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Projeto de Tese – processo seletivo Doutorado 2020.

A criação do espaço coletivo como modelo


Título:

construtivo.
As lógicas mercadológicas no desenho da cidade como respaldo histórico da
elitização da “cidade formal”.

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a. Tema.
“A rua é um universo de múltiplos eventos e relações. A
expressão “alma da rua” significa um conjunto de veículos, transeuntes,
encontros, trabalhos, jogos, festas e devoções. Rua tem caráter e podem ser
agitadas, tranquilas, sedes de turmas, ponto e territórios. A par de caminhos,
são locais onde a vida social acontece ao ritmo do fluxo constante que mistura
tudo. Um “microssomo real” de espaços e relações que tem a ver com repouso
e movimento, com dentro e fora, com intimidade e exposição e assim por
diante. Que serve para referenciar bons e maus lugares.” (SANTOS, 1985,
p.76)

Como estão e por quais elementos morfológicos são compostos hoje os espaços coletivos
da cidade de Salvador? Quais são os agentes determinantes na caracterização de espaços bons
ou ruins e, principalmente, qual o respaldo social do uso e manifestação desses espaços na
sociedade? Existe relação social no espaço hoje conformado pelas arquiteturas individuais de lote?
Ao final, para quem(ns) se constrói a cidade?

O presente projeto para tese de doutorado busca investigar os elementos morfológicos


utilizados em ferramentas projetuais, que hoje compõem o limite entre os espaços públicos e
privados. Tendo esses instrumentos projetuais, papel essencial na composição de espaços dotados
de características sociais, bem como na construção de uma continuidade urbana de experiência
coletiva.

No estudo dos elementos que compõem os limites entre público e privado, busca também
respostas na compreensão de como se compõem esses limites, entendendo a cidade como parte
de um processo histórico de acúmulo e sobreposição de diferentes capas arquitetônicas.

Para estudar espaços públicos ou coletivos, se faz pertinente algumas definições que
identifiquem de que elemento morfológico urbano de que estamos falando, já que como tudo em
arquitetura e urbanismo existe uma medida parte de um sistema normalizado, é assim de interesse
da presente investigação falar sobre espaços concretos que se entendem como parte da
continuidade urbana. Porém o estudo de espaços coletivos em si abre espaço para uma
ambiguidade conceitual, podendo ser esclarecidos com uma pergunta: Seriam espaços coletivos,
públicos ou privados?

Ao utilizarmos termos como “espaço público” e “espaço coletivo”, é de interesse a distinção


destes, para deixarmos claro o objeto ora estudado.

Reforçando essa definição, os espaços públicos são os espaços fluidos da cidade, são os
espaços da continuidade, constituídos por suas ruas, avenidas, calçadas e praças. O espaço
público é definido por Solá-Morales em seu trabalho “Ações estratégicas de reforço do centro” parte
do livro “Os centros das Metrópoles” do programa Viva o Centro de 2001, como objeto de
“propriedade administrativa”, sendo assim definido a partir da identificação do agente administrativo
de tal espaço.
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O espaço coletivo, por sua vez, é onde, que por meio de encontro de grupos ou pessoas, as
atividades e manifestações acontecem. Portanto os espaços coletivos podem ser, do ponto de vista
administrativo, “privados” ou “públicos”.

Para exemplificar a diferença entre “espaço público” e “espaço coletivo”, utilizaremos o


elemento calçada. Primeiramente, é necessária uma distinção básica a fim de esclarecer se a
calçada é de administração pública ou privada. De acordo com a legislação, “Serão exigidas
construção e manutenção de passeios e meio-fio em toda a frente de terrenos localizados em
logradouros públicos por parte dos proprietários, com padrão e alinhamento estabelecidos pelo
Município” (SALVADOR, 2017); sendo assim, do ponto de vista administrativo, a calçada é um
espaço privado, responsabilidade de construção e manutenção do dono do terreno a qual faz frente.
Há, porém, as calçadas de edifícios e conjuntos habitacionais públicos, de responsabilidade da
prefeitura local. Podem-se classificá-las, então, como públicas.

