte do governo
municipal. Em 1994, o carnaval foi transferido da Avenida Soares Lopes, no Centro, para a
de rua, de maneira geral, foi para evitar danos à recém reurbanizada Soares Lopes, embora
algumas pessoas digam que isso ocorreu para atender a pedidos de moradores da área, a
mais ‘nobre’ da cidade, que não queriam “conviver com o carnaval”, com “o povo em suas
portas”. Neste ano, o Diário da Tarde ainda registra o desfile de dez blocos afro, situação
desfile dos blocos deixaram de existir. Em 1995, somente o Rastafiry desfilou na Av.
levadas, ou seja, com poucos instrumentos e sem alegorias, “só de camisa”. Este também
imitada pela de Ilhéus. Ele acontecia em janeiro porque se tornava mais viável trazer para a
cidade os grandes trios elétricos e artistas de Salvador, que cobravam muito caro para
que significa dizer que essas atrações eram contratadas pelos blocos de trio da cidade. Era
novamente apenas “de camisa”, pois nestes dois últimos anos do governo Antônio
Olímpio, os blocos não receberam qualquer auxílio da prefeitura. Os anos de 1994, 1995 e
1996, quando a festa foi realizada no Malhado e, especialmente os dois últimos anos,
quando não houve “carnaval de verdade”, são considerados os piores carnavais de Ilhéus
ruas da cidade. É interessante notar que o tema escolhido para 1985, assim também como o de 1987 (o de
1986 não foi possível saber), refletem posições políticas assumidas pelo então prefeito Jabes Ribeiro.
27
Maiores detalhes sobre motivações e percepções a respeito da introdução dos dois carnavais em Ilhéus,
além de uma boa descrição destes, podem ser obtidos em Menezes 1998.
187
Jabes Ribeiro, em 1997, o carnaval voltou para a Avenida Soares Lopes. Além de manter o
dito, ao que chamou de “carnaval cultural”. Para tanto, ele buscou os grupos ainda
existentes, praticamente apenas blocos afro, e lhes deu algum recurso para o desfile, que
não foi ainda nos moldes da década de 80, com carros alegóricos e fantasias, mas foi um
recomeço. O carnaval desse ano foi chamado de “Carnaval do Resgate”. Fica fácil
e com o tempo também dos blocos de arrasto, que no carnaval de 2002 já eram em torno de
Entidades Afro-Culturais em 1997, pois o governo municipal insistiu que a partir do ano
seguinte não negociaria mais com cada uma das entidades, apenas com o Conselho. O
processo de re-fundação do CEAC merece uma análise aprofundada, que ficará para
adiante. O que importa registrar agora é que no momento de rearticulação das entidades
28
A título de curiosidade, esta não foi a primeira vez que Ilhéus teve ‘dois’ carnavais. Campos (1981
[1937]:504) conta que havia um “segundo carnaval” chamado “Mi-Carême”, uma festa “mais popular” do
que o carnaval, cuja “duração estende[ia]-se do sábado de aleluia até a sexta-feira de Páscoa, às vezes”. Era
188
bloco afro, diferente das demais entidades carnavalescas: “Já tinha estrutura, por exemplo,
não saía no carnaval, mas tinha um grupo de dança funcionando, tinha uma bateria, uma
banda fazendo show. E as escolas de samba e os outros blocos não tinham isso, só
apareciam no carnaval”. Além disso, na maior parte dos casos, “o pouco patrimônio que
Em 1998, dos quinze grupos afro filiados ao CEAC, apenas dois não desfilaram.
Em 1999, voltaram a acontecer os concursos entre os blocos afro e assim se segue desde
então. Em 2002, o Ilhéus Folia deixou de ser realizado e o governo municipal, a terceira
gestão de Jabes Ribeiro (2001-2004), voltou a trazer trios elétricos para o carnaval cultural,
que neste ano teve a presença de doze grupos afro, além de blocos de arrasto, cantores e
Após discorrer superficialmente sobre o que tem sido o carnaval de Ilhéus das
últimas décadas até o momento, é preciso retomar a exposição dos diferentes fluxos que ao
listados, talvez aquele a que se atribui maior importância seja a vinda para Ilhéus do ator e
Mário Gusmão
Quando fui a Ilhéus pela primeira vez, em 1997, ouvi falar de Mário Gusmão. Meu
trabalho não era exatamente sobre os blocos afro30 e em função do curto período de campo
uma festa comum em todo o interior e certamente deu origem ao nome ‘micareta’, pelo qual são conhecidos
os ‘carnavais fora de época’ que ocorrem em todo o país no estilo do carnaval de Salvador.
29
Ver Anexo 5: “Quadro resumo da participação dos blocos afro nos carnavais de Ilhéus (1981-2004)”.
30
Cf. Introdução.
189
Alguns anos depois, não creio que meu conhecimento sobre Mário Gusmão tenha
se ampliado muito. Como sempre acontece, o período de campo pareceu curto para buscar
tantas informações diferentes e no caso dele, penso, seria interessante uma pesquisa que o
passagem pelo município, o que é suficiente para, a partir das novas informações,
enfatizar, relativizar ou acrescentar outras àquelas dadas em 1998. É preciso dizer que
essas ‘novas’ informações não são fruto somente do trabalho de campo. Dois textos de
colhido em Risério (1981) ajudaram muito a entender melhor o que se diz a seu respeito
em Ilhéus.
Bacelar (2001) conta que ele era de família pobre, mas em função das relações de trabalho
de sua mãe e de sua avó com as “senhoras de sociedade” (:161), Mário pôde estudar em
escolas particulares, “de branco” (:164). Ele cresceu “junto aos candomblés” em
anos 40, Mário foi morar em Salvador com sua família. Relatando sobre seus primeiros
empregos na capital, Bacelar diz que ele era auto-didata em inglês e, por isso, conseguiu
31
Sou grata a Jeferson Bacelar por ter, tão gentilmente, enviado a mim o Capítulo VII de sua tese de
doutoramento em Ciências Sociais intitulada “Mário Gusmão. Um príncipe negro nas terras dos dragões da
maldade”, defendida recentemente na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal
da Bahia, Salvador.
190
um emprego numa “empresa americana” (:170; 175). Essa informação é relevante porque o
Mário Gusmão em Ilhéus como pessoa “experiente”, “inteligente”, “que até morou fora do
país”, o que de fato não aconteceu. As aulas de inglês que dava em Ilhéus são sempre
citadas como sua forma de ter renda na cidade e também de ser conhecido.
Bacelar também informa que Mário Gusmão foi o primeiro negro a ingressar na
Escola de Teatro da UFBa, o primeiro curso de teatro de nível superior do país (:174). Em
1959, um grupo dissidente da Escola de Teatro fundou o “Grupo dos Novos”, ao qual
Mário Gusmão viria a se integrar pouco tempo depois32. Em 1964, esse mesmo grupo
fundou o Teatro Vila Velha, ícone do Tropicalismo por ter sido o palco do início das
carreiras de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia e Tom Zé, entre
outros (:176).
peças de teatro e de vários filmes, especialmente de Glauber Rocha (:177). Mas em 1973,
passou cinqüenta dias na prisão por ter sido encontrado com uma grande quantidade de
LSD (:179). Deprimido, viveu um período de isolamento, até que, em meados da década de
70, voltou a trabalhar com o apoio de Clyde Morgan, dançarino negro americano, professor
da Escola de Dança da UFBa (Bacelar 2003:238) que, segundo Bacelar, foi quem
introduziu Gusmão “na riqueza da cultura africana e afro-brasileira”, que o fez “descobrir a
sua condição racial” (2001:180-1). Ele e Morgan atuavam no grupo de dança do Núcleo
Cultural Afro-Brasileiro. Além disso, como ressalta Bacelar, Mário Gusmão vivenciava de
32
Entre os fundadores desse grupo estava Échio Reis, que faleceu em Ilhéus em 2000. Em 1997, em minha
primeira visita à cidade, ele trabalhava para a Fundação Cultural e dirigia um grupo de teatro, tendo no
elenco sob sua direção militantes do movimento negro chamado ‘político’.
191
Em 1977, Mário Gusmão fez parte da delegação que foi representar o Brasil no II
menos de um mês (Bacelar 2003:247-8), mas em Ilhéus, para algumas pessoas, ela durou
anos, o que também valoriza e dá mais ‘autoridade’ a ele no que diz respeito ao seu
conhecimento sobre “a África”. Nessa época, embora Mário Gusmão ainda não fosse
militante ativo do Ilê Aiyê – segundo Bacelar, Mário Gusmão envolveu-se com o Ilê Aiyê
entre 1979 e 1980 (:257) – ele era amigo de Macalé dos Santos, dançarino e fundador do
grupo, e ambos trouxeram dessa viagem modelos de roupas, informações, objetos e outras
coisas que ajudaram a produzir o desfile do Ilê Aiyê quando o bloco homenageou a Nigéria
em 1979 (Risério 1981:42). Aliás, depoimentos de Gusmão estão espalhados por todo o
Em 1981, Mário Gusmão estava morando numa região pobre de Salvador, estava
sem trabalho e não conseguia alunos para as aulas de inglês (Bacelar 2001:182). Com a
ajuda de Jorge Amado foi contratado pela prefeitura de Ilhéus no início daquele ano. Isso
aconteceu graças a uma carta de Jorge Amado ao então prefeito Antônio Olímpio (Bacelar
2003:246)33.
Gusmão foi contratado pela prefeitura com variadas funções. Como professor, ele
deveria “desenvolver atividades culturais nos colégios, ali formando grupos de teatro, de
dança e corais” (Bacelar 2001:182). Mas Bacelar também informa que ele foi “designado
para prestar serviços como auxiliar da Coordenação dos festejos do Centenário da Cidade”
33
Mário Gusmão disse a Bacelar que “pela amizade que Jorge Amado lhe devotava e para auxiliá-lo, exigia a
sua presença nos filmes adaptados de seus romances” (2003:246).
192
(2003:263)34. Diz ainda que ele foi professor de inglês da prefeitura. Além disso, sabe-se
em Ilhéus que ele foi professor da Academia Raiz – onde desenvolveu o trabalho de dança
que deu origem ao Miny Kongo – e montou alguns espetáculos na cidade. Em 1983, Mário
Enquanto esteve na região cacaueira, os trabalhos como ator foram poucos, mas
importantes. Ele atuou em um filme, uma mini-série e uma novela. Em 1987, Mário
Gusmão retornou a Salvador, onde permaneceu até falecer em 1996 (Bacelar 2001:182).
primeiro endereço foi o Oiteiro de São Sebastião. Para lá, ele levou consigo o reconhecido
e prestigiado ator que era, mas não apenas isso, era ator e era negro, “uma das figuras mais
(1981:19); levou também o dançarino, especialmente de dança afro, da dança dos orixás,
pessoalmente a África, ‘fonte de inspiração’ das roupas, das músicas, dos cabelos, dos
Salvador; e, entre muitos outros, levou o ex-integrante do Ilê Aiyê, considerado “uma
em Ilhéus, Mário Gusmão foi jurado na Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê, ajudou a
fundar um afoxé em Salvador e viajou com este grupo para a Serra da Barriga, em
34
Outros atores e atrizes conhecidos nacionalmente também foram convidados pela prefeitura com o mesmo
propósito.
193
disse Luiz Carilo: encontrou um bloco afro recém-fundado, que era mais um desejo do que
um fato; encontrou jovens que haviam visto e/ou desfilado em blocos afro na capital e que
África e da ‘negritude’; encontrou uma relação forte das pessoas, da comunidade, com o
carnaval – a Escola de Samba Vermelho e Branco, do Oiteiro, ainda desfilava e era uma
das mais importantes de Ilhéus; encontrou pelo menos uma pessoa ligada a candomblé,
Ao que Mário Gusmão levou para Ilhéus e para o Oiteiro e ao que encontrou por lá,
podem ser acrescentadas as condições, que talvez possam ser chamadas de ‘práticas’, que,
Miny Kongo. É preciso lembrar mais uma vez que essas ‘condições práticas’ são pensadas
neste trabalho também como fluxos que participaram dos agenciamentos que produziram o
Ilhéus, dada pelo tipo de contrato que tinha com o governo municipal, é ressaltada
especialmente por pessoas que, embora reconheçam sua importância para o movimento
negro ilheense, desejam minimizá-la. Essas pessoas encontram-se em uma luta discursiva
pela memória do movimento, por prestígio e pelo que possa advir dele. Mário Gusmão
acaba por fazer parte da mesma contenda que Carilo e Atanagildo protagonizam sobre o
primeiro bloco afro de Ilhéus: se cada um desses últimos reivindica para si a iniciativa do
primeiro bloco afro, então, Mário Gusmão não pode ter o título de ‘precursor’ do
movimento. Ambos, em suas entrevistas a mim, chamaram a atenção para o papel que
Gusmão deveria desempenhar na cidade como promotor de grupos culturais. Para Carilo, a
formação do Miny Kongo era parte de seu trabalho: “Ele recebia um salário da prefeitura
194
(...). Então, o deles [Miny Kongo] era como se fosse financiado pelo governo. Ele tinha
direito a casa, comida e roupa lavada. Ele estava em Ilhéus para isso”. Atanagildo,
obviamente, não compartilha da opinião de Luiz Carilo. Porém, argumenta que o Miny
Kongo já existia e que a relação de Mário Gusmão com o grupo era de trabalho.
Outra ‘condição prática’ favorável foi o tipo de relação que Atanagildo foi capaz de
estabelecer com o governo municipal, que lhe proporcionou a obtenção da verba necessária
para o desfile do grupo em 1982. Também pelas mãos de Atanagildo vieram os primeiros
instrumentos, tanto aqueles que ele tomou emprestados com Pai Pedro graças à sua relação
com o terreiro, quanto aos demais, principalmente os de percussão, comprados com seu
próprio salário, segundo conta. Sua relação com o então candidato Jabes Ribeiro, que doou
os tecidos para o primeiro desfile do bloco, também pode ser contabilizada aqui.
importância em função de ter ocorrido nesse espaço a gestação do grupo de dança afro, o
núcleo do Miny Kongo e, mais tarde, do Axé Odara. Para Missião um dos fundadores do
Miny Kongo que participava do grupo, foi aí que “tudo começou para os blocos afro de
Ilhéus”:
Quando saiu do Miny Kongo em 1984 e levou consigo seu grupo de dança para
fundar o Axé Odara – embora no estatuto de fundação do grupo não conste seu nome –
Mário Gusmão já não morava no Oiteiro, mas num sítio afastado da cidade, que o deixava
que um bloco afro e ser mais politizado no que concerne à questão racial – parecem revelar
195
uma influência ainda maior de Mário Gusmão do que a que se via no Miny Kongo. Em
1985, primeiro ano de desfile do grupo, estava em cartaz o show “África Presente”,
dirigido por Mário Gusmão e montado pelo Axé Odara. No jornal Diário da Tarde de
15/02 do mesmo ano, há uma nota – provavelmente a reprodução de um release feito pelo
grupo tem levado aos palcos das cidades da região cacaueira” e que a escolha do enredo
tem a ver com a vontade do grupo de “manifestar-se pela valorização da raça negra” e que
discriminação racial”. Foi o Axé Odara que pela primeira vez em Ilhéus debateu e
divulgado pelo jornal foi “Comando Negro do Sul da Bahia Axé Odara”, que transmite
uma idéia politicamente mais agressiva em torno da questão racial. E dois anos depois, em
25/05/87, já sem a presença de Mário Gusmão, o jornal anuncia que o Axé Odara está se
“articulando para formar o MNUI” (Movimento Negro Unificado de Ilhéus), a ser descrito
no próximo capítulo.
Comecei esta seção reproduzindo o que escrevi sobre Mário Gusmão na dissertação
concluir esta parte do texto ‘consertando’ o que foi dito na ocasião. Primeiro, que Mário
Gusmão não foi o fundador do Miny Kongo, mas um deles, ao lado de vários outros.
Segundo, que é possível relativizar seu título de “precursor do movimento afro em Ilhéus”,
35
Diário da Tarde 11 e 12/05/85: “(...) o grupo afro ilheense inicia hoje as comemorações contra a data 13 de
maio...”; e em 20/11, o mesmo jornal divulga a programação do grupo para o Dia da Consciência Negra, que
inclui espetáculo no Circo Folias da Gabriela e missa em homenagem à memória de Zumbi dos Palmares.
196
pois o desejo do movimento já existia antes de sua chegada. É claro que se ele “só fez o
seu trabalho” ou se “ele deu início a tudo. Foi a partir dele que tudo começou para os
blocos afro de Ilhéus”, é questão de ponto de vista. Em terceiro lugar, interessa enfatizar a
força de sua presença ainda hoje no movimento. As palavras mudam, mas a todo instante é
Ilhéus, ainda que com menor relevância e sem deixar de levar em conta que só sua
ao terreiro de candomblé de Pai Pedro, um dos mais famosos da cidade (Barbosa 1994:49).
Em entrevista a Marcio Goldman36, em 1982, quando de seu trabalho de campo para sua
dissertação de mestrado, Pai Pedro falou dessa visita com orgulho, menos, talvez, por
serem ministros em seu terreiro, e mais por poder “conversar [com eles] normalmente”.
Além disso, segundo contou Pai Pedro a Goldman, posteriormente ele recebeu uma carta
do ministro da Nigéria dizendo-lhe que a língua ‘falada’ em seu candomblé era a mesma
língua de seus bisavós, língua já morta em seu país. Nessa mesma entrevista, Pai Pedro
disse ainda que vinha exercendo a função de intérprete da CEPLAC durante as visitas de
36
A quem, mais uma vez, agradeço por disponibilizar alguns de seus dados para mim.
197
produziam o efeito de fazer com que um terreiro de candomblé em Ilhéus pudesse ser tão
países do terceiro mundo, tendo o Brasil como líder, esforços esses apoiados sobre
‘afinidades culturais’ e sobre a imagem do país como exemplo de democracia racial. Além
disso, seja compondo alianças ou seja em disputa direta, a relação de Ilhéus e região com
os países africanos era intensa em função do cacau que, ainda segundo Santos, era “o ponto
suscetível entre o governo brasileiro e países africanos” nesse desejo de aproximação, pois
em fins da década de 60, esses últimos passaram a ser a grande ameaça e mesmo os
1968 houve a XI Conferência da Aliança dos Produtores do Cacau justifica a visita dos
ministros africanos a Pai Pedro (2000:40-1), o que deve ter ocorrido na cidade algumas
outras vezes37.
Apesar de ter ouvido poucas referências a esse movimento, é preciso registrar que
fluxos de black soul também atingiram e agitaram parte da juventude negra de Ilhéus.
Alguns dos filhos mais velhos de D. Ilza costumavam freqüentar os bailes da década de 70
e a ‘produção’ deles e dos amigos era toda feita em sua casa: sapatos “cavalo-de-pau”
lustrados e cabelos penteados com pente “ouriçador” – feito com cabo de madeira e pentes
de guarda-chuva velho – para deixá-los no estilo ‘black’ faziam parte dessa produção, é o
37
O cacau é responsável também por outro tipo de interação de Ilhéus com o continente africano, ainda que
mais recente do que o período acima focalizado e que, muitas vezes, não chega a acontecer porque se
transforma em tragédia. Em função da queda de produção do cacau brasileiro, as indústrias passaram a
importá-lo de países africanos. O produto chega pelo porto de Ilhéus em grandes navios que trazem em seus
porões passageiros clandestinos que vêm de países africanos para o Brasil. O problema é que os gases tóxicos
198
que conta o presidente do Dilazenze, embora ele só pudesse observar o movimento, já que
não tinha idade para os bailes. E ‘vestígios’ da época ainda alcançaram o grupo, pois é o
que se pode deduzir do nome dado ao seu primeiro concurso de beleza, em 1986: “Garota
Black Dilazenze”. No ano seguinte, ele assume o nome de Noite da Beleza Negra, como o
um pouco mais tardio, já no momento em que o black soul começava a ganhar os ares do
funk, no final dos 70, a organização em “grupo de dança” e a idéia de que se tratava de
movimento afro-cultural em Ilhéus, tendo sido este o propósito dos três primeiros
capítulos. Para que fosse possível entender o que aconteceu na cidade, o primeiro ‘relato de
carnaval, de Salvador e da vida de parcela da juventude negra. Entre esses fenômenos estão
os blocos afro. Os fluxos que produziram mudanças na capital também atingiram Ilhéus e
com tanto mais força à medida que os fenômenos produzidos também criaram outros
fluxos que se agenciaram com outros tantos existentes na cidade. Os dois capítulos
seguintes visaram passar por processos sociais criadores desses fluxos, fossem eles
produzidos pela fermentação das amêndoas de cacau fazem com que boa parte dessas pessoas cheguem
199
Os dois próximos encontros formarão, então, uma segunda parte da tese, cujo
objetivo, grosso modo, será apresentar o funcionamento do movimento dos blocos afro em
artística ou empresarial.
mortas à cidade. Não era raro ouvir esse tipo de notícia enquanto estive no campo.
200
Encontros 4
tomado corpo. Em fins dos anos 70, a Bahiatursa criou o termo ‘bloco afro’ e oficialmente
eles passaram a constituir uma categoria específica no carnaval, o que significou horário de
desfile diverso dos demais blocos, verbas e quesitos de julgamento próprios também.
Embora nem todos concordassem e esta fosse uma forma de “domesticar preventivamente
É certo que não foi o termo implantado pela Bahiatursa que deu essa especificidade
aos blocos afro. Já em seu primeiro desfile, em 1975, ao permitir que só pessoas negras
componentes partilhavam de uma outra visão de mundo distinta daquela que predominava
201
‘racismo’ feitas ao bloco por parte da imprensa1. O Ilê queria ser “um bloco original”,
‘África’ sua inspiração: uma ‘África’ que passava por Lagos, na Nigéria, presente na foto
que ilustra o primeiro cartaz do bloco, mas que passava também pelo candomblé, do
simultaneamente nas duas Áfricas: Ilê, presente no nome do terreiro da mãe de um dos
fundadores, e Aiyê buscado num dicionário de yorubá emprestado por um amigo iugoslavo
surgimento do movimento dos blocos afro em Salvador (Encontros 1), pôde-se ver que
essa ‘outra visão de mundo’ e o desejo de ser ‘original’ foram gerados a partir de fluxos
que passaram por movimentos políticos, culturais, religiosos, musicais, econômicos etc.,
O adjetivo ‘afro’ não tem, portanto, o mesmo sentido que ‘de sujo’, ‘de arrasto’, ‘de
trio’ ou de qualquer nomenclatura que sirva para categorizar um bloco de carnaval. Até
poderia ter, pois, em princípio, ele serviria para descrever que se tratava de um bloco
carnavalesco que se diferenciava de outros por utilizar um tal ritmo, uma tal forma de se
fantasiar, de privilegiar tais temas e alegorias. No entanto, dada sua vinculação a uma das
carnavalesco; ele marca distinções que vão muito além do momento do desfile. O adjetivo
1
Sobre a repercussão do primeiro desfile do Ilê Aiyê e as acusações de racismo, ver principalmente Gomes
(1989), mas também Risério (1981).
202
‘afro’ marca uma diferença não somente daquele bloco, mas daquelas pessoas em relação a
outras e essa diferença não se restringe ao carnaval, ela pode se estender à vida, ao dia-a-
dia. É nesse sentido, então, que a etiqueta ‘afro’ imposta aos blocos pela Bahiatursa
objetivos também comuns, os quais passavam tanto pelo carnaval quanto pelo cotidiano,
pelo anseio de mudanças sociais, políticas, enfim, pela vida. Além de atividades conjuntas
entre os blocos afro e destes com outros setores do movimento negro, em Salvador, foram
organizaram no CEAC (ou CEACI, como a entidade era chamada de sua fundação até
destacado antes, um bloco afro deve estar em atividade o ano inteiro e dizer que ele só
passaram a não se formar como grupos carnavalescos – ao menos não em seus estatutos –,
mas como ‘grupos culturais’, ‘associações culturais’ e outros termos semelhantes. Assim,
blocos4, a atividade passou a ser mais uma de suas atribuições e, dependendo do contexto –
2
Ilê: “Denominação da casa de candomblé (...); casa”; Aiyê: “(...) mundo, terra, tempo de vida” (Cacciatore
1977:148; 41).
3
Cf. Encontros 1.
4
Autores que escrevem sobre blocos afro em Salvador relacionam outras motivações para a criação das
entidades que serão discutidas no decorrer deste capítulo e do seguinte.
203
nas décadas de 60 e 70, quando a luta política deixou de ser exclusiva da esfera da
classe não era a única existente nem a única que exigia mudança. A luta contra outras
formas de opressão tinha de passar inicialmente pela demonstração de sua existência, o que
negritude” através de tudo o que pudesse ser identificado com ‘cultura negra’ era a forma
população negra no Brasil. Dever-se-ia ser negro acima de tudo. O nascimento do Ilê Aiyê
Ilê nasce, assim, como mais uma forma de expressar a singularidade de ser negro numa
sociedade que gosta de se conceber misturada e sem diferenças raciais, portanto, sem
racismo.
era uma estratégia comum a todos os grupos minoritários – corresponde uma forma de
análise acadêmica que privilegia essa diferença, também considerando-a acima de tudo.
Assim, um outro corolário dessa posição de movimento negro defendida pelos blocos
reside no tipo de análise acadêmica que incide sobre eles, que faz com que não só a origem
dos grupos, mas também todas as suas práticas, sejam explicadas pela ‘tomada de
5
Cf. a argumentação presente em Encontros 1.
204
A proposta aqui não é negar que os blocos afro sejam grupos de pessoas que se
organizam a partir da identificação com temas que podem ser chamados de ‘raciais’ ou
‘étnicos’ ou ‘que têm origem na diáspora negra’... É claro que as pessoas pensam nisso.
Um dos objetivos desse novo ‘relato de encontros’ é mostrar através da etnografia que os
negra’. Ambos são termos polêmicos. O primeiro porque às vezes é visto como um aspecto
secundário, até menor, do grupo; é como se, entre muitas outras coisas, os blocos se
organizassem para sair no carnaval. Ao contrário do que costuma parecer, essa é uma
frente às críticas que lhes são feitas. O segundo aspecto fundamental de definição dos
blocos afro é que eles são grupos de pessoas que, em geral, mas não exclusivamente6, são
Sem querer adotar uma visão legalista, o fato de ser essa a definição que consta da
maioria dos estatutos dos blocos deve ser levado em consideração. E isso acontece. Ainda
pesquisa a respeito do tema, parece haver uma necessidade de um complemento para esta
segunda definição: valorizar, preservar e divulgar a ‘cultura negra’ não são objetivos que
6
Somente no Ilê Ayiê há essa exclusividade.
205
entre outros complementos de mesmo significado7. Apresentar a existência dos blocos afro
em função de seu objetivo de ‘valorização’ da ‘cultura negra’ como forma de luta contra a
como ‘não inferior’, como ‘igual’ ‘ao branco’... é um discurso recorrente nos grupos e
entre os intelectuais que tratam do tema, além de ser o que torna possível a aproximação
entre os blocos afro e os grupos do movimento negro dito político, apesar de todas as
Contudo, parecem ser os intelectuais os que mais levam a sério esse discurso. Não
que ele seja falso, ou que os grupos não se julguem cumprindo esse papel ou ainda que os
militantes do movimento negro não acreditem no trabalho dos blocos afro. A questão é
que, para a maioria dos componentes dos blocos, termos como ‘auto-estima’, ‘cidadania
negra’ ou ‘consciência negra’ não são natural e primariamente constitutivos deles, ou seja,
eles não nasceram para isso, embora seu trabalho possa ter esses resultados. Na verdade, é
também isso o que enxergam os militantes do movimento negro político, daí as constantes
críticas que estes dirigem àqueles, baseadas na proposição de que a luta contra a
discriminação racial deveria ser o objetivo principal, sendo ‘cultura negra’ apenas o meio
de promovê-la. É nesse sentido que parecem ser os intelectuais que estudam os blocos afro
os que mais fazem uso desse discurso para defini-los. Ainda quando os trabalhos
apresentam várias outras dimensões do cotidiano dos blocos ou de suas motivações para se
A primeira seção deste Encontros 4 tem por objetivo explicitar por que caminhos,
também neste trabalho, os blocos afro são concebidos como ‘territórios negros’. Esta é
uma definição bastante comum tanto na literatura especializada quanto no meio militante,
7
Zourabichvili (2000) observa que toda organização política tem uma ‘meta’, um ‘projeto’ a cumprir e é uma
206
mas a idéia de território aqui não passa necessariamente por um ‘espaço’, mas por um
A segunda seção visa apresentar a relação dos blocos afro de Ilhéus com o
candomblé como principal, porém não única, fonte de elementos de ‘cultura negra’, que
concepções e formas de agir de seus membros, ou pelo menos, de boa parte deles.
ainda, outras religiões também interagem com o movimento dos blocos afro, assunto
abordado em seguida.
caracterizam um bloco afro a partir de um viés que pode ser denominado de étnico, que
produzem e são produzidos por um modo de subjetivação negro. Dado que os blocos afro
Música’ – que mais se expressa sua singularidade. O carnaval é a ‘vitrine’ dos blocos afro,
os grupos afro se mostram mais ‘racializados’ no carnaval, quando sua proposta de diferir
fica mais em evidência, que a festa constitui o grande foco de análise das teorias sobre
identidade e etnicidade que definem o movimento dos blocos afro. O carnaval é concebido
na mudança da organização social... Uma rápida passagem sobre essas análises e o que elas
espécie de obrigação que todas elas venham acompanhadas da pergunta “o que se propõe?” (:333).
207
além do racismo que incide sobre as pessoas individual ou coletivamente – racismo sentido
assim como uma agressão pessoal ou sobre toda a população negra –, ser um grupo
racialmente organizado também impõe relações racialmente orientadas, que ora podem
significar uma conquista para os grupos, ora podem revelar-se pelo racismo de outros
Por fim, na sexta seção deste capítulo, o foco será o movimento afro-cultural
relações políticas.
bloco afro e que isso se dá nos encontros de elementos provenientes do que é concebido
como ‘cultura negra’, gerando, então, uma forma de pensar o mundo a partir desse desejo,
ou seja, a partir de um modo de subjetivação negro. Porém, este não é o único desejo que
constitui um bloco afro, nem o único processo de subjetivação gerado por ele, daí a
importância de situá-lo num capítulo – este – reservando o seguinte para outros desejos e
arma de luta. Retomando o artigo de Rolnik (1989), a idéia de ser negro surgiu e se
grupo – cujo único laço era a ancestralidade africana – em comunidade” (:30). A senzala,
foi assim, o primeiro território negro. Ao longo do tempo, outros foram surgindo, sendo o
quilombo o mais representativo deles, pois propunha uma forma de se pensar e de interagir
violenta da escravidão.
A associação entre bloco afro e ‘território negro’ é recorrente nos meios militantes
afirma que a “noção de territorialidade é uma marca das organizações afro de Salvador”
(1998:112) e que esses territórios “funcionam como local do encontro, da troca, das
elaborações simbólicas que permitem a construção das identidades” (:119). Michel Agier
diz que depois da criação do Ilê Aiyê, o bairro da Liberdade passou a ser chamado de
“novo quilombo” (2000:63); o Curuzu, sub-bairro onde está situado o grupo, é a ‘nova
senzala’; a sede do Ilê tem o nome de ‘Senzala do Barro Preto’ (significado do termo
Curuzu). Ainda segundo Agier, os blocos afro são “espaços negros urbanos” definidos a
partir de limites constituídos por “traços físicos, sociais ou culturais” que formam
identificação “frente aos outros e ao olhar dos outros” (2003:08). O nome escolhido do Ilê
Aiyê passa pela idéia de território ou, para usar uma expressão de Agier, de “espaço social
negro”, pois dá ao grupo uma noção de “casa” – significado do termo “ilê” –, de “busca de
nos espaços cotidianos não segregados” (Agier 2000:121)8. Ribard (1999), embora não use
o termo ‘território’, conduz a sua análise do surgimento dos blocos afro em Salvador em
torno da noção barthiana de “fronteiras étnicas”, de um ‘nós’ que se forma como “grupo
209
étnico” frente a um ‘outros’, importando saber como a fronteira é mantida, isto é, como os
blocos afro investem na diferenciação para construir e manter uma “identidade étnica”, que
os permita ser “outros”9. De acordo com essa análise, a rua, e mais exatamente o carnaval,
antinômicas”, simbolizados pelo jovem negro do bloco afro e pelo jovem branco de um
trio elétrico famoso (:306). Assim, o bloco afro, seja enquanto sede ou grupos de pessoas
desfilando na avenida ou mesmo como ‘referencial étnico’ de pessoas que se pensam como
antes da fundação da Zorra, uma espécie de pequena empresa que organizava excursões a
partir da qual seria criado o Ilê, os jovens amigos saíam juntos no carnaval formando uma
banda (:69), estudavam na mesma escola (:66), organizavam torneio de futebol, grupos de
quadrilhas para São João, saíam juntos para praias, para os bailes... (:65). Era, assim como
tantos outros, um grupo de amigos criando atividades para estar juntos. E o Ilê foi mais
uma dessas atividades. O Ara Ketu também foi produto de um desejo coletivo de amigos e
Entre os blocos afro de Ilhéus não foi diferente. O Lê-guê Depá surgiu quando
pessoas que se juntavam para atividades artísticas e de lazer resolveram fundar um bloco
afro. No Miny Kongo, mesmo antes da Academia Raiz e de Mário Gusmão, da história de
formação do bloco contada por um dos seus fundadores pode-se concluir que eram amigos
8
É o próprio Agier quem diz que a tradução para Ilê Aiyê mais divulgada pelo grupo é a de “Mundo Negro”
(2000:122).
9
No primeiro capítulo de sua obra, chamado “A Questão Étnica”, Ribard (1999) faz um apanhado geral da
noção de etnicidade, apresenta os conceitos de Frederik Barth cunhados em Os Grupos Étnicos e suas
Fronteiras, de 1969, e sua aplicação sobre o que ele chama de “Mundo Afro” de Salvador.
210
que saíam juntos: segundo Atanagildo, foi numa excursão para Olivença, distrito
hidromineral de Ilhéus, que pela primeira vez se comentou sobre a formação de um bloco
afro. O mesmo se dá com o Força Negra, formado a partir do MEPI10, e até mesmo com o
blocos, uma associação de amigos de bairro chamada Associação Juvenil do Alto dos
fundada e presidida por um irmão mais velho do atual presidente do Dilazenze. Talvez pela
AJAC visava suprir a demanda do grupo de amigos por passeios, festas e, principalmente,
torneios de futebol, o que garantia uma “mobilização” muito maior do que aquela
conseguida pela associação de moradores, pois seu presidente “não gostava de futebol”. Os
primeiros e únicos bens adquiridos pela associação foram “material esportivo”, como bolas
Ribard afirma que uma das principais características dos grupos negros é a socialidade
baseada na idéia de “viver com”, de “estar junto” (1999:479). Agier diz que os blocos “são
lembrar que um grupo afro enquanto um “espaço social negro”, “lugar onde os negros
fiquem à vontade”, como um “oásis”, tal como esse autor o define (1992:71), é antes um
afro, seriam, então, territórios negros não somente porque são espaços onde pessoas negras
10
Uma associação estudantil, conforme descrito em Encontros 3.
211
é a dominante (1986)11. Seguindo Raquel Rolnik (1989), então, poder-se-ia afirmar que os
blocos afro são “territórios negros” porque neles continua a se desenvolver um devir
negro12, que floresceu ainda nas senzalas, como “afirmação da vontade de solidariedade e
brasileiras”. Foi essa “vontade de solidariedade e autopreservação” que fez com que
grupos totalmente heterogêneos, “cujo único laço era a ancestralidade africana”, pudessem
Assim, a associação entre território negro e bloco afro conjuga o espaço físico do
bloco – seja como sede, mas também como grupo de pessoas desfilando na avenida,
existencial”, tal como definido por Guattari (1986): “Um território é o conjunto de projetos
cognitivos.” (:119). Diferentemente de ser um ‘espaço negro’, a idéia que guia este
11
“Subjetividade dissidente” é o mesmo que “processo de singularização”, “singularidade”; é a invenção de
outros modos de existência: “o termo ‘singularização’ é usado por Guattari para designar os processos
disruptores no campo da produção do desejo: trata-se dos movimentos de protesto do inconsciente contra a
subjetividade capitalística, através da afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outra
percepção, etc.” (Guattari e Rolnik 1996:45). “Subjetividade capitalística” é o mesmo que “ordem
capitalística”, cuja definição fica bem clara no seguinte trecho: “A ordem capitalística produz os modos das
relações humanas até em suas representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado,
como se ama, como se trepa, como se fala, etc. Ela fabrica a relação com a produção, com a natureza, com os
fatos, com o movimento, com o corpo, com a alimentação, com o presente, com o passado e com o futuro –
em suma, ela fabrica a relação do homem com o mundo e consigo mesmo.” (:42).
12
Devir: termo de Deleuze e Guattari da ordem do desejo: “É que devir não é imitar algo ou alguém,
identificar-se com ele. (...) Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se
possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e
repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através
das quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo. (...) O ator De Niro, numa
seqüência de filme, anda ‘como’ um caranguejo; mas não se trata, ele diz, de imitar o caranguejo; trata-se de
compor com a imagem, com a velocidade da imagem, algo que tem a ver com o caranguejo.” (Deleuze e
Guattari 1997:64-67). Adiante, os autores dizem que “até os negros, diziam os Black Panthers, terão que
devir-negro. Até as mulheres terão que devir-mulher.” (:88).
212
processo de reafricanização do carnaval e o surgimento dos blocos afro, pôde-se ver que o
candomblé teve uma posição de destaque em todo o processo. A partir das décadas de 60 e
relação com uma origem africana, cujos principais elementos característicos teriam sido
conservados na língua dos cânticos, nos mitos dos orixás, nas roupas, na dança, nos
instrumentos, nos ritmos etc, o que faz da religião a mais importante fonte de ‘cultura
negra’ do país.
Brasil nos meios militantes e inspirar as manifestações artísticas de boa parte dos grupos
negros já existentes em meados dos anos 70, o primeiro bloco afro ainda surgiria no seio
Dessa perspectiva, todo o capítulo poderia se resumir a esta seção, pois a maior parte dos
elementos que constituem um bloco afro na dimensão que aqui está sendo referida como
‘étnica’ poderia ser encontrada na sua relação com a religião. No entanto, eles também são
213
dimensão, uma que não passa apenas por ‘características’, mas por rituais14, rivalidades
entre os grupos e orientações que guiam as ações dos dirigentes, por exemplo.
Em Ilhéus, nem todos os blocos afro têm relação com o candomblé como religião15.
Isso ocorre com mais intensidade em quatro deles. Na descrição do nascimento do Miny
Kongo no capítulo anterior, foram dadas informações que ligam o grupo à religião: seu
fundadores com um desses terreiros. O nome do Zambi Axé também tem origem no
axé significa a força, a energia que abarca e constitui tudo o que existe. Além disso, e
como já foi dito, o local onde o grupo guarda seus instrumentos e na frente da qual realiza
seus ensaios, é também um terreiro de umbanda, cujos ogãs, filhos carnais da mãe-de-
santo, são importantes percussionistas do bloco. Outro grupo que tem seu dirigente e um
Reggae.
‘Terreiro de Euá Tombency Neto’, cuja data de fundação remonta a fins do século XIX,
ainda que com outros nomes. A atual mãe-de-santo, também fundadora do Lê-guê Depá 16,
é a quarta geração a ocupar a direção do terreiro, sucedendo à sua mãe desde 1975, dois
13
Cf. Encontros 1.
14
O ritual de saída do Ilê Aiyê é uma das características mais marcantes do bloco. Ele costuma ser mais
comentado e prestigiado do que o próprio desfile do grupo.
15
O motivo da ressalva com sentido de esclarecimento é que mesmo aqueles grupos cujos dirigentes não
pertencem ao candomblé, de uma forma ou de outra se relacionam com ele através dos elementos aqui
chamados de característicos dos blocos.
214
anos após o seu falecimento. Sua antecessora dirigiu o ‘Terreiro de Senhora Santana
Tombency Neto’ entre 1942 e 1973. Ela sucedera a seu irmão falecido em 1941. Foi nesse
momento, mais exatamente em 1946 – quando concluiu suas obrigações religiosas – que o
terreiro passou a fazer parte da linha genealógica do Tombency, cuja matriz, em Salvador,
é o primeiro terreiro de nação angola do Brasil. Isso aconteceu porque a finalização das
“obrigações” tanto da atual mãe-de-santo quanto de sua antecessora17 foram feitas por uma
santo antes de sua mãe havia assumido o terreiro em 1915 com o nome de ‘Terreiro Roxo
Mucumbo’, um ano após o falecimento de sua mãe, que havia fundado o ‘Terreiro Aldeia
de Angorô’ em 1885.
do terreiro. Dilazenze Malungo era a dijina18 de Hipólito Reis, amigo e pai-de-santo do tio
da atual mãe-de-santo. Ele iniciou as obrigações de sua mãe e faleceu antes que pudesse
completá-las. Ele era “africano” (não se sabe dizer em que país nasceu) e “nem sabia falar
bem o português”, o que certamente lhe conferiu uma legitimidade ainda maior para
exercer suas funções religiosas. É também importante registrar que Hipólito Reis foi o pai-
muito tempo, sem que houvesse sido iniciado por ninguém – “exercia por dom”, assim
16
Cf. Encontros 3.
17
Mãe e filha “de sangue”, irmãs “de santo”, Dona Ilza, a atual mãe-de-santo ainda era criança quando foi
feita no santo no mesmo barco que sua mãe, em meados da década de 40. Quando ela faleceu, D. Ilza era
‘mãe pequena’ da casa, a segunda função mais importante em um terreiro.
18
Dijina: “nome pelo qual a filha ou filho de santo será conhecido, dentro do ritual, após sua iniciação. É
revelado pelo orixá ou entidade protetora pessoal. É formado pelo nome conhecido do santo, acrescido de
uma qualidade especial deste, e mais, às vezes, o local de origem da divindidade ou da entidade. Termo
usado nos candomblés bantos e na Umbanda.” (Cacciatore 1977:105).
19
Em 1997, durante meu primeiro trabalho de campo em Ilhéus, foi-me solicitado que reunisse as
informações ali disponíveis sobre a história do terreiro e redigisse uma “apostila” para os compositores do
bloco. O tema do carnaval de 1998 seria “Tombency Angola, essa é a sua história”, uma homenagem ao
terreiro. “Apostila” é um pequeno texto com as informações necessárias sobre o tema para orientar os
compositores na redação das músicas que concorrerão no festival (quando ele acontece), cujas vencedoras
215
adoção do nome só foi possível após um pedido de permissão feito através do jogo de
búzios, já que se tratava de um dos mais importantes eguns20 do terreiro. Dada a permissão
e verificado que o Dilazenze devia ser consagrado “de Xangô”, orixá de Hipólito Reis,
deste, o que lhe dá uma relação muito estreita com a dimensão do sagrado, um
santo, nas ocasiões em que há algum conflito interno ao grupo: é preciso “respeitar os
fundamentos”, é um “compromisso que não pode ser desfeito por qualquer coisa”.
dirigentes do grupo – que, não se deve esquecer, são irmãos, o que faz qualquer conflito
Ilhéus no sábado anterior ao carnaval, dia do festival de música e Noite da Beleza Negra,
quando é eleita a ‘rainha’ do bloco. Esse também é o dia de tentar arrecadar recursos
extras, já que o orçamento do desfile costuma ser sempre mais alto do que o montante
serão cantadas durante o desfile. Essa é uma prática também entre os blocos de Salvador (ver Ribard
1999:423; Risério 1981:44; Agier 2000:36; 79-80; Guerreiro 2000:89-93). Não considero o texto da apostila
como de minha autoria: ele apenas é, como disse, uma reunião de informações contidas no livro Encontro de
Nações de Candomblé, 1984, em documentos do terreiro e complementadas por entrevistas com D. Ilza, a
atual mãe-de-santo do Tombency. Miguel Vale de Almeida e Susana Viegas, ambos antropólogos
portugueses realizando pesquisa em Ilhéus durante meu primeiro período de campo, foram convidados por
mim a acompanhar uma das entrevistas com D. Ilza, na qual também estavam presentes alguns de seus filhos
carnais e filhas-de-santo do Tombency. Vale de Almeida reproduziu o texto da apostila parcialmente e com
modificações num artigo (2000:87-90).
20
Egun: “Espíritos, almas dos mortos ancestrais que voltam à Terra em determinadas cerimônias rituais.”
(Cacciatore 1977:110).
21
Fundamentos: “ ‘Assentamentos’, objetos que contêm o axé das divindidades e ficam enterrados sob o
centro ou outro local especial do terreiro, constituindo a base mítica do mesmo.” (Cacciatore 1977:132).
216
Um palco foi montado na rua, em frente à quadra do Dilazenze, e até que compareceu um
bom público se a chuva terrível que caía for levada em conta, mas a arrecadação só deu
Sem ter como adiantar a compra de todo o material para o desfile por falta de
verbas, o jeito era esperar pelo “dinheiro da prefeitura”, que só foi liberado na terça-feira
forte, amarelo ouro, que é uma das cores do Dilazenze, mas seria preciso encontrar
também estampados com motivo afro e outras cores. Para facilitar a compra, aluguei um
carro e nos dirigimos para Jequié, município situado a cerca de duas horas e meia de
Ilhéus, onde haveria uma concentração de fábricas têxteis; não encontramos, porém, os
tecidos desejados por lá. No dia seguinte, procuramos os tecidos em Ilhéus – o pouco que
havia fora comprado no dia anterior por outros blocos, especialmente o Miny Kongo, cuja
Ilhéus, e também nada foi achado. Já era quarta-feira e as costureiras precisavam iniciar o
trabalho, caso contrário não haveria tempo de produzir as cerca de cento e cinqüenta
fantasias pretendidas. O clima estava tenso e era grande o nervosismo por parte de todos os
envolvidos com o bloco. À noite, no retorno de Itabuna, houve uma intensa discussão entre
três irmãos: o presidente do bloco, o vice-presidente, e um outro, nem tão envolvido com o
grupo, mas nosso ‘motorista’ naquela ocasião. Acusações, gritos e ânimos muito exaltados.
Nesse momento, a mãe-de-santo, muito nervosa, tentava acalmar seus filhos, quando sua
‘cabocla’, uma das entidades mais importantes do terreiro, a possuiu. A discussão cessou e
os três foram chamados para conversas particulares com ela. Depois disso, todas as pessoas
que de alguma forma estavam envolvidas na preparação do bloco para o carnaval ali
presentes foram convocadas para passar por rituais de limpeza e de proteção. Enquanto
aguardávamos a preparação dos banhos que todos deveríamos tomar, resolvemos que o
217
carro seria alugado por mais um dia e iríamos a Salvador comprar os tecidos. E assim
iniciaram o trabalho e não descansaram até a noite de domingo, mais precisamente até o
com providências tomadas pela mãe-de-santo. Na noite anterior ao desfile, todas as pessoas
terreiro, cujo maior objetivo é proteger essas pessoas e o próprio bloco. E uma outra
cerimônia acontece no momento de saída para o desfile, quando o bloco já está formado na
orações, entoa zuelas, joga pipoca e sopra pó de pemba sobre todo o bloco. Ela diz que é
necessário “protegê-lo”, pois ele passará por várias encruzilhadas até chegar na avenida
para o desfile, e isso pode ser perigoso, pode haver algum “trabalho” preparado contra todo
o grupo ou contra algum de seus componentes. Interessante ver que em 2000, quando
espalhavam pó de pemba sobre seus instrumentos, da mesma forma como os ogãs fazem
armado na rua, aparentemente tudo pronto “para descer”, uma das filhas-de-santo do
Tombency – também irmã dos dirigentes do Dilazenze – virou no santo. Tratava-se de sua
‘Pomba-Gira’, ou ‘escrava de sua santa’, que vinha avisar que uma obrigação não fora
22
Vale informar também que cada novo instrumento do Dilazenze passa por obrigações, para só depois ser
usado, segundo depoimento de Marinho Rodrigues, presidente do Dilazenze, reproduzido por Cambria
(2002:121).
