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Revista Políticas Públicas & Cidades - 2359-1552

Ermínia Maricato: as ideias no lugar correto, para tirar nossas ideias do lugar

Julio Cesar Botega do Carmo

Faculdade de Engenharias, Arquitetura e Urbanismo, e Geografia, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS), Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: juliobotega@yahoo.com.br

Introdução
Esse texto tem como base a influência que o pensamento da professora Ermínia Maricato exerceu sobre aqueles que
não foram diretamente seus alunos e, principalmente, fora da área específica da Arquitetura e Urbanismo, nesse
caso, estudantes e profissionais da Geografia, que interpretam o espaço urbano não no âmbito do projeto, mas da
teoria e da análise.

A influência do pensamento e dos escritos dos geógrafos sobre os estudos de planejamento urbano e regional e o
urbanismo são recorrentes e valorizados. Apoiam esta afirmação o conhecimento necessário aos urbanistas de textos
como os de Milton Santos, David Harvey, Michael Conzen, entre outros.

O caminho inverso, da influência teórica e analítica de arquitetos e urbanistas sobre o pensamento dos geógrafos
nem sempre é tão evidente. Maricato é uma das poucas urbanistas em língua portuguesa lidas, analisadas e
interpretadas pelos geógrafos. Não há como entender o processo de urbanização brasileira, a periferização
(sobretudo das metrópoles) sem a leitura atenta dos inúmeros escritos de Maricato.

O diálogo interdisciplinar é marcante nos seus escritos, daí sua importância na formação de pesquisadores e
profissionais da área do urbano nas mais distintas áreas (geografia, ciências sociais, engenharias etc). Exemplifica
isto a mesa na qual Ermínia participou no Simpósio Nacional de Geografia Urbana, em 2019, com o título: “Cidades e
revoluções: espaços públicos, comuns urbanos e redes sociais: diálogo interdisciplinar no campo dos estudos
urbanos e sociais”, onde dividiu a mesa com um dos baluartes da geografia urbana brasileira, a também professora
da USP, Ana Fani Alessandri Carlos.

Esta interdisciplinaridade que marca sua trajetória e é por ela defendida busca superar a ideia de que arquitetos e
urbanistas tendem a ser apenas pragmáticos, se comparados aos cientistas humanos e sociais. Como escreve
Holanda (2000) “há mais tradição analítica nas ciências sociais do que na Arquitetura como disciplina, essa última
mais caracterizada tradicionalmente como disciplina normativa e prospectiva; em outras palavras, mais voltada
diretamente para como as coisas deveriam ser do que para como as coisas são”(HOLANDA et al, 2000, p. 9).

Prossegue o autor afirmando que

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Haveremos um dia, quem sabe, de ultrapassar essas limitações históricas, em dois sentidos:
primeiro, as ciências sociais devem abandonar uma simples postura contemplativa, pela qual
apenas se explica como as coisas são, e avançar em propostas concretas de transformação do
status quo; segundo, a Arquitetura deve abandonar uma postura simplesmente normativa,
mas frequentemente irreflexiva, para instituir-se também como disciplina analítica, explicando,
em profundidade, a lógica da realidade atual, no seu campo fenomênico específico. (HOLANDA et
al, 2000, p. 9)
É essa transição que a professora Ermínia realiza. Maricato abandona a postura simplesmente passiva frente ao caos
urbano brasileiro, tornando-se respeitável por seu papel didático, metodológico, interdisciplinar; bem como sua
contribuição à descolonização do pensamento, suas atitudes frente aos mais distintos problemas disciplinares e ao
papel determinante no entendimento das questões sociais e de gênero. Em seu conceitual teórico e metodológico
encontramos questões e respostas que como pesquisadores devemos levar à sociedade.

Para este texto, recupera-se aquele que foi um dos mais influentes escritos sobre o pensamento acerca da cidade e
do planejamento urbano no Brasil, recorrente nos diferentes cursos de graduação e pós-graduação pelo país: “As
ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias” (MARICATO, 2000). Entender o papel ideológico do planejamento e a
dissociação entre espaços atendidos e os desatendidos têm sido fundamental na formação de estudiosos do urbano
pelo país.

Pode-se dizer que estudar o urbano enquanto ramo da ciência, nos leva a compreender suas modificações, capazes
de transformar o modo de se pensar a cidade, a vida das pessoas, os processos produtivos, as técnicas, os produtos
etc. os quais agrupamos em paradigmas. Estes são frutos sobretudo das realizações cientificas universalmente
reconhecidas, que, por determinado período, fornecem modelos e soluções a esta comunidade cientifica; modelos
que permitiram a apropriação deste campo, incluindo em seu cerne um conjunto de problemáticas e métodos,
variando conforme as concepções do momento, que debateram ao longo de sua história as questões julgadas
centrais, ou dominantes.

Maricato se insere no paradigma crítico do pensamento sobre o urbano. Com ela confirmamos que “o urbanismo
brasileiro (entendido aqui como planejamento e regulação urbanística) não tem comprometimento com a realidade
concreta, mas com uma ordem que diz respeito a uma parte da cidade, apenas” (MARICATO, 2000, p. 122).

A autora utiliza da distinção e da inteligibilidade, levando a compreender o impacto da lógica de separação no


funcionamento da cidade. Tem como base o materialismo histórico dialético, que rejeita a autonomia do espaço ou
sua exterioridade em relação à sociedade. Por materialismo podemos entender a materialidade do mundo, a
objetividade deste, fora e independente da nossa consciência, sendo um método do conhecimento da realidade em
desenvolvimento e com auto movimento (SANTOS, 2006). São conteúdos dialéticos a matéria e a consciência, o
espaço e o tempo, o velho e o novo, o conteúdo e a forma, a causa e o efeito, o geral e o particular, entre outros, sendo
a cidade vista como o lócus principal da acumulação do capital e da contradição entre capital e trabalho e entre a
sociedade civil e o Estado.

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Nesta perspectiva, o espaço urbano é um produto do homem, sendo a materialidade social, não organizada pela
sociedade, como assume o positivismo, mas produzido através do trabalho. Seria então o homem social o verdadeiro
sujeito da produção do espaço, razão pela qual é a partir dele que a discussão espacial procede. (ABREU, 1994, p. 257).
Assim, se o homem produz o espaço através do trabalho social, o espaço é também condição de existência do próprio
homem, fechando o ciclo das múltiplas e interatuantes determinações.

A autora apresenta como a utilização dos instrumentos ligados ao urbanismo pelo poder político criaram o que
chama de “cidade legal”, ligada ao mercado imobiliário, com conhecimentos aplicados a apenas parte da cidade.
Uma cidade ordenada, que reafirma e reproduz privilégios em detrimento da cidade ilegal, sem planos e sem ordem.
Um lugar fora das ideias.

Este lugar fora das ideias expõe a exclusão urbanística de grande parte da população, que passam a se utilizar de
mecanismos de ocupação ilegal, visto que são ignorados pela cidade oficial, onde formas urbanas pré-modernas
fortalecem a imagem da ilegalidade funcional, baseada em relações políticas arcaicas e aplicação arbitrária da lei.

A cidade brasileira como fruto de uma modernização incompleta e excludente, uma cidade disfuncional, onde as
questões de sustentabilidade, relações democráticas, igualdade, qualidade de vida e cidadania são continuamente
ignoradas. A consolidação do urbanismo de matriz modernista e funcionalista, tornou a cidade brasileira a expressão
da dominação política, econômica e ideológica, que o mercado imobiliário, restrito e especulativo, impõe sobre a
população da cidade ilegal.

A intensa utilização de planos urbanísticos, que não passavam de planos de discurso, expõe o uso do urbanismo
desvinculado da gestão urbana. O plano discurso se distancia da prática e o urbanismo se torna algo antiurbano, o
pior inimigo do urbano ao destruir a vida cotidiana dos citadinos.

O discurso que fundamentava o planejamento urbano no Brasil falava sobre direitos universais e cidadania,
enquanto na prática o que ocorreu foi a cooptação, o uso de favores, a discriminação e a desigualdade. Frutos da
importação de ideias como necessárias à sua evolução, o campo do urbanismo, sob a égide do embelezamento, se
transformou em planejamento urbano, a partir dos anos 1930. Baseado na técnica e na ciência, este pensamento se
estendeu até os anos 1990, passando pela Ditadura Militar da segunda metade do século XX, período em que se
instituiu, entre outros, a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano – PNDU, durante os quais Ermínia Maricato
se levantou enquanto ativista política. Se os Estados Unidos tiveram Jane Jacobs para revelar ao mundo os problemas
do urbanismo ortodoxo e da cidade-jardim, no Brasil, Maricato desnudou os processos nefastos de periferização e
exclusão e suas consequências, represetnado movimentos populares durante a constituinte de 1987, mas também
após os anos 1990, quando a emergência do pensamento neoliberal, levou à consolidação das “não cidades”,
periferias extensas, onde as casas são autoconstruídas, o transporte coletivo é precário e há falta de luz e água.

Para a autora, ao substituir o urbanismo, o planejamento urbano buscava definir propostas para a regulação do
espaço urbano, criando a legislação urbanística que implica em padrões de produção do ambiente urbano
construído. Um dos maiores colaboradores para a consolidação do planejamento urbano no Brasil e as características

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que possui até hoje, foi a imagem construída pela arquitetura moderna brasileira, que tinha a ambição de conduzir
o país à modernidade, sendo a expressão máxima desta modernização. Contudo, a arquitetura apresentada se
mostrou como algo absolutamente extraordinário, que nada tem a ver com o cotidiano ou com os reais problemas
da cidade, ou seja, com grande descolamento da realidade.

O planejamento urbano aprofundou a já extrema regularização do uso do solo, que na tentativa de resolver
problemas com a legislação se mostrou sem efeitos na realidade, visto que a partir de 1950 houve uma intensa
periferização das cidades, em especial São Paulo, metrópole laboratório da autora. Combinando lotes precários e
irregulares e autoconstrução das moradias, que se apresentaram como novas alternativas de moradias populares,
estes resultaram na própria produção da cidade, visto a incapacidade da regulação urbanística e das políticas
habitacionais.

Esta incapacidade refletiu na disseminação da cidade ilegal, que constitui uma realidade ignorada, onde a invasão
de terras é estrutural e institucionalizada, viabilizada pelo mercado imobiliário excludente e pela ausência de
políticas sociais, fazendo com que a invasão de terras no Brasil seja mais regra do que exceção. Mesmo na cidade
legal, o planejamento estratégico utilizado a partir de 1980, não foi suficiente para resolver os problemas, visto que
a despeito da extensa legislação, a mesma é flexibilizada por meio de mecanismos de corrupção.

Na cidade ilegal, a cidadania é restrita, visto que os planos se destinam apenas a outra parte da cidade. O laissez –faire
da cidade ilegal reflete sua realidade ignorada, produto do mercado imobiliário excludente, onde a população sem
condições financeiras vive em estado de exclusão territorial, a despeito da publicidade e da mídia criarem uma
imagem da cidade real que não passa de ficção. Frente à falta de opções à população e aos problemas cada vez
maiores das nossas cidades, a autora questiona o que fazer? Como diminuir o abismo que separa os lugares que estão
dentro das ideias daqueles em que as ideias sequer se apresentam? É a questão que se coloca hoje, urgindo por
resolução. Resolução esta que os planejadores urbanos ainda não foram capazes de resolver, seja pela falta de
vontade política, seja pela ineficiência dos órgãos de planejamento e dos teóricos de passarem à prática aquilo que
há anos já se sabe sobre o cenário urbano brasileiro.

Vemos então que para Maricato importa o ambiente construído pelo homem, a cidade. Sendo a organização do
espaço reflexa e afetando as relações entre os homens, a cidade reflete a ideologia que vem dos grupos e instituições
dominantes, sendo moldada pela dinâmica das forças religiosas, estatais, de mercado, ideológicas e culturais. Assim,
existe enquanto espaço criado, onde também se manifesta a cultura urbana, um acúmulo de forças, signos, símbolos
e sinais, visto que ao viver nas cidades “moldamos nossa sensibilidade, extraímos nosso sentido de desejos e
necessidades, e localizamos nossas aspirações a respeito de um ambiente geográfico que é em grande parte criado”
(HARVEY, 1980, p. 268). Na cidade os distintos espaços devem formar um espaço único, onde todos os outros
elementos resultem livremente distribuídos, ou seja, se torna um local aparelhado para as várias funções da vida
urbana, articulados pelas áreas que exercem centralidade, sobretudo de capital.

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A busca pela compreensão do desenvolvimento das cidades e da urbanização brasileira, entre outros
aspectos, foi o que levou os geógrafos a considerarem os escritos da professora Ermínia e a buscar compreender o
espaço sob a ótica do urbano. Daí a importância da compreensão do pensamento desta pensadora e a transformação
de seus estudos em material de pesquisa, com rigor científico, a fim de proporcionar a quem os leia entendimento
não apenas teórico, mas também práticos. Sua didática em palestras e encontros permite aos espectadores ficarem
atentos às características de cada texto por ela publicado, bem como a aplicação de métodos e teorias, a fim de poder
assimilar sua abordagem sobre o urbano e como realizar estudos se utilizando de cada um deles.

Outra importante contribuição de Maricato não apenas para a Geografia, mas para todos que se interessem pelo
estudo da urbanização no Brasil é a compartimentalização da mesma em três períodos. Apresenta as formas urbanas
pré-modernas no Brasil, que se estende do ano de Descobrimento do Brasil (1500) até a promulgação da Lei de Terras
(1850), marco na história de apropriação do solo no país. Neste período, apresenta o importante papel exercido pela
natureza, a metrópole (Portugal) e pela religião (principalmente a Igreja Católica) na conformação dos primeiros
núcleos urbanos, que vieram a se transformar na maior parte dos centros atuais. Nos ensina a autora que a natureza
representa a primeira condição e obstáculo para o estabelecimento urbano, por ser determinante das características,
localização e importância dos centros urbanos, principalmente por questões como sítio e salubridade.

A fase seguinte, de modernização incompleta e excludente, é o período de transição do colonial ao moderno, que se
dá no período entre a Lei de Terras e a instalação da Ditadura de Getúlio Vargas, iniciada em 1930. Neste momento
se tem a substituição gradativa do escravo pelo imigrante europeu, principalmente nas regiões Sul e Sudeste, bem
como os efeitos de se tornar um país independente, após 1822, levando à consolidação da “cidade brasileira”. A
construção de ferrovias levou ao surgimento de algumas das principais características das cidades brasileiras neste
período, e ligadas a elas, no litoral se elevam os portos e no interior as estações ferroviárias.

A implementação de novos métodos construtivos e o surto industrial, que desloca a economia do primeiro para o
segundo setor da economia, leva ao aparecimento das chaminés industriais nas áreas centrais e dos primeiros
arranha-céus. O uso de bondes, a chegada da energia elétrica, a separação entre Estado e Igreja e os primeiros surtos
de migração do campo para a cidade, as transformações das características do meio rural em urbanas e a ruralização
subsidiária da cidade também ajudam a caracterizar este período de transição da cidade colonial/imperial para a
cidade moderna da República.

A partir de 1930 se inicia o período que será denominado Período Moderno. Com a chegada de Vargas ao poder, este
período se estende até o fim da Ditadura Militar, em 1985. No período em que se dá a Ditadura Vargas temos no Brasil
a contratação dos primeiros planos urbanísticos e a discussão sobre a cidade passa a ter um maior aprofundamento
técnico e teórico, visto as trocas estabelecidas com profissionais brasileiros com o exterior, a vinda de profissionais
estrangeiros e o surgimento das primeiras faculdades específicas de arquitetura e urbanismo.

Neste momento se aprofunda a diferenciação entre campo e cidade através da industrialização intensa, que marca
a paisagem da cidade brasileira no século XX. A inserção do concreto armado nos métodos de construção e a

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popularização do automóvel levam à expansão da cidade brasileira de modo até então não visto. As grandes
metrópoles se consolidam e a Arquitetura e Urbanismo de estilo Moderno produzida no Brasil alcança a
internacionalização, cujo exemplo mais representativo seria a construção de Brasília.

OUrbanismo e a Arquitetura Moderna criaram então um corpo metodológico e jurídico-legislativo que enfatizava
questões distantes das prioridades da cidade, envolvidos em um sistema que se mostrou burocrático, voltado a
dados estatísticos, documentações e regras metodológicas consagradas, deixando de lado a questão principal –
relação espaço x sociedade – origem de toda problemática urbana contemporânea e com os quais Maricato é uma
das mais conhecidas arquitetas-urbanistas a romper.

Neste Urbanismo estava em formação um “novo homem”, adaptado à nova realidade, podendo ser encontrado em
qualquer parte do mundo. Para este “homem-tipo” foi concebida a “nova cidade”, a “cidade moderna”, onde
predominariam a velocidade, a novidade, a mudança e o movimento. Com esse cenário, a cidade, o palco do
desenrolar da civilização da indústria, seria a catalisadora de todas as transformações. Aos urbanistas caberia a
responsabilidade de projetar as cidades, materializando as verdades da nova civilização (CARSTENS et al, 1991, p.42
e 43).

Assim, buscavam analisar as relações entre as partes componentes e individualizar as principais variantes
distributivas, bem como “estabelecer as regras para agrupar livremente as moradias, sempre com relação às
necessidades dos habitantes, isto é, considerando as relações das moradias entre si e com os serviços coletivos”
(BENEVOLO, 2007, p. 637).

As perspectivas da cidade moderna e de sua produção levaram a repensar seu desenvolvimento, visto que as ações
urbanísticas implantadas propiciaram o surgimento e formação de uma sociedade irregular ao lado da cidade
regulada, que se tornou no mundo inteiro o problema dominante.

A ascensão do Modernismo e a perda do status de capital do Rio de Janeiro para Brasília trouxe uma nova temática
para a discussão da cidade brasileira. A questão social, da moradia, resultado direto do aumento significativo do
número de áreas irregulares ocupadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. O foco no social se tornou intenso até o
presente.

Entrementes a cidade regularizada não estar disponível para todos, leva a maioria da população a se aglomerar na
sociedade irregular, que reproduz – em escala muito maior – os estabelecimentos da cidade pré-moderna. Caberia
então, ao urbanista, de forma dialética e paradoxal, melhorar o ambiente para minoria dominante (ou seja, tornar-
se o instrumento de uma nova discriminação em escala mundial) ou analisar exatamente a divisão dos dois
fenômenos, a sociedade irregular e a cidade regular, tomando um cunho político e uma postura crítica à cidade
moderna. Segundo Benevolo (2007) “A divisão das duas cidades é produzida por uma política de construção que
declara abusivos as moradias e os bairros construídos espontaneamente pelos habitantes, e realiza, ao contrário,
grandes conjuntos de moradias industrializadas, de tipo ‘moderno’ convencional”, levando à inutilização do trabalho
espontâneo dos interessados, e oferecendo, ao contrário, moradias caras para a maioria da população.

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Nesta perspectiva, modificam-se as relações de produção, sem, contudo, poder transformá-las, sendo que o
urbanismo e a arquitetura, muitas vezes acabaram por se tornar um meio de consumo, onde o espaço e sua
organização política expressam as relações sociais que sobre ele acontecem, reagindo também sobre essas relações
(HARVEY, 1980).

Após a Ditadura Militar e com a retomada da democracia, o apelo neoliberal aprofundou ainda mais as diferenças
sociais inerentes à cidade, que no caso brasileiro tomou grandes proporções. O Estado assistiu impassível a
dominação do mercado sobre o solo urbano e passou a ter o papel de regulador, que culminou no fim dos anos 1990
e início dos 2000 na criação do Ministério das Cidades, onde Ermínia Maricato foi secretária executiva e de papel
fundamental, continuando um trabalho iniciado ainda na ditadura em prol da reforma urbana e que teve entre seus
principais resultados, além da criação de um ministério específico para as cidades, a promulgação em 2001, do
Estatuto da Cidade.

O momento atual aponta para novas estruturas paradigmáticas, um “tempo de espaços fluídos” (MOREIRA, 2006, p.
175), caracterizado pela mobilidade territorial, a disputa entre lugares, a revitalização através de ícones
arquitetônicos, a gentrificação, entre outros aspectos que levaram ao desenvolvimento de uma rede de circulação
iniciada num movimento de desterritorialização de homens, de produtos e de objetos, ocorrida em paralelo à
evolução das cidades e das redes. Vivenciamos a época em que as cidades se convertem em nós de uma trama, pois
diante de “um espaço transformado numa grande rede de nodosidade, a cidade vira um ponto fundamental da tarefa
do espaço de integrar lugares cada vez mais articulados em rede” (MOREIRA, 2006, p. 162) resultando do
descolamento das noções de tempo e espaço.

Temos por meio dos programas e projetos de associações, ONGs, do poder público, mas principalmente do mercado,
uma nova reorganização das cidades. Aliado aos processos de renovação urbana e de cunho cultural, a alteração da
ocupação social, desloca aqueles que não podem arcar com os custos elevados de tal forma de morar. Devido à
renovação arquitetônica, urbanística e cultural, o mercado imobiliário e de habitação consolida e utiliza de
mecanismos de relegação de comunidades e consequente deslocamento das mesmas para longe.

O alvo de Maricato são estas construções e contradições da cidade produzida pelo modo capitalista. Desta forma,
somente é possível para ela entender a cidade atual se tivermos entendimento de como se estrutura o sistema
econômico e social hoje ou de como se estruturou no passado. Com base nas constatações apresentadas, o engate
teórico que se estabelece para suas críticas é que o espaço urbano, por ser um produto social e histórico, só pode ser
compreendido a partir de sua articulação com as determinações mais gerais que regem o modo de produção na fase
atual, sua articulação com os processos de produção, reprodução e transformação econômica e social. Articulação
esta que não é linear, pois, embora produto do processo produtivo, o espaço urbano constitui-se em condição geral
desse mesmo processo, razão pela qual poderá vir a facilitá-lo ou, então, tornar-se um obstáculo à sua realização.

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A cidade contemporânea, ainda que não tenha alterado de forma substancial a forma da cidade anterior, alterou
suas funções, recolocando a discussão sobre o papel do homem e a possibilidade de intervenção que o mesmo tem
sobre o espaço e as formas construídas.

Assim, se desejarmos entender as cidades, devemos entender seus relacionamentos, feições e suas funções,
atrelados ao processo e a forma espacial que possuem em suas trajetórias, refletindo sobre as particularidades do
conhecimento sobre os centros urbanos no domínio das ciências sociais, da arquitetura e do urbanismo. É necessário
analisar de forma crítica autores como Maricato, que contribuíram no desenvolvimento dos estudos sobre o centro
urbano, bem como o contexto histórico no qual emergiram, sua discussão sobre a cidade, investigação social e
empírica, bem como as discussões epistemológicas e teórico-metodológicas.

Caracterizar a paisagem das cidades enquanto novo espaço de acumulação, valorização, desvalorização e guerra
entre lugares, estabelece os processos característicos e estruturadores da cidade contemporânea, identificando as
novas funções que emergiram na cidade e quais as condições que levaram à redefinição destas funções. Estas
diferenciações da cidade brasileira e sua transição para novas condições, a partir da "questão urbana clássica" e o
modelo de cidade moderna / industrial para a "nova questão urbana" e do modelo da cidade contemporânea, do
"social" ao "cultural" como princípio de estrutura urbana, leva à crítica do planejamento técnico, do planejamento
estratégico e do uso da cultura para fins escusos.

Por fim, interpretar os problemas conceituais e metodológicos em relação à perspectiva das cidades por meio da obra
de Ermínia Maricato, nos leva a analisar a cidade na perspectiva da gestão, da alteridade, da multiperspectiva, das
disputas e conflitos a partir da urbanização no Brasil, de forma a compreender a metrópole contemporânea
brasileira, sua segregação e fragmentação em tempos de globalização econômica e da globalização da cultura,
inclusive das tensões entre a inclusão e a exclusão cultural e socioeconômica.

Referência

MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade
do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2000. 3ª ed. 192 p.

Holanda, Frederico Rosa Borges de et al. Forma urbana: que maneiras de compreensão e representação? Revista
Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, Rio de Janeiro, n. 3, p.9-18, out. 2000.Disponível em:
<http://www.anpur.org.br/revista/rbeur/index.php/rbeur/article/view/43>. Acesso em: abril de 2020.

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