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E como se apresenta 0 emprego do texto no teatro contemporaneo? Uma das tendéncias mais famosas do pds-guerra é certamente a de Brecht, cuja importancia pode ser aferida pela sua repercussdo sobre 0 teatro internacional dos ultimos 20 anos. A teoria brechtiana do teatro coloca o problema do texto em termos novos. Nao se trata mais, com efeito, de saber que importancia lhe deve ser atribuida em relacdo aos outros elementos do espetdculo, nem de defi- nir um esquema de subordinagdo mais ou menos acentuada desses outros elementos frente ao texto. Brecht interroga-se sobre a fungao do texto 21 Op. cit., capitulo “O Teatro da Crueldade, segundo manifesto”. 22 Artaud era o primeiro a dar-se conta de que nunca havia conscguido materializar 0 seu “Teatro da Crueldade”. E, mais tarde, as tentativas mais convincentes do teatro contemporinco entre aquelas referidas como suas aproximagées' ou etapas — as do Living Theatre e de Grotowski — permitiram sobretudo que o sonho artaudiano fosse sonhado por um piiblico cada vez mais amplo. aquestio do texto 61 dentro do conjunto da realizagdo cénica, sobre as possibilidades que ele oferece de representar diversos significados, seja por oposigio aquilo que © palco deixa a mostra, seja por sua adaptagdo (ou inadaptagao) a um pi- blico particular. Uma das originalidades da pratica brechtiana consiste em fazer inter- vir concomitantemente diversos modos de teatralizago do texto: os dislo- 05, € certo, mas também os songs, mas também 0 material grifico (tabule- tas, projegdes, inscrigoes, diagramas, slogans etc.). Os songs intervém, como se sabe, como instrumentos do distanciamento (a esse respeito, ver capi- tulo IV, p. 140), no sentido de que introduzem um sistema de quebras destinado a romper a continuidade da acZo, a naturalidade de uma inter- pretagio, a identificagdo com o personagem. Ruptura, em primeiro lugar, ‘entre 0 personagem € 0 ator: o song é cantado pelo ator, “de frente para © pliblico”, e personagem que esse ator encarna é provisoriamente rele gado a um segundo plano. Ele ndo é anulado, pois o intérprete se parece ainda com o personagem, mas fica, digamos, como que suspenso. O que tem como resultado lembrar que o personagem ngo é uma imitagio do real, mas uma simulagdo, um objeto ficticio. Essa primeira ruptura é re- forcada por duas outras separagdes: a que ¢ imposta pela passagem da fala falada para a fala cantada, ¢ a que opde mutuamente dois significados, ‘uma vez que 0 discurso do song comenta, de maneira freqientemente ird- nica ou critica, o do personagem, bem como o seu comportamento. Cabe acrescentar a tudo isso a intervencdo da partitura musical que pode intro- duzir conotagdes opostas aquelas veiculadas pelas letras do song. Final- mente, o efeito de distanciamento é ainda enfatizado pelo isolamento do niimero cantado (mudanga da iluminagio, em prinefpio fixa, contraponto do texto escrito que exibe, numa tela ou tabuleta, o titulo da cangio etc.) no conjunto do espetéculo. Como vemos, a novidade da pritica brechtia- na tem a ver com a invengGo de um texto plural, cuja heterogeneidade reforga as possibilidades significantes, através da dialética semiolégica que introduz. Quanto aos elementos gréficos do espeticulo, eles realizam 0 mais surpreendente dos paradoxos: integrar o cimulo do textual — a linguagem escrita — numa prética artistica que pareceria, a priori, excluir tal recurso. ‘Tomar como referéncia as famosas tabuletas elisabetanas é, sem dvida, inevitdvel. Assim como, cabe frisar uma diferenca essencial: para o teatro elisabetano, a tabuleta é um instrumento meramente funcional, um meio elegante de resolver 0 espinhoso problema da localizagto da agZo. Talvez valesse a pena relembrar também o cinema mudo. Mas o sur- gimento do filme falado atesta que também aqui a insergio de um texto escrito na continuidade do espeticulo nao passava de uma solugdo instru- mental, que desapareceria tdo logo a técnica permitisse integrar no filme © verdadeiro didlogo falado. Em Brecht, 0 texto a ser lido reintroduz 0 ee