218
realizada e que o bloco corria perigo, que havia “trabalhos” contra ele no caminho e que
alguma coisa ruim poderia acontecer. O presidente do grupo reconheceu que havia
“esquecido” de providenciar o animal para a oferenda a Exu, que deveria ter sido feita no
sábado – esta seria uma tarefa sua porque ele é o responsável pela distribuição da verba
‘desatenção’ e que eles poderiam ser muito mais graves, caso a entidade não tivesse
segundo dia de desfile, o corte para Exu foi feito e tudo correu bem23. O acontecimento foi
marcante também porque este foi o ano da primeira vitória do Dilazenze, das cinco
Em Ilhéus, o Dilazenze é o único bloco que realiza esta cerimônia em função de sua
relação com o terreiro. A respeito de Salvador, Ribard afirma, generalizando, que os blocos
afro realizam a cerimônia de saída antes do desfile (1999:447) e que “mesmo quando o
grupo não tem uma conexão muito estreita com o candomblé, deve-se efetuar um certo
número de rituais e seguir regras específicas, necessários ao bom andamento dos projetos e
das atividades” (:406). Embora outros blocos realizem o padê de Exu antes do desfile, ao
que parece, o Ilê realiza a cerimônia desde os primeiros carnavais. E o ritual de saída é,
‘celebridades’ costumam marcar presença, como conta Agier, para quem este ritual “é a
mais original das atividades do Ilê Aiyê, sua mais importante marca de identidade”; é o que
o faz ser percebido como “o mais africano e o mais puro de todos os blocos de carnaval,
23
Goldman, Comunicação Pessoal.
219
parece ter ‘saído’ de uma casa de candomblé, pode ser definido como um afoxé, e sua
existência seria a prova de uma presença das tradições africanas no Brasil” (Agier
2000:141-2).
Agier entende o carnaval do Ilê como uma seqüência ritual que compreende três
marcariam, em sua visão, a separação de uma condição social comum para a condição de
ser Ilê – “todos preparam seus corpos e seus espíritos para ser Ilê durante cinco dias”
(:143); a saída, ou “abertura do caminho”, que seria um momento liminar entre a separação
momento da seqüência. Em seu conjunto, o processo que começa pelos banhos, passa pela
saída e termina no desfile, teria por objetivo criar um “mundo novo”, “formar” uma nova
A etnografia da saída do Ilê Aiyê feita por Agier24 é muito interessante e mostra
bem qual é o sentido do ato: pipoca, pemba, oferendas a Exu... tudo visa proteger o bloco e
seus componentes. É bastante plausível supor que o ritual de saída do bloco tenha se
tornado mais espetacular à medida que o grupo foi se tornando mais famoso, ganhando
mesmo o status de atração – Agier informa que as emissoras de TV devem pagar ao grupo
para filmar o ato (:141) –, fazendo dele mais uma de suas ‘marcas’, tanto quanto a
razões de ser muito distintas. Manter o Ilê como um ‘bloco só de negros’ é expressão do
Agier, é um “marcador de identidade”. Mas o mesmo não pode ser dito para um ritual de
candomblé, ainda que ele colabore para reforçar a diferença do bloco. Quando Agier diz
24
Ver Agier 2000, seções “Le rite carnavalesque” e “La mise en scène de l’identité” (:141-154).
220
que o ritual de saída “é a mais original das atividades do Ilê Aiyê, sua mais importante
marca de identidade” (:141), parece não considerar que se trata de uma obrigação aos
orixás, que o bloco deve ser protegido e que esse é um procedimento usual e necessário no
candomblé para todas as situações em que algo ou alguém corre riscos. O bloco
simplesmente não pode sair sem essa obrigação. Em Ilhéus, o Dilazenze é o único grupo a
passar por esse ritual de saída, mas nunca foi dito que isso ocorresse para ‘mostrar uma
identidade negra’ ou para ‘afirmar a negritude’ ou mesmo para marcar uma diferença, seja
do bloco como ‘bloco afro’, ou seja em relação a outros blocos afro. Os motivos têm a ver
Dilazenze, que não seria sua única ‘vítima’. Outros blocos também julgam ser necessário
buscar proteção, mas contra o Dilazenze. Conversando com o dirigente de um bloco, ele
pediu que eu lhe confirmasse que o Dilazenze “fazia trabalho” contra os demais blocos
para ganhar o carnaval (no momento dessa pergunta, o Dilazenze havia conquistado seu
tricampeonato). Neguei que isso acontecesse, ao que ele replicou: “mas para se proteger,
faz, não faz?”. Faz. Nesse plano, a maior rivalidade em Ilhéus se dá entre o Dilazenze e o
Miny Kongo, já que são os blocos que mantêm relações mais estreitas com o candomblé.
As acusações são mútuas, até porque ambos são reconhecidos, ao lado do Rastafiry, como
os melhores blocos da cidade, pois essa rivalidade não teria muito sentido se assim não
fosse25. Contudo, outros blocos também podem ser envolvidos, já que há mães e pais-de-
por exemplo, podem vir a ser atribuídos por seus membros a ‘trabalhos’ de outros grupos
25
Os três continuam sendo os maiores blocos em número de componentes e politicamente ainda são
reconhecidos como os mais importantes. Além disso, cada um deles reivindica para si um motivo para
221
deste mesmo grupo podem ser percebidas por parte de membros de outros blocos também
pelo grupo, orações e cânticos são entoados. Se membros do grupo forem participar de
algum evento considerado importante, eles também são “preparados” para que possam
estar protegidos; se o barracão do terreiro for usado para uma atividade coletiva com a
presença de outros grupos, ele é cuidado para que ninguém possa trazer nada de mal para
as pessoas dali. Esse foi o caso de uma palestra de um deputado federal do PT/BA, também
Negra. Na mesa armada para o palestrante e autoridades, havia um lindo arranjo que fora
do Tombency disse que sua função seria mostrar a quem chegasse – haveria muita gente
“de fora” no barracão – que a casa estava protegida, evitando, assim, a própria tentativa de
interessa destacar que sua criação também passou por obrigações: além de ser um projeto
do grupo – e isso naturalmente aconteceria –, o fato de utilizar em seu nome o termo ‘erê’,
que denomina o ‘espírito criança’, também exigia o pedido de permissão. O problema foi
que isso demorou a acontecer. Logo que se iniciou o projeto, a mãe-de-santo do Dilazenze
quiabo, aos orixás Ibeji, que corresponderiam a São Cosme e São Damião no sincretismo
receber um valor maior do que os demais: o Dilazenze tem sido campeão dos últimos carnavais, o Miny
222
tornava-se mais insistente. Finalmente, quando saiu a primeira parcela dos recursos
prometidos pela prefeitura para o Batukerê, a primeira providência foi fazer o caruru para
campo, ficou muito claro que cuidar do Batukerê era também cuidar dos santos erês,
especialmente daqueles das pessoas do terreiro. Assim, toda vez que em um evento
diferente uma refeição especial era servida às crianças do projeto26, parte deveria ser
guardada para as entidades; se doces fossem distribuídos, alguns deveriam ser oferecidos a
elas27.
ocupa a posição desde 1988 e deverá presidir o Dilazenze pelo período de 21 anos. Nos
quase dois primeiros anos do grupo, um irmão seu foi o presidente provisório. Houve um
Dilazenze que, como dito anteriormente, passou por uma série de obrigações. Ao final
destas, “houve uma resolução dos orixás” de que o presidente atual “deveria assumir”.
Apesar de ser uma determinação divina, isso não significa que não haja conflitos internos
em torno da questão. Houve até um momento de afastamento do atual presidente que durou
seis meses – quando o vice-presidente, seu irmão, assumiu o cargo – e tantos outros de
situação semelhante se passa no Ilê Aiyê, do qual Vovô, um de seus fundadores, não pode
Kongo é o mais antigo e o Rastafiry argumenta ter o maior número de componentes na bateria.
26
A proposta do Projeto Batukerê é servir merenda para as crianças participantes diariamente, o que só não
acontece quando não há forma alguma de obtenção dos recursos.
27
Eu mesma fui aprendendo que se levasse balas para as crianças, deveria reservar algumas para os erês da
casa.
28
Agier (2000) conta que Vovô assumiu a presidência três anos após a fundação do bloco, pois havia um
acordo entre ele e Apolônio, também fundador, de que cada um deles dirigiria o grupo por esse período.
Apolônio deveria voltar à presidência para o carnaval de 1981, mas ele deixou o bloco, que já se encontrava
inteiramente instalado na casa de Vovô (:79). Adiante, Agier diz que a posição de Vovô como presidente
acabou se tornando “implicitamente permanente” (:83).
223
turísticas era o de Pedro Farias, falecido em 2003, e o único evento era a Festa de Iemanjá,
ser promovida com apoio da prefeitura e a ser anunciada como atração turística no
Senhor do Bonfim –, cuja relação com o candomblé acaba sendo somente a presença das
‘baianas’ lavando a escadaria com ‘água de cheiro’ e aparecendo nas fotos de promoção do
evento, que é uma homenagem a São Sebastião, um dos padroeiros da cidade31. Parece
praças tornaram-se comuns como festas que não se justificam religiosamente como parte
declararam ter o candomblé ou a umbanda como religião – poderiam levar a crer que não
que não seja possível estabelecer precisamente quantos, parece legítimo supor que só o
29
Assim chamada após a instalação do “Campus das Espumas Flutuantes”, sede da Universidade Livre do
Mar e da Mata – MARAMATA, entidade ambiental do governo municipal.
30
Heine (1996:61) cita a Festa de Iemanjá como uma “festa popular” de Ilhéus, uma “festa profana” (sic), na
qual acontece uma procissão de barcos. Interessante é sua conclusão: “Também acontece festa de largo,
barracas, trios elétricos, que o baiano é muito alegre e não precisa de muito motivo para fazer uma festa”. O
mérito de Iemanjá parece ser bem diferente do que ela atribui a N. Sra. das Vitórias: “é a outra padroeira de
Ilhéus, merecendo pois todas as honrarias”. Menezes (1998:93-8) conta que a festa começou a ser realizada
na Baía do Pontal em 1997 e no ano seguinte recebeu pela primeira vez o apoio da prefeitura. Assim, apesar
de diversos outros terreiros também promoverem a cerimônia, a festa do Pontal passou a ser a ‘oficial’ da
cidade.
31
Ilhéus tem ainda dois outros padroeiros: São Jorge e Nossa Senhora das Vitórias.
224
número das pessoas que ocupam cargos importantes nos terreiros seja maior do que aquele
verificado no Censo. Dessa forma, mesmo aqueles grupos afro cujos dirigentes não
ligados à religião, o que promove uma vinculação ainda mais estreita entre candomblé e
blocos afro. Não que esta seja uma relação necessária. Isso foi negado por vários
dirigentes, mesmo por aqueles que se consideram “de dentro da seita”, como o presidente
do Dilazenze, para quem já foi muito mais forte em Ilhéus a concepção de que todo bloco
afro tem que estar ligado a um terreiro. Na década de 80, quando nasciam os primeiros
vincular-se a um pai ou a uma mãe-de-santo como se tal relação fosse inerente a um bloco
afro. Talvez isso tenha ocorrido porque alguns dos mais importantes blocos de Salvador
possuíam essa relação: o Ilê Aiyê nasceu, praticamente, no interior de um terreiro; um dos
guardando relações estreitas com seu terreiro; a mãe de João Jorge, presidente do Olodum,
é também mãe-de-santo. Em Ilhéus, o Miny Kongo era ligado ao terreiro de Pedro Farias;
o Lê-guê Depá tinha relações com o Tombency enquanto saía dos Carilos e passou a estar
ligado a outro terreiro quando foi para o Malhado; o Axé Odara afirmava ter uma ligação
bloco. Contudo, entre os principais blocos, talvez esta fosse a relação mais ‘artificial’ na
opinião do presidente do Dilazenze, já que não havia uma ligação “verdadeira”: “não
ficava claro que eles [os principais dirigentes] aceitavam isso [o candomblé]. Era só o
status do Axé Odara de ser ligado ao terreiro de Mãe Ilza, porque não se via a influência
do terreiro no bloco.”
candomblé, é fácil compreender que, com o tempo e com outras influências, eles tenham
sido desvinculados e tenham ganhado ‘vida própria’: o ritmo (ou o ‘estilo’) que impera na
maioria dos blocos afro desde meados dos anos 80 é o samba-reggae32; a dança afro pode
ser ‘primitiva’, ‘contemporânea’, ‘folclórica’, entre outros. Assim, “para fazer bloco afro,
não precisa ser de candomblé, não”, como disse um dirigente que pertence a uma casa de
santo.
Se não é necessário “ser de candomblé”, também não parece possível que uma
alguém de um grupo quando essa pessoa é ‘convertida’. Este foi o caso do Força Negra e
dos Gangas, grupos que deixaram de existir após a conversão de suas lideranças.
O presidente do Força Negra, cuja conversão ocorreu dias antes da data marcada
para sua iniciação numa casa de santo, disse que não seria mais possível continuar com o
bloco em função de sua relação com o candomblé. Nesse caso, porém, isso não significou
seu afastamento da “questão negra”: ele teria dado continuidade ao seu “trabalho de
conscientização” numa Igreja Batista situada no bairro da Conquista, cuja maioria dos fiéis
tocam “música de adoração a Deus em iorubá” nos cultos; ele também é responsável pela
questão racial 33. E ainda que afastado dos blocos afro, é possível encontrá-lo em atividades
promovidas por eles, nas quais, muitas vezes, já se sentiu “discriminado por não ser de
32
Cambria (2002:74) defende que ‘samba-reggae’ é um “conceito guarda-chuva que define a concepção de
organização rítmica adotada pelos blocos e compreende diversos ritmos específicos (principalmente:
merengue, reggae, samba-reggae e suingue)”.
33
Burdick (2002) dá exemplos de algumas igrejas evangélicas na região metropolitana do Rio de Janeiro –
seu trabalho é principalmente com as pentecostais – que incentivam a formação de bandas juvenis de gêneros
musicais como samba, pagode, hiphop, rap com temas religiosos (:201-2).
226
candomblé”. Essa ‘queixa’ foi feita em 2001, mas ele já falara disso em 1997, logo após
presente e anunciou que implantaria o Conselho Municipal do Negro, o que acabou não
militante do MNU, filho carnal de uma mãe-de-santo e sem relação prévia com blocos
afro, embora estivesse naquele momento assumindo o próprio Força Negra junto com
outros integrantes do MNU, e que lhe repreendeu por sua nova religião.
Já o ex-presidente dos Gangas esteve afastado dos grupos até recentemente quando,
de suas atividades 35. Sobre sua relação com o candomblé, a seguinte cena é reveladora: ao
entrar em sua sala e ouvir que eu conversava com seu assessor sobre o assunto, ele fez uma
‘careta’ e se retirou.
distinta das anteriores. Trata-se do atual subsecretário municipal de Esporte. Um dos seus
irmãos foi dirigente do Axé Odara, grupo ao qual também já pertenceu; ele é primo do ex-
dirigente do Força Negra citado acima, e também já fez parte desse grupo, além de ter
diretoria do CEAC eleita em 1997 como membro do Zambi Axé. Como professor de
ele era responsável por atividades de ginástica ao ar livre durante o verão e tinha um bloco
34
Sobre a tentativa de implantação do Conselho Municipal do Negro em Ilhéus, ver Silva 1998:66-70.
35
Os Gangas já não desfilavam há alguns anos, antes mesmo da conversão de seu ex-presidente, mas o fim
oficial do grupo coincide com o seu afastamento (ver Encontros 3).
36
Este era seu cargo na gestão 1997-2000 de Jabes Ribeiro; já no segundo mandato consecutivo de Jabes
(2001-2004), a Divisão de Desporto foi transferida para a Secretaria de Esporte e Cidadania, onde ele passou
a ser o subsecretário de Esporte.
227
desfilar no Dilazenze em mais de uma ocasião. Numa conversa reproduzida por Almeida
americanos” e protestantismo, dizendo que eles “perderam a identidade: não sabem o que é
o acarajé, o vatapá, o caruru, o candomblé”, pois eles não teriam a mesma relação que o
Brasil tem com a África, o que lhes daria uma “concepção de negritude” diferente daquela
existente no Brasil.
fez articulações para ser o candidato de alguns blocos afro, mas não foi eleito. Já nas
eleições de 2000, ele esperava ser o candidato de todo o movimento negro38, o que também
não conseguiu, mas havia uma diferença em relação à tentativa anterior, pois agora ele era
“evangélico” e sua relação com a ‘cultura negra’ precisava ser outra, não poderia mais
passar pela participação em blocos afro, ou seja, pela “parte festiva da cultura negra”, mas
por sua organização (quando ajudou a fundar o Guerreiros de Zulu ele já era protestante):
“Hoje é que eu não saio mais [em bloco afro] porque assumi uma
postura religiosa outra, do protestantismo mesmo. Hoje eu sou um
cidadão evangélico. (...) Isso não me impede de trabalhar pela cultura
negra. Eu deixei a parte festiva da cultura negra, mas vou continuar
trabalhando na parte social, administrativa, que eu acho que é muito
mais importante do que a parte festiva. A parte festiva qualquer um
pode trabalhar porque gosta de festa, gosta de beber, de tocar, de
dançar... mas a parte que eu me proponho a fazer é a mais difícil. Eu
acho que a minha relação vai ficar muito mais fortalecida, muito mais
confiável a partir de agora”.
entre ‘cultura negra’, blocos afro e candomblé39, a qual também é afirmada por membros
37
Grupo fundado em 1993, inicialmente para ser um bloco de trio, o que não se concretizou, transformando-
se, então, em um grupo de dança para puxar blocos de trio.
38
Em meu trabalho de campo em 1997, Gurita já dizia isso e era algo que parecia ser viável, pois durante
todo o tempo ele buscava colaborar com os grupos e manifestava essa vontade, sendo, então, apoiado por
outros dirigentes (ver Silva 1998:72-74), mas em 2000, ele novamente não foi eleito.
39
O antagonismo existente entre o movimento negro e o movimento pentecostal, como conclui Burdick
(2002), está fundamentado no fato de que “do lado do movimento negro, o pentecostalismo é visto como
inimigo porque está impregnado da tradição religiosa européia e porque declarou guerra à religiosidade afro.
228
dos grupos afro, para quem é difícil conceber que uma boa relação possa ser estabelecida
com a igreja evangélica – sentimento que também se estende à igreja católica, como se
verá em seguida. E se, de alguma forma, os personagens dos três exemplos acima
conseguem estar próximos dos blocos, isso acontece em função de sua condição anterior de
2001, ainda que a contragosto dos dirigentes dos blocos afro, uma palestra com o deputado
palestra não aconteceu. A localização da escola onde ocorreria o evento foi importante para
conhecido na região, com uma boa base eleitoral entre evangélicos, especialmente da
Igreja Universal – também influenciou bastante. Isso não significa uma ‘xenofobia’
uma alegação contrária à sua participação levantada por um dos presentes na reunião de
até reconhecido como alguém que toca na questão racial40, mas o entendimento das
pessoas era que ele não teria nada a dizer a militantes de blocos afro. Além do mais, como
a proposta, assim como toda a articulação para o evento, partiu do secretário de Esportes e
Cidadania, político antigo da cidade – com cinco mandatos como vereador –, esta tentativa
se Pastor Reginaldo estivesse buscando novas bases eleitorais junto aos blocos afro
utilizando o discurso da questão racial, o que também poderia vir a ser útil ao secretário.
Enquanto isso, os pentecostais solidários com a luta contra o racismo sentem-se alienados do movimento
negro por causa, entre outras razões, do compromisso deste último com as religiões afro.” (:207).
40
Na ocasião, foi-nos dado um livrete com pronunciamentos de Reginaldo Germano na Câmara dos
Deputados entre 1999 e 2001 a respeito de temas como ‘discriminação racial’, ‘segurança pública’ e ‘justiça’,
editado pelo Centro de Documentação e Informação/Coordenação de Publicações da Câmara dos Deputados,
Brasília, 2001.
229
Situação semelhante se passa na relação com a Igreja Católica, mas não exatamente
com a religião católica, o que acaba por facilitar um pouco o entendimento com a primeira.
A grande maioria dos integrantes dos blocos afro ilheenses se considera católica. Visitas às
casas de alguns deles para conversas ou entrevistas me permitiram ver imagens de santos
de 1991 do IBGE na cidade pode ser explicado, entre outras razões, porque parece não
haver incompatibilidade entre ‘ser católico’ e ‘ser do candomblé’. É bem verdade que é
cada vez maior o número de pessoas, especialmente em Salvador, que desejam mudar a
Ilhéus, seu presidente é um defensor dessa separação. Contudo, ao longo de todo o período
fazer sua primeira comunhão. Nesse mesmo ano, numa das festas mais importantes do
Terreiro Tombency, a festa de Nanã, que acontece em julho, esta mesma menina e sua
prima, quase da mesma idade, vestiram-se como (lindas) ekédis41 – ainda não
confirmadas42 – e “dançaram na roda” pela primeira vez. Foi uma novidade e um grande
41
Ekédi: “Moça, mulher auxiliar das filhas de santo em transe, amparando-as para que não caiam,
enxugando-lhes o suor, levando-as à camarinha para vestir a roupa do orixá etc. Seu orixá deve se
harmonizar com o da iaô que ela auxilia. A ekédi não entra em transe. Em alguns candomblés faz uma
iniciação ligeira, como a dos ogãs.” (Cacciatore 1977:111).
230
recolhimento, onde ficam reclusas as pessoas que estão se preparando para a iniciação ou
para o cumprimento de alguma etapa de sua vida religiosa) era o quarto de todos, enquanto
a cozinha do terreiro foi dividida e teve um espaço transformado em sala, cuja porta dá
para o barracão. Foi preciso ocupar os espaços do terreiro porque a antiga casa não tinha
condições de moradia em função de uma obra que já durava anos. Ao lado da casa, havia
atual. A partir de 1999, as obras foram retomadas; a casa pôde voltar a ser habitada e no
lugar das ruínas foi construído o “quarto do santo”, onde estão os assentamentos. Nesse
mesmo ano, foi realizado um toque, uma cerimônia mais simples do que seria uma festa. E
em maio de 2000, finalmente houve a primeira grande festa pública (com duração de três
dias) do Terreiro de Eua Matamba Tombency Neto depois de alguns anos. Foi uma
obrigação para Angorô, orixá do pai pequeno da casa, que comemorava seus 21 anos de
feitura de santo, embora já tivesse completado 25 anos. Em dezembro, houve uma outra
terreiro, mas também ao futuro do Dilazenze. Seu presidente comentou o quanto era
importante para o grupo que o terreiro voltasse a “funcionar” para que “os netos”, que
então eles não tinham visto (talvez apenas quando muito pequenos) as festas do terreiro. É
claro que durante todo esse tempo o terreiro ‘funcionou’, pois as obrigações internas, e até
42
Elas foram ‘suspensas’, ou seja, indicadas para o exercício dessa função por um orixá, um ano antes,
também na Festa de Nanã. A confirmação ocorrerá num momento posterior, depois de obrigações e um
período de reclusão na camarinha.
231
medida do possível, livremente por todos os espaços. No entanto, elas não podiam
afro de maneira geral: a música, a dança, as roupas, os gestos que só são vividos nas festas
públicas. O presidente do grupo dizia que a coreógrafa, na ocasião com vinte e poucos
anos, vivera intensamente as festas do terreiro na infância, que coincidiu com o nascimento
do bloco e do sucesso de seu grupo de dança, formado, em grande parte, por seus tios,
todos com funções no terreiro. E essa vivência teria colaborado imensamente para seu
intervalo de uma festa do terreiro, alguns percussionistas do Dilazenze, que são também
ogãs, conversavam sobre o quão difícil e cansativo é tocar os atabaques durante as festas,
pois é preciso estar atento e preparado para provocar ou atender à solicitação de cada orixá,
é preciso dizer que esta é a melhor escola de percussão que pode haver.
Compreende-se, assim, a alegria geral da família e dos que torcem pelo futuro do
terreiro e do grupo de ver as meninas vestidas de ekédi e dançando na roda pela primeira
vez. Nesse mesmo período, passou a ser comum vê-las com outras crianças imitando os
meninos mais novos, tocando os atabaques durante o dia ou enquanto esperavam a festa
manifestações dos orixás, com gritos, gestos e danças, e com imensa perfeição. Não deve
mesmo haver forma mais eficaz de aprendizagem e de garantia de que mais tarde, quando
232
2001 foi um período extremamente interessante desse ponto de vista. No início do mês, um
participantes seriam recepcionados por suas famílias e lá compareceram sua esposa, sua
mãe e uma de suas irmãs. Além disso, foi solicitado que familiares e amigos escrevessem
Outro episódio ocorreu cerca de duas semanas depois, quando houve uma festa
“cabana”, resultado também de uma obra longa, que se seguiu à recuperação da casa da
o lugar extremamente quente, permaneci pouco tempo no recinto, e quase não fotografei.
Por alguns dias, em função de outras atividades, não retornei ao terreiro. Recebi um recado
de que as oferendas da cabana ainda não haviam sido retiradas esperando que eu pudesse
fotografar o lugar – que estava belíssimo. Uma interessante coincidência fez com que o dia
em que fui fotografar a cabana da Cabocla Jupira fosse também o dia em que esteve na
casa da mãe-de-santo “Nossa Senhora Peregrina”, uma imagem (Nossa Senhora de Fátima
43
Atividade comum na Igreja Católica, na qual as pessoas (em geral apenas homens ou apenas mulheres)
ficam reclusas por alguns dias para rezar, ouvir palestras, fazer discussões, cantar...
233
corresponderia, segundo o sincretismo, à Nanã, seu orixá – em frente ao terreiro, para que
a missa em comemoração ao seu dia pudesse ser realizada ali e para que fossem feitas
participar de uma missa ao final de sua preparação. Durante todo o período de campo, a
A igreja católica em Ilhéus, por sua vez, tem buscado uma aproximação junto aos
vinculada à Pastoral Afro. O termo ‘necessitados’ como parte do nome da associação foi
deveria ser exclusivamente dedicada “ao negro”, mas a “todos” que estivessem em
condições sociais desfavoráveis, que atingem principalmente a população negra, mas não
somente.
de Pastoral Afro – na Diocese e conseguiu que algumas paróquias criassem seus núcleos –
44
As fotografias com a imagem foram anteriores às da cabana. Para estas, a mãe-de-santo se produziu com
uma roupa feita com um tecido de estampa no estilo afro.
234
“origem africana”, e letras sobre a “questão negra”, ou seja, letras sobre discriminação
racial, escravidão, pobreza; além disso, há um ornamento específico para a igreja, com
muitos tecidos estampados, palhas, cestos e folhas. Esta era a ornamentação nas três
interno à igreja de bispos, padres e diáconos negros, tendo Ilhéus sediado o 4o Encontro de
Bispos, Padres e Diáconos Baianos Negros em 2001, o que seria uma “conquista” diante
afro e terreiros ocorreu por ocasião das atividades da Semana Nacional de Consciência
Negra de 1997. Naquele ano, o então gerente de ação cultural da Fundação Cultural de
tentou articular que a organização da Semana fosse conjunta entre o governo municipal e
sua entidade, os grupos afro e a Pastoral Afro. Tal aproximação foi provocada
45
O nome da entidade, como contou seu presidente, foi sugerido por seus integrantes. O termo ‘alufá’
significaria sacerdote em iorubá e a partícula ‘Gê’ refere-se a seu nome, Getúlio.
46
Conforme consta do documento “Projeto da Pastoral do Negro da Diocese de Ilhéus”, s/d.
47
A terceira atividade foi um “casamento afro” celebrado na Catedral de São Sebastião, um “marco” para a
consolidação da pastoral afro em Ilhéus, segundo alguns de seus membros, que valorizaram ainda mais o ato
posteriormente, comentando sobre o fato de que alguns freqüentadores da igreja, brancos, se retiraram da
cerimônia, gesto entendido como de desaprovação. Esta era a prova de que a realização do casamento na
Catedral fora uma audácia apoiada pelo bispo e que consistia, por isso, num grande avanço na Diocese. Por
outro lado, as reações de alguns membros do Dilazenze presentes também foram bem interessantes e
distintas: seu presidente se retirou desaprovando o “uso” de elementos do candomblé no ritual; já seu vice-
presidente acompanhou toda a cerimônia, realizando todos os gestos e orações, apesar de risos e olhares de
desaprovação em alguns momentos. Contudo, foi muito visível seu entusiasmo quando uma mãe-de-santo
presente, que estava co-celebrando o casamento, cantou uma zuela a Oxalá, seu orixá.
235
principalmente pelo gerente de ação cultural, que embora seja do candomblé, militou na
igreja católica na juventude e naquele momento estava bem próximo dos blocos afro por
ter participado da reativação do CEAC e por ser, ao menos em tese, seu canal de
comunicação com o governo. A organização conjunta resultaria num ato ecumênico, mas
isso foi possível pois os representantes da igreja protestante convidados não aceitaram
participar. Houve, sim, um ato religioso – um “ato de reflexão”, como ficou sendo
denominado o evento – no pátio de uma escola secundária, com leituras da bíblia, cânticos
católicos, também atabaques, passos de dança do candomblé, roupas como as que seriam
usadas por escravos, oferendas que representavam ‘coisas’ ligadas ao ‘negro’, como
comidas ‘típicas’ (pipoca, milho, acarajé...), utensílios de barro e de palha, além de muitos
pronunciamentos.
algum encontro promovido pela igreja católica, seja no Abrigo São Vicente, próximo ao
Dilazenze, com o qual existe uma espécie de parceria informal – os grupos se apresentam
doações... –, seja em eventos maiores, promovidos pela Diocese. Exemplo desse último foi
promovida pela igreja católica. Nessas ocasiões, o Dilazenze é apresentado como um grupo
48
Sua participação no governo foi devida a uma coligação do PT, seu partido, com o PSDB, então partido de
Jabes Ribeiro, eleito prefeito em 1996. Em 1998, a coligação acabou graças ao apoio do prefeito a Fernando
Henrique Cardoso, candidato à presidência apoiado por ACM. O líder do MNU, então, deixou o governo.
49
Estar vestida de ‘gabriela’ significa, em geral, usar um vestido estampado com flores, curto e decotado no
modelo ‘tomara-que-caia’. Em Ilhéus, ‘gabriela’ também pode ser uma profissão: da moça que se veste desta
236
Dessa forma, o Dilazenze, assim como outros grupos, é percebido mais como um produto
da “cultura regional”, do que como um grupo do movimento negro, o que faz com que a
relação com a igreja católica tenha o mesmo significado de uma relação comercial ou com
dos Palmares, uma nova aproximação se deu entre a igreja e os blocos afro. O primeiro
também membro da Alufá-Gê. Naquele momento, sua proximidade com o CEAC se dava,
principalmente, em função da criação do Memorial da Cultura Negra, que passava por sua
uma tentativa de organização conjunta de quase todas as atividades, entre as quais alguns
debates e uma missa, que ocorreram no Abrigo São Vicente. As opiniões dos membros da
Pastoral Afro sobre a ação dos blocos é muito semelhante às de outros setores do
movimento negro – o que será enfocado adiante – e, talvez por isso, a participação da
Alufá-Gê foi restrita aos atos ‘reflexivos’, como os painéis de discussão, e a missa. A parte
Os debates foram esvaziados, mas a missa, assim como o show que ocorreu logo
após, foram concorridos. A missa foi preparada como um grande acontecimento, mais um
‘marco’ para a ‘igreja católica ilheense’. A proposta inicial do padre responsável pela
Pastoral Afro era realizá-la na Catedral, para demonstrar força perante a elite branca da
própria igreja que condenava “esse tipo de missa”, mas foi “desaconselhado” pelo bispo da
forma para trabalhar em hotéis, restaurantes ou até mesmo em navios de turistas que chegam à cidade, diz-se
que “é gabriela”, que “trabalha de gabriela”.
237
Diocese, que achava que aquele ainda não era o momento50. De qualquer forma, a ocasião
foi concebida como muito especial: pela primeira vez o próprio bispo celebrou uma missa
em estilo afro e ainda havia a presença do prefeito, com alguns assessores, do secretário de
que usava um abadá de origem africana51. Aliás, eram muitas as pessoas que exibiam
alguma roupa ou acessório em ‘estilo afro’, inclusive assim eram os paramentos dos
celebrantes da missa.
A ‘produção’ do evento foi toda da Pastoral Afro, que solicitou, porém, que os
percussionistas para a missa ficassem a cargo dos blocos, pois a pastoral tinha suas
próprias bailarinas que costumavam se apresentar nas missas afro. O responsável pelos
própria igreja tocaram durante a cerimônia, o que fez com que este fosse um evento
exclusivamente produzido pela igreja e, até porque haveria o show posteriormente e muitas
providências de última hora precisavam ser tomadas, quase não houve a participação de
de sua pouca participação nos eventos, principalmente nos debates, e da não colaboração
da Alufá-Gê para os demais eventos programados, os da ‘parte festiva’, assim como dos
poucos presentes oriundos da pastoral afro ou da associação até mesmo nos debates. Na
50
Uma informação de Agier a respeito do Ilê Aiyê mostra a enorme diferença entre a igreja católica de
Salvador e a de Ilhéus: este autor diz que Vovô, presidente do Ilê, é membro da Confraria da Igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos, na qual em todo 1o de novembro é realizada uma missa em comemoração ao
aniversário do grupo. Toda a cerimônia (músicas, objetos do ritual do ofertório e orações) tem como tema o
mesmo escolhido para o desfile do grupo no carnaval seguinte. Depois da missa, o bloco sai em procissão até
o Forte de Santo Antônio, onde realiza um ensaio (2000:125).
238
cultural, chama a atenção que também aqui vêem-se reproduzidos o problema e a solução
movimentos – latente nos debates e nas acusações mútuas – a partir do candomblé como o
substrato comum a eles, ou seja, como ‘fonte’ de ‘cultura negra’. As formas de interação
da igreja católica com o movimento dos blocos afro levam a concluir que “o resgate da
cultura afro-brasileira”, um dos objetivos da pastoral afro conforme descrito páginas atrás,
comida, até a língua (em algumas missas, há cânticos e orações que utilizam expressões
como ‘originais’, como representantes de uma ‘cultura’ ausente no dia-a-dia dos fiéis
candomblé sem serem entidades religiosas. Assim, tem-se acesso à ‘cultura negra’ do
candomblé, sem que seja preciso comprar o pacote inteiro. É bem verdade que há também
tentativas de aproximação da igreja com o próprio candomblé, mas, em geral, nos espaços
católicos, sob a fórmula de ‘um mesmo Deus, sob diferentes formas’. E, diante do que foi
religião católica, isso não é muito difícil, embora esses momentos de interação se resumam
O Ilê Aiyê, como primeiro bloco afro, foi criado a partir da apropriação dos
elementos que compõem um bloco de carnaval, tais como música, tema, fantasia e
alegoria, e do investimento sobre eles do que foi considerado como o mais puramente
51
O abadá fora trazido de Londres como presente por um casal de amigos.
239
negro, de origem africana, ou como herança mais próxima do que era africano, guardado
pelo candomblé. Essa foi uma forma de seus fundadores diferenciarem-se do que existia,
fazendo-se mais negros, fazendo outras pessoas se sentirem mais negras, inventando o que
blocos afro são tanto conseqüência quanto contribuição para isso. E sua importância
central está no fato de que nenhum outro grupo ou movimento poderia ser tão
carnaval, que permite a fantasia e a exibição como não se faz no dia-a-dia. Assim, os
principais elementos considerados ‘étnicos’ passaram pelo carnaval, mas ganharam outros
domínios, foram para as ruas e para outras atividades que movimentam os grupos afro
uma idéia, um conceito de ser negro – “novas maneiras de pensar”. O conceito inspira,
produz novos perceptos e afectos, que são também dimensões do conceito. Têm-se, assim,
novas formas de se vestir, de usar os cabelos, de se movimentar que são singulares. Trata-
se de um percepto que funciona para si e para outros quando se dança de tal forma, se toca
tal ritmo, se compõe uma música enfocando um tal tema – “novas maneiras de ver e
ouvir”. E, a partir dos perceptos, novos afectos, ou seja, “novas maneiras de sentir” e de
52
Deleuze sobre o mesmo tema: “É que o conceito, creio eu, comporta duas outras dimensões, as do percepto
e do afecto. É isso o que me interessa, e não as imagens. Os perceptos não são percepções, são pacotes de
sensações e de relações que sobrevivem àqueles que os vivenciam. Os afectos não são sentimentos, são
240
A dança afro
Agier sustenta que o Ilê Aiyê introduziu um novo tipo de samba no Brasil, um
só o ritmo é novo, mas também a dança. Do samba que se conhecia, guarda-se a ‘ginga’,
mas o grupo produz um novo estilo, novas regras que definem o que é dança afro, cujas
passado, mas também ao candomblé, uma África atual na Bahia (:159-60). Quando escreve
Carnaval Ijexá..., em 1981, Risério revela que no Ilê não há alas de dança nem um modelo
de coreografia para não oprimir as pessoas com uma forma única de dançar (1981:44): “No
Ilê, o destaque são todos”, diz um dos membros do grupo. Já Agier (2000), baseado em sua
pesquisa realizada na primeira metade da década de 90, descreve o desfile do Ilê Aiyê com
uma pequena ala de dança formada por seis pessoas sobre um caminhão e um outro grupo
de componentes também formando uma ala de dança no chão. Além disso, há dois
dançarinos mais prestigiados: um homem, que é sempre o mesmo, e uma mulher, a “Deusa
de Ébano” eleita na Noite da Beleza Negra (:95). Segundo Guerreiro (2000:40), o Malê
Debalê, surgido em 1979, foi o primeiro bloco afro a ter uma ala de dança em seu desfile.
Ribard, referindo-se genericamente aos blocos afro, diz que cada ala tem sua própria
específicos (1999:434).
difícil conceder ao grupo a ‘invenção’ do estilo. Além dos afoxés, que já reproduziam
passos de candomblé nas ruas desde finais do século XIX, já no final da década de 60 e
início da de 70, havia grupos que estilizavam as danças dos orixás em apresentações
devires que transbordam aquele que passa por eles (tornando-se outro). (...) O afecto, o percepto e o conceito
são três potências inseparáveis, potências que vão da arte à filosofia e vice-versa.” (Deleuze 1992:171)
241
teatrais, como aquela de que Mário Gusmão participou em 1971 (Bacelar 2003:238). Sua
com seu amigo Clyde Morgan, que tinha relações com o candomblé, fizeram de Mário
Gusmão um dançarino profissional de ‘afro’. É verdade que ele chegou a participar do Ilê
Aiyê no final dos anos 70, mas sua formação como bailarino de dança afro já era um fato.
E sua experiência como dançarino foi, certamente, sua maior contribuição para o
Salvador (ao menos dos principais, cujas histórias são mais divulgadas), uma que se
destaca é quanto à origem dos primeiros blocos ilheenses, aqueles surgidos nos anos 80:
vários nasceram a partir de grupos de dança afro. Alguns formaram-se a partir da dança e
depois de algum tempo tornaram-se blocos afro; outros já foram criados como blocos afro,
mas o grupo de dança foi a primeira atividade do grupo. Mário Gusmão esteve diretamente
ligado ao surgimento de dois deles e, indiretamente, a alguns outros. Além disso, não se
pode esquecer que a competência de Gusmão deve ser conjugada com a proximidade com
quanto o Lê-guê Depá surgiram a partir de pessoas que inicialmente se organizaram para
dançar. Foi a dança afro que aproximou Luiz Carilo, que era bailarino clássico, da mãe-de-
santo do Tombency, que dança para os orixás. Ele desejava “aprender o afro”. Essa troca
Artes Cênicas de Ilhéus –, em cuja ata de fundação D. Ilza consta como “dançarina
profissional primitiva”, assim como três de seus filhos que também assinam a ata;
O Miny Kongo foi fundado em novembro de 1980 com a proposta de ser bloco
afro, mas não desfilou em 1981; logo depois do carnaval, Mário Gusmão chegou em
Ilhéus, foi morar no Oiteiro de São Sebastião e trabalhar na Academia Raízes, para onde
levou vários jovens vizinhos e lhes ensinou dança afro; dessa primeira organização,
juntamente com Atanagildo e Veludo, este último pai de alguns dos alunos de Gusmão, o
Miny Kongo estruturou-se para seu primeiro carnaval em 1982. E em seus dois primeiros
anos, o grupo de dança do Miny Kongo, no segundo ano já com a presença também de D.
Logo depois, surgia o Axé Odara também tendo origem num grupo de dança,
praticamente o mesmo que participou da fundação do Miny Kongo, com Mário Gusmão à
frente, mas também com D. Ilza e filhos. E, embora o grupo tenha desfilado já no carnaval
seguinte à sua fundação, ele é mais reconhecido como um grupo de dança e de teatro que
desfilava no carnaval do que como um bloco afro que possuía um grupo de dança.
momento é o surgimento do Força Negra, que nasce mesmo como grupo de dança e
somente após dois anos atuando desfila em seu primeiro carnaval. Houve ainda grupos
mas sua primeira e principal atividade foi seu grupo de dança que, segundo conta seu
presidente, nasceu com o diferencial de ser ainda mais voltado para a estilização das
danças dos orixás e logo fez muito sucesso. Anotações, panfletos e notícias de jornal de
243
fato comprovam uma intensa atividade dos grupos de dança afro naquele momento na
cidade.
Já entre os blocos afro surgidos na década de 90, apenas um, o Zambi Axé, nasceu
a partir de um grupo de dança – o Zalamandra, que não era afro. Os demais surgiram já
como bloco ou como banda afro. Pode-se supor que esta mudança seja proveniente do
sucesso de grupos como o Olodum e o Ara Ketu, assim como dos blocos mais antigos de
Ilhéus, atuando sob esse formato a partir do final dos anos 80. Tal como aconteceu com os
grupos de dança, alguns blocos se constituíram como uma etapa posterior de sua formação
como banda; outros se mantiveram assim e acabaram extintos num momento de retração
do estilo a partir da metade da década de 90, quando a ‘axé music’ ou o ‘pagode baiano’
passaram a ser mais requisitados pelos hotéis da cidade, principais contratadores dos
blocos.
de dança afro na cidade; porém, só este último tem um grupo de dança em permanente
atividade, e é o que tem garantido sua visibilidade em relação ao trabalho artístico. O Balé
oportunidades, todas, em geral, mal remuneradas ou mesmo prestadas como favores. Mas o
grande mérito do grupo está no fato dele mesmo produzir eventos como shows em escolas,
carnaval, que se tornou uma das atrações mais esperadas. O Miny Kongo também participa
53
Durante um certo período, alguns componentes do Dilazenze participaram de um grupo de dança afro
formado na Universidade Estadual de Santa Cruz, que lhes dava uma pequena ajuda de custo. A coreógrafa
do grupo chegou a ensinar dança afro para crianças atendidas por um projeto social da universidade. Além
dos pequenos cachês recebidos vez por outra, essas foram as únicas oportunidades em que esses bailarinos
foram pagos pela atividade de dançar.
244
Teatro Municipal de Ilhéus, inclusive com venda de ingressos. Entre os demais grupos, o
seguem o modelo do Dilazenze de ter uma ala de dança que realiza coreografias
específicas durante o desfile. Nos outros blocos, os grupos de dança são compostos por
pessoas, em geral meninas, que se apresentam nos shows da banda percussiva nos hotéis e
Uma diferença marcante entre os grupos de dança afro atuais e aqueles formados na
década de 80, em seu período ‘áureo’, está na participação masculina: apesar de não ter
registro de todos os participantes de todos os grupos, pode-se dizer que a maioria dos
ainda nos grupos já então formados. No mais famoso deles, o Axé Odara, foram as
afastamento de Mário Gusmão, que levaram à saída de grande parte dos rapazes, mas
também das moças. O Axé Odara passou por uma renovação a partir da entrada de novos
Kongo, uma boa parte de seus componentes iniciais foi para o Axé Odara; o grupo de
dança foi assumido, então, por pessoas que mais tarde viriam a fundar o Força Negra, entre
elas vários rapazes. O Dilazenze começou seu grupo de dança com um número equilibrado
de homens e mulheres, pelo que consta em anotações antigas do grupo, sendo seu primeiro
diretor do grupo de dança o também primeiro presidente do bloco. Com o tempo, o grupo
maior de mulheres do que de homens. A divisão sexual no grupo é bem marcada: mulheres
na dança e homens na percussão. Esta é uma divisão bastante usual, seja em blocos afro ou
candomblé, não se pode negligenciar esta relação, e mais uma vez a influência da religião
pode ser bem notada, já que também no candomblé há uma divisão sexual acentuada:
homens tocam atabaques, são ogãs; mulheres viram no santo e dançam na roda; homens
essa postura de divisão de ‘tarefas’ por gênero. Assim, foi decidido que todos deveriam
participar de todas as oficinas oferecidas pelo projeto: dança afro, percussão, criatividade
de meninas na percussão era satisfatória e algo exótica: todos comentavam sobre como
instrumentos mais pesados, que as meninas demonstravam. No entanto, não tardou muito
para que a divisão se estabelecesse e, apesar dos apelos dos instrutores, os meninos não
oficina de percussão, pois, se por um lado, os meninos sofriam mais pela estigmatização
em torno da dança – ou temiam por isso –, por outro, parecia ser mais aceitável, e mesmo
54
No momento, ela se encontra afastada, embora continue dando “assistência” a uma outra neta de D. Ilza,
responsável pelo grupo.
246
Durante alguns anos, outro grupo afro de Ilhéus, o Rastafiry, teve um Banda
Feminina de percussão e, segundo seu dirigente, esse era o segmento mais requisitado do
grupo para a realização de shows, era seu diferencial em relação aos demais blocos. Nos
últimos anos, a banda não tem se apresentado mais, porém, o trabalho gerou resultados: o
No meio masculinizado dos blocos afro, são raras as mulheres que atuam em suas
nossa batida é muito difícil, às vezes nem homem aprende” – declaração que explicita um
pensamento dominante no meio dos blocos afro, embora poucos tenham coragem de
afirmá-la de maneira tão contundente. Vê-se, assim, que uma outra proposta de visão de
mundo, que uma subjetividade feminina precisa ser continuamente produzida a fim de
podem pressionar as meninas que desejam tocar percussão baseados na idéia de que este é
o seu lugar, não o delas. O esvaziamento das oficinas a partir da divisão de gênero fez com
que começasse a haver uma reivindicação geral pela possibilidade de escolha das aulas que
afro é mais do que notória. A estilização da dança dos orixás é a base ‘do afro’. De acordo
com o presidente do Dilazenze, este foi o grande trunfo de seu grupo de dança em seu
surgimento: em função de sua “real” relação com um terreiro, mais e melhor do que os
outros o grupo saberia fazer uso do que conhecia sobre a dança dos orixás. Especialmente
no caso desse grupo, por sua ligação com o terreiro, o candomblé está sempre muito
presente, seja por seus elementos, seja pela competência dos bailarinos, seja pelos cuidados
que devem ser tomados com a forma de tocar – o ritmo empregado não pode ser tão forte
55
Trata-se de um projeto social com crianças e adolescentes da comunidade do Dilazenze que será
247
quanto o que se usa para chamar os orixás. Há uma grande preocupação com o que
poderia ser chamado de ‘saúde religiosa’, isto é, um bailarino designado para uma tal
função – desempenhar o papel de um orixá, por exemplo – deve estar com suas obrigações
religiosas em dia, se ele as tiver, para não correr o risco de “sentir-se mal”, ou seja, de
sofrer os primeiros sintomas da possessão mas não chegar a entrar em transe por não ser
que já fora avisado que tinha obrigações a cumprir, começou a entrar em transe durante o
ensaio de um dos números, cujo tema era a dança de Iansã e Xangô. Todo o grupo foi
duramente repreendido pela mãe-de-santo, pois se as pessoas “de dentro” tivessem notado
o que estava para acontecer, poderiam evitar a situação diminuindo o ritmo dos atabaques
ou interrompendo o ensaio. O dançarino, por sua vez, também foi lembrado de que
precisava fazer o que “havia para ser feito”. Na ocasião, foram relatados outros episódios
em que fatos semelhantes teriam acontecido. Uma delas foi durante um espetáculo em que
membros do Dilazenze tocavam, mas a possessão só foi notada por quem é “de dentro”,
dança afro desvincularam-na do candomblé, não sendo a religião sua única fonte.
