Você está na página 1de 19

FELY ANDRA

DESAMPARO
Este e-book resulta de um álbum de poesia sonora que pode
ser acessado através do link abaixo. A presente amostra
consiste em um Trabalho de Conclusão de Curso defendido
por Ytalo Felype Andrade Ferreira, vulgo Fely Andra, orientado
pela Profa. Dra. Emília Mendes Lopes e submetido à banca
avaliadora composta pelas Profas. Dras. Sônia Maria de Melo
Queiroz e Alice Oliveira Bicalho na Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais no semestre 2022/1.

Clique aqui e acesse.


Desamparo I ________________________________________________________ 4
Rebentar ____________________________________________________________ 5
Desamparo II _______________________________________________________ 7
Chuva de asfalto ____________________________________________________ 8
Desamparo III _____________________________________________________ 10
Faísca _____________________________________________________________ 11
Desamparo IV ______________________________________________________ 12
Redenção __________________________________________________________ 13
Desamparo V_______________________________________________________ 14
Ama-vos ___________________________________________________________ 15
Posfácio ___________________________________________________________ 16
Créditos ___________________________________________________________ 19
Desamparo I

Sou um pai ruim


confesso
não soube cuidar
do que é-me intrínseco
o destino canalha
me alinhavou no papel que coube
segui cega letra
e pelo traço que percorri
vaguei em vãos brancos
postergando o zelo pela minha
curta e atrofiada
expansão e extensão
do ser
Rebentar

O depois
arisco e incerto
me apagou
com piche e pus no peito
adoeci
penei
da mais dura ânsia do ser

Por isso, origem do mal e do que eu tanto


amo inocentemente, volto a ti
tem pena e me permita penetrar
tua magnífica máquina-músculo
abra-te as portas do limbo e, em reverso,
mergulha-me no muco do canal

Regresso ou resgate,
inóspita viagem
ao passo de germe

Dilatação
contração
compreensão
incondicional

Gozo de horror que ecoa vida no antigo lar

Pro eu que se adequa


quando nunca soube
num eu me ajustar,
pois sempre a carregar
do eu, o adulto,
o pesado pensar
Farto fardo faz a foz à fonte refluir

Se esvai o ser que fui... Eu, o que serei?


na quente escuridão, tateio o espaço
e engulo estrelas que do pó sou feito
recordo o imemorável… reconecto-me
a ti pelo cordão que nutre, sangra
e amaldiçoa com a mais indócil dádiva:

A livre solidão dos que respiram e sentem.


Desamparo II

poeta pouco pão


traz à mesa a filha
grita faminta birrenta
quer tinta giz madeira
inquieta se
lança canta e dança
a graça de livre ser
puxou do pai pirraça pois
o poeta é antes um teimoso
Chuva de asfalto

Bem não há.


O que eu usei?

Neste instante,
peço calma…

Onde estou?
Ainda volto.

Água boa de beber, por favor.


Alguém aí? Se sou só, com quem falo?
Surto ou súplica, a boca apartada
quer provar do que cai deste teto:
gota morta, pó preto de mármore,
temporal de petróleo cru e quente.
As entranhas da Terra ao revés,
é o planeta adentrando em si mesmo!

Olá, horror.
Olha a hora!
Ora, ora…
Oração:

"Nosso pai, se estiveres no céu,


faz do globo jazida de pez;
do ar, butano; betume, do mar."
Tu é a razão vista a zero onisciência
desta cruel prece… não se vai, e sinto
latejante tua voz amargada
usar o último fôlego meu
como pena perpétua de apego.
Lua da rua,
luz à vista
dá pra qu’eu
chegue em casa.

Pois os olhos fechar tanto quero!


