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Reflexões conceituais: o espaço livre público como o espaço da

experiência
Bibiana Beretta (1) Jaqueline Andrade (2)
(1) Curso de Arquitetura e Urbanismo, UNIESP, Brasil. E-mail: bibianaberetta@yahoo.com.br
(2) Curso de Arquitetura e Urbanismo, UNIESP, Brasil. E-mail: jaqueaandrade@gmail.com

Resumo: Os espaços livres públicos urbanos são peças-chave para a sociabilidade e a vida pública
das pessoas que vivem nas cidades. A eles muitas funções ainda podem ser atribuídas: de lazer, de
contemplação, esportiva, ecológica, sociocultural e recreativa. Diante a tantas funções, muitos são as
reflexões conceituais que os envolvem. Entretanto, há algo em comum entre tantas atribuições: a
dimensão humana da experiência, discutida neste artigo através de conceitos como a espacialidade e
a esfera pública. Assim, os espaços livres públicos atuam no cenário urbano como possíveis pontos
estratégicos para o planejamento das cidades a fim de qualificar a vida das pessoas.
Palavras-chave: espaços livres públicos; dimensão humana; espacialidade; esfera púbica.

Abstract: Urban public open spaces are key piece for sociability and the public life of people living in
cities. Many functions they can still be assigned: leisure, contemplation, sports, ecological,
sociocultural and recreational. Faced with so many functions, many are conceptual reflections that
surround them. However, there is something in common among many assignments: the human
dimension of experience, discussed in this article through concepts such as the spatiality and the
public sphere. Thus, public open spaces act in the urban setting as possible strategic points for
planning cities in order to qualify people's lives
Key-words: urban public spaces; human dimension; spatiality; public sphere.

1. INTRODUÇÃO
Os espaços livres públicos urbanos atuam como componentes de um cenário invólucro da vida
humana. São, desde a Antiguidade, espaços de grande valor para a cidade e para a efervescência da
esfera pública. No entanto, numa época em que a individualidade e o particular imperam sobre o
coletivo e o público, estas áreas urbanas vêm perdendo sua essência e vitalidade. Cabe, portanto, aos
projetos de arquitetura e urbanismo o grande papel de reivindicar o espaço livre público como
estratégia nos planejamentos urbanos e na sociabilidade da vida humana.
Para despertar esta consciência e esclarecer seu papel social e de bem-estar na cidade, o presente
artigo propõe uma reflexão teórica sobre sua associação com a dimensão humana da experiência.
Conceitos como o da espacialidade e da esfera pública acabam por revelar como o espaço público
pode ser palco das práticas de vivências, necessárias ao ser humano. E, sob outro ponto de vista, a
importância de seu estudo e criação a partir de uma essência espacial, onde o corpo ao movimentar-se
desfruta e configura o espaço percorrido, experienciando-o e determinando-o.
Antes de tudo, entretanto, é preciso conhecer o termo espaço público, esclarecendo sua definição e
principal conceituação. Assim sendo, a reflexão já permeia o olhar da essência experiencial, sem
esquecer do seu papel estruturador no território urbano e sua força sistêmica quando em continuidade
e conexão, afirmando ainda mais seu protagonismo. É importante ressaltar que como intenção
principal, foca-se o estudo naqueles que servem como palco da esfera pública: os espaços livres
urbanos de domínio público. Após esta apresentação, será discutido especificamente sobre os

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conceitos que despertam sua relevância na condição de vida humana a partir da experiência e suas
decorrentes relações com as manifestações físicas e psíquicas do corpo.

1.1. Objetivo
O presente estudo tem por objetivo propor uma reflexão teórica a respeito da relação dos espaços
livres públicos e suas práticas de vivência, no sentindo de esclarecer seu papel social e de bem-estar
da cidade associada com a dimensão humana.

1.2. Justificativa
Tomar consciência da relevância dos espaços livres públicos para o planejamento das cidades e para a
melhor qualidade de vida das pessoas que vivem nelas incentiva novas perspectivas para o urbanismo.
A partir de reflexões conceituais sobre estes espaços e sua relação com a experiência, é possível
fomentar a construção de cidades pensadas para as pessoas, desencadeando uma série de soluções
para os problemas atuais do meio urbano.