Documentários sobre tribos africanas disponíveis em fitas de vídeo ou filmes que tenham o
continente africano como cenário também são recursos úteis, pelo menos para blocos afro
como os de Ilhéus, que não têm acesso a outros materiais. Porém, depois do candomblé,
talvez a mais importante fonte de informação sobre dança afro para os grupos de Ilhéus
nacional para a dança afro e diretor e coreógrafo do Balé Folclórico da Bahia, famosa
companhia de dança de Salvador. Vez por outra, ele é convidado pela prefeitura para
oferecer oficinas de dança na cidade. Nessas ocasiões, a dança afro é valorizada e mesmo
bailarinos das academias de balé clássico participam das aulas56. Além disso, intercâmbios
com grupos de Salvador também são apontados como importantes para a aquisição de
conhecimento. Ultimamente eles têm sido raros, mas comenta-se que “em outros tempos”
– sempre é dito que houve um outro período muito melhor para os blocos afro de Ilhéus
–eram constantes as viagens para a capital baiana a fim de trocar experiências com grupos
A roupa afro
utilizada nos espetáculos dos grupos afro de Ilhéus, especialmente quando estes tematizam
a dança dos orixás. Porém, para os desfiles no carnaval e outros shows, a inspiração é a
recursos, os mais diferentes materiais podem ser utilizados como modelo, entre eles
imagens dos grupos de Salvador conseguidas em fitas de vídeo ou pela transmissão da TV,
mas também livros de fotos com temas africanos, revistas e documentários produzidos pela
“National Geographic”, aos quais alguns poucos grupos têm acesso, assim como filmes de
ficção, como a antiga série de TV “Tarzan” e outros mais recentes como o filme
país africano que vai procurar uma noiva nos Estados Unidos. As pessoas que se referiram
ao filme como fonte disseram que seu interesse nele passava pela observação das roupas
como mais “primitiva” e inspira roupas para espetáculos de dança afro também
56
Ao longo de meu trabalho de campo, iniciado em 1997, embora não tenha presenciado nenhuma dessas
oficinas, soube algumas vezes da estada de Zebrinha na cidade. Uma dessas ocasiões, precisamente daquele
249
mesmo pinturas também foram citados. Um ex-dirigente comentou que uma de suas
inspirações para a criação de indumentárias para seu bloco foi um quadro que retratava o
cotidiano dos escravos no Brasil, com suas roupas de algodão cru, e que inspirou Castro
Nesse aspecto, a estrutura dos grandes blocos de Salvador é muito diferente daquela
dos de Ilhéus que, possivelmente, se assemelha à dos pequenos blocos da capital. Ainda na
década de 70, o Ilê Aiyê já pôde contar com artefatos, tecidos, modelos diretamente vindos
ainda não integrado ao grupo na ocasião, foram à Nigéria para o II Festival de Artes
Africanas em Lagos e trouxeram muito do que seria utilizado pelo Ilê Aiyê no carnaval de
1979, quando homenageou aquele país. Agier (2000) informa que os responsáveis pelas
pesquisas no Ilê Aiyê chegaram a viajar para Angola, Senegal e Benin. Conhecer de perto
os países africanos era uma forma de mudar o foco da África ‘primitiva’ e ancestral para a
presidente do Ilê, diz que a roupa do bloco é o resultado da mistura de diversos elementos
Como visto, é prática comum aos grupos afro a produção de ‘apostilas’ ou enredos
a respeito do tema escolhido para aquele ano que orientarão a composição do carro
alegórico – o ‘carro de som’ – e a criação das fantasias, mas sobretudo a composição das
músicas que serão cantadas durante o desfile. Especialmente em seu início, era comum que
de informações sobre o tema escolhido e da seleção do material básico a ser repassado para
geral, esses grupos são formados pelas pessoas que possuem um nível mais alto de
escolaridade no interior do grupo, como diz Ribard: “(...) essa ‘coleta de dados’ cabendo a
uma pessoa do bloco que tenha mais facilidade de ter acesso a essas informações”
pesquisa que produziam as apostilas e até assinavam-nas como tal. O presidente do grupo
diz que a equipe constituía, na verdade, um grupo de estudos sobre história da população
negra e sobre racismo. Esse grupo de pesquisa também era encarregado de produzir
material para que todo o bloco discutisse sobre essas questões, além de preparar textos
Também há registros de grupos de pesquisa no Axé Odara e no Força Negra. Uma das
57
Segundo Cunha (1991), esses grupos eram chamados de ‘núcleos de apoio’ ou ‘assessorias’. O seguinte
comentário de Vovô, líder do Ilê Aiyê, reproduzido pela autora numa nota, faz entrever que, sob esse
formato, esses grupos permaneciam numa relação quase que autônoma aos blocos: “Com uma composição
humana com poucos conhecimentos teóricos sobre África negra e negros, [os blocos afro] tiveram que
recorrer a intelectuais brancos, negrólogos e negreiros para conseguir informação sobre sua própria cultura, e
estes intelectuais passam a ser padrinhos, madrinhas e conselheiros. Transmitindo uma visão particular da
política para a diretoria e por conexão ao bloco e afoxé, geralmente contrários às aspirações dos associados ”
(Nêgo: boletim informativo do MNU 1982:3 apud Cunha 1991:161). Ver também Encontros 1.
251
pessoas mais importantes para o Dilazenze nesse aspecto foi seu primeiro presidente:
mesmo após ter deixado a presidência do grupo, ele continuou à frente das pesquisas e da
criação das fantasias, até se afastar totalmente. Assim, com o passar do tempo, a proposta
dos temas e os textos básicos de orientação acabaram sendo feitos quase que
exclusivamente por seu presidente58. Noutros grupos de Ilhéus, os dirigentes são sempre os
responsáveis pelo tema e pela elaboração das apostilas, embora também contem com a
escassa. Faltam-lhe livros e outros tipos de materiais que forneçam informações sobre o
tema escolhido. Muitas vezes, esse ‘material’ não é nem mesmo necessário, por exemplo,
própria história, ainda que, de qualquer forma, uma pequena compilação de dados seja feita
58
Em 2001, houve um fato inédito, pelo menos para os últimos anos: o tema do carnaval de 2002 foi
decidido por eleição durante um encontro do Dilazenze em novembro. Até então, isso não ocorria. É claro
que sempre houve tentativas de se propor um tema diferente daquele encaminhado pelo presidente. No
entanto, esbarra-se no obstáculo da produção da apostila: quem quiser se contrapor, que prepare também a
apostila para o grupo – este é o seu ‘desafio’ – e isso nunca acontece. A escolha do tema para o carnaval de
2002 foi de fato singular, pois não só a proposta do presidente perdeu a eleição, como ele mesmo aprontou a
apostila. Mas havia um motivo muito particular para isso: o tema escolhido foram os 15 anos do grupo,
completados em 2001. O ‘consenso’ surgiu porque não haveria outro carnaval para comemorar a data, nem
outra pessoa tão organizada quanto ele para ter a história do grupo já praticamente pronta. No carnaval de
2003, o presidente desejava homenagear Mário Gusmão (o que acabou acontecendo no carnaval de 2004),
mas sua proposta foi derrotada. Ainda que a mãe-de-santo do Dilazenze reconhecesse que não poderia “votar
contra Mário Gusmão”, seu voto acabou sendo por uma homenagem às ‘iabás’ (orixás femininos) proposta
pelo vice-presidente. E mais uma vez foi o próprio presidente do grupo quem preparou o material básico para
a organização do carnaval por falta de quem o fizesse. Registre-se que nesse ano o grupo voltou a ter a
colaboração de seu primeiro presidente, considerado um de seus melhores estilistas.
252
influência sobre o movimento negro no Brasil, como o rastafarianismo etc.; até mesmo
quando o tema são os orixás59, as fontes para as apostilas são aquelas que estiverem ‘à
mão’: livros didáticos, revistas, matérias publicadas em jornais, material produzido por
outros grupos 60 e, é claro, a ajuda de outras pessoas que estejam dispostas a isso e, ao
bom61. Essa ajuda pode vir até mesmo de um outro dirigente que já tenha desenvolvido o
tema em ano anterior e concorde em ceder a apostila, o que é um fato raro, mas não
inédito.
A estrutura para a produção das fantasias e alegorias para o desfile também é bem
diferente entre os blocos de Ilhéus e os grandes blocos de Salvador. O Ilê Aiyê e o Olodum
possuem suas próprias confecções, onde produzem os tecidos e as fantasias que serão
utilizados naquele ano, de acordo com o tema escolhido. No caso do Olodum, sua fábrica
não se limita ao carnaval e produz roupas e acessórios que podem ser encontrados em
todos os pontos turísticos do país. Essa é uma de suas principais marcas do ‘Olodum
empresa’, elogiado por uns e criticado por outros. Mas, mesmo entre os blocos menores de
Salvador, com exceção de uns poucos que utilizam apenas camisetas, Ribard diz que vários
59
É evidente que as pessoas mais próximas ao terreiro conhecem os orixás, ou inquices, como são chamados
no candomblé angola, mas colocar esse conhecimento numa apostila requer um bom poder de elaboração de
texto e síntese, sendo mais prático e eficiente buscar os livros.
60
Depois que adquiriu uma certa estrutura organizativa e financeira, o Ilê Aiyê passou a transformar o
resultado de suas pesquisas, suas apostilas, em pequenos livros chamados ‘Cadernos de Educação’, utilizados
na escola mantida pelo grupo e distribuído para algumas entidades. Além do texto, são divulgadas também as
letras das músicas que concorreram ao festival do ano em questão.
61
Assim é que, de 1997 para cá, em alguns desses anos, eu e meu orientador temos auxiliado das mais
diversas formas a elaboração dessas apostilas, mas apenas naquele primeiro ano colaborei na redação. Nos
demais, e apenas quando nos foi solicitado, ajudamos enviando pequenos textos ou artigos sobre o assunto,
algumas vezes nem mesmo sem ter essa intenção. É o caso do carnaval deste ano de 2004: ainda em Ilhéus
em 2001, compartilhando com o presidente do grupo de seu interesse sobre Mário Gusmão, cedi-llhe uma
253
daquele ano; os blocos ainda fornecem as sandálias e os adereços, o que faz das fantasias
dos blocos afro as mais custosas do carnaval, embora os blocos de trio possam cobrar
muito mais por uma simples camiseta chamada de ‘abadá’ (1999:436-40), nome tomado
A situação dos blocos afro de Ilhéus é bem outra. Contando apenas com os recursos
liberados pela prefeitura anualmente para o carnaval, suas fantasias são feitas com os
tecidos que se consegue encontrar nos dias que antecedem a festa, em geral, seguindo as
cores dos blocos. As estamparias de motivo afro, sempre desejadas mas nunca utilizadas –
até porque costumam ser tecidos importados, caros e difíceis de achar – são substituídas
capital baiana. A compra de todo o material fora de Ilhéus tem se tornado cada vez mais
comum, pois os dirigentes dos blocos afro ilheenses costumam reclamar do aumento dos
valores dos artigos de carnaval na cidade “quando os lojistas ficam sabendo que a
a extinção das escolas de samba fizeram com que os blocos afro passassem a ser os únicos
Nesses momentos, até a ‘tese’ de que esse tipo de comportamento é “herança do cacau”,
que “ensinou esse pessoal [os mais ricos] a querer ganhar dinheiro fácil” é evocada. Talvez
seja verdade que haja um aumento dos preços nessa época, mas seria necessária uma
pesquisa de mercado que comprovasse o argumento dos dirigentes. Por outro lado, talvez
os blocos não sejam vistos pelos lojistas como tão bons consumidores assim, pois o
comércio não só não faz descontos como nem mesmo se prepara com estoques dos tecidos
cópia de Bacelar (2001), artigo que este ano foi a base da apostila para a homenagem que o grupo fez ao
254
mais utilizados pelos grupos. Em 2000, durante a ‘odisséia’ já relatada para comprar o
material do carnaval do Dilazenze, foi possível constatar que simplesmente não havia
tecidos considerados básicos para qualquer agremiação carnavalesca nas cores amarela,
vermelha ou branca, por exemplo 62. Outra hipótese que se pode levantar nesse sentido, é
que ao menos uma vez por ano uma loja de instrumentos musicais ganharia um bom
prefeitura é investida na compra de peles para os instrumentos, que são caras e têm ‘vida
curta’, mas é preciso ir a Itabuna adquiri-las, o que pode se transformar num problema,
pois todos os blocos afro de Ilhéus, assim como os blocos de arrasto, além dos blocos da
própria cidade, dirigem-se às mesmas lojas para a compra do material e nem sempre os
A confecção das fantasias varia de bloco para bloco. O Dilazenze, por exemplo,
responsabiliza-se pela costura de todas as roupas: durante alguns dias – sempre a depender
da data de liberação “do dinheiro da prefeitura” – três ou quatro costureiras trabalham dia e
noite aprontando tudo, contando com a ajuda de algumas outras mulheres para os
arremates. Nos anos considerados mais organizados, o grupo vende suas fantasias em
carnês, que ficam em torno de quinze a vinte reais. A venda antecipada garante a entrada
de algum recurso com antecedência, mas nunca é muito significativo. Além disso, são
poucas as fantasias vendidas, pois as duas maiores alas do bloco, a de dança e a de bateria,
ganham suas roupas e, na “ala do povão”, muitas fantasias são doadas, seja porque se trata
condições de pagar. Nos últimos anos, há também a “ala do Batukerê”, formada por
crianças que participam do projeto e que também recebem suas fantasias. A única
exigência é que as pessoas comprem suas sandálias de couro, que o bloco não tem como
fornecer.
dirigente e cópias desenhadas das fantasias são entregues às pessoas para que elas mesmas
as costurem. Às vezes, paga-se pelo tecido, mas nem sempre. O presidente do Dilazenze
disse que o grupo já utilizou esse sistema uma vez, mas isso prejudicou a homogeneidade
do desfile, pois, ainda que houvesse um modelo a ser seguido, algumas pessoas ‘criaram’
suas próprias fantasias. Contudo, foi possível ver que essa homogeneidade é de fato
importante nas alas de dança e de bateria, uma vez que na pressa dos últimos minutos antes
A rigidez do julgamento de membros de blocos afro pode ser maior do que a dos
jurados no dia do desfile, sobre os quais às vezes é dito que “não entendem nada de bloco
afro”. Portanto, para aqueles que ‘entendem’, as fantasias utilizadas definem se um grupo é
ou não um bloco afro. Não que este julgamento acarrete qualquer conseqüência, ou seja,
não é o uso deste ou daquele tecido, desta ou daquela roupa que vai determinar se um
grupo continuará fazendo parte do CEAC e se receberá verbas no ano seguinte. Então,
talvez seja melhor dizer que o uso de uma fantasia revela se o grupo está se comportando
ou não como um bloco afro sob o olhar, em geral, de membros de outros blocos afro.
Depoimentos de vários dirigentes atestam que esta nunca foi uma negociação fácil e,
CEACI, os blocos considerados novos não recebiam o repasse das verbas, controladas
pelos “grandes” que dirigiam a entidade. Segundo um ex-dirigente do Força Negra, era
preciso ‘provar’ que se conseguiria sair sem recursos para ‘ter direito’ a recebê-los no ano
Lopes para a Av. Litorânea, no bairro do Malhado. Nos anos de 1995 e 1996, quando o
carnaval foi antecipado, os blocos perderam sua subvenção e apenas dois deles, o
Dilazenze num ano e o Rastafiry no outro, desfilaram, mas utilizando apenas camisetas.
Atualmente, o Olodum, o bloco afro mais conhecido do país, utiliza apenas camisetas em
seu desfile e alguns blocos de Ilhéus acabaram seguindo seu exemplo. Na opinião de
alguns, esta foi uma saída válida na época em que não havia recursos e as camisetas, além
de serem bem mais baratas, podiam ser financiadas por políticos ou por patrocinadores que
teriam seu nome e sua marca estampados nelas. Em 2000, por exemplo, que era ano
vereador.
a pouca divulgação dos blocos afro de Salvador – que são pouco televisionados e, quando
são transmitidos, isso acontece em horários de pouca audiência –, faz com que “alguns
dirigentes nunca tenham visto um bloco afro desfilar. Ele tem uma idéia porque viu um
‘flashezinho’ na TV”, como contou um presidente de bloco que acabara de emprestar uma
fita de vídeo com um desfile do Ilê Aiyê para um outro dirigente. Por isso, alguns blocos
seguem os modelos propostos pelas escolas de samba: tecidos com brilho, lantejoulas,
257
plumas e até ‘madrinhas de bateria’ podem aparecer nos casos mais exagerados64, inclusive
com mulheres utilizando biquíni ou roupas sensuais, algo bastante condenado entre os
blocos afro. O modelo dos blocos de trio acabam sendo adotados nos blocos afro por
“meninas que acham que botar um shortinho com uma camisetinha ficam mais na moda.”
É bem verdade que esses são casos raros, mas há uma preocupação de que blocos trajados
dessa forma não recebam boas notas dos jurados, para não “fazer escola”. Isso aconteceu,
por exemplo, a partir do uso de camisetas pelo Rastafiry: de acordo com o mesmo dirigente
citado acima, “outros blocos seguiram o mesmo caminho, pois acharam que havia mais
concepção dos blocos afro: além da música, uma nova forma de se vestir, de se fazer belo,
de se fazer moda, foi a grande novidade dos grupos afro nos anos 70: é a “auto-gestão
estética”, expressão de Gilberto Gil reproduzida por Risério (1981:26), que deve ser
preservada.
abordagem de uma questão delicada, mas importante, tanto no meio do movimento negro
cultural quanto no do político, ao menos em Ilhéus. Nos anos 70, falar de ‘auto-gestão
estética’ da ‘juventude negromestiça’, como diz Risério, significava ressaltar que uma
dos mais diferentes fluxos e propunha novas formas de se vestir, de usar o cabelo,
acessórios... uma nova moda que desejava fazer-se diferente da moda e do modo de ser
dominantes. Não tardou para que o novo estilo fosse, como tudo o mais, capturado pelo
capitalismo, aceito e até mesmo estimulado por ele. Ainda assim, ele continuou a indicar
diferenças, mas a idéia de auto-gestão estética também perdeu um pouco do seu sentido
inicial, pois, em alguns contextos, ela passou a ser obrigatória, ditadora de posições. Não é
64
Em geral, são personagens da cidade que certamente desfilariam em escolas de samba se elas ainda
258
preciso passar muito tempo em Ilhéus para saber que o movimento negro forte e
predominante na cidade é o dos blocos afro, mas, em termos de estética do cotidiano, são
boinas... Em meu primeiro dia na cidade ainda em 1997, disseram-me que seria fácil
por seus trajes. Simultaneamente, descobri que os trajes não diziam nada sobre os
dirigentes dos blocos afro, pelo menos não em seu cotidiano. Roupas em estilo afro são
reservadas para eventos. Pode-se afirmar que nenhum deles utiliza roupas, cabelos ou
acessórios que o identifique como ‘negro’: nem batas, nem boinas ou gorros, nem cabelos
dreadlocks, nem tranças, nem contas... E, em certas ocasiões, isso constitui um motivo de
político, que utilizam bastante esses elementos. Para estes últimos, vestir-se dessa forma
significa afirmar-se como negro, não ter vergonha de sua negritude. E foi mesmo com esse
Talvez usar ou não usar tais roupas ou acessórios nunca tenha passado pela cabeça
dos dirigentes mais jovens, mas não se pode dizer o mesmo dos mais antigos, que viveram
fizeram com que usar trajes afro no dia-a-dia não fosse mais possível ou desejado:
discriminação no emprego, falta de recursos e até mesmo a idéia, às vezes expressa num
tom um tanto agressivo, de que “não é preciso estar fantasiado para mostrar que se é negro
e que se faz um trabalho sério pela população negra”, como disse um dos dirigentes. De
fato, partindo de um viés mais prático, as pessoas mais conhecidas do movimento negro
político hoje de Ilhéus que valorizam essa forma de se vestir, trabalham em locais
alternativos e, na maioria das vezes, seu emprego – ou sua forma de sobreviver – passa por
sua liderança ou por seu trabalho político/comunitário. É claro que a relação não é causal e
apenas o momento presente, a situação dos dirigentes dos blocos afro é bem diferente. Em
sua grande maioria, eles são desempregados e, quando têm emprego, não é na área de
partir da associação entre o cabelo “rasta”, o nome do grupo e o uso de maconha, o que o
obrigou a cortar o cabelo para procurar emprego65. Apenas alguns poucos percussionistas,
que conseguem tocar em bandas de axé music e têm um trabalho mais permanente, fazem
uso de uma estética afro no dia-a-dia, mas nesse caso poder-se-ia dizer que eles se vestem
‘artisticamente’. Estritamente desse ponto de vista, é paradoxal que aqueles que acusam os
65
O Rastafiry sempre sofreu uma certa rejeição por parte da comunidade, talvez por não ter uma base
familiar no bairro e, certamente, pela associação do nome do grupo ao consumo de maconha. Já houve
abaixo-assinado contra o grupo e ele já foi chamado de “rasta-fumo”.
260
Por outro lado, não se pode deixar de considerar que essa ‘acusação’ por parte de
pessoas do movimento negro político tem uma certa razão de ser. É inegável que o não uso
de roupas e cores associadas a um estilo ‘afro’ seja também produto do racismo, produto
pessoas de quaisquer outras ‘cores’, inclusive membros e dirigentes de blocos afro. Como
disse uma pessoa envolvida com os blocos em Ilhéus: “Todo mundo quando pensa em
negro, pensa logo em cores berrantes. Pensa em vermelho, amarelo, verde... É uma pena
que as pessoas não tragam isso para o seu dia-a-dia. Mas ‘branco’ pode; ‘negro’ tem que
andar de branco ou de preto, para sumir”. Essa mesma pessoa, então, lembrou de alguns
ditos populares preconceituosos sobre o uso de roupas de determinadas cores por pessoas
negras. Como não imaginar que as pessoas não pensem nisso na hora de se vestir? Como
supor que elas não temam, ainda que por instantes, ser comparadas com as imagens criadas
por alguns desses ditos que talvez já tenham ouvido diversas vezes? Como supor que elas
outra forma de ver o mundo, todos os dias? Um pequeno diálogo entre dois membros de
blocos afro torna bastante clara essa idéia. Eles conversavam sobre a mudança da forma de
se vestir daquele destacado membro do MNU que, como relatei acima, disseram-me que eu
poderia facilmente reconhecê-lo por seus trajes. Naquela época, ele ocupava um cargo na
MNU, um dos rapazes constatou que ele estava se vestindo diferente, não estava mais
usando o estilo afro e que o motivo da mudança talvez fosse a necessidade de usar roupas
mais formais para acompanhar as constantes audiências judiciais pelo assentamento rural
do qual é líder. Mas o outro rapaz disse que talvez seja, “simplesmente, por estar cansado
de ser discriminado.”
261
É praticamente senso comum nos estudos sobre a diáspora negra a defesa da tese de
que o corpo foi o meio mais utilizado, mesmo único, de preservação e transmissão de uma
marcas na pele, cabelos, roupas, acessórios foram e continuam a ser a principal forma de
expressão de subjetividade negra. Para os componentes dos blocos afro, os desfiles são o
momento máximo dessa expressão, quando todos os símbolos afro são acionados
entrevistas; programas de TV; os festivais de música afro e a Noite da Beleza Negra, entre
outros. Isso não significa que as pessoas só desejem expresssar sua singularidade nesses
momentos ou que aquelas que utilizam roupas afro no dia-a-dia sejam mais negras do que
as demais: ainda que seja o cotidiano, utilizar tais roupas tem sentido por se conceber o
trabalho, o provável encontro na rua, o ato de ser visto por outros como ‘eventos’,
momentos especiais em que se deseja expressar uma forma singular de ser, que é negra.
consciência étnica’ significa vestir-se, comportar-se, pensar e sentir de uma mesma forma,
como se esta estivesse em algum lugar aguardando ser ‘enxergada’ ou ‘assumida’. Tratar o
movimento dos blocos afro, o movimento negro político ou qualquer outro movimento
houvesse uma única forma de ser afetado por um novo modo de existência, o qual já está
bloco”67 talvez seja o evento mais emblemático promovido pelos blocos afro na produção
de seu desejo de diferir. Ritmos, danças e roupas não significam tanto para a proposta de
uma outra concepção da vida social quanto a afirmação de que uma estética percebida
como muito distinta da dominante deve ser admirada. Pois é no corpo, no rosto, na cor da
pele, na textura e forma dos cabelos que o racismo mais se agarra, onde o modelo único
mais se impõe.
O Ilê Aiyê foi também o pioneiro na realização de um concurso para eleger uma
mulher com o objetivo de representar o bloco: a ‘Deusa de Ébano’. De acordo com Agier
(2000) a ‘Noite da Beleza Negra’ teria surgido na “segunda fase” do Ilê, caracterizada pela
66
Um exemplo da ‘não criação’ presente na idéia de ‘tomada de consciência’ é a observação de Zourabichvili
(2000) a respeito do comunismo segundo o marxismo: “o comunismo não está, propriamente falando, por
vir; ele está, desde já, presente como uma tendência, inscrita nas constradições do sistema atual. O que
permite falar do futuro, sem descambar em princípio para o sonho ou para o arbitrário, é a possibilidade de
decifrá-lo no próprio presente em devir. Mas, desse modo, a estrutura de realização aparece combatida de
modo insuficiente: tem-se sempre previamente o futuro em imagem, graças ao instrumento dialético; o
realizável é apenas elevado a necessário, enquanto o virtual conserva a forma antecipatória de uma meta
(essa é a maneira pela qual o futuro continua a se antecipar no presente). Daí por que operador revolucionário
por excelência é a tomada de consciência, que pressupõe o próprio conteúdo e dá, paradoxalmente, ao futuro
a forma lógica do passado: não a emergência de uma nova sensibilidade.” (:344-5, nota 26).
67
Talvez porque receba este título, e ainda que ressalte que “em menor medida” do que o maracatu, Ribard
atribui a eleição da rainha à influência do coroamento do rei e da rainha na Congada (1999:166). Entretanto,
é bom lembrar que apesar dos padrões estéticos e critérios distintos, trata-se de um concurso de beleza, tal
qual os concursos de “miss” que fizeram tanto sucesso no Brasil durante décadas (e ainda existentes), cujas
vencedoras recebem (ou recebiam) manto, coroa e cetro.
263
“intenção africanista mais política e pedagógica” (:79)68. Nessa época surgiram o que o
Beleza Negra, Agier também assim qualifica o ‘Dia da Mãe Preta’, comemorado em 28/09,
dia em que foi assinada a Lei do Ventre Livre 69 (faz-se uma homenagem à Mãe Hilda e,
caráter “étnico” ocorridas neste mês, começando com o aniversário do grupo, dia 1 o,
dia 22 (:125)70.
A Noite da Beleza Negra é, sem dúvida alguma, um concurso de beleza. Mas acima
roupa ao estilo afro. No Ilê, além de saber dançar para desfilar no alto de um carro
alegórico – critério essencial em todos os blocos, segundo Ribard (1999:432, nota 61) – é
preciso ter uma “postura identitária ligada à expressão da consciência negra” (:433). Para
potencial de articulação verbal e suas idéias a respeito do Ilê, uma forma de verificar se ela
68
Agier (2000) divide a história do Ilê Aiyê em três fases distintas que correspondem à “caracterização
progressiva de sua identidade”: a primeira fase, no surgimento do grupo, teria como principal característica o
desejo de “participação no carnaval” a partir de uma organização “informal”, cujo diferencial do bloco estaria
apoiado sobre um “exotismo improvisado”; a segunda fase enfatizaria seu engajamento político e uma
concepção de “africanização mais trabalhada”; já a terceira fase, já no final dos anos 80, seria marcada pelo
investimento do grupo em seu caráter associativo (os trabalhos sociais) e empresarial (:77).
69
Segundo Agier, o grupo buscava um dia para dedicar à Mãe Preta e encontraram a data num “calendário de
igreja” (2000:125).
70
Na resenha que faz ao trabalho de Agier, entre várias outras objeções, Moura diz que o calendário
apresentado pelo autor não é cumprido daquela forma e que “o esquema de interpretação utilizado pelo autor
[do qual o calendário é parte] parece ter vida própria” (2000:368). No entanto, ao final do parágrafo em que
dá essas informações, o próprio Michel Agier observa que só o Dia de Zumbi dos Palmares é comemorado
com regularidade (2000:125).
264
se encaixa no perfil do bloco: ela deve ter “consciência racial” e “inspirar respeito” (Agier
2000:137).
E é natural que exista essa exigência, pois, como representante do bloco – no caso
do Ilê Aiyê especialmente, por ser um grupo importante, pelo qual ela dará entrevistas, será
assediada pela imprensa – e eleita para isso com base em critérios que valorizam elementos
‘étnicos’ que diferem do padrão de beleza hegemônico, é necessário que seu discurso
condiza com a razão de ser do evento, cujos objetivos são: “a busca constante da mudança
dos modelos de beleza no país, a valorização da beleza negra, a satisfação do negro a partir
(Agier 2000:131).
O investimento do Ilê Aiyê numa imagem de “elite negra”, tal como defendido por
Agier (2000), é constituído não só pela diferenciação econômica, que teve origem na
formação profissional e emprego de seus fundadores, mas também passa pela diferenciação
negra. No caso da ‘deusa de ébano’, por ser representante do bloco e por ser mulher e
negra, sobre quem os estereótipos incidem com mais vigor, as exigências em relação aos
valores morais são ainda mais destacados. Ainda segundo Agier, a mulher no Ilê Aiyê – e
isso é dito às candidatas ao título de Beleza Negra – deve representar força, dignidade
cultura negra (o que significa “ancestralidade”) e deve ter sentido de família, pois estará
No Dilazenze, o concurso foi realizado pela primeira vez sob o nome de “Garota
Black Dilazenze”, em 1987. Já na segunda edição passou a receber o mesmo nome criado
pelo Ilê Aiyê, e também apresenta preocupações com os comportamentos morais de seus
que isso venha a acontecer. Apesar de haver inscrições, uma pré-seleção é feita a partir do
próprio convite para o concurso, em geral dirigido a moças que integram o grupo de dança
ou que tenham parentesco ou amizade com alguém do grupo, sendo esta uma suposta
garantia de que a vencedora virá a se integrar ao bloco, pois espera-se que sua presença
não seja restrita ao desfile. Mas isso é só um ideal. Unicamente a beleza de uma candidata
sem relação prévia com o grupo, que pareça só estar interessada em ganhar um ‘concurso
de beleza’ e ser destaque do bloco desfilando no alto do caminhão, pode ser motivo
suficiente para obter uma torcida forte entre os homens e causar discussões destes com
[su]as mulheres. Aos jurados71 recomenda-se que observem se as candidatas sabem dançar
afro: como destacou Ribard para os blocos de Salvador, também em Ilhéus este é um
critério essencial. Algumas chegam a ter aulas com a coreógrafa do grupo dias ou mesmo
horas antes do desfile, mas nem sempre isso é suficiente. Quando nenhuma das candidatas
é uma exímia dançarina, os comentários que levam a apostas e previsões sobre quem
vencerá, ou sobre quem deveria vencer para o bem do grupo – quem fará “mais bonito” no
habilidades para o aprendizado da dança, tarefa à qual ela deve estar disposta a se dedicar
no período entre o concurso e o carnaval que, em geral, não passa de uma semana.
que às vezes cada candidata representa um país africano; em outros concursos, cada uma
estiliza a roupa do seu orixá – ou do que se supõe ser o seu orixá, já que nem todas são do
71
Geralmente, o júri é formado por artistas locais (músicos, escritores, atores e diretores) que acompanham a
trajetória dos grupos afro através de uma participação ou outra em alguns eventos e pela posição mesma de
jurados, em concursos como esses ou nos próprios desfiles; por patrocinadores – quando eles existem –, por
pessoas consideradas ilustres que estejam na cidade e que se aproximam do grupo e, em algumas ocasiões
nos últimos anos, por pesquisadores. Em 2000, por exemplo, o “corpo de jurados” era formado por mim; pelo
então secretário de Esportes e que seria candidato a vereador naquele ano (que possui uma relação próxima
aos blocos e já participou de alguns deles); por uma cantora de nome da cidade, que participou do Força
266
candomblé. Na Noite da Beleza Negra de 2000, o importante era que o traje fosse ‘afro’,
ou seja, havia uma mistura de tecidos e estilos, concebida a partir de um certo improviso.
Poucas candidatas possuíam sua própria roupa e todas elas foram, ainda que apenas com
um ou outro detalhe, arrumadas pelas mulheres do grupo. Assim, tecidos com motivo de
tecido, palha e búzios. Atualmente, o artista plástico que colabora com o Dilazenze faz
esculturas em madeira como troféu. Mas há também uma possibilidade, ainda que rara, de
fazer uma ‘carreira’. Dois casos ocorridos nos últimos anos são exemplares de quais são
esses possíveis ganhos. Em 1999, com a volta da competição entre os blocos, o Dilazenze
desejava desfilar com uma rainha, mas pôde realizar a Noite da Beleza Negra por falta de
recursos. Convidou, então, uma moça que já fora rainha do grupo e de outros blocos, além
de já ter pertencido ao grupo de dança do próprio Dilazenze, mas também do Axé Odara.
Ela disse que só aceitaria o convite se recebesse um cachê para isso, pois já teria recebido
convites de outros blocos que lhe pagariam. O grupo recusou e a rainha daquele ano foi
periférico onde está situada a UESC) que fazia aulas de dança com a coreógrafa do grupo
participar do concurso por já ser de um grupo de dança afro. Na Noite da Beleza Negra de
2001, ela ficou com o segundo lugar, mas acabou também desfilando no alto do caminhão
Negra em seu início; por uma poetisa e produtora cultural e por um representante do setor de financiamento
de pequenos empreendimentos da Caixa Econômica Federal, da cidade vizinha de Itabuna.
267
– na verdade, havia uma torcida grande por ela entre os componentes do grupo e como a
decisão dos jurados não agradou muito, uma prerrogativa foi aberta exclusivamente neste
ano para que a ‘vice’ também desfilasse. Ela passou a se integrar ao grupo de dança do
Dilazenze e a fazer apresentações e foi, assim, ‘projetada’, como disse um dos integrantes
do Dilazenze: “Quem era ela antes do carnaval? Era uma menina lá do Salobrinho. Só.
Mas ninguém sabia quem era ela. Saiu no Dilazenze, fez filme para a Ilhéustur. Está como
‘gabriela’73. Por quê? Porque foi vice. Não foi nem rainha, foi vice. Mas ficou conhecida
Negra em Ilhéus, embora com bem menos freqüência do que o Dilazenze. Até o fim do
com o Dilazenze.
No caso do Ilê Aiyê, a Noite da Beleza Negra passou a ser um de seus maiores
eventos, para o qual são convidadas pessoas famosas para compor o júri. Ele costuma
acontecer em clubes ou outros espaços, fora do bairro da Liberdade. A descrição que Agier
faz do concurso mostra ser este um momento especial para a participação feminina no
bloco: há mulheres no júri; o concurso é apresentado por uma mulher e o troféu é uma
forma, o que chama a atenção nesses eventos é justamente o fato de que há dias para
72
“Xale ou manta que se enrola na cabeça à guisa de turbante” (Dicionário Aurélio Eletrônico – Século
XXI).
73
Tem como emprego aparecer em eventos promovidos pelo governo municipal trajada conforme descrito
anteriormente.
268
feminina nos blocos afro: “encerro esse nosso papo aqui expressando um desejo: o de que
papel das mulheres se limitava a tarefas determinadas pelos homens, em geral, ligadas a
Salvador, assim como a experiência em Ilhéus, mostram que pouco mudou desde então.
e no terreiro (:431-2); embora afirme que é “cada vez mais e mais marcada a presença
entidades” (:333), o fato é que são poucos os exemplos que o autor pode dar. Ele cita Vera
Lacerda, presidente do Ara Ketu, que foi sua fundadora, e Cristina Rodrigues, dirigente do
mulheres, ele cita o “Filhas de Oxum”, um afoxé criado como contraponto ao “Filhos de
Olodum (:333-4) 74, que já havia tentado fundar uma banda feminina no Olodum que não
foi à frente.
feminina em seus quadros, pelo menos é o que diz um documento denominado “Carta de
novembro de 1993 e promovido pela FEBAB 75. Na seção intitulada “A Situação dos
mulher no bloco afro ainda é pequena pelo machismo que impera em várias entidades”.
74
É provável que desde 1995, ano em que Ribard realizou sua pesquisa, outros grupos e bandas afro devem
ter surgido na capital baiana.
269
Porém, nas duas seções seguintes, chamadas “Nossas Propostas” [da direção da Federação]
e “Propostas dos Dirigentes para a FEBAB”, nas quais deveriam constar encaminhamentos
Para Agier, contudo, uma das características mais marcantes do Ilê Aiyê é a forte
presença feminina. A partir de 1990, elas tornaram-se mais numerosas do que eles, em sua
opinião, por duas razões: a primeira porque o bloco criou uma imagem de si como
bloco, apesar da importância que o grupo concede à figura de Mãe Hilda e às mulheres em
dezessete pessoas, sendo apenas quatro mulheres e destas, uma era irmã e a outra esposa de
Vovô (:95).
blocos afro – nas “prendas domésticas e de escritório” (1981:128) – ainda é válida para os
tempos atuais entre os grupos ilheenses. Além dos espaços sexualmente bem marcados da
percussão e da dança, conforme discutido páginas atrás, os espaços das tarefas mais gerais
locais de encontro dos dirigentes dos blocos, as únicas mulheres presentes eram a dirigente
eu. No entanto, em visita a alguma atividade promovida por um dos blocos ou mesmo para
75
Ver Encontros 1. Uma cópia do documento foi-me cedida por Marinho Rodrigues, presidente do
270
estavam sempre por perto, fosse na limpeza, na organização dos papéis, na preparação de
comidas para vender ou servir ou no cuidado com as roupas. Os depoimentos de alguns ex-
‘trancinhas’ numa oficina dada pelo Olodum em Ilhéus e assim conseguiu recursos para o
singular em relação aos demais blocos de Ilhéus. Assim como acontece com Mãe Hilda no
funcionamento do Dilazenze. O diferencial que sua presença imprime ao grupo é que sua
importância reside não apenas no seu “papel ritual”, como diria Agier, de ‘mãe’, ‘carnal’ e
implantação do Projeto Batukerê, em 2000, o bloco possuía uma banda mirim, que tinha
uma mulher como mestre76, algo bastante raro. Desde seu início, a formação do grupo já
bateria do Axé Odara e que tiveram a iniciativa de fundar um novo grupo, contaram com
irmãs, primas, namoradas e amigas da rua para a nova empreitada. A formação do grupo a
partir de uma base familiar e a liderança da mãe-de-santo, às vezes chamada por seus
membros de “nossa matriarca”, favorecem que a participação feminina seja mais intensa
no Dilazenze do que a que costuma ocorrer nos demais blocos, mas está longe de ser a
Entre os blocos afro de Ilhéus, o Zambi Axé também merece destaque no que tange
à participação feminina. O grupo de dança a partir do qual foi fundado tinha uma mulher
como uma das principais lideranças, que também desempenhou um papel importante na
sua fundação e em seus primeiros anos. Ela foi presidente do grupo, coreógrafa, estilista e
até compositora. E, mesmo morando em Salvador nos últimos anos, continua a contribuir
Músicas e temas
Um dos elementos mais utilizados para caracterizar os blocos afro é o tema usado
em seus desfiles. O tema é o assunto, ou o ‘enredo’, sobre o qual o bloco afro tratará em
sua música e em suas alegorias e fantasias. No início do movimento dos blocos afro, eles
se referiam, sobretudo, aos países africanos. Segundo Gomes (1989:183; 185), o Olodum
foi o responsável pela expansão temática, passando a trabalhar também com países da
diáspora negra, inclusive com a história da população negra no Brasil, e até mesmo com
países que não fazem parte da África Negra, como Egito e Madagascar77, dois grandes
É a partir da análise dos temas enfocados pelo Ilê Aiyê que Agier (2000:77) divide,
como já visto, a história do grupo em três fases, privilegiando mais ou menos os países
africanos como locais de ‘origem’ e explorando uma África exótica e o candomblé como
essa África no Brasil, na primeira fase; as lutas políticas dos países africanos, com ênfase
76
Infelizmente falecida em 2001.
272
seus principais eventos históricos e suas lutas mais atuais contra o racismo, trabalhando
A divisão de ‘fases’ em relação aos temas feita por Ribard (1999:419-20) difere um
pouco daquela de Agier pela composição de cada uma delas, mas não dos temas em si.
Primeiramente, o enfoque dos blocos afro teria sido sobre o candomblé e sobre uma África
africana e americana”; já no terceiro momento, o assunto dos grupos seria a situação atual
Em geral, os blocos afro de Ilhéus seguem esse ‘padrão temático’ apontado pelos
autores acima: candomblé, países africanos, eventos e personagens históricos 78. Alguns
temas já foram enfocados por mais de um bloco, como “Canudos”, “Revolta dos Búzios”,
“Quilombo”, entre outros. Também temas sobre orixás são bastante utilizados, mas talvez
o Dilazenze tenha sido o bloco que mais trabalhou o candomblé em seus desfiles: além de
ter feito homenagens a orixás, como Xangô, Oxumaré, Oxóssi e as Iabás (orixás
femininos), respectivamente nos anos de 1988, 1989, 1990 e 2003, por exemplo, o grupo
terreiro, logo em sua estréia em 1987, e em 1998 o tema foi a própria história do terreiro.
comemorando seus 15 anos completados no ano anterior. Ou mesmo uma exaltação a todos
os blocos da cidade, como fez o atual dirigente dos Malês em 1988, quando ainda era
77
Cf. Ribard 1999:426-9, onde o autor transcreve e faz uma análise da letra de uma das músicas compostas
para o tema Madagascar, do Olodum, de 1988.
78
É preciso fazer uma observação quanto à dificuldade de conseguir coletar essas informações junto aos
blocos afro de Ilhéus, pois eles não possuem arquivos de seus temas e músicas. Na maioria dos casos, o único
registro é a memória dos dirigentes. Para sua dissertação de mestrado, Cambria (2002) fez um trabalho
273
diretor dos Gangas. Ele sempre lembra de, provavelmente, seu melhor tema e música – já
que também foi o compositor: “Afrocomunhão”, uma homenagem a todos os blocos afro
de Ilhéus.
Ilhéus, como foi o meu caso, é possível perceber uma espécie de senso comum a respeito
dos temas. Quase que como jargões, pessoas de experiências distintas declararam opiniões
muito semelhantes. Pessoalmente ou através de relatos de integrantes dos grupos afro, ouvi
a mesma reclamação de que os blocos de Ilhéus não trabalham temas locais, não valorizam
o seu ‘povo’, a ‘sua história’. De fato, além de personagens importantes para cada bloco
em particular 79, o tema ‘local’ mais trabalhado pelos blocos afro é a Revolta do Engenho
que quase todos os blocos, ao menos entre os mais antigos, já tenham se dedicado a
Engenho de Santana é contada pelo prisma da resistência e da vitória, e ainda que ao final
produção historiográfica sobre o assunto, à qual os blocos podem recorrer para montar suas
apostilas.
No entanto, como os grupos poderiam trabalhar sobre “os negros da região” numa
cidade cuja ‘história’, como já foi visto em Encontros 2, não admite a existência de
escravidão, não havendo, portanto, produção sobre o tema? Como esperar que os grupos
afro explorem assuntos sobre os quais não há material a que possam recorrer? Essa
dificuldade foi sentida na pele por militantes do MNU que assumiram o grupo Força Negra
exaustivo de compilar o repertório do Dilazenze, talvez o único bloco em que isso seja possível, já que é o
que possui um arquivo de documentos, ainda que com lacunas.
274
em 1997, após este ter sido desativado em função da conversão de seus líderes ao
protestantismo. A proposta dos novos dirigentes era a de fazer com que o grupo viesse a
explorar a presença de negros ‘angola’ na região, tanto como tema de carnaval quanto em
outros trabalhos no dia-a-dia. O argumento era baseado na hipótese de que a maior parte
dos escravos que se dirigiram para o sul da Bahia era de origem bantu e que isso tivesse
trazido especificidades para a ‘cultura negra’ local, já realçada nos terreiros de candomblé,
mas que poderia ser notada em outros elementos ainda não percebidos como herança dessa
origem. Embora o Força Negra não tivesse conseguido sequer montar um projeto sobre o
tema por falta de material disponível80, um dos seus principais líderes insistia na idéia de
que os grupos afro de Ilhéus deveriam explorar a ‘origem angola’ da população negra da
região, pois isso poderia ser ‘lucrativo’ para os grupos afro a partir da geração de um
trabalho distinto daquele produzido pelos blocos de Salvador, o que lhes possibilitaria
alguma competitividade com estes últimos no quadro geral do turismo do estado, além de
A mesma ‘queixa’ da falta de trabalho dos blocos com temas locais vem também de
um outro tipo de discurso: aquele que exige que os blocos prestem um serviço à
comunidade, que sua relevância para a ‘cultura local’ seria maior se eles pudessem “trazer
pessoas negras “ilustres” de Ilhéus ou que nela moraram. Não obstante as intenções
políticas das propostas, ambos os discursos têm, no fundo, a mesma concepção de que os
grupos afro devem ter outros objetivos além daquele de serem ‘carnavalescos’.
79
Neste ano de 2004, o Dilazenze homenageou Mário Gusmão, enquanto o Miny Kongo fez o mesmo por
Pai Pedro, falecido em 2003.
80
Nesse caso é importante ressaltar que o grupo apresentava uma média de taxa de escolaridade bem
diferente dos demais blocos afro, já que vários de seus componentes estavam cursando o nível superior.
81
Durante a reestruturação do CEAC em 1997, esse mesmo líder insistia que a entidade deveria constituir
uma equipe de assessoria, também em pesquisa, para auxiliar os grupos.
275
denúncia. (...) É um ato político”, é o que diz um dos seus dirigentes em Ilhéus. E isso é
tanto mais verdade se for considerado que as músicas dos blocos são compostas, em geral,
em função dos temas propostos para cada ano. São as ‘músicas-tema’. No Dilazenze, no
Rastafiry e, mais raramente, em alguns outros blocos de Ilhéus, elas são apresentadas nos
festivais de música que, em geral, ocorrem na mesma noite do concurso de Beleza Negra.
compostas para os desfiles; as segundas não têm um tema imposto. Em geral, elas são
românticas, mas podem ser de denúncia ou, como diz Vovô, presidente do Ilê Aiyê,
Também com base em sua pesquisa com o Ilê Aiyê, Agier (2000) define ‘música-poesia’
como “uma composição sem tema imposto, mas onde o autor deve, entretanto, desenvolver
os valores (ideológicos, morais, estéticos, etc.) que ele reconhece no Ilê Aiyê” (:164). Seja
música composta para o desfile do bloco ou ‘música-poesia’, o importante é que ela seja
negros; valorizando a origem ‘cultural’, seja pelo candomblé ou pelos países africanos; ou,
Dilazenze, Cambria (2002) busca definir o que seria ‘música negra’ para o grupo. O autor
chega à conclusão de que é aquela que fala “do negro, de sua realidade, de sua cultura.”
276
(:119). Em nota, diz que as músicas-poesia que se referem à “questão negra, compostas
fora do carnaval, de alguma forma, constituem uma ponte entre os dois tipos” (:119),
donde se poderia concluir que as músicas-poesia que não falam da questão negra não
seriam, então, música negra. Tomando a fala de Vovô, transcrita acima, letras de música
afirmar que as músicas de um bloco afro são sempre ‘música negra’82. Isso não significa
dizer que as músicas apresentadas pelos grupos afro em seus shows o sejam, pois “músicas
de axé, de pagode são sempre pedidas e a gente tem que tocar”. É evidente, como também
diz Cambria (:119), que “não é suficiente [a música] ter sido criada ou desenvolvida por
pessoas negras”, pois música clássica também poderia sê-lo, nem por isso seria ‘música
negra’. E um grupo pode até acusar um outro de não estar fazendo música negra se quiser
descaracterizá-lo como bloco afro, mas isso nunca seria dito enquanto discurso auto-
referido.
Rastafiry é considerado o bloco mais ‘político’ por trabalhar temas históricos com um
enfoque mais social. Também em ‘música-poesia’, o Rastafiry costuma fazer mais “música
conseguiu que uma de suas músicas fosse veiculada em rádios FM de Ilhéus, esta foi uma
bloco afro de Salvador em depoimento dado a Ribard (1999:230): “para que uma música
negra seja tocada, ela deve ser romântica”. E são justamente essas músicas que costumam
ser ‘ouvidas’ nos ensaios dos blocos e, como não são registradas, são ‘apropriadas’ por
blocos de trio ou bandas de axé, que mudam o ritmo e, às vezes, as letras83. É interessante
82
Evidentemente, um componente de um bloco pode vir a compor músicas cuja temática não seja negra, mas
não composta para o grupo afro.
83
Cf. Ribard 1999:302.
