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ESPORTIVAS E AS
CIDADES
Simone Rechia
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1. A Cidade
Para essa análise, partimos dos estudos do GEPLEC2, que adota como
objetos de reflexão espaços públicos da cidade de Curitiba, especificamente
parques, praças, escolas e centros culturais/esportivos, os quais representam
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Atividades Físicas e Esportivas.
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Grupo de Estudos e Pesquisa em Lazer, Espaço e Cidade, situado no Departamento de Educação Física da
Universidade Federal do Paraná (UFPR).
espaços fixos destinados, entre outras coisas, a vivências no âmbito do lazer ligadas,
muitas vezes, às AFEs.
entre sonhar com uma vida que contemple espaço e tempo para essa experiência e
a triste realidade da precarização do mundo do trabalho, que muitas vezes, não
permite tal efetivação.
Quanto aos cidadãos e a relação com a cidade, vale ressaltar que o direito
ao lazer mantém-se a partir do diálogo, da parceria, do interesse, da luta, do pacto
entre direitos e deveres, entre cidade e cidadão, visando o "conviver" nos grandes
centros urbanos. Para tanto, deve haver mútua confiança entre gestão pública e
cidadãos, para que possamos de fato passar desse sonho à realidade.
Para reforçar essa ideia de uma cidade mais humana, Lerner (2013, p. XII),
no prólogo à edição brasileira do livro Cidade para as Pessoas, salienta que “se a
vida, como disse Vinicius de Moraes, é a arte do encontro, a cidade é o cenário desse
encontro – encontro das pessoas, espaço de trocas que alimentam a centelha criativa
do gênio humano”. Encontro deve se traduzir em qualquer momento de convivência
com a cidade, seja no trabalho, no transporte e também no lazer. Se as possibilidades
desses encontros forem alteradas, e deixada em segundo plano a dimensão humana
e cultural, essência do fenômeno lazer, nos distanciamos de nós mesmos, do outro,
da natureza e da busca por uma cidade melhor para todos. Afirmamos isso baseados
na ideia de Gehl (2013, p. 63) de que existe uma conexão direta entre a oferta de
melhorias para a vida das pessoas e os comportamentos coletivos para se obter
cidades vivas, seguras, sustentáveis e saudáveis. Esse autor salienta que as cidades
devem ser mais atraentes que o espaço privado. Devem ser acessíveis e abertas a
diversidade, e a sustentabilidade, de modo a pensar nas gerações futuras.
Assim, uma discussão sobre uma boa cidade, ou um bom modelo de espaço
público para as AFEs, não deve se prender a questões puramente estruturais.
Permanecer nesse terreno significa cair em certos (des)encontros e perder de vista
o caráter social, educacional e ambiental de um planejamento urbano. Em outras
palavras, a produção dos espaços deve representar as práticas e valores sociais de
cada época, de cada bairro e de cada demanda social.
O que representa uma “boa cidade”, um bom parque, um bom espaço infantil
para arquitetos e gestores não necessariamente é interpretado da mesma maneira
pelos ambientalistas, educadores, pesquisadores e usuários. Muitas vezes, os
usuários, sejam pessoas ou instituições, com necessidades, experiências e opiniões
diferentes, sofrem as consequências dessas concepções, principalmente ao serem
obrigados a conviver com soluções urbanas problemáticas causadas por equívocos
em projetos, muitas vezes, considerados adequados pelos tecnocratas.
Dessa maneira, embora a beleza do espaço, segundo Borja (2003), não seja
um luxo, mas um direito indispensável para que se efetive a justiça democrática,
deve-se sempre associar as transformações dos espaços aos interesses dos
usuários, no caso, às práticas cotidianas já estabelecidas nos lugares de lazer.
Vale ressaltar que este estudo também conclui que privatizações como essa
poderiam trazer benefícios para a cidade se fossem desenvolvidas para a cidade, e
não somente para os interesses dos concessionários. É necessário que haja critérios
mais claros para a efetivação dessas concessões e ampla divulgação e participação
popular nesses processos.
Dessa forma, entende-se que as obras realizadas pelo poder público ou por
concessões ao poder privado muitas vezes são somente maquiagens usadas
basicamente para conseguir vender a “boa imagem” dos ambientes urbanos,
geralmente deixando os desejos do cidadão em segundo plano. Para que haja uma
conexão possível entre espaços de lazer, cidades e as AFEs é necessário ouvir e
respeitar as demandas oriundas do cidadão.
Gehl (2013) destaca que tais práticas sociais podem ser atividades
necessárias (tendo enfoque de obrigatoriedade); atividades opcionais (quando existe
um desejo em realizá-las); e atividades sociais (atividades em que há necessidade
de outras pessoas nos espaços públicos; podem ocorrer em vários espaços; e devem
ser espontâneas).
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Para Lefebvre (2001, p. 52), a ordem próxima tem relação com as “relações dos indivíduos em grupos mais ou
menos amplos, mais ou menos organizados e estruturados, e as relações estabelecidas entre eles e a ordem
distante, a ordem da sociedade regida por grandes e poderosas instituições (igreja, Estado), por um código jurídico
formalizado ou não, por uma ‘cultura’ por conjuntos significantes”.
Com estudos do GEPLEC, foi possível realizar uma análise mais ampla e
ao mesmo tempo verificar questões específicas sobre os espaços urbanos
destinados a todas as fases, desde a infância ao envelhecimento. A princípio, pelo
fato de haver parques no meio urbano, seria possível pensar que as cidades são
ambientalmente corretas, no entanto, mais especificamente, ao analisar
qualitativamente seus equipamentos, constata-se que há necessidade de repensar
os modelos adotados se a intenção for de fato garantir ao indivíduo em todas as suas
fases de vida, desde a infância até o envelhecimento, os princípios da racionalidade
ambiental apontados por Leff (2001): (re)apropriação da natureza, (re)significação
das identidades individuais e coletivas e valores do humanismo.
Leff (2001) alerta que “a vida foi transtornada pela lógica do mercado e pelo
poder tecnológico, levantando um problema ontológico, epistemológico e ético sem
precedentes”. Para reverter esse processo, o ambientalista defende a tese de que
“novas formas de significação do mundo, da vida e da natureza” originam “um mundo
onde caibam muitos mundos”. Também enfatiza que “a mudança nunca vem de cima,
mas de baixo, quando há uma autêntica mobilização social” (p. 108). Um bom
exercício cidadão para a mobilização social, em prol da defesa ambiental, seria a
apropriação dos espaços de lazer das cidades brasileiras.
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Tais como: Amaral (2002); Bramante (1998); Marcellino (1998); Mascarenhas (2005); Pacheco (2006); Stigger
(2002); entre outros. Já no caso da realidade específica de Curitiba, temos: Cagnato (2007); França (2007);
Gonçalves (2008); Gonzaga (2010); Oliveira (2009); Rechia (2003); Tschoke (2010); entre outros.
O meio urbano estaria, então, para alguns, mais voltado a trocas financeiras
e econômicas, porém muitos sujeitos que vivem nesses centros reivindicam outras
demandas de uma cidade, como viver com mais qualidade, uma “cidade viva e
pulsante”. Vale ressaltar que viver com mais qualidade requer aspectos objetivos –
moradia adequada, educação, saúde, trabalho, mobilidade urbana, espaços e
equipamentos de lazer, etc. – e subjetivos – sentimento de segurança e
pertencimento, possibilidades de diversão, consumo, reinvenção e produção da
cultura, respeito à diversidade, inclusão, sociabilidade, entre outros – do cotidiano.
Nessa direção, ficam também as questões: Quem no Brasil tem acesso aos
parques e às praças das grandes cidades para realizar AFEs? Essas práticas podem
ser realizadas nas periferias dos grandes centros urbanos? Há espaços para isso?
Existem políticas públicas efetivas em relação a esse acesso?
Porém, para que haja um avanço nessa perspectiva no meio urbano, não
bastam investimentos somente em espaços públicos de lazer, esporte e cultura, é
preciso pensar também nos espaços lúdicos escolares. Conforme aponta Soares
(2001, p. 15-16), no Brasil é dada certa ênfase aos espaços poliesportivos. Na
arquitetura das escolas brasileiras de ensino Fundamental e Médio, mesmo as de
estruturas arquitetônicas precárias, os espaços destinados às práticas corporais são
constituídos por quadras poliesportivas. Até mesmo nas que têm arquitetura e
equipamentos considerados ideais há quadras. Embora a análise reforce a ideia de
não haver problemas de a escola ter ou não espaços dessa natureza, adverte que
fica difícil pensar em práticas corporais diversificadas no meio urbano se na escola
essas práticas já estão “domesticadas pela cultura do treinamento esportivo e todo o
seu aparato científico”. Talvez por isso “aquele passeio num parque ou mesmo nas
ruas do bairro onde se vive torne-se agora somente exercício”, e não uma prática
social que envolve contato consigo mesmo, com o outro e com a natureza no meio
urbano.
Para Jan Gehl (2013), “nenhuma criança pede de Natal algo que não
conheça, e as pessoas nunca vão pedir que sejam feitas em suas cidades melhoras
que já não estejam em seu repertório”. Dessa forma, procura-se incentivar que as
pessoas inicialmente se informem sobre quais possibilidades de qualificação para os
espaços desejariam ver concretizadas no meio urbano.
Mas quem são esses jovens que andam por parques e ruas equilibrando-se
em uma prancha com rodinhas e (re)significam os espaços urbanos? Segundo a
pesquisa do Instituto DataFolha (2015) 11% dos domicílios brasileiros possuem pelo
menos um morador que pratica ou anda de skate. Com maior predominância entre
os residentes nas regiões metropolitanas no Sudeste. Em todos os locais
pesquisados cresce a presença de skatistas Dentre as centenas de pistas
espalhadas pelo país, a Confederação Brasileira de Skate (CBSk) fez um ranking
para eleger os dez melhores skate parks públicos do Brasil (CATRACA LIVRE, 2016).
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Prática corporal ou disciplina que concilia habilidades naturais como: escalar, correr, saltar, andar sobre quatro
apoios, equilibrar-se, com o principal objetivo de tornar o corpo mais ágil, fluente e eficaz em qualquer espaço
possível (SERIKAWA, 2006).
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O projeto foi lançado pelo governo federal em 2010, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC
2). Um comitê gestor do programa ficou responsável pela seleção dos municípios que deveriam receber as Praças
CEU. Por meio da parceria entre a União e os municípios, 98 unidades já foram concluídas e inauguradas, e outras
243 seguem em construção (NASCIMENTO, 2016).
Fonte: IBGE – Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por
amostra de Domicilios, 2014- 2015.
(44,5%). São Paulo apresenta 47,9% de pessoas com excesso de peso. A proporção
no Rio de Janeiro é de 49,6%, e no Distrito Federal, de 49,1%.
Já a capital com mais obesos é Macapá (21,4%), seguida por Porto Alegre
(19,6%), Natal (18,5%) e Fortaleza (18,4%). As capitais com menor quantidade de
obesos são: Palmas (12,5%), Teresina (12,8%) e São Luís (12,9%). Em São Paulo,
a proporção de obesos é de 15,5%; no Rio de Janeiro, o percentual é de 16,5%; e
no Distrito Federal, os obesos representam 15% da população. A obesidade se
apresenta como uma epidemia a ser combatida, e as AFEs realizadas no tempo e
espaço de lazer podem ser um importante meio de reverter essa realidade.
Pode-se então observar uma relação direta entre estilo de vida urbano,
obesidade e falta de AFEs cotidianas, repercutindo na falta de habilidade motora e,
consequentemente, estimulando a entrada em um círculo vicioso: a criança não faz
atividades motoras, por isso ganha peso e fica com a saúde global comprometida, e
consequentemente não terá prazer em realizar práticas corporais, fragilizando sua
relação com o meio social e ambiental ao longo da vida.
Gehl (2013, p. 112) também afirma que o preço da falta de AFES como parte
da vida cotidiana é alto, pois gera diminuição da qualidade de vida, significativo
aumento nos custos da saúde e reduz a expectativa de vida. Para ele, uma resposta
lógica e valiosa para esses novos desafios seria o poder público “proporcionar
oportunidades para exercícios físicos e para algum tipo de autoexpressão”.
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Construído em 1970 pelo então prefeito Paulo Maluf, o Elevado Presidente João Goulart, nomeado anteriormente
de Elevado Presidente Costa e Silva e popularmente conhecido como “Minhocão”, começa no bairro de Perdizes,
na Zona Oeste da cidade, e vai até a Praça Roosevelt, no centro. Com 3,4 quilômetros de extensão, faz parte da
ligação leste-oeste e passa sobre a Rua Amaral Gurgel e a Avenida São João.
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Aqui, a definição “marca identitária” é utilizada no sentido dado por Yázigi (2001, p. 49), que entende a ideia
identitária de um lugar como uma “diferenciação espacial que reúna um conjunto de características, fundamentada
na geografia física; em suas instituições; sua vida econômica, social e cultural (com destaque para a paisagem
construída). Trata-se de um fenômeno total, não reduzível a uma única propriedade, sob o risco de perda de seu
caráter [...] a identidade regional é acentuada pela natureza e a identidade local por todas as formas de construção
arquitetônico-urbanístico, com tudo que comportam em si”.
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