Do ponto de vista morfológico a calçada é um espaço público, já que isento de censura. A


calçada é um espaço onde qualquer pessoa pode parar, sentar-se, sendo, também, espaço de
passagem e circulação. Não é possível controlar quem passa por esse espaço, quer seja ele
particular ou privado. Porém é nesse “espaço público” que há a possibilidade de encontros. Em
bairros tradicionais, como a Ribeira, ou mesmo em cidades do interior da Bahia, por exemplo, a
calçada faz o importante papel da permanência, onde moradores sentam-se em cadeiras nas
calçadas, em frente as suas casas, encontram-se com seus amigos e vizinhos, trocam informações
sobre sua vida cotidiana, crianças se reúnem para brincar.

Essas atividades, entre outras, enriquecem o ambiente urbano, uma vez público, tomado
por atividades coletivas, que desarmam inseguranças nas quais conexões emotivas são
constantemente reafirmadas pelo usuário em seu espaço de lazer. Sobre espaços coletivos Solá-
Morales acrescenta:

“O espaço coletivo é muito mais e muito menos que o espaço


público, se caracterizarmos este apenas como propriedade administrativa. As
riquezas civil e arquitetônica, urbanística e morfológica de uma cidade são seus
espaços coletivos, todos os lugares onde a vida coletiva se desenvolve,
representa e recorda. Talvez estes sejam, cada dia mais, os espaços que não
são nem públicos nem privados, se não ambos ao mesmo tempo. Espaços
públicos absorvidos por usos particulares, ou espaços privados que adquirem
uma utilização coletiva.” (SOLA-MORALES, 2001, p.104)

Portanto ao se discutir espaços coletivos não podemos resumir nossa análise às medidas
do espaço administrativo-físico-morfológico. Ao defini-lo como palco do desenvolvimento da vida
coletiva, o espaço ganha assim um significado social. Ruth Cardoso em seu texto “Identidades e
Convivência: o centro como ponto de encontro” descreve o potencial social da rua ao ser o local de
encontro e manifestações. Um espaço democrático de convivência de diferentes grupos com

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diferentes identidades, “onde se criam formas de convivência perfeitamente aceitáveis” e que na
sua potencial natureza mestiça, teria o poder de criar, então, espaços públicos desarmados.

Reforço que a natureza mestiça de um espaço coletivo, como mencionado tão


profeticamente por Cardoso é potencial, não necessariamente parte da realidade. Precisamos aqui
retomar a fala sobre o espaço quanto a morfologia. Esse potencial social tão importante entra em
conflito direto quando tratamos de retomar o estudo do desenho do espaço, e os agentes
responsáveis pelas soluções de projeto que hoje desenham a cidade.

Como mencionado anteriormente é de interesse desse estudo falar dos limites que
desenham as relações morfológicas do espaço, um espaço possível de ser medido e estudado por
meio de projeto. A investigação gostaria de analisar algumas ferramentas projetuais utilizadas em
diferentes recortes históricos que determinavam esses limites entre o público e privado, espaços
físicos morfológicos que ainda levam em consideração a extensão social que o espaço urbano tem
na formação da sociedade, na direta relação com a sensação de segurança urbana e principalmente
entendido como resultado endocêntrico de uma manifestação sociológica.

Agora, analisar esses limites que desenham a cidade de hoje, resultado de processos
histórico-políticos, precisamos identificar quais ferramentas urbanísticas possibilitaram as
transformações morfológicas da cidade no espaço-tempo. A cidade ou o espaço urbano pode ser
analisado como um único órgão contínuo de conexão entre áreas edificadas? Já que estamos
falando de desenho da cidade, finalmente, quem desenha o projeto da cidade?

Se formos entender a cidade a partir das leis que normalizam o uso do solo urbano (no
caso do Brasil e regionalmente do município de Salvador, que é objeto de estudo do presente
trabalho), chegaríamos ao zoneamento urbano que normaliza e rege a construção da cidade a partir
do parcelamento da terra, que administra e gera renda através da arrecadação de imposto cobrada
em cima do lote, este que pode ser de administração privada ou pública.