277
que Guerreiro exemplifique essa situação com um caso ocorrido com o compositor Rey
Zulu, que teve uma de suas músicas “roubada” por banda de trio e tocada em rádio antes
mesmo de ser registrada84. Anos atrás, Rey Zulu conheceu uma ‘música de protesto’ do
participar da gravação. Sob a alegação de que poderia tornar a música mais comercial, o
componente do Olodum acelerou um pouco seu ritmo e modificou a letra, retirando seu
A princípio, causa estranheza que existam blocos afro em Ilhéus que possuam a
eventos chamados ‘Terça’ ou ‘Sexta’ ‘do Reggae’ sejam para apresentações de bandas afro
e que, por outro lado, bandas de reggae não façam parte do Conselho de Entidades Afro-
Culturais – CEAC, nem sejam incluídas no que se chama de ‘movimento negro’ da cidade.
Isso não significa que o reggae não seja ‘música negra’. As razões de sua não inclusão no
CEAC dizem respeito mais à natureza deste como entidade que agrega blocos afro e três
outros grupos quase que a ele impostos, como ver-se-á adiante, do que a uma classificação
poderiam fazer parte dele, chegou-se a cogitar a entrada de bandas de reggae na entidade.
Discutiu-se, então, a natureza do reggae como ‘afro’ ou não. Entre afirmações que
argumentavam pela mesma origem africana do reggae e do ‘afro’, seja por sua “concepção
etíope” ou pela semelhança baseada na “batida do ijexá”, que deu nome ao ritmo que se
tornou próprio dos blocos afro, o samba-reggae, foi vetada a participação de bandas de
reggae no Conselho porque elas nunca poderiam se tornar blocos afro. Por outro lado,
naquele mesmo ano, com o objetivo de arrecadar fundos para o carnaval dos blocos, o
84
Guerreiro informa que se trata da música “Elejigbó”, gravada mais tarde pela cantora Margareth Menezes e
278
CEAC decidiu pela realização de um grande show e o artista escolhido foi Edson Gomes,
que o evento seria um sucesso, havia também a expectativa de que o artista cobrasse um
cachê baixo porque seria um show em benefício de entidades negras, já que suas letras
tanto com o artista quanto com a prefeitura, a qual deveria financiar parte dos custos do
show como forma de um primeiro investimento nos grupos afro, que a partir daí seriam
capazes de gerar seus próprios recursos. Mas Edson Gomes acabou realizando um grande
show em Ilhéus trazido por uma empresária branca com auxílio da prefeitura, sem
nenhuma participação dos blocos. Em 2000, houve um outro show de Edson Gomes na
Porém, dessa vez, o reggae de Edson Gomes parecia bem menos com “música negra”, “de
protesto”: com invocações a Deus e aclamações ao “Senhor” a todo instante, foi como se
Edson Gomes perdesse sua condição de representante da população negra na luta contra o
sistema que a oprime, para falar numa linguagem própria ao estilo. Era reggae, mas já não
Nomes
É óbvio que um dos mais importantes símbolos ‘étnicos’ dos grupos afro são seus
nomes. O nome do grupo é o que primeiro aparece e o remete a algum dos elementos
aceitos na definição de bloco afro. Em Ilhéus, eles podem ser agrupados em três categorias:
diretamente ligado à religião. Os demais – Miny Kongo, Lê-guê Depá, Axé Odara e
Dilazenze – com mais ou menos intensidade, são ou foram vinculados a algum terreiro e a
força do bloco é imaginada a partir do significado do nome escolhido. E isso seja porque se
trata do orixá da cabeça do fundador ou porque é importante para o conjunto das pessoas
que o fundou, o que fará com que elas ou o bloco sejam protegidos (caso do Miny Kongo e
candomblé representam coisas boas (como no caso do Axé Odara), ou ainda porque se
trata do nome de alguém que tem um significado muito especial para o grupo (como para o
Dilazenze).
cuja reunião se dá em função do significado único que elas encerram: é a força do ‘povo
negro’ que se quer dar ao bloco, esteja esta força na idéia de capacidade de luta – “Força
O nome do grupo pode revelar ainda sua preferência musical, como é o caso do
porém, além da preferência pela batida do reggae – o grupo sempre afirmou uma
embora nunca tenham sido praticantes, e, principalmente, por seus maiores líderes: na sede
Carnaval
Por ser um evento em que são acionados de uma só vez vários elementos buscados
no que se denomina ‘cultura negra’ e que participam da composição dos blocos afro, o
produz uma ‘identidade étnica’, portanto, um lugar para o confronto ou para a interação de
‘identidades’.
de um ‘outro’. No caso dos blocos afro, estes assumem o lugar do ‘nós’ enquanto a
‘sociedade’ ou ‘os blocos de trio’ assumem o lugar do ‘outro’. Sendo assim, não só o
desfile em si, como também o famoso ‘encontro’ dos blocos e sua disputa por horários e
experiência dos blocos afro em Ilhéus sob esses mesmos prismas, comparando-a com o que
é observado por alguns dos autores que trabalham com o tema em Salvador.
feita por Ribard (1999:26) que por já ser um clichê, o autor escreve o termo ‘vitrine’ em
português. Em minha dissertação de mestrado, reproduzi esta mesma frase, que me fora
86
Ver Encontros 1.
281
dos grupos afro em suas comunidades durante todo o ano e argumentava que apresentar
esse trabalho para a sociedade era a função do carnaval (Silva 1998:105). Também ouvi a
momentos específicos, por dirigentes dos blocos afro, o termo ‘vitrine’ significaria mesmo
uma pequena parte, uma ‘amostra’ de um trabalho que ocorre durante o ano nas
comunidades dos grupos afro e tem o desfile no carnaval como auge, como um momento
culminante daquele esforço 87, cujo objetivo final deveria ser o de ‘aumentar a auto-estima’
tanto das pessoas envolvidas no trabalho, quanto da população negra de modo geral. O
desfile do bloco afro no carnaval, seria, então, percebido mais como um meio e não como
algo que tem um fim em si mesmo. Ele seria um ‘trabalho social’, como será visto no
próximo capítulo.
Ainda de acordo com Ribard, o carnaval seria um “meio para os blocos afro
cultural (...) e também de ser reconhecidos pelas instâncias oficiais e por patrocinadores,
ainda que esse reconhecimento seja apenas hipotético.” (1999:414). Essa também é uma
forma de ver o carnaval como vitrine, talvez no sentido mais usual do termo: o de se
patrocínio. Chamando a atenção de que esse reconhecimento pode ser apenas hipotético, o
autor parece desejar informar que dificilmente há uma mudança real na obtenção de
recursos para o bloco a partir de uma melhor ou pior apresentação no desfile, seja junto ao
87
Costuma-se dizer o mesmo para os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, embora nesse caso, o
objeto em discussão sejam os carros alegóricos, as fantasias e adereços, que começam a ser confeccionados
282
governo, seja junto a patrocinadores. Mas no caso do Dilazenze em Ilhéus, pode-se dizer
que o carnaval, de fato, funcionou como ‘vitrine’ e trouxe benefícios para o grupo, ainda
que não exatamente financeiros. Depois de alguns anos sem desfile e alguns mais sem
voltaram a competir. Deste ano até 2003, o Dilazenze foi o campeão. Mesmo que em
algumas edições do concurso sua vitória tenha sido por poucos pontos – numa delas,
apenas por meio ponto sobre o Miny Kongo na contagem final –, as vitórias consecutivas
conseqüente maior presença na mídia compuseram uma tal configuração que fez com que
começassem a ser repetidos por seus membros e por representantes do governo, além dos
2001, observações dos jurados nesse sentido foram registradas nos versos das planilhas de
apuração do concurso que, sendo repassadas ao grupo, só reforçaram a idéia e foram uma
das justificativas para que em 2004 o Dilazenze deixasse de concorrer, tornando-se hors
concurs.
Mas a palavra ‘vitrine’ pode expressar ainda uma outra percepção do carnaval que,
proposta de constituição dos blocos quanto de sua prioridade atual. Todo o esforço
isso mostra que para os blocos afro, apresentar-se no carnaval é, antes de tudo, apresentar
com muitos meses de antecedência. Em alguns casos mais, em outros menos, diz-se que ali está o trabalho da
283
‘bloco de carnaval’ só tem sentido se o evento for concebido desse ponto de vista.
Evidentemente essa percepção não é exclusiva dos grupos afro, nem é nova. As escolas de
formato que envolve fantasias, alegorias etc., uma tal forma de dançar ou de tocar, enfim,
que se constitui para ser visto, é um espetáculo. Mesmo entre grupos considerados
país que têm a figura do boi como personagem central etc., a ‘preservação da cultura’ se
qual cada componente deseja ser apreciado por outrem com a fantasia do bloco e sentir-se
bonito compondo o show a ser apresentado. No caso dos blocos afro, há aqueles que são
acessórios que os tornam ainda mais ‘afro’, como colares, pulseiras, faixas na cabeça etc.
Tudo isso é bem diferente do que ocorre num bloco de arrasto ou num bloco de trio, nos
quais as pessoas usam a mesma camiseta e o que importa é a música, é estar no bloco.
Enquanto nos blocos afro se ‘desfila’, nesses outros o que importa é ‘pular’.
carnaval do Rio de Janeiro, dominado pelas escolas de samba, tornou-se uma espécie de
senso comum no Brasil88, à qual foram agregados valores contidos em termos como
comunidade da escola.
88
Mas não apenas: já em 1967, um autor uruguaio definia o carnaval montevideano como “carnaval de
espetáculos” (Ver Carvalho Neto 1967 apud Frigerio 1996).
284
‘democrático’, ‘do povo’, em relação ao primeiro, e ‘para turista ver’, ‘para ganhar
dinheiro’, para o carnaval do Rio de Janeiro. Apesar do crescimento dos blocos afro e dos
populares, e também porque “a música que emana dos trios abastece tanto associados dos
blocos como os foliões pipoca” (Guerreiro 2000:244), ou seja, quem está fora das cordas.
Por outro lado, a imagem do carnaval do Rio como ‘espetáculo para turista’ também foi
do espaço pela diferença de preços dos ingressos e pela cada vez maior quantidade de
sentido se colocada junto às definições a respeito do evento produzidas por alguns dos
autores com os quais este trabalho vem dialogando. Na introdução a este capítulo, foi
observado que a definição de bloco afro defendida pela grande maioria dos autores refere-
que sugerem que as atividades desenvolvidas pelo bloco, principalmente o carnaval, são
étnico. Assim, as definições em torno do carnaval não poderiam seguir outro caminho.
carnavalesco a partir da observação dos blocos afro de Salvador parecem dialogar com a
89
Como mostra uma matéria jornalística que elogia os grupos afro em função do “espetáculo montado para
ser exibido e colher aplausos” e critica os blocos de trio por serem “culturalmente vazios” (Jornal A Tarde,
09/02/86 apud Gomes 1989:182).
90
Ver Sheriff (1999) em artigo de título bastante eloqüente: “The Theft of Carnaval: National Spectacle and
Racial Politics in Rio de Janeiro” (“O Roubo do Carnaval: Espetáculo Nacional e Políticas Raciais no Rio de
Janeiro”).
285
das coisas, pessoas, gestos, categorias e grupos sociais (...). A transformação do carnaval
que parece dizer Antônio Risério quando afirma que há uma “força transformadora”
atuando no carnaval e que “não é verdade dizer que depois do carnaval tudo volta a ser
como era antes” (1981:19). Nisso também acreditam Agier (2000), para quem o carnaval é
que pode se prolongar no cotidiano da cidade (:29); e Ribard (1999), que concebe a festa
entre as análises desses autores, mas nem Ribard nem Agier afirmam que há uma mudança
“afirmar” uma ‘identidade étnica coletiva’ para Ribard, ou de “ritualizar” uma ‘identidade’
de “elite negra”, no caso de Agier92, ao apresentar um ‘outro mundo’, no qual ‘os negros’
estariam ocupando um outro lugar na ‘sociedade’; o desfile seria uma forma de exprimir
91
Agier trabalha com a idéia de que o carnaval é um “contexto ritual”: “um espaço-tempo fora do cotidiano,
propício à simbolização, sem prejulgar as formas e a densidade dele (...): a simbolização ritual aí é diferente e
desigualmente densa segundo os atores e os momentos (às vezes nulo e às vezes excessivo), e essas
diferenças de sentido reenviam à segmentação desse espaço segundo as categorias sociais e sócio-raciais
presentes na cidade e na festa” (2000:231)
92
Agier toma o cuidado de não generalizar a idéia de que o carnaval é uma “distorção do real” através da
ritualização de identidades para todos que dele participam. Ele primeiramente diz que só os grupos afro o
286
organização, como as costureiras por exemplo, podem viver poucos outros momentos de
carnaval que não sejam aqueles do desfile de seu bloco, aos quais se resume a festa. É
óbvio, então, que num mesmo momento, carnavais muito diferentes estejam sendo vividos
por um turista, por um folião de vários blocos de arrasto ou por pessoas que só vão assistir
por um lado, e pela ‘sociedade’ por outro. Um primeiro ponto a ser observado é que só os
grupos afro possuem uma identidade. A idéia de encontro, nesse caso, vem do fato de que
uma identidade só pode existir frente a outras, como defende Agier (2000:225). Adiante,
ver-se-á que, às vezes, essa ‘outra’ identidade é corporificada nos blocos de trio, chamados
de ‘blocos de branco’, e as narrativas dos embates raciais são concentradas aí, mas ainda
reunidos todos os elementos que o constituem como ‘afro’: música (letra e ritmo), dança,
indumentária, tema, alegorias, além de seu próprio nome. Há nesse instante uma produção
de subjetividade negra que afeta os componentes do bloco que, com exceção do Ilê, não
são exclusivamente pessoas consideradas negras, e que ‘racializa’ seus corpos através da
fazem e depois afirma que mesmo entre eles, os que mais ritualizam são os mais estruturados, aqueles
287
dança, dos acessórios, dos penteados... Tal subjetividade também pode afetar o público que
assiste ao desfile e pode fazer com que, tanto público quanto componentes, concebam o
desfile como momento de ‘afirmação’ de que ‘o mundo’ deveria ser de outra forma, de que
não deveria mais haver discriminação, de que as pessoas negras e sua cultura deveriam ser
torno dos grupos afro. Todavia, ao menos entre os grupos afro de Ilhéus, o que se espera
mesmo de um desfile é que o bloco seja bonito, admirado por quem o assiste. E cada
componente deseja colaborar para isso, fazendo-se bonito, dançando, tocando, cantando
Salvador: “de resto, alguns blocos de pessoas mais ricas, a fim de não se misturarem com a
crioulada, estão contratando pequenos (e lamentáveis) trios elétricos para tocar só para
eles, no espaço privativo do bloco, balizado por cordões” (:47). Os trios elétricos são
de 1949. E, pela diferença de estilo e de potência de som, desde o surgimento dos blocos
afro há conflitos quando ocorrem encontros entre eles. Mas os embates entre blocos afro e
blocos de trio foram acirrados a partir da privatização desses últimos, quando além de
potência e estilo, outras diferenças foram ressaltadas e colocadas em pólos opostos, como
‘cor’ e ‘classe social’, conforme descrito por Risério na citação acima quando o autor faz
referência a “pessoas mais ricas” que não desejam se misturar “com a crioulada”. Ao longo
da década de 80, os chamados ‘incidentes’ entre blocos afro e blocos de trio são
capazes de criar a imagem de uma elite negra, “o ponto forte do carnaval africanizado” (2000:55).
288
recorrentes: o encontro hipotético narrado por Gerônimo em “Macuxi Muita Onda” (“Eu
sou Negão”) pelo qual inicio o primeiro capítulo deste trabalho, de fato acontece.
embora seja notória a segmentação social e racial existente. Notícias a respeito de práticas
racistas por parte dos blocos de trio são antigas – Gomes (1989) informa que no início dos
anos 80 já havia denúncias contra os blocos – e perduram até o presente. Em 1999, chegou
a ser aberta uma Comissão Especial de Inquérito sobre o assunto na Câmara de Vereadores
de Salvador, que ficou conhecida como CEI do Racismo. Na época, seis grandes blocos de
trio foram acusados de proibir a participação de pessoas negras, mas o Relatório Final da
CEI encaminhou solicitação ao Ministério Público que abrisse inquérito apenas contra um
deles, “A Barca” 93. Também pesa contra o título de ‘democrático’ dado ao carnaval de
Salvador, o espaço cada vez menor do ‘folião pipoca’, imprensado entre as cordas dos
Os blocos afro são, acima de tudo, percebidos por seu caráter ‘étnico’, como fica
claro pelas afirmações da grande maioria dos autores que trabalham com esse objeto. Mas
é interessante notar que praticamente todos eles, assim como também faço, ao falar de
blocos afro tocam também nos blocos de trio, até apontam práticas racistas, mas não lhes
atribuem uma “natureza política ou conotação étnica”, como ressalta Guerreiro, mesmo
dizendo que esses blocos constituem “espaços brancos”, às vezes originados em “grêmios”
de escolas 94, que angariam votos para políticos que os patrocinam e que alguns deles
93
No site www.uol.com.br/times/nytimes constava o relatório final original e o texto como foi apresentado
pelo relator, com alterações não aprovadas pela comissão que atenuavam as acusações.
94
“Esses jovens são, de modo geral, estudantes de escolas particulares e de cursinhos pré-vestibular, onde a
maioria dessas organizações se originou. Atualmente, os grêmios das escolas particulares são dominados
pelos blocos de carnaval e não por partidos políticos. Eles servem para cooptar novos foliões e para angariar
289
proposição de que não há ‘conotação étnica’ nesses espaços é derivada de uma concepção
observado antes neste trabalho. Porém, freqüentemente os blocos de trio assumem o lugar
Diferentemente da maior parte dos autores, Ribard (1999) confere uma ‘identidade’
ao folião de um bloco de trio famoso, considerando seu encontro com um folião de bloco
afro como o confronto de “dois mundos e duas identidades antinômicas”, no qual cada um
deles deseja “ser reconhecido a partir de sua origem sociocultural ou étnica” e “ocupar um
interação entre indivíduos que, situados nas extremidades da escala social (...) não têm, ou
[à] participação de cada um, qualquer que seja seu estatuto e sua posição social na
sociedade.” (:141).
da qual os blocos de trio, por um lado, e os blocos afro, por outro, seriam seus pólos.
estabelecida também por Agier ao longo de sua obra, Moura (Moura e Agier 2000)
argumenta que há vários blocos de trio mais baratos do que alguns blocos afro, como o
Olodum e o Ilê Aiyê, e que por isso “congregam um grande número de associados negros”
(:369). Por outro lado, baseado em sua tese de que o desfile do Ilê Aiyê ritualiza uma
ritual, o custo da inscrição do bloco confirma a série ritualmente criada para o desfile. O Ilê
Aiyê é o mais caro dos blocos afro-brasileiros do carnaval e vê-se que é necessário que
votos para os políticos que eventualmente patrocinam os trios, transformando alguns professores de segundo
290
seja.” (:196). Segundo Ribard, na época de sua pesquisa, as fantasias dos grandes blocos
afro custavam em torno de duzentos reais, preço alto que permite que apenas uma classe
média, seja negra, branca ou ‘mestiça’, possa participar. Guerreiro também informa que,
com exceção do Ilê, que só admite a participação de pessoas negras, os demais blocos afro,
“cujas bandas têm trânsito na mídia, são compostos por associados branco-mestiços e, em
menor escala, pela classe média negra.” (2000:244). Além do mais, esses blocos também
viraram ‘blocos de trio’, ainda que ‘afro’, mas têm a mesma estrutura dos outros: trio
O primeiro incidente entre bloco afro e trio elétrico em Ilhéus ocorreu com o Miny
Kongo em 1984 ao encontrar-se com o trio elétrico de Dodô e Osmar. Na ocasião, não
houve maiores problemas porque o trio permitiu que o Miny Kongo o atravessasse e
Osmar ainda pediu desculpas. Como ainda é hoje, tratava-se de um trio elétrico que era
Os encontros entre blocos afro e trios elétricos da década de 90 são bem diferentes
daquele de 1984. A partir de 1994, começam a surgir em Ilhéus os primeiros blocos de trio
ricas, todos, ou quase todos, os blocos de trio possuem ou possuíam sede na Av. Soares
nome de “Ilhéus Folia” de 1996 e 1997, tinham sido exclusivamente promovidos por eles,
foi o que se chamou de ‘privatização do carnaval’ e era dito que ambos foram grandes
sucessos.
Folia é de segregação, que Menezes (1998:83) chama de social, mas sem dúvida alguma é
também racial. Apesar de sua observação sobre cor só fazer referência aos seguranças (“na
maioria negros”), a informação sobre o preço do abadá (“que custa em torno de 200 reais”)
permite saber quem está do lado de dentro da corda e quem está do lado de fora96. Do
ponto de vista de um dirigente de bloco afro, bloco de trio é “só para rico e para negro
pobre e ousado”, que, segundo ele, se endivida durante todo o ano para desfilar num desses
blocos.
Nesse momento, eles eram bem mais numerosos e visíveis do que nas visitas
subseqüentes, pois permaneciam na mídia durante todo o ano: promoviam shows trazendo
atrações de fora, festas de fim de ano e “festas de camisa”. Essas últimas são atividades
particularmente interessantes em razão dos comentários gerados no meio dos blocos afro.
“Festas de camisa” são eventos em que o ingresso – e o consumo da festa, mas nem sempre
– é a compra de uma camisa do bloco, em 1997, entre trinta e cinqüenta reais, preços
considerados bastante altos. Apesar do preço e dos comentários de que pessoas negras não
eram bem tratadas, embora não houvesse proibição, os dias de ‘festas de camisa’
região do Dilazenze, seja porque as pessoas lamentavam não ter o dinheiro para ir, seja
porque algumas iam. O presidente do grupo reprovava essas pessoas, dizendo que algumas
“passa(va)m necessidades no dia-a-dia”, mas “não perde(ia)m uma dessas festas” porque,
95
Cordeiros são os seguranças responsáveis por ‘segurar a corda’ a fim de evitar que pessoas sem abadás
entrem no bloco. Num capítulo intitulado “As Cordas”, Guerreiro informa que os grandes blocos de trio
utilizam, em média, um segurança para cada três associados.
96
O artista plástico colaborador do Dilazenze contou que uma de suas experiências com racismo em Ilhéus
(ele é de outra cidade) se deu num Ilhéus Folia, quando foi proibido de entrar no espaço dos camarotes,
mesmo sendo convidado de seu cunhado, um alto funcionário da Ilheustur.
292
segundo sua visão, elas gostavam de freqüentar esses espaços, sentiam-se mais importantes
por isso. Entretanto, numa reunião do CEAC em que os dirigentes buscavam uma forma de
arrecadar recursos para os blocos, alguém levantou a possibilidade de realizar uma festa de
camisa, afinal, era sabido que os blocos de trio costumavam ter muito lucro com elas. A
idéia foi rebatida com o argumento de que eles teriam que cobrar muito pouco pela camisa
e a festa acabaria não dando lucro, pois mesmo aqueles que pagavam caro para ir nas
“festas dos barõesinhos”, não iriam querer pagar nada para ir na “festa de negão”.
Em 1999, em minha segunda ida a Ilhéus, diante do anúncio de uma dessas festas,
fui informada de que houvera uma diminuição grande destas, pois os blocos diziam ter
prejuízo com elas. Soube também que o preço das camisas havia aumentado muito (de
trinta para setenta reais) sob a alegação de que estava indo “muita gente do morro”, “muita
gente feia” – disse um membro de bloco afro como se estivesse repetindo algo dito por
Mas não foi o que aconteceu realmente, pois, mesmo no ‘carnaval cultural’, a prefeitura
manteve trios pequenos, que continuaram causando problemas, como o relatado por Vale
uma verdadeira discussão entre um dos membros do grupo e o vocalista do trio (:144).
293
antigo carnaval de rua –, formados pela “classe média mestiça”; depois do meio-dia, seria
o momento dos blocos de trio, nos quais a “presença de brancos é a mais numerosa” e são
formados pelas “classes média e superior da cidade” (:44); e à noite, seria o momento dos
momento da chegada dos mais pobres no carnaval. E esse momento constitui, no conjunto,
uma festa à parte para os negros da Bahia, muito pouco presentes nas duas outras
modalidades.” (:48) 97. Gomes (1989:182) reproduz um artigo jornalístico de 1986 que já
blocos, mas só em 1987 ela seria oficializada: os trios elétricos só poderiam desfilar até as
19 horas (:183). Anos depois, a posição dos blocos, especialmente dos considerados
antecipação do horário do desfile dos blocos afro foi uma das reivindicações presentes na
CEI do Racismo, que acabou funcionando apenas para os cinco maiores blocos (Ilê Aiyê,
determinado que em dois dos três dias de desfile, houvesse uma intercalação entre blocos
afro e blocos de trio a partir das 19 horas na Passarela do Campo Grande (:223) 99.
97
Ribard especula, em nota, que o horário do desfile dos blocos se deve ao padê de Exu que eles costumam
realizar, o que só pode acontecer após o pôr-do-sol (1999:447).
98
O Ara Ketu, incluído por Ribard, por exemplo, entre os cinco maiores, está ausente da relação de
Guerreiro, talvez por já desfilar no horário reservado aos blocos de trio, mas a autora não informa.
99
No Relatório Final da CEI, consta a seguinte proposta: “Promover mecanismos que garantam a
democratização dos espaços da festa, no circuito oficial, (Barra/Ondina, Campo Grande /Sé e nos que
porventura venham a ser criados) em especial quanto à ordem e horário do desfile das entidades
294
está-se tratando dos grupos em si, e não dos indivíduos e, desse ponto de vista, o fato do
desfile dos blocos afro ser tarde da noite é, segundo pessoas pertencentes aos grupos, como
pelos blocos afro, embora, ao menos entre os dirigentes ilheenses, dificilmente esse
‘desprezo’ seja associado à discriminação racial. Assim como em outras situações como
diferenciado sempre ‘para pior’ em relação aos demais grupos, mas a palavra
discriminação é raramente usada e, quando acontece, ela é dirigida aos grupos afro como
categoria, não como ‘racismo’, ou seja, não por ser um grupo formado por pessoas negras.
motivo inverso: eles se apresentam muito cedo. A organização do carnaval costuma iniciar
o desfile dos blocos afro por volta das dezoito horas, quando “não há ninguém na rua para
ver”, segundo um dos dirigentes. Sendo Ilhéus uma cidade cujo maior atrativo são suas
praias, e ainda durante o período do horário de verão em que só anoitece horas depois, os
componentes dos blocos afro alegam que as pessoas “só vão para as ruas mais tarde” e no
ocorreu do horário marcado para o início dos trios ser anterior ao horário de desfile do
último bloco afro. E, haja vista que este sempre sofre atrasos, não era raro haver também
em Ilhéus os famosos encontros entre o bloco afro e o trio elétrico. Nos últimos anos,
mesmo não tendo de concorrer com os trios, pois estes se apresentavam no ‘carnaval
carnavalescas, através do sorteio combinado com critérios que garantam a pluralidade e multiplicidade de
manifestações e atores da festa: blocos de trio, blocos afro, afoxés, blocos de percussão, mudanças, levadas,
trios elétricos independentes, grupos de foliões, pipocas etc.” (Relatório Final da CEI sobre Racismo no
Carnaval de Salvador in www.uol.com.br/times/nytimes).
295
shows de bandas de axé music, “pagode” e de forró da região nos palcos montados pela
Nos anos 80, quando ainda havia um bom número de afoxés, eles eram os primeiros
a desfilar, à tarde. Ainda era dia quando os blocos afro iniciavam seu desfile, logo após os
maior atração do carnaval de Ilhéus até o início da década de 90. Em função do horário de
início do desfile dos blocos, nota-se na programação de cada ano uma hierarquia na
apresentação dos grupos afro: os primeiros a entrar na avenida sempre foram os afoxés,
seguidos dos blocos estreantes ou menores. Quando chegava o momento dos “grandes”, já
havia um público maior. Nos últimos anos, o desfile tem ocorrido em dois dias, o que faz
com que os menores grupos sejam distribuídos nos primeiros horários, começando com o
afoxé, com os pauzinhos ou com a levada da capoeira, mas ainda assim, grupos
carnaval; é uma forma de impor-se no horário que se considera o ‘ideal’. Mas um atraso
esperar, ou uma situação de conflito, como desfilar em frente a um palco já em show, como
aconteceu em 2000. Não houve maiores problemas porque o palco estava localizado num
setor mais esvaziado da avenida, onde o grupo começa a se dispersar, e a banda que tocava
parou por alguns instantes e pediu aplausos para o bloco que passava.
100
Ilhéus teve dois carnavais entre os anos de 1997 e 2001. Nos dois anos seguintes, apenas o carnaval
‘cultural’ aconteceu. Neste ano de 2004, também houve apenas um carnaval, mas foi antecipado em cerca de
duas semanas em relação ao oficial, no qual trios e blocos afro voltaram a se apresentar nos mesmos dias.
296
Até aqui, este capítulo buscou apresentar os blocos afro a partir dos agenciamentos
negra. Tal produção se dá na relação dos blocos com o candomblé ou com elementos a ele
vinculados, assim como nas relações estabelecidas ou recusadas com outras religiões,
um viés que se define como ‘negro’ é construída em atividades cotidianas do grupo, mas
Os modelos de economia política não são universais.”, como diz Guattari (1986:121). A
isso, pode-se chamar “luta”, “resistência”... Por outro lado, ao organizar-se como entidade
racialmente orientada, o bloco afro corre o risco de sofrer, como instituição, o exercício de
práticas que também são racialmente orientadas, produzidas por outra forma de
A fim de defender o Ilê Aiyê das acusações de racismo que sofria por parte da
desfile, Risério escreveu que o que há no Ilê é “racismo institucional”, não “racismo
297
anos atrás”. Para ‘provar’ que as pessoas do grupo não são racistas, Risério faz uso de
argumentos semelhantes aos que são recorrentes entre não negros quando querem negar
seu racismo (em geral, evidenciado em comentários ou atos anteriores): “membros do Ilê
transam à vontade com pessoas brancas, em relações que vão da amizade ao envolvimento
O parágrafo acima não tem a intenção de introduzir uma discussão sobre a presença
ou a ausência de racismo no Ilê, assim como esta seção não pretende analisar se os
membros dos blocos afro de Ilhéus sofrem racismo individualmente ou se as pessoas com
as quais eles lidam em seu dia-a-dia são racistas ou não. Experiências pessoais e de
pessoas admitem que, pessoalmente, sofreram racismo ou que o praticaram, embora relatos
de discriminação racial tenham sido feitos aqui e ali ao longo da pesquisa. A proposta,
então, é oferecer ao leitor descrições de situações em que os blocos afro sofreram práticas
racistas enquanto entidades, tanto como prestadoras de trabalhos artísticos para setores
que se seguem constituem práticas racistas é oriunda do meu entendimento sobre elas e
sobre a própria concepção de racismo. Como foi adiantado na discussão anterior a respeito
situação de discriminação racial, e é possível que algumas das pessoas que protagonizaram
os exemplos abaixo não concordem com essa forma de qualificá-los. Elas poderiam
argumentar que bandas de pagode ou de reggae também são formados por pessoas negras
298
e, em inúmeras vezes, elas ocupam o lugar do outro termo nas comparações que levam os
grupos afro a afirmar que a forma de tratamento que lhes dão é pior do que a dispensada a
‘outros’. Todavia, ainda que não possa discutir absolutamente nada a respeito de bandas de
reggae e de pagode, sustento a formulação com base nos argumentos de que: (i) esses
grupos podem ter pessoas negras em sua composição mas isso não é determinante de sua
definição, que se dá a partir do estilo musical, que nem sempre é concebido como ‘negro’;
(ii) as bandas afro, ainda que estejam constituídas apenas como grupos musicais, ou seja,
e em sua estética uma concepção negra, assim apresentada e assim percebida; (iii) a
mundo e uma prática que estabelecem lugares para pessoas, para ‘culturas’ em função do
quanto elas não são ‘o padrão’ ou do grau de seu afastamento frente ao padrão. Desse
ponto de vista, práticas que contribuam para manter os grupos afro numa posição de
minoria, que evitem seu movimento em direção a mudanças, são práticas de racismo.
carnaval era seu único objetivo. Mas os elementos que compõem o momento de desfile dos
blocos, como a dança afro e a música, foram ao longo do tempo ganhando autonomia em
relação ao carnaval, a ponto de alguns grupos nascerem antes como bandas afro ou grupos
de dança para só depois se tornarem blocos afro. A autonomia dessas atividades fez com
que fosse possível transformar esses subgrupos no interior do bloco em grupos artísticos,
que estabelecem relações de prestação de serviços com agências de turismo, hotéis, casas
de show, produtoras de eventos e a própria prefeitura nas mais diferentes ocasiões 101. Essas
101
Mesmo quando não há essas subdivisões oficialmente e é o grupo que fecha o contrato, não é o bloco que
se apresenta, mas uma seleção de pessoas que compõem o bloco.
299
relações são especialmente etnicizadas, pois se baseiam na compra e venda de uma forma
grande investimento numa ‘cultura afro-baiana’, como em Salvador. Como aposta num
turismo diferencial a fim de não competir com a capital, o investimento turístico da cidade
dirige-se para Jorge Amado e suas obras, perfeitamente articulados com o cacau, produto-
imagem de Ilhéus102. Apesar disso, há algum espaço para os grupos afro, especialmente
definidas por Salvador, também devem estar aí disponíveis. Mas esse espaço é limitado e
determinado por quem gerencia o turismo na cidade, o que faz com que o mercado de
trabalho para os grupos afro seja escasso e bastante competitivo. Essas condições
racista envolvido nessas situações, explicitado também por uma série de comportamentos e
Os relatos feitos pelos dirigentes dos grupos afro sobre suas apresentações nos
hotéis da cidade são todos bem semelhantes e parecem não mudar muito ao longo dos
anos. Os blocos afro da cidade são contratados, ainda que cada vez mais raramente, pelos
grandes hotéis de luxo para apresentações noturnas para os hóspedes, especialmente na alta
formado por percussionistas, cantores e dançarinos. Logo que conheci o Dilazenze, seu
presidente comentou essas apresentações com orgulho, como sinal do sucesso do grupo.
Com o passar do tempo, foi possível perceber que elas constituíam um trabalho para o
grupo, necessário, mas muito longe de ser um orgulho. A começar pelos cachês,
extremamente baixos. Entre 1997 e 2001, eles não mudaram muito de valor: sempre entre
102
Ver Menezes 1998.
300
cem e cento e cinqüenta reais, a serem divididos, em geral, para um número que variava de
dez a quinze pessoas por apresentação, sendo às vezes ainda necessário usar uma parte
para a manutenção dos grupos, por exemplo, com reposição de peles dos instrumentos ou
horas de show, que poderiam se multiplicar em muitas mais, considerando o tempo entre o
momento em que o grupo saía da sede (ou do local marcado) e o retorno. Num dos hotéis,
um dos mais caros e badalados do país, era preciso esperar que todos os funcionários
terminassem seus trabalhos, já de madrugada, pois o ônibus que traria o grupo seria o
mesmo que fazia o transporte dos empregados. Outro motivo de reclamação dos grupos era
a estrutura para seus shows: péssimas acomodações nos camarins, comida de qualidade
ruim – sempre abaixo do que pedido pelos grupos na assinatura do contrato – e desrespeito
às exigências dos grupos quanto aos locais de apresentação, o que constitui um problema
Apesar de tudo isso, no verão os hotéis ainda representam (ou representavam) uma
fonte de trabalho para os grupos, cujas péssimas condições de trabalho são garantidas pela
competitividade entre eles: quando um grupo reclama e não as aceita, outro é convidado e
assume o lugar, até que também aquele passe a questionar a situação e outro seja chamado,
chegando novamente ao primeiro. Assim, a maior parte dos blocos afro de Ilhéus já
apresentação de pequenos shows para turistas que desembarcam no porto. Para esses
trabalhos, os grupos são contratados por agências de turismo em convênio com a Ilheustur,
sendo esta última a responsável pelo pagamento do cachê, o dobro daquele pago pelos
hotéis, mas que, em compensação, pode atrasar em um ano ou mais, ou mesmo não ser
301
estrutura – “às vezes nem água tem” – também são reclamações constantes dos grupos.
Em algumas ocasiões, quando os grupos afro são procurados pela própria Ilheustur
para outro tipo de trabalho, por outros órgãos da prefeitura e até por empresas ou pessoas
que supõem ter uma relação com algum tipo de afinidade com eles, o que era ‘compra’ e
para Salvador, peles para os instrumentos, ‘som’ para os ensaios dos grupos, divulgação de
que um projeto, que deverá ser lucrativo, ‘está só começando’ ou que os grupos devem
‘ajudar’ a pessoa ou a instituição tal, a ‘moeda de troca’ mais oferecida aos grupos são
variados grupos, desde os maiores até outros formados recentemente, eram convidados
para uma apresentação e quando perguntavam pelo cachê, a resposta era que seria dada
uma “caixa de cerveja” e, muitas vezes, isso ainda era dito sem muita certeza de que se
afro”.
Mas a situação pode ser ainda pior. Além das inúmeras vezes em que se oferece
algo ‘em troca’ dos serviços dos grupos, ainda que sejam ‘cervejinhas’, há outras em que
não se oferece absolutamente nada. Na verdade, o grupo deve “se sentir honrado por ter
sido selecionado” para aquele evento, o que lhe ‘dá’ a “oportunidade de divulgar o seu
mesmo ao Miny Kongo, os três considerados grandes e este último, na época da pesquisa,
Os exemplos seriam inúmeros entre aqueles que presenciei e aqueles que me foram
relatados, mas alguns são especialmente reveladores da visão que se tem dos grupos. Em
302
disseram que estavam planejando uma “cena” como parte das atrações oferecidas pelo
governo municipal para o réveillon. A ‘cena’ envolveria percussão e dançarinos dos blocos
composto de “cantos da raça negra”, como “músicas de candomblé”, sugestão de uma das
pessoas. Os grupos deveriam usar roupa branca, sendo os próprios blocos responsáveis
pelo ‘guarda-roupa’, já que “não é possível que os grupos afro não tenham roupa branca”,
disse um dos responsáveis pelo ‘convite’. Aliás, não se tratou de um ‘convite’, pois em
responsáveis disse que “as pessoas [entenda-se os habitantes ilheenses] não gostam de
bloco afro, mas apreciam as apresentações que os grupos fazem nos eventos da cidade”. A
trinta, que deveriam ser recrutados em ambos os blocos. Não houve nenhuma menção a
cachê, mesmo sendo um ‘trabalho’ na noite do Ano Novo. Perguntei por que eles pensaram
nos grupos afro para essa apresentação. O diretor do Teatro Municipal falou sobre Ilhéus
ser uma cidade muito preconceituosa – “herança do cacau” –, que “é preciso brigar com
muita gente” para dar espaço para os grupos afro e, com um trabalho como esse, ele queria
anual do governo municipal que homenageia quem trabalha pela ‘cultura’ na cidade. No
ano de 2001, a produtora do evento procurou o Dilazenze no dia mesmo em que ele
aconteceria porque queria um percussionista “alto e forte, tipo negão mesmo” para tocar
atabaque para Oxóssi, orixá de Jorge Amado. O presidente do grupo propôs um de seus
irmãos e perguntou sobre o cachê. Um pouco espantada, a produtora disse que se ele
303
quisesse um cachê, ela veria o que seria possível conseguir. Até o momento do espetáculo,
deveria funcionar para e pelos grupos afro, eles se sentiram discriminados. Durante toda a
do local, logo em seguida voltaram as bandas de pagode. Segundo dirigentes dos grupos
afro, as bandas de pagode tinham uma ‘topic’ como transporte, enquanto eles tinham uma
afro nem ficou sabendo que teria direito a água e refrigerante. Como disse o presidente do
Dilazenze, “os donos da festa foram só convidados”. Numa segunda inauguração naquele
foi basicamente de bandas de pagode. Contra os protestos dos dirigentes dos grupos afro, o
Zumbi dos Palmares, mas também em outras datas, como o Dia das Crianças e na Semana
os grupos se apresentem e apelam para ‘a causa’, digamos assim, para não pagar por isso.
uma relação de cooperação entre as entidades ao longo do tempo, não sendo o lanche a
103
Na verdade, tratava-se da assinatura do contrato de aluguel do espaço, mas o evento foi chamado de
inauguração. Ver-se-á adiante que esta inauguração, ocorrida em maio de 2000, foi só a ‘primeira’ de
algumas outras.
304
justificativa para o trabalho. Em outros, ele se justifica pela própria apresentação, uma
A seguir, serão apresentados dois casos que podem, como quase tudo, ter mais de
uma leitura. O primeiro deles, costuma ser elaborado como um dos momentos mais
importantes dos blocos afro na cidade, quando fizeram muito sucesso. Trata-se do que
assim como a de 2000, mostra a importância dos grupos afro quando se pensa em ‘cultura
popular’ na cidade. Sem eles, o evento não aconteceria. Todavia, aqui ambos são exemplos
bastante concretos de exploração do trabalho dos blocos por uma elite que domina os
Nos anos 80, o sucesso dos blocos afro em Ilhéus estava concentrado nos grupos de
dança. Nos anos 90, especialmente depois do estouro internacional do Olodum, foram as
bandas afro que passaram a ocupar a cena de atividade principal dos blocos fora do ‘tempo
de carnaval’. No início dos anos 90, e durante toda a década, os grupos surgiam a partir de
bandas, e não mais de grupos de dança, como na década anterior. E, como bandas, o
terças-feiras num galpão de uma antiga fábrica, onde atualmente funciona uma igreja
Usina era o nome da primeira fábrica de chocolates do Brasil, fundada em 1928, na rua
conhecida como Rua da Usina. O panfleto informa que o Espaço Usina, inaugurado em
1994, seria um centro cultural, com oficinas de artesanato, arte, exposições, além de
104
O acesso a um exemplar foi possível graças ao ótimo acervo pessoal de Marinho Rodrigues, onde
encontra-se preservada boa parte da história do movimento afro-cultural de Ilhéus.
305
lanchonete funcionando durante todo o dia, um bar à noite e um palco para shows variados.
“Terça do Reggae”. A cada semana, duas bandas eram convidadas a tocar e, embora se
chamasse ‘Terça do Reggae’, as atrações eram as bandas afro. Segundo dizem pessoas que
pertenciam aos blocos ou que vivenciaram aquele momento, o evento foi um grande
sucesso, ou para usar o termo de um dirigente, foi um “grande modismo”: “todo mundo
ia”. A estimativa de público era de duas a três mil pessoas. “E o lugar estava sempre cheio,
em plena terça-feira, para ver bandas afro.” Com exceção dos eventos envolvendo shows
por exemplo, este foi o único momento em que componentes de todos os grupos afro se
reuniram para assistir uns aos outros. “Era arena neutra” e, informação considerada
importante para que isso viesse a acontecer, o projeto foi organizado por “pessoas
brancas”, ou seja, não se tratava de um evento produzido por um dos blocos, o que seria
logotipo do panfleto quanto no texto que diz que o lugar “ganhou (...) a ginga dos ritmos
negros.” De acordo com as informações que obtive, o projeto começou com o investimento
de capital de umas pessoas que, naquele momento de sucesso dos blocos de Salvador,
como o Olodum e o Ara Ketu, “sacaram que os blocos afro eram um grande lance, um
dos blocos, que recebiam um cachê fixo por apresentação. A cada dia, havia uma banda
principal e uma banda convidada, com cachês maiores e menores respectivamente. Além
Não é possível dizer quanto tempo durou o projeto, quantas bandas se apresentaram. O que
306
se diz é que a Usina lotava enquanto não havia cobrança de ingressos, justamente porque
tinham um grande lucro com ele: recebiam pelos muitos ingressos vendidos, faturavam
com a venda de cerveja e pagavam um pequeno cachê às bandas, cujo valor era de sessenta
reais, de acordo com uma cópia do contrato firmado entre as bandas e os organizadores105.
O projeto acontecia justamente no momento em que os grupos afro estavam em seu melhor
momento. O presidente do Dilazenze conta que no dia marcado para o show do grupo, por
exemplo, ainda ficaram muitas pessoas do lado de fora, sem conseguirem ingresso, porque
o “local estava lotado”. Nessa época, em função de seu sucesso na cidade e na região, o
grupo era chamado de “Olodum de Ilhéus”: “teve fama, fazia muitos shows, ganhava
dinheiro com isso”. Na verdade, o início dos anos 90 é considerado o melhor momento
eles perceberam que apenas os organizadores levavam vantagem com o evento às custas de
seu trabalho, mas que pouco recebiam por isso, desistiram de tocar. As atrações passaram a
ser bandas de reggae e, com pouco tempo, o espaço foi desativado. “Acabou porque o forte
105
O texto que consta do contrato não deixa claro se este valor era dado a cada uma das bandas ou se deveria
ser dividido entre as duas. Literalmente, a cláusula diz que: “Em cada terça, a Usina compromete-se a pagar a
quantia de R$ 60,00 (sessenta reais) para os cachês da banda. A primeira abrirá a noite sempre às 19 horas e
tocará até as 21 horas; A banda principal entrará às 21 e tocará até as 23 horas, ficando a seu critério se deve
estender o tempo de apresentação.” (Projeto Terça do Reggae).
307
A Caminhada Cultural
com a prefeitura, com a TV local e com hotéis da cidade. Desde o início da década de 90,
afoxés, academias de capoeira, baianas... Trata-se de um grande desfile das entidades pelas
2000 foi a primeira vez que houve a “Caminhada Cultural”, uma espécie de reprodução
local do evento de Salvador organizado pela prefeitura de Ilhéus e pela TV Santa Cruz,
emissora regional sediada na cidade de Itabuna – note-se que não há no nome do evento
nenhuma referência à ‘cultura negra’ como acontece em Salvador, embora os blocos afro
Entidades Afro-Culturais. Os responsáveis disseram que não havia verba, mas que se a
caminhada fosse um sucesso, no ano seguinte seria diferente. Assim, a única forma de
com todas as entidades que seria apresentado num programa regional da emissora. Mas
isso não aconteceu. Além disso, os blocos afro souberam que outros grupos, como um de
entidades para uma reunião com representantes de todos os grupos participantes. Antes,
porém, os blocos afro se reuniram para combinar o que pediriam como pagamento e
reivindicar um outro tipo de tratamento aos grupos. O primeiro encaminhamento foi que os
308
grupos. Novamente o presidente do Dilazenze deu como exemplo a relação dos blocos com
disse que “antigamente, eles contratavam as entidades e nunca davam nada”. As entidades,
então, foram, aos poucos, deixando de participar do evento, mas “de dois anos para cá, o
CEAC passou a negociar e acabou conseguindo camisas, água e cerveja.” A união das
entidades deveria ser demonstrada na reunião, para que nenhuma ficasse vulnerável, pois
foi dito que no primeiro ano do evento, um representante da prefeitura ameaçou não dar a
Os grupos, então, fizeram uma relação de itens a serem solicitados como forma de
mineral, cerveja e refrigerante; retorno real da mídia, ou seja, cobertura televisiva dos
eventos dos grupos, incluindo os ensaios dos blocos; cópias de fitas de vídeo da
Caminhada para todos os grupos e uma grande quantidade de peles para os instrumentos.
da falta de apoio do governo municipal, que respondeu dizendo que os grupos afro
deveriam trabalhar o ano todo para “não terem que depender da prefeitura, como acontece
hoje em dia”, que eles deveriam “aprender a andar com as próprias pernas”. Este é sempre
o argumento utilizado nas ocasiões em que o poder público é cobrado pelos blocos. Na
promessas de cobertura da mídia. Ele respondeu que isso não aconteceu por “culpa dos
blocos”, pois estes não fizeram as solicitações e que, além disso, as pessoas deveriam “ter
bom senso para mostrar coisas interessantes”, pois a imprensa não poderia “mostrar
Caminhada era “social” porque sua intenção era reunir grupos folclóricos – como seria
atestado no próprio evento, praticamente só os grupos afro são os tais “grupos folclóricos”
de que a TV poderia conseguir patrocinadores para atender às reivindicações, ele disse que
não se poderia ‘vender’ o evento, pois ele não podia ser econômico. No fim da discussão, o
mídia” e terminou dizendo que a tarefa de arrecadar recursos para sair na Caminhada seria
dos grupos e que “um dia os grupos daqui [de Ilhéus] conseguirão exigir coisas, mas isso
leva tempo...”.
Depois da reunião, os dirigentes dos blocos conversaram sobre como deveriam agir.
Havia visivelmente uma vontade geral de não participar, mas todos exigiam o consenso,
pois se apenas um ou dois blocos se recusassem, estes ficariam “marcados” pela prefeitura.