1.3. Método empregado


Trata-se de um artigo de caráter teórico fazendo uso de revisão bibliográfica para a compreensão do
tema. Sendo um procedimento de documentação indireta, a pesquisa bibliográfica representa a fonte
de obtenção dos conteúdos referenciais teóricos, possibilitando o alcance do objetivo anteriormente
citado.

2. ABORDAGENS CONCEITUAIS
A seguir serão abordadas as reflexões teóricas envolventes ao tema apontado.

2.1. Espaços livres urbanos: definição e conceituação


Basicamente, pode-se definir os espaços livres urbanos como os espaços não ocupados por
edificações e ao ar livre. Ruas, avenidas, parques, praças, calçadas, rios, matas, praias urbanas, por
exemplo, configuram o sistema complexo de espaços livres na cidade que corresponde, quase sempre,
ao maior percentual do solo das cidades brasileiras, mesmo entre as mais populosas (MAGNOLI,
1982).
Por outro ponto de vista, pode-se conceituar os espaços livres como sendo os espaços vazios. A partir
desta suposição, idealiza-se o vazio como figura, e é dessa forma que o estudo dos espaços livres
torna-se ainda mais interessante. Nas palavras de Aguiar (2010, p. 18), ao definir o vazio como
“naturalmente, o domínio espacial do corpo e cenário onde o movimento do(s) corpo(s) acontece”, é
clara a possível relação e coincidência conceitual de vazio e espaço livre urbano. O destaque relevante
do vazio, e sua consequente espacialidade, acabam por contrariar o hábito, por sua vez viciado na vida
acadêmica, de enxergar a arquitetura e o urbanismo através da visualização dos objetos (AGUIAR,
2010). A ideia do vazio, associada aqui ao espaço livre urbano, como cenário do movimento humano
sustenta a visão do papel social inerente ao espaço livre, principalmente àqueles de ordem pública.
Estes espaços podem ser percebidos como palco das atividades humanas, dos encontros e das trocas
de ideias, capazes de restaurar uma sociedade expressiva quanto às suas ideologias e expressões
políticas; destacando, assim, o potencial destes espaços e, consequentemente, a relevância de seu
estudo e atenção.
Além do papel social, os espaços livres urbanos estão diretamente relacionados com a forma e
estrutura urbana. De acordo com Tardin (2008), os espaços livres devem ser estratégias projetuais
capazes de estruturar o território urbano e ordenar as possíveis futuras ocupações. Estes espaços,
portanto, são valiosas ferramentas de intervenção urbanística e devem ser vistos como uma nova

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maneira de interpretação do território. Tardin (2008) ainda atenta sobre a importância de perceber os
espaços livres como um sistema complexo e de valor próprio, que se relaciona com o seu entorno e
com todos os outros sistemas urbanos existentes. A ordenação do sistema de espaços livres tem
capacidade de compactar as consolidações urbanas, evitando problemas comuns às cidades dispersas,
como excessiva impermeabilização do solo e elevado consumo de energia. Assim sendo, ao
protagonizar os espaços livres nas estratégias de planejamento urbano, pode-se redirecionar a
expansão da cidade, de maneira a limitar, ordenar e qualificar os processos acelerados de construção.
Logo, através destes potenciais, percebem-se as funções essenciais dos espaços livres, que vão além
do estudo arquitetônico-urbanístico: funções biofísicas, relacionadas com os processos naturais;
funções perceptivas, relacionadas com a percepção visual; funções urbanas, relacionadas com a
estrutura e forma urbana (Tardin, 2008). Em outras palavras, sob outro ponto de vista, exemplifica-se
melhor ao dizer que:

No ambiente urbano, os espaços livres de construção assumem várias funções, tais


como oferecer iluminação e ar aos edifícios altos situados no centro da cidade; dar
oportunidade ao cidadão satisfazer suas necessidades de ocupação do tempo livre
(física, psicológica e social) e propiciar que áreas relevantes, com características
únicas, possam ser preservadas e conservadas. Assim, as principais funções dos
espaços livres de construção são: recreativa, educativa, ecológica e estética ou
paisagístico-integradora (MAZZEI, COLESANTI, SANTOS, 2007, p. 37).

Cabe ainda lembrar que o conceito de espaço livre dentro da cidade abrange tanto os espaços de
ordem pública quanto os de ordem privada. Ou seja, abrangem tanto as ruas e avenidas como os
quintais dos lotes de edificações. Todavia, é apropriado chamar de espaço público não somente
aqueles de propriedade pública, mas sim aqueles em que o público apropria-se por serem espaços
receptores das ações da esfera pública (ALVARES, VAINER, QUEIROGA, 2009). Assim, todo o
espaço aberto e de livre acesso às pessoas pode ser determinado como espaço público. Sobre a precisa
definição e diferença entre espaço público e espaço privado, podemos salientar as palavras de Vaz
(2005, p. 155):

O “público” parece produzir-se em oposição ao “privado” (provavelmente diferente


do conceito de “publicidade”). O “privado” funda-se sobre limites bem definidos. A
concepção do espaço privado deriva, portanto, por sua própria natureza material e
concreta, de limites estabelecidos por princípios de propriedade e de função,
enquanto o espaço público é um espaço concreto “aberto” e “livre”, sujeito,
portanto a indeterminações.

A contribuição dos espaços livres para a cidade e seus habitantes é incalculável. Atuam como agentes
sociais, como constituintes determinantes na forma urbana e como poderosos artifícios no sentido de
um planejamento urbano eficiente quanto à sua sustentabilidade. Além do que, a ideia de continuidade
inerente a estes espaços expõe a necessidade de considerarmos, estes, partes de um sistema em
oposição às costumeiras intervenções pontuais nos espaços livres. Acredita-se na potencialidade
destes espaços a favor da qualidade de vida daqueles que moram no meio urbano, principalmente
quando retratam um sistema contínuo, qualificado e acolhedor das atividades humanas.

