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UM OÁSIS EM MEIO AO CONFLITO

Vilma Goulart

A juventude é um momento repleto de contradições. Queremos ser adultos, mas a maior parte do tempo
agimos como crianças, e nossas dúvidas passam a ser compartilhadas com os amigos e não mais com os
pais, que seriam as pessoas mais indicadas para esclarecê-las. Além disso, quebramos regras a todo instante,
como que para entender até onde podemos ir.

Por ser uma fase extremamente importante para a consolidação de nossos valores e princípios, a juventude
merece, portanto, um olhar especial. Afinal, ela é, provavelmente, a última etapa da vida onde é possível
formar um cidadão pleno, canalizando a ‘rebeldia sem causa’ para o desenvolvimento de uma consciência
crítica.

Em relação aos jovens de classes de baixa renda, então, o esforço deve ser redobrado. É o que mostram
pesquisas e estudos recentes, que apontam a necessidade de providências urgentes em relação ao futuro de
toda uma geração de crianças e adolescentes desprovidas de recursos e oportunidades para lutar em pé de
igualdade com os que tiveram chances de estudar, se formar e trabalhar.

Um destes estudos, o relatório “Jovens em Situação de Risco no Brasil”, publicado pelo Banco Mundial em
2007, alerta para o fato de que o Brasil perderá até R$ 320 bilhões na próxima década se não investir nestes
jovens, e que dificilmente o País terá no futuro um potencial jovem como o de hoje, pois a previsão é que em
2030 os indivíduos com mais de 55 cheguem a 53,2 milhões, compondo uma grande parcela da população.

O mais intrigante é que, mesmo sendo a maioria, a população jovem é a que menos recebe investimentos,
pois 70% dos gastos sociais no Brasil são destinados ao grupo com idade acima de 61 anos. Com tão pouco
investimento nos jovens de menor poder aquisitivo, as conseqüências acabam surgindo. Questões
relacionadas à violência e ao tráfico de drogas já não são novidades nos grandes centros urbanos.

Niterói: boas práticas

Niterói, que já foi capital do estado do Rio de Janeiro, é detentora de um alto Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH). E, embora seja objeto de brincadeira por parte de alguns cariocas, que costumam dizer que o
melhor de Niterói é a vista do Rio, a cidade é conhecida por ter um bom nível de qualidade de vida. Mesmo
assim, Niterói não consegue escapar dos problemas ligados à violência. As principais facções do tráfico de
drogas do Rio de Janeiro também estão presentes por lá.

Por enfrentar os mesmos desafios que o Rio de Janeiro, mas em menor escala, Niterói foi escolhida como a
cidade da América Latina ideal para fazer parte do Coav (sigla em inglês para ‘Crianças e jovens em
Violência Armada Organizada’), movimento internacional que visa investigar as causas da violência entre os
jovens em situação de vulnerabilidade social e propor políticas públicas para combater o problema.

Segundo Caroline Caçador, do Viva Rio, organização não-governamental que coordena o Coav Cidades, a
inovação do movimento é conseguir reunir representantes de diversos segmentos da sociedade, inclusive
políticos e órgãos do governo, em uma mesma mesa, para discutir e elaborar projetos que possarm vir a se
tornar políticas públicas.
Um dos integrantes destes grupos de trabalho do Coav é a Fenase (Federação Evangélica de Assistência
Social El-Shadai), localizada no bairro de Piratininga, em Niterói, e cuja experiência, bem sucedida, nós
vamos mostrar um pouco nesta matéria.

Projeto Viver

A semente do Projeto Viver, da Fenase, foi lançada quando uma assistente social e pastora da Igreja El-
Shadai, observando a situação de pobreza do entorno da Lagoa de Piratininga, bairro de classe média alta da
região oceânica de Niterói, resolveu iniciar um trabalho de evangelismo e assistência social com as crianças
que lá viviam. Com a finalidade de tirá-las das ruas, a igreja oferecia alimentação e algumas noções de
cidadania.

Com o tempo, o projeto foi crescendo, e hoje desenvolve atividades recreativas, educacionais e apoio
psicosocial para um total de 150 crianças e adolescentes, e também orientação sociofamiliar para os pais.

A base do programa apóia-se em três vertentes: a Infância (6 a 14 anos), a Juventude (14 a 18 anos) e a
Família. O atendimento às crianças e adolescentes acontece de 2a à 6a feira, em período integral (de 8h às
17h). Além de três refeições, o projeto oferece recreação musical, iniciação esportiva, artes, passeios e
reforço escolar.