Se mundo real como um dado exterior, sinds que nao alheio, ao es so é mals um universo fechado sobre si mesmo. Os cartasee isolam os “quadros", cortam a ago. Portanto, 0 espetéculo nao Ode ius ser sbido como uma reprodugio mimética (ilusionista, mistificadora) de umn realidade da qual ele pretenderia oferecer a totalidade, Mas, inversa. mente, no pode tampouco ser reduzido a uma ficeo que ndo representa 2 alm da sua propria fubulago.23 No que diz respeito ao didlogo propriamente dito, ele recebe um tra. ‘erento que no ¢ sempre, ou ni é continuamente, 0 do teatro real, Agel também a heterogeneidade & um trago essencial da escrta brechtions Por exemplo, Arturo Ui mistura sutilmente ~ e a mistura da is alee um Latte bastante artificial ~ as referéncias culturas (a tradugfo alema da Peare feita por Schlegel, de uma nobreza bem académica) ¢ 4 Calldade que se espera de mediocres gangsters italo-americanos, a pross¢ Nersos.... Essa heterogeneidade da escrita coloca 0 ator em false ¢ Ihe Peticulo, ; © texto, como qualquer instrumento da represen- slo, ¢ exibido assumidamente enquanto texto de teatro, mostrade como um artefato, uma combinagio de referéncia que articula elementos incom. pativeis pelo critério da verossimilhanca, Se screscentarmos 0 fato de que as técnices da encenagio épica mul- 1 0s recursos significantes do espaco (cenografia, objetos ete,), da epresentacdo do ator, da misica etc., hd de se convir que a dramaturgia brechtisna demonstra meridianamente 0 cardter enganador do debate que pretende contrapor o texto ao espetaculo, o teatro do significado ao teatro Go significante. Brecht mostra, com efeito, que 0 espetacular ndo é forgo: samente insignificante?* e que entre a idéia e a imagem cénica nao existe uma incompatibilidade insuperdvel. Pelo contrario, aos olhos de Brecht ume idéia s6 6 legitimada teatralmente a partir do momento em que ela consegue visualizar-se. Um dos exemplos mais freqiientemente citados para ilustrar tal concepeao é sem diivida 0 quadro de paramentagio do papa, em Galileu Galilei (quadro 12): eleito papa, com o nome de Urbano Vill, 0 cardeal Barberini € um matematico humanista aberto as exi igéncias da li- berdade indispensével & pesquisa cientifica. Inclinase, portanto, a tomar a 2 RAGE Sel, godemos car A reid axeno de Arta Ue Ses sala aie cr pea aparcmeno cum eto cago petie Seo pl i are a scm oe er tomata do poder pelos nites da qual fees una ordi ao me burless widens an ISS nade qu o tao pico “cont” om wer de “mse seus ent sl tere seas em deinen dept. Ns fads a Sanco vil do qus um espetaculo rect 4 questio do texto 63 defesa de Galileu. “A medida que 0 quadro se desenrola, ele desaparece mais e mais debaixo de pr; imentas.” Assi ra-se viswalmente a transformagio do indivi A Fingio socal ee, ¢ trans: cedendo lugar a0 papa Urbano Vill, ao chefs it politica. Quando ter- especifica Brecht, 4 caso desviando-as comple- tamente do seu sentido original, das obras de Sofocles ou de Shakespeare _Ao mesmo tempo, Brecht prova que, uma vez tespeitadas certas condig6es, 0 poder absoluto do texto (isto é, do autor) no resulta em castra¢Zo do poder ctiador do encenador, nem tampouco em feitura insi- pida do espeticulo. © comportamento pessoal de Brecht, submetendo seu texto 4 prova dos ensaios, remanejando-o constantemente no decorrer do trabalho com os atores, mostra claramente que a uma nova utilizagio do texto pode e deve corresponder uma nova atitude do escritor em re- lagdo aos escalées da producdo do espetaculo. Mas seré que, no fundo, trata-se de uma novidade? A divisio das tarefas e a recusa, seja ela arto: gante ou resignada, que o escritor opde a idéia de intervir no trabalho cé- nico sdo, na verdade, um fendmeno histérico: antes do perfodo roméntico (Musset etc.) 0 autor dramatico trabalhava freqiientemente como ator e diretor (Sofocles, Shakespeare, Moliére etc.) ou, em todo 0 caso, interes- sava-se de perto pela tradugdo cénica da sua obra: Racine dirigia Lome samente os desempenhos de Mile Champmeslé, ¢ Marivaux os de Silvia.

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