Espaços entendidos como morfologicamente “públicos”, como calçadas, estão previstos


na Lei Nº 9.281 de 2017, da cidade de Salvador, como de jurisdição do lote a qual ela faz frente. Já
as ruas são de administração do município como previsto em Lei Nº 5503 de 1999. De acordo com
a normas que regem a administração desses espaços de articulação urbana (como calçadas e
ruas), principalmente o caso das calçadas, o projeto (que inclui o cumprimento de padrões mínimos
de dimensionamento regidos pela legislação municipal) desde o uso de materiais de revestimento,
projeções de jardineiras e mobiliário urbano é de responsabilidade do dono (titular) legal do lote
urbano adjacente.

Ao experenciar a cidade em diferentes escalas, podendo partir do lote, passando à quadra,


depois ao bairro e finalmente ao município, o destino do desenho desses espaços de conectividade
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que ligam o usuário de uma parte da cidade a outra, e como o mesmo experencia os espaços
públicos/coletivos está entendido, que de um ponto de vista administrativo hoje, é segmentado. O
projeto aponta aqui a importância de se aprofundar nos demais instrumentos urbanos que
determinaram em seu decorrer, o desenho da cidade nos demais períodos históricos, criando
conectividade na análise das diferentes capas arquitetônicas da cidade.

Agora, voltarmos o olhar ao desenho da cidade a partir dessa lógica de parcelamento


administrativo das calçadas, podemos atribuir então responsabilidade ao desenho do espaço
coletivo hoje, à construção da parcela. Bernard Huet ao comentar sobre esses espaços de
conectividade diz, “O tempo na cidade a coloca no espaço, não há possibilidade de centro ou de
espaço público sem continuidade física.” (2001, p.157). Desse modo, o destino do desenho urbano,
a experiência social da cidade, está diretamente ligada às soluções projetuais da parcela. Deste
modo, quem desenha a cidade? Quem é responsável pelo desenho que constrói a cidade que
vivemos e experenciamos?

Ao retomar as palavras de Bernard Huet, se tenciona um importante fator ao analisar


fisicamente o espaço de uma cidade que é o tempo. Entender a cidade como uma massa construtiva
e suas partes, só faria sentido se contextualizado, já que a cidade em si está em constante
mudança. Sobre o tecido urbano e sua análise Jane Jacobs, por sua vez, descreve o espaço urbano
com uma riqueza de complexidades, exaltando a natureza heterogênea do espaço urbano. Leitura
que entra em direto conflito ao apontar os equívocos do exercício da classificação higienista ou
funcionalista de um tecido urbano existente, sobre essa abordagem Jacob então comenta:

“Quando os desenhadores e urbanistas tentam encontrar um


mecanismo que expresse de forma clara e fácil o esqueleto da estrutura urbana
(ruas, calçadas são normalmente os favoritos dessa tarefa), seguem
fundamentalmente uma pista falsa. Uma cidade não se monta como um
mamífero ou como a armação de ferragens de aço de um edifício (ou bem
como uma fralda ou coral). Uma autêntica estrutura urbana consiste em uma
mescla de usos e nos aproximamos a seus segredos estruturais quando
tratamos das condições que possibilitam uma vida com variedade”. (JACOBS,
1961. pp. 415)

Ao mencionar essas condicionantes da vida urbana, Jacobs desmistifica essa rígida leitura
sobre a cidade que a generaliza ao mesmo tempo que determina seu uso pelo zoneamento do lote.
Essa leitura, parte dos planos urbanísticos presente nas principais cidades Brasileiras, fala da
funcionalidade do espaço e se preocupa com diretrizes higienistas ao determinar limites mínimos
nos padrões construtivos do lote, bem como recuos mínimos, índices de permeabilidade,
coeficientes de aproveitamento do solo urbano, índices de ocupação máxima etc. Mas não assume
nenhum papel ao entender como o espaço é composto, como se darão os limites entre o público e
o privado.