O Jovem Aprendiz é a iniciação profissional dos adolescentes do Projeto Viver, criada quando a Fenase
observou que a garotada ficava preocupada ao completar 18 anos, pois não via muitas alternativas
profissionais ao sair de lá. A instituição passou, então, a oferecer a oficina de Auxiliar de Recepção e
Eventos – pensando nas futuras possibilidades em restaurantes e casas de festas da região – e também as
oficinas de Salão de beleza e Confecção em tecido e couro.

Família

Para os pais, o fato de ter um lugar onde deixar os filhos no período em que estão trabalhando já significa
muito.

Há cerca de 7 anos, Noemi Alves, hoje mãe de 4 filhos, procurava um lugar assim, quando viu uma placa de
divulgação da Fenase perto da sua casa. Por achar que as atividades eram pagas, ela relutou um pouco em
bater à porta da Fundação. Mas finalmente tomou coragem. “Quando eles disseram que não precisava pagar
nada, eu olhei para a minha cunhada, sem acreditar (risos)”, diz Noemi. O fato da Fundação também ser um
ambiente cristão lhe deu a segurança que faltava para inscrever as crianças no projeto.

O filho mais velho, Daniel, de 16 anos, atualmente faz o curso de Auxiliar de Eventos, e é remunerado
quando trabalha nos eventos nos quais a Fenase é contratada: “Ele fica todo feliz e na maior expectativa de ir
trabalhar quando fica sabendo que haverá uma oportunidade”, diz a mãe.

A mudança de comportamento dos filhos, segundo ela, foi visível depois do seu ingresso na instituição. Por
terem aprendido a força que tem o diálogo, passaram a ouvir a mãe com mais atenção, a lhe dar satisfações
sobre seus passos (para onde vão, a que horas vão voltar), tornaram-se mais obedientes e já não brigam tanto
entre si.

Outro aprendizado importante é o da educação sexual, um assunto ainda considerado tabu por muitas
famílias. “Na minha época, meu pai e minha mãe não conversavam essas coisas comigo. Eu aprendia mais
com as minhas colegas. E eu, sinceramente, ainda tenho vergonha de falar muitas coisas com meus filhos –
confessa Noemi - Então até nisso a Fenase me ajuda”.
A integração da Fenase com a família representa para ela a chave do sucesso da instituição. “Aqui nós somos
uma família. Não tem essa de deixar os nossos filhos aqui para eles cuidarem. A gente se comunica o tempo
todo”.

Os encontros Família e Comunidade compõem o eixo do projeto cujo objetivo principal é promover a
reflexão junto aos pais sobre os papéis da família, da sociedade e do Estado na construção do presente e do
futuro da infância e da adolescência.

A diretora Ana Ribeiro conta que em 2006 eles desenvolveram todo um trabalho com base no “Livro das
Famílias”, uma publicação da Fiocruz e da Sociedade Brasileira de Pediatria sobre os vários tipos de
violência na família e na comunidade. Ano passado foi a vez de trazer sobreviventes de violências familiares
e comunitárias para relatar suas experiências. Também em 2007 foram realizados passeios como culminância
de um trabalho de promoção da convivência familiar e comunitária.

Para 2008 a meta é oferecer cursos de geração de renda e qualificação profissional para estes pais, também
com base nas demandas locais do comércio.

Presente e futuro: opiniões

A instituição parece ser realmente a segunda casa tanto dos pais quanto dos filhos. Mesmo que não estejam
mais freqüentando as atividades do projeto, os jovens voltam para visitar os profissionais da instituição,
inclusive os que chegaram a se envolver com o tráfico. “Embora sabendo que o movimento de venda de
drogas representa uma concorrência desleal na conquista dos adolescentes, a Fenase oferece carinho, atenção
e limites, e eles sentem falta disso”, afirma a psicóloga Sandra Ricardo Silva Carneiro.

Ainda que não tenham indicadores formais dos resultados obtidos com os beneficiários do projeto, a
Fundação percebeu que os jovens que, eventualmente, debandaram ou voltaram para o tráfico foram aqueles
que a instituição não conseguiu atingir a família. Por isso, Sandra é categórica ao afirmar que, como todo o
trabalho de prevenção, quanto mais cedo as crianças ingressam no projeto, mais resultados elas obtêm.

E resultados não faltam. Desde coisas mais simples, como aprender a comer com garfo e faca, passando pelo
bom atendimento aos clientes durante os eventos nos quais trabalham – onde entendem que não podem
discriminar, por exemplo, portadores de deficiência física ou homossexuais. A psicóloga chama a atenção
para o fato de que o “servir”, hoje, tem uma outra conotação para eles, não mais a de subserviência, mas de
algo interessante.

Outro aprendizado marcante é o cuidado que passaram a ter com o que se tornou importante e bom na vida
deles. O Pastor Luis Roberto Andrade Hildefonso, um dos fundadores da Fenase, abre os portões da
Fundação duas vezes por mês, aos sábados, para que a meninada vá lá jogar bola, e permite que eles tragam
os colegas. “O curioso - diz o Pastor - é que desde a primeira vez eu reparei que eles não trazem ninguém
ligado às atividades ilícitas. Parece que procuram preservar o lugar e também o entrosamento que têm aqui”

No bate-papo com a nossa reportagem, ficou claro que eles sabem o peso que as más companhias têm na
escolha do caminho a seguir e, por isso mesmo, tentam mantê-las à distância: “Acho que muitos entram
nesta vida errada por revolta”, diz Jhonathan, 14 anos. Seu colega – e quase homônimo - Jonathan, de 15
anos, pensa que entra quem quer, porque há outras opções sem ser o tráfico.
Durante a conversa, eles vão, aos poucos, revelando suas opiniões, sonhos e desejos. Maicon, 17 anos,
lembra que não há bandidos só nas favelas, mas também em outras esferas: “Tem policial corrupto, tem
político corrupto. Tem ‘Mensalão’, tem ‘Cuecão’”.

Perguntamos o que eles pensam das notícias divulgadas diariamente pela tv e pelos jornais e, mais uma vez,
é Maicon que toma a palavra: “A gente liga a tv, só tem desgraça, só tem morte. Eu acho que o mundo tá
ficando mais violento”.

Em relação à profissão, poucos ainda sabem o que querem fazer. Natália é filha de Noemi - a mãe que
entrevistamos para esta matéria – e diz que nunca pensou no futuro. Argumentamos que todo mundo tem um
sonho, e que ela, certamente, deveria ter um. Ainda assim Natália continuou sem saber dizer qual seria.
Resolvemos, então, dar-lhe mais um tempo para pensar, contanto que ela revelasse qual é a profissão dos
seus sonhos até o final do nosso encontro.

Para os rapazes que vivem em comunidades de baixa renda, a carreira militar é uma alternativa muito
cogitada. E não é diferente com Thiago, de 16 anos, que vem pensando em fazer esta opção. Já cursar uma
faculdade parece ser um sonho mais distante para vários deles. Mas Renan, de 19 anos, conta que está
dividido entre ser biólogo marinho e fazer uma graduação na área de informática, pois após ter um contato
maior com os computadores, seu interesse pela área tecnológica aumentou.

O futuro

A família é considerada o bem mais importante para estes jovens, e é ela quem baliza, em boa parte das
vezes, as suas escolhas e comportamentos futuros.

A família de Jhonathan, por exemplo, lhe ensinou a ter respeito pelos mais velhos e a ter cuidado com
determinadas companhias. Para Maicon é com a família que as pessoas podem contar na hora de um aperto.
E ele não esquece dos ensinamentos do pai, falecido há dois anos: respeitar os mais velhos, ser alguém na
vida e ficar longe do tráfico.

O mais surpreendente, no entanto, talvez seja o depoimento de Jonathan, cujo maior desejo nesta vida é ser
pai: “Pode até ser careta, mas eu tenho a maior vontade de ser pai. Eu adoro criança, e acho o maior barato
poder, um dia, brincar com um filho meu”.

São sonhos que só têm coragem de aparecer já no final da conversa, como o de Natália. Talvez
envergonhada por ter um sonho aparentemente tão longe da sua realidade, sente-se estimulada pela confissão
de Jonathan, e finalmente revela o que quer ser quando crescer: pedagoga.

Aprender a sonhar, portanto, parece ser outra meta alcançada pelo Projeto Viver, considerado por seus
funcionários, dirigentes e beneficiários um “oásis” de tranqüilidade, conhecimento, diversão e acolhimento.

Só nos resta, agora, esperar que “oásis” como este se repliquem Brasil afora, transformando o deserto de
possibilidades das estatísticas atuais em um verdadeiro mar de oportunidades para jovens que, como
Jonathan, Daniel, Maicon, Jhonathan, Renan e Natália, têm um enorme potencial para se tornarem cidadãos
plenos.

FONTES:
Fenase: (21): 2619-2588
Banco Mundial: www.workbank.org
Coav: www.coav.org.br
Viva Rio: www.vivario.org.br

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