Dilatadas pupilas derretem
turvações de reflexos sombrios.
Se teus são, não sei. Não sou mais são,
nada importa a quem segue sem rumo,
nem pertenço a nenhum vácuo vil.
Lar de nome “amar”, paz se faz sóbria,
mas a chuva arrastou o que era lúcido.
Desamparo III

eu mundo quis uma agulha


para marcar a brevidade das horas
pedi ao vento a de sua vitrola
mas esta quebrou e ele pôs no lugar
um bico de beija-flor
no espaço foi fracasso
o risco do cometa estava longe demais
Vênus me aconselhou ir às moiras
mas temo profecias apocalípticas
quando a natureza se escandalizou
porque porco transformei em espinho
resolvi transcender
peguei a que costura o texto do poeta
afinal ninguém o ama
ninguém o reclama
hoje minha pressa a consome
está gasta
Faísca

Por sustento d’alma


Quis queimar da dor
O cru grão brotado
Lendo o fogo do outro
Meu eu ao léu em breu
Viu na letra a fuga
Da escassez de juízo
Pra lavrar palavras
Catei lenha no árido
Da razão a centelha
Me faltava arder
Molotov moção

Lavor pro estro vir


Sobre o céu estudei
Eu a um raio à espera
Negras nuvens nuas
Diluviaram em mim
Como atear o mar

Afora não há afago que afogueia afogados

Com vigor no ato último


O papel uni ao lápis
Em pulsão de anseio
Que gerasse brasa
Um vapor que aquece
Pois a vida é sopro

E nós inspiramos involuntariamente.


Desamparo IV

vou pegar pra criar


na casa da tia inércia
não há tempestade
nem bonança
inteira vai ficar
meu lar é indolente
sem objeto cortante
ou algo de faiscar
é fácil de acostumar
é tudo silencioso
meio nebuloso
mas eu tô sempre lá
terá que se comportar
minha gata apatia
e o jabuti abulia
detestam quem grita
a menina vai me amar
se danar não brigo
se irar não castigo
vivo de vida evitar
Redenção

A morte de teus pecados


Foi o berço de tua perdição:
Aquilo que te contempla,
Dos traços falhos às sublimes rimas,
Forma teu laço e compasso,
Ritmo e harmonia

Tua vida é errônea, mas irrevogável


Quando tua causa é compor-se
Por agrado ao alheio
Com monstruosas verdades
E lindas mentiras blasé,
Sem verdades estelares
Ou mentiras estandartes,
Tu montas na eloquência vazia
E cais de amor pela realidade falaz.
Desamparo V

escusas por tardar


volto como quem não foi
por onde anda minha filha
criatividade?
Ama-vos

Ele ama
pois que sim
grite a todos há um
pulso unindo-nos
amor em Morse código
me embebece o quão líquido
vazão vermelha pele preta
o grave
um toque
roda rodopia
de nós e de si em torno
quem diria
hoje canta
ama ama ama.
Posfácio