Outro consenso era a idéia de que os blocos, mais uma vez, seriam “usados”, pois só eles
prefeitura só agiam daquela forma porque estavam lidando com blocos afro. Por fim,
310
tiraram como encaminhamento que as entidades deveriam estar juntas, pois era certo que a
TV e a prefeitura procurariam por elas, fazendo ofertas para cada uma separadamente.
Esta breve reunião dos dirigentes aconteceu numa praça em frente ao Teatro
Municipal de Ilhéus e próxima à Casa de Jorge Amado, onde ocorreu a anterior. Num café
próximo, estava uma professora da UESC, responsável por um dos grupos de dança
representante da TV. Ela conhece o Dilazenze e chamou o presidente do grupo para junto
representante da emissora, que elogiou o trabalho realizado pelo Dilazenze, disse-lhe que a
TV sempre dá cobertura ao grupo, que a Caminhada do ano anterior fora muito bonita em
função do Dilazenze e lhe deu seu cartão, dizendo que ele poderia procurar pela TV
quando precisasse. Começou, então, com o próprio Dilazenze o que seu presidente havia
alertado que aconteceria com todos os grupos: eles seriam abordados individualmente. No
para realizar a festa de réveillon de um hotel de luxo (no qual o grupo já havia se
apresentado várias vezes) por parte da esposa do prefeito e ofertas para o grupo fazer todos
Ao fim de semanas entre telefonemas e reuniões, nos quais ficou claro que a TV
não cederia em nada (apenas daria água, como já fora firmado desde o primeiro encontro),
peles para os instrumentos, embora fosse abaixo daquela reivindicada. Assim, os grupos
106
O réveillon no hotel não foi acertado porque o valor oferecido pelo cachê estava bem abaixo do imaginado
pelo grupo para um dia tão especial, em que os componentes do grupo teriam de abrir mão de estar com suas
311
prometido: cada grupo deveria se responsabilizar por desfilar com pelo menos vinte
componentes, o que daria cerca de 200 pessoas, e não as 600 inicialmente oferecidas. O
número final foi ainda bem abaixo desse, pois alguns grupos levaram ainda menos pessoas
e outros sequer compareceram, mas a constatação final ao assistir à Caminhada Cultural foi
que sem os grupos afro, ela não aconteceria. Além deles, havia uma fanfarra de uma escola
particular e pequenos grupos, em geral de menos de dez pessoas: dois grupos de dança da
baianas que pertenciam a uma entidade chamada Centro Afro Brasileiro, na verdade, um
mentais.
por membros do Dilazenze. Este grupo e o Miny Kongo foram convidados a dar
gravação fora marcada na Praça da Catedral, em frente a um dos hotéis mais famosos da
fosse realizada ali. A equipe da TV chegou a argumentar que seria uma propaganda para o
estabelecimento, mas o homem continuou firme dizendo que aquilo atrapalharia a entrada
dos hóspedes, o que de forma alguma era verdade. Este foi um contra-argumento empírico
procurar o patrocínio dos hotéis e pousadas da cidade, ao invés de apelar para a TV ou para
o governo.
famílias para trabalhar. Como relatado anteriormente, dos muitos receptivos previstos, só 2 ou 3
aconteceram, pois a prefeitura não teve dinheiro para pagar os demais.
312
visto como descaso e desrespeito aos blocos afro. Seriam incontáveis os casos de longas
esperas nas ante-salas de pessoas do governo nos mais diversos cargos, de acordos não
faz parte do dia-a-dia dos grupos, o que às vezes é percebido como má vontade ou
desprezo de uma determinada pessoa, que pode ser especificamente alguém que “não gosta
de bloco afro” e a ele(a) são atribuídos todos os obstáculos para o sucesso de alguma ação,
mas também pode ser um(a) secretário(a) ou um(a) segurança, de quem pode mesmo se
dizer que é racista ou que quer exercer mais poder do que realmente tem... explicações que
costumam ser aplicadas a funcionários públicos que atendem à população. Outras vezes, os
[governo de maneira geral] são muito enrolados”, dizem... E, em raras vezes, essas atitudes
são percebidas como ‘discriminação’: “isso só acontece porque é com bloco afro”. E, de
fato, seria mesmo muito difícil distinguir quando a razão do desrespeito é uma e não outra.
Por isso, este aspecto das relações será deixado de lado e o foco deste trabalho recairá a
O assédio de políticos aos grupos afro é sempre muito grande. O artista plástico
vinculada à política partidária “de esquerda”, certa vez resumiu bem a razão de todo esse
diretor de bloco afro consegue colocar essa quantidade de gente dentro de um único
projeto. É isso que faz todo político ficar doido!”. E é isso que faz também com que todo
dirigente de bloco afro, mesmo aqueles com menor visibilidade, cujo único trabalho é o
votos, ainda que apenas em tese. Isso significa dizer que muitas vezes os grupos afro são
procurados por políticos que os concebem tal como se pensa uma outra organização social
lazer, uma entidade filantrópica, um terreiro de candomblé, uma igreja etc. Buscam-se os
votos que podem ser controlados por um líder daquele conjunto. No caso dos blocos afro,
esse conjunto pode ser grande e abranger milhares de pessoas, se forem contabilizados os
ser ‘donas’ de vários votos além do seu próprio. Há tempos Risério já escrevia que “o que
podemos dizer da classe política institucionalizada – do PDS ao PMDB, passando por PT,
PDT etc. – é que ela percebeu (...) que a penetração nas entidades afrocarnavalescas pode
imaginada tanto por eles quanto por alguns políticos que os procuram, de reunir todos os
desta pessoa o ‘candidato do movimento negro’. Virtualmente, esta posição poderia dar ao
candidato os votos de todos os componentes dos grupos, cerca de duas mil pessoas,
número mais do que suficiente para eleger um vereador em Ilhéus, mesmo sem contar com
ser mesmo “o candidato do movimento negro”. O momento em que isso esteve mais
próximo de acontecer foi em 1992, quando Mirinho, ligado ao sindicato dos estivadores e
grupos afro em torno de sua candidatura e da chapa majoritária, encabeçada por Antônio
Olímpio, que veio a vencer as eleições. A narrativa deste processo por parte de dirigentes
dos grupos, inclui a ‘cor’ do candidato a vice como um primeiro fator de aproximação dos
Antônio Olímpio teve como mote principal a promessa deste último de que construiria um
Centro Afro-Cultural para os grupos afro de Ilhéus. Sendo Mirinho o intermediário dos
grupos junto ao prefeito, sua eleição era considerada necessária para a concretização da
promessa. Mirinho não foi eleito, nem mesmo foi publicamente apoiado por todos os
grupos, como disse um dos dirigentes de bloco afro: “Mas quando chegou na hora,
apareceu político com dinheiro e a gente só via os blocos se dispersando.” O Centro Afro-
Cultural não foi construído e essa história só seria retomada anos depois, com o Memorial
da Cultura Negra, assunto a ser tratado adiante107. Em 1996 e em 2000, um outro candidato
seu redor. Se no caso de Mirinho havia o Centro Afro-Cultural como algo específico para
os blocos, na campanha de Gurita não havia nada que o identificasse com o movimento
Educação, estes seriam os campos nos quais estavam concentradas suas ‘bases’. Embora se
apresentasse como candidato do movimento negro, suas alianças com os grupos nunca
passaram por propostas diretamente voltadas para a população negra ou mesmo para o
ajudar’ a cada um dos grupos, como, em geral, são as alianças que as entidades fazem com
107
Relato e análises mais aprofundadas desse episódio encontram-se em Goldman 2000.
315
quaisquer candidatos, mesmo os considerados brancos. E assumir essa posição foi tanto
mais possível a partir do momento em que o gerente de ação cultural, que era do PT e do
MNU, deixou o cargo e Gurita passou a ser o intermediário do governo junto aos blocos.
Além disso, a estratégia política de Gurita passou pela fundação de blocos afro, como o
considerados “da direita”. Não é possível afirmar com certeza porque seria necessária uma
pesquisa específica, mas é muito provável que nunca tenha havido um candidato em Ilhéus
cuja campanha fosse baseada num programa voltado para, ou que sequer mencionasse,
questões pertinentes à população negra, embora fossem muitos os que buscaram o apoio
dos blocos, que constituem o setor mais expressivo do movimento negro da cidade.
dos blocos afro, os candidatos negros estabelecem relações etnicizadas para dentro, para o
anteriores no meio afro-cultural. No caso de candidatos sobre os quais pode-se ter dúvidas
quanto à sua cor, apelos ao famoso ‘pé na cozinha’ ou ‘na África’, são constantes. Esses
candidatos pretendem construir uma forma de identificação com o grupo que ajude a
garantir votos para além do apoio dos dirigentes. No entanto, essa identificação não
aparece para fora, pois não há propostas nem discurso voltados para a população negra;
108
Na verdade, a fundação do bloco ocorreu em abril de 2000, durante uma reunião de campanha de Gurita
na casa de um dos fundadores, os quais ele já conhecia por sua participação anterior no Zambi Axé. O grupo
já era uma banda afro e foi sugestão de Gurita que ele se organizasse como bloco, insistindo sobre sua
capacidade para tanto. Ele ainda ajudou o grupo na parte mais burocrática de fundação do bloco e levou-o
para os primeiros trabalhos em eventos de campanha do governo.
109
Um estudo aprofundado dela a partir do ponto de vista dos integrantes dos blocos afro é realizado por
Marcio Goldman há vários anos. Até o momento, encontram-se publicados os seguintes artigos sobre o tema:
Goldman 2000 e 2001. Encontra-se no prelo um livro como produto de seu extenso trabalho de pesquisa.
316
mesmo tempo que uma demonstração de apoio àquele candidato, sendo difícil desvincular
uma situação da outra, mesmo quando os grupos insistem que estão ali por trabalho. Esse
trabalho, aliás, é geralmente muito mal pago, assim como todos os outros. E o próprio
apoio dos blocos é baseado em ‘trocas’ que consistem em promessas de emprego para
dirigentes ou familiares destes, cestas básicas para os próprios dirigentes ou para pessoas
do bloco, material para obras, caixas de cerveja para eventos do grupo, camisetas etc., nada
diferente do que se costuma ‘trocar’ por voto em qualquer lugar do país. E é interessante
que seja este o tema das últimas linhas de Risério em Carnaval Ijexá.... Descrevendo o
assédio dos políticos sobre os blocos afro pela proximidade das eleições, o autor diz: “E
não é preciso dizer o quanto esta investida política tem sido, aqui e ali, inescrupulosa, ao
ponto de partidos oferecerem salários a jovens líderes da periferia, em troca de apoio nas
próximas eleições. O que, de resto, nem sempre é recusado.” (1981:156). Mas a oferta de
salário ainda pode ser muito: certa vez, em Ilhéus, um vereador ofereceu uma cesta básica
a um dirigente de bloco afro para que ele fosse seu assessor parlamentar. Neste caso, foi o
próprio dirigente em questão que percebeu a atitude como uma prática racista e,
governantes, submetendo-se a eles o tempo todo. Por mais que cada um dos setores que o
reproduzem pensem estar dizendo algo que identifica o problema dos blocos e propondo
110
Ver, só para citar alguns, Ribard (1999:394), Agier (2000:115) e Moura (Moura e Agier 2000:371).
317
movimento negro político, os próprios dirigentes dos blocos, comerciantes quando são
solicitados para patrocínio, governo quando é cobrado pelos blocos, e até mesmo políticos
que têm essa prática, especialmente quando vêem outros agindo assim e temem ‘perder
devem ser auto-sustentáveis. Mas isso não acontece nem mesmo nos grandes blocos afro
se for considerado que seria preciso imaginar que cada uma de suas apresentações, que
exigem dedicação exclusiva de seus componentes para que a performance seja de alta
qualidade, fosse vendida por um valor altíssimo, capaz de sustentar os integrantes dos
que acaso houvesse e ainda financiar o carnaval. Poder-se-ia contar ainda com a venda de
fantasias, mas apenas se fosse um bloco para turistas, não um bloco afro situado numa
comunidade de baixa renda. E, ainda assim, aqueles que o fazem, como o Olodum e o Ilê
Aiyê, cujas fantasias saem pelos mesmos preços dos abadás dos caros blocos de trio, não
são auto-sustentáveis, pois também precisam doar fantasias para suas comunidades, cujos
algumas atitudes dirigidas aos blocos afro como grupos artísticos vale com ainda mais
ênfase no que diz respeito às práticas envolvidas nas relações entre grupos afro e a política,
por pessoas com pouca renda e, na maioria das vezes, desempregada – até porque para que
um grupo seja realmente ativo, ele precisa que algumas pessoas estejam disponíveis para
318
ele – e no meio de comunidades muito carentes. Isso faz com que se dependa sempre de
outrem, o que torna os blocos afro um espaço extremamente favorável para a atuação da
política partidária, tanto no intuito de angariar votos quanto no de formar lideranças que
garantir que essa estrutura continue a existir. Dessa forma, utilizando o mesmo raciocínio
anterior, sustento que práticas que visem parar o movimento dos grupos, mantê-los no
lugar que lhes foi imposto como seu, são práticas racistas.
Os blocos afro são, pelos motivos expostos acima, extremamente dependentes dos
prefeitura apenas nessa ocasião, enquanto os demais buscam verbas e apoios em diversos
determinadas pessoas no governo. Ao longo dos últimos anos, desde o início da década de
seja, não conseguiram fortalecer os grupos e melhorar suas condições de negociação com o
governo. O primeiro dessa lista é Mirinho, principal articulador do apoio dos grupos afro à
eleição de Antônio Olímpio em 1992 e candidato a vereador derrotado. Por sua ligação
deveria ser o representante dos blocos junto ao governo, tanto mais porque, no mesmo
período, ele foi eleito presidente do CEACI. Mas não houve ganho algum para os blocos
grupos não tiveram nem os subsídios para desfilar no carnaval. Anos depois, dirigentes do
319
movimento consideraram Mirinho um obstáculo para chegar ao governo: era preciso passar
por ele para qualquer solicitação que os grupos viessem a fazer; o governo não lhe cedia
ano anterior, Moacir Pinho, petista, militante do movimento pela posse da terra e do
seu cargo, sua função era tratar das relações entre o governo e os grupos afro, até porque
município. E, no caso de Moacir, havia um agravante em sua relação com os blocos afro:
ele nunca havia pertencido a um deles. Não é leviano afirmar que ele “não entendia nada
de bloco afro” como alguns dirigentes costumavam dizer – ele mesmo reconheceu isso
uma vez ou outra. Ainda mais do que nos tempos de Mirinho, ele era oficialmente
designado para atender aos grupos, tentar resolver e encaminhar seus problemas. Mais de
uma vez Moacir foi comparado a Mirinho como um obstáculo aos grupos. Mais de uma
vez, foi lembrado que tanto quanto Mirinho, o governo não apoiava nenhuma ação de
Moacir: ele não tinha autonomia de recursos – e mesmo aqueles solicitados eram negados
–, ele não tinha funcionários à sua disposição, ele não tinha uma sala própria... Seu cargo
negro político, embora não vinculado ao MNU, diz que é uma forma de racismo dar cargos
políticos, dar visibilidade a quem seria do movimento negro e não repassar recursos, pois,
uma forma de queimar, porque aí os negão (sic) vão procurar Moacir e ele tem que dizer
que não tem dinheiro para fazer nada.” (:117). A análise de Val é corretíssima e a situação
320
já era assim percebida tanto pelo próprio Moacir quanto pelos dirigentes dos grupos. E
parece ser este o mesmo racismo que atualmente dá a Marinho Rodrigues, presidente do
Dilazenze, o cargo de diretor do Memorial da Cultura Negra e não lhe repassa nenhum
Da lista de intermediários dos blocos afro junto ao governo, ainda resta fazer
referência a Gurita. Desde 1997, ele se mantém em cargos com relativo poder na
prefeitura, que lhe dão visibilidade e trânsito em diversos setores ligados ao esporte e à
cultura negra. Apesar de suas tentativas de se eleger vereador terem sido frustradas, ele é
visto e/ou se comporta como representante dos grupos afro nas negociações com o
governo, o qual costuma contar com ele quando deseja ter os grupos para alguma
atividade, por exemplo. Ao mesmo tempo, vê-se claramente que Gurita não possui o apoio
que desejaria ter do governo. Mesmo contando com seu intermédio, as solicitações dos
grupos não são atendidas, audiências com o prefeito não são marcadas, os recursos não são
disponibilizados. No governo, atualmente Gurita é a pessoa mais próxima dos grupos, mas,
tanto quanto os outros, não possui poder – e não brigaria por ele, senão já teria perdido o
emprego – para mudar coisa alguma. O papel exercido por ele num caso exemplar de
O Caso John
estava em Ilhéus (havia passado também por Itabuna) reunindo-se com sindicalistas,
de Serviços Públicos, John Ribeiro, irmão do então prefeito Jabes Ribeiro, dirigiu-se ao
321
local e consta que agrediu física e moralmente Paulo Anunciação. O deputado conta que
foi ameaçado de morte, pois John apontou-lhe uma arma e o ofendeu racialmente. Uma
informativo eletrônico do PT, relatou que John disse a Paulo que ele era um vagabundo.
Quando Paulo se identificou como deputado, o secretário duvidou e disse: “deputado não
tem esta cara”, talvez por Paulo Anunciação ser negro e usar cabelo rasta. A Polícia Militar
foi chamada e, em seguida, Paulo Anunciação fez queixa contra John Ribeiro.
dia 24 encontrei um militante do PT que me contou o que acontecera. Dois dias depois,
Gurita ligou para o presidente do Dilazenze solicitando sua presença para uma reunião com
todos os blocos afro no dia seguinte. Nesse primeiro telefonema, o motivo da reunião não
fora divulgado. Gurita apenas dissera que era de interesse dos blocos. Quando contei ao
presidente do Dilazenze o que soubera, ele percebeu que se tratava de uma reunião para
pedir o apoio dos grupos a John e disse que não iria, mostrando-se, então, muito indignado
com Gurita, tanto por estar se sentindo usado quanto pela situação de ver “um candidato
que se diz do movimento negro, ao invés de ficar do lado do que foi agredido por racismo,
Marinho disse que não compareceria para apoiar a John. Gurita disse que a reunião não
tinha somente este objetivo e que seriam tratados vários outros assuntos, inclusive o
Projeto Batukerê. Como será visto no próximo capítulo, aquele era um momento crucial
para o Batukerê: ele havia começado há alguns meses, mas a verba que fora prometida pela
prefeitura até então não havia sido liberada e a cada dia as relações entre a prefeitura e o
Diante da ‘pressão’ feita por Gurita alegando que se trataria também do Projeto
Dilazenze fosse, certamente seria acusado pelos mais diferentes setores de ser um bloco
afro defendendo alguém que estava sendo acusado de racismo. Por outro lado, temia perder
No dia 30 de julho, foi publicada nos jornais locais uma “nota de esclarecimento”,
que ocupava uma página inteira, assinada por John Ribeiro. Evidentemente, a nota dava
uma outra versão para os fatos, negava as acusações do uso de arma de fogo e de palavras
homem negro e trabalhador, sabe que seria incapaz de tal atitude.” (A Região, 30/07/00).
Em alguns momentos, o prefeito Jabes Ribeiro já disse ter um ‘pé na cozinha’, ou seja, ter
ascendência negra, mas nunca se auto-classificou como seu irmão nesta oportunidade.
Dias depois, o presidente do Dilazenze foi comprar açúcar num pequeno comércio
ao lado de sua casa e encontrou uma pilha de panfletos emoldurados com desenhos de
motivo afro, cujo título era “O Movimento Negro Está com Jabes”. O panfleto não citava o
episódio com o irmão do prefeito, mas dizia que as entidades do movimento negro de
Ilhéus estavam apoiando Jabes, então candidato à reeleição, e relacionava o que Jabes teria
tentativa frustrada de criação de um conselho em 1997 que não foi à frente. Os panfletos
deveriam ter sido entregues a Marinho, como este não estava, o portador deixou-os no
balcão desse comércio. Ele foi enviado para todos os grupos, a fim de que estes os
àquela reunião (representantes de dois grupos) e que ele sabia que as entidades estavam
mesmo com Jabes, ou seja, não era necessário consultar ninguém. O presidente do
323
documento assinado pelo CEAC, do qual ele ainda era o presidente, que se não chegava a
afrontar e negar o apoio ao prefeito, pelo menos reiterava a autonomia do CEAC e dizia
que até aquele momento, a entidade não havia se decidido por nenhum candidato. Foram
impressos mil exemplares e o panfleto foi distribuído pela cidade, gerando muitos
comentários. No dia seguinte, logo cedo, Gurita compareceu à sua casa. Inicialmente,
assumiu inteiramente ‘a culpa’, caso contrário estaria afirmando, como Gurita parecia
querer dizer, que ele fora manipulado, Gurita desculpou-se pelo que fez, deixou cinqüenta
reais para “ajudar” na merenda do Batukerê – até então era impossível conseguir sua
colaboração, solicitada em mais de uma vez – e despediu-se dizendo que tentaria liberar
junto ao prefeito uma parte da verba prometida para o projeto. O fato foi que naquele
mesmo dia, à tarde, o Dilazenze recebeu um telefonema com a liberação de mil reais, um
Dilazenze ao dinheiro liberado. E era bom pensar assim. Aquela era uma das poucas vezes
em que parecia que uma batalha havia sido ganha, ainda que não fosse esta a intenção do
documento.
Cerca de duas semanas depois, haveria uma reunião de pais do Projeto Batukerê.
No lançamento do projeto, em maio daquele mesmo ano, Gurita prometera doar cestas
básicas para todas as famílias participantes como parte de sua campanha política. A
reunião teria, então, este objetivo. Diferentemente das vezes anteriores, John Ribeiro
também compareceu. Entre discursos e pedidos de voto para Jabes e para Gurita, John
afirmou que tinha um “voto de gratidão” com o Dilazenze, cuja diretoria “mesmo sem
querer saber se era verdade”, o “apoiou publicamente”. Terminou seu discurso pedindo
votos para “o negão” Gurita, “o candidato das áreas negras da cidade.” Como a TV e
324
especialmente as rádios, quase todas ‘do governo’, não exploraram muito o assunto da
acusação contra John, ninguém pareceu entender muito bem do que ele estava falando.
negados por não ir à reunião convocada por Gurita, assim como aquele da Caminhada
Cultural quando, diante da proposta de recusa ao desfile, era necessário garantir que todos
os grupos cumpririam o acordo para que nenhum deles fosse punido pela prefeitura,
mostram o quanto a dependência dos blocos em relação ao poder público orienta grande
parte de suas ações. Ameaças em relação à não liberação da verba do carnaval são
constantes e, ao menos uma vez, que perdurou por alguns anos, foi cumprida. O Bloco
Afro Gangas surgiu no Alto do Basílio, um dos mais pobres de Ilhéus, sob a liderança de
Pelé, também líder comunitário. Logo em seus primeiros anos de organização, o grupo
exemplos de desprezo e de subestimação dos grupos afro por parte da grande maioria dos
políticos locais, de outros setores sociais, como o comércio e o turismo, e até mesmo de
algumas pessoas que se colocam no campo do movimento negro político. Por razões
óbvias, é claro que estas últimas não desvalorizam os blocos afro porque seus componentes
são negros, contudo, ao afirmarem que os grupos afro só “sabem tocar tambor”, que “são
manipulados pelos políticos” e, até mesmo em poucos casos, que “não gostam de estudar”,
estão dizendo que a grande maioria das pessoas negras age dessa forma, enquanto aqueles
mais altos, que lêem e discutem com muito mais freqüência, são como os outros deveriam
325
política. O problema é que, muitas vezes, pessoas que se consideram mais ‘esclarecidas’
também entendem que, por isso, são mais ‘capazes’, e acabam caindo na lógica da ‘lei de
Todos esses setores compartilham uma série de estereótipos a respeito dos grupos
afro, muitos também compartilhados por estes últimos, especialmente quando se trata de
acusações mútuas através das quais um grupo imputa a outro características que costumam
ser utilizadas por quem os qualifica como uma totalidade. Assim, os motivos dos
‘fracassos’ políticos dos grupos afro são, em geral, atribuídos a seu “imediatismo”, seu
troca de apoio... Enfim, os problemas dos grupos são gerados por suas incapacidades ou
por seus defeitos, os quais são indissociáveis da imagem de blocos afro que só querem
“tocar tambor”, “fazer música”, que é o que ‘o negro sabe fazer’, segundo outro estereótipo
contribui para garantir a manutenção de uma tal relação de dominação. Entretanto, sabe-se
que esta, por definição, não é unilateral e os atores sociais reagem às ações baseadas em
uma situação em que não se está satisfeito em direção a outros melhores, ainda que sejam
Todas as atividades até aqui relacionadas com a proposta de diferir realizadas pelos
grupos afro são parte desse movimento, pois trata-se do desejo de mudança de uma dada
mais efetivas por também serem organizadas a partir da atribuição de estereótipos: porque
desejo de ter um Centro Afro-Cultural sob o controle dos grupos tem o mesmo sentido.
Esses são dois exemplos a serem detalhados a seguir de movimentos dos blocos afro de
Ilhéus. No entanto, a idéia de ‘movimento’ não significa melhor ou pior. Os encontros são
muitos e, a cada agenciamento, há ganho ou perda de potência, para um, para outro, para
perderam e só se pode contar com as ‘memórias’ das pessoas. Estas às vezes são confusas;
outras vezes, a confusão provém das diferentes prioridades que cada uma delas deu aos
acontecimentos.
327
“Faraó” e, através dele, os blocos afro ganhavam mais espaço na mídia e passavam a ser
também buscavam mais espaço, no carnaval e fora dele. Naquele ano, desfilaram sete
blocos contra quatro em 1986. Os três estreantes na Avenida Soares Lopes foram o
Abolição, que aconteceria no ano seguinte. Por todo o país, grupos ligados aos movimentos
negros começavam a se organizar, fosse para comemorar, fosse para refletir e/ou protestar.
O ano de 1988, então, foi de grande efervescência também no meio afro de Ilhéus, quando
de Ilhéus.
Sul da Bahia. Ao contrário do que seu nome indica, não havia nenhuma relação desta
nacionalmente. Embora a entidade tenha conseguido agregar todos os blocos afro então
existentes e pessoas que não se sentiam vinculadas a nenhum bloco, mas que desejavam
participar da discussão a respeito do movimento negro na cidade, apenas duas pessoas são
apontadas como responsáveis por sua organização, ambas não mais moradoras de Ilhéus e,
na época, integrantes do Axé Odara, mais exatamente seu então presidente e um outro
homem que, segundo dizem alguns, era uma espécie de ‘empresário’ do grupo. Como já
observado antes, talvez pela presença inicial de Mário Gusmão, o Axé Odara tinha um
caráter mais ‘politizado’ do que os demais grupos. Um dos seus ex-integrantes afirma que
havia uma divergência interna acirrada entre aqueles que pretendiam fazer do grupo uma
328
‘Gaúcho’, apelido que revela uma característica importante: ser ‘de fora’ da cidade.
Gaúcho chegara a Ilhéus havia pouco tempo e, aparentemente, não tinha muitos vínculos
com a cidade, tanto que a deixaria pouco tempo depois. A cor de Gaúcho é uma outra
característica que costuma ser ressaltada pelas pessoas: ‘branca’ para alguns e “quase
mulato” para outros. Essas informações poderiam ser irrelevantes não fosse pelo destino da
entidade, atualmente lembrada mais pelas acusações que pesam sobre seus organizadores,
momento não pertencia a nenhum grupo mas que viria a ser uma pessoa muito importante
opinião sobre a entidade. O próprio Mirinho afirma ter efetivamente participado dela, cuja
sede era o sindicato dos estivadores de Ilhéus, no qual ele militava111. Embora não
pertencesse a nenhum grupo, Mirinho tinha “acesso a todos”, por amizade e porque
Cumprindo este tipo de assessoria também para a nova entidade, ele foi seu secretário.
111
Mirinho formou-se em direito pela universidade local há não muito tempo, mas, segundo conta, foi
‘universitário’ por muitos anos, talvez desde essa época. Em sua entrevista, ele diz que freqüentou colégios
particulares em Ilhéus, condição rara para pessoas negras, certamente por ser de família de estivadores, que
chegaram a formar uma pequena classe média negra na cidade durante várias décadas do século XX,
enquanto o cacau sustentou o município. Seus avôs materno e paterno foram fundadores do sindicato dos
estivadores em 1919, profissão seguida pelos demais homens da família e por ele mesmo.
329
Mirinho pertencia ao Partido Liberal (PL) e era assessor de um vereador. Meu contato com
ele se limitou a uma entrevista, e talvez por isso, ele não levantou nenhum ‘problema’ em
relação à organização. Segundo conta, seu fim deveu-se à criação do CEACI de dois a três
anos após o surgimento do MNU-Sul da Bahia por esta entidade ser de caráter regional,
que seria uma necessidade destes. Porém, há outras formas bem diferentes de se falar sobre
“pessoais”, enquanto Caíto, do Axé Odara, seria uma espécie de “laranja”, alguém que
estava sendo “usado” por Gaúcho, assim como Mirinho, que dava o suporte técnico e a
do Sul da Bahia: ora parece um grupo de discussão, ora parece formado exclusivamente
para promover apresentações dos grupos e gerar dinheiro para os principais organizadores,
depoimento feito por Mirinho, o fato mais recordado por todas as pessoas que fizeram
Em 1988, o MNU-Sul da Bahia convocou todos os blocos afro então existentes para
arrecadado com os ingressos seria dividido entre os grupos para “fazer caixa”, ou seja,
financiar o carnaval. Segundo conta o presidente do Dilazenze, ele pressentiu que “havia
armação” e o grupo não participou. Algumas outras pessoas dizem ter pensado o mesmo,
112
Além de Mirinho, outras pessoas com nível de escolaridade mais elevado cumpriam este mesmo papel
junto aos grupos afro. Na verdade, ainda hoje os grupos necessitam e desejam poder contar com pessoas que
colaborem nessas tarefas que exigem uma maior habilidade com a escrita e com procedimentos burocráticos.
330
disso, os grupos participaram e o Ginásio estava lotado: era período de campanha eleitoral
e grande parte dos ingressos foi comprada por candidatos para distribui-los, carimbando
seu nome atrás. De acordo com a estimativa do presidente do Dilazenze, haveria ali cerca
de cinco mil pessoas. O show foi mesmo um sucesso, mas nenhum grupo teve qualquer
participação na receita do evento: segundo contam, Gaúcho fugiu da cidade com ela. Isso
torna relevantes as informações dadas anteriormente de que ele não era da cidade e de que
não pertencia ao movimento – era apenas ‘empresário’ –, não sendo nem mesmo
considerado negro. Depois desse evento, como era de se esperar, o MNU-Sul da Bahia foi
desarticulado.
No mesmo ano de 1988, uma outra entidade foi articulada em Ilhéus buscando o
Abolição. Na verdade, tratava-se de uma comissão coordenada por Luiz Carilo, presidente
do Lê-guê Depá, e formada por representantes de blocos afro, por componentes do MEPI
com Mário Gusmão, que na época trabalhava com Gilberto Gil na Secretaria de Cultura.
Seu objetivo básico era tomar conhecimento dos eventos promovidos, do material
eventos na cidade. Por não contarem com nenhum tipo de apoio financeiro, as viagens à
capital eram pagas por pessoas da própria comissão que possuíam recursos. E, também por
falta de apoio, quase nada foi realizado na cidade no ano do Centenário da Abolição.
113
Tanto Marinho, presidente do Dilazenze, quanto João César, ex-presidente do Força Negra e considerado
representante da vertente mais ‘política’ do movimento negro ilheense, comentam terem participado de uma
comissão nos mesmos moldes, embora citem integrantes bem diferentes. Tais informações me fazem
acreditar que se trata do mesmo grupo de pessoas.
331
Essa comissão funcionou como um “embrião” do futuro CEACI. A partir dela, uma
outra comissão seria formada, desta vez para articular uma outra entidade a exemplo do
reuniões na Catedral, no Terreiro Tombency, no Colégio Vitória (os dois últimos situados
teria sido fruto dessa articulação, formalizado em 1989 com a eleição de Bob Jal, do Miny
Kongo, para presidente, e Gilmar Rodrigues, que, embora fosse irmão dos fundadores do
informações divergentes, a eleição de Bob Jal não foi consensual; havia uma outra chapa
formada por Caíto, do Axé Odara, e por César, do Rastafiry. Aparentemente, depois de
perder a eleição, Caíto levou seu grupo para a cidade de Porto Seguro e não retornou mais
a Ilhéus.
Por motivo de doença de sua esposa, Bob Jal teria se afastado da presidência do
CEACI, cargo então assumido por Gilmar. Seis meses depois, o primeiro presidente teria
tentado retornar, mas o Conselho não permitiu e Gilmar permaneceu no cargo até 1993,
cada entidade, mas os representantes dos grupos então considerados menores dizem que
havia controle das grandes entidades sobre a verba. Elas determinavam que grupos
recursos para o primeiro carnaval do Dilazenze, por exemplo, em 1987, foram conseguidos
diretamente com o então presidente da Ilheustur por intermédio de um dos irmãos mais
velhos dos organizadores, naquele momento não participando mais de nenhuma entidade.
332
também o Gangas) e esses grupos receberam cerca de dez por cento do valor então
No carnaval de 1992, o então prefeito João Lírio, sucessor de Jabes Ribeiro, não
teria liberado recursos para os grupos, segundo afirmam alguns representantes do blocos
afro. A ausência de informações sobre desfile dos blocos no Jornal Diário da Tarde desse
ano ratifica a informação, assim como a movimentação do CEACI nas eleições de 1992,
embora esta seja mais uma especulação do que uma afirmação, já que nunca ouvi ninguém
vincular os fatos.
vencesse, seria seu segundo mandato e a continuação de um mesmo governo, já que João
Lírio fora o sucessor escolhido por ele (naquele momento, ainda não era permitida a
recursos para os grupos em todos os anos. Mas em 1992, por uma articulação em torno do
peso fizeram oposição a Jabes, ‘história’ a ser melhor contada adiante. Mirinho, que fora
Unificado do Sul da Bahia, foi o principal articulador do apoio dos grupos a Antônio
Olímpio e foi também candidato a vereador naquelas eleições. Até então sem pertencer a
D’Logun, numa iniciativa conjunta com pessoas que integravam o Raízes Negras, bloco
fundado em 1990. O D’Logun deu a Mirinho uma base comunitária para a campanha,
embora ele conte que já realizava trabalhos comunitários via igreja católica, e lhe deu um
grupo para que ele pudesse ser candidato à presidência do CEACI no ano seguinte.
333
Antônio Olímpio venceu as eleições, mas não Mirinho. Ele tornou-se suplente de
cujo secretário era o vice-prefeito. E, apesar de nem todos os grupos terem feito campanha
para Mirinho, aparentemente o CEACI encontrava-se unido, pois não houve a formação de
uma outra chapa. Em 1993, as três grandes entidades já não eram Lê-guê Depá, Axé Odara
D’Logun ocupou a presidência com Mirinho – a entidade era pequena, mas Mirinho era a
presidente do Conselho foi muito interessante para o movimento. De fato, os anos de 1993
e 1994 foram de grande visibilidade para os blocos afro de Ilhéus, são seus “bons tempos”.
da cadeira de vereador em algumas ocasiões – quando o titular entendia que ele teria mais
condições de discutir questões ligadas ao movimento negro ou ao Porto –, pode não ter
como o Centro Afro-Cultural e empregos para integrantes dos blocos, mas pôde garantir
que os grupos tivessem acesso a recursos de infra-estrutura para shows – “havia dois
palanques à minha disposição para os grupos, além de gambiarras, som e outras coisas” – e
Todavia, não se pode esquecer que o sucesso dos blocos afro de Ilhéus era um
reflexo do que ocorria em Salvador. Este era um momento que os blocos afro estavam em
alta no país e o Olodum já era conhecido internacionalmente. 1993 foi o ano da reforma do
lançamento de seu disco que viria a receber o Disco de Ouro no ano seguinte (Schaeber
para os primeiros.
perdendo sua força. Em primeiro lugar, porque não foi cumprida a principal promessa de
campanha do então candidato para os blocos afro e sua principal motivação para
ano de 1994, a prefeitura transferiu o carnaval da Av. Soares Lopes para a Av. Litorânea,
no bairro do Malhado, o que já provocou um primeiro esvaziamento deste. Nos dois anos
seguintes, o governo municipal não só não liberou recursos para os grupos, como também
só realizou o chamado ‘carnaval antecipado’. Além disso, desde 1994, Mirinho afastou-se
com a entidade totalmente desarticulada. Afinal, não havia nem mesmo o dinheiro do
Se no início dos anos 90, os blocos afro de Ilhéus refletiram o sucesso dos grupos
também a decadência do mais famoso bloco afro do país. O Olodum passou por uma grave
crise institucional que gerou a saída de Neguinho do Samba, mestre de bateria do grupo e
presidência do grupo, que saiu da mídia, perdeu credibilidade, desativou seus trabalhos
sociais e passou a ter mais sucesso no exterior do que na Bahia115. Além disso, as bandas
de axé ou pagode explodiram e tomaram todos os espaços. Os blocos afro já não eram
114
Em 1993 ocorreram pelo menos dois encontros de dirigentes de blocos afro em Salvador, um estadual e
outro nacional, já citado anteriormente, dos quais representantes dos grupos de Ilhéus compareceram.
115
Ver entrevista de João Jorge Rodrigues no Jornal Correio da Bahia, 27/04/99.
335
requisitados para apresentações. Some-se a isso a falta de apoio aos blocos afro do governo
Ribeiro, candidato a prefeito, contava naquele momento com o apoio de duas pessoas que
vereador, que até conseguiu o apoio de alguns grupos para sua própria candidatura; e
Moacir Pinho, liderança do Movimento Negro Unificado em Ilhéus, dessa vez sim, uma
subseção do MNU estadual existente no município desde 1993, com a chegada de Moacir,
mas sem estabelecimento de relações com os blocos afro até a campanha eleitoral de 1996.
O apoio de Moacir e do MNU a Jabes se deu em função da coligação entre seus partidos,
para que Jabes tivesse o apoio da maioria dos blocos afro, essas pessoas serão importantes
para a relação posteriormente estabelecida entre o novo prefeito, então eleito para seu
Já no início de seu novo mandato, em 1997, Jabes Ribeiro ‘reativou’ os grupos afro
Não à toa, ele foi chamado de “Carnaval do Resgate”. Poucos grupos tiveram condições de
uniram a outros116.
Dirigentes dos grupos afro disseram que a distribuição dos recursos foi muito
confusa, principalmente porque ficou a cargo de Moacir, nomeado gerente de ação cultural
116
Cf. Anexo 4.
336
da Fundação Cultural de Ilhéus, cuja função seria a de intermediar a relação entre governo
e blocos afro. Dado que Moacir não tinha contato com os grupos e eram poucas as
uma negociação com cada entidade e destas com pessoas que consideravam influentes no
governo e que, de fato, intervieram no processo, gerando vários problemas entre elas e em
Conselho. Segundo diziam Moacir e Gurita, agora mais próximo dos blocos por fazer parte
‘cultura’ de Ilhéus –, Jabes Ribeiro avisara que só negociaria os recursos do carnaval com a
entidade, não mais com cada um dos grupos. Porém, haja vista que os documentos do
CEACI não poderiam ser recuperados, pois estavam desaparecidos havia alguns anos,
optou-se por criar uma nova entidade, que passaria a ser chamada de CEAC – Conselho de
Entidades Afro-Culturais. Assim, ao longo daquele ano, mais intensamente nos meses de
reconhecidas como blocos afro, mesmo algumas que nunca haviam desfilado, dois afoxés e
uma academia de capoeira, cuja participação no Conselho foi “defendida” pela primeira-
desde que começou a ser elaborado, ainda na década de 80, seu objetivo foi o de reunir
blocos afro e não qualquer organização que pudesse ser descrita pelo termo ‘afro-cultural’.
A participação dos dois afoxés no novo Conselho foi uma concessão porque eles não
poderiam ser abrigados em nenhuma outra entidade e porque atendiam aos requisitos
pertencer ao Conselho, é preciso que o grupo em questão seja um bloco afro, isto é, que
para a nova entidade, chegou-se a debater intensamente se bandas afro também poderiam
compor o Conselho. Enquanto uns alegavam que não deveriam porque bandas não
entidades, pois todas as bandas em questão desejavam tornar-se bloco afro, tão logo
dispusessem de recursos para comprar instrumentos suficientes para uma bateria. E foi o
que aconteceu. Por outro lado, em algumas ocasiões, instituições que realizam trabalhos
desfilar como bloco afro no carnaval, integrando-se ao CEAC. Essas entidades são, em
geral, ignoradas, embora nenhuma delas tenha realmente investido na empreitada. Isso
acontece porque elas podem até ‘sair como’ bloco afro, mas não o são, elas não são
prioritariamente carnavalescas.
Concluído o novo estatuto, houve então a eleição da diretoria, proposta sob a forma
de uma “coordenação executiva” por Moacir Pinho, que desejava aplicar no CEAC uma
constava dessa estrutura um Conselho Fiscal e a Assembléia Geral, composta por dois
eleição do novo Conselho não se restringia ao fato de ter sido uma demanda sua e por ter
Moacir coordenando o processo. Membros do MNU, Moacir entre eles, assumiram o Força
blocos afro e desenvolver um trabalho mais ligado à ‘cultura’ através de um bloco. Assim,
muitas vezes, Moacir parecia estar mais presente como Força Negra ou como MNU do que
como ‘Fundação Cultural’. O governo tinha, na verdade, Gurita como alguém que o
ainda considerados bandas afro, já que não haviam desfilado. Além das presenças de
do estatuto117 e um coquetel para o dia da posse da nova diretoria, realizado no mesmo dia
da eleição.
Gurita. Naquele momento, o Conselho possuía 15 entidades filiadas: 12 blocos afro (entre
blocos e bandas que viriam a sair como blocos), 2 afoxés e a levada da capoeira.
determinação do governo é que ele não ‘daria’ mais recursos para os grupos e sim
estabeleceria uma “parceria” com eles, ou seja, o governo poderia auxiliar os grupos na
que dizia não querer mais ser “paternalista” para com os grupos, estes afirmavam que não
se tratava de paternalismo, mas de um contrato, pois ao liberar recursos para o desfile dos
117
A digitação final do estatuto, a impressão e as fotocópias foram feitas com muita dificuldade e pode-se
classificar todo esse processo como racismo nos moldes expostos em seção anterior por ter sido, por parte da
presidência da Fundação Cultural, um boicote ao trabalho de Moacir e dos blocos afro. Por não ter
funcionários à sua disposição, todas essas tarefas simples e, supostamente, fáceis, eram tratadas como favores
que a Fundação estava prestando, sendo necessário fazê-las depois do expediente. Eu mesma cheguei a
339
grupos, o governo municipal estava pagando por suas apresentações. Por outro lado, como
mas está longe de ser tarefa fácil. Logo os grupos se dispersaram e só voltaram a se reunir
nas proximidades do carnaval de 1998 para estabelecer a divisão dos recursos, a qual foi
novamente confusa, pois as decisões tomadas em conjunto pelo CEAC com a Fundação
Cultural foram atropeladas tanto por Moacir, que sem ter condições de colocar o Força
Negra na Avenida distribuiu seus recursos entre grupos que não pertenciam ao Conselho,
quanto pelo presidente da Ilheustur que mudou valores a fim de beneficiar grupos sob sua
proteção118.
Em 1998, Moacir Pinho deixou o governo, assim como fizeram as demais pessoas
do PT que ocupavam cargos em função da coligação, pois esta foi desfeita pela
aproximação de Jabes Ribeiro de Antônio Carlos Magalhães e pelo seu apoio à reeleição
de Fernando Henrique Cardoso à presidência e não a Lula, candidato pelo PT. Os anos de
1998 e 1999 foram de pouca atuação do CEAC e os planos de articulação das entidades em
torno de uma série de projetos não foram realizados. No ano 2000, o CEAC voltaria a
ganhar destaque na política local e na mídia pelo retorno do Centro Afro-Cultural à cena. E
que acabou recebendo o nome de Memorial da Cultura Negra de Ilhéus, começou em abril
ajudar, digitando e revisando o estatuto, além de insistir junto aos funcionários responsáveis que as tarefas
fossem cumpridas.
118
Uma descrição mais detalhada da rearticulação do CEAC encontra-se em Silva 1998.
340
Março que seria alugado para este fim e, meses depois, a primeira inauguração, já com a
executiva é de três anos. No final de 2000, houve uma primeira tentativa de eleição
pela eleição anterior. Por irregularidades, reais ou assim interpretadas, a convocação para
esta eleição não foi válida. Uma nova eleição foi marcada para março do ano seguinte, com
duas chapas concorrendo, uma encabeçada pelo Rastafiry e outra pelo D’Logun, que já não
desfilava há alguns anos mas seu representante era alguém atuante na política partidária
local como assessor de um vereador (como Mirinho, que também foi presidente do então
administrativa que consta do estatuto do CEAC não foi seguida pela chapa do D’Logun,
que acabou vencendo a eleição. Na verdade, ela nunca foi, de fato, considerada e, desde os
recentemente voltou a ser chamado de CEACI por alguns, já que a nova entidade não foi
regularizada. O extrato de seu estatuto foi publicado no Jornal Oficial do município logo
após a eleição de 1997, mas não houve o registro em cartório. Na realidade, até há pouco
tempo, o Dilazenze era o único grupo em situação regular entre os blocos afro de Ilhéus,
119
Recentemente, já em 2004, houve uma nova eleição para o CEAC, em que o presidente do D’Logun foi
reeleito contra uma outra chapa encabeçada pelo Dilazenze na pessoa de seu vice-presidente. Desde a sua
341
A atual gestão do CEAC foi, sem dúvida, a que teve a maior visibilidade na mídia.
embora não tenha sido organizado pelo presidente do Conselho, a entidade apareceu como
governo municipal que teve uma “boa repercussão”, como disseram120. Foi um dos raros
momentos de afrontamento dos grupos ao governo municipal, pois a carta pedia apoio e o
cumprimento de promessas. Mas o CEAC também foi para a mídia, especialmente para as
emissoras de rádio121, pelas denúncias de corrupção feitas por membros de alguns grupos
Memorial da Cultura Negra, com suas várias inaugurações, contribuiu muito para deixar o
O Memorial
longo do texto e tentar tornar mais inteligível o que é e o que representa atualmente o
‘história’ começa a ser contada pelos integrantes dos blocos afro, o relato não apresenta um
candidatos a prefeito com os grupos afro através de Mirinho, então candidato a vereador.
fundação, ainda como CEACI, esta é a primeira vez em que o Dilazenze não participa da diretoria do
Conselho.
120
Uma nota sobre a realização do encontro chegou a sair num jornal de circulação estadual.
121
Episódio descrito por Sílvia Nogueira em sua comunicação “Falar na Rádio como Estratégia Política: Um
Retrato Etnográfico do Racha entre Entidades Afro-Culturais de Ilhéus”, apresentada no Fórum de Pesquisa
“Políticas e Subjetividades nos ‘Novos Movimentos Culturais’”, na 24ª Reunião Brasileira de Antropologia
(Olinda, 12 a 15 de junho de 2004). A autora, também doutoranda do PPGAS/Museu Nacional – UFRJ
realizou pesquisa sobre as emissoras de rádio de Ilhéus e sua tese encontra-se em fase de redação.
342
Goldman (2000) faz uma descrição detalhada de todo esse processo e, a partir das
Ronaldo Santana, então candidato a prefeito que assumiu esse compromisso com os
grupos afro, aliou-se a Antônio Olímpio, considerado com mais chances de se eleger e
diferentes grupos afro que participaram daquele processo, invariavelmente, afirmam que os
grupos trabalharam unidos pela eleição de Antônio Olímpio e que teriam sido responsáveis
Olímpio, ter sido eleito presidente do CEACI em 1993 e ter participado do governo com
mandato, aqueles foram anos difíceis para o movimento afro-cultural de Ilhéus. Somente
em 1995, depois de muita pressão dos grupos afro, segundo contam, o então prefeito doou
aos grupos um terreno que pertenceria ao governo municipal para a construção do Centro.