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O espaço morfológico, cenário de acontecimentos heterogêneos descritos por Jacobs,
acontece/manifesta em um palco centenário gerado no acumulo de arquiteturas no decorrer da
história de uma cidade. Essa qualificação do espaço que nossos planos urbanos não abordam,
quando muito geram dados pontuais do estado de conservação da condição das edificações
locadas em determinado espaço urbano, foi discutido no trabalho de 1978 de Colin Rowe e Fred
Koetter intitulado “Cidade Collage”. O trabalho de Rowe e Koetter constrói uma crítica ao movimento
moderno e propõem um novo modo de analisar o tecido urbano ao se basear no conceito de “capas
arquitetônicas” e sua construção histórica. Rowe e Koetter se apoiam no argumento da construção
de uma tradição arquitetônica mediante a soma de capas sobrepostas, criando, assim, o espaço
urbano. Desse modo, o estudo se propõe analisar a arquitetura e urbanismo
moderno/funcionalista/higienista, que a sua vez, se posicionam de forma a rechaçar a tradição e a
história de uma cidade, e para isso, baseavam-se em desconectar-se da tradição e do passado.

Esse curioso posicionamento que não somente entende o espaço como heterogêneo, mas
além disso, identifica e valida a existência de um somado natural de diferentes arquiteturas que
transformam constantemente o espaço urbano. É fundamental para a presente análise, que parte
com o interesse de investigar as transformações históricas dos limites físicos na cidade,
compreender por meio de que instrumentos projetuais se dão as relações de público-privado, nas
diferentes capas arquitetônicas.

Rowe e Koetter analisam a relação entre esses processos históricos sociais e a


composição da arquitetura e o espaço arquitetônico ao comentarem:

“A massa da humanidade será provavelmente, em qualquer


época, ao mesmo tempo conservadora e radical, se preocuparão com o familiar
e se distrairão com o inesperado, e se todos nós vivemos no passado e
depositamos nossa esperança no futuro (sem que o presente seja mais que
um episódio no tempo), me parece razoável que aceitemos esta condição, já
que sem profecia não existe esperança, porém sem memória não pode haver
comunicação” (ROWE. KOETTER, 1981. pp. 53)

“Já que sem profecia não existe esperança, porém sem memória não pode haver
comunicação”, esse paradoxo parece tão atual nos dias de hoje, e mesmo que escrito em 1978,
segue uma condição a qual nós como sociedade estamos sempre tencionando. A leitura particular
de Rowe e Koetter sob a cidade reconhece diferentes atores que se somam e compõem a cidade.
O argumento fundamentado na compreensão histórica da construção da cidade, inclusive, cria
meios para que se entenda a importância sociocultural na construção da mesma.

b. Objeto de Estudo e sua abordagem teórica

O projeto busca estudar elementos projetuais como muros, muretas, gradis, jardins, meio
fios, etc. que compõem projetualmente os limites entre projeto e cidade, em específico, como esses
limites são hoje desenhados pela capa imobiliária. Se propõe compreender a lógica construtiva e

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sua evolução no passar dos séculos e os principais agentes determinantes de projeto lesgislativo,
do conjunto edificado existente. A cidade de Salvador, é composta por bairros históricos da
fundação do país, que fazem assim o papel de registrar os processos históricos. Espaços estes que
relatam o início da colonização luso no novo continente e são marcados pelos contrastes da
hierarquia vertical social estabelecida já em sua gênesis. Entender a arquitetura “colonial” como
comumente nomeada é descobrir uma quantidade ampla de representações e plasticidades que
compõe a arquitetura que os “criolos”¹ responsáveis pela colonização e criação desse novo mundo
produziram nesse sitio. Registra também a diferença social dos imigrantes presentes na cidade e
no momento fundacional do país.

A reprodução do ideal Português no novo continente desconhecido e “inóspito” marca a


primeira de tantas problemáticas que seguem como dicotomias entre colônia e colonizador.

O início da ocupação de Salvador consolida a ponta da península como a principal porção


ocupada, local que continha a principal oferta de trabalho e vivência. Já em meados do século XX,
com o eixo comercial foi mudando para a região do Iguatemi, hoje Shopping da Bahia, se estabelece
o novo vetor urbano a ser explorado pela especulação imobiliária, juntamente com a criação de
novos eixos viários como a Avenida Paralela.

c. Justificativa

Retomo aqui o que significa a brevemente mencionada dicotomia social entre colônia e
colonizados e o respaldo na nossa cidade. O que representa essa relação sociológica de sociedade
mestiça e colonizadores no desenho das nossas cidades? Como se desenharam, durante os
séculos, os limites das capas arquitetônicas e qual o resultado desse desenho no espaço coletivo?

Já nos primórdios da colonização portuguesa, se tenta criar uma “aldeia portuguesa”. Essa
postura ao abordar o colonizado é decisiva na repercussão de anos de transformação que marcarão
o planejamento das nossas cidades. A solução para o colonizador, neste caso, e podendo se
estender à experiência do cone sul de colonização (tanto das coroas portuguesas como
espanholas), está em uma aproximação idealizada da vida nos países originários. Cristian
Fernández Cox classifica essa postura como uma “Atitude exocêntrica”, onde comenta:

“Nossas elites não se situaram mentalmente como protagonistas


centrais de uma nova vida em um novo mundo (como fizeram seus homólogos
norte-americanos) mas sim perseguiram uma estrutura simbólica, que somente
se legitimava por pertencer a Espanha (que com Portugal, constituíram a
primeira ecúmene mundial): não no endocentro de sua própria realidade, e sim
no exocentro europeo (como “periferia” da España, como diríamos hoje em dia)”.
(FERNÁNDEZ, 1990)

A apropriação de soluções enraizadas nessa desassociação com a realidade local é


discutido por Fernández em seu trabalho “Hacia uma modernidad apropriada: obstáculos y tareas
internas”, onde capta as relações criadas dentro do cone Sul Americano baseadas no que chama
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de uma “cópia de modelos” importados pelas elites que se estabelecem nas centralidades desse
novo continente.

Estaria nossa construção de identidade determinando o desenho das nossas cidades? De


acordo com Fernández a estrutura vertical hegemônica estabelecida por parte da elite e “é um dos
poucos feitos que guardam um importante grau de continuidade na nossa história” (1990), já que
essa elite ainda fortemente ligada ao ideal exocêntrico do colonizador rechaça sua verdadeira
realidade quanto colônia, adotando modelos os quais considera relevante ao manter-se de alguma
maneira conectado com a “coroa”.

Portanto, se as soluções adotadas são em realidade, modelos importados de soluções


exógenas, para que(ns) serve tais modelos?! Se as características básicas de etnia são escondidas
na rotulação de todos que não são parte dessa origem europeia, quem são as pessoas para as
quais estamos trabalhando? Se essas realidades são apagadas em um exercício linguístico no
decorrer de séculos e gerações, e socialmente nunca lidamos com o excluído, ele é mero facilitador
dos meios para um fim que serve à uma realidade somente, essas problemáticas simplesmente não
existem. Essa atitude exógena com um eurocentro, transitando no início do século XX à uma forte
referência a norte-américa, repercute nas nossas soluções arquitetônicas adotadas já que, de
acordo com Fernández, procuramos “copiar acriticamente soluções externas” e segue:

“Sem desenvolver nossas próprias soluções peculiares, para


nossos problemas peculiares; ou sem apropriar (fazer próprio, apropriado,
adequado) aquelas soluções exógenas que sejam adaptáveis às nossas
condições” (FERNÁNDEZ, 1990)

Importante distinguir aqui que, diferente da coroa espanhola, a coroa Portuguesa exerceu
uma presença ainda mais forte ao decidir mudar-se para o Brasil no início do século 19. As relações
de posturas exógenas ficam ainda mais interessantes, que no caso de uma colonizadora recém-
chegada em território americano, cria tensões ainda mais significativas com o imaginário europeu
que só existia em forma de memória. E considerando importantes movimentos históricos
reformistas, no campo das artes e engenharia, avançando ao século XX, a importante presença de
Le Corbusier no continente sul-americano que marca profundamente o início do modernismo sul-
americano.

Assim que, para voltar ao tema do desenho passaremos a analisar diferentes recortes
urbanos parte de processos históricos da cidade, chegando à capa mais desconexa historicamente,
a recente capa desenhada pela especulação imobiliária. Menciona-se como desconexo histórico
por estabelecer um rompimento da cidade no seu crescimento por capas e referências históricas
na criação dos espaços.

A leitura de Rowe e Koetter em análise à cidade me parece ainda mais curiosa em espaços
onde a ação imobiliária foi tão brusca que representou a criação de novos bairros em um curto
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espaço de tempo. De acordo com dados da SUCOM de 2009, a Prefeitura Municipal de Salvador
licenciou entre os anos de 2001 a 2009, 6.972 empreendimentos imobiliários, correspondendo em
25.058.577,84 m² de área construída, sendo que o uso residencial representa 53,29% da
distribuição de empreendimentos construídos, uso misto 21,24%, comércio e serviços 9,03%, uso
especial e conjugado representam respectivamente 7,61% e 7,94% e finalmente uso institucional
apenas 0,75%.

Portanto, a expansão da cidade de Salvador e o crescimento populacional representou um


significativo investimento por parte do mercado, que a sua vez construiu bairros massivos
representando uma capa uniforme arquitetônica predominante no eixo Iguatemi-paralela. Agora, o
que a capa “da construção imobiliária” representa no desenho urbano de uma cidade?

Professor da Pontifícia Universidad Católica do Chile, Horacio Torrent em seu texto


“Habitación en alturas: Mercados, técnicas proyectuales y desafios en los comienzos del siglo”
comenta a importância do mercado imobiliário na construção residencial e sua lógica projetual ao
apontar:

“O mercado imobiliário vem assumido, desde os tempos do


despegue econômico, a oferta de habitação em altura em correspondência a
uma demanda segura instituída pela tipificação do anonimato” (TORRENT,
1999)

Arquiteto Chileno Eduardo Bresciani em seu texto para Achitectural Design de 1999
nomeado “Arquitectura inmobiliaria o inmo v iliaria?” exemplifica que a tipificação da lógica imobiliária
acontece devido a três variáveis: a localização, as ‘facilities’, e o valor de venda. Erminia Maricato
adiciona ao discutir a lógica imobiliária quando comenta:

“Tanto as autoridades governamentais ligadas à politica de


habitação quanto os representantes do capital imobiliário referem-se
frequentemente à questão da habitação em termos numéricos de déficits ou
projeção de unidades isoladas a serem construídas. Essa forma simplista de
tratar o tema ignora que a habitação urbana vai além dos números e das
unidades. Ela deve estar conectada às redes de infraestrutura (água, esgoto,
energia elétrica, drenagem pluvial, pavimentação) e ter apoio dos serviços
urbanos (transporte coletivo, coleta de lixo, educação, saúde, abastecimento
etc)” (MARICATO, 2002)

Bresciani, a sua vez, retoma o tema do desenho ao apontar que tanto os “programas não
diferem entre si e tanto a linguagem arquitetônica como as formas construídas são reiterativas”.
Portanto, quais são as lógicas compositivas dessa “capa arquitetônica” imobiliária, que representou
(nos últimos 30 anos) a criação de tantos novos espaços na cidade de Salvador?!

Bresciani segue ao comentar sobre a tipificação da arquitetura pelo mercado imobiliário,


quando diz “os processos que dão origem à obra de arquitetura e a tipificação da qual essa surge
(...) a obra de arquitetura se torna um produto industrial que se repete enquanto tiver aceitação pelo
mercado”(1999), assim compara a composição arquitetônica à lógica de produção industrial, onde

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esse sistema privado de construção se baseia em um arranje numérico de variáveis, que adaptam
os projetos à uma abstração quantitativa de mercado.

A arquitetura toma aqui de novos valores compositivos, onde os processos capitalistas


estão presentes em diversas escalas partindo do lote - seu valor financeiro variável de acordo com
as facilites que apoiam seu processo de valorização (ou não) - a arquitetura, sendo um produto
derivado de uma abstração quantitativa de mercado. A força da lógica capitalista na produção
arquitetônica é explicada por Marino Folin em seu livro “La ciudad del capital y otros escritos”,
quando comenta:

“Produtos do modo de produção capitalista, tem como característica


que não é seu “valor de uso” o <<objetivo determinante>> e o <<motivo
propulsor>> do processo de produção, se não o “valor” de que estes produtos
vem a ser <<depositários>> ao final do processo mesmo” (FOLIN, 1977)

Se as lógicas de acúmulo passam a ditar o desenho desses novos edifícios que constroem
a cidade, o bem de consumo que nos é vendido precisa ser estudado com fim de entender como
esses edifícios fazem do espaço construído o negócio da cidade, bem como os instrumentos
públicos que possibilitam a ação dessa lógica imobiliária.

O próprio Folin segue em seu trabalho ao comentar a prática capitalista no desenho da


cidade ao dizer:

“O que interessa destacar deste modo de proceder é que se


supõem um rechaço da pratica projetual da construção da cidade baseada
meramente no parcelamento do solo e os tipos que surgem desse
parcelamento, tipos edificados que, tal como são codificados, não são outra
coisa que – como já estivemos colocado em manifesto anteriormente – a
expressão do predomínio da renda imobiliária (capitalista) na construção da
cidade; deste modo se rechaça a si mesmo, aquela relação de tipologia -
morfologia, baseada na identificação dos dois términos, o que implica na
desaparição da relação, desaparição que segundo Carlos Aymonino,
caracteriza a construção da cidade contemporânea”. (FOLIN, 1977)

O discutido por Folin acima, apoiado no argumento de Aymonino, tece uma crítica à lógica
construtiva que abstrai o usuário do processo compositivo no desenho da cidade. A criação dessa
“cidade genérica”, que não cria soluções à base dos problemas sociais existentes, e que desenha
a partir da tipificação do usuário e suas famílias “padronizadas”, deixa hoje seu marco na cidade
por meio de bairros onde as ruas, e seus possíveis espaços coletivos, são meros conectores. Sobre
o tema Richard Sennett comenta que “a máquina significava que as diferenças sociais – diferenças
importantes, necessárias para se saber da própria sobrevivência, num meio de estranhos em rápida
expansão – tornavam-se ocultas, e o estranho cada vez mais intratável, com um mistério” (1988).

d. Objetivos

Nessa lógica construtiva imobiliária (capitalista) o espaço coletivo, então, se torna um bem
de consumo, onde por meio de propagandas é vendido como área de lazer devidamente protegida
das inseguranças urbanas. O coletivo se torna uma das maiores facilites utilizadas pelo mercado
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imobiliário, que vende lazer e segurança em seu produto. Retomamos aqui ao desenho dos limites
da parcela, agora na pretensão de estabelecer o desenho da cidade a partir dessa lógica
comentada. Se o que nos protege do desconhecido são muros e grades, em um único local encontro
um público de mesmo perfil financeiro, de poder aquisitivo semelhante, quem são esses
desconhecidos?

O presente trabalho tem como objetivo geral compreender os elementos compositivos do


limite. Limite que estabelece relação do tipo edificado e a cidade, que determinam através do
desenho (projeto) o público do privado, e além disso possibilitam (ou não) coletividades. Entender
como menciona Sennett, a porosidade dos limites urbanos, e à que tipo lógica projetual e legislativa
esses instrumentos fazem parte.

Tem como objetivos específicos:

- Estudar elementos compositivos projetuais dos limites entre privado e coletivo, e seu
papel no conjunto de capas que compõem o coletivo urbano;

- Compreender como os elementos de composição desses limites estão ligados à um ideal


social de poder, como instrumento de privatização dos espaços coletivos, e isolamento do público;

- Entender os processos legislativos que transformaram tipologicamente o desenho da


cidade;

- Compreender o exercício imobiliário e seu papel como compositor desse conjunto urbano
do limite em defesa de interesses mercadológicos;

- Compreender os processos sociais da formação da sociedade brasileira e sua relação


com as possibilidades de soma à coletividade urbana;

e. Metodología

A pesquisa se propõe trabalhar na construção de 3 principais eixos teóricos, o primeiro


trata compreender elementos projetuais que constroem o limite entre tipos edificados e urbano, sua
mudança nas diferenças capas arquitetônicas, e o respaldo desses limites na experiencia coletiva
do espaço da cidade. O segundo que se dispõem pesquisar a cidade de Salvador como construção
histórica, e legislativa. Entendendo sua origem, influências políticas e econômicas, porém sempre
retomando a análise no resultado de suas políticas na construção morfológica histórica (suas capas
arquitetônicas). O terceiro, por fim, é a pesquisa levantamento e análise dos limites projetuais em
diferentes recortes, mas tendo principal foco, os bairros objeto de estudo, bairros da capa imobiliária
da cidade. A pesquisa sobre esses bairros tem como objetivo entender como o mercado imobiliário
e sua lógica capitalista determina a expansão da cidade a partir de sua massiva atuação no final do
século XX na cidade de Salvador. O objetivo não é isolar a análise da forma pela forma, porém sim
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apontar os potenciais sociais na construção da cidade, e como se posiciona o modelo capitalista
nesse cenário.

Hoje a pesquisa se encontra em foco no primeiro eixo de pesquisa, principalmente na


revisão bibliográfica que investiga historicamente a composição do espaço por ferramentas do limite
entre tipo edificado e coletividades, as relações da cidade e poder de Foucault, bem como os
processos e sociais e históricos da cidade Brasileira.

f. Cronograma

Tendo cumprido 10 dos 20 créditos em disciplinas do curso enquanto aluno especial (nas
disciplinas: Arquitetura e Urbanismo Contemporâneo na América Latina, CR=03, Historiografia e
Crítica da Arquitetura Moderna, CR=03 e Teorias da Cidade, CR=04) o objetivo é concluir os demais
créditos de disciplinas do curso até o fim do primeiro ano como aluno regular do programa de
Doutorado. Distribuindo então, os créditos de Trabalhos Programados (CR=06) no desenvolvimento
da pesquisa acompanhando o cronograma de preparação para os exames de qualificação I e II,
bem como previstos em regimento interno do PPGAU. Com a bagagem dos cursos e
aproveitamento de crédito como aluno especial, o objetivo é concluir pesquisa e tese anterior aos 8
semestres permitidos para o programa de Doutorado.

g. Referências bibliográficas:

(SALVADOR, Lei Nº 9.281/2017, de 03 de outubro de 2017, Institui normas relativas à


execução de obras e serviços na cidade do Município de Salvador, e dá outras providências.
Prefeitura Municipal de Salvador, Seção III, Art. 40);

ALBAN SUAREZ, Naia. Morfologia urbana en la ciudad de Salvador/Brasil: nuevos barrios


proyectados y su relacion con la ciudad heredada.1995. 2 v.

BRESCIANI PRIETO, Eduardo. ¿Arquitectura inmobiliaria o inmo vs iliaria? Architectural


Design (nº69), 1999. pp. 80.

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FIGUEIREDO, Glória Cecília dos Santos. Produção imobiliária da cidade de Salvador: entre
o público e o privado. Salvador, BA: EDUFBA, 2015. p.284-285 ISBN 97823213435 (broch.).

FOLIN, Marino. La ciudad del capital y otros escritos. Editora GG Ediciones. Mexico, D.F.
1977.

HUET, Bernard. “Organização e requalificação de espaços públicos em Paris”. Em: “Os


centros das Metrópoles”. Terceiro Nome, 2001. pp. 157

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IOMMI, Godofredo. CRUZ, Alberto. CRUZ, Fabio. EYQUEM, Miguel. DEGUY, Michel.
SIMONS, Edison. Amereida. Editorial Cooperativa Lambda, Santiago do Chile, 1967.

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España, 2011 [título original: The Death

and life of Great American Cities. 1961] pp. 415

MARICATO, Ermínia. Habitação e cidade. Atual Editora, 2002 pp 42-43

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