Quando vou iniciar uma produção literária, gosto de pesquisar o


significado, as associações, as imagens, as construções sociais relacionadas à
palavra ou às palavras que me motivam a escrever determinado texto. O
dicionário Caldas Aulete nos apresenta como um dos significados para
“desamparo”: “falta de auxílio ou de proteção; estado ou condição de quem ou
do que não recebe amparo moral nem material”. Quanto à etimologia, “amparo”
vem do Latim anteparus, “preparar antes, dispor de antemão”; então, na língua
portuguesa, há a adição do prefixo de negação des- com o objetivo de negar
aquilo que o segue. O Google Imagens disponibiliza várias imagens em preto em
branco com supostos dizeres de grandes autores psicanalistas e filósofos quando
pesquisamos o termo. Apesar de carregar angústia, Desamparo surge como um
fôlego num momento de desesperança.
“Desamparo” é uma sequência de 6 poemas, entretanto somente 5 foram
escolhidos para integrar este trabalho. Confesso que, assim como ele, nenhum
dos textos presentes foi escrito visando à sua inserção na poesia sonora, o que
tornou o processo ainda mais desafiador e sentimental, pois minha voz e ouvidos
tiveram que captar sensações que costumavam ecoar apenas em minha mente.
“Redenção”, por exemplo, foi escrito em 2016, quando cursava a graduação em
Filosofia na Universidade Federal do Cariri, para um pequeno livreto que usei para
arrecadar recursos para minha mudança para Minas Gerais. Não cheguei a
concluir, pois sabia que queria cursar Letras desde os 7 anos de idade, quando
pedi uma máquina de escrever de presente e já reproduzia em cadernos os
antigos livros didáticos que minha mãe guardava com carinho, uma vez que
foram do último ano do fundamental que ela chegou a cursar. Na minha região,
é ofertado o curso presencial em Letras na Universidade Regional do Cariri, porém
somente as licenciaturas em Português e em Inglês, além de que, como eu
sempre falo, na Universidade Federal de Minas Gerais o curso de Letras ocupa um
prédio de 4 andares, enquanto na URCA, apenas um corredor.
Compartilho minha história porque está intrinsecamente ligada aos textos,
mesmo sem menções diretas a mim. A parte mais difícil deste trabalho de
conclusão de curso foi a elaboração em si. O desamparo rondava minha mente e
me deixou doente. A pandemia nos fez perceber como a presença do outro é
importante, mais ainda se este outro é o poder público. Isolado dentro do meu
quarto, eu via meu talento se esvair e resolvi abandoná-lo. Como em
“Desamparo”, meu pai foi um pai ruim, enquanto minha mãe, origem do mal e
do que eu tanto amo inocentemente, estava longe (aliás, há figuras melhores para
discutirmos amparo do que a dos pais, principalmente durante este período em
que a Suprema Corte dos EUA corta o direito ao aborto e em que casos como o
da atriz Klara Castanho e da criança de 11 anos pressionada a manter uma
gravidez vêm à tona?). Só me sobravam pensamentos de arrependimento, visto
que poeta pouco pão traz à mesa, e contas para pagar. Vacinado contra a COVID-
19, fui para o mundo com outros afazeres. Lendo o fogo do outro, vi que todos
nós acabamos deixando nas mãos da tia inércia desejos tão grandes que eram
parte de nós mesmos: eis o berço de nossa perdição. Depois de conversas
internas e escusas por tardar, peguei minha criatividade de volta para mostrar ao
mundo o quanto amo. Não há sentimento melhor para demonstrar minha
fragilidade quanto o amor. Ao mesmo tempo, é ele quem me motivar a continuar
crendo num futuro diferente para mim e para todos através da arte.
Este álbum de poesia sonora faz parte de um projeto maior, intitulado
“Mineração de minha fragilidade”, o qual apresentei durante a disciplina Trabalho
de Conclusão de Curso I, porém, como bem orientou a professora Emília Mendes,
não tive o tempo hábil para concluir todas as produções. O recorte literário e
sonoro aqui apresentado das faixas escolhidas se mostra mais adequado. Vai
além, revelando-me uma faceta específica de minha fragilidade.
Bem, por que transformar estes escritos em áudios? Durante a graduação,
eu me descobri como músico. Participei por anos do curso de extensão em Canto
Popular no Cenex-Música e de vários corais da Universidade, fiz Formação
Complementar em Música e Formação Transversal em Culturas em movimento e
Processos Criativos. Passei a estudar também piano, produção musical e
performance. Logo, não fazia sentido não unir todos estes conhecimentos
adquiridos durante a graduação no meu TCC. Se sou um músico que escreve ou
um escritor que musica, não sei exatamente, todavia aqui fui a segunda opção.
Os textos foram ganhando forma em beats, frequência e decibéis.
As faixas foram gravadas e editadas no programa Adobe Audition com o
uso de diversos outros plug-ins, além de utilizar pacotes de efeitos sonoros.