A doação foi um grande fato político: a prefeitura e os grupos organizaram uma grande
festa, a imprensa foi convocada e o prefeito fez, como pessoa física, a primeira doação em
dinheiro a fim de iniciar uma campanha de arrecadação para a compra do material para a
antes de passar pela Câmara de Vereadores, que vetou o projeto. O Centro teria sido a
ao carnaval e aos grupos, dispersou o movimento. Nas eleições de 1996, os grupos foram
procurados pelos candidatos a prefeito. Algumas pessoas contam que numa reunião de
negociação de apoio a Jabes Ribeiro, o candidato que venceu aquelas eleições, os grupos
apresentaram seus ‘oito mil votos’ como capital e foram desafiados por ele a mostrá-los
elegendo um vereador que fosse seu representante, justamente Gurita, que se apresentava
como membro do movimento negro e que teria o apoio do prefeito para reapresentar o
projeto da construção do Centro na Câmara de Vereadores ‘se eleito fosse’. Alguns grupos
até apoiaram Gurita, mas também “trabalharam” para outro candidato a prefeito.
Gurita não obteve os votos necessários para sua eleição e ficou como suplente de
Gildo Pinto, candidato eleito que assumira a base eleitoral do D’Logun, que apoiou
Mirinho nas eleições de 1992. Gurita disse que se conseguisse assumir a cadeira em algum
momento, encaminharia o projeto do Centro. Mas Gildo Pinto também pretendia fazê-lo.
Contudo, consta que o projeto teria sumido da Câmara, dessa forma, nenhum dos dois o
apresentaria.
Especial da Câmara por ocasião da Semana da Consciência Negra, sessão esta convocada
pelo único vereador eleito pelo PT e foi dele mesmo que veio a notícia de que a construção
do espaço estaria prevista no orçamento do município para o ano seguinte, segundo lhe
informou Moacir Pinho, ainda no cargo de gerente de ação cultural da Fundação Cultural
de Ilhéus.
vereador Gildo Pinto, de acordo com o presidente do Dilazenze, teria conseguido encontrar
344
o projeto de 1995 e desarquivá-lo, o que motivou uma nova conversa com o prefeito, que
prefeito teria dito que a Petrobrás estaria construindo um Centro Cultural em Ilhéus e que
um bom espaço em seu interior poderia ser utilizado pelo CEAC provisoriamente como o
Centro Afro-Cultural, enquanto este não era construído pela prefeitura. Mais uma vez,
nada aconteceu, até porque nem mesmo a Petrobrás construiu seu Centro Cultural.
reunião convocada pela prefeitura cujo assunto seria a “potencialização social da cultura
afro”. Quinze minutos após o horário marcado, havia apenas representantes de três grupos
presença do fotógrafo, deduz-se que o anúncio de que a prefeitura estava para alugar um
espaço para a promoção de atividades afro-culturais deveria se tornar um fato político, mas
para isso seria preciso que todos os convidados comparecessem. A reunião foi adiada e
marcada outras duas vezes, e acabou acontecendo no dia 02 de maio, ainda que com
pessoas se reúnem para jogar dominó, ao que parece, uma organização comum no interior
da Bahia e uma prática bastante difundida na cidade. Ao fim da tarde, em função talvez do
homens, nas praças ou mesmo nas calçadas das ruas, jogando dominó e um outro tanto
deles assistindo ao jogo. Propriedade de família negra, com a maior parte de seus sócios
negros, o Clube 19 de Março é, ainda hoje, um espaço de lazer voltado para a população
negra. Sua localização, nas imediações da Av. Itabuna e no início de uma das ruas que
sobem para o bairro da Conquista, é privilegiada desse ponto de vista, pois não está longe
do Centro da cidade ao mesmo tempo em que pode ser facilmente freqüentado pelos
moradores do bairro ‘mais negro’ da cidade. O espaço possui dois andares e até hoje não se
sabe ao certo se a prefeitura alugou todo o clube ou só o andar inferior – nenhum membro
dos grupos afro nunca viu o contrato. Na prática, o Memorial, que até este momento ainda
não tinha este nome, funciona no andar térreo e as atividades do clube no superior.
Numa outra reunião com um outro representante do governo, desta vez em função
que o espaço estava sendo denominado de “Casa da Cultura Afro”. No dia 19 de maio,
cerca de duas semanas após a reunião com os grupos, houve um evento relativamente
governo diretamente envolvidos no projeto para o presidente do CEAC insistiam que ele
deveria convocar e apelar para presença do maior número possível de integrantes dos
Um palanque foi armado em frente ao Clube. Em torno dele, faixas que não foram
confeccionadas pelos grupos agradeciam em seu nome: “Jabes é Axé – Entidades Afro”
“Obrigado Jabes pelo Centro da Cultura Negra – Moradores da Av. Itabuna” (assinando);
Maria de Lurdes 2000 parabeniza o Pref. Jabes Ribeiro pela iniciativa do Memorial da
Cultura Negra”; “Obrigado Prof. Gurita por nos representar – Assoc. Desportiva das Ruas
346
comício, mas além delas houve presença de vereadores e candidatos ao cargo e discursos
blocos afro, o presidente do CEAC foi convidado a assinar o convênio, mas foram
As faixas também revelam que ainda havia uma certa confusão entre os nomes
propostos para o espaço, mas o de Memorial da Cultura Negra já estava decidido pelo
grupos afro, pois parece que o nome já constava do convênio e não poderia ser mudado.
negro de Ilhéus que seria plenamente viabilizado em seu segundo mandato. Os meses se
Jabes Ribeiro, que foi reeleito. Quanto ao Memorial, a única iniciativa tomada a seu
respeito foi uma pintura externa com motivos afro. Sua inauguração, ou a primeira delas,
informado de que seria o administrador do Memorial, cuja nomeação sairia no fim do mês,
mas nesse momento não se sabia a que órgão do governo o espaço ficaria ligado. Dizia-se
que poderia ser à Fundação Cultural. Por outro lado, uma nova secretaria que começava a
Câmara e com cinco mandatos de vereador, mas que não havia sido reeleito no pleito de
347
2000. Além disso, um outro interessado no Memorial, Gurita, também não eleito, era o
subsecretário de Esporte dessa secretaria. Segundo um dos dirigentes dos blocos afro, a
deputado federal Pastor Reginaldo, que tem as cidades de Ilhéus e Itabuna como base
eleitoral. Este teria solicitado a Jabes que implantasse em seu governo uma Secretaria de
Assuntos Afro, a ser chefiada pelo mesmo político, seu aliado na cidade. O prefeito, então,
propôs esta outra, que seria mais abrangente, mas que poderia atender ao público desejado
pelo deputado.
Desde sua inauguração, o Memorial passou a ser utilizado para aulas de capoeira de
uma academia e para aulas de dança afro dadas por um componente do Leões do Reggae a
crianças de sua comunidade. Esta foi a informação do presidente do bloco, que afirmou
que as aulas faziam parte de seu ‘trabalho social’. Também passaram a ser realizadas nele
algumas reuniões do CEAC. Durante todo o ano de 2001, foram feitas promessas de obras
evento de assinatura do convênio, depois o espaço fora pintado e inaugurado e ainda não
estava funcionando. Isso poderia denotar “incompetência” dos grupos afro “para a
sociedade”, já que ninguém sabia o que estava acontecendo. Nesse momento, era a
Secretaria de Esporte e Cidadania a responsável pelo Memorial, mas por ser uma secretaria
nova, alegava que não tinha recursos disponíveis para dar encaminhamento às obras
e do não cumprimento das promessas de obras feitas pelo governo. Aparentemente, isso
fez com que a primeira dama fosse até o espaço e solicitasse uma vez mais – isso já havia
348
acontecido outras vezes – um relatório sobre o que ainda era necessário fazer para que o
determinado que a cozinha – uma das propostas é que houvesse um restaurante de comida
grupos afro de que o prefeito desejaria, com a instalação da cozinha, fazer uma nova
cozinha não foi instalada e apenas uma feijoada foi realizada no Memorial durante a
cozinha e banheiros, além de ‘boxes’ para que cada grupo afro pudesse expor e vender
governador César Borges, o senador Antônio Carlos Magalhães, além do então candidato a
governador, Paulo Souto – 2002 foi novamente ano de eleições –, o Memorial foi
embora com salário 50% menor do que o recebido por pessoas com cargos equivalentes ao
pela ausência de uma política deliberada de mobilização dos grupos e pela própria falta de
estrutura destes, o Memorial tem funcionado, mas está longe de alcançar os objetivos
foi “assumido” pelo Dilazenze. Na verdade, apenas este grupo tem feito uso do Memorial
349
com exposição de produtos e promovendo boa parte de suas atividades nele. Outros grupos
ocuparam seus boxes com fotos, mas apenas isso. Muito pouco para algo tão desejado.
blocos afro de Ilhéus como ‘territórios negros’, mas no sentido de ‘territórios existenciais’,
nos quais se produz um modo de subjetivação negro a partir de sua relação com o
candomblé como ‘fonte’ de ‘cultura negra’ e das diversas atividades promovidas pelos
desfile, no qual mais se expressa seu desejo de singularidade. Esta forma de se colocar no
mundo permite aos grupos afro sua constituição enquanto movimento, ou seja, enquanto
melhor. Contudo, também torna possível que a maioria aja sobre eles impedindo tal
denomina-se racismo.
afro como territórios negros permitiu entrever que outras formas de subjetivação são
produzidas nos mesmos processos, como as que geraram o Projeto Batukerê e a formação
dos blocos como grupos de dança ou bandas, que fazem de seus componentes artistas. A
idéia de que as atividades, a estética, a música, enfim, os blocos afro surgiram a partir do
encaminha a discussão para pensar sobre que desejos e modos de subjetivação estão em
jogo nessas outras formas de conceber o bloco afro. Em termos gerais, este é o objetivo do
próximo capítulo.
350
Encontros 5
tensão que afeta todos os blocos afro que conseguem atuar além do período carnavalesco e,
de maneira especial, aqueles que possuem uma base comunitária. O caso do Olodum pode
ser chamado de extremo não só porque ele é o bloco afro mais conhecido do Brasil, mas
principalmente porque ele se tornou famoso pelas duas vertentes seguidas e expôs a tensão
entre elas, criando mesmo a idéia de que aí existe uma oposição. Entre os grandes blocos
afro de Salvador, o Ilê Aiyê é tido como o representante mais famoso da vertente
associativa, comunitária e o Ara Ketu é o grupo musical, são os artistas1. É provável que
haja uma tensão também nesses blocos, mas eles fizeram opções claras, a partir das quais
criaram imagens de si que direcionam suas ações e fazem-nos manter uma linha em nome
da própria sobrevivência do bloco2, ainda que tenham de ceder vez por outra: o Ilê Aiyê,
1
Numa entrevista publicada no Jornal Correio da Bahia (27/04/99), pergunta-se a João Jorge se o “Olodum
estaria hoje mais próximo da visão de negritude do Ilê Aiyê ou do Ara Ketu”, o que demonstra um
reconhecimento dessa oposição.
2
Penso ser legítimo especular que se o Ilê Aiyê introduzisse instrumentos eletrônicos e adotasse o formato de
trio elétrico, por exemplo, ele perderia muito do que garante seu sucesso, que é sua singularidade baseada
numa idéia de ‘pureza’.
351
por exemplo, criou um bloco alternativo para turistas e pessoas brancas e o Ara Ketu,
diferenciando-se das bandas de axé music, mantém uma escola comunitária. O caso do
Olodum é especial porque ele já fez opções distintas e tanto na forma associativa –
investindo nos ‘trabalhos sociais’ com a comunidade – quanto como grupo artístico, o
bloco alcançou sucesso, embora não tenha conseguido mantê-lo de maneira estável. A
momento em que uma está em alta, a outra parece cair. É preciso fazer escolhas sempre.
Embora opostas, ambas as opções são produzidas por uma mesma forma de
subjetivação. Tanto no caso dos ‘trabalhos sociais’ dos grupos afro quanto na vontade de
seus membros de obter renda com suas atividades artísticas, têm-se aí formas do que
desejo de ‘incluir’ quem supostamente está ‘fora’, ou seja, aqueles que estariam excluídos
esses mesmos benefícios para si e para outros através do trabalho como artista e/ou dos
imaginados prestígio e poder de ser ‘dono de bloco’, ou ainda fazendo do bloco uma
É preciso deixar claro que a afirmação de que tais desejos são produzidos por um
subjetivação. Retomando ainda mais uma vez o que já foi bastante ressaltado ao longo
deste trabalho, tudo é produzido a partir de encontros, agenciamentos dos mais diversos
fluxos que são, por sua vez, produzidos a partir de tantos outros agenciamentos. Entretanto,
candomblé, por uma idéia ampla de família, pela criação de um novo território existencial
3
Questão a ser retomada adiante.
352
‘comunidade’; tais desejos podem vir a ser capturados por uma visão de mundo ou
diferir. O que é interessante notar e guardar neste momento da exposição é que, como não
trabalho: trabalhos que podem ser chamados de ‘artísticos’ – embora sejam comumente
primeira seção apresentará os elementos que são levados em conta por membros do bloco
para concebê-lo como um ‘coletivo’, como um ‘grupo’ de fato. Desse ponto de vista, um
bloco afro é definido por suas atividades comunitárias, as quais, como pode ser percebido
na trajetória do Dilazenze, vão ganhando novos significados à medida que o grupo entra
em novos agenciamentos. Assim, uma mesma atividade que num primeiro momento
acontecia pela ‘festa’ ou para angariar recursos para o bloco, no momento seguinte pode
‘trabalho social’ do grupo e, algum tempo depois, pode ser uma estratégia para ‘promover
Projeto Batukerê.
A segunda seção deste capítulo será dedicada, então, ao Projeto Batukerê: que
4
Estou chamando de ‘onguização’ a uma forma de subjetivação que homogeneiza a ação, fazendo com que
os mais diversos tipos de organização, não apenas as denominadas ‘organizações não-governamentais’, tais
como entidades filantrópicas, religiosas, comunitárias e governamentais, formulem suas práticas e objetivos
segundo um modelo considerado característico dessas organizações. Sendo uma forma de subjetivação, ela
também atinge a mídia – e é maciçamente propagada por ela – e a todos nós, fazendo-nos pensar o mundo
através de valores como ‘voluntariedade’, ‘solidariedade’, ‘participação’ etc. O tema será retomado adiante.
353
decorrentes do projeto perpassam o Dilazenze. Nesse caso, o grupo não é percebido apenas
por seu caráter ‘associativo’, mas, fundamentalmente, ‘social’ no sentido de um grupo que
social) pode parecer ‘natural’ já que ele geralmente surge de uma coletividade, de um
“espaço social”, como ressaltado no capítulo anterior. Entretanto, os blocos afro também
artistas ou como fonte de renda para alguns membros. Nesse caso, são enfatizados seus
bloco como coletividade ou para cuidar da coletividade. Apesar desses aspectos serem tão
‘naturais’ aos grupos afro quanto seu caráter associativo, já que um bloco afro surge como
reprovados. Algumas das implicações dessas posições serão enfocadas na terceira seção.
“Eu estou falando essas coisas porque, como o Olodum é muito citado
como exemplo de sucesso, é preciso que a gente saiba exatamente que
o sucesso tem um preço 5. Sucesso tem as dificuldades, sucesso tem as
perdas. À medida que o Olodum cresceu, se organizou, andou pelo
mundo inteiro, ganhou muitas coisas, mas perdeu muito. Muitas
pessoas que chegaram ao Olodum pela forma associativa, pelo seu
caráter de uma organização do movimento negro, de cultura afro-
brasileira, depois continuaram no Olodum pensando no Olodum como
um emprego público.” [grifo meu] (Vários 1999:62).
presidente do Olodum, é como, em geral, nasce o bloco afro: fruto do desejo de pessoas
5
Trecho retirado de um debate sobre a economia do carnaval do qual João Jorge participava em 1998. Nesse
debate, a intervenção de João Jorge seguiu-se à de Marcelo Dantas, possivelmente o autor mais citado
quando se trata de pensar sobre o “sucesso” do Olodum como uma empresa. Assim, vários trechos de sua
354
moradores ou mesmo de amigos que saíam juntos no carnaval em algum outro tipo de
bloco ou até em outro bloco afro. Mas o termo pode significar mais do que um ‘formato’ se
identidade” do Olodum estabeleceu que pode haver ‘formas’ diferentes de orientar o bloco,
Jorge quando ele voltava a ocupar o cargo depois de alguns anos afastado da presidência6.
Sua ‘missão’ seria reerguer o bloco, que na década de 90 foi “abalado por uma crise
apresentação da entrevista. Percebe-se nesses trechos que João Jorge evidencia uma
musical.
fala, como o supracitado, constituem respostas às colocações anteriores de Dantas (Vários 1999:51-6). Ver
também Dantas 1994; 1996 e Fischer 1993.
6
Note-se que João Jorge Rodrigues nunca se afastou totalmente da direção do Olodum.
355
tornar uma empresa geradora de empregos, mas também de renda e de lucro, e por ser uma
banda que excursionava pelo país e pelo mundo, vendia muitos discos e ganhava altos
cachês? A opção pela segunda tendência parecia bem mais atraente aos blocos afro de
Ilhéus, embora qualquer declaração nesse sentido estivesse sempre cercada de muitas
ressalvas. Mas naquele momento, essas escolhas eram apenas especulativas, pois nenhum
dos blocos precisava realmente fazê-las: ser um grupo musical de sucesso ou investir em
trabalhos sociais não eram caminhos excludentes porque havia poucas possibilidades de
realização de um ou de outro.
que se apresenta em shows. Na disputa por espaço no interior do bloco, cada um desses
projetos foi assumido como prioritário por grupos diferentes, opondo, como no caso do
Olodum, o bloco afro como movimento comunitário e voltado para os ‘trabalhos sociais’
ao bloco afro como grupo formado por artistas que almejam fazer dele um meio de
sobrevivência financeira. Por ser o único bloco afro de Ilhéus a apresentar tais
possibilidades, ainda mais do que nos capítulos anteriores o Dilazenze será o foco das
Apesar da ‘forma associativa’, com raras exceções, os blocos afro possuem ‘donos’.
Em geral, o dono de um bloco é seu fundador (ou um deles) ou alguém que o herdou ou
356
“assumiu”; sua função no interior do bloco comumente é a de presidente, além de ser seu
representante na maioria das situações de encontro dos blocos afro. Alguns ‘donos’
afirmam que seus blocos estão mesmo “registrados” em seus nomes, ou seja, o grupo é de
geri-lo com eficácia e de garantir sua base comunitária. É claro que há grupos que já
nascem com alguns elementos, ao menos em tese, favoráveis a uma vida longa, como uma
família extensa ou com uma ligação estreita com um terreiro de candomblé, ou ambos,
como o Ilê Aiyê e o Dilazenze. Porém, estes blocos são exemplares para mostrar que nada
é determinante e o que é apontado como algo que pode ajudar o bloco num momento,
enfatizar que antes de serem “espaços sociais negros” no sentido proposto por Agier
(1992:71), os grupos afro são espaços sociais7. Em geral precedido por algum outro tipo de
organização, ainda que apenas de um grupo de amigos, o bloco já costuma nascer com um
caráter associativo forte, tanto mais se sua base de sustentação for uma família numerosa e
moradora da mesma região, o que não é raro nas comunidades situadas em periferias. Os
casos do Ilê Aiyê, em Salvador, e do Dilazenze em Ilhéus, são exemplares desse tipo de
situação e se assemelham nas vantagens e nos problemas que a presença intensa da família
pode provocar.
Agier (2000) conta que Mãe Hilda, mãe do presidente do Ilê Aiyê, instalou-se na
rua do Curuzu com seus pais em 1938, no mesmo lugar que se encontra até hoje. Ela teve
cinco filhos, sendo Vovô, presidente do grupo, o mais velho deles e, aparentemente, todos
357
são moradores do local, onde ainda habitam netos, outros familiares e amigos (:113). Na
mesma casa funcionava até recentemente a sede do grupo 8 e o terreiro de candomblé Ilê
No caso do Dilazenze, não posso datar exatamente quando a antiga chácara onde
hoje estão situados o terreiro Tombency Neto, a sede do grupo e as moradias da mãe-de-
santo, seus irmãos e filhos foi comprado por seus pais, mas é certo dizer que a família o
ocupa desde, pelo menos, finais dos anos 30. Ela teve quatorze filhos, dos quais,
atualmente, doze habitam o mesmo terreno ou suas imediações, que também constituíam a
chácara antes do desmembramento dos terrenos. Além disso, alguns netos já constituíram
família e também moram no local. O mesmo se passa com alguns dos irmãos da
‘matriarca’ do Dilazenze, o que significa dizer que uma grande parte da vizinhança guarda
Essas informações têm o propósito de enfatizar que nos casos do Dilazenze e do Ilê
Aiyê, há, anteriormente à formação do bloco, uma base comunitária que é tanto familiar
torna-se uma grande festa. E isso dá ao grupo a garantia de ter sempre um bom público em
suas atividades, especialmente se forem para crianças: filhos, sobrinhos, primos e filhos de
dirigentes de outros grupos afro de Ilhéus, como a responsável pela longevidade do grupo.
Quando ocorrem conflitos internos, eles são resolvidos com a intervenção materna – ou
divina nos casos mais difíceis9. E, diferentemente do que ocorreria numa outra situação, o
fato de tratar-se de uma família faz com que o rompimento de alguém com o bloco
7
Ver Encontros 4.
8
Uma nova sede de amplas dimensões foi inaugurada há poucos meses em frente à antiga.
9
Ver Encontros 4 para um exemplo que permite essa afirmação.
358
provoque o afastamento da pessoa, o que costuma ser momentâneo, mas não uma
definitivo.
A análise que Agier faz da importância da família para a longevidade do Ilê Aiyê
fortes” entre seus membros. Termos como “casa”, “comunidade” e “família” teriam essa
função (2000:87). Para Agier, parte do sucesso do Ilê Aiyê vem de sua capacidade de se
fazer conceber como uma grande família, uma “família simbólica”. A composição dessa
imagem de ‘família’ dar-se-ia em função, entre outras coisas, da “figura ritual e social” de
Mãe Hilda (:105), da numerosa presença feminina que daria ao Ilê uma forte idéia de
tradição e ênfase nos valores morais, ou seja, “uma respeitabilidade moral e um ambiente
familiar” (:103) e de uma relação familiar dos membros entre si – em 1992, 72,8% dos
tensão no Ilê Aiyê entre permanecer ligado ao lugar, às relações e aos valores de origem e
tornar-se, de fato, uma “instituição” “econômica (uma empresa no sentido liberal), social
(uma associação direcionada a seu bairro) e política (um componente do movimento negro
brasileiro)” (2000:114). Seu argumento é que o mesmo “espírito de família” que envolve
359
entidade “na vida da cidade”, ou seja, como uma instituição atuante em relações que
estariam para além da família e do bairro. Aliás, especialmente no que concerne às relações
“características familiares” tais como “personalização de poder, luta das redes, atração
pelas soluções clientelistas, economia sem transparência”10 que estariam em oposição aos
pessoa “já faz parte da família Dilazenze”. E se é alguém que passa a colaborar com o
grupo, brinca-se dizendo que a pessoa “é um agregado”, ou seja, alguém que vive no grupo
como se fosse da família. Assim como no Ilê, também no Dilazenze essas declarações
remetem a uma ‘família simbólica’, embora nem tão simbólica assim: neste grupo, a quase
totalidade da diretoria e dos principais membros são da mesma família; nos anos 80, entre
os quinze diretores do Ilê, estavam Vovô, sua mãe (“madrinha do bloco”), sua irmã, seu
irmão, sua esposa e um cunhado (Agier 2000:67) e em 1995, além do próprio Vovô e de
sua esposa, também sua mãe, um irmão e uma irmã ainda faziam parte da diretoria do
bloco e duas irmãs trabalhavam como professoras na Escola Mãe Hilda (Agier
2000:100;113).
10
No original “l’économie souterraine”.
11
A atribuição de Agier de “características familiares” a relações políticas que, segundo sua argumentação,
claramente deveriam ser diferentes, é uma forma usual de produzir explicações para práticas sociais que não
seguem os ‘modelos’ esperados. As práticas políticas são especialmente propícias para essa forma de
abordagem, na qual se afirma que ‘a política’ deveria funcionar conforme regras e conceitos que compõem ‘o
sistema’ e, diante de uma outra forma de ‘funcionamento’, esta é explicada por características muito
particulares dos agentes sociais (ver Goldman e Sant’Anna 1999 para uma crítica a este tipo de abordagem
nos estudos sobre o voto no Brasil).
360
Costuma-se dizer que o sucesso do Dilazenze deve-se, em parte, à sua “forte base
familiar”. Por outro lado, a organização do grupo sobre uma estrutura totalmente familiar
pode ser apontada como um problema. Uma situação paradigmática ocorreu durante um
curso de formação de lideranças promovido por uma empresa privada em parceria com a
por três pessoas: o presidente, o vice-presidente – seu irmão – e o artista plástico que
costuma colaborar com o grupo 13. Uma das dinâmicas consistia em que representantes das
entidades apresentassem o que entendiam como os pontos forte e fraco de sua organização.
O artista plástico do Dilazenze repetiu o que é uma espécie de senso comum sobre o grupo
a respeito dos benefícios de sua “forte base familiar”. A apresentação do que seria o ponto
fraco seria após um intervalo, durante o qual o presidente do grupo fez uma pequena
entender que o Dilazenze é um grupo fechado, que dificulta a inserção de não membros da
família, ao que este último retrucou dizendo ser ele mesmo um exemplo do contrário.
conseguiu fazê-lo por algum tempo por ter se tornado o principal interlocutor do presidente
comum as pessoas que não fazem parte da família serem acusadas de provocar intrigas
12
Trata-se do “Projeto Maxitel Comunidade Líder”, um curso promovido por essa empresa telefônica em
convênio com prefeituras e organizado por uma empresa de consultoria em administração. A Secretaria de
Ação Social em conjunto com a empresa de consultoria selecionou dez entidades do município para o curso,
desenvolvido em módulos ao longo do segundo semestre de 2001, sendo o Dilazenze o único grupo afro, na
verdade, o único grupo ‘cultural’, embora ele tenha sido escolhido claramente em função do Batukerê. As
demais entidades eram filantrópicas ou associativas, como a de diabéticos ou das associações de moradores
de Ilhéus.
13
Tratava-se do primeiro dia do curso. Tendo chegado em Ilhéus naquela semana para o último período de
trabalho de campo, fui convidada pelos participantes do Dilazenze a ocupar a quarta vaga a que eles tinham
361
No retorno do intervalo do curso, foi solicitado que as entidades falassem sobre seu
argumentando que, no caso do Projeto Batukerê, muitos pais das crianças são irmãos ou
primos dos dirigentes do grupo e não dão apoio ao projeto: “a própria família não apóia
como deveria”. Mas esta não foi a única ‘queixa’ em relação à ‘família’ colocada pelo
vice-presidente. Por ocasião de uma reunião da diretoria do Dilazenze, ele também disse
que o fato de serem todos da mesma família “atrapalha[va]” muito o grupo, pois “ninguém
Em suma, dependendo do ponto de vista, a família pode mesmo ser o ‘ponto forte’
ser apontado como um elemento importante para perenidade do grupo e de sua forte
de família não é exclusividade do candomblé; ela é própria da maior parte dos templos
religiosos. Mas a figura da mãe-de-santo extrapola o domínio religioso. Assim, tanto o Ilê
Aiyê quanto o Dilazenze, como outros diversos grupos afro, foram beneficiados pela
dada a indivisibilidade dos espaços entre eles e os blocos citados, além das presenças
muito ativas das mães-de-santo na formação desses, é presumível supor que ambos já
tenham nascido com redes suficientemente numerosas capazes de garantir suas existências
direito: seria uma forma de observar o curso – vontade que eu manifestara – e de me capacitar para auxiliá-
362
e o público de qualquer atividade. Referindo-se ao Ilê Aiyê, Moura chama a atenção para a
relação com a estrutura organizacional do candomblé que faz com que algumas funções
sejam abarcadas pelo bloco, como “distribuir comida a crianças mais pobres, manter uma
garantir uma referência forte de identificação para seus associados históricos.” (Moura e
Agier 2000:371).
uma forma de ‘resultado’ da música, algo gerado por ela. As cobranças feitas aos blocos
concepção como premissa, como se a proposta original dos diretores do Olodum fosse a
intervenção. Tratando-se do bloco afro mais famoso e importante do país, o Olodum torna-
se, então, o modelo do que é um bloco afro e de como ele deve agir.
que um bloco afro deveria ser em função do trabalho social realizado pela entidade com
pertencentes aos blocos afro de Ilhéus costumavam cobrar destes que tivessem o mesmo
trabalho feito pelo Olodum, sem sequer levar em consideração as diferenças de estrutura
entre os grupos de Ilhéus e o mais famoso bloco afro do Brasil. A fim de refutar a idéia de
que esse trabalho seria inerente à definição de bloco afro, o que é recorrentemente
los na redação do projeto final de captação de recursos para a entidade previsto pelo curso.
363
argumentado nas críticas aos grupos ilheenses, o presidente do Dilazenze lembra e enfatiza
garantir a segurança dos freqüentadores dos ensaios, ameaçada pela violência local.
O primeiro trabalho social do Olodum foi a Banda Mirim que, de acordo com um
depoimento reproduzido por Nunes (1997:93), teria sido uma iniciativa de Neguinho do
a fazer parte do projeto “Rufar dos Tambores”, o primeiro do grupo, criado em 1984 pouco
depois do Bloco Olodum passar a ser chamado de Grupo Cultural Olodum. Em 1991 foi
1994 chegou a implantar o ensino formal de 1 a a 4a séries (:53). Esta foi uma experiência
de curta duração, pois a partir de 1997, “em virtude das muitas dificuldades”, a Escola
voltou a oferecer somente cursos informais, como teoria musical, dicção de voz, percussão,
Entre dirigentes dos blocos afro de Ilhéus, também costuma-se dizer que os
adquiridos pela Banda Mirim. Nesse caso, é notória a intenção de atribuir um interesse
outro além da preocupação social às ações do Olodum. Já nos anos 90, o que se vê é que o
depender dos recursos gerados pela banda e foram, assim, colocados em segundo plano15.
14
Ver Encontros 1.
15
Em sua dissertação de mestrado sobre o grupo, Nunes mostra que os problemas financeiros gerados pela
Escola Criativa trouxeram à tona a seguinte polêmica: “as ‘empresas comerciais’ (Fábrica, Boutique) devem
sustentar a ‘empresa social/cultural’? (Escola)” (1997:130). Importa ressaltar que sua pesquisa foi realizada
num bom momento do Olodum como empresa e como grupo musical: justamente em 1996, quando Michael
Jackson, um dos artistas mais famosos do mundo, gravou parte de um clipe com o Olodum no Pelourinho sob
a direção de Spike Lee. A autora conta que depois do clipe o Olodum foi convidado a participar de
programas na TV e todo o seu estoque de mercadorias acabou, sendo as camisetas utilizadas pelo ‘astro pop’
durante a gravação as mais procuradas. O próprio Spike Lee, diretor de cinema norte-americano engajado na
luta anti-racista e dono de uma loja ‘étnica’, teria encomendado cem camisetas (:115).
364
Isso acabou gerando uma crise no grupo. Em 1996, Neguinho do Samba afastou-se do
Olodum alegando a falta de interesse deste nos projetos sociais: “na realidade, todos os
blocos afro mudaram. Deixaram de lado o social e partiram para o comercial.” (A Tarde
10/08/96 apud Nunes 1997:128). Em 1999, quando João Jorge voltou a ocupar o cargo de
Olodum.
grupo em fins dos anos 90, tornou-se importante para os dirigentes dos blocos afro de
Ilhéus ressaltar o que seria um “outro lado” dos projetos sociais do Olodum – que eles
traziam benefícios diretos para o grupo – como parte do argumento de que os blocos afro
não se definem pela realização de trabalhos sociais. Invariavelmente, dirigentes dos grupos
afro de Ilhéus manifestam a vontade de realizá-los – mesmo aqueles que mal conseguem
organizar-se para desfilar no carnaval dizem que gostariam de fazer algum trabalho com
sua comunidade –, mas concordar que um bloco afro tem essa obrigação seria admitir
fracasso ou incompetência na própria constituição como bloco afro no caso daqueles que
Projeto Batukerê. A partir dessa iniciativa, o bloco tornou-se uma referência para essas
mesmas pessoas do que se espera de um bloco afro. A frase “todos os blocos afro deveriam
responsável pela pastoral afro, por exemplo, disse que em função do Batukerê, o Dilazenze
365
estaria “fazendo, pensando como o Ilê Aiyê e o Olodum” 16, o que para ele significa “estar
preocupado com a questão de ser negro e defender sua identidade”. Em Ilhéus, assim como
em outras cidades brasileiras, a existência de uma elite branca bem marcada em relação a
uma população majoritariamente negra faz com que a pobreza seja ainda mais negra, ou
seja, ‘ser negro’ é ainda mais identificado com ‘ser pobre’. Assim, atualmente, nas falas de
a idéia de que quando o movimento negro se organiza, exige-se que seja para tratar da
pobreza, da miséria social e que ‘defender a identidade negra’ é dar assistência à população
negra. Ver-se-á adiante neste trabalho a defesa de que este é um discurso relativamente
recente e fruto de uma nova visão de mundo regida pela idéia de inclusão.
insistir que “os blocos afro não têm a obrigação de realizar trabalhos sociais. Como o
Olodum começou a fazer isso, passaram a achar que todo bloco afro tem de fazer trabalho
afro “não têm a obrigação de realizar trabalhos sociais” e a posição assumida por este
grupo em função do que o Projeto Batukerê passou a representar. Sua ênfase na negação da
obrigatoriedade do bloco afro realizar trabalhos sociais reflete sua preocupação de garantir
a autonomia dos blocos afro, pois defini-los a partir de sua relação com a comunidade, de
seus trabalhos sociais é uma forma de lhes impor o que ser e o que fazer: “eu defendo que
crescimento [do bloco] junto à comunidade (...).” Contudo, se esta colocação for associada
16
O Olodum mantém a Escola Criativa, fundada em 1991, e o Ilê Aiyê trabalha diversas atividades
366
atividades de preparação para o carnaval, podem ser definidas como “trabalhos sociais”, tal
como argumenta o presidente do Dilazenze, conclui-se que um grupo afro não pode ser
definido a partir deles, mas ele se torna um grupo melhor se puder realizá-los.
As aspas duplas no título desta subseção indicam que a expressão ‘trabalho social’
é realmente usada pelos membros do Dilazenze. Os significados que lhe são atribuídos
podem ser bem variados e incluem desde a própria existência do bloco afro até o Projeto
Batukerê, este sim amplamente reconhecido como tal. De maneira geral, costuma-se
empregar a expressão para designar quaisquer atividades realizadas pelo grupo que visem
Pela definição acima, sob a rubrica de ‘trabalho social’ encontra-se toda atividade
realizada pelos blocos afro. Sua própria existência já seria um ‘trabalho social’ em função
do bloco conseguir aglomerar um certo número de pessoas em torno de ações – tais como
tocar, dançar, cantar etc. – que valorizam uma ‘cultura’ concebida como diferente da
Em 1997, quando estive em Ilhéus pela primeira vez para a pesquisa de campo que
educativas no Projeto de Extensão Pedagógica, iniciado em meados dos anos 90 (Silva 1997).
17
A título de ilustração de que as categorias sociais podem assumir significados bastante distintos, a
expressão ‘trabalhos sociais’ já fizera parte de uma pesquisa anterior realizada por mim e por Marcio
Goldman sobre a campanha eleitoral de um candidato a vereador num município do interior do Estado do Rio
de Janeiro. Nesse contexto, ‘trabalho social’ era definido pelo candidato e por seus assessores como
“serviços” que o candidato prestava à comunidade: “se uma pessoa morre, ele [o candidato] consegue a urna;
se alguém está com fome, ele consegue uma cesta básica... Isso é trabalho social.” A “doação de remédios, o
transporte de doentes, a instalação de água corrente” também eram ‘trabalhos sociais’ (Goldman e Silva
1999:153).
367
auto-estima’ era o argumento central evocado pelo presidente do Dilazenze para afirmar
que todo bloco afro realiza “trabalhos sociais” em suas atividades de preparação para o
carnaval, mesmo que estes se resumam aos ensaios da bateria e do grupo de dança, além do
próprio desfile. Desse ponto de vista, até as apresentações da banda de show do bloco afro
são uma forma de fazer ‘trabalho social’, desde que sua música seja ‘negra’, que valorize a
Porém, há atividades que são mais diretas em seu objetivo de promover a auto-
estima da população negra e que nem todos os blocos afro praticam. A ‘Noite da Beleza
Negra’, por exemplo, é um momento bastante especial nesse sentido por valorizar os
aspectos fenotípicos, os ‘alvos’ mais explorados pelo racismo. O Festival de Música que
população negra e/ou à comunidade do bloco. Mas esses eventos são também um ‘trabalho
social’ por proporcionarem lazer para a vizinhança do bloco. O mesmo pode ser dito em
bairros onde estão situados os blocos. Mas não apenas por isso. Como visto
freqüentam as áreas centrais da cidade, o que constitui uma forma de segregação – espacial
bairros periféricos. Assim, quando o lazer proporcionado pelo bloco afro é justificado
18
Ver Encontros 2.
368
segregação e, como tal, deve ser transformada numa proposta de singularização, do bloco
anterior. Nesse caso, mais do que oferecendo opções de lazer a quem não as tem, o
comunidade, como disse um dirigente de bloco afro de Ilhéus, pois torna-a conhecida e faz
com que as pessoas “tenham orgulho do lugar onde se vive”, aumentando-lhes, assim, o
atividades dos blocos afro, mas há algumas em que a idéia de ‘trabalho social’ como uma
contribuição, uma ajuda do grupo à sua comunidade é ainda mais explícita. No Dilazenze,
ensaiando durante todo o ano era uma forma de “ocupar” as crianças e os adolescentes, que
argumento vale para as oficinas de dança afro e de percussão por manterem os jovens
A carência dos bairros onde os blocos estão localizados também justifica várias das
atividades relacionadas acima, pois um grupo afro “deve ajudar sua comunidade”. Além de
momentos de lazer, há outras formas do bloco ‘ajudar’. Uma delas é atuando “em nome da
369
Ilhéus. O único exemplo concreto que costuma ser citado em função desse tipo de atuação
entre os blocos afro da cidade ocorreu logo no início dos Gangas, grupo do Alto do Basílio,
reivindicação por água para o bairro e sofreu represálias por parte do governo municipal na
ocasião, deixando de receber recursos para desfilar no carnaval por alguns anos.
Por outro lado, a atuação dos blocos afro como apoio para intervenções
governamentais no bairro é bem mais freqüente (embora estas não o sejam tanto),
sobretudo no caso do Dilazenze em função deste possuir uma base comunitária e uma sede,
a qual funciona como espaço para reuniões, para a execução de programas educativos com
crianças etc. Não é raro a sede do grupo ser solicitada para distribuição de cestas básicas,
para cadastramento de moradores para algum programa social ou, por exemplo, para a
concebe como uma proposta de atividade viável, embora poucas vezes realizada – eventos
que têm a ‘caridade’ como um motivador importante. Exemplos desse tipo de atividade são
carência é uma das justificativas mais comuns da maioria dos blocos afro para esse tipo de
mãe-de-santo do Terreiro Tombency, tanto por sua “bondade”, por sua “solidariedade”,
19
Outros blocos afro de Ilhéus têm ou tiveram em algum momento bandas mirim e juvenil com base no
370
Dilazenze, seu neto, D. Roxa fazia distribuição de cestas básicas para famílias carentes do
Alto dos Carilos, dava “esmolas às segundas-feiras” e “ajudava qualquer um que chegasse
no terreiro”. A caridade era uma qualidade pessoal de D. Roxa, mas também algo que é
produzidos em diferentes encontros, que por sua vez também geraram outras formas de
movimentos negros. O que havia de comum entre esses grupos era o desejo de diferir
E, tal como foi defendido antes neste trabalho, valorizar, preservar e divulgar ‘cultura
negra’ valem pela singularização que produzem, sem que seja necessário haver uma outra
finalidade.
mostrou que, se por um lado, defende-se que o bloco afro seja uma entidade carnavalesca
no sentido proposto no parágrafo acima, por outro lado é cada vez mais notória a
antigas que “os blocos afro sempre fizeram”, como diz o presidente do Dilazenze. Práticas
e discursos permanecem aparentemente semelhantes ‘ao que sempre foi feito’, mas é
Documentos do Dilazenze e conversas com seus membros mostram que desde que
Dia das Crianças, oficinas de percussão e de dança afro etc. Cada uma dessas atividades
festa de família e vale por isso; as oficinas também preparariam as pessoas para o carnaval
melhor os já simpatizantes.
na concepção dessas atividades. Como foi ressaltado antes, as opções do Olodum e suas
conseqüências para a definição de bloco afro eram intensamente discutidas pelos grupos de
(CEAC), que estava sendo ‘re-fundado’, também obrigava a refletir sobre o que era
rearticulação do CEAC e que tentava direcionar a discussão para uma concepção de bloco
Não se trata de afirmar que a percepção de que as atividades do bloco têm por
racismo –, são pressupostos básicos para ‘assumir a negritude’, lema dos movimentos
negros, pelo menos, desde os anos 70. A mudança estaria no desejo de relacionar as
372
atividades do bloco afro, e sua própria existência, com idéias como “trabalho social”,
significados são abarcados por uma concepção ampla de cidadania que, especialmente a
partir dos anos 90, se impôs como uma forma de estar no mundo que todos deveriam
‘praticar’.
Como procurei mostrar em trabalho anterior (Silva 1998), ainda que naquele
momento os grupos afro de Ilhéus não utilizassem o termo ‘cidadania’ para definir o
objetivo de suas atividades, estas seriam práticas que, embora sob outros nomes, poderiam
interage com os atores sociais, fazendo com que estes se apropriem dele – não exatamente
cultural de Ilhéus, podem, simultaneamente, ser abarcadas por outras categorias, como as
que passaram a denominar as atividades dos grupos afro justificadas pelo objetivo de
“militância” etc. Reflexões posteriores àquele trabalho levam agora a concluir que é certo
que os blocos afro de Ilhéus, assim como os representantes do movimento negro chamado
político, como o então gerente de ação cultural da prefeitura e dirigente do MNU local,
estavam sendo afetados pelo que pode ser chamado de processo de cidadanização.
abrigar muitos significados conforme o contexto histórico 20, porém, de qualquer forma,
esses são sempre sustentados pela noção de igualdade: ser cidadão é fazer parte de um
mundo de iguais, ainda que definido de diferentes formas. Os direitos básicos, que
20
A noção de cidadania é um objeto historicamente construído e passível de ser observado em uso nas
práticas sociais e, por isso mesmo, perdeu e agregou significados ao longo do tempo. A obra de T. H.
Marshall (1967) é a principal referência quando se trata de reconstituir a forma como se deu a construção do
conceito hegemônico de cidadania, definido pela posse de ‘direitos básicos’ classificados em civis, políticos e
sociais.
373
constituem a noção, são o que garante a participação dos indivíduos que possuem o status
de cidadão nos sistemas econômico e político vigentes, mas também determinam como se
dará tal participação. Por isso, a cidadania é o maior “mecanismo regulador” do Estado
excluídos das relações de produção, cada vez mais a cidadania foi invadindo as relações
cotidianas e o status de cidadão deixou de ser atribuído apenas àqueles que se enquadram
chão’, ‘fazer trabalho voluntário’, ‘doar alimentos para campanhas beneficentes’, ‘fazer
sexo seguro’... tudo isso faz alguém ser cidadão. É esse processo que torna todas as ações
passíveis de serem observadas pelo prisma do ‘fazer a sua parte’ para o bem coletivo que
Afirmar, então, que grupos afro de Ilhéus, assim como grupos ligados ao
movimento negro político, foram afetados pelo processo de cidadanização significa dizer
que eles passaram a ter a preocupação de que suas atividades pudessem ser observadas
desse ponto de vista. Ainda que sob outras designações, isto é, sem utilizar a palavra
porque é uma forma de ‘contribuir com a comunidade’, de ‘fazer algo’ por ela22.
especialmente do Dilazenze, com o que vou chamar, por ora, de ‘forma-ong’. Ainda em
21
A noção de cidadania pode ser pensada, assim, como um dos principais dispositivos da “sociedade de
controle”, termo usado por Deleuze para designar o mundo em que vivemos atualmente (Deleuze 1992).
22
É preciso frisar que não se trata de ‘cálculo’ ou de ‘consciência’ ou ‘inconsciência’ do grupo afro em sua
preocupação com os resultados de suas ações. ‘Ser afetado’ diz respeito a entrar em agenciamentos que
produzem novas formas de viver o mundo, involuntariamente.
374
quatro blocos afro sediados no bairro da Conquista. Tendo tomado conhecimento de que o
Dilazenze e o Rastafiry possuíam projetos para oferecer oficinas de dança afro, percussão,
não pertencente a nenhum dos blocos – propôs a criação da entidade unindo esses grupos e
ainda o Raízes Negras e o D’Logun. A ong seria formada por representantes dos quatro
grupos e por ele como assessor. Segundo sua proposta, ao invés de buscar recursos para
implementar os projetos de cada um dos blocos, a ong deveria propor um grande projeto
como uma creche ou um pré-escolar, o qual facilmente obteria recursos das agências
realidade carente do bairro. O projeto não foi à frente por diversos motivos 23, mas vale
ressaltar que o desinteresse dos blocos pela entidade, entre outras coisas, devia-se ao fato
de que as atividades propostas não possuíam nenhuma afinidade com os objetivos dos
grupos. Além do mais, a idéia da formação de uma outra entidade não parecia fazer muito
sentido senão como emprego para o assessor, que esperava ser remunerado por isso. Os
dirigentes dos grupos almejavam obter recursos para suas entidades individualmente, a fim
Ao longo dos dois anos seguintes, eu e Marcio Goldman fizemos algumas consultas
junto a instituições nacionais e internacionais para saber como seria possível obter
financiamentos para o Dilazenze. Essa experiência revelou que para entrar no mundo das
ongs é preciso uma competência bastante específica, a qual não possuíamos (e não
possuímos)24.
23
Uma descrição detalhada do episódio encontra-se em Silva 1998:127-131.
24
Sem querer aprofundar questão a respeito das relações travadas entre pesquisadores e pesquisados, nossa
participação foi uma solicitação do grupo a partir da interação durante e após nossos diferentes momentos de
pesquisa de campo e deve ser lida na mesma chave exposta no capítulo anterior a respeito da dificuldade dos
grupos afro de acesso aos meios, no caso, contatos que nos forneceram nomes de instituições, computadores,
boa redação em português e em inglês.