2.2. O espaço da experiência: espacialidade, dimensão humana e esfera pública

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É claro, portanto, que a definição e a conceituação acerca do espaço livre público trazem a ideia de
uma lógica social. Ou seja, a ideia da sua ligação direta com a dimensão humana. E é sobre este ponto
de vista que se pretende entender o espaço urbano como o espaço da experiência, envolvente do corpo
– nas suas propriedades físicas e mentais. Desencadeando, assim, conceitos fundamentais como a
espacialidade e a esfera pública, determinantes desde a fase de criação do espaço.
É importante esclarecer que, quando se fala em espacialidade, segundo Aguiar (2010), refere-se à
inserção no espaço do corpo em movimento. Este conceito leva à ligação fundamental entre o desenho
do espaço e o comportamento das pessoas. O tema da espacialidade, entretanto, é uma reflexão
relativamente recente no campo da arquitetura e urbanismo, ao contrário de outros campos que
estudam a concepção espacial desde a Antiguidade. A visão superficial da arquitetura como uma
representação de classes, de edifícios como objetos de desejo, explica os estudos formais e plásticos
predominantes desde os primeiros contatos do meio acadêmico. Em uma época de arquitetura de
espetáculos, a espacialidade pouco é estudada e tomada como foco principal. Contudo, não é preciso
extinguir os estudos da dimensão estética, até porque se acredita aqui que a beleza é consequência de
uma rica percepção espacial. A questão é o modo como se percebe a arquitetura, de como se faz
contato com ela. Em princípio, é importante esclarecer que quando se refere aqui somente ao termo
arquitetura, entende-se este como atuante tanto na escala do edifício quanto na escala da cidade. Isto
por se acreditar que, indiferentemente da escala, fala-se da arquitetura dos espaços; ora da arquitetura
dos edifícios, ora da arquitetura da cidade.
Para analisar as origens do estudo acerca do tema, é possível apresentar as reflexões newtonianas
como raíz, assim como discute Aguiar (2010). A grande contribuição à nossa cultura arquitetônica é
sua distinção entre espaço absoluto e espaço relativo. O primeiro, por sua vez, permaneceria
eternamente igual e imóvel; já o segundo seria uma parte deste espaço absoluto “determinada por
nossos sentidos com base na posição dos nossos corpos” (AGUIAR, 2010, p. 19). Dessa maneira, uma
relevante concepção é introduzida: o espaço da experiência, o fundamento deste estudo. Ele distingue
claramente a diferença entre um espaço relacionado ao corpo – corpo humano – e o espaço abstrato de
origem matemática e geométrica, sem nenhuma relação externa.
Estas contribuições comprovam a interdisciplinaridade no estudo da arquitetura e do urbanismo, ao
relacionar estudos na área da Filosofia, Sociologia, Geografia, Antropologia, entre outros,
contrariando a exclusividade atual dos estudos técnicos de engenharia e aos plásticos de fins estéticos.
Podemos extrair, até os dias de hoje, contribuições muito positivas vindas de outras áreas de estudo.
Como, por exemplo, a análise do poeta Manoel Ricardo de Lima que expõe a inter-relação entre
experiência e construção da paisagem, em que afirma que o “mundo se divide em quarto, rua e
paisagem” (LIMA, 2013, p. 12), salientando a importância entre espaço-corpo-território. As
associações com outras áreas de estudos são muitas, mas o relevante é entender o quão os aspectos
humanos, ou ainda a antropologia, está diretamente relacionada com os processos arquitetônicos e
urbanísticos, ou seja, a criação do espaço.
Sobre esta linha de pensamento na teoria da arquitetura, pode-se dizer que a introdução da experiência
no tema do espaço, despertada por cientistas e filósofos, desencadeou uma série de estudos. Surgem,
portanto, como um despertar do olhar para a dimensão humana inerente ao manejo do espaço.
Manejo, este, o qual nós atribuímos aos profissionais de arquitetura e urbanismo.

E é na arquitetura que um conceito mais antropológico de espaço se desenvolve;


isso porque é no contexto da arquitetura que o corpo – o corpo humano – se torna a
base para a experiência e recepção dos espaços construídos. O papel do corpo é
central. (…) Nesse contexto, o espaço, também na teoria da arquitetura, passa a ser
algo definido pelo movimento do corpo; tanto do ponto de vista da ação quanto da
percepção. Esse modo espacial de perceber, conceituar e exercitar a arquitetura

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torna-se o modo dominante na primeira metade do século XX. (AGUIAR, 2010, p.
19)

É interessante ainda citar, neste estudo histórico e referencial do tema, a ideia de que “os corpos não
apenas se movem no espaço, mas também criam espaços produzidos por e através dos seus
movimentos” (TSCHUMI 1994, p. 111 apud AGUIAR, 2010, p. 38). A partir daí, descobre-se a
importância de analisar a maneira como ocorre a acomodação do corpo no espaço. Através deste
pensamento, Tschumi ainda critica a representação arquitetônica limitada a plantas baixas, cortes e
fachadas. Segundo o arquiteto, deveria haver uma ampliação nas representações arquitetônicas onde
descreveríamos o movimento dos corpos.
Ao passear pela evolução histórica do tema do espaço, pode-se observar sua extrema relevância para o
campo arquitetônico. Ao mesmo tempo, é difícil entender como um tema tão importante e já pensado
desde a Antiguidade, hoje ainda parece raro no meio profissional e principalmente no meio
acadêmico. Geralmente, a relação do corpo é presente apenas em estudos ergonômicos instituídos e
pré-determinados. Ou seja, a experiência do corpo pouco participa do processo e da fundamentação
do projeto arquitetônico e urbanístico. Esta crítica pode, inclusive, servir para todos os saberes
humanos e suas atuais tendências de conhecimentos baseados em especialidades. Como diz Chauí
(1981, p. 8):

Em uma palavra: o homem passa a relacionar-se com a vida, com seu corpo, com a
natureza e com os demais seres humanos através de mil pequenos modelos
científicos nos quais a dimensão propriamente humana da experiência desapareceu.

