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A questão negra:

a Fundação Ford e a Guerra Fria


(1950-1970)

Wanderson Chaves
A questão negra:
a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970)
Wanderson Chaves

1ª Edição - Copyright© 2018 Editora Prismas


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Elementos de capa: John Zimmerman
visão do átrio do edifício sede da Fundação Ford, em Nova Iorque - Direitos da imagem,
gentilmente cedidos para esta publicação, pelo Rockefeller Archive Center.

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Elaborado por: Isabel Schiavon Kinasz
Bibliotecária CRB 9-626
Chaves, Wanderson
Para os meus pais: a carne e a rocha
C512 A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970)
Wanderson Chaves - 1.ed. - Curitiba: Editora Prismas, 2018.
296p.; 21cm

ISBN 978-85-537-0002-8

1. Fundação Ford – Brasil – História. 2. Fundações e instituições beneficentes


– Brasil. 3. Políticas sociais. I. Título.

CDD 307.76 (22.ed)


CDU 362

Coleção Teoria da História e Historiografia


Diretor Científico
Fabrício Antônio Antunes Soares (UNESC)
Ricardo Oliveira da Silva (UFMS)

Consultores científicos
Evandro dos Santos (UFRN) Marco Aurélio Ferreira da Silva (UECE)
Fábio da Silva Sousa (UFMS) João Henrique Zanelatto (UNESC)
Leandro Baller (UFGD) Eduardo Henrique Barbosa de Vasconcelos (UEG)
Jonas Moreira Vargas (UFPEL) Rodrigo Bragio Bonaldo (USFC):
Alexandre Maccari Ferreira (UNIFRA) Ismael Gonçalves Alves (UNESC)
Rodrigo Santos de Oliveira (FURG) Erick Assis de Araújo (UECE)

Editora Prismas Ltda.


Fone: (41) 3030-1962
Rua Morretes, 500 - Portão
80610-150 - Curitiba, PR
www.editoraprismas.com.br
Prefácio

Em 2015, quando Wanderson da Silva Chaves, este


jovem pesquisador, concluiu seu pós-doutorado na USP, ele
ainda não dera por encerrada a investigação que começara em
seu projeto de doutorado. Recebia, entretanto, de seu pareceris-
ta na FAPESP, uma longa apreciação que se encerrava com a
seguinte observação:

“ A qualidade dos dados e seu tratamento é exemplar e tenho


certeza que quando publicado terá um impacto enorme sobre o
conhecimento da história das políticas ditas raciais no mundo e
no Brasil desde o final da Segunda Guerra Mundial bem como, e
talvez sobretudo, o papel significativo da Fundação Ford”.

Embora tenhamos ficado muitos satisfeitos com o pa-


recer, ele e eu, Wanderson dedicou-se ainda por mais dois anos a
refinar seu trabalho. Isto porque deslumbrou, desde seus primei-
ros dias de doutorado, que estava seguindo um caminho fértil e
praticamente sem volta no avanço de pesquisa e na reflexão sobre
a questão racial no pós-guerra. Mas nada foi fácil: se recebeu re-
conhecimento, sofreu também resistências acadêmicas em virtu-
de do ineditismo não só das fontes, mas das implicações que suas
pesquisas trazem ao desvendarem os complexos imbricamentos
existentes entre as políticas do Departamento de Estado norte-
-americano, da Fundação Ford e da produção de conhecimento
acadêmico sobre a questão racial negra.
Estou cada vez mais certa que muito menos que a sur-
preendente revelação de uma história ainda não contada que as
fontes de Wanderson revelam, o estranhamento, podemos di-
zer assim, em relação a seu trabalho está relacionado à consta-
tação de que houve intervenção direta, e não muito silenciosa, inquestionáveis, mesmo que, em última análise, alicerçados na
da Fundação Ford e do Departamento de Estado nas agendas complexa e imperativa agenda política de Guerra Fria. Uma
intelectuais, especialmente nas áreas de Ciências Sociais e de agenda que permitiu a Florestan Fernandes, por exemplo, como
História, que definiram de forma intensa o debate, a produção chamou atenção, o demógrafo William Petersen, nos Annals of
de ideias e de pesquisa sobre a questão negra. the American Academy of Political and Social Science, desenvolver
A massa de documentos e seu primoroso tratamento, um ‘olhar norte-americano’ sobre seu próprio país” (..).
entretanto, trataram de desmontar toda e qualquer resistência Espero que o leitor deixe-se surpreender ao longo deste
a este trabalho. Como bem salientou o parecerista anônimo da intenso trabalho acadêmico de pesquisa. Tenho certeza, não sairá
FAPESP, este é um estudo de impacto. Não temos dúvida de imune às suas surpreendentes revelações. Ele foi realizado por
que o leitor terá o prazer de encontrar aqui, além do ineditis- um jovem cientista social que tornou-se historiador e deixou-se
mo, um trabalho de pesquisa capaz de instigar novas abordagens levar em busca da “Boa História”.
nas várias áreas das humanidades. Além disso, capaz também de
questionar com profundidade e com a pertinência devida o úl- Elizabeth Cancelli
timo meio século de envolvimento intelectual e acadêmico com Universidade de São Paulo, agosto de 2017
políticas públicas de inclusão social e racial.
Não seria por demais salientar a evidente relação
da questão negra com as políticas da Guerra Fria, como bem
traz à tona este livro. E, neste sentido, o empenho de institui-
ções tão importantes como o Social Science Research Council, o
American Council of Learned Societies, as universidades de Boston,
Northwestern, Chicago, Wisconsin, Berkeley, Stanford, Indiana,
Columbia, Yale, Howard, Columbia, Harvard, Minnesota, Texas,
California, Michigan State e Universidade de São Paulo, por
exemplo, para o desenvolvimento de estudos sobre a questão ne-
gra. Foram as universidades, em grande parte, responsáveis pela
disseminação de noções fundamentais e pelo aggiornamento da
conceituação de raça, etnia e nação que se adequaram a deter-
minadas propostas de conquista da “negritude”, de práticas de
“tolerância racial” e de políticas governamentais de “inclusão so-
cial”, de fortalecimento identitário e educacional que, em mui-
tos casos, como veremos ao longo deste trabalho, tornaram-se
Apresentação

Este livro é a finalização de um longo trabalho de pes-


quisa iniciado em 2007, realizado durante meu doutorado e meu
pós-doutorado no Departamento de História da Universidade
de São Paulo (USP). É também a conclusão provisória para uma
reflexão pessoal mais ampla, instigada permanentemente, sobre o
estranhamento, o poder e a liberdade, questões sobre a condição
humana e a constante disputa, internacionalmente e na socieda-
de brasileira, sobre o que caracteriza o negro e sua cidadania.
A questão negra é um produto integral das atividades do
Grupo de Estudos sobre a Guerra Fria da USP, fundado pela Profª
Drª Elizabeth Cancelli em 2013, desde então dirigido a investigar
ideias, política e ideologia das guerras “psicológica” e “cultural” e a
estudar os valores éticos e morais destas investidas na tradição do
pensamento político e estratégico. Querida ex-orientadora, colega
de profissão e supervisora editorial deste trabalho, Cancelli é auto-
ra da proposta de renovação historiográfica que o Grupo persegue
e de que este livro pretende ser uma modesta expressão. Os cole-
gas cold warriors Júlio Cattai, Diego Penholato, Renata Meirelles,
Pâmela Resende, Gustavo Mesquita, Jéssica de Burgos, Luciana
Marta, Flávia Uliana, Aruã Lima, Ângela Artur, Alex Gomes,
Felipe Amorim1 e Roberto Baptista Júnior são, igualmente, meus
coautores prediletos neste livro.
A questão negra é também um oferecimento de Lílian
Rocha: a acrobata, a louca dos gatos, a vedete do século XIX
rediviva, a filha de Iansã, inquilina do nosso undécimo endereço,
ela, a companheira de uma vida inteira que você mais respeita.

1  Agradeço a Felipe Amorim por ter feito gentilmente a revisão final deste livro.
Recursos de bolsas de doutorado e pós-doutorado
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
Sumário
(FAPESP) foram fundamentais para desenvolver esta pesquisa,
bastante baseada em fontes primárias e inéditas e dependente do Introdução............................................................................... 17
acesso a arquivos norte-americanos. As arquivistas Idelle Nissila-
Stone, em 2010, no antigo arquivo da Fundação Ford de Nova
Iorque; e Bethany J. Antos, em 2013 e 2014, no Rockefeller Archive Capítulo 1 - A Fundação Ford e o Departamento de Estado
Center, de Sleepy Hollow (NY), foram, como também Vera Lúcia Norte-Americano: a montagem de um modelo de operações
Cóscia, então coordenadora do Fundo Florestan Fernandes, da no pós-guerra.................................................................... 27
Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), em 2009, gene-
rosas facilitadoras do trabalho de coleta da documentação. Capítulo 2 - As agendas culturais da Guerra Fria e o “Programa
Este livro se beneficiou também de críticas bem-vindas, Ideológico”: a CIA e a Fundação Ford na atração de elites
especialmente as feitas em 2012 pelos membros da minha banca de intelectuais........................................................................ 67
defesa de doutorado, Michael Hall, Sean Purdy, Francisco Carlos
Teixeira da Silva e Maria Helena Pereira Toledo Machado, que fo- Capítulo 3 - Desenvolvimentismo e transição democrática: o
ram sendo recuperadas nos anos seguintes no esforço de aprimo- Institute of Race Relations e os investimentos da Fundação Ford
ramento. Contribuíram igualmente os pareceristas anônimos das nas questões de raça............................................................... 115
revistas Angelus Novus, da USP, e Crítica Histórica, da Universidade
Federal de Alagoas (UFAL), onde partes preliminares deste traba- Capítulo 4 - A Doutrina Moynihan: o debate sobre a raça e o ne-
lho foram publicadas. A experiência de apresentar trechos do livro gro nas conferências de 1965 da Fundação Ford e da Academia
em construção no IIº Congreso de Historia Intelectual de América Americana de Artes e Ciências.............................................. 173
Latina, em Buenos Aires, em 2014, e no IV Encontro Nacional de
História dos Estados Unidos, em São Paulo, já em 2017, deixou um Capítulo 5 - A integração do negro na sociedade de classes:
impacto que também foi recuperado na redação. Florestan Fernandes em uma história do agendamento intelectual
Este trabalho começou numa conversa interestadual em nos anos 1960............................................................................ 225
um orelhão público, no Distrito Federal, em algum momento de
2007. Neste setembro de 2017, ele espera oferecer ao leitor uma
amostra dos esforços envidados para satisfazer à sua interrogação Apêndices.............................................................................. 273
original: quais, como e por que certas ideias e posturas nos são ofe-
recidas como princípios preferenciais do querer e do agir político.
Bibliografia citada.................................................................. 281
Wanderson Chaves
Santos, 22 de setembro de 2017
Siglas dos arquivos citados
NARA: National Archives and Records Administration, College Park, Maryland, EUA.
RAC: Rockefeller Archive Center, Sleepy Hollow, New York, EUA.
FFF: Fundo Florestan Fernandes, Coleções Especiais - Biblioteca Comunitária, Uni-
versidade Federal de São Carlos, São Carlos-SP.
RMMG: Richard McGee Morse Papers, Sterling Library, Yale University, New Ha-
ven, Connecticut, EUA.
Introdução

Este livro trata de três temas interligados: a) o deba-


te sobre políticas raciais na Guerra Fria; b) o financiamento da
Fundação Ford da agenda temática norte-americana sobre a
questão do negro; c) o desenvolvimento da agenda norte-ameri-
cana de reflexão sobre problemais raciais.
Nossa reflexão ainda contesta as teses da Fundação
Ford e da literatura especializada que advogam a independência
de formulação da Fundação em relação às políticas de governo
norte-americanas.
Nesse sentido, é interessante recuperar declarações
como as de Peter D. Bell (1940-2014), que, durante os anos
1960, foi assistente de direção (1965), vice-diretor (1968) e di-
retor (1967) do escritório da Fundação Ford no Brasil2. Para
Bell, a atuação da instituição no país se provou uma afirmação
dos princípios da “promoção do bem-estar” e da neutralidade e
independência política em relação a governos. Ele ofereceu en-
tre as provas dessa independência, o apoio ao Centro Brasileiro

2  Bell era graduado em História pela Universidade de Yale (1962) e mestre em


Relações Internacionais pela Universidade de Princeton (1964). Construiu uma carreira
como dirigente filantrópico e gestor em organismos internacionais e organizações
não-governamentais. Seu período na Fundação Ford se estendeu até 1976, onde
ainda ocupou posições como a de assessor de programas da área de América Latina e
Caribe da Divisão de Assuntos Internacionais (1966, 1969) e de diretor do escritório
do Chile (1970-1973). Posteriormente, exerceu uma infinidade de outras atividades:
foi vice-subsecretário do Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar de Jimmy
Carter (1977-81), diretor da Fundação Interamericana (1980-83), co-fundador (1982)
e membro honorário da Inter-American Dialogue, conselheiro sênior da Carnegie
Endowment for International Peace (1984-86), presidente da Edna McConnell
Clark Foundation (1986-95) e da organização CARE de ajuda humanitária (1995-
2006), ocupando desde os anos 1980 também as funções de curador da World Peace
Foundation e de diretor-executivo da Human Rights Watch em diversos períodos.

A questão negra 17
de Análise e Planejamento (CEBRAP) apesar dos questiona- Como em Três dias do Condor (1975), filme de Sydney Pollack, a
mentos do governo brasileiro e da Central Intelligence Agency exposição levará em conta a relação do trabalho de inteligência e
(CIA), a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos3. contrainteligência de governo em órgãos não-governamentais e
Bell e o consultor para a área de Ciências Sociais do escritório entre atividades de intelectuais6.
da Fundação Ford no Brasil, Frank Bonilla (1967-1972), foram A Fundação Ford participava intensamente em um seg-
os responsáveis por viabilizar o financiamento à proposta do mento dessa rede de investimento na “guerra psicológica”, carac-
Centro encaminhada por Fernando Henrique Cardoso. Falando terístico da Guerra Fria Cultural levada pelo governo norte-a-
ao Estado de São Paulo em setembro de 2012, Bell amarrou essa mericano: o da construção da denominada “esquerda não-comu-
recordação a um clichê: o agente da CIA que uma vez o inter- nista” ou “socialismo democrático”. O sentido dessa intervenção
pelou sobre o CEBRAP em 1969 era parvo, pouco familiarizado era estabelecer ou promover adesão ao ideal do chamado “Centro
com o público-alvo e com os fins da sua organização4. Vital”: a postulação de que o fim dos totalitarismos viria da ex-
O leitor acompanhará, especialmente nos dois primeiros tinção dos pólos políticos de direita e esquerda, através de so-
capítulos deste livro, a construção do modelo de relacionamento luções que favorecessem, convergissem ou se aproximassem das
que mais caracterizou a atuação internacional da Fundação Ford propostas veiculadas pelo “centro liberal”, o principal proponente
nos anos 1950 e 1960: a do dispositivo institucional costurado dessa visão que pretendeu conciliar esforços democratizantes, lu-
entre ela e o governo norte-americano, particularmente em re- tas antitotalitárias e anticomunismo7.
lação ao Departamento de Estado, órgão oficial de política ex- de l’anticommunisme: Le Congrès pour la liberté de la culture à Paris (1950-1975).
terna, e a CIA. A ênfase estará na apresentação desse modelo de Paris: Fayard, 1995. SAUNDERS, Frances, Stornor. Who Paid the Piper? The CIA
and the Cultural Cold War. London: Granta Books, 1999. Para o trabalho de referência
operações que se articulava ao que chamaremos de “Guerra Fria sobre esse mesmo tópico relativo ao Brasil, ver: CANCELLI, Elizabeth. O Brasil e os
Cultural”, uma aguda intervenção nos meios intelectuais desen- outros: o poder das ideias. Porto Alegre: ediPUCRS, 2012, parte II.
volvida como estratégia de agendamento político para estabe- 6  Empregamos “inteligência” e “contrainteligência” segundo os usos de época da
própria comunidade norte-americana de informações. Logo: a) “inteligência”: trabalho
lecer fidelidades e predominância internacional para os EUA5. de coleta, produção e análise de informação; b) “contrainteligência”: ações de “guerra
psicológica”, isto é, atividades de dissuasão e convencimento, realizadas com trabalho
3  Como é de conhecimento geral, o CEBRAP foi criado em 1969 composto por de espionagem, sabotagem e de proteção da comunidade de informações, destinadas
uma maioria de professores aposentados compulsioriamente pela ditadura. Estavam a orientar atitudes, comportamentos e a tomada de decisões políticas. LILLY,
entre os membros-fundadores: Fernando Henrique Cardoso, Boris Fausto, Cândido Edward P. The Development of American Psychological Operations, 1945-1951.
Procópio Ferreira de Camargo, Carlos Estevam Martins, Elza Berquó, Francisco Washington D.C.: Psychological Strategy Board, December 19, 1951. In: NARA.
Weffort, Francisco de Oliveira, José Arthur Gianotti, José Reginaldo Prandi, Juarez General CIA Records. CREST: 25-Year Program Archive. AMERINGER, Charles
Rubens Brandão Lopes, Leôncio Martins Rodrigues, Luciano Martins, Octavio Ianni, D. U. S. Foreign Intelligence: The Secret Side of American History. Lexington, MA:
Paul Singer e Roberto Schwarz. Lexington Books, 1990, pp. 1-7. O perfil dos envolvidos em esforços de “inteligência” e
4  WERNECK, Felipe e STURM, Heloisa Aruth. Para os EUA, Brasil era campo de “contrainteligência” como os da “Guerra Fria Cultural” é bem conhecido: em agências
batalha na Guerra Fria. O Estado de São Paulo, 16 de setembro de 2012, Nacional, A12. como a CIA, eram fundamentalmente profissionais de artes e humanidades formados
5  Os trabalhos de referência sobre esse tópico de pesquisa, particularmente em no Ivy League. THOMAS, Evan. The Very Best Men: The Daring Early Years of the
relação aos EUA e à Europa são os seguintes: COLEMAN, Peter. The Liberal CIA. New York: Simon & Schuster, 1995.
Conspiracy: The Congress for Cultural Freedom and the Struggle for the Mind of 7  A expressão “Centro Vital” foi cunhada em 1948 por um importante ideólogo das
Postwar Europe. New York: The Free Press, 1989. GRÉMION, Pierre. Intelligence concepções de “centro democrático” e de “fim da história” do pós-guerra: Arthur M.

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A principal contribuição da Fundação Ford para as ati- Na pequena literatura existente sobre a Fundação Ford,
vidades dessa rede política era a realização do agendamento in- na qual se destacam os memoriais institucionais, levanta-se, in-
telectual, o esforço por modelar o debate de ideias. Nesse sentido, sistentemente, a dimensão “humanitária” como aspecto central da
o patrocínio da Fundação fluía especialmente para beneficiários filosofia de trabalho da Fundação. É recorrente nessa bibliografia
como as think tanks, órgãos de assessoramento e consultoria po- ressaltar o mérito da missão filantrópica, o que, via de regra, gera
lítica que, além de cumprirem funções próprias de patrocínio e análises apologéticas interessadas em testar a eficácia das reali-
agendamento, forneciam canais especializados de intervenção e
zações e a sinceridade dos compromissos morais da instituição10.
formas abertas de disputa política. Essa estratégia de atuação da
Analisaremos essa “intervenção humanitária”, destaca-
Fundação tinha por complemento, nas suas ações de relações pú-
damente a que diz respeito às políticas raciais, com uma preten-
blicas, a defesa do mecenato politicamente desinteressado: pre-
são diferente: a de desconstruir o próprio projeto filantrópico da
valecia nas decisões de investimento o discurso sobre a identida-
de dos projetos apoiados com a “promoção do bem-estar”, tema Fundação Ford, abordando as estratégias e suportes intelectuais
ao qual a instituição vinculava seu projeto de patronato moral8. e políticos de sustentação.
Chamamos a atenção para como esse projeto de patro- As propostas de política racial que a Fundação Ford
nato moral, na prática filantrópica, designava para a Fundação elaborou ou buscou incentivar convergiam com o “centrismo
Ford uma modalidade específica de poder: a intervenção huma- democrático” e serão tema dos capítulos três ao cinco. A insti-
nitária. Esta modalidade de poder se realiza quando a instituição, tuição perseguia essa orientação política através de uma agenda
na sua autodesignada missão de zelo e cuidado – nesse caso, pla- de trabalho que estava alicerçada em três bases fundamentais: o
netário –, fundamenta sua política na oferta de apoio, mas inven- “desenvolvimentismo”, referido como a via de acesso do “atraso”
tando, em seu próprio direito, na definição do que é necessário à “modernidade avançada”; a formação de elites, objetivo que es-
socorrer, liberdades para estabelecer um universo de intervenção truturava uma ampla proposta de criação de recursos humanos;
legítima mais amplo do que o justificado pela filantropia9. e os direitos civis e a “tolerância racial”, dados como princípios
centrais do que deveria ser a gestão dos conflitos grupais.
Schlesinger Jr. (1917-2007). Schlesinger Jr. era historiador, professor da Universidade de
Harvard e membro-fundador do principal órgão de ativismo liberal do Partido Democrata: As “relações raciais” eram um objeto central para a ava-
o Americans for Democratic Action (ADA). SAUNDERS, Frances, Stornor. Op., cit., liação que a Fundação Ford fazia do estado de civilização das so-
passim, especialmente p. 65. CANCELLI, Elizabeth. A crise dos alienados e o revival da
intolerância. In: CANCELLI, Elizabeth. O Brasil e os outros. Op., cit. ciedades. A posição da Fundação era a de incentivo às mudanças
8  BERMAN, Edward H. The Influence of Carnegie, Ford, and Rockefeller
Foundations on American Foreign Policy: The Ideology of Philanthropy. Albany,
NY: State University of New York Press, 1983, passim. 10  Vejam-se, dentre outros, dois exemplares de qualidade dessa vertente de estudos.
9  A Fundação Ford agiria, portanto, segundo convenções do “poder pastoral”, PARMAR, Inderjeet. Foundations of the American Century: The Ford, Carnegie,
que abordamos aqui em livre interpretação de: FOUCAULT, Michel. Segurança, and Rockefeller Foundations in the Rise of American Power. New York: Columbia
território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução: University Press, 2012. NIELSEN, Waldemar A. The Big Foundations: A Twentieth
Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008, especialmente pp. 155-180. Century Fund Study. New York: Columbia University Press, 1972.

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no tratamento dado à “raça” e visavam transformar especialmente do Homem. Apesar da renovação13, havia uma continuidade14,
a esfera dos comportamentos: defendia que a “raça” era estrutu- inclusive sobre as causas do racismo e do modo a combatê-las.
rante para o caráter de toda a vida social e tratava as “relações ra- Nesse sentido, persistiria a identificação da incivilidade e da ig-
ciais” como expressão colateral de outros fenômenos estruturais. norância como males e origens de problemas como o bloqueio ao
A Ford indicava o uso instrumental das questões de pleno usufruto de direitos, dentre eles os sociais. Aí o marcante
raça na tentativa de influenciar outros fenômenos, especialmente fluxo de recursos da Fundação Ford ao apoio de investigações so-
em matéria de política internacional, daí a “questão racial” ter bre a exclusão e o combate aos preconceitos e à discrminação, já
sido especialmente trabalhada entre as atividades de duas im- que tidos como comportamentos que barravam o pleno respeito
aos direitos humanos15.
portantes divisões da Fundação Ford: a de Desenvolvimento
Este livro pretende ser uma janela para a compreensão da
Internacional e a de Assuntos Internacionais11.
primeira agenda de política racial da Fundação Ford no pós-guer-
Na Divisão de Assuntos Internacionais, “raça” estava ra e da segunda agenda, que começou a ser construída em 1967 e
incluída entre os objetos tratados nos projetos de “proteção às que alcança ao tempo presente. Proposta16 em quatro eixos: 1) de
liberdades intelectuais”, que ocupavam boa parte do seu traba- formação de lideranças; 2) de renovação dos costumes sociais e
lho. Quando a Fundação transferiu, em 1973, suas maiores pre- políticos, 3) de estabilização em relação à forma de vida do livre-
ocupações internacionais para o novo programa de “Direitos -mercado; e 4) de adequação à ordem política democrática.
Humanos”, as “questões de raça” foram aí incluídas, apresentan- 13  Analistas como o sociólogo Edward E. Telles, ex-assessor do programa de
do novidades em seu tratamento12. Direitos Humanos do escritório da Fundação Ford no Brasil (1997-2000), chegam
a defender que a Fundação Ford passou a ter uma política racial consistente apenas
A Fundação, durante os anos 1970, construiu uma no fim dos anos 1970, quando ela teria passado a ser planejada em termos de metas
agenda que buscava atualizar, na afirmação do emergente deba- globais, abrigada como uma área independente com equipe e foco de investimento
especializado dentro do programa de Direitos Humanos. TELLES, Edward E. US
te sobre o multiculturalismo, a reafirmação de seu programa de Foundations and Racial Reasoning in Brazil. Theory, Culture & Society; Thousand
Oaks, CA; v. 20, nº. 4, 2003.
“promoção do bem-estar” via desenvolvimento, direitos civis e 14  Acompanhamos aqui os argumentos dos críticos que identificaram o
tolerância. Nessa atualização, o esforço voltava-se para o estabe- amadurecimento, na década de 1980, das inflexões discursivas e políticas que
tornaram o multiculturalismo uma via de renovação das concepções liberais de
lecimento do “multiculturalismo” como a fórmula política capaz cidadania, dentre eles: BALIBAR, Etienne. Racism and Nationalism. In: BALIBAR,
de, finalmente, realizar a integralidade dos direitos fundamentais Etienne and WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Nation, Class: Ambiguous
Identities. Translation: Chris Turner. London: Verso, 1992 [1988]. ZIZEK, Slavoj.
Multiculturalismo ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. In: DUNKER,
Christian e PRADO, José Luiz Aidar (orgs.). Zizek crítico: política e psicanálise
11  Ver “Overseas Development” e “International Affairs” em “Evolução dos principais na era do multiculturalismo. São Paulo: Hacker Editores, 2005. MELAMED, Jodi.
programas operacionais da FF (1950-1970)”, na seção “Apêndices” deste livro. The Spirit of Neoliberalism: from Racial Liberalism to Neoliberal Multiculturalism.
12  Vide o extenso memorial sobre a atuação da Fundação Ford após 1973 de: Social Text; Durham, NC; v. 24, n. 4 ( January, 2006).
KOREY, William. Taking on the World’s Repressive Regimes: The Ford 15  KOREY, William. Op., cit., passim.
Foundation’s International Human Rights Policies and Practices. New York: 16  A exemplo da intervenção da livre-benfeitora “Grace”, personagem do filme
Palgrave Macmillam, 2007. Manderlay, de Lars Von Trier (2005).

22 Wanderson Chaves A questão negra 23


No primeiro capítulo, traçamos a história do início dades do Institute of Race Relations (IRR): consultoria privada
do relacionamento entre a Fundação Ford, o Departamento de de Londres que operava como órgão de pesquisa e lobby e que se
Estado e a CIA, quando se criou o modelo de operações no qual colocou nessa frente de trabalhos comparados tendo por princi-
a Fundação, a partir de 1950, passou a atuar de forma oficiosa e pal objeto o debate de políticas para o mundo “subdesenvolvido”.
encoberta em colaboração com as políticas de inteligência e pro- No quarto capítulo, tratamos de outra proposta de afir-
paganda do governo norte-americano17. mação da identidade de princípios entre desenvolvimento e qua-
No segundo capítulo, tratamos de estratégias desen- lidade das “relações raciais”, a Doutrina Moynihan, elaborada no
volvidas para se obter adesão intelectual nos embates da Guerra governo norte-americano como uma proposta de “reforma racial”.
Fria, em particular as empregadas na atuação mais especializada A Doutrina foi consolidada com o apoio da elite internacional
da Fundação Ford em relação a segmentos de esquerda. O foco dos especialistas pesquisadores de “problemas raciais” reunidos
da análise é a criação e gestão do “U. S. Doctrinal Program”, pro- pela Fundação Ford, em 1965, em duas das maiores conferências
grama secreto do Conselho de Segurança Nacional do governo temáticas da década: a “Conference on the Negro American”, re-
dos EUA. O Programa foi dirigido fundamentalmente às áreas alizada em Cambridge, Massachusetts, e a “Conference on Race
do mundo “em desenvolvimento” como tentativa de reorientar and Color”, realizada em Copenhague, na Dinamarca. A propos-
disputas teóricas e ideológicas que se encontravam centralizadas ta da Doutrina era a de integração dos negros à sociedade nor-
no marxismo e no chamado “neutralismo diplomático”. A prin- te-americana através da adequação do grupo à tradição nacional
cipal contribuição da Fundação Ford vinha do levantamento de do “cadinho”, mas agora numa renovada leitura dos fundamentos
alternativas não-comunistas de modernização, na impulsão de do melting pot e do próprio sentido de integração, como investida
novas temáticas de interesse intelectual com investimentos prin- de questionamento a postulações do Movimento dos Direitos
cipalmente em Ciências Sociais18. Civis. A Doutrina foi mais influente principalmente na passa-
No terceiro capítulo, abordamos uma das faces dessa gem para os anos 1970, na presidência de Richard M. Nixon
proposta de investimentos nas Ciências Sociais: a da orientação (1969-1974). Era uma resposta aos “distúrbios raciais” e disputou
do debate das “questões de raça” para a defesa da identidade entre a orientação do Poder Negro (Black Power) na luta racial.
desenvolvimento e qualidade das “relações raciais”, iniciativa da No quinto capítulo, investigamos as estratégias de
Fundação Ford que se estabeleceu no apoio à estruturação do agendamento do debate racial promovidas pela Fundação Ford
campo disciplinar das chamadas “relações raciais comparadas”. O no circuito de intercâmbio, fomento e divulgação acadêmi-
panorama dessa intervenção é apresentado na análise das ativi- ca por meio de um objeto: a trajetória de A integração do negro
na sociedade de classes, de Florestan Fernandes, nos anos 1960.
Mostramos como esse trabalho do sociólogo da Universidade de
17  Uma versão anterior deste texto foi publicada em: Revista Crítica Histórica.
Maceió: CPDHis-UFAL, v. 6, n. 11, 2015. Dossiê História e Literatura. São Paulo (USP) foi destacado pela rede intelectual identificada
18  Uma versão anterior deste texto foi publicada em: Revista Angelus Novus. São com a agenda da Fundação Ford por responder duas questões
Paulo: DH-FFLCH, v. 6, n. 9, 2015. Dossiê Racismo e Antirracismo.

24 Wanderson Chaves A questão negra 25


fundamentais colocadas pela Guerra Fria Cultural: a busca de Capítulo 1
projetos para a resolução da “questão racial” convergentes com as
perspectivas norte-americanas, e a da busca de construção de no-
vas “problemáticas latino-americanas” após a Revolução Cubana.
A integração, de Florestan, encaminhou, em sua análise sobre o
“problema negro” no Brasil, a aplicação regional que o diagnósti-
co da Fundação Ford esperava: solucionar a questão racial através A Fundação Ford e o Departamento de
do desenvolvimento. Estado Norte-Americano: a montagem de um
Este livro, um produto de pesquisa sobre ideias e proje-
tos da Guerra Fria Cultural das décadas de 1950 e 1960, preten-
modelo de operações no pós-guerra
de ser uma contribuição ao debate sobre a questão racial que visa,
como estratégia de eficácia contra argumentos legitimadores do A Fundação Ford, nos relatos memoriais produzi-
racismo, não a descoberta de “causas” para o problema, mas, via dos por seus integrantes ou por trabalhos por ela financiados,
desconstrução19, realizar o combate dos fins. costuma destacar a benevolência em sua trajetória institucio-
nal. Segundo o dirigente filantrópico norte-americano, Joel L.
Fleishman, autor de The Foundation: A Great American Secret.
How Private Wealth is Changing the World e advogado especialis-
ta na organização das fundações do mundo corporativo, essa vir-
tude benevolente não apenas orientou, no passado, as realizações
filantrópicas em geral, como ajuda, no presente, a explicar a his-
tória dos seus realizadores. Para ele, o filantropo é alguém que se
comporta virtuosamente, não apenas por praticar a beneficência,
mas também por portar as qualidades morais que o capacitam a
agir sempre como uma espécie de “espectador imparcial” 20.
O termo “expectador imparcial” é uma invocação direta
ao A Teoria dos Sentimentos Morais (1759), de Adam Smith. Na
leitura de Joel L. Fleishman desse clássico da filosofia moral, “es-
pectador imparcial” é todo aquele, no exercício do poder, capaz de
distanciamento pessoal e desprendimento em relação à coisa pú-
19  Como bem sugerido em: BALIBAR, Étienne. Racism Revisited: Sources,
Relevance, and Aporias of a Modern Concept. PMLA, New York, vol. 123, n. 15, 20  FLEISHMAN, Joel L. The Foundation: A Great American Secret. How Private
Special Topic: Comparative Racialization (Oct., 2008). Wealth is Changing the World. New York: Public Affairs, 2007, p. 41.

26 Wanderson Chaves A questão negra 27


blica. O enfrentamento do egoísmo no âmago da própria consci- ção que Bradford K. Smith, diretor do escritório da organização
ência estaria na origem do comportamento virtuoso, transportado no país, de 1991 a 199525, fez do histórico da agenda de trabalho
para a prática pública. O desapego, nesse sentido, seria a marca da Fundação. Para ambos, a identidade da instituição foi mol-
reconhecível do filantropo, submetida à prova justamente quando dada em torno de cinco metas progressistas: a elevação do nível
seus interesses mais privados estão envolvidos e ameaçados21. de bem-estar, a sustentabilidade no uso de recursos naturais, a
No estabelecimento de sua história institucional, a expansão dos direitos civis e sociais, a modernização e demo-
Fundação Ford segue a análise desses princípios de filantro- cratização das esferas econômica e de governo e o compromisso
pia evocados por Fleishman. No balanço que fez, em 1979, das com a escolarização26.
atividades desenvolvidas nas décadas de 1950, 1960 e 1970, a Sérgio Miceli também seguiu os argumentos de Richard
Fundação Ford deu destaque à centralidade de valores como Magat, de 1979, sobre a atuação global da organização, afirmando
o sentimento de altruísmo e, principalmente, a independência que a Fundação Ford comportava-se como “vanguarda do bem” no
pública enquanto instrumentos de sua filantropia corporativa. cumprimento de seus objetivos institucionais. Segundo ele,
Assinou o relatório o seu chefe de Relações Públicas, Richard
Magat22, que frisou: a isenção foi um princípio de atuação da [a] “vanguarda do bem” emerge exatamente do funciona-
mento bem protegido, material e institucionalmente, de
organização, defendido em sua independência de interesses par-
uma organização pujante a serviço (...) de uma postura li-
tidários domésticos, de injunções da política externa norte-ame-
beral, desinteressada, sem objetivos definidos, somente abrir
ricana e de ingerência do presidente e acionistas da Ford Motor caminhos, para que forças responsáveis, bem treinadas, com
Company em seus assuntos internos23. idéias claras, teóricas, sobre as possibilidades de reforma so-
No Brasil, estudiosos da Fundação Ford produziram re- cial, tenham condições de exercer um papel positivo” 27.
latos sobre a história da instituição invocando esse mesmo etos
memorialista. O sociólogo da Universidade de São Paulo (USP) Sérgio Miceli imputou essa definição de “vanguarda do
Sérgio Miceli organizou um livro publicado em 199324, resultado bem” também a pessoas-chave entrevistadas por ele para o semi-
do seminário comemorativo dos 30 anos da Fundação Ford no nário comemorativo dos 30 anos da Fundação Ford no Brasil,
Brasil, de uma perspectiva historiográfica que veio ao encontro como o historiador Thomas E. Skidmore, o longevo consultor do
dessas posições. Na ocasião, Miceli acompanhou a mesma avalia- escritório no Brasil; o economista e historiador Craufurd D. W.
Goodwin, ex-representante do programa de Questões Européias
21  Idem, ibidem, p. 32.
22  Diretor, sob as presidências de Henry T. Heald (1956-1965) e de McGeorge 25  Bradford K. Smith, antes de ingressar na Fundação Ford, foi o representante da
Bundy (1966-1979), da Divisão de Relatórios, renomeada, após 1979, para Escritório Inter-American Foundation no Brasil, ocupando o posto por toda a década de 1980.
de Comunicações. 26  SMITH, Bradford. Dedicação a valores democráticos. In: MICELI, Sérgio
23  MAGAT, Richard. Ford Foundation at Work: Philanthropic Choices, Methods, (coord.). Op., cit, p. 13-4.
and Styles. New York: Plenum Press, 1979, p. 32, 84. 27  MICELI, Sérgio. A aposta numa comunidade científica emergente. A Fundação
24  MICELI, Sérgio (coord.). A Fundação Ford no Brasil. São Paulo: Editora Ford e os cientistas sociais no Brasil, 1962-1992. In: MICELI, Sérgio (coord.).
Sumaré e FAPESP, 1993. Idem, ibidem, p. 53.

28 Wanderson Chaves A questão negra 29


e Internacionais (1970-1975); o economista Thomas J. Trebat, ex- além de compromissos com governos e políticas nacionais, inclu-
-diretor de programas para América Latina e Caribe; o sociólogo sive norte-americanas30.
Frank Bonilla, ex-assessor de programas para a área de Ciências Mônica Herz buscou provar que o argumento aplica-
Sociais no Brasil (1967-72); e os ex-diretores do escritório no país, va-se à atuação da Fundação Ford no Brasil, dizendo que eram
Peter D. Bell (1967-8) e William D. Carmichael (1968-1970) 28. provas materiais, exatamente, o suporte e o constragimento exer-
Central para essa análise, aplicada ao Brasil e interna- cido contra ela por governos nacionais, como o brasileiro31. Sua
cionalmente, era a noção de “convergência dissidente”. A expres- leitura é a de que houve convergências políticas e temáticas entre
são era utilizada por Sérgio Miceli para explicar que a “vanguar- agendas da Fundação Ford e do governo norte-americano, mas
da do bem” não era definida por seus compromissos com gover- resultaram da coincidência entre posições ideológicas, não de
nos e beneficiários, muito embora se sustentasse justamente no tratativas políticas32.
apoio a políticas de governo dos EUA e do Brasil e no apoio a A declaração de Sérgio Miceli de que a Fundação Ford
frações de esquerda, algumas delas, consideradas incômodas para se sustentava como uma “terceira via” entre beneficiários e gover-
tais governos. Esse sociólogo buscou na dissertação de mestra- nos também ia nesse sentido. Para ele, a capacidade da Fundação
do da historiadora e cientista política da Pontifícia Universidade de convergir e divergir de diferentes interlocutores, ao mesmo
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Mônica Herz, o fun- tempo em que afirmava sua própria agenda, era mérito de seu
damento lógico da não-conformidade da Fundação Ford com modelo internacional e internacionalista de operações. Por isso,
a política externa dos Estados Unidos, segundo a autora, feita a ênfase de Miceli de que o investimento da Fundação Ford no
em detrimento dos laços com agendas e redes diplomáticas do Brasil, nos anos 1960, particularmente o fomento às disciplinas
Departamento de Estado. Para ela, era central, e veio a ser tam- de Ciências Sociais, era independente e diferente dos interesses
bém para Miceli, a noção de “ator transnacional”, ideia recupe- nos intelectuais e na vida cultural, universitária e política latino-
rada de um quadro importante da organização, Peter D. Bell29, -americana manifestos na política externa norte-americana:
que entendia por essa definição, em 1971, a posse de um modelo
de operações sustentado na liberdade de fidelidades políticas e Os interesses externos norte-americanos e a diplomacia
responsável por gerenciá-los não constituem de modo al-
em uma afirmação radicalmente internacionalista. Segundo Bell,
gum um denominador explicativo ao qual se possa atri-
essa estratégia protegeria e projetaria esse tipo de instituição para
buir quer a direção quer o teor substantivo dos principais
investimentos efetuados pela Fundação Ford na América
28  Idem, ibidem.
29  HERZ, Mônica. Política cultural externa e atores transnacionais: o caso
da Fundação Ford no Brasil. Rio de Janeiro, 1989. 162 f. Dissertação (Mestrado) – 30  BELL, Peter D. The Ford Foundation as a Transnational Actor. International
IUPERJ, especialmente pp. 23-6 e 83-88. Herz desenvolveu sua reflexão partindo Organization; Madison, WI; v. 19, n. 3, 1971.
também de Samuel P. Huntington, cientista político que publicou em 1973 uma 31  O exemplo citado é o do apoio à criação do CEBRAP, em 1969, em São Paulo,
definição de “ator transnacional” que também tomava a atuação da Fundação Ford no qual a Fundação Ford enfrentou a hostilidade dos órgãos de segurança do Brasil.
como modelo. Vide: HUNTINGTON, Samuel P. Transnational Organizations in HERZ, Mônica. Op., cit., especialmente pp. 141-47.
World Politics. World Politics; Cambridge, UK; v. 25, n. 3, 1973. 32  Idem, ibidem.

30 Wanderson Chaves A questão negra 31


Latina. Nem o incidente da Baía dos Porcos e a crise dos a CIA, secreto ou sigiloso, constituiu-se como aspecto definidor
mísseis, nem o Projeto Camelot, nem a Diplomacia do e estruturante de sua atuação internacional. A compreensão das
Dólar no Caribe, nem quaisquer outras injunções da po-
iniciativas desenvolvidas pela Fundação Ford, investigadas neste
lítica externa norte-americana conseguem por si sós dar
trabalho, passará pela avaliação dessa trama, que atravessava fi-
conta do envolvimento da Fundação Ford com intelectu-
ais e cientistas latino-americanos33. nanciamentos, acordos, projetos e múltiplas relações e vínculos
governamentais e não-governamentais.
Assim também pensava Mônica Herz. Para ela, não
eram determinantes as injunções e relações diplomáticas, mas
a criação de canais particulares de divulgação e relacionamen- Os primeiros tempos da Fundação Ford
to. Neles, a Fundação Ford criou, em redes que aproveitavam o
Para o jornalista e crítico literário Dwight Mcdonald,
desenvolvimento tecnológico de comunicação e transportes do
funcionário e consultor da Fundação Ford no início dos anos
pós-guerra, uma agenda internacional capaz e segura contra a in-
1950, era notável que a então maior instituição filantrópica do
gerência do governo dos EUA, baseada na apologia ao progres-
mundo tivesse surgido duas décadas antes, emergencialmente,
so e aos valores liberais e democráticos34. Sérgio Miceli avançou
como produto imediato das leis de impostos36.
esse argumento e defendeu algo mais: a legitimidade desfrutada Henry Ford, o fundador da Ford Motor Company,
pela Fundação Ford, para além de seu segmento de beneficiários, era adversário do chamado “evangelho da riqueza”, ou seja, ao
era uma conquista política, granjeada na confiança conferida a chamamento de Andrew Carnegie e John D. Rockefeller para
seu status de organização privada. Era essa condição jurídica que que se investissem as grandes fortunas na renovação e sustenta-
assegurava a uma fundação filantrópica o nível de transparência ção de políticas sociais. Desde o início do século XX, Carnegie
a que uma organização governamental não poderia se equiparar, e Rockefeller vinham transformando esse apelo em um movi-
tendo em vista os limites impostos pelas razões de Estado35. mento de grandes consequências, com projetos de assistência
A proposta deste trabalho vai de encontro a essa argu- humanitária, reforma urbana e apoio às artes. Esse esforço de in-
vestimentos deu origem à Rockefeller Foundation e à Carnegie
mentação. O propósito é demonstrar que o relacionamento esta-
Corporation, as duas primeiras grandes fundações norte-ameri-
belecido pela Fundação Ford com o Departamento de Estado e canas. Henry Ford era um adversário da proposta desses filan-
tropos. Para ele, as políticas sociais deveriam restringir-se a duas
33  MICELI, Sérgio. A aposta numa comunidade científica emergente. A Fundação
Ford e os cientistas sociais no Brasil, 1962-1992. Op., cit., p. 37. Richard Magat, expondo
metas, espelhando, nesse sentido, o próprio “fordismo”: a univer-
a fala oficial da Fundação Ford, disse, diferentemente, que estes investimentos eram salização dos benefícios da cultura do consumo de massa e o me-
uma resposta à “resistência dos países da América Latina às políticas de modernização lhoramento das relações trabalhistas, via paternalismo patronal37.
e de mudança social dirigidas pelos Estados Unidos para a região durante os anos
1960”. MAGAT, Richard. Op., cit., p. 157.
34  HERZ, Mônica. Op., cit., p. 23 e ss 36  MACDONALD, Dwight. The Ford Foundation: The Men and the Millions.
35  MICELI, Sérgio. A desilusão americana: relações acadêmicas entre Brasil e New York: Reynal & Company, 1956, p. 42.
Estados Unidos. São Paulo: Editora Sumaré, 1990, p. 19. 37  RAYNOR, Gregory K. Engineering Social Reform: The Rise of Ford Foundation

32 Wanderson Chaves A questão negra 33


Henry Ford era considerado entre seus inimigos, em ção mudou em 1947 com os preparativos legislativos para uma
particular os apoiadores do New Deal (1933-37) nas esferas nova lei de impostos. A família Ford voltava ao foco de seus ad-
de governo e negócios, um dos responsáveis pela crise bancária versários em razão da gestão contábil que realizava na sua fun-
norte-americana de 1929. A lei de impostos de 1936, de auto- dação. A nova reforma tributária pretendia redefinir o status de
ria do secretário do Tesouro, Henry Morgenthau Jr., consolida- organização filantrópica e as isenções fiscais usando uma propor-
va a ofensiva lançada contra os críticos da política de Franklin cionalidade nos recursos gastos. O herdeiro da empresa, Henry
D. Roosevelt, presidente (1933-1945) que vinha expandindo o Ford II (1917-1987), foi, assim, pressionado pela Casa Branca e
poder de intervenção do Estado na administração econômica e por grandes fundações a estabelecer uma agenda de gastos míni-
na promoção de reformas sociais. Os presidentes da Ford e da mos para justificar seus benefícios tributários42.
General Motors, então seus mais vocais opositores, tornaram-se A alternativa apresentada à Fundação Ford passava
os principais alvos do novo imposto de renda e herança, que ele- necessariamente pelo “evangelho da riqueza”, o que significava
vava para 70% a alíquota a ser paga por patrimônio e renda supe- alterar o modo de realização da sua filantropia e a forma de se
rior a 50 milhões de dólares38. Durante o ano de 1936, mirando
relacionar com o governo e com a chamada sociedade civil. As
as isenções fiscais, 90% das ações da Ford Motor Company fo-
mudanças partiriam dos critérios de gestão, os responsáveis por
ram transferidas para o caixa de um fundo familiar, a Fundação
eliminar da atividade fundacional o aspecto puramente caritati-
Ford. A organização tornava-se, com essa medida contábil, a
vo. Nesse credo, a filantropia era gestora de um empreendimento
proprietária real das empresas e dos negócios da família39.
capitalista, devendo observar princípios de mercado na captação,
Enquanto Henry Ford esteve vivo40, não houve diálogo
aplicação e reprodução de ativos financeiros. Para assegurar esse
com os adeptos do “evangelho da riqueza”. A Fundação Ford era,
processo, o trabalho de fomento deveria ser guiado pela susten-
fundamentalmente, um canal para a transferência de ações na
tabilidade, o cálculo dos retornos econômicos e extraeconômicos
recapitalização dos caixas da Ford Motor Company, exercendo
dos gastos. O sentido final dessa proposta de administração era o
em seus primeiros dez anos de existência funções de caridade, de
cumprimento da função que as grandes fundações haviam cons-
forma apenas convencional, nos hospitais de Detroit41. A situa-
truído e assumido para si com a lei de impostos de 1936: agir de
forma privada, sendo um parceiro governamental na modelagem
and Cold War Liberalism, 1908-1959. New York, 2000. 398 f. Tese (Doutorado) –
Graduate School of Arts and Science, New York University, p. 4-41. da vida pública43.
38  O equivalente a 855 milhões em dólares de 2015, segundo o índice Purchasing A adesão a esses princípios finalmente se deu em 1948.
Power Calculator de correção monetária. Disponível em: <http://www.measuringworth.
com/uscompare/> Acesso em: 01 jul. 2016. Henry Ford II respondeu às pressões convocando um grupo de
39  RAYNOR, Gregory K. Op., cit., p. 47-8, 57. SUTTON, Francis X. The Ford
Foundation: The Early Years. Daedalus; Cambridge, MA; v. 116, n. 1, 1987, p. 42-3.
40  Ele faleceu em 1947. 42  RAYNOR, Gregory K. Op., cit., p. 58, 63-4.
41  Com gastos médios em torno 1 milhão de dólares ao ano, cerca de 9,45 milhão em 43  ZUNZ, Olivier. Philanthropy in America: A History. Princeton and Oxford:
dólares de 2015, corrigidos pelo ano de referência de 1946. Princeton University Press, 2012, Introduction e caps. 2-3.

34 Wanderson Chaves A questão negra 35


estudos que formularia o esboço geral de atividades da Fundação versitária. Atuavam, por meio de suas raízes e pontes com as elites
Ford. Para enfatizar esse novo compromisso, Ford concedeu uma norte-americanas, ao mesmo tempo nos ambientes acadêmico,
dotação milionária à Rand Corporation, um órgão de desen- governamental, não-governamental e empresarial47.
volvimento de tecnologia militar, oriundo do esforço de guerra. Foi por essa rede de contatos que eles chegaram ao ad-
A meta da medida era estabelecer a Rand Corporation como vogado H. Rowan Gaither Jr (1909-1961). Rowan era ex-di-
organização privada de caráter permanente. A medida também retor-assistente do Laboratório de Radiação do MIT, ex-con-
sinalizava a aceitação da Ford do papel de grande fundação, de sultor do National Defense Research Council e presidente da
instituição que passava a seguir o “evangelho da riqueza”, mobi- Rand Corporation. Com a dupla indicação de Donald K. David
lizando recursos conscientemente, sem publicidade e como par- e Karl T. Compton, foi contratado por Henry Ford II para coor-
ceira dos governos, convertendo-se em influente organização de denar a elaboração do projeto executivo da Fundação Ford. Da
vanguarda liberal44. sua contratação, esperava-se incisivamente uma agenda de atu-
Ernest Kanzler, executivo licenciado da Ford Motor ação doméstica e internacional bem definida, que consolidasse a
Company, amigo do falecido Edsel Ford45, iniciou o processo de Fundação Ford como parte da grande filantropia e que orientasse
reestruturação da Fundação Ford já em 1948, fazendo importantes os investimentos dos enormes recursos a serem gastos no futuro
nomeações. As principais foram as do decano da Harvard Business em cumprimento à legislação tributária48.
School, Donald K. David, e a do presidente do Massachusetts H. Rowan Gaither Jr. recrutou nessa rede de funcio-
Institute of Technology (MIT) e conselheiro da Fundação nários e consultores dos serviços de informação e dos extintos
Rockefeller, Karl T. Compton. Ambos tornaram-se curadores e órgãos do esforço de guerra, da qual ele, David e Kompton fa-
foram os primeiros membros do conselho de administração não ziam parte, e montou uma grande equipe. Esperava-se dessas
pertencentes à família Ford. David e Kompton, além disso, tinham elites profissionais contratadas – eram, majoritariamente, presi-
os requisitos que logo seriam fundamentais na política de nomea- dentes de universidades, diretores de instituições acadêmicas e
ção de diretores e altos funcionários. Eram egressos do Committee chefes de órgãos de classe – que trabalhassem, de acordo com
for Economic Development (CED) 46 e de conselhos consultivos Gaither, em torno de três principais demandas estruturantes do
do U. S. War Department, trabalhando para o esforço de guerra novo programa: a proposta de internacionalização das atividades
na ligação entre indústria armamentista e centros de pesquisa uni- da Fundação Ford; o diagnóstico dos impactos desse movimento
nas relações internacionais e assuntos do governo norte-ameri-
44  RAYNOR, Gregory K. Idem, ibidem, p. 71, 80. SUTTON, Francis X. Idem,
ibidem, p. 43, 52-3. REEVES, Thomas C. An Inquiry into the Origins of the Fund for de planejamento do comitê ajudaram a fundar e consolidar órgãos como o Banco
Republic. Pacific Historical Review; Berkeley, CA; v. 34, n. 2, 1965, p. 198-9. Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
45  Filho de Henry Ford, morto em 1943. 47  RAYNOR, Gregory K. Idem, ibidem, p. 89-92. SUTTON, Francis X. Op., cit., p. 46.
46  Grupo de lobby e órgão consultivo de pesquisa econômica. Em suas origens, 48  SCHRUM, Ethan. Administering American Modernity: The Instrumental
esteve vinculado à proposição da reorganização da ordem econômica mundial do University in the Postwar United States. Philadelphia, 2009. 281 f. Tese (Doutorado)
pós-Segunda Guerra, via liberalização do comércio internacional. As atividades – University of Pennsylvania, pp. 54-5.

36 Wanderson Chaves A questão negra 37


cano; e em sugestões sobre quais deveriam ser os compromis- “mundo livre” e o comunista, alinhada à agenda internacional
sos de longa duração. Ainda segundo Gaither, essa equipe foi norte-americana. Para os consultados, era urgente que se comba-
selecionada ao longo de 1948 e organizada em sete grupos de tessem as posições de apoio à não-intervenção do país em política
trabalho, assim nomeados: Economia, Humanidades, Medicina, internacional, muitas delas populares dentro dos próprios EUA.
Ciências Naturais, Ciências Sociais, Ciência Política e Educação. Segundo esses consultados, a Fundação Ford deveria modificar
O trabalho desses grupos, realizado ao longo de 1949, foi de pes- essas posições imediatamente, nos EUA e internacionalmente52.
quisa. Eles colheram de centenas de lideranças de governo, da Os dirigentes da Fundação Rockefeller, Yale
academia, em negócios, jornais, publicidade, Forças Armadas, Corporation, Carnegie Corporation, Sloan Foundation, Laura
sindicatos, partidos e filantropia corporativa, informações e su- Spelman Rockefeller Memorial Fund, Rosenwald Fund, Carnegie
gestões sobre como responder às três demandas do novo pro- Endowment for International Peace, Milbank Memorial Fund,
grama e sobre como desenvolver, para cada uma das sete áreas Commonwealth Fund, Social Science Research Council e Russel
de interesse, designadas nos grupos de trabalho, uma proposta
Sage Foundation, dentre os principais representantes filantrópi-
particular de investimentos49.
cos consultados na pesquisa, trouxeram sugestões de orientação
O material dessa pesquisa, segundo o historiador
teórica e executiva: que o conselho de administração contasse
Gregory K. Raynor, formado por dezenas de relatórios e mono-
com menos membros da família – à época, todos ligados à Ford
grafias, foi a base da proposta-síntese de políticas e programas,
sob a responsabilidade de H. Rowan Gaither Jr., que o conselho Motor Company, que sua esfera de atuação não concorresse com
curador da Fundação Ford finalmente aprovou em setembro de a de outra gigante da filantropia, e que os erros de organiza-
1950 como a carta de princípios da instituição. Conhecida como ção interna das fundações Carnegie e Rockefeller não fossem
Relatório Gaither50, o documento deu destaque à sugestão domi- repetidos. Tinha-se em mente que a estruturação da Rockefeller,
nante entre os consultados na pesquisa, como constam nos rela- em divisões disciplinares, e a da Carnegie, em órgãos autárquicos
tórios de entrevistas dos grupos de trabalho, segundo Raynor51, semi-independentes, era problemática. Esperava-se, de acordo
de que a Fundação Ford utilizasse seu potencial de recursos e com Gregory K. Raynor, que, acompanhando essa posição de
influência para atuar diretamente nos enfrentamentos entre o consenso entre os consultados, a Ford se voltasse a investir em
programas temáticos interdisciplinares, especificamente na área
49  GAITHER, H. Rowan, Jr. (ed.). Report of the Study for the Ford Foundation abrangente das chamadas “ciências sociais aplicadas” 53.
on Policy and Program. Detroit: Ford Foundation, 1950, pp. 11-13.
50  O texto conclusivo de Gaither teve sua versão definitiva finalizada por Wilbur H. Essas sugestões da comunidade filantrópica foram in-
Ferry, Earl Newson e Sidney Olson, na Earl Newson Company, firma de publicidade corporadas plenamente à proposta de reestrturação da Fundação
que realizava a assessoria em relações públicas da Fundação Ford nos anos 1950. Cf.:
RAC. Ford Foundation Records. Oral History Project. Series IV: Transcripts. Box 3.
Folder: Wilbur H. Ferry. 52  RAYNOR, Gregory K. Idem, ibidem, p. 93-4, 99. Vide também: SUTTON,
51  Havia garantias de confidencialidade. Por isso, nenhum dos consultados foi Francis X. Idem, ibidem, p. 46-7.
identificado nominalmente, exceto os representantes de organizações filantrópicas. 53  RAYNOR, Gregory K. Idem, ibidem, p. 111-3.

38 Wanderson Chaves A questão negra 39


Ford no Relatório Gaither, mas implementadas de forma desi- da Fundação Ford se adequou finalmente à proposta original
gual. O tratamento interdisciplinar das temáticas de trabalho foi do Relatório Gaither apenas ao longo da gestão de McGeorge
posto em prática imediatamente, da mesma forma que o foco Bundy (1966-1979), quando saíram de cena as lideranças for-
nas ciências sociais aplicadas. Os conselhos sobre a estruturação madoras e ocorreu a institucionalização dos fundos semiautôno-
interna da instituição foram implantados por completo apenas mos na grade dos programas permanentes. Em 1973, a Fundação
nos anos 197054. Ford se desfez de suas últimas ações da Ford Motor Company
Houve, na Fundação Ford, desde a presidência de Paul e, em 1976, Henry Ford II, o último membro da família, deixou
G. Hoffman (1950-53), passando-se pelas presidências de H. definitivamente o conselho de administração56.
Rowan Gaither Jr. (1953-1956) e Henry T. Heald (1956-1965), O período entre 1948, início das pesquisas comissiona-
um forte antagonismo entre grupos de poder, organizado em das pela Fundação Ford para a elaboração de seu novo programa,
torno de duas vertentes liberais, associadas, respectivamente, aos e setembro de 1950, momento da aprovação do novo programa,
partidos Democrata e Republicano. Havia ainda grande disputa escrito por Gaither, foi marcado por acontecimentos decivisos de
na prioridade dos investimentos, defrontando os envolvidos nas aprofundamento da chamada Guerra Fria. Ficaram registradas
atividades domésticas com os dedicados às atividades internacio- nos relatórios de pesquisa as perspectivas sombrias que o esta-
nais, competição que ganhou expressão na disputa dos grupos de blishment norte-americano mantinha sobre o futuro domínio da
poder pela ascendência sobre as decisões de Henry Ford II. Os tecnologia nuclear pela União Soviética e sobre o possível estou-
fundos semiautônomos, nos quais esses grupos internos vieram a ro da guerra na Coreia. Segundo Gregory K. Raynor, a essas pre-
acomodar suas afinidades e rivalidades55, tornaram-se parte fun- ocupações somavam-se, além da projeção do confronto nuclear,
damental das operações da Fundação e mantiveram a instituição temores variados, como a perspectiva de que uma nova era de
unida, apesar de, por duas décadas, ter havido recorrentes rumo- guerras territoriais estaria por vir, associada à emergente oposi-
res de desmembramento. Segundo Wilbur H. Ferry – consul- ção ao colonialismo, e que “guerras raciais”, como crescimento
tor de “relações públicas” da Fundação e assessor de imprensa de dos conflitos “intergrupais”, assolariam os países internamente,
Henry Ford II nos anos 1950 –, e Shepard Stone e Waldemar dentre eles e em destaque, os próprios EUA57.
A. Nielsen, respectivamente, diretor e assessor de programas da Esse establishment demandava uma intervenção aguda
divisão de Assuntos Internacionais nos anos 1960, a estrutura e global para prevenir essas ameaças e colocava-se, portanto, de
acordo com a afirmação internacional dos Estados Unidos, que
54  Idem, ibidem.
55  Eram exemplos de fundos deste tipo: The Fund for Adult Education, estabelecido
vinha sendo impulsionada pela Casa Branca, sob a presidência
por Paul H. Helms, dirigido por C. Scott Fletcher; The Fund for the Advancement de Harry S. Truman (1945-1953), por meio do estabelecimento
of Education, estabelecido por Frank W. Abrams, dirigido por Clarence H. Faust;
East European Fund, estabelecido por George Kennan, dirigido por Philip E. Mosely;
The Fund for Republic, estabelecido por Paul G. Hoffman, dirigido por Robert M. 56  Vide, para estes três testemunhos fundamentais: RAC. Ford Foundation Records.
Hutchins; Intercultural Publications, presidido por James Laughlin; e Resources for Oral History Project. Series IV: Transcripts. Boxes 1-3.
the Future, presidido por Horace M. Albright. 57  RAYNOR, Gregory K. Idem, ibidem, p. 100.

40 Wanderson Chaves A questão negra 41


de normas de reorientação política e novos princípios de gover- Relatório Gaither, os princípios básicos do bem-estar humano
no e de política externa. A Doutrina Truman, lançada em 1947; do ambiente de paz59.
o Programa Ponto Quatro, de 1949; o documento NSC 68 e a As Ciências Sociais foram escolhidas como o principal
Campanha da Verdade, ambos de 1950, foram as principais ini- instrumento da missão institucional, bem como do trabalho de
ciativas desse esforço, e era para ele que a atuação da Fundação parceiros e beneficiários na realização dessa agenda permanente,
Ford estava sendo demandada58. definida no Relatório Gaither. Das Ciências Sociais, esperavam-
O Relatório Gaither, em conformidade com essa de- -se as técnicas e o conhecimento para neutralizar a ameaça aos
manda, buscou afirmar qual deveria ser, segundo a Fundação, a fundamentos da “boa vida” colocada pelos chamados “excluídos
contribuição da instituição nessas propostas doméstica e interna- sociais”. A ação “irracional” dos “excluídos” era vista, no relatório,
cional de intervenção. como um risco aos direitos dos usufrutuários da “boa vida” e um
risco para eles próprios, uma vez que essa irracionalidade poderia
prejudicar processos de universalização da “boa sociedade” que
O Relatório Gaither, a boa vida e as Ciências Sociais lhes beneficiariam potencialmente60.
Na análise de Gregory K. Raynor, tratava-se de ava-
O enfrentamento desses perigos seria pela via da pro- liação que tinha por fim uma intervenção no modo de vida
moção da “paz” e do “bem-estar”. Essas metas, definidas no das “minorias” dos EUA e das populações “atrasadas” ao redor
Relatório Gaither em torno de princípios de segurança e de do planeta. Com os recursos das Ciências Sociais, esperava-
uma forte proposta civilizatória, encarnavam os valores que de- -se poder compreendê-las e orientá-las, como garantia contra a
limitavam o horizonte ideal, dentro do qual, para a Fundação predisposição delas à violência e à instabilidade, para que bus-
Ford, seriam possíveis a “boa vida” e o estabelecimento da “boa cassem o estilo de vida norte-americano como o ideal existente
sociedade”. O Relatório Gaither orientou, para o cumprimen- de bem-estar61. Nessa orientação do Relatório Gaither sobre
to dessas metas, que a Fundação se dedicasse a duas frentes de como lidar com os “excluídos”, assinalada por Raynor, é fácil
trabalho. A primeira, de combate às ameaças totalitárias de es- reconhecer a clássica formulação tocquevilleana, de que a de-
querda e direita e às formas beligerantes e não-democráticas de mocracia, um gênero natural da vida norte-americana, floresceu
ali graças à estabilidade e à segurança, asseguradas ao país pela
política, tendo em vista a estabilidade e segurança do ambiente
ausência de miséria e de pobreza62. O argumento apresentado
internacional. A segunda, considerada dependente do avanço da
primeira, de promoção da liberdade política, da segurança civil,
59  GAITHER, H. Rowan, Jr. (ed.). Idem, ibidem, p. 17-24.
militar e econômica, do acesso a educação e cultura, da civilidade 60  Idem, ibidem.
61  RAYNOR, Gregory K. Idem, ibidem, p.109.
e da tolerância pessoal como normas morais, enfim, conforme o 62  A historiadora Elizabeth Cancelli tem chamado a atenção para como o diagnóstico
positivo de Alexis de Tocqueville sobre a vida política no país, feito em Democracia
58  Idem, ibidem. na América, de 1835, tem inspirado visões duradouras que ressaltam ser justamente

42 Wanderson Chaves A questão negra 43


no Relatório Gaither, nesse sentido, era o de que a “força de- mentos na formação de pessoas dirigidos a instituições acadêmi-
mocrática” de nações como os EUA estava no seu progresso cas e de pesquisa e a canais editoriais e de divulgação65.
econômico, um pré-requisito estrutural para que houvesse “paz Visando consolidar a prioridade conferida ao desen-
social”, o cumprimento das metas de bem-estar e a existência volvimento econômico, o Relatório Gaither estipulava que a
de uma esfera pública plena. Do contrário, haveria pobreza e Fundação se ligasse, para a identificação de áreas de interesse
degradação ao autoritarismo político63. comum, ao principal fiador dessa proposta: o Departamento de
A intervenção da Fundação Ford, segundo prescrevia o Estado. O propósito era a divisão de tarefas em uma agenda com-
Relatório Gaither, se daria pela formação de quadros e recursos partilhada. A Fundação Ford julgava poder contribuir em duas
humanos, esforço que deveria ser voltado à educação de elites.
áreas de interesse imediato do governo: propaganda, para escla-
Essa proposta de intervenção, como veio a se tornar um princípio
recer o público norte-americano e a comunidade internacional
muito bem observado nas operações da instituição, era de mo-
bilização intelectual. Conforme o relatório, deveriam ser visadas, sobre a posição dos Estados Unidos contra o “totalitarismo so-
dentre as metas principais desse esforço de formação, influir em viético”; e inteligência, para suprir os operadores de política ex-
dinâmicas universitárias, econômicas e governamentais, orientar terna com informações oriundas de canais externos à diplomacia.
o debate público sobre o combate à pobreza e sobre a moderni- Esperava-se, nessas duas frentes, apoiar governos e organizações
zação social no sentido dos princípios de bem-estar defendidos impossibilitados de se apresentarem publicamente como aliados
pela Fundação e alastrar a defesa da chamada “agenda democrá- ou simpatizantes dos EUA66.
tica”, isto é, da centralidade da livre concorrência, da igualdade Ao esforço de propaganda e informação estariam asso-
de oportunidades e da elevação do padrão de vida como valores ciados dois dos cinco programas temáticos originais da Fundação
políticos em todas as sociedades64. Ford: o “Estabelecimento da Paz” (depois de 1953, denominado
As Ciências Sociais – enfatizadas pelo Relatório como
“Desenvolvimento Internacional”), que concentrava a maior par-
a área de desenvolvimento dos instrumentos teóricos e aplicados
te das atividades de ultramar, e o “Fortalecimento da Democracia”
da intervenção – seriam as grandes beneficiadas pelos investi-
(depois de 1953, denominado“Relações Públicas”), que adminis-
estas as grandes virtudes da democracia moderna. Para Tocqueville, estaria no valor trava programas domésticos, voltados a problemas da sociedade
do trabalho o elemento de unidade e tradição do civismo pátrio norte-americano, norte-americana com dimensão e repercussão internacionais67.
sendo suas fontes fundamentais a ética religiosa protestante e o individualismo
moral, responsáveis por conferir a esse valor a mais alta importância. Para o francês,
os EUA viviam uma situação privilegiada por terem se livrado pelo próprio labor 65  Idem, ibidem, p. 43-48.
das limitações da miséria que assolavam outras sociedades, demonstrando, no modo 66  Idem, ibidem, p. 31-33.
de vida do seus cidadãos natos, que labor e liberdade caminhariam juntas e que seu 67  Os outros três programas propostos no Relatório Gaither, implantados a partir de
mútuo desenvolvimento seria indispensável para a ordem democrática. CANCELLI, 1951, foram o de “Desenvolvimento Econômico e Administração”, o de “Educação” e
Elizabeth. Em nome da virtude, da política e de Deus. In: CANCELLI, Elizabeth. O o de “Ciências do Comportamento”. GAITHER, H. Rowan, Jr. (ed.). Idem, ibidem,
Brasil e os outros. Op., cit. p. 53-69. FORD FOUNDATION. Annual Report for 1953. New York: Ford
63  GAITHER, H. Rowan, Jr. (ed.). Idem, ibidem, p. 17-24. Foundation, 1953, p. 26-45. Mais detalhes, ver “Evolução dos principais programas
64  Idem, ibidem, p. 28-30, 38. operacionais da FF (1950-1970)”, na seção “Apêndices” deste livro.

44 Wanderson Chaves A questão negra 45


O programa de “Estabelecimento da Paz” nasceu como do ponto de vista predominante, o desenvolvimento do potencial
contribuição às demandas do Departamento de Estado em três e da correção da “filosofia democrática” do país70.
pontos: fornecer informações ao segmento executivo do gover- As conversações para implantar o sistema de cooperação
no68, influenciar as Nações Unidas e os organismos internacio- entre a Fundação Ford, o Departamento de Estado e a CIA come-
nais na direção da aliança militar norte-americana em questões çaram a partir de setembro de 1950, com a aprovação da proposta
militares e de segurança, e formar elites políticas em áreas “não- de políticas e programas do Relatório Gaither. Essas tratativas se
-desenvolvidas”, como uma agenda de longa-duração para a deram em um momento em que esses órgãos de governo bus-
composição de quadros executivos nacionais e internacionais69. cavam normatizar o uso dos meios secretos na execução de suas
As atividades do programa “O Fortalecimento da atividades de informação e de propaganda. O debate, fundamental
Democracia”, muito voltadas à formação de público para ques- para o modo como a Fundação seria inserida no circuito diplo-
tões políticas, representavam o esforço da organização em mo- mático e de inteligência, girou em torno de novas definições para
dificar a imagem negativa da proposta democrática dos EUA. essas duas atividades, opondo um grupo, que defendia a separação
Assuntos, como o da “Questão Negra”, que colocavam os EUA formal entre o trabalho de informação e o de propaganda, a outro,
em posição de fragilidade passariam pelo trabalho de reorienta- que defendia que deveriam ser plasmadas para darem origem a um
ção dessa área da Fundação Ford. A investida era na reconstrução ramo diferente, o de atividades “psicológicas” 71.
dos temas por meio da participação da academia e de universi- Entre os defensores da separação das atividades de pro-
dades em pesquisa teórica e produção de conteúdo publicitário. paganda e informação, maioria no Departamento de Estado e
Nesse caso, em particular, a proposta era a de que os conflitos no Departamento de Defesa, dizia-se que a propaganda era um
raciais, apresentados em parte considerável da literatura temática recurso negativo e problemático que personificava as próprias
como um elemento de tensão permanente da vida social norte-a- estratégias soviéticas: se a verdade estava na informação, na pro-
mericana, fossem tratados conforme a visão oficial e de governo paganda estaria a “ideologia”. A equivalência entre ambas pres-
como uma expressão saudável de aperfeiçoamento da esfera pú-
blica nacional. Ou seja, tais conflitos expressariam, ao contrário 70  Idem, ibidem, p. 62-9. As questões de governo e de direitos civis eram o principal
foco do programa “O Fortalecimento da Democracia”. Neste programa, se cruzavam
68  Sobre esse ponto, o Relatório Gaither destacava a importância do fomento à vários dos investimentos da Fundação feitos nas áreas de educação, juventude e
pesquisa acadêmica, especialmente a de campo, a ser apoiada para produzir informação “desenvolvimento urbano”. Em 1966, o programa foi integrado à nova Divisão
sensível para questões do interesse do governo norte-americano. GAITHER, H. Nacional, criada para reorganizar esses interesses cruzados, de maneira estruturada,
Rowan, Jr. (ed.). Idem, ibidem, p. 62-9. como a plataforma de política doméstica da Fundação Ford para os Estados Unidos.
69  Idem, ibidem, p. 52-61. Este programa deu origem a três sub-áreas. A “Internacional 71  Os serviços diplomáticos, militares, secretos e de informação dos Estados Unidos
Training and Research”, de intercâmbio internacional; a “Internacional Affairs”, vinham passando por um processo de reconstrução desde a promulgação do National
uma frente de sustentação global à atividades de cunho intelectual; e a “Overseas Security Act, de 26 de julho de 1947, que determinou, entre suas disposições iniciais, a
Development”, que concentrou acordos de cooperação econômica internacional, criação da CIA e do Conselho de Segurança Nacional. O debate sobre a consolidação
estabelecidos através dos escritórios locais. Estas sub-áreas foram extintas em 1966. das “atividades psicológicas” foi decisivo na reformulação dos órgãos de política
Suas atividades foram integradas entre si à nova “Divisão Internacional” da Fundação externa que passou a ocorrer. LILLY, Edward P. The Development of American
Ford, que foi dividida em seções regionais, e, estas, em escritórios nacionais. Psychological Operations, 1945-1951. Op., cit.

46 Wanderson Chaves A questão negra 47


suporia o desprezo “totalitário” pela identidade com a “verdade”, Unidos durante a administração de Harry S. Truman (1945-53).
que fundaria na “mentira” uma perigosa opção tática72. Essa proposta, voltada a ações de combate a inimigos internos e
Por outro lado, o estabelecimento da noção de “guerra externos, assimilou a Fundação Ford, segundo Pierre Gremion,
total” como princípio de atuação de serviços secretos – dentre às ações de “guerra total” 75.
eles, o Office of Strategic Services (OSS), criado para superar de-
ficiências na inteligência das Forças Armadas durante a Segunda
Guerra – tornaria essa distinção de valor, segundo argumentou o A Fundação Ford e o Departamento de Estado
historiador Pierre Gremion, quando não uma mera formalidade,
uma questão de profundo segredo73. Na construção de estratégias Paul G. Hoffman (1891-1974) não havia sido a primeira
opção do conselho de curadores para a presidência da Fundação
chamadas de “totais”, para articular os eventos militares, políti-
Ford, que preferia para a posição o dono e diretor da Columbia
cos e econômicos da guerra, órgãos precursores da CIA, como a
Broadcasting System (CBS), Frank Stanton. Com a recusa de
OSS, fundiram os trabalhos de informação e propaganda em um
Stanton, os protagonistas do processo de seleção, Henry Ford II
só, passando a designá-los como “psicológicos”, pois essa seria
e Donald K. David, voltaram-se para Paul G. Hoffman, executi-
sua finalidade essencial. A função deles era gerar, no público, res-
vo licenciado da Studebaker Corporation, comandante do Plano
postas políticas desejáveis, sendo a informação aquele dado pro-
Marshall (Economic Cooperation Administration - ECA) na
gramado para conter “maior proporção de verdade” e a propagan-
Europa. O contato entre eles foi feito por William Benton, sena-
da, aquele com maior “abertura à interpretação” pelos receptores. dor do Partido Democrata, secretário-assistente de Estado e edi-
A revelação de distinção entre as duas era difícil, uma vez que a tor-chefe da Enciclopédia Britânica, que, como Donald K. David
lógica das fontes e a opacidade das narrativas era um critério da e o próprio Paul G. Hoffman, era integrante do Committee for
sua própria produção: quanto mais inescrutáveis seus fundamen- Economic Development (CED) 76.
tos de “verdade”, maior, supunha-se, sua eficácia e “veracidade” 74. O convite foi feito no final de 1949, mas as negociações
Foi essa estratégia, a de “guerra total”, que foi incor- duraram um ano. Paul G. Hoffman exigia autonomia de ação e
porada à operação dos órgãos de política externa dos Estados concepção na implantação do Relatório Gaither e liberdade para
nomear funcionários e assessores. Também pedia para não aban-
72  GREMION, Pierre. The Partnership between the Ford Foundation and the
Congress for Cultural Freedom in Europe. In: GEMELLI, Giuliana (ed.). The Ford donar o Plano Marshall e que a sede de seu gabinete fosse em
Foundation and Europe (1950’s-1970’s). Cross-fertilization of Learning in Social Pasadena, em Los Angeles, o que lhe foi concedido, em 1º de ja-
Science and Management. Brussels: European Interuniversity Press, 1998, p. 139-144.
73  Idem, ibidem.
neiro de 1951, como barganha por sua saída da direção da ECA77.
74  LILLY, Edward P. Op., cit., p. 9-10. Esta definição de “atividades psicológicas”
segue também o seguinte documento: relatório do Assistente Especial ao Presidente,
Nelson A. Rockefeller, apenso ao memorando do secretário-executivo do Conselho de 75  GREMION, Pierre. Op., cit., p. 137 e ss., especialmente p. 139-144.
Segurança Nacional, James S. Lay, Jr., de 27 de dezembro de 1955. P. 4. In: NARA. RG 76  RAYNOR, Gregory K. Idem, ibidem, p. 177-9.
59: Department of State. Policy Planning Council (1961-1969). Series: Subject Files, 77  Idem, ibidem, p. 189. SUTTON, Francis X. Idem, ibidem, p. 53. FORD
compiled 1954-1962. Box: 95. FOUNDATION. Annual Report for 1951. New York: Ford Foundation, 1951, p. 6.

48 Wanderson Chaves A questão negra 49


Paul G. Hoffman cercou-se de ex-funcionários com 19 daquele mês. Vinte e quatro dirigentes de grandes fundações
quem havia trabalhado no Departamento de Estado. A maio- também compareceram80.
ria partilhava de orientação internacionalista e liberal, a iden- Esse evento, a “Consultive Conference with
tificação intelectual com a Universidade de Chicago, além Representatives of Foundations on Problems of Information and
de conexões políticas com o Partido Republicano. Seu círculo Education on Foreign Affairs”, era a culminância de encontros
mais íntimo era formado por Robert Maynard Hutchins, ex- e tratativas mais informais, que vinham sendo realizados en-
-reitor da Universidade de Chicago, acompanhado de Milton tre dirigentes filantrópicos e o Departamento de Estado desde
Katz, especialista em direito internacional da Universidade de a proclamação da Doutrina Truman, em 194781. Discutiam-se,
principalmente, o agenciamento das fundações pelo governo e a
Harvard; Chester C. Davis, diretor do Federal Reserve Bank de
posição delas sobre a formulação e a execução da política externa.
Saint Louis, membro do comitê de pesquisa do CED, ambos
A crescente interlocução entre diplomacia e filantropia foi refi-
nomeados diretores; e de Joseph M. McDaniel Jr., nomeado as-
nada em posições inauguradas nos três anos seguintes, através do
sessor especial, decano da Kellogg School of Management da Smith-Mundt Act, do Programa Ponto Quatro, da Campanha
Universidade de Northwestern78. da Verdade e do documento NSC 68, ações que vieram promo-
Pouco depois da posse, veio o convite para que Paul ver maior articulação entre fundações e governo. Por meio dessas
G. Hoffman participasse de uma conferência convocada pelo medidas foram implementados aspectos fundamentais da fór-
Departamento de Estado, para abril de 1951. O evento reuni- mula diplomática buscada por Harry S. Truman.
ria diplomatas e diretores-executivos de grandes fundações dos
80  Dentre eles: Harvey H. Bundy, da World Peace Foundation; Paul J. Braisted, da
Estados Unidos para debater o aproveitamento das informa-
Edward W. Hazen Foundation; Oliver C. Carmichael, da Carnegie Foundation for
ções disponíveis sobre política internacional e áreas externas. the Advancement of Teaching; Evans Clark, da Twentieth Century Fund; Chester
Esperava-se fazer melhor uso delas para a educação da popula- I. Barnard e C. Burton Fahs, da Rockefeller Foundation; Julie d’Estournelles, da
Woodrow Wilson Foundation; Marshall Field e Maxwell Hahn, da Field Foundation;
ção doméstica e do exterior sobre o papel do país nas relações in- Perrin C. Galpin, da Grant Foundation; John Gardner, da Carnegie Corporation of
ternacionais79. Chester C. Davis foi o representante da Fundação New York; Clyde V. Kiser, do Milbank Memorial Fund; Edward C. Miller, da Near
East Foundation; Emory W. Morris, da W. K. Kellogg Foundation; William Raitzel,
Ford no evento, realizado em Washington, entre os dias 18 e da Brookings Institution; John D. Rockefeller III, do Rockefeller Brothers Fund;
Frank Fremont-Smith, da Josiah Macy, Jr., Foundation; Philip Talbot, do Phelps
78  Apenas Robert Maynard Hutchins não havia tido vínculos com o Plano Marshall na Stokes Fund; Howard E. Wilson, da Carnegie Endowment for International Peace;
Europa. H. Rowan Gaither Jr, importante nome entre os primeiros diretores, foi indicado E. K. Wickman, do Commonwealth Fund; e Arnold J. Zurcher, da Alfred P. Sloan
e assegurado na posição por Henry Ford II, contra a expressa resistência de Paul G. Foundation. Minutas de discussão “Consultive Conference with Representatives
Hoffman. SCHRUM, Ethan. Op., cit, p. 56. RAYNOR, Gregory K. Idem, ibidem, p. 202. of Foundations on Problems of Information and Education on Foreign Affairs”.
79  Para informações sobre os preparativos do evento, ver: carta de Bernard L. Gladieux Washington, D.C, Department of State, 18-19 de abril de 1951. In: NARA. RG
[Fundação Ford] para Dean Acheson [secretário de Estado], de 9 de abril de 1951; 59: Department of State. Office of the Assistant Secretary for Public Affairs. Public
carta de Francis H. Russel [diretor do Escritório de Relações Públicas: Departamento Services Division. (1953 - ca. 1959). Series: Records Relating to Conferences and
de Estado] para John Howard [Fundação Ford], de 10 de abril de 1951; e carta de Viola Meetings. Box 140.
K. Pedersen [secretária de Paul G. Hoffman], para Dean Acheson, sem data. In: NARA. 81  Esses encontros eram recorrentes, como se verifica da documentação do
RG 59: Department of State. Office of Public Affairs. Division of Public Liaison Departamento de Estado no período, especialmente a dos escritórios de Inteligência
(12/12/1944-1953). Series: Subject Files of the Chief, compiled 1945-1951. Box 126. e de Relações Públicas.

50 Wanderson Chaves A questão negra 51


A primeira dessas medidas, a Doutrina Truman, foi de como era recebida a propaganda do Departamento de Estado
lançada pelo presidente em sessão conjunta do Congresso dos e de instituições não-governamentais dirigida ao público inter-
Estados Unidos, em 12 de março de 1947, estabelecendo a sus- nacional. A lei representava uma oportunidade para mobilizar
tentação de uma política de defesa planetária pelo governo nor- as grandes fundações e organismos internacionais em torno dos
te-americano. Dirigia-se à contenção dos movimentos militares programas de assistência técnica dos EUA85.
soviéticos e a suas ações de conquista de aliados entre países in- Nas conversações preparatórias para a “Consultive
dependentes ou alinhados aos Estados Unidos82 e dispunha tam- Conference with Representatives of Foundations on Problems
bém sobre a criação de uma política de propaganda para a divul- of Information and Education on Foreign Affairs”, de abril
gação dos valores do estilo de vida norte-americano. Um outro de 1951, o Departamento de Estado dirigiu a essas organiza-
ponto da doutrina era fazer o público internacional reconhecer ções não-governamentais frequentes apelos para que exerces-
na sociedade norte-americana atributos e valores particulares, sem mais profundamente suas funções externas. Já em um en-
como a abundância material, o acesso ao consumo e à tecnologia contro em Washington D.C., em 16 de dezembro de 1950, o
e o respeito pela liberdade individual e pela democracia política. Departamento de Estado havia solicitado aos presidentes da
O Departamento de Estado articulava-se às grandes fundações Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, da
para a parceria teórica e executiva, em uma investida no planeja- Carnegie Corporation, do Milbank Memorial Fund e das fun-
mento de medidas de assistência técnica, econômica e militar83. dações Rockefeller, Ford e Russel Sage um compromisso des-
Essa articulação entre diplomacia e organizações não- se tipo e que participassem do resgate de programas ameaçados
-governamentais ganhou seu primeiro grande ímpeto com a pro- de fracasso por falhas estratégicas e por limitações executivas da
mulgação do Smith-Mundt Act. A lei, de 1948, determinava que prática diplomática. Discutiram-se, na ocasião, alternativas para
quaisquer atividades culturais e educacionais promovidas pelo a execução de programas como o Ponto Quatro86.
Estado, bem como as reguladas ou autorizadas por ele, estives- O Programa Ponto Quatro, lançado por Harry S.
sem unidas às de informação, na gestão das políticas oficiais de
85  Conforme avaliação do próprio Departamento de Estado: The Genesis of Point
disseminação e de captação externa de dados de inteligência84. Four Program. In: UNITED STATES DEPARTMENT OF STATE. Foreign
A Casa Branca esperava poder ampliar o conhecimento sobre Relations of the United States, 1949. National Security Affairs, Foreign Economic
Policy, Volume I. Washington D.C.: U.S. Government Printing Office, 1976,
as áreas visadas por órgãos de governo e obter melhor avaliação especialmente p. 760-4.
86  Também foi matéria de discussão, na ocasião, a solicitação de colaboração em
projetos de intercâmbio, assistência técnica e de captação de informação no Extremo
82  Os dispositivos de caráter militar, estabelecidos na Doutrina Truman, foram Oriente e no Sul e Sudeste Asiático, regiões mais visadas pelo Departamento de
inaugurados naquele mesmo ano, na guerra civil da Grécia. Estado para a maior penetração da sua área de inteligência. Para as informações desses
83  BU, Liping. Educational Exchange and Cultural Diplomacy in the Cold War. encontros: carta-convite, de 3 dezembro de 1950, sem dados de autoria, para [Margretta
Journal of American Studies, Cambridge/UK, v. 33, n. 3, 1999, p. 400-5. S.] Austin [Divisão de Ligação Pública: Departamento de Estado]; memorando de
84  Para o texto da lei: U.S. CODE COLLECTION. United States Information Margretta S. Austin para Carter [Divisão de Ligação Pública: Departamento de
and Educational Exchange Programs. Disponível em: <http://www4.law.cornell. Estado], de 6 dezembro de 1950; e memorando de conversação, de 16 de dezembro de
edu/uscode/html/uscode22/usc_sup_01_22_10_18.html> Acesso em: 12 jul. 2016. 1950, para [Margretta S.] Austin. In: NARA. RG 59: Department of State. Office of

52 Wanderson Chaves A questão negra 53


Truman no Congresso dos Estados Unidos, em janeiro de 1949, Também incidiam sobre as críticas suspeitas e acusa-
na sessão de inauguração do seu segundo mandato presidencial, ções de que o governo norte-americano nunca conseguiu dis-
reafirmava os atos presidenciais prévios, como o Smith-Mundt sipar totalmente a desconfiança, desde o pós-guerra, de que sua
Act e a Doutrina Truman, nos quais se estabeleceu a assistência política não era democrática e de que seus programas de assis-
técnica e o intercâmbio cultural e educacional como instrumen- tência estavam cercados de motivações ulteriores e secretas89. O
tos de política externa. Sua função, como programa, era permi- Departamento de Estado, vendo nas fundações um meio para
tir ao governo norte-americano estabelecer internacionalmente vencer essa recepção negativa, voltou-se para elas, na conclama-
uma posição mais “afirmativa”, já que, segundo demonstrava o
ção de que assumissem publicamente a dianteira das iniciativas.
monitoramento da “opinião pública internacional”, suas inicia-
Esperava-se muito do cumprimento das disposições do Smith-
tivas eram vistas como reativas, voltadas apenas à defesa contra
Mundt Act, que orientava a fusão das atividades culturais dessas
a expansão e à busca de hegemonia política da União Soviética.
Para fundamentar essa postura afirmativa dos EUA, considerada instituições com as ações de informação e inteligência do gover-
frágil, o programa investia em quatro linhas de ação: o apoio às no. Elas se tornavam uma alternativa operacional, a partir da qual
Nações Unidas, o suporte à recuperação econômica mundial, o se projetava uma atmosfera política mais favorável90.
fortalecimento dos países contra as ameaças de agressão comu- Os representantes dos escritórios regionais do ser-
nista e a transmissão dos avanços científicos e do progresso in- viço diplomático e os membros do Policy Planning Staff,
dustrial dos Estados Unidos às áreas “subdesenvolvidas” 87. grupo de planejamento estratégico e ações clandestinas do
Essa proposta de ataque à agenda internacional so- Departamento de Estado, ligado à CIA, reunidos na “Consultive
viética, presente no Programa Ponto Quatro, não vinha sendo Conference with Representatives of Foundations on Problems
bem recebida. Notava-se que o público internacional vinculava o of Information and Education on Foreign Affairs”, em abril de
programa exclusivamente às ações do governo, sem reconhecer, 1951, solicitavam a imediata realização dessa mudança tática.
como esperado, que ele fosse reconhecido, também, como parte Pediam maior participação das fundações na condução da as-
do esforço de boa-vontade da sociedade civil norte-americana. sistência econômica, na formação de profissionais na área de
Objeto de frequentes críticas sob a acusação de ser imperialis-
ta, promover o favoritismo de interesses coloniais europeus e de
de Ligação Pública: Departamento de Estado], de 4 de novembro de 1949. In: NARA.
alavancar o reacionarismo anticomunista, o Ponto Quatro não RG 59: Department of State. Office of the Assistant Secretary for Public Affairs.
prosperava, segundo avaliação da diplomacia, em razão das defi- Office of Public Affairs. Office of the Director. (ca. 1949 - 1953). Series: Subject Files,
compiled 1944-1952. Box 7.
cientes divulgação e operação dos órgãos governamentais, tanto 89  Vide o relatório “The Soviet ‘Peace’ Offensive”, anexo do memorando de Walter
os locais quanto os norte-americanos88. K. Schwinn [Escritório de Relações Públicas: Departamento de Estado], de 22 de
novembro de 1949. In: NARA. RG 59: Department of State. Office of the Assistant
the Assistant Secretary for Public Affairs. Public Services Division (1953 – ca. 1959). Secretary for Public Affairs. Office of Public Affairs. Office of the Director. (ca. 1949
Series: Records Relating to Conferences and Meetings. Box 140. - 1953). Series: Subject Files, compiled 1944-1952. Box 8.
87  BU, Liping. Op., cit., p. 393-5. 90  Memorando de Hayes [Escritório do secretário-assistente de Estado para
88  Sobre essa avaliação: memorando de Hayes [Escritório do secretário-assistente de Assuntos Econômicos: Departamento de Estado] para Carter [Divisão de Ligação
Estado para Assuntos Econômicos: Departamento de Estado] para Carter [Divisão Pública: Departamento de Estado], de 4 de novembro de 1949. Op., cit.

54 Wanderson Chaves A questão negra 55


línguas, maior diálogo com o Departamento de Estado para a divulgar que sua intervenção na questão coreana era uma inicia-
transmissão de expertise em programas de assistência social e tiva de paz e, concomitantemente, uma medida de defesa contra
para aprofundar o monitoramento do crescente nacionalismo os planos de guerra dos EUA93. Em segundo lugar, a Campanha
nas colônias européias, maior aproximação e diálogo das fun- da Verdade era uma resposta a grandes eventos culturais pro-
dações com lideranças de regiões “atrasadas” do mundo. Dean movidos pela URSS na Europa. Sabia-se que o Kremlin vinha
Rusk, na ocasião secretário-assistente de Estado para Questões sendo exitoso no questionamento à legitimidade da aliança mi-
do Extremo Oriente, elevou o tom da conclamação: o chama- litar atlântica e em desacreditar a propaganda democrática dos
do às fundações, para que atuassem nas áreas de propaganda e EUA e seu esforço para estabelecer uma imagem mais positiva
inteligência, vinha diretamente da Casa Branca. Era parte da do país. Os eventos organizados a partir de Moscou, conhecidos
mais recente ofensiva ideológica contra a URSS, a Campanha como “Congressos pela Paz Mundial”, os mais importantes entre
da Verdade, para a qual Harry S. Truman pretendia a especial eles realizados em 1949, nas cidades de Wroclaw, Paris e Nova
participação de organizações não-governamentais91. Iorque94, haviam produzido um dano bem particular. Teriam sido
Lançada por Harry S. Truman em discurso na American convincentes em identificar os EUA com a direita, com o racis-
Society of Newspaper Editors, em 20 de abril de 1950, a mo e com agressões militares. Além de aprofundarem as diferen-
Campanha da Verdade pretendia ser uma resposta única a duas ças entre a direita e a esquerda política, destacavam que a tarefa
distintas iniciativas soviéticas, que vinham impactando as ações de liderança das esquerdas caberia à ela, à União Soviética95.
externas dos Estados Unidos. Em primeiro lugar, a crescente in- Harry S. Truman buscava alavancar o esforço de pro-
gerência da União Soviética na Coreia92. Os soviéticos estavam paganda norte-americano e demandava o lançamento, com a
mobilizando forças militares e apoio logístico na região, sendo Campanha da Verdade, de um verdadeiro “Plano Marshall” no
acusados de terem desencadeado, por isso, a sangrenta guerra “campo das ideias” para responder às ações soviéticas. Eram
civil (1950-53) que eclodiu dois meses depois. Mas, apesar da programados investimentos vultosos, focados principalmente
presença militar, os soviéticos estavam sendo bem-sucedidos em na divulgação do respeito às liberdades na sociedade norte-
-americana, com destaque para as liberdades trabalhista, reli-
91  Vide as informações em: minutas de discussão “Consultive Conference with
Representatives of Foundations on Problems of Information and Education on 93  Memorando de Frank H. Oram [Escritório do vice-subsecretário de
Foreign Affairs”, op., cit.; e tópicos para discussão “Consultive Meeting with Heads Administração: Departamento de Estado], para [Walter K.] Schwinn, de 16 de agosto
of Major Foundations”, sem data. In: NARA. RG 59: Department of State. Office of de 1949. In: NARA. RG 59: Department of State. Office of the Assistant Secretary
the Assistant Secretary for Public Affairs. Public Services Division. (1953 - ca. 1959). for Public Affairs. Office of Public Affairs. Office of the Director. (ca. 1949 - 1953).
Series: Records Relating to Conferences and Meetings. Box 140. Series: Subject Files, compiled 1944-1952. Box 8.
92  O projeto da Campanha da Verdade foi elaborado no Escritório de Relações 94  Dezenas de congressos foram realizados em todo o mundo entre 1948 e o
Públicas, a mesma seção do Departamento de Estado responsável pela realização início dos anos 1950. Eles começaram pelas capitais europeias e se espalharam para
da “Consultive Conference with Representatives of Foundations on Problems of praticamente todos os países. Com o fim da Guerra da Coreia, a frequência de eventos
Information and Education on Foreign Affairs”. Dean Rusk teria convencido o diminuiu drasticamente.
presidente Truman de que dar uma dimensão global para a Campanha seria útil ao 95  Memorando de Frank H. Oram [Escritório do vice-subsecretário de Administração:
esforço de guerra na Coreia. Conforme: LILLY, Edward P. Idem, ibidem, p. 82. Departamento de Estado], para [Walter K.] Schwinn, de 16 de agosto de 1949. Op., cit.

56 Wanderson Chaves A questão negra 57


giosa e de expressão; e na promoção do ideal de capitalismo quaisquer conflitos (armados) são ameaças reais à paz mundial;
norte-americano, destacado como promotor de oportunida- 3) os Estados Unidos somente intervêm militarmente através e
des universais de ascensão social96. em concerto com seus aliados; 4) o comunismo representa ver-
Malgrado a convocação presidencial, não foi firma- dadeira ameaça à paz; 5) a Terceira Guerra Mundial deve ser
do nenhum compromisso dos filantropos com os objetivos da evitada a todo custo97.
Campanha da Verdade durante a “Consultive Conference with O presidente da Carnegie Corporation, John Gardner,
Representatives of Foundations on Problems of Information propôs, durante a “Consultive Conference with Representatives
and Education on Foreign Affairs”. A opinião da maioria dos of Foundations on Problems of Information and Education
conferencistas era de que a Campanha deveria inicialmente ser on Foreign Affairs”, medidas para o estabelecimento de uma
dirigida ao público doméstico, menos esclarecido, se comparado agenda de formação do público doméstico. Sugeriu que uni-
ao externo, quanto às questões de política externa. O presidente versidades, órgãos filantrópicos e governamentais investissem
da World Peace Foundation, Harvey H. Bundy, sintetizou essa na formação de lideranças e na difusão de informação entre
avaliação. Para ele, o norte-americano, ainda provinciano em re- formadores de opinião. Definiu que caberia às universidades e
lação à política internacional, precisava ser introduzido a cin- fundações, sob a orientação do governo, produzir informação
co questões fundamentais da atuação do seu país, ainda pouco confiável e de qualidade. Consequentemente, caberia às funda-
compreendidas: 1) os Estados Unidos são um poder mundial; 2) ções assegurar o sigilo da informação civil e militar que passas-
96  HAMBLIN Jr., Terry Robert. Selling America: ‘The Voice of America’ and United
se por seus canais. O suporte material do trabalho viria, ainda
States Radio Propaganda to Western Europe, 1945-1954. Stony Brook, 2006. 506 f. Tese de acordo com John Gardner, da produção dos estudos de área
(Doutorado) – The Graduate School, Stony Brook University, p. 253, 264. A Campanha
da Verdade tornou-se parte de uma ampla programação de “ações psicológicas” de
e das Ciências Sociais, o que atenderia às demandas da CIA e
longa duração projetadas no Departamento de Estado. Sua aplicação foi particularizada do Departamento de Estado por informação externa e por ma-
segundo os seguintes critérios: de um lado, os níveis de aproximação diplomática, assédio
político ou ameaça militar comunista; de outro, o grau particular de perigo representado
terial para a formulação de conteúdos de propaganda. Gardner,
pelos países à segurança dos Estados Unidos. Por ordem de gravidade e importância, como medida imediata, propôs que os órgãos do governo e as
eram quatro as regiões prioritárias: em primeiro lugar, a União Soviética; em segundo, a
chamada “Cortina de Ferro” da Europa Oriental e das “nações cativas” do Oriente, China,
fundações financiassem as Ciências Sociais e os estudos de área,
Mongólia e Coreia do Norte; em terceiro, a chamada “periferia crucial”, Indochina, seguindo a Fundação Rockefeller (uma das poucas, dentre as
Coreia do Sul, Japão, Irã, Afeganistão, Turquia, Grécia, Iugoslávia, Áustria, Finlândia
e Alemanha Ocidental, países que estavam próximos da área de influência militar
participantes do evento, a apoiar uma instituição fundamental
soviética e cujos compromissos com os EUA eram considerados ainda insuficientes; e, para a estratégia, o Social Science Research Council [SSRC]).
em quarto, a chamada “zona de perigo”, Índia, Paquistão, Filipinas, Ceilão (atual Sri
Lanka), França e Itália, países considerados amigáveis, mas com relevante movimento
A aposta do presidente da Carnegie Corporation era de que
de massas comunista, cuja perda para a URSS, estimava-se, poderia causar transtornos a colaboração entre instâncias governamentais e não-governa-
incalculáveis e imprevisíveis, dentro e fora do circuito já consolidado da aliança militar
norte-americana. A propósito: UNITED STATES DEPARTMENT STATE. Foreign
Relations of United States, 1950, Volume IV. Central and Eastern Europe; The Soviet 97  Minutas de discussão “Consultive Conference with Representatives of Foundations
Union. Washington D.C.: U.S. Government Printing Office, 1980, p. 304, 311-3. on Problems of Information and Education on Foreign Affairs”. Op., cit.

58 Wanderson Chaves A questão negra 59


mentais logo produzisse um mecanismo de articulação adequa- Desde 1948, a Equipe de Pesquisa Externa (ERS)101,
do ao governo na operação de suas políticas98. seção do Escritório de Pesquisa de Inteligência (OIR)102 do
O limitado apoio das grandes fundações para uma Departamento de Estado, tinha como uma de suas funções fazer
agenda de formação do público externo em questões de política a ligação da comunidade de informações com universidades e or-
da Guerra Fria ficou patente nesta conferência, mas não chegou ganizações não-governamentais. A ERS era, portanto, o contato
a ser um inibidor. A Fundação Ford já havia se prontificado em formal da Fundação Ford no Departamento de Estado. A ERS
colaborar na propaganda doméstica e na articulação internacio- servia também à CIA e ao Departamento de Defesa, realizando os
nal de elites e de redes intelectuais. E o fez antecipadamente: mesmos três serviços básicos oferecidos à diplomacia: o de contato
reiterou ao Departamento de Estado, como declaração de prin- e o de contratação e também o de disseminação de dados – quan-
cípios, estar pronta para executar uma proposta, não de formação do o material produzido nas pesquisas era de informação sigilosa,
de massas, mas de atração de elites. Especialmente nas circuns- orientada para o uso nas estratégias de “guerra psicológica” 103.
tâncias que impedissem os órgãos da diplomacia de agir pública O interesse das demais seções do Departamento de
ou diretamente99. Estado pelo trabalho com as grandes fundações acirrou as ten-
Os escritórios e seções do Departamento de Estado, sões com a ERS. À frente delas estava o Escritório de Relações
explorando essa disponibilidade, vinham dirigindo à Fundação Públicas104, que reivindicava, para si, o direito a estabelecer rela-
Ford uma quantidade crescente de demandas. Eram principal-
ções de trabalho com a Fundação Ford diretamente, sem a in-
mente pedidos de informações sobre publicações, personalidades
termediação da ERS. As demais seções, sendo a de Intercâmbio
e organizações políticas domésticas e internacionais, solicitações
Educacional e Informