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IBERISMO

E
AMERICANISMO
Luiz Werneck Vianna
Fernando Perlatto
Desde A democracia na América (1835), de Alexis de Tocqueville,
tornou-se corrente comparar os Estados Unidos com a América ibérica,
constituindo este exercício uma fonte de inspiração da imaginação social
no continente. Nessa obra, a América do Sul é descrita como lugar em
que a pujança da natureza debilitaria o homem, enquanto, na América
do Norte, a natureza se revestiria de outro aspecto, onde tudo “era
grave, sério, solene; dissera-se que fora criada para se tornar província
da inteligência, enquanto a outra era a morada dos sentidos”.
O caso bem-sucedido da América do Norte apontaria para um
processo em que o atraso ibérico, sob o impacto das diferentes
influências exercidas pelo seu vizinho anglo-americano, modernizar-se-
ia, rompendo com os fundamentos da sua própria história.
A reflexão social latino-americana no século XIX, já testemunha dos
sucessos econômicos e políticos dos Estados Unidos, tomou-os como um
paradigma em sua luta orientada contra o que seria o seu atraso
constitutivo, resultante do caudilhismo e do patrimonialismo vigentes
em seus espaços nacionais. Entre tantos outros, os argentinos Sarmiento
e Alberdi desenvolveram uma publicística centrada na comparação entre
as duas Américas e o que nos cumpriria fazer para, livrando-nos dos
nossos males históricos, lograrmos sucesso no ingresso ao mundo
moderno. Na passagem para o século XX, especialmente a partir do
clássico estudo do uruguaio José Enrique Rodó, Ariel (1900), a peça A
tempestade, de William Shakespeare, com seus personagens Próspero,
Caliban e Ariel, se constituiu na metáfora por excelência a aludir à forma
de inscrição dos ibero-americanos em seu contexto continental, tendo
como espelho a América do Norte.

No caso do Brasil, a comparação com os Estados Unidos também


esteve presente ao longo da nossa história, influenciando diretamente os
embates sobre o processo da modernização brasileira. Nossa herança
ibérica, marcada por um Estado forte e pela valorização do público, seria
compatível com os valores do mundo moderno então emergente? Ou, de
forma alternativa, ela teria nos legado uma carga tão excessiva, cuja
superação em direção à modernidade exigiria uma ruptura com esse
passado? Desde já, é importante ressaltar que, ainda que os conceitos
iberismo e americanismo tenham sido formulados a posteriori, não
estando presentes no vocabulário dos autores consagrados como
fundadores da tradição de interpretar o Brasil, eles fornecem uma chave
interpretativa para o estudo do processo da nossa formação histórica.
A contraposição entre iberistas e americanistas não pretende
enquadrar os argumentos dos autores das duas matrizes de forma
estanque, mas apenas circunstanciá-los historicamente. De um lado, a
matriz iberista seria identificada com processos que levariam à
precedência do Estado em relação à sociedade civil, à prática da
centralização política, ao primado do público sobre o privado e ao ideal
da unidade nacional. De outro lado, a matriz americanista prescindiria
de maiores mediações entre a política e a economia, que deveria ser
emancipada de controles externos a ela, privilegiando-se a
descentralização, a livre-iniciativa, o livre mercado e a abertura das
fronteiras econômicas. Seu ideal de sociedade residiria no self-
government, de onde deveria emergir naturalmente um indivíduo
emancipado e uma cultura cívica.
No Império, esse embate entre iberistas e americanistas já se
colocava de maneira evidente. Visconde do Uruguai, sobretudo em sua
principal obra, Ensaio sobre o direito administrativo (1862), embora
admitisse, em tese, a superioridade do autogoverno como garantidor da
liberdade, pode ser tomado como um emblema do pensamento iberista
no Império. Uruguai rejeitará a livre manifestação da esfera do interesse
sem mediações, na medida em que, segundo ele, possuiríamos uma
sociedade desorganizada e ameaçada pelos chefes do caudilhismo local.
Em razão dessa debilidade que nos seria constitutiva, a obra da
civilização brasileira exigiria o exercício do papel pedagógico de um
Estado, fazendo com que a esfera do público viesse a se comportar como
um instrumento da educação para os valores cívicos.
Embora a matriz iberista tenha se tornado hegemônica no processo
de construção do Estado nacional, ela foi objeto de persistentes críticas
por parte de alguns pensadores liberais. Talvez o contraponto mais forte
nesse sentido tenha sido aquele realizado por Tavares Bastos, que
buscará as bases do autoritarismo brasileiro na história da metrópole.
Em sua obra, o autor denunciará a nossa herança ibérica, que teria como
corolário um Estado absolutista de feição asiática, encarado como a
origem de todos os nossos males. Ao contrário da centralização e do
Estado como agente pedagógico no cultivo das virtudes da cidadania, o
americanista Tavares Bastos propunha a liberalização das atividades
econômicas e uma reforma capaz de promover a descentralização
política, mas de tal forma que esta não viesse arriscar a unidade
nacional, abrindo campo de ação para o caudilhismo de potentados
locais e o retorno da sedição do período regencial.