Quando se pensa em arquitetura e urbanismo, precisa-se pensar na sua essência espacial. O modo de
fruição dos corpos no espaço define a essência a qual seguir no processo projetual, tanto na escala do
edifício quanto na escala da cidade. A relevância da análise do corpo em movimento, de como ocorre
a acomodação deste no espaço ligada à direcionalidade nele inerente, resumem a intenção de fazer
este estudo e de atentar sobre a dimensão humana. É esta essência que deve predominar desde a
definição do tão conhecido programa de necessidades até o modo de representação gráfica. São as
experiências humanas que definirão as funcionalidades do projeto. E são essas mesmas experiências
que desfrutarão e avaliarão o êxito dos nossos desenhos, o sucesso do espaço.
Resumidamente, pode-se concluir que as experiências humanas traduzem uma lógica social que é
diretamente relacionada com a lógica configuracional do espaço. E não somente desta relação que
afirmamos aqui a possibilidade do espaço livre público comportar-se como o espaço da experiência.
Além da espacialidade envolvida, revelando sua grande associação com o corpo e seu movimento
condicionante ao processo de criação, o espaço público revela um universo de possíveis vivências
relacionadas com a psique humana. Em outras palavras, continuamos afirmando a lógica social do
espaço agora sob o ponto de vista das relações humanas que envolvem a convivência dos seres e,
ainda, a manifestação de atividades culturais e artísticas. Um leque de possíveis práticas humanas que
agregam um grande valor à condição humana se praticadas dentro de uma esfera pública.
Como já se comentou anteriormente, os espaços livres são os receptores destas manifestações. Pode-
se, então, entender o conceito de esfera pública como o domínio das atividades socioculturais
presentes na vida pública de uma sociedade. Mais profundamente, “a esfera de vida pública é a esfera
própria da vida ativa, da ação política, entendida em sentido amplo, envolvendo a produção cultural, a
construção da cidadania e parte fundamental das próprias histórias civilizacionais” (ARENDT, 2007,
p. 12 apud ALVARES, VAINER, QUEIROGA, 2009, p. 08). É, portanto, na esfera da vida pública
que acontece a convivência humana e ainda a pluralidade de grupos. Esta pluralidade, por sua vez, é

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incentivadora das diferentes perspectivas de vida enriquecendo a troca de ideias e consequentemente
os saberes do homem.
De acordo com Arendt (2007), é através da vida pública que constituímos a nossa noção do que é real.
Esta realidade, essencial à condição humana, é garantida pelas aparências, sendo esta, definida como
aquilo que é “visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos”. Para Arendt (2007, p. 67), o fato de ser
visto e ouvido por todos faz com que todos possam ver e ouvir diferentes pontos de vista e ângulos de
vida. Logo, é exatamente este o maior significado da vida pública que traduz a extrema importância
desta esfera na vida das pessoas. Esta importante diversidade e efervescência cultural, entretanto, são
cada vez mais enfraquecidas na modernidade. A predominância do valor privado sobre o público, da
singularidade sobre a pluralidade, da individualidade sobre a coletividade, declara atualmente a forte
crise a qual vivemos e que acaba por afetar todas as áreas de conhecimento do ser humano.
A arquitetura dos espaços urbanos tem grande papel na reconquista da esfera pública. Como defende
Netto (2012, p. 269), a tal reconquista depende das condições urbanas e arquitetônicas e deve partir do
“questionamento sobre a capacidade de nossas cidades em oferecer as condições materiais da ação
política, notavelmente a partir do seu papel em gerar encontro e densidade de comunicações no
cotidiano”. Assim, além de um despertar cultural, precisa-se efervescer a esfera pública através de
condições espaciais que incentivem o público, ou seja, as pessoas, a apropriarem-se do espaço
público. Isto é, precisamos criar espaços favoráveis a esses encontros e que abriguem uma contínua
presença de diversos tipos de grupos. E é neste ponto que poderíamos retomar a conceituação da
espacialidade, ligando novamente os conceitos aqui discutidos.
Cabe lembrar, no entanto, a necessidade de mudança quanto ao hábito de ligar os espaços públicos
urbanos apenas como perspectiva do “divertimento (hedonismo fugaz via consumo) e não para a
cultura e ação política (construtoras do cidadão e da cidadania)” (CUSTÓDIO et al, 2008, p. 03).
Sem, é claro, intencionar a exclusão desta função, mas apenas desincentivando o seu uso exclusivo.
Muitas vezes essa exclusividade do divertimento está relacionada à tendência atual dos espaços
urbanos serem priorizados exageradamente pelo interesse privado. Até mesmo naqueles espaços que
são julgados erroneamente como de acesso a todos, como em térreos de edificações destinados ao
comércio, estamos incentivando o setor privado e a segregação social. Cabe salientar, entretanto, que
não se está julgando aqui o quanto este tipo de proposta pode trazer vitalidade às ruas, e sim sua
incapacidade quanto à promoção da esfera pública. Assim pretende-se lembrar a importância do
encontro de estranhos, de diversos grupos e tribos que incentivem a pluralidade.

Uma reunião de estranhos é um lócus de imprevisibilidade endêmica e incurável.


[...] Os espaços públicos são locais em que os estranhos se encontram e portanto
constituem condensações e encapsulações dos traços definidores da vida urbana. É
nos espaços públicos que a vida urbana, com tudo que a separa de outras formas de
convívio humano, alcança sua expressão mais plena, em conjunto com suas alegrias
e tristezas, premonições e esperanças mais características... [S]em suprimir as
diferenças, de fato ele (o espaço público) as celebra. (BAUMAN, 2007, p. 102-
103).

É preciso estar atento e consciente quando se objetiva criar cenários de apropriação que incentivem a
pluralidade e que criem senso de propriedade. Estes espaços livres urbanos são a chave da
sociabilidade humana e potencializam a manifestação da esfera pública. Esta, portanto, é fenômeno
essencial à condição humana e permite uma vivência experimental sobre diversos pontos de vista, e
ainda, aspectos de vida, contrárias ao isolamento e à alienação da vida privada.

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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A relevância do espaço público para o planejamento urbano e para a vida das pessoas na cidade fica
clara diante às reflexões conceituais aqui apresentadas. Instigam a atenção por envolverem atributos
interdisciplinares, já que estes espaços funcionam de apoio à estrutura urbana, à conservação da
natureza, à paisagem da cidade e à condição de vida humana. Mais especificamente, a importância do
estudo do corpo ao movimentar-se, reconhecendo a arquitetura e o urbanismo a partir da
espacialidade, ou ainda, como uma arte social, surge aqui como um despertar. A partir dessa visão,
focamos o olhar na escala humana e nas necessidades inerentes do seu comportamento. Enxergamos,
assim, a urgência em planejarmos a cidade de acordo com sua lógica social e, consequentemente, com
as necessidades humanas. Estas, portanto, também reveladoras de uma condição ligada aos benefícios
de uma vida pública de trocas e coletividade contra a atual individualidade. Uma vida onde a
pluralidade, o encontro de estranhos e a convivência entre tanta diversidade acarretam em um resgate
de uma sociedade mais expressiva quanto aos seus ideiais, cultura e participação política.
Os conceitos aqui discutidos, portanto, mais que envolventes do tema, podem ser vistos como
condicionantes de projeto. Deste modo, delineando o raciocínio através de uma base no domínio
espacial do corpo ao longo das localidades de projeto. Ou seja, baseado nas principais atividades ali já
vividas e naquelas que ainda precisam e devem ser realizadas. Estas experiências revelam então a
esfera pública ambicionada, um dever de projetos urbanísticos. Logo, a possibilidade de todos estes
movimentos e permanências acontecerem publicamente traz efeitos consideráveis para a evolução
humana e a qualidade de vida no meio urbano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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