“Desamparo I” possui um sample da música “paper planes” da cantora do Sri
Lanka M.I.A., que por sua vez sampleou a música "Straight to Hell" da banda
inglesa The Clash, origem do som que se escuta ao fundo mesclado com os beats
contemporâneos do DJ e produtor americano Big Yavo e sons de folhas de papel
sendo amassadas, rasgadas e folheadas. Penso ser interessante o fato de que, eu
como pai do poema, me aproveito de obras anteriores que se aproveitaram de
obras anteriores para gravar algo que agora é meu, mas também de todos estes
que vieram antes. Minha voz começa “crua”, apenas com efeitos para torná-la
mais clara.
“Rebentar” vem de uma trilogia de poemas que compus intitulada “Três
poemas de dor de amor”. Ele fala sobre a angústia de alguém que não vê outra
alternativa a não ser voltar para o útero de sua mãe. A faixa possui sons de
descargas elétricas e a gravação experimental que fiz com um violão e uma régua
de metal, roçando-a nas cordas de aço. A partir desta faixa, inicio uma tomada
de efeitos como reverberação, atraso, eco, phaser, flanger, coro, modulação, entre
outros, na minha voz, como também introduzo o canto.
Em “Desamparo II” nota-se a influência da música eletroacústica em
minhas criações, com o acúmulo de corpúsculos, neste caso, sons de toque em
portas de madeira e de vidro e ao final o som de uma árvore caindo. Outras faixas
que se seguem também são montadas com base nesses estudos, como em
“Desamparo III”, na qual levo a fundo os ensinamentos presentes no Traité
D'écriture Sur Support, um livro que discorrer sobre técnicas de composição
eletroacústica, de Annette Vande Gorne, desenvolvendo arranjos com diferentes
modelos de energia sonora e de mixagem com sons de metais e de maquinários.
“Chuva de asfalto”, poema que conta a história de uma bad trip, é igualmente
influenciado, ao iniciar com a modulação percussão-ressonância de uma tigela
tibetana cheia de água, além de outros momentos como os das ondas do mar
eletronicamente modificadas e das gotas pingando incessantemente.
“Faísca” transformou-se em um samba. Durante a pesquisa com sons do
fogo, encontrei tutoriais de como tocar um samba com uma caixa de fósforo. E
assim fiz, dando molejo a um texto todo metrificado, que, como disse
anteriormente, não fora pensado para ser musicado. Mesmo com a quebra de
ritmo que esta última trilha traz, ainda assim penso que é em “Desamparo IV” que
me permito ser mais ousado, dado que é uma faixa com piano e voz que sofreu
drásticas alterações eletrônicas com o objetivo de tornar meus vocais
monstruosos e femininos, feito os da “tia inércia”, mesmo com o leve humor a
que o texto e a voz em falsete remetem. “Redenção” é um respiro onírico e
necessário ao som de uma brisa forte.
Antecedendo o fim, em “Desamparo V” o pai desnaturado resgata sua filha
criatividade com crianças cantando ao fundo “peixe vivo”, com muito eco e
reverberação, é claro. “Ama-vos” é mais um samba! Assim o classifico já que um
time de sambistas, ou de mulheres que um dia cantaram um samba, me
acompanham nesta entoada: Elis Regina, Claudia, Eliana Pittman, Elza Soares, Gal
Costa e Maria Bethânia, com um sample de “Macunaíma”, canção interpretada
por Clara Nunes.
Aqui, retomo a terminologia então utilizada: poesia sonora. Produtos
sonoros oriundos de trabalhos literários recebem o termo audiobook como um
padrão estabelecido à indústria pela Audio Publishers Association desde 1994.
Durante as minhas pesquisas, ainda me deparei com expressões como music
book, usado pela renomada revista de crítica musical Pitchfork, porém não se fez
adequado, pois, além de fazer menção a poesia sonora e audiobooks, ainda se
refere a brochuras escritas por músicos. Há trabalhos semelhantes ao meu com a
mescla de trechos falados e cantados, instrumentalizados ou apenas vocalizados,
como Wonderworld: The Musical, do artista Arcanum. Porém, como orientado
pela banca avaliadora, esta monografia se enquadra mais adequadamente ao
gênero poesia sonora. Algumas características que atestam são seu caráter
experimental, a utilização de meios tecnológicos, ser independente do texto e do
discurso para existir e possuir conjunções sonoras que exprimem conceitos,
sensações e impressões. Este e-book é uma forma de materializar e facilitar o
alcance ao som, que é a poesia em si de Desamparo.
Obrigado pela escuta.
Créditos

Todas as faixas possuem vocais e foram compostas, produzidas, mixadas e


masterizadas por Ytalo Felype Andrade Ferreira.

Rebentar
Violão: Ytalo Felype Andrade Ferreira.
Faísca
Piano: Ytalo Felype Andrade Ferreira; execução de Priscila Fragoso.
Desamparo IV
Piano: Ytalo Felype Andrade Ferreira; execução de Priscila Fragoso.
Desamparo V
Coro: Crianças do primeiro ano da Escola Universo, regido por Rodrigo
de Lima Silva.

Você também pode gostar