Dessa forma, para os iberistas, os problemas do país estariam
vinculados à própria natureza da sociedade, fragmentada, desarticulada
e marcada pelo predomínio do poder pessoal e pelas políticas de
clientela. Nesse cenário, a agenda americanista poderia até mesmo ser
incorporada, desde que informada pela ação de um Estado civilizatório,
intérprete da razão nacional e do bem comum. Já para os americanistas,
a origem dos males encontrava-se no Estado herdado de Portugal, com
suas instituições e com sua cultura política corrompidas. Nesse sentido,
seria imperativa a realização de uma reforma política, para romper com
a herança ibérica da nossa formação histórica, reduzindo o tamanho do
Estado e sua capacidade de intervenção, de modo a deixar que o
mercado e os interesses se manifestassem livremente na sociedade.
Na Primeira República, essa contraposição entre iberistas e
americanistas permaneceu, ainda que sob o novo cenário emergente da
Constituição de 1891, inspirada no modelo da Constituição dos Estados
Unidos. Na esteira dos seus resultados, seu idealizador Rui Barbosa, ao
lado de intelectuais como Paulo Prado, imputará à herança ibérica a
causa principal do nosso atraso. Em contraposição a esses argumentos,
autores como Eduardo Prado denunciarão as influências do mundo
americano, criticando os abusos do capitalismo e a expansão dos valores
do materialismo, do utilitarismo e do interesse privado, que haviam
ganhado força a partir da Primeira República. Esses argumentos serão
realçados por diversos intelectuais — como Alberto Torres, Azevedo
Amaral, Francisco Campos e Oliveira Vianna — que, nas décadas de
1920 e 1930, ao criticarem o artificialismo da Constituição de 1891, vão
se alinhar à matriz iberista como caminho capaz de promover uma
ampliação, ainda que autoritária, da República brasileira.
Não obstante o quadro acima desenhado, será somente com a obra
Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, que o debate
entre iberistas e americanistas será colocado conceitualmente em termos
mais nítidos. Escrito num contexto marcado pelo fortalecimento do
Estado e pela expansão de regimes autoritários, esse livro exercerá
enorme influência nas décadas seguintes, sobretudo como decorrência
da demonstração da quase incompatibilidade entre a nossa tradição
ibérica, herdada de Portugal, e os valores vinculados ao mundo
moderno. Dessa perspectiva, nosso legado ibérico, relacionado à cultura
da personalidade, à aventura, ao ruralismo e ao tradicionalismo, bem
como à ausência do culto ao trabalho, mostrar-se-ia incompatível com a
modernidade. Para Sérgio Buarque, apenas com a ruptura com essa
tradição, em que a cordialidade mascararia as relações de dominação
existentes, é que poderíamos alcançar uma moderna sociedade de
classes, na qual os conflitos poderiam se manifestar sem a presença do
Estado contendo a livre manifestação dos seus interesses.
Essa marcação presente em Raízes do Brasil terá desdobramentos
importantes, influenciando diversas análises subsequentes que, a
despeito das diferenças, tenderam a ver o legado ibérico como a
principal fonte dos nossos males. A obra Os donos do poder (1958), de
Raymundo Faoro, é exemplar nesse sentido, sobretudo em sua denúncia
do papel desempenhado pelo Estado patrimonial na história brasileira,
encarada como um contínuo reiterar, através dos tempos, da cultura da
fundação. Essa interpretação de Faoro era acompanhada por um projeto
normativo de modernização que, tendo como eixo uma ruptura
institucional, conduzisse ao desmonte das relações patrimoniais e do
poder do estamento burocrático, abrindo, dessa forma, novas
possibilidades para liberar e emancipar a sociedade, a economia e a
política do controle do Estado. O sociólogo Simon Schwartzman, em
Bases do autoritarismo brasileiro, e, em certo sentido, o cientista político
Francisco Weffort, com sua “teoria do populismo”, além do antropólogo
Roberto DaMatta, com seu Carnavais, malandros e heróis, também
podem ser associados, de algum modo, a essa vertente interpretativa que
atribui ao iberismo as origens do nosso patrimonialismo e autoritarismo
na vida política e social.
A grande contraposição a essa forma negativa de interpretar a nossa
herança ibérica partiu do brasilianista Richard Morse, em seu influente
livro O espelho de Próspero, publicado originalmente no México em 1982
e no Brasil em 1988. Nessa obra, Morse, mobilizando os conceitos de
Ibero-América e Anglo-América, enfatiza as potencialidades civilizatórias
da “opção ibérica”, devido às suas conotações organicistas e
comunitárias, quando comparada com o mundo anglo-saxão. Para esse
autor, essa vertente civilizatória caracterizar-se-ia pela sua porosidade à
diversidade do gênero humano, pelo ideal rousseauniano de justiça e da
vontade geral como instrumento político de construção de identidade e
emancipação, pela crença em uma realidade social transcendente ao
indivíduo, bem como pela valorização do mundo popular, fundamental
para o desenvolvimento cultural e a improvisação social.
A obra de Richard Morse provocou diversas polêmicas, como o
evidenciam os textos de José Guilherme Merquior (“O outro Ocidente”),
Felipe Arocena (“Ariel, Caliban e Próspero: notas sobre a cultura latino-
americana”) e Otávio Velho (“O espelho de Morse e outros espelhos”), os
dois primeiros publicados na revista Presença, em 1990, e o último na
revista Estudos Históricos, em 1989. Contudo, o contraponto mais forte à
interpretação positiva da nossa herança ibérica partiu de Simon
Schwartzman, em textos publicados na revista Novos Estudos Cebrap, em
1988 e 1989, objeto de uma dura resposta do próprio Morse. Não temos
espaço para mapear esse debate aqui, o que já foi, inclusive, muito bem-
feito por Lucia Lippi Oliveira (1991). O que importa ressaltar é que, a
partir dos textos de Morse e Schwartzman, a polêmica entre iberistas e
americanistas ganhou novo capítulo importante.
Na bibliografia recente das ciências sociais brasileiras, a antinomia
expressa nas categorias iberismo e americanismo passou a ter um
destino singular, na medida em que o sentido da relação entre elas se
tornou mais significativo do que o uso isolado de cada uma delas. A obra
A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil, do sociólogo Luiz
Werneck Vianna, é um exemplo desse tournant interpretativo, uma vez
que nela — sobretudo no artigo “Americanistas e iberistas: a polêmica
de Oliveira Vianna e Tavares Bastos” — o autor apresenta as matrizes
iberista e americanista não como antagônicas, mas complementares,
destacando a possibilidade de uma síntese, na qual caberia à segunda
interpelar e conduzir a primeira, sem destruí-la e anular sua identidade,
de modo que as virtudes de ambas fossem incorporadas na constituição
do moderno e da democracia no país.
Na mesma seara interpretativa de trabalhos produzidos com esse
enfoque, podem ser aqui citados O quinto século. André Rebouças e a
construção do Brasil (1998), de Maria Alice Rezende de Carvalho,
Tradição e artifício: iberismo e barroco na tradição americana (2000), de
Rubem Barbosa Filho, Americanos — representações da identidade
nacional no Brasil e nos EUA (2000), de Lucia Lippi Oliveira, e o artigo
“Autobiografia e nação: Henry Adams e Joaquim Nabuco” (1994), de
Beatriz Jaguaribe. Em uma geração posterior, essa discussão teve
desdobramentos importantes, exemplificados, entre outros, pelos
trabalhos de Nísia Trindade Lima, Um sertão chamado Brasil (1999), de
Robert Wegner, A conquista do Oeste: a fronteira na obra de Sérgio
Buarque de Holanda (2000), e de João Marcelo Ehlert Maia, A terra como
invenção: o espaço no pensamento social brasileiro (2008).
Essa forma de interpretação seguiu seu curso e alguns estudos
mobilizaram os termos iberismo e americanismo, ou o fizeram ad hoc,
embora influenciados por essas ideias. Exemplar, nesse sentido, é a obra
de Jessé Souza, A modernização seletiva (2000), na qual o autor critica a
nossa “sociologia da inautenticidade”, que apontava para o fato de a
modernização brasileira não ter ainda se processado como decorrência
da nossa “herança ibérica”. Dialogando criticamente com a obra de
Gilberto Freyre, Souza procura demonstrar que as instituições
fundamentais da modernidade, quais sejam, o Estado e o mercado,
estariam presentes em nosso território, desde o século XIX, ainda que a
incorporação dos seus mecanismos de integração social e política tenha
se dado de maneira “seletiva”, permanecendo a sociedade
profundamente hierarquizada.
O que podemos reter dessa discussão é o fato de que as categorias
iberismo e americanismo, quer sejam tratadas de modo relacional ou
contrapondo-se uma à outra, permanecem atuais não apenas de uma
perspectiva analítica, mas também normativa. A discussão sobre as duas
matrizes permanece, porém não com a mesma contundência do
enfrentamento de outrora, sobretudo após a Constituição de 1988, que,
ao realizar uma releitura crítica da nossa tradição, expurgando-a de seus
elementos autoritários, representou uma rearrumação das duas matrizes.
Nesse sentido, a filosofia política da Carta admitiu o que havia de
virtude em ambas — em um caso, a valorização da dimensão do público
e, em outro, a valorização de uma sociedade aberta à livre expressão dos
interesses e institucionalmente dotada de meios para se organizar de
modo autônomo, não significando isso, de modo algum, do ponto de
vista dos atores envolvidos na política real, que a oposição entre as duas
matrizes tenha perdido significado nas motivações que presidem as suas
ações.

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