375
agências financiadoras tiveram o propósito de mostrar que aos poucos uma proposta
alternativa de atuação dos blocos afro foi sendo percebida cada vez mais próxima. Não se
deve esquecer ainda as campanhas televisivas que apelavam para a cidadania ou para a
aproximação com a ‘forma-ong’ vai indicar o que e como fazer. Desses novos
O Projeto Batukerê
O Projeto Batukerê começou a tomar corpo em novembro de 1999, ainda sem nome
e sem muita clareza do que se pretendia fazer; não se sabia nem mesmo se seria um projeto
com crianças. Pensava-se na busca de recursos para desenvolver alguma atividade que já
também que o que quer que fosse desenvolvido, isso deveria gerar renda tanto para o
necessidade do grupo e de geração de renda estavam sempre juntos, pois imaginava-se que
se uma tal coisa fosse necessidade do Dilazenze, certamente seria de outros blocos e,
assim, o grupo teria a quem vender – um ‘mercado’. A partir desse raciocínio, foram
musicais que poderiam vir a ser adquiridos pelos demais blocos e por outros grupos, e uma
academia de dança, não somente dança afro, mas especializada nela, que cobraria
mensalidades módicas de quem pertencesse a grupos afro e preços mais altos de pessoas de
nasceu em 1999. Outros já haviam sido formulados, embora sem sucesso. Sua realização
ofícios, cujo modelo básico era constituído de uma rápida descrição da atividade proposta e
para os instrutores. Na verdade, tratava-se do mesmo modelo usado pelo Dilazenze para
solicitar patrocínio para seus eventos. Projetos e cursos mais longos eram difíceis de pôr
em prática, mas o grupo sempre conseguiu realizar oficinas, em geral de dança afro e de
Crianças, gincanas etc. Contudo, transformar essas atividades em ‘projeto social’ deveu-se,
ainda que não exclusivamente, a novos encontros que possibilitaram novas formas de se
Assistência Social, mas eram financiados pelo governo federal ou pelo Unicef (Fundo das
Nações Unidas para a Infância e Adolescência). Também o artista plástico que colabora
Educação, o projeto oferecia oficinas de arte, capoeira, dança... e foi importante como
modelo para ajudar a pensar na estrutura que o Projeto Batukerê viria a ter.
homônimo de Jorge Amado, e era realizado no bairro Teotônio Vilela, um dos mais pobres
de percussão foi feita por Gurita, então candidato a vereador apoiado pela secretária. Esta
concedeu-lhe parte das indicações dos instrutores assim como das crianças que seriam
atendidas pelo projeto. Uma outra parte seria indicada por um outro candidato, também
trabalho era “muito bom”, pois tinha um salário de trezentos e cinqüenta reais para
trabalhar por duas horas por dia, quatro dias por semana, fazendo algo que “gostava muito”
e que ainda dava tempo para “cuidar do Dilazenze”. Esse trabalho trouxe-lhe a expectativa
de “entrar no circuito”, pois a secretária garantiu que o indicaria para outros projetos
escola, inclusive aquelas com dependência química, dando-lhes ocupação durante todo o
dia, alimentação e uma cesta básica para cada família, benefício que prosseguiria no ano
seguinte apenas se a criança fosse matriculada na escola. A idéia era que através do
O projeto foi inaugurado com grande pompa, presença do prefeito, matérias nos
jornais locais. No entanto, quase um mês após seu início, somente a oficina de percussão,
grupo Força Negra que se tornou evangélico, estavam funcionando com regularidade. E,
embora tenham trabalhado por alguns meses, receberam apenas um salário. Além disso, as
25
A secretária de Assistência Social acabou não sendo candidata à vice-prefeitura e candidatou-se ao cargo
378
crianças que freqüentavam o projeto não eram aquelas para as quais ele fora criado.
estímulo para que ele começasse a pensar que o grupo teria condições de fazer algo
semelhante. O desejo cresceu depois que ele teve acesso ao projeto em sua forma escrita e
avaliou que não seria “tão difícil assim” redigir uma proposta. No mesmo novembro de
1999, o Dilazenze foi procurado para fornecer um instrutor de percussão para um outro
projeto promovido pela prefeitura, mas desta vez em convênio com um orfanato localizado
sugeriu que Gurita indicasse as crianças a serem atendidas e o presidente do Dilazenze, que
projeto financiado pelo Unicef em “parceria” com a prefeitura, sendo os blocos afro do
era “Bem-Viver” e sua “clientela” seriam crianças carentes das comunidades dos blocos
Salvador, o mesmo que propôs a fundação da ong que uniria os blocos afro sediados na
Conquista alguns anos antes. Ele afirmava ter poder de articulação e mobilização junto aos
blocos afro, o que lhe possibilitou ser um dos coordenadores do projeto em Ilhéus,
Assistência Social. Além disso, ainda de acordo com os dirigentes dos blocos, consta que
de vereador, mas não foi eleita. Sobre o processo eleitoral de 2000 em Ilhéus, ver Goldman 2001.
379
secretaria e os blocos afro. Segundo teria dito aos dirigentes dos blocos, o objetivo do
projeto não previa oficinas de dança ou percussão, capoeira e outras coisas que os blocos
estariam acostumados a fazer, o que logo foi identificado pelos dirigentes dos blocos com a
mesma posição assumida por ele no episódio da fundação da ong. Para um dos dirigentes,
mais uma vez essa postura revelava que ele “não gosta de blocos afro”.
Também não foi bem vista pelos dirigentes dos blocos a recusa do coordenador do
Bem-Viver de repassar o projeto em sua forma original para seu conhecimento sob a
alegação de que eles não “entenderiam a linguagem”. E, embora fosse dito que havia
dinheiro para o projeto, o valor a ser pago aos blocos afro era ínfimo, pois cada um deveria
ceder dois instrutores, mas o pagamento seria feito à entidade: cem reais mensais para cada
uma.
bimestre final de 1999 e todo o primeiro semestre de 2000, sem nunca chegar a um
consenso. Com o tempo, foi aceito que o Dilazenze trabalhasse com oficinas de percussão
e de dança afro, as mesmas que já faziam parte do Projeto Batukerê, a essa altura já em
andamento. Mas para atender a um número maior de crianças além daquelas já inscritas no
merenda também para o Batukerê como forma de compensar o trabalho, o que continuou a
ser negado pelo projeto. A situação chegou ao limite quando o coordenador do Bem-Viver
afirmou que não poderia comprar material algum e pediu que a esposa do presidente do
26
Sendo professor da rede municipal, ele pôde ser cedido para essa função, contudo, segundo diziam
dirigentes dos blocos afro participantes, seu salário quase triplicou durante o período em que se dedicou ao
projeto.
380
Dilazenze ficasse responsável pela merenda, oferecendo uma cesta básica pelo serviço.
Em resumo, apenas o Rastafiry trabalhou para o projeto por pouco tempo com uma
oficina de construção de instrumentos musicais, mas não havia dinheiro para a compra de
Dilazenze do Projeto Bem-Viver, que não possuía concretamente uma base, uma estrutura,
mas conseguira financiamento do Unicef, fez alguns de seus membros imaginarem que um
Dilazenze, de uma pessoa atuante no movimento negro carioca, próxima do mundo das
ongs e naquele momento no processo de fundação de sua própria entidade voltada para
assuntos relativos à população negra27. Sua visita gerou uma grande expectativa em função
do seu know-how para escrever um projeto e dos seus possíveis contatos junto a agências
entanto, as conversas iniciais logo deixaram expostas as diferenças das concepções ali
escola de música para gerar “emprego e renda” para quem faz dança e música no bloco, o
27
Essa primeira visita acabou gerando um vínculo importante junto ao terreiro, pois em menos de um ano ele
já era ogã confirmado da casa.
28
Entre suas experiências de trabalho estavam o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas –
IBASE, uma das organizações não-governamentais mais importantes do país, e o Grupo Cultural Afro
Reggae, entidade conhecida por sua atuação como grupo musical (Banda Afro Reggae) e por seu trabalho
junto a crianças e adolescentes em grandes favelas da cidade do Rio de Janeiro.
381
este último termo o que é concebido como importante que membros de uma entidade do
Pode-se dizer que as três primeiras eram freqüentemente realizadas no Dilazenze, mas
para elas, algo bem diferente do que era comum se fazer no bloco: no caso da oficina de
oficina de montagem de espetáculo, esta nunca antes pensada no grupo, daria noções
O projeto acima não saiu do papel, mas ele foi a base para que um outro começasse
a ser pensado, pois, pela primeira vez, fora discutido no Dilazenze um projeto dentro do
modelo reconhecido como ‘correto’ para as agências financiadoras. Foi assim que em
março, logo depois do carnaval, o Batukerê começou a ser formulado. Mas antes de
descrevê-lo, é preciso passar pelo carnaval de 2000 e pela disposição manifesta pelo
governo de patrocinar esse tipo de projeto, o que, sem dúvida, foi um grande estímulo
naquele momento.
29
A maior parte de acadêmicos ou de técnicos já envolvidos com organizações não-governamentais de
382
bastante homenageado por seu bicampeonato (é preciso lembrar que no atual carnaval de
Ilhéus, só os blocos afro concorrem entre si). Em seu discurso, o prefeito valorizou o
carnaval cultural, com o qual disse ter “um compromisso”, e convidou os blocos afro para
uma “parceria”: “[aqueles] que quiserem fazer trabalhos sociais, podem contar com a ajuda
da prefeitura.”
Dias depois, teve início uma série de reuniões entre o Dilazenze e um funcionário
importante da Ilheustur, que ficara encarregado pelo prefeito, segundo disse, de organizar
os blocos afro para eventos comemorativos pelos 500 anos do Brasil. Foram concebidos
dois eventos de participação dos blocos afro: um deles seria uma semana de “cultura afro”,
cujo nome seria “Mama África Festival” e durante a qual ocorreria o 2o Encontro de
Entidades Afro de Ilhéus, no mês de junho; e o outro seria uma exposição sobre o
aniversário da cidade, entre os dias 28 de junho e 02 de julho. Nenhum dos dois eventos foi
concretizado, mas essas reuniões foram uma espécie de ratificação do interesse do governo
em “colaborar com os blocos afro” declarado pelo prefeito durante o almoço após o
grupo estava sendo concebida, ao menos para o primeiro; ele foi redigido pelo mesmo
grande porte.
383
Aos poucos, o Projeto Batukerê foi, então, ganhando forma30. É claro que havia um
las’ também para o Dilazenze. Mas havia também uma preocupação muito grande em
pois o grupo poderia acabar perdendo seus “profissionais”, já que, como disse seu
presidente, “as pessoas têm oportunidades fora do Dilazenze e ele não tem como
competir”. Assim, seria preciso dar “condições para que as pessoas trabalhem: estrutura e
condições financeiras para que as pessoas possam se dedicar”. Com base nesse raciocínio,
pudessem oferecer e ser remunerados por isso. Dessa forma, o Projeto Batukerê ofereceria
bateria e também vice-presidente do grupo; arte, a ser dirigida pelo artista plástico do
a fazer esse trabalho mesmo antes do Batukerê. Além dos quatro profissionais, o projeto
ainda deveria prever remuneração para o coordenador, que seria o próprio presidente do
Dilazenze e que já cumpriria naturalmente a função; para a esposa do mestre de bateria que
já atuava como secretária do grupo e faria o trabalho pelo projeto, e para a esposa do
presidente, que atuaria na preparação da merenda, por ser reconhecidamente uma ótima
formalizar um projeto e conseguir patrocínio para ele seria a única forma de ser
30
Aquele momento foi favorável à formulação do Projeto Batukerê também pela possibilidade de acesso a
determinados recursos, como o computador, por exemplo. Pelo já exposto no capítulo anterior, é de se
imaginar que, a partir do momento em que esse acesso torna-se possível e há alguém disposto a colaborar,
haja uma mudança da relação dos grupos com a produção escrita que os projetos exigem. Assim, eu e meu
computador também participamos do processo.
384
remunerado pelo que já se fazia; seria uma forma de obter uma renda para sobreviver
através do trabalho que seria feito de qualquer jeito, que já era voluntário há anos, muito
antes disso virar “cidadania”. Mas esse ponto será retomado adiante.
com valores que variavam de dois a três mil reais por mês e ainda forneceria cestas básicas
duração de poucos meses – chamado Cesta-Escola, sobre o qual é fácil deduzir que se
tratava da doação de uma cesta básica mensal a cada família que possuísse crianças na rede
reais para o lançamento do projeto. Uma parte da verba seria usada na confecção de
uma outra parte cobriria as despesas do coquetel de lançamento, para o qual seriam
oferecendo um montante total de dez mil e quinhentos reais para a realização do Batukerê,
que seria dividido em três parcelas, com a seguinte distribuição: três mil reais em maio,
três mil e quinhentos reais em junho e quatro mil reais em julho. Havia, ainda, a proposta
de que os salários dos instrutores viriam de ‘bolsas’ fornecidas pela universidade através
de um convênio já existente com o governo municipal, o que logo foi descartado pois,
evidentemente, era preciso ser universitário para ter direito às bolsas. A solução possível
seria tirar o valor dos salários da verba da prefeitura, diminuindo a compra de material
Prevista inicialmente para o fim de abril, a inauguração foi adiada numa primeira
vez para o dia 11 de maio devido à dificuldade de fazer com que a prefeitura liberasse o
recurso solicitado para a sua realização, o que acabou só acontecendo quando o grupo
conseguiu que a encomenda das camisas fosse feita em nome da própria Ilheustur, que se
material utilizado foi uma sobra de tecido comprado para as fantasias do carnaval.
Nesse momento, ela ainda era pré-candidata à vice-prefeitura 31 e estava apoiando Gurita
Uma nova data para o lançamento do projeto foi acertada. Seria no dia 26 de maio,
com a presença do prefeito. No dia marcado ele não compareceu, mas estiveram presentes
Empresas (SEBRAE) de Ilhéus, sendo uma delas Luiz Carilo, ex-dirigente do Lê-guê Depá
que trabalhava como consultor da entidade, cuja presença foi uma surpresa muito festejada.
geraria “emprego e renda” para a comunidade, ou como disse em seu discurso: “esse é um
discurso do representante do SEBRAE seguiu pelo mesmo caminho, porém, com ainda
mais ênfase na idéia de trabalho social como gerador de emprego: “cada um de vocês
31
O nome da vice-prefeita só foi publicamente anunciado no dia 28 de junho de 2000 (Goldman 2001:64).
386
estou vendo vários futuros empresários aqui.” Gurita também ressaltou que o Dilazenze, a
‘cidadania’ também foi repetida algumas vezes por essas pessoas, sempre acoplada à idéia
Seu enfoque foi sobre a violência que atingia o bairro, especialmente a sub-região do
Dilazenze, e de como o Batukerê poderia ser útil dando “ocupação” às crianças e aos
adolescentes, tanto mais porque a ‘violência’ vinha de pessoas próximas, adolescentes que
manhãs e tardes na escola e no projeto era uma forma de evitar que elas tivessem mais
contato com aqueles rapazes, dos quais algumas crianças eram irmãs. Ao longo do projeto,
adolescentes “debaixo da vista” para que elas não viessem a ter o mesmo comportamento.
sem a liberação da verba prometida pelo governo municipal. Nas primeiras semanas, o
projeto contou com doações e com alguns ingredientes das cestas básicas levadas por
todo o mês de junho, houve várias tentativas inúteis de conseguir a liberação da primeira
parcela do convênio que, na verdade, nunca foi assinado. Ele só existiu como proposta da
prefeitura.
32
Episódios freqüentes de violência protagonizados por esses adolescentes vinham dominando as conversas e
as preocupações de todos ao longo de várias semanas.
387
merenda. Dos mais de vinte ofícios distribuídos, somente uma papelaria atendeu doando
algum material. A essa altura, em meados de julho, já havia uma dívida com a padaria, que
fornecera pão para o projeto por alguns dias e não havia mais cestas básicas. Somente
poder-se-ia contar com as doações, que já não sustentavam o projeto. Comentando sobre o
auxílio de grandes empresas aos blocos afro de Salvador, Ribard (1999) diz, em nota, que
caso específico do Batukerê, o que se poderia dizer sobre o fato de os comerciantes locais
‘rivalidade étnica’, já que não existiria a “solidariedade étnica”? Difícil dizer isso sobre os
que não ajudam e mesmo sobre os que ajudam em outras ocasiões. O Dilazenze, assim
como outros blocos afro, está sempre demandando auxílio e muitas vezes os comerciantes
cedem mercadorias porque isso faz parte de uma relação estabelecida com o bairro ou com
as entidades locais, o que os faz doar pães tanto para o grupo afro quanto para o asilo de
idosos sustentado pela igreja católica. Mas eles também podem ajudar em função de quem
solicita a ajuda – às vezes, discute-se no grupo quem vai procurar por que comerciantes, se
ainda porque os comerciantes podem vir a ser beneficiados se houver alguma perspectiva
do grupo obter algum recurso, o que lhe possibilitaria pagar por algum produto.
do Clube 19 de Março, o mesmo onde foi abrigado o Memorial da Cultura Negra. Durante
Batukerê como forma de combater a violência e disse que contava com a ajuda do prefeito,
388
ali presente e também candidato à reeleição. Sua fala converteu-se, então, em mote para o
discurso do prefeito, que elogiou o Dilazenze e seu presidente e disse que “violência não se
resolve com polícia, mas com capoeira, com samba, com movimento afro, com escola... e
que o dinheiro seria liberado no dia seguinte. Mais uma vez isso não aconteceu.
que se afastaria. A partir daquele momento, seria preciso falar diretamente com o prefeito.
Tentativas de audiência sucederam-se em vão. Até que em fins de julho e início de agosto,
um panfleto de apoio ao secretário elaborado pela prefeitura em nome das entidades afro.
panfleto anterior redigido pela prefeitura. O desfecho do episódio foi a liberação de mil
reais para o Batukerê no dia seguinte ao lançamento do panfleto, logo que o governo
liberação, entendeu que se tratava de um “cala boca” e relutou um pouco em aceitar, com
medo de que se tornasse ainda mais difícil reivindicar o restante da verba prometida. E o
que o grupo temia, foi o que aconteceu: durante o ano de 2000, nenhum outro recurso foi
Apesar da verba liberada pela prefeitura ter sido muito abaixo do necessário para a
continuação do projeto, ele prosseguiu até o fim do ano, ainda que sem merenda e sem
adolescentes do Batukerê foram reunidos para desfilar como uma ala do Dilazenze,
freqüentando oficinas especialmente voltadas para esse fim, com ensaios para a coreografia
389
desfile havia sido planejada como uma forma de mostrar o resultado do trabalho do ano
todo; seria o Dilazenze na forma de ‘bloco afro como entidade de trabalhos sociais’, tão
valorizada em tantos meios. Seria também uma espécie de ‘contrapartida’ do grupo para a
verba doada pela prefeitura, uma forma de fazer propaganda desta. E apesar da pouca
contribuição dada pelo governo municipal, o fato do grupo ter conseguido manter o
Batukerê e fazê-lo desfilar, acabou sendo mesmo uma propaganda, pois a realização do
projeto foi totalmente vinculada à ajuda da prefeitura, pelo menos assim foi percebido
compromisso do governo municipal de colaborar com ele. Desta vez, o intermediário foi o
então secretário de Esporte e Cidadania, que fora procurado pelo presidente do Dilazenze e
pelo novo presidente do Conselho de Entidades Afro-Culturais, que lhe era politicamente
próximo. Segundo o próprio secretário, ele teria se “encantado” com o projeto quando o
visitou em março, num dia em que as crianças foram reunidas especialmente para a sua
visita já que o projeto ainda não havia sido retomado. E, embora sua secretaria não tivesse
recursos próprios por ter sido criada naquele ano e, portanto, não houvesse orçamento
previsto para ela, ele conseguiria fechar um convênio entre a prefeitura e o Dilazenze.
Esporte e Cidadania, que até aquele momento apenas patrocinava alguns eventos
esportivos, mas nada além disso. Segundo disse o secretário, o Batukerê seria “o pontapé
inicial (...) da parte [da secretaria] relativa à cidadania”, que estaria “inserida” em todas as
oficinas do projeto. Assim, no dia 08 de abril, durante a posse da nova diretoria do CEAC,
seguintes moldes: ele teria a validade de seis meses, renovável por mais seis, e seriam
390
repassados três mil reais ao Dilazenze, em três parcelas de mil reais nos meses de maio,
junho e julho. Na ocasião, o então secretário fez um discurso muito elogioso ao Dilazenze
importância de se ter um projeto social para que o bloco afro não seja apenas carnavalesco.
Disse que quando viu o nome do projeto, pensou que seria “mais uma entidade que tratava
visita, ‘abraçou-o’ e fez sua defesa perante o prefeito, argumentando que a prefeitura não
gastaria muito, posto que “a maior parte do custo desse projeto está, efetivamente, sob a
voluntário.
correspondente aos três primeiros meses foi de mil, seiscentos e setenta reais. A segunda
parcela, prometida para agosto, teve o valor de mil, seiscentos e trinta reais e só veio a ser
precariamente, pois nenhum outro recurso foi obtido, afora uma doação de instrumentos
musicais e de um sistema de som em outubro de 2003. Esta foi feita por uma fundação com
Dilazenze solicitou o que havia de mais urgente para a manutenção do projeto: recursos
para a merenda, material para as oficinas e salários para os instrutores. Porém, seguindo
uma espécie de regra geral das agências financiadoras desse tipo de projeto33, a fundação
33
Bartholdson (2000) faz uma rápida análise de duas organizações não-governamentais de Salvador e de sua
relação com agências financiadoras. Ele mostra que a que adere aos programas das agências sempre obtém
recursos, enquanto a outra, que deseja preservar sua autonomia, tem muito mais dificuldades para receber
391
salários. Foi iniciativa sua a doação dos instrumentos e do sistema de som, cujo valor total
que o desejo de realização de um trabalho social, desse ponto de vista, deve ser um desejo
comunidade’ etc. O trabalho voluntário seria a forma de ‘fazer a sua parte’, numa espécie
materiais e, às vezes, de formação: é preciso ensinar aos grupos como eles devem agir.
deve menos ao trabalho voluntário dos instrutores do que à sua capacidade de criar um
funcionamento do projeto foi suficiente para gerar nas crianças e adolescentes participantes
uma vontade de que ele não deixasse de existir, e talvez este tenha sido seu grande mérito.
de vinte anos, foi designado para ocupar o seu lugar, mas quando este também não pode,
financiamentos e, quando isso acontece, ela sofre a intervenção direta das agências, que tentam moldá-la
392
um outro sobrinho adolescente, ainda mais novo, cumpre a função. Porém, no caso das
oficinas de dança e de criatividade, esse desejo ficou ainda mais claro porque elas foram,
de fato, assumidas pelas crianças, numa organização própria, sem interferências de adultos.
É bem verdade que o instrutor responsável pela oficina de criatividade, por exemplo, de
vez em quando realiza algum trabalho específico direcionado para algum evento, mas a
compõem músicas, criam coreografias, montam e ensaiam peças de teatro com temas
sociais... Pode-se especular que uma tal disposição seja gerada pelo agenciamento de
fluxos produzidos pelas próprias atividades de percussão e de dança afro realizadas pelo
Dilazenze, das quais as crianças almejam, um dia, participar34, mas também por terem sido
afetadas por um novo modo de subjetivação, o mesmo que fez com que o Batukerê viesse a
existir.
composição dos agenciamentos que produziram esse desejo de continuidade do projeto nas
Ambos são espaços ‘quase’ públicos: o primeiro por ser local de passagem para várias
moradias e o segundo pelo livre acesso às crianças da família. Além disso, é preciso
observar, tanto a quadra quanto o barracão são ótimos locais para se estar e para brincar.
Assim, um outro mérito do projeto foi o de ter tornado o espaço do Dilazenze ainda mais
‘social’ do que já o era. Desde o início do Batukerê, a quadra e o terreiro estavam sempre
ocupados por muitas crianças, o que ora era comentado com orgulho pelos adultos como
um efeito positivo do projeto, ora constituía uma reclamação, pois era preciso ‘mandar as
crianças para suas casas’. O Batukerê tornou-se parte do cotidiano dessas crianças e
também favorecem esse desejo de continuidade. Em 2001, pôde-se constatar que cerca de
80% dos freqüentadores do projeto moravam na própria Av. Brasil, onde estão situados o
projeto no ano anterior. De modo geral, são filhos e filhas de pessoas que guardam relações
foi ressaltado antes, a base familiar que sustenta o Dilazenze também é a base do Batukerê.
Deve-se considerar ainda nessa disposição das crianças, tanto para assumir o
Batukerê quanto para aceitar que outras crianças o assumam, um modo de subjetivação
Concepções do Batukerê
exigência de que os participantes deveriam estar freqüentando a escola para fazerem parte
do projeto. Essa exigência costuma ser característica de grande parte dos projetos sociais
de mesmo tipo, pois acredita-se com essa medida estar contribuindo para a diminuição da
34
Para que esses adolescentes continuem à frente das oficinas do Batukerê, foram tomadas duas providências
em 2003: a primeira foi mudar o limite da idade máxima de quatorze para dezesseis anos; a segunda foi
incorporar esses adolescentes nos grupos de dança afro e de percussão do Dilazenze.
394
evasão escolar, problema grave que afeta a população mais pobre do país inteiro 35. Na
primeira reunião de pais do Projeto Batukerê, cerca de dois meses após o seu início, foram
dados exemplos tanto de crianças que passaram a freqüentar e a ter melhor rendimento na
escola, quanto daquelas que “pioraram” e por isso recebiam ameaças dos pais de que se
secretária e a responsável pela merenda), era cultivado um jeito de ser bastante professoral,
com alguns dos dispositivos disciplinares da escola, como a ‘lista de chamada’ ou ‘diário’,
instrutoras chegou a ir até a algumas das escolas freqüentadas pelas crianças para saber
tanto por parte dos próprios instrutores como também de pessoas do governo ou próximas
ao Dilazenze, de que o projeto deveria oferecer, além das oficinas, aulas de ‘reforço
escolar’ ou ‘redação’. Desse ponto de vista, caberia a ele funcionar como um complemento
à escola. Evidencia-se o mesmo sentido nas propostas feitas por militantes do MNU
dispostos a dar aulas sobre história da África, ausente dos currículos escolares. Aqui, como
35
Sem querer entrar no mérito da discussão, mais apropriada para especialistas em educação, essa exigência
parece baseada na suposição de que ela pode funcionar como uma forma de ‘compensação’ ou de ‘castigo’: a
escola é ruim, mas se a criança for capaz de suportá-la, ela poderá participar dos projetos, que costumam
oferecer atividades mais agradáveis; ou a escola é ruim e se a criança não conseguir suportá-la, então,
também não poderá participar dos projetos.
395
que deveria ter o Batukerê por ser promovido por uma entidade do movimento negro. O
pelo projeto, a de percussão é a que pode ser melhor encaixada na proposta de formar
mais raras do que para percussionistas, que podem ser contratados por bandas de pagode,
de axé ou de forró, sem deixar de levar em conta a esperança de que as bandas afro farão
bateria do Dilazenze, instrutor da oficina de percussão do Batukerê, ainda que nem sempre
diversas bandas na cidade e formado algumas outras, inclusive aquela em que está atuando
Essa diferença entre concepções foi o que provocou a mudança do nome da oficina
pressupunha a produção de artefatos que poderiam vir a ser vendidos pelas crianças. Em
geral, é de onde se espera que venha a tal ‘geração de emprego e renda’ e de ‘auto-
artista plástico que costuma colaborar com o Dilazenze, possui uma concepção bastante
diferente do que deveria ser o Batukerê. Para ele, o projeto não deveria ser nem
profissionalizante nem um complemento à escola, mas uma alternativa a ela. Assim, sua
proposta de trabalho não pretendia ensinar a fazer objetos que pudessem ser vendidos
de oficina de artesanato para criatividade também lhe permitiu trabalhar com teatro e
expressão corporal, especialmente diante da falta de materiais básicos como papel, tesoura,
2001. O coordenador do Batukerê foi procurado por uma moça que ensinava a fazer
artesanato muito comum nas lojas dos locais turísticos de Ilhéus, cujos motivos, em geral,
são produtos da região como o cacau, ou da Bahia, como o coco e o berimbau, por
exemplo. Ela ofereceu seus préstimos, mas não gratuitamente. Mesmo sabendo que o valor
do recurso prometido pela prefeitura não seria muito alto e que a contratação da artesã
desagradaria aos demais instrutores, pois até aquele momento eles não haviam recebido
nenhum pagamento por seu trabalho, o coordenador do Batukerê optou por contratá-la
baseado na idéia de que seu curso seria útil tanto para as crianças do Batukerê quanto para
demais36. Haja vista que a verba prometida pela prefeitura não só atrasou como foi
reduzida a pouco mais da metade e que as dívidas já eram grandes com alguns
esperando receber alguma coisa por isso foi ainda maior quando perceberam que uma parte
do pouco dinheiro recebido pelo projeto seria pago à artesã. E, no fim das contas, a oficina
pouco valeu para as crianças, que nem mesmo ficaram com os objetos produzidos nas
poucas aulas.
36
Nessa época, uma matéria sobre o Batukerê publicada no jornal da Fundação Cultural de Ilhéus –
FUNDACI (Pauta, junho/2001) informava que o projeto contava com oficinas de criatividade e de artesanato
e cerâmica, valorizando seu caráter profissionalizante.
397
que deve ser um projeto social. Por isso, no release enviado aos meios de comunicação
quando do lançamento do Batukerê, foi essa a concepção que prevaleceu. Nele constava
trata de projetos com crianças carentes, a arte é o principal recurso empregado, seja como
‘cultura popular’ sob o argumento de que já faz parte do mundo daquela comunidade – se
forem projetos ligados a blocos afro ou escolas de samba, busca-se formar percussionistas
–, seja como ‘cultura erudita’, com base na proposta de que é preciso oferecer o que
aquelas crianças não teriam acesso por si mesmas – nesses casos, costuma-se ensinar balé
ou música clássicos.
concepção:
Contudo, sabe-se que, apesar dos esforços dos responsáveis por esses projetos, um número
insignificante de pessoas conseguem tornar sua profissão aquilo que lhes foi ensinado, já
que não é possível para o ‘mercado’ absorver tantos artistas. Como não se trata de
revolucionar, mas de incluir, é preciso dar ao mercado o que se supõe que ele esteja
398
referência. Como disse seu presidente quando reassumiu o grupo em fins da década de 90:
emissoras de rádio e TV locais sobre o Projeto Batukerê com a intenção de divulgá-lo, mas
também de tornar mais eficiente a pressão sobre o governo municipal para a liberação da
verba prometida. Alguns dias depois, foi marcada a primeira matéria com uma das
projeto, embora nem sempre favoravelmente, especialmente no caso das TVs, quando não
montasse um “altarzinho” com imagens de orixás no barracão, onde parte da matéria foi
blocos afro, houve uma primeira conseqüência desagradável por parte de um pai que,
a guarda desta sob a alegação de que sua ex-esposa estaria permitindo que a menina
freqüentasse “ambientes ruins” como o Batukerê. Como era de se esperar, a menina deixou
de participar do projeto.
399
em relação à forma como esses projetos sociais são usualmente concebidos para lidar com
“crianças em situação de risco social”, segundo a linguagem utilizada pela mídia e por
ongs e agências financiadoras. A matéria foi feita por uma outra emissora que entendeu e
descreveu o projeto como atendendo a “crianças carentes” que seriam “vítimas da droga ou
nessa situação, o repórter insistia em querer entrevistar um menino ou uma menina que
tivessem sido “tirados” dessa “vida” pelo Batukerê. Nenhuma criança foi entrevistada, mas
a matéria foi ao ar com esse viés, o que fez com que vários responsáveis procurassem pelos
que estes fossem inseridos no Batukerê, o que era sempre recusado, tanto porque o
presidente do grupo não queria ver o projeto vinculado a esse trabalho quanto porque ele
ser valorizado em função do projeto. A citação a seguir, retirada de uma matéria sobre o
projeto num jornal publicado pela Fundação Cultural de Ilhéus, é só um registro de algo
que passou a ser repetido por membros do governo, por pessoas ligadas ao movimento
governamentais: “[o Dilazenze] não limita suas atividades apenas ao carnaval, mas
multiplica-as o ano inteiro, através desta grande iniciativa, possibilitando aos jovens
37
O Olodum teve um problema semelhante quando fez um convênio com o Projeto Axé, sendo que este era
mesmo o objetivo do trabalho: inserir meninos e meninas de rua na Escola Criativa do Olodum. Segundo
Nunes (1997:60), mães de crianças que já participavam do Olodum “não queriam que seus filhos fossem
confundidos com meninos de rua.”
400
melhor.”38
mudanças em suas relações com o governo e com outros setores sociais de Ilhéus. Mas é
preciso pensar também sobre os efeitos do projeto para dentro do grupo. Dependendo do
contexto, ele pode ser mais ou menos valorizado, a ele podem ser atribuídos benefícios ou
interlocutor.
pelos moradores próximos e pelos pais das crianças e dos adolescentes atendidos. Não era
a primeira vez que o Dilazenze realizava um trabalho com crianças, mas o fato de ser um
projeto diário, em que as crianças usavam uniforme, que possuía uma placa com o nome,
que foi inaugurado com a presença de autoridades do governo municipal, foi mostrado na
TV... Tudo isso dava ao projeto uma dimensão diferente daquela que se costumava ter nas
atividades do Dilazenze.
Por outro lado, principalmente no início, não era incomum ouvir comentários que
minimizando demais o que já havia sido feito até então. Era como se só a partir do
Batukerê o Dilazenze tivesse ganhado ‘consciência’, tivesse se tornado um bloco afro tal
como todos deveriam ser. Nesses momentos, o presidente do Dilazenze costumava dizer
38
Pauta, junho/2001.
401
que o Batukerê tinha apenas uma aparência de algo mais organizado, mas não era muito
“eu não sei se o que o Dilazenze faz hoje não é o que o Dilazenze
fazia há anos. Só porque se criou um projeto que a gente colocou:
‘esse é o projeto social do Dilazenze’, que é o Batukerê... Mas o
pessoal continua achando que a percussão do Dilazenze, que o
trabalho de dança... que isso não é projeto social.”
projetos, como o da banda mirim por exemplo; porém, sua aparência – como bem disse o
ganha tornaram o Projeto Batukerê realmente importante para o Dilazenze. Isso pode ser
Ele está em seu quarto ano de funcionamento e entrando agora em novas relações com
recursos como merenda e materiais para as oficinas39. Mas dentre muitas outras situações,
duas podem ilustrar bem a dimensão da importância que o projeto tomou para as pessoas
do Dilazenze.
comum no grupo que a escolha do tema do carnaval seja por votação, mas isso aconteceu
num encontro do Dilazenze em novembro daquele ano, quando se decidiu que no carnaval
de 2002 o bloco exaltaria sua própria história em seus 15 anos de existência. Dado que o
Dilazenze na ‘comunidade’, mas não especificamente o Batukerê, como se pode ver neste
39
Além disso, tal como em 2000, quando o Batukerê foi criado, este é novamente um ano de eleições
municipais. Assim, o governo voltou a oferecer cestas básicas, ausentes desde antes das eleições de 2000, e
negociações com um candidato a vereador devem resultar em novos uniformes para os participantes do
projeto.
402
profunda ligação com a comunidade onde atua. Diversos projetos sociais foram e
2002, cuja vencedora seria cantada durante o desfile, quatro fizeram referência ou citaram
o Batukerê como um momento importante da história do grupo. E esta não foi a primeira
vez que o projeto foi ‘cantado’. No carnaval de 2001, cujo tema era “Dilazenze – Angola –
Uma outra situação em que a importância do Projeto Batukerê foi muito destacada
pelos membros do Dilazenze ocorreu no mesmo encontro citado acima em que se escolheu
para o ano seguinte. Assim, como primeira atividade, foi proposta uma dinâmica de
grupo41 cujo objetivo seria identificar os principais problemas do Dilazenze. O item “falta
de verba para o Batukerê” foi eleito como o principal problema do grupo, sendo que os
40
As letras dessas músicas encontram-se no Anexo 5. Agradeço mais uma vez a Vincenzo Cambria que me
cedeu as letras das músicas produzidas pelo Dilazenze, compiladas por ele para sua dissertação de mestrado
(ver Cambria 2002).
41
A dinâmica consistiu na divisão da plenária em quatro grupos que deveriam discutir a respeito dos
problemas enfrentados pelo Dilazenze. Em seguida, a coordenação solicitou que cada participante
relacionasse dez problemas e elegesse os três mais importantes. De volta à plenária, cada pessoa citou um dos
problemas selecionados por ela. Depois de uma primeira rodada de intervenções, as pessoas que assim o
desejassem poderiam citar outros problemas, o que resultou num total de 45. Estes foram relacionados num
quadro e cada pessoa foi convidada a eleger cinco dentre aqueles e lhes conceder notas de 1 a 5, de acordo
com a importância que cada um deles tivesse para a entidade. Aqueles que recebessem as maiores pontuações
no final da dinâmica seriam considerados os piores problemas do grupo. Essa dinâmica foi aprendida pelos
organizadores no curso de formação de lideranças comunitárias patrocinado por uma empresa de telefonia
mencionado anteriormente.
403
“falta de aproveitamento da quadra [do bloco]” e “falta de eventos para arrecadar fundos
em grupos para que elaborassem cartazes em que as gravuras escolhidas deveriam refletir
suas propostas e anseios para o bloco. Como era de se imaginar, todos os grupos fizeram
sugestões voltadas para o Batukerê: em todos os cartazes, havia fotos de crianças sorrindo
propostas foram feitas nesse sentido. Entretanto, também nessas percebe-se a imposição do
Batukerê, ou dos trabalhos sociais de modo geral, como prioridade do grupo. É preciso
observar que uma tal ‘imposição’ não é obra de uma pessoa ou de um grupo, ou seja, não
se trata de fazer prevalecer um desejo sobre outros. Há até alguns momentos em que as
diferentes concepções de bloco afro são colocadas em disputa, porém, no caso em questão,
404
também de dizer que as pessoas não desejam ter sucesso, ser reconhecidas como artistas. O
que se passa é que enquanto ideal de bloco afro – e é isso o que uma dinâmica como essa
pudesse vir sozinho, como se isso não fosse ‘correto’: as pessoas devem poder sobreviver
de seu trabalho no bloco como artistas que são, mas é bom que isso esteja a serviço de algo
considerado ‘maior’, ou seja, algo como o ‘trabalho com a comunidade’. Nas propostas
formuladas nos grupos visando o crescimento do Dilazenze como grupo artístico percebe-
se que isso significa também “gerar recursos para a entidade” a fim de torná-la
Ao longo dos últimos três anos foram realizadas diversas tentativas de obter
que os recursos não vieram, o projeto perdeu um pouco sua importância, embora nunca
tenha sido realmente interrompido. Parte disso aconteceu também porque os principais
mudaram da cidade. Esse período em que o Batukerê continuou a existir graças, em grande
que o Dilazenze passou a ter destaque também sob outros aspectos, um que pode ser
pessoas que ele é capaz de aglutinar e, principalmente, porque o foco da análise é jogado,
às vezes exclusivamente, sobre o que seria seu caráter étnico e de luta contra o racismo.
Isso faz com que muitos pesquisadores privilegiem este aspecto e ignorem ou façam outros
parecerem ‘problemas’: como conceber que um grupo do movimento social não tenha a
democracia como objetivo e mantenha o mesmo presidente por anos a fio? Só mesmo
atribuindo-lhe características que não deveriam fazer parte deste “universo”, como as
“familiares” que Agier atribui ao Ilê Aiyê para explicar suas relações políticas (Agier
2000:115).
Também causa estranheza quando alguém que tem essa concepção a respeito de
bloco afro ouve algum dirigente referir-se à sua entidade como “meu bloco” ou algum
outro membro informar que o “dono do bloco” é ‘fulano’. No início da pesquisa, eu mesma
estava incluída entre as pessoas que não compreendiam esse tipo de atitude e presenciei
percebe-se que não há nada de estranho nisso, pois um bloco afro sempre tem um ou
alguns donos e o termo não é nada incomum no vocabulário dos grupos: tanto Ribard
(1999:334) quanto Agier (2000:111) citam-no em suas obras 42, cujas pesquisas foram
Ainda que todo bloco afro tenha um ‘dono’ e isso seja reconhecido e aceito pelos
seus membros, dependendo do contexto, o caráter coletivo do grupo pode ser reivindicado
por pessoas que internamente se colocam como oposição ao presidente com o intuito de
produzir mudanças. Por outro lado, esse discurso pela coletividade também pode ser
assumido pelo próprio ‘dono’, fazendo com que seu “trabalho” seja um “sacrifício” pelo
concebido como ‘movimento social’ pode ser agravada quando entra em cena o grupo afro
sendo formado por artistas que colocam suas carreiras e o desejo de prover seu sustento
financeiro através deste ‘trabalho’ como prioridade. Esses aspectos e tudo o mais que foi
Em diversos momentos ao longo deste trabalho, foi enfatizado que o bloco afro
porque é negro. Encontros 4 buscou mostrar como o bloco afro produz e é produzido pela
acontece sozinho, pois ele se encontra com ou é capturado por aquilo mesmo de que ele
42
Ambos os autores traduzem a palavra ‘dono’ como ‘proprietário’ ou ‘chefe’, propriétaire ou patron, nos
originais em francês.
407
subjetivação capitalista.
Nas seções anteriores deste capítulo, viu-se que as atividades do bloco afro, ainda
que continuem produzindo uma outra forma de viver o mundo, são afetadas por novas
pela música, pela dança, pela estética, por uma arte singular, também pode ser capturado
pela subjetividade capitalística de uma outra forma, a forma ‘trabalho’, seja artístico ou
empresarial.
Esta seção pretende refletir sobre alguns desses aspectos levantados nos parágrafos
acima pensados na chave do desejo de se estar incluído e nas tensões geradas por ele em
não? O vice-presidente reivindicava que sim; o presidente dizia que não, que o Dilazenze
era “um bloco que desenvolvia um trabalho artístico, cultural e social”. A questão
levantada está no cerne da discussão sobre que concepção de bloco afro deve predominar
no grupo e volta à tona toda vez que há uma possibilidade de mudança, ou seja, quando há
algum indício de que o Dilazenze poderá vir a fazer sucesso também com sua música, não
somente com seu carnaval e, situação bem mais recente, com seus trabalhos sociais.
meio por acaso quando tocava por lazer num bar perto da quadra do Dilazenze, na época
inexistente, o grupo Sambadila logo passou a ser requisitado para ser atração neste mesmo
maior sucesso”, contou o presidente do grupo. Com o advento dos “bons tempos” das
bandas afro por volta dos anos de 1993 e 1994, o grupo foi deixado de lado. Em 2003, o
Sambadila voltou a se organizar para tocar na própria quadra do Dilazenze quando o bar do
municipal não faz repasse de verbas para o Memorial, o presidente do Dilazenze entendeu
que ele era pago para ser administrador do lugar, mas os eventos realizados lá seriam de
de Sexta Cultural, era um evento do Dilazenze: na sua visão, era o Dilazenze que vendia
bebida e comida; era o Dilazenze que se apresentava no show e, então, era o Dilazenze que
lucrava.
Mas as pessoas que compunham o Sambadila entenderam que o grupo era formado
por pessoas que participavam do Dilazenze, mas não era o Dilazenze. Por isso, o
tempo, o grupo passou a ser convidado para se apresentar em outros lugares e levava seus
levantados, aquele era bastante especial e delicado, pois o que estava em jogo era que os
que o Dilazenze havia lhe “dado” e, ao negar ajuda ao Sambadila, ele estaria impedindo
que outras pessoas do grupo também fossem beneficiadas pela ‘boa situação’ do bloco. Por
grupo, “usando” seu nome e seus instrumentos, mas não querendo colaborar com ele,
Sambadila estariam “esquecendo” que se o grupo estava sendo chamado para outras
isto é, os componentes do Sambadila diriam que o Dilazenze lhes formou e que o nome do
grupo ajuda a conseguir apresentações, enquanto o presidente do bloco diria que se ele está
Dilazenze quanto o mestre de bateria podem passar horas comentando sobre todo o seu
dos melhores, senão o melhor, de Ilhéus. É ogã confirmado do Terreiro Tombency desde
cargo, pois, na fundação do grupo, este último era o mestre. Um outro irmão seu já havia
ocupado a função em outro bloco afro e todos os seus irmãos, com exceção de um que foi
feito no santo, também são ogãs, ou seja, tocam atabaques durante as cerimônias e sempre
tocaram em blocos de carnaval, do tipo afro ou não. Apesar de ser de uma família de
percussionistas, só o vice-presidente fez uma carreira como músico, ainda que esta seja
bastante instável. Mais de uma vez ele esteve à frente da criação de bandas não vinculadas
ao Dilazenze e já foi contratado por outras maiores, de axé music ou de forró. Vez por
410
outra ainda é chamado para participar de alguma apresentação ou substituir algum músico,
ser limitadas ao bloco, quando necessário, e ao terreiro, também como ogã. Foi vocalista e
grupo, cargo que ele ocupa há cerca de dezessete anos e que, se já era um líder do
Negra, o que lhe garante um salário enquanto a prefeitura o mantiver contratado. Chegou a
ser cogitado para ser candidato a vereador nas eleições de 2004, mas recusou a indicação.
compartilhá-las quando não estão em disputa direta e possam ser muito mais abertos para a
concepção oposta do que pode parecer nesta exposição, necessariamente objetiva, portanto,
simplista. Em comum, ambos anseiam por viver de seu trabalho no bloco, seja chamando-o
de ‘cultural’, tal como o presidente do Dilazenze concebe sua função 43, seja como ‘artista’,
movimento negro e como entidade de divulgação da cultura negra, o que inclui eventos
‘culturais’ e ‘sociais’; para ele é importante que o grupo continue realizando trabalhos
frente a outros grupos. Sua vida é pensar e dirigir o Dilazenze e o movimento afro-cultural
de Ilhéus, buscando os frutos que a posição de líder pode lhe dar, financeiramente ou não.
carreira é como artista, como músico. Seu trabalho pelo grupo deveria lhe permitir “viver
43
Segundo Agier (2000), quando Vovô, presidente do Ilê Aiyê, assumiu o bloco como seu presidente
definitivo, ou seja, quando Apolônio, o outro fundador, deixou o grupo, ele saiu de seu emprego numa
empresa química e assinou sua carteira como ‘produtor cultural’ (:79).
411
de música”, não apenas como instrutor, mas com apresentações, que poderia dar emprego a
outras pessoas. Esta deveria ser a prioridade do Dilazenze. Comparando as duas visões
com a discussão colocada no início deste capítulo a respeito do Olodum, poder-se-ia dizer
– ressaltando que não há nenhum juízo de valor nessa proposição – que o presidente do
mostrou que a maioria dos blocos afro de Ilhéus nasceu a partir da formação como grupos
de dança e outros como bandas afro. É importante notar que mesmo sendo prioritariamente
entidades carnavalescas, a maior parte do tempo e do esforço dos grupos afro é investida
com vistas a incrementar suas atividades ‘artísticas’ ao longo de todo o ano. Os grupos afro
são necessariamente formados por artistas ou artistas são formados nos grupos afro, e eles
esperam fazer de sua arte sua profissão. Esse desejo pode gerar diferentes conseqüências,
Mais uma vez, o grande exemplo para a concepção de bloco afro como grupo
modelo de carreira para todo músico de bloco afro. Através deles, os grupos afro passaram
a representar uma chance de mobilidade social, mesmo que membros do movimento afro-
cultural de Ilhéus comentem que alguns poucos músicos, de fato, tenham conseguido
‘ascender socialmente’44.
Na verdade, a expectativa de ‘fazer carreira’ por parte do músico do bloco afro não
está no próprio grupo, mas em outros tipos de bandas, principalmente de axé. Costuma-se
44
Assim, parece um certo exagero Schaeber (1999) dizer que “com o sucesso da música, estes grupos
culturais [blocos afro] começaram a oferecer estratégias de sobrevivência para negro-mestiços, com a
412
dizer que o músico de bloco afro só passa a ser respeitado quando vai buscar outras
bandas. O próprio mestre de bateria do Dilazenze diz que era “discriminado” quando só
tocava em bloco afro e que só teve seu “trabalho reconhecido” quando foi para outra
banda, ainda que antes lhe dissessem que ele era “muito bom”. Em Ilhéus, são inúmeros os
casos, especialmente de vocalistas de bandas afro, que tentam trabalho em outros grupos
musicais. E, quando conseguem, não costumam voltar a cantar em bloco afro, pois isso
pensar desses músicos. Os pequenos blocos afro seriam locais de formação de músicos
para outras bandas, no caso dos blocos de Ilhéus, ou mesmo para blocos maiores, como
Nas situações de impasse como a que ocorre no Dilazenze, uma das soluções mais
comuns é a saída dos líderes artistas – especialmente se o ‘dono’ do bloco não o for – para
fundar outro bloco afro, no qual poder-se-ia executar o que era pretendido no anterior46. A
fundação de um bloco afro envolve vários motivos, mas quase todos os grupos têm como
fundadores pessoas que não tinham muito destaque como músicos no bloco anterior e
passam a tê-lo no seu bloco. Ribard constata o mesmo em Salvador: “(...) seguindo o
percurso individual de pessoas ‘formadas’ ou tendo pertencido a esse quadro [do Ilê Aiyê],
Uma outra solução de trabalho para os artistas dos grupos afro é a formação de
bandas paralelas, às vezes de samba, como no caso do Sambadila, ou mesmo de axé music,
ampliação de atividades fora do circuito de carnaval. Os blocos afro, num primeiro momento, oferecem
possibilidades de mobilidade social através das ‘típicas’ carreiras de música e cultura.” (:65).
45
Ribard diz ainda que quando um músico formado por um bloco pequeno consegue trabalho num bloco
grande, ele se torna um “orgulho” para seu bloco de origem. Além disso, esse dado é usado como argumento
dos blocos menores para reivindicarem auxílio por parte dos blocos grandes (1999:355). Talvez isso ocorra
em Salvador em função da distância existente entre os cinco maiores e os demais blocos afro.
413
pois “é o que o povo gosta de ouvir”, como disse um dirigente que acabava de fundar uma
banda assim. Um dos dirigentes de Ilhéus disse que era preciso apelar para esse tipo de
música para se ter trabalho, pois a banda afro só faz sucesso em Ilhéus se estiver fazendo
banda em hotéis, disse que era preciso tocar axé porque “é o que o povo pede”, mas que ele
Ver uma banda afro tocando axé pode ser motivo de comentários de reprovação por
parte de militantes do movimento negro e até de outros dirigentes de blocos afro, que
concebem seu trabalho como “voltado para a tradição”, mais “fiel” ao que seria a música
característica do bloco afro. No entanto, mesmo estes reconhecem que seria preciso tornar
o ‘afro’ mais comercial e aqueles que tocam axé dizem que gostariam de tocar somente
‘afro’, mas precisam ‘vender’ seu trabalho. Em todos esses casos, com mais ou menos
mas o desejo de diferir é capturado pelo modo de existência capitalístico, e a música tem
de ser transformada em trabalho para ser vendida, o que se torna possível quando sua
capacidade de diferir é minimizada e ela é incluída e passa a ser reconhecida pelo sistema.
outra possibilidade até então inexistente para os blocos afro de Ilhéus, a de experimentar a
forma ‘empresa’. Obviamente não se trata de uma empresa nos moldes administrativos,
mas o evento exige que o Dilazenze gerencie diferentes atividades, para as quais é preciso
que ele mobilize um pequeno número de pessoas que têm obrigações como se fossem
46
Conforme visto no início deste capítulo, o Dilazenze apresenta características – como a forte base familiar,
a relação religiosa... – que impedem esse tipo de solução para o grupo e o mantêm coeso, o que, de um certo
414
funcionários e recebem gratificações por isso. Este é um outro aspecto do bloco afro que se
esperam que ele seja capaz de gerar empregos e de pagar a quem lhe presta serviços.
outros blocos afro de Ilhéus, aqueles que participam mais intensamente e com maiores
afro como uma empresa que deve pagar por serviços prestados costumam entrar em
conflito com aqueles que insistem no bloco como uma entidade da qual as pessoas
Dilazenze, o fato de serem essas pessoas da mesma família torna tudo mais difícil, pois,
por um lado, exige-se que o ‘trabalho pelo grupo’ seja ainda mais dedicado; por outro,
argumenta-se que “por ser todo mundo da família”, a ‘gratificação’ deveria ser maior.
Dilazenze deve gerar prestígio para o grupo e para o administrador do espaço, mas deve
segurança do lugar, além de conseguir gerar recursos para pagar uma secretária para o
grupo e manter uma conta telefônica que serve ao grupo e ao Memorial. Disse que desde
da fundação do Dilazenze, sempre sonhou que era possível “sobreviver fazendo cultura”,
exemplo, sob um determinado ponto de vista, mal sucedido desse caminho. Segundo o
profissionais, funcionários, que eram pagas para fazer aquilo, não tinham compromisso
bloco.
Além de empregar pessoas e de gerar lucros, o bloco afro costuma ter a estrutura
organizacional de uma empresa, obviamente num plano muito superficial. Salvo em alguns
raros casos, seu presidente é seu fundador ou um deles, às vezes com seu nome registrado
em cartório como proprietário do bloco. Ainda que outras pessoas possam geri-lo, as
principais decisões são suas. Esse é o caso, por exemplo, do Miny Kongo, que pode ser
assumido por pessoas diferentes dependendo do momento, mas o ‘dono’ é seu fundador,
que disse já ter pensado em “passar o grupo no cartório para as mãos” do principal
Ainda que o bloco seja registrado como uma ‘associação’ ou ‘grupo cultural’, o que
dificilmente elas ocorrem de fato. Para atualizar a documentação de um grupo, elas podem
ser simuladas, mas nem mesmo isso acontece. Em Ilhéus, por exemplo, apenas o Dilazenze
47
Em função de ser o único grupo em situação legal, em 2003 o Dilazenze recebeu todo o recurso do
carnaval em seu nome – cerca de cinqüenta mil reais –, o qual seria repassado para os demais blocos. Por
isso, o grupo foi acusado por um vereador de oposição de ser usado pela prefeitura para desvio de verbas. A
partir de então, a prefeitura exigiu que todos os grupos se regularizassem se quisessem receber recursos do
governo municipal.
416
pesquisa que só o Malê Debalê seria um grupo democrático por realizar eleições para a sua
diretoria (1999:337)48.
militantes políticos, como uma entidade comunitária, é estranho aos ouvidos a informação
de que um bloco “foi passado” para alguém ou a frase “[fulano] me deu o bloco”, mas
geral, exceto em casos como o do Miny Kongo, ser o dono do bloco significa representá-lo
desfile do bloco, vender o bloco (ou a banda) para apresentações e organizar outras
atividades recreativas ou de finanças. Por isso, quando se dá o bloco para alguém, cobra-se
que isso seja feito “em cartório” já que envolve dinheiro e o antigo dono pode querer
“tomar o bloco de volta”. Também pode acontecer do dono do bloco querer “deixá-lo nas
mãos” de alguém em quem confie para retomá-lo quando voltar de uma viagem, ou de um
emprego que vai lhe tomar muito tempo... Ao menos em Ilhéus, o modelo de bloco afro
blocos49. Isso não quer dizer que sua estrutura organizacional não seja de ‘dono’.
Entretanto, mais uma vez a forte presença da família faz a diferença também nesse aspecto.
O presidente do Dilazenze lembra com orgulho de ter ouvido Mário Gusmão elogiar o Lê-
guê Depá para sua mãe porque ela referia-se ao grupo dizendo “nosso bloco” e não “meu
do bloco, mas não impede um certo ‘sentimento’ de propriedade, tanto por parte do
48
Nos outros quatro grandes blocos de Salvador, seus presidentes são os ‘donos’ dos blocos, talvez com
exceção do Olodum, embora depois da experiência de João Jorge longe da presidência e das conseqüências
disso para o grupo, tudo indique que não haverá mudanças tão cedo.
49
Entre os outros blocos afro de Ilhéus, talvez o Guerreiros de Zulu não tenha uma estrutura de ‘dono’ e
tenha uma relação de representação com a comunidade, já que é mais recente e foi fundado por três amigos.
Os demais, mesmo aqueles mais novos, possuem líderes que são donos ou herdeiros de donos.
417
presidente quanto de outros componentes que, na maior parte do tempo, agem como se o
O presidente do Dilazenze julga que manter o grupo sob seu controle é a melhor
forma de garantir sua eficiência, haja vista a sua experiência na função e seu
conhecimento. Além disso, sua concepção de bloco afro impediria o grupo de tornar-se
uma empresa nos moldes do Olodum e garantiria sua posição como um grupo de cultura
negra, conforme sua crítica citada páginas atrás. Outros componentes liderados pelo vice-
presidente do grupo, que reivindicam uma mudança na diretoria, pensam que o grupo
poderia ser mais eficiente, poderia lucrar mais se tomasse outras diretrizes.
grupo como bloco comunitário mantendo-se no cargo; por outro lado, em nome da
movimento social. Mas a ‘democracia’ que pode existir num bloco afro tem de ser bem
entendida: dificilmente o bloco realmente muda de mãos, pois, como diz Moura, “em todo
encargos entre os notáveis fiéis ao grupo nuclear, que normalmente é aquele que fundou o
bloco ou o resgatou de uma crise histórica.” (Agier e Moura 2000:371). Qualquer disputa
necessariamente vai ocorrer entre aqueles considerados legítimos para assumir a direção do
bloco.
Apesar desses aspectos do bloco como empresa e de ser controlado, em geral, por
uma pessoa, a discussão colocada no final deste capítulo não pretende negar o caráter
comunitário do bloco afro. Em primeiro lugar, a posição de ‘dono’ de bloco tem muito de
sua importância baseada no fato de que dirigir um bloco afro pode implicar uma grande
418
influência sobre um número considerável de pessoas que se aproximam do grupo. Isso faz
dos dirigentes dos blocos afro líderes e, como ressaltado no capítulo anterior, ‘alvos’
perenidade no poder do bloco e que este pode proporcionar. Mas não apenas por isso: tal
como foi enfatizado no capítulo anterior, um bloco afro constitui um território existencial
onde pessoas entram em devir negro e viver isso vale a pena, para componentes e para
dirigentes, ainda que seja somente durante o desfile do carnaval, como acontece com a
O bloco afro nasce de encontros de fluxos que produzem uma nova forma de estar
subjetivação dominante que oprime, que discrimina, que faz sofrer, nascem novas músicas,
novos ritmos, uma nova estética, novas maneiras de usar o tempo, novas concepções do
que está à volta: uma nova possibilidade de vida. Este foi o tema do capítulo anterior.
sem cessar, capturando os processos de singularização gerados pelo desejo de diferir que
Esta não é uma questão pertinente, pois esses aspectos constituem os blocos afro tanto
419
quanto sua singularidade50. Se utilizo a idéia de ‘captura’ é porque o desejo de diferir vem
primeiro – afinal, as pessoas poderiam tentar ‘ser incluídas’ por outras vias mais fáceis do
que a do bloco afro –, mas uma vez concebido dessa forma, a venda da arte e das
atividades dos grupos torna-se uma de suas características e, cada vez mais, seus ‘trabalhos
50
“Há sempre algo de precário, de frágil nos processos de singularização. Eles estão sempre correndo o risco
de serem recuperados, tanto por uma institucionalização, quanto por um devir grupelho. Pode acontecer, por
exemplo, de um processo de singularização ter uma perspectiva ativa a nível do agenciamento e,
simultaneamente, a esse mesmo nível, fechar-se em gueto.” (Guattari e Rolnik 1986:53).
420
Conclusão
movimento. Para entender seu surgimento em Ilhéus foi preciso começar pela descrição
dos agenciamentos que tornaram possível o nascimento do primeiro bloco afro, assim
como de toda uma nova forma de ver e de viver o mundo a partir dos encontros que
dedicados a pensar sobre os fluxos que passavam em Ilhéus e que, em agenciamentos com
aqueles de Salvador, produziram o Miny Kongo e o Lê-guê Depá, os primeiros blocos afro
compõe um bloco afro, primeiramente a partir do que o singulariza pela produção de uma
artístico ou social.
surgimento do primeiro bloco afro – o Ilê Aiyê – enquanto forma de expressar, de dar
421
afro, também foram chamados de “novos movimentos sociais” por proporem a diferença
como base para as reivindicações, para novas lutas fora da esfera da produção. O problema
práticas. Isso fez com que desde o início os blocos afro fossem criticados e condenados por
detrimento da ‘política’. E tem sido assim. A maior parte das críticas ao movimento afro-
cultural de Ilhéus vem de militantes de movimentos negros que concebem a política como
seu campo privilegiado de ação, mas elas também podem ser feitas por políticos de
partidos de esquerda ou de direita, por representantes do governo e por outros setores que
mantêm relações com os grupos afro, como, por exemplo, entidades que desenvolvem
trabalhos sociais que criticam os blocos afro quando estes cobram por suas apresentações 1.
atividades artísticas dos grupos afro e transforma-as em trabalho – o qual é preciso vender,
devir-negro2.
1
Ver Encontros 4.
2
Deleuze e Guattari entendem ‘minoria’ como “conjunto ou estado” (1997:88) em relação a uma ‘maioria’,
entendida não como “uma quantidade relativamente maior, mas a determinação de um estado ou de um
padrão em relação ao qual tanto as quantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias: homem-
branco, adulto-macho, etc. Maioria supõe um estado de dominação, não o inverso.” (:87). “Minoritário” é
“devir ou processo” (:88); é o meio de singularizar-se e de não ser maioria nem minoria, de escapar do
enquadramento por um padrão, seja dentro dele (maioria) ou em relação a ele (minoria).
422
No entanto, só a primeira forma de captura do bloco afro, que o faz desejar ‘incluir-
se’ no mercado, costuma ser criticada. A segunda captura – efetuada pela ‘forma-ong’ – ao
contrário da primeira, parece adequar o bloco ao que se espera dele, conforme visto no
empresários, enfim, todos são (somos) afetados por uma nova forma de subjetivação
A partir de uma rápida análise de como tanto os blocos afro quanto o movimento
negro político de Ilhéus estão sendo afetados pela onguização, ao final deste trabalho cabe
pensavam o bloco afro como um meio de aglutinar a população negra para discutir
questões relativas ao racismo e a outras formas de opressão. Não havendo espaço para esse
tipo de discussão no bloco, boa parte dessas pessoas participou da fundação do Axé Odara
que, como visto em Encontros 3, tinha um perfil muito mais ‘político’: foi o primeiro a
Após sua fundação, o Axé Odara não tardou a se transformar num grupo voltado
para a realização de espetáculos, o que acabou por afastar os ‘militantes’, ou seja, aqueles
Algumas dessas pessoas ainda participaram de uma primeira tentativa de fundar um grupo
Do final dos anos 80 até 1997, dirigentes dos blocos afro e pessoas consideradas
ligadas a grupos do movimento negro político pouco se relacionaram, a não ser em debates
datas em que a população negra recebe atenção e as entidades negras têm visibilidade.
Nessas ocasiões, quando representantes dos blocos afro e membros do movimento negro
político eram chamados para a mesma mesa, as acusações eram mútuas e de mesmo teor
ano após ano: enquanto o movimento negro político dizia que o movimento afro-cultural
não tinha ‘consciência política’, que só queria ‘fazer festa’, ou seja, que suas atividades
movimento político de não conseguir atingir a massa, de ser muito intelectual, de só ficar
àquelas que existiam entre grupos do movimento negro político e grupos chamados de
Rio de Janeiro, em Salvador ou em outros lugares onde esses grupos estivessem presentes.
comum uma passagem pelo Partido dos Trabalhadores (PT) ou uma aproximação deste nos
anos 80 e/ou 904, sendo que algumas ainda pertencem a ele, outras estão ou passaram por
3
Além do movimento afro-cultural, do MNU, da pastoral afro da igreja católica e de grupos negros formados
no interior de igrejas evangélicas, em Ilhéus há também uma seção do UNEGRO, mas de reduzida
visibilidade.
4
O PT surgiu, e assim continuou por vários anos, com uma imbricação muito forte com o “movimento
popular”, o interior do partido reproduzindo os diversos movimentos existentes na sociedade através dos seus
“núcleos de base”.
424
todas eram – e ainda são – identificadas com o PT por membros dos blocos afro. Essa
identificação fazia com que qualquer aproximação dessas pessoas do movimento afro-
Por outro lado, pessoas do movimento negro político costumam dizer que os
representantes dos grupos afro são “despolitizados” ou “se deixam usar pelos políticos”,
subentendidos como de partidos de direita, e que praticam com eles uma relação
clientelista, imediatista, ... que, enfim, os dirigentes dos blocos afro não teriam
“consciência política”.
porque “mistura tudo com política” e, na verdade, “não gosta e não sabe nada de cultura
negra”; para os representantes do movimento político, os blocos afro “não sabem nada de
política”, “se deixam usar” para poderem “tocar tambor e ter o dinheiro do carnaval”.
Com base em sua pesquisa sobre política “do ponto de vista” do movimento afro-
cultural de Ilhéus, Goldman (2000) conclui que o que se denomina política é, sobretudo, o
que os “políticos fazem”, ou seja, uma “atividade” (:318) que transcorre em qualquer lugar
considerado mais ou menos legítimo. Concordando com o autor, pode-se afirmar que
sendo política algo que se faz, ela constitui, então, um meio para conseguir outras coisas:
para uns ela pode trazer enriquecimento, emprego para amigos e familiares, prestígio junto
a outros políticos mais influentes e outros ganhos pessoais; para outros, a política pode ser
o modo de obter melhorias para uma comunidade ou para um grupo específico de pessoas
exemplo5. Quando o próprio dirigente do bloco afro ‘faz política’, seu objetivo pode ser
carnaval ou de algum evento... ‘Fazer política’ não seria algo muito bom, especialmente
nesses casos, quando se admite que “é preciso fazer política” como se fosse um último
recurso no intuito de alcançar algo muito necessário. Por isso, a afirmação por parte de
membros dos blocos afro de que as pessoas do movimento negro são políticas demais é
uma acusação, e sua aproximação é algo que deve ser rejeitado ou tomado com cuidado,
pois todas as suas ações em relação aos blocos seriam para ‘fazer política’.
social. Sendo um domínio, é preciso desejar ‘participar’ dela a fim de poder influenciar o
aspecto final que ela assume; especialmente ao longo dos anos 80 e 90, demandava-se a
‘participação política’ das pessoas como sua forma de contribuir para um ‘país melhor’,
por exemplo. Assim, política não é algo que se faz, mas uma espécie de lugar onde todos
deveriam querer atuar; não se faz política, participa-se dela para transformá-la. Nesse
sentido, ‘política’ parece poder ser objetivamente definida. Dessa forma, dizer que os
dirigentes dos blocos afro ‘não têm consciência política’, que ‘se deixam usar pelos
políticos’ significa dizer que eles não estão ‘participando’ como seria esperado de um
grupo de movimento social, cujo objetivo deveria ser o de provocar uma mudança na
Em relação à cultura, haveria uma inversão na forma como ela é concebida por
esses diferentes movimentos negros. Se para os blocos afro a política é uma atividade, algo
que se faz, ao contrário, a cultura seria um domínio da vida social, o qual é preciso viver.
Quando um bloco afro se define como um grupo de preservação da cultura negra, ele está
5
E, evidentemente, um mesmo ‘político’ pode ‘trabalhar’ por todas essas coisas, o que, aliás, é o que
426
dizendo que cada uma de suas atividades (desfile de carnaval, músicas, apresentações de
dança, forma de se vestir, temas enfocados...), é uma manifestação de cultura negra – algo
que existe e que os blocos afro mostram para as pessoas como ela é a fim de não a deixar
desaparecer. Este é seu valor. ‘Cultura negra’ seria, então, um modo de vida e as
atividades dos blocos afro são uma forma de criar um novo território existencial que
produz esse modo de vida. Assim, não basta ‘ser negro’ para viver a ‘cultura negra’; é
preciso desejar vivenciá-la, experimentá-la no dia-a-dia do bloco, que deve, por isso e para
isso, existir o ano todo. Partindo dessa perspectiva, representantes dos blocos afro podem
dizer que as pessoas do movimento negro ‘não sabem nada de cultura negra’ porque não a
vivem, já que não vivem sua música, sua dança, sua religião.
que é uma atividade; é alguma coisa que os blocos afro fazem, especialmente quando se
pensa o bloco afro como um grupo formado por pessoas que desejam sobreviver de ‘fazer
cultura’: cultura negra torna-se, então, uma atividade que se vende. Por ser concebida
como uma atividade, a cultura negra é reivindicada pelos movimentos negros políticos
como algo que deveria ser um meio, um instrumento para levar as pessoas a quererem
política seria uma atividade e um meio; enquanto a cultura seria uma dimensão da vida
social e teria uma finalidade em si mesma. Já para o movimento negro político, a política é
que teria uma finalidade em si e seria uma dimensão da vida social; a cultura seria uma
geralmente ocorre.
427
se dos blocos afro através do gerente de ação cultural da Fundação Cultural de Ilhéus, seu
mais importante representante. Essa aproximação influenciou tanto os blocos afro quanto o
discursos apresentaram mudanças sutis, mas estas evidenciaram que ambos os grupos
anterior.
do outro grupo, que naquele momento pareciam fazer mais sentido do que antes. Assim, o
MNU ainda insistia na participação política dos grupos afro-culturais, mas sua ênfase
passou a estar na organização das pessoas envolvidas pelo bloco afro através das
atividades que objetivavam ‘elevação de auto-estima’ – argumento dos blocos afro para
justificar sua importância social, ainda que somente por existirem. Além de fazer nascer ou
atividades dos grupos afro como um meio de levar as pessoas a se valorizarem mais e,
conseqüentemente, a buscarem soluções para seus problemas, que poderiam não passar
afro.
Por sua vez, os blocos afro, ainda mais do que antes, passaram a enfatizar a
promoção das atividades culturais que antes eram criticadas pelo movimento negro político
também pela noção de auto-estima: elevar a auto-estima das pessoas era a contribuição que
o bloco poderia dar à sua comunidade. Assim, mesmo que um bloco não promovesse
eventos ‘sociais’ para sua comunidade – o que seria sua ‘função’, de acordo com os
‘trabalho social’, sua forma de contribuir. O raciocínio de que qualquer atividade do bloco
428
afro poderia ser concebida como ‘trabalho social’ já era uma forma de admitir que esta
Cultural Dilazenze em 2000 foi produto dos encontros deste, conforme a descrição do
‘desejo de’ realizá-lo quando ainda era uma idéia, produziu mudanças nas formas de
interação do Dilazenze com outros grupos sociais. A partir do Batukerê, o grupo passou a
ser visto como um modelo, uma referência do que um bloco afro deveria ser, pois agora
estaria “cumprindo sua função social”, como disse o padre responsável pela Pastoral Afro.
do movimento negro político com o Dilazenze e nos discursos a seu respeito demonstram
que todos estão sendo afetados por uma nova forma de subjetivação gerada pelo
capitalismo, a onguização.
grupos afro por sua ‘falta de consciência política’, a mudança de perspectiva em relação ao
Dilazenze é notória na procura pelo grupo para propor atividades conjuntas e convênios
atividades semelhantes. Muitos deles estão afastados da militância política stricto sensu e
Tais mudanças nas relações entre o Dilazenze e o movimento negro político não
significam que eles estejam mais próximos ou unidos em torno de objetivos comuns;
A onguização, como uma nova forma de subjetivação, gera novas práticas e agrega novos
429
significados ao que já existe. Ao serem afetados por ela, esses grupos passam a conceber
experimentado com mais intensidade essa nova forma de subjetivação, a cultura negra
continua sendo vivida e tendo uma finalidade em si mesma, além de ser lembrada como
forma de promover a auto-estima; porém, mais do que isso, à cultura negra é atribuída
social’ é o principal objetivo do projeto: o Batukerê “tira as crianças da rua e lhes dá uma
profissão”. E a política ainda é um meio para conseguir outras coisas, mas fazer o Batukerê
continua sendo um meio, tanto que a ‘cultura negra’ faz parte dos projetos em aulas de
dança afro, percussão e capoeira, que “atraem” e “seguram” crianças e adolescentes – estes
são seus objetivos. Mas a política não é mais somente uma esfera privilegiada da vida
social tendo uma finalidade em si mesma – lugar e razão da luta. Ela também se torna um
meio porque deve ser instrumento para melhorar a vida das pessoas de uma tal
comunidade, atendidas por um tal projeto, organizadas para um tal objetivo, e não mais
capturam a singularidade e relacionam-se com a idéia de aceitação do mundo tal como ele
430
existe6. Luta-se para participar dele ou para fazer outros participarem, não para modificá-
lo. Desejos criados pelo mercado capitalista, que sempre teve na inclusão sua principal
sobrecodificá-los, isto é, fazer com que os fluxos descodificados passem por um mesmo
fluxo. É o mesmo que dizer, como o fazem Hardt e Negri, que tudo passa a ser visto de
uma “perspectiva monetária”: “não existe nada, nenhuma ‘vida nua e crua’, nenhum
panorama exterior, que possa ser proposto fora desse campo permeado pelo dinheiro; nada
escapa do dinheiro.” (2001:51). O capitalismo não admite um ‘lado de fora’, nada lhe é
exterior:
sua lógica de atuação é a mesma do capitalismo: incluir. Mas ‘inclusão’ significa também
de “imperativos éticos e morais” (2001:54), as ongs são “as mais poderosas armas de paz
da nova ordem mundial (...). Essas ONGs8 movem ‘guerras justas’ sem armas, sem
6
“O que faz a força da subjetividade capitalística é que ela se produz tanto ao nível dos opressores quanto
dos oprimidos.” (Guattari e Rolnik 1986:44).
7
Reproduzo a seguir a nota que os autores vinculam ao trecho citado por desejar fazer o mesmo tipo de
ressalva: “Há indubitavelmente zonas de privação dentro do mercado mundial onde o fluxo de capital e de
bens é reduzido ao mínimo. Às vezes, essa privação é determinada por uma explícita decisão política (como
nas sanções comerciais contra o Iraque), e outras vezes é decorrência da lógica implícita do capital global
(como nos ciclos de pobreza e inanição na África subsaariana). Em todos os casos, entretanto, essas zonas
não constituem um lado de fora do mercado capitalista; na realidade, funcionam dentro do mercado mundial
como degraus mais subordinados da hierarquia econômica global” (Hardt e Negri 2001:467, nota 12).
8
Os autores referem-se “principalmente às organizações globais, regionais e locais dedicadas a obras de
socorro e à proteção de direitos humanos, como Anistia Internacional, Oxfam, e Médicos sem Fronteiras.”
(Hardt e Negri 2001:54). É claro que há diferentes tipos e propostas de atuação de organizações não-
governamentais e não se trata de desqualificar seu trabalho, no entanto, essas diferenças não são relevantes
para a minha argumentação, já que meu interesse é em sua proposta mais ampla de organização social
movida pelo desejo de intervenção e inclusão social, comum a todas.
431
“necessidades universais” e “direitos humanos” (:55), que elas ajudam a estabelecer quais
são diante de um mundo que está dado. Termos como ‘globalização’, ‘mundo globalizado’
naturalizam a forma que as coisas têm, assim como, evidentemente, os valores contidos
globalização; ter acesso a ela é, então, a melhor forma de alguém ou de um grupo se sentir
incluído neste mundo. Depois de outras necessidades consideradas mais básicas, como o
algo essencial para qualquer pessoa, ao menos é o que se pode concluir a partir da
movimentos sociais não é somente uma resistência contra esse processo geral de
originais e singulares.” (:45). A onguização, como uma forma de subjetivação que afeta os
outros modos de existência porque ela busca impedir a emergência do intolerável, pois só
seguindo a citação de Zourabichvili – modela, serializa, nos diz como ‘reagir’, e sempre da
mesma maneira 9, aos problemas do mundo para torná-lo mais tolerável, o que significa um
mundo em que um número cada vez maior de pessoas tenha os mesmos desejos: participar
detectadas, evidentemente, por quem supõe não as ter, pelos já ‘incluídos’. São as
deficiências, ‘o que falta’, que impedem algumas pessoas (mesmo que sejam bilhões) de
participarem desse mundo, então, é preciso cuidar de tais carências a fim de incluí-las.
Como, desse ponto de vista, o mundo é assim e não há outra forma de vida possível fora
dele, ou ao menos uma que seja considerada boa, torna-se uma ‘obrigação moral’ de quem
participa dele ‘ajudar’ os excluídos. Nesse sentido, atuar numa ong passa a ser mais
9
É a isso que Zourabichvili chama de “clichês”, ou seja, “tudo o que vemos, dizemos, vivemos, e até mesmo
imaginamos e sentimos já está, definitivamente, reconhecido; carrega, por antecipação, a marca da
433
alfabetização indígena consideram que a aquisição da escrita é uma “coisa boa” para os
Gow se pergunta, então, qual é a concepção de política que permeia a defesa desse tipo de
ação. Para ele, trata-se de um modelo baseado na visão do mundo como sendo constituído
por problemas sobre os quais é preciso agir; essas ações constituem pessoas como
‘agentes’, aquelas que fazem, e tornam outras ‘pacientes’: umas e outras são
pela ação para ajudar os primeiros a superá-las. Assim, segundo o modelo, a ação política
está na ‘agência’ e negá-la – isto é, questionar tais ações ou recusar-se a agir – é não atuar
politicamente.
Hardt e Negri (2001) sustentam que embora as ongs estejam “fora do poder do
Estado e geralmente em conflito com ele”, elas tampouco estão “do lado dos interesses do
capital” e do projeto neoliberal (:334). No que tange às ongs enquanto entidades concretas,
os autores podem ter razão. Contudo, talvez não se possa dizer o mesmo da visão de
mundo difundida por elas. A multiplicação dessas entidades ao redor do mundo veio na
social’ e ‘cada um deve fazer a sua parte’ unidas numa mesma ‘ação’: um indivíduo se une
a outro indivíduo para ajudar alguns outros, não todos; um indivíduo pode ajudar muitos
fazendo um trabalho social numa escola ou doando sopa para quem mora na rua, mas ele
recognição, a forma do já visto e do já ouvido. (...): tudo tem, de saída, a forma do que já estava presente, do
que já está totalmente feito, do preexistente.” (Zourabichvili 2000:349).
10
É interessante que Gow observe que esses antropólogos falem como os “missionários que eles pretendem
desprezar”, pois Hardt e Negri (2001) também assemelham as ongs a religiosos: “como os dominicanos do
fim do período medieval e os jesuítas na alvorada da modernidade, esses grupos lutam para identificar
necessidades universais e defender direitos humanos.” (:55).
434
habitação ou do desemprego. Esses são problemas do Estado que o ‘cidadão’ não pretende
resolver; seu problema é com a fome das pessoas que moram na rua ou com as crianças da
escola da vizinhança que não sabem informática, pois elas não podem esperar11.
conteúdo desta ou de uma reflexão mais aprofundada; importa “fazer alguma coisa”.
Embora os grupos dos movimentos negros de Ilhéus, culturais ou políticos, não se refiram
aos seus trabalhos sociais como ‘política’, a onguização como uma nova forma de
subjetivação pode agregar novos significados ao que é entendido por cultura e por política.
Segundo a matéria, a “luta contra o racismo” dar-se-ia agora de “forma diferente”: trocar-
se-ia o “engajamento político pela militância na arte com compromisso social.” E ainda:
“no lugar dos manifestos políticos pró-igualdade racial, estão as letras de músicas e os
grupos de voluntários para melhorar as condições de vida de quem mora no morro”. “Arte
Cunha (2000) atribui ao Grupo Cultural Afro Reggae, sendo um de seus líderes um dos
entrevistados. Segundo a autora, a ação do Afro Reggae é dirigida aos “excluídos”, àqueles
11
Diariamente vê-se matérias jornalísticas na TV sobre trabalhos voluntários. Uma delas versava sobre uma
pessoa (uma mulher por volta dos cinqüenta anos, cuja profissão foi informada como sendo a de “dona de
casa”) que distribuía sopa às terças-feiras à noite para moradores das ruas de São Paulo. Ela falou sobre o
quanto era “gratificante” e “faz[ia] se sentir bem”, “feliz” “poder dar comida a alguém com fome”. É claro
que é preciso reconhecer a generosidade dessa ‘ação’, porém, soa estranho ouvir alguém dizer que fica
435
grupo – “se a gente trabalhar apenas com negros ou se dedicar apenas a fazer trabalhos
voltados para essa população, vamos continuar isolados”, diz o diretor do Afro Reggae na
matéria do jornal. Da mesma forma, Cunha mostra que o discurso da ‘cidadania’ substitui
Voltando à matéria do jornal, em seu depoimento o líder do Afro Reggae diz que se
“orgulha de ter tirado muito jovem do tráfico” – preocupação também do Dilazenze, que
utiliza o Batukerê para dar ‘ocupação’ às crianças e aos adolescentes a fim de ‘tirá-los do
tráfico’. Vê-se, assim, que os objetivos do Afro Reggae são em tudo muito semelhantes aos
movimento negro político e de grupos como o Afro Reggae têm em comum uma mesma
“feliz” por dar alimento a uma pessoa com fome, pois, nesse contexto, a fome do outro parece um motivo
436
afro do que num grupo como o Afro Reggae –, percebe-se que a ‘inclusão social’ é o meio
sociedade’ por sua tripla função: ela seria ‘conscientizadora’ pelas mensagens de denúncia
e porque mostraria ‘a realidade’ 12 tanto para as pessoas negras quanto para ‘a sociedade’,
atingindo, inclusive, parte da elite branca; seria um meio de mostrar o ‘talento’ de pessoas
negras e, assim, negar os estereótipos que incidem sobre elas, além de, evidentemente,
proporcionar uma vida melhor para quem se destaca; seria também o principal veículo para
vida14. Sendo assim, boa parte dos projetos sociais tem por base o tripé arte,
universidades, por exemplo. Chamar a atenção para a vinculação entre inclusão social e
combate ao racismo presente tanto nos projetos sociais quanto nas propostas de ação
afirmativa não significa dizer que se trata da teoria de que o preconceito não é racial e que
enfatizam que a promoção de tais projetos não significa o abandono de outras formas de
luta no campo político. Como disse um dos atores entrevistados na matéria citada acima,
Contudo, como este trabalho tentou mostrar, a inclusão social – que significará
de captura. Impedindo a existência do ‘fora’, ele tenta impedir também a produção dos
sobrecodificação, o que poderia resultar em algo diferente dele e ser um obstáculo à sua
expansão. O racismo, conforme a concepção que será defendida aqui, é outro desses
é algo que “sempre existiu”. Em seu curso Em Defesa da Sociedade, ministrado em 1976,
Foucault (1999) data o ‘racismo’ e o ‘discurso racista’ no século XIX. Em suas aulas, ele
mostra como o discurso da ‘guerra das raças’ do século XVII – que era contra a soberania,
O discurso da guerra das raças nasceu como contra-história porque impunha uma
nova forma de contar a história a partir das relações de força, das batalhas, dos perdedores,
enfim, da guerra e não mais como produto de leis naturais ou de uma vontade divina; o
historiador dividia a sociedade em dois lados e se posicionava num deles (:66-7); seu
interesse não era o da legitimação da soberania, era o da contestação (:76), mas também de
nada se difere do discurso capitalista de que ‘todos podem vencer e que só depende do esforço de cada um’, o
438
o rei –, entretanto, não era de propriedade dos oprimidos e subjugados, servindo também à
própria nobreza.
Foucault mostra, então, que o discurso histórico foi reapropriado tanto pelos
como “guerra social” e apareceu como “luta de classes” (:72). Nessa segunda forma, a
contra-história foi apreendida pelo discurso revolucionário, que estava para transformar a
luta das raças em luta de classes. A contra-história foi, então, contraposta por outra contra-
história, que recodificou tudo em luta das raças, mas no sentido médico e biológico do
A guerra das raças, que tratava da luta de campos opostos, tornou-se uma luta da
raça que detém o poder, que é “considerada como sendo a verdadeira e a única” (:72)
contra aqueles que estão fora da norma imposta por ela (:73). E é dessa conclusão de
Foucault que vem o título do curso: o discurso histórico da ‘guerra das raças’ visava
que retira muito do peso que teriam o racismo e a desigualdade na configuração social.
439
história como racismo dá-se da seguinte forma: a guerra histórica (origem dos povos,
invasões...) é substituída pela luta pela vida, pela seleção do mais forte. A sociedade não é
mais binária e sim “biologicamente monística”, sendo ameaçada apenas pelo que lhe é
estranho, diferente do que é ‘normal’. O Estado, que protegia uma raça da outra, terá a
função de proteger a raça. A idéia de “pureza da raça” substitui a de “luta das raças” (:95).
Segundo Foucault, o racismo não é uma ideologia que se prestou a ser anti-
revolucionária: “o racismo não é, pois, vinculado por acidente ao discurso e à política anti-
racismo é produto da biopolítica, tecnologia de poder que passa pela eugenia, pela
vida, pela seguridade social, pela poupança etc. Seu objetivo é “fazer viver” (:294) e deixar
15
“E o problema seria saber como, a partir desse deslocamento (se não dessa decadência) do papel da guerra
no discurso histórico, essa relação de guerra dominada assim no interior do discurso histórico vai reaparecer,
mas com um papel negativo, de certo modo exterior: um papel não mais constitutivo da história, mas protetor
e conservador da sociedade; a guerra não mais como condição de existência da sociedade e das relações
políticas, mas condição de sua sobrevivência em suas relações políticas. Vai aparecer, nesse momento, a
idéia de uma guerra interna como defesa da sociedade contra os perigos que nascem em seu próprio corpo e
de seu próprio corpo; é, se vocês preferirem, a grande reviravolta do histórico para o biológico, do
constituinte para o médico no pensamento da guerra social.” (Foucault 1999:258). E é interessante notar que
em seu “O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte”, Marx vá na mesma direção que Foucault quanto à luta de
classes ser concebida pela burguesia como a luta de quem é superior, de quem é ‘a sociedade’ contra quem é
nocivo a ela. Ao escrever sobre as revoluções proletárias de junho de 1848 barbaramente massacradas pela
burguesia, ele observa que “Durante as jornadas de junho todas as classes e partidos se tinham congregado no
partido da ordem, frente à classe proletária, considerada como o partido da anarquia, do socialismo, do
comunismo. Tinham “salvo” a sociedade dos “inimigos da sociedade”. Tinham dado como consigna ao seu
exército as palavras de ordem da velha sociedade – “propriedade, família, religião, ordem” – e proclamado à
cruzada contra-revolucionária: “Sob este signo vencerás!” (Marx 1987:27) (grifos do autor).
440
No discurso da ‘guerra das raças’, a ‘diferença racial’ foi a base para a formação de
povos e nações em sua vertente biológica. A partir dela, formou-se o esquema binário, a
direito arcaico, redescoberta de velhas leis” (:131). Não se tratava de racismo, mas de uma
uma ‘identidade’.
Na concepção de racismo tal como formulada por Foucault, já no século XIX, não
concebem o racismo. Tal como para o capitalismo, também para o racismo não existe um
‘fora’: “do ponto de vista do racismo, não existem pessoas de fora. Só existem pessoas que
deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem. (...) O racismo jamais detecta as
partículas do outro, ele propaga as ondas do mesmo até a extinção daquilo que não se deixa
identificar (ou que só se deixa identificar a partir de tal ou qual desvio).” (1996:45-6).
uma criança, um chefe ou um subalterno, ‘um x ou um y’.” (:44). Quando se depara com
rostos ainda não classificados, não conformes a ela (às suas subjetivações), a máquina
opera por “desvios padrão de desviança”, fazendo com o que não estava incluído nas
categoria escolhida pela máquina, sempre numa relação binária com a primeira16. Assim
este é o padrão a partir do qual todos os traços não conformes serão classificados por não
serem como ele. O que importa para a máquina de rostidade é tornar algo reconhecido,
referências dos processos de singularização (“Tudo o que surpreende, ainda que levemente,
Rolnik 1986:43). E é preciso que seja assim, pois se é próprio do capitalismo incluir,
integrar, ele não pode conceber ‘outros’, um lugar, alguém fora de seu campo de atuação:
há ‘diferenças’ de grau em relação ao padrão e é sobre elas que se exerce o poder 18. Ou,
16
Por exemplo: “A professora ficou louca; mas a loucura é um rosto conforme de enésima escolha
(entretanto, não o último, visto que existem ainda rostos de loucos não-conformes à loucura tal como
supomos que ela deva ser).” (Deleuze e Guattari 1996:45)
17
E isso não vale apenas para os rostos que a máquina produz. Ela rostifica tudo: corpos, roupas, objetos
(:42). E poder-se-ia dizer o mesmo para instituições: a criação da categoria ‘bloco afro’ foi uma rostificação,
assim como a onguização rostifica atividades, objetivos e transforma-os em ‘trabalho social’. “Mais
geralmente, nenhuma polivocidade, nenhum traço de rizoma podem ser suportados: uma criança que corre,
que brinca, que dança, que desenha não pode concentrar sua atenção na linguagem e na escrita, ela tampouco
será um bom sujeito.” (:48). A partir desse trecho, uma analogia pode ser feita com relação aos blocos afro:
aqueles que ‘só querem tocar tambor’, que não realizam trabalhos sociais, não podem ser ‘bons sujeitos’.
18
Como diz Guattari, “é condição para as sociedades capitalísticas se manterem, que elas sejam calcadas em
uma certa axiomática de segregação subjetiva. Se os negros não existissem, seria preciso inventá-los de
alguma maneira.” (Guattari e Rolnik 1986:77).
19
Hardt e Negri denominam o racismo tal como concebido por Deleuze e Guattari de “racismo imperial”
(2001:210) em oposição ao “racismo colonial”: este último seria próprio da soberania moderna e estaria
calcado nas diferenças biológicas, constituindo um ‘eu’ e um ‘outro’ (:157), enquanto o primeiro estaria
consonante com o Império, uma nova ordem mundial constituída por uma nova forma de soberania e
fundamentalmente pelo biopoder, que não concebe um ‘outro’ (:12-3).
442
É interessante notar que a descrição que Negri e Hardt (2001) fazem do racismo
imperial poderia ser apropriada para descrever o ‘racismo brasileiro’, ou melhor, sua
especificidade frente a outras formas de discriminação racial, como aquelas que vigeram
nos Estados Unidos e na África do Sul, ambos países que costumam ser acionados como o
outro termo da comparação. É comum ouvir dizer que o racismo no Brasil seria mais
brando porque seria mais sutil, menos agressivo, menos explícito. Chega-se mesmo a
argumentar que não haveria racismo, segundo a lógica de que se há ‘casos isolados’ de
da população pobre é formada por pessoas negras, trata-se de uma contingência histórica e,
Segundo Hardt e Negri (2001), a teoria racista imperial nega que haja divisões
determinadas” (:211), como no caso do ‘racismo brasileiro’. Para esses autores, não há
uma hierarquia racial a priori, mas esta se dá como efeito do “desempenho” das culturas
compartilha desse resultado, desse produto ou não, ou seja, quem tem ou quem não tem
20
Um exemplo é a afirmação de uma suposta aptidão musical ou para o esporte de pessoas negras e a quase
total ausência delas em profissões de caráter mais intelectualizado, de níveis de instrução mais altos.
Desigualdades sociais tornam-se, assim, questões culturais e, ironicamente falando, ninguém tem culpa se
não há mercado para que todas as pessoas negras ganhem muito dinheiro com seu talento.
443
A observação com que Hardt e Negri começam sua descrição do racismo imperial
também revela sua semelhança com o ‘racismo brasileiro’: os autores chamam a atenção
de que “políticos, a mídia e até historiadores continuamente nos dizem que o racismo
retrocedeu nas sociedades modernas” enquanto que “na realidade [o racismo] progrediu no
imperial quanto no ‘racismo brasileiro’, o ‘segredo’ para que eles pareçam não ser racistas
sentido de “alma coletiva” de Guattari (Guattari e Rolnik 1986:17) – daqueles que são
afetados pelo racismo é tolerada como um aspecto de sua vida, não como sua vida; produz-
Assim, talvez a questão não esteja exatamente na semelhança entre o que seria o
outras formas de racismo – como no Sul dos Estados Unidos ou na África do Sul – sejam,
de fato, muito diferentes dessas. A ‘alteridade’ presente nesses outros regimes racistas
tinha limites muito claros: ela não produziu excluídos de fato. Mesmo nesses casos, o que
havia era ‘inclusão diferencial’, mecanismo que define o racismo segundo Deleuze e
21
“Cultura-alma coletiva” é a cultura como uma esfera da vida social, que “cada alma coletiva (os povos, as
etnias, os grupos sociais)” possui: “essa é uma cultura muito democrática: qualquer um pode reivindicar sua
identidade cultural.” (Guattari e Rolnik 1986:17-8).
22
Há ainda um terceiro núcleo semântico da palavra cultura na visão de Guattari. Trata-se da “cultura-
mercadoria”, isto é, da produção e da difusão de mercadorias culturais: livros, filmes, mas também salas de
cultura, profissionais de cultura etc. (Guattari e Rolnik 1986:17;19).
23
Disse Guattari em sua visita ao Brasil em 1982: “não duvido nada de que, um dia, vocês terão aqui um
Ministério das Personalidades Culturais, cuja incumbência não vai ser a de esmagar todos esses modos de
expressão específicos das diferentes regiões brasileiras, mas, pelo contrário, a de desenvolvê-los, incentivá-
444
“guerra das raças”, ou seja, da idéia de uma raça contra outra, seria a sociedade nazista,
segundo Foucault (1999:97). Contudo, mesmo aí não se trata da idéia de um ‘outro’, mas
de que é possível depurar-se uma raça, torná-la mais forte através do biopoder e do poder
soberano de matar que, no limite, pertence a todos, não apenas ao Estado, que também
pode matar a todos, até mesmo “os seus próprios”: “o Estado nazista tornou absolutamente
co-extensivos o campo de uma vida que ele organiza, protege, garante, cultiva
biologicamente, e, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar quem quer que seja – não
Retomando a questão que levou a toda esta reflexão sobre concepções de racismo, o
fundamento que dá sustentação à maior parte dos projetos sociais, especialmente àqueles
que têm a luta contra a discriminação racial como um de seus objetivos, parece ser a aposta
na idéia de que algum tipo de ‘igualdade’ é possível no capitalismo, seja social ou racial.
Como este trabalho tentou mostrar, o mercado mundial nada mais faz do que gerir suas
diferenças. Estas nada têm a ver com alteridades – a partir do momento em que algo foi
los, enquanto, é óbvio, eles não interferirem nas coisas sérias, isto é, as coisas da produção e da política.”
445
os blocos afro podem ser mesmo ‘espaços de resistência’, tomando resistência como
primeira em relação à reação: resistir é fugir dos esquemas, dos “clichês”; é, como diz
Deleuze no trecho que serve de epígrafe a esta conclusão, “suscitar novos acontecimentos,
formas capazes de produzir mais mudanças no mundo do que adaptações a ele, pois a
possibilidade do novo reside sempre nas tentativas de escapar à regulação. A criação do Ilê
Aiyê se deu num processo de singularização, pela entrada num devir-negro, e fez surgir os
blocos afro. Mas não se pode parar, deixar-se capturar por inteiro. Retomando o que disse
um dos fundadores dos primeiros blocos afro de Ilhéus, estes surgiram porque “começou a
aparecer por aqui um movimento.” Um tal movimento que não se sabia bem o que era,
tanto que gerou toda a “polêmica” em torno de qual teria sido o primeiro bloco afro da
afro: é ‘movimento’ e é ‘diferente’. Como foi visto ao longo deste trabalho, há muitas
‘paradas’ e ‘capturas’ no caminho, mas se os blocos afro de Ilhéus ainda ‘resistem’, isso
novos encontros com outros processos de singularização. E é por acreditar nisso que, ao
final de um trabalho que foi guiado por desejos, deixo aqui também o meu: que os grupos
epígrafe de Deleuze que deu início a este trabalho, eles busquem bons encontros e que se
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ANEXOS
ANEXO 1
ANEXO 2
449
ANEXO 3
(1)
1980 Miny Kongo (2)
Lê-Guê DePá
(3)
1982 Rastafiry
(4)
1984 Axé Odara
(5)
Zimbabuê
(6) (7)
1986 Dilazenze Gangas
(8)
1988 Força
Negra
(9) (10)
1990 Danados Raízes Negras
do Reggae
(11)
(12)
1992 Malês
D’Logun
(13)
1994 Zambi Axé
1996
(14)
Leões do Reggae
1998
(15)
2000 Guerreiros de Zulu
ANEXO 4
451
ANEXO 5
QUADRO RESUMO DA PARTICIPAÇÃO DOS BLOCOS AFRO
NOS CARNAVAIS DE ILHÉUS (1981-2004)
1997**** Av. Soares Rastafiry, Dilazenze, Miny Kongo, Zimbabuê, AfroCentro Rastafiry (ver
Lopes (Raízes Negras e D’Logun) e AfroNorte (Malês e Gangas) observação
abaixo)
1998**** Av. Soares Dilazenze, Rastafiry, Miny Kongo, Raízes Negras, Zambi
Lopes Axé, Zimbabuê e Danados do Reggae
1999**** Av. Soares Dilazenze, Miny Kongo, Rastafiry, Malês, Raízes Negras, X Dilazenze
Lopes Zambi Axé
2000**** Av. Soares Dilazenze, Rastafiry, Zambi Axé, Danados do Reggae, X Dilazenze
Lopes Raízes Negras e Miny Kongo
2001**** Av. Dois de Danados do Reggae, Miny Kongo, Dilazenze, Rastafiry, X Dilazenze
Julho Raízes Negras, Zambi Axé, Guerreiros de Zulu e Leões do
Reggae
2002 Av. Soares Dilazenze, Miny Kongo, Rastafiry, Zambi Axé, Guerreiros X Dilazenze
Lopes de Zulu, Malês, Leões do Reggae, Raízes Negras,
Zimbabuê e Danados do Reggae.
2003 Av. Soares Dilazenze, Miny Kongo, Rastafiry, Zambi Axé, Guerreiros X Dilazenze
Lopes de Zulu
2004*** Av. Soares Dilazenze, Miny Kongo, Zambi Axé, Guerreiros de Zulu, X Miny Kongo
Lopes Rastafiry, Leões do Reggae, Danados do Reggae, Raízes
Negras
452
** Não houve julgamento porque os blocos não concordaram com o corpo de jurados
(Diário da Tarde 06/03/87).
Observação: não houve julgamento oficial, mas o grupo foi “aclamado” como campeão do
carnaval e assim se considera.
453
ANEXO 6
Tudo começou
em 1986
Jovens astutos e marotos
Disseram chegou a nossa vez
No Terreiro Tombency
e protegido por Xangô
Começou a trajetória
que Mucalê abençoou
REFRÃO
Compositor: Joilsom
Dizendo a verdade
do que é o amor
e dando educação
que nas ruas eles não tinham não
Mostrando ao Brasil
toda verdade
crianças nas ruas
abandonadas como animais
REFRÃO
451
ANEXO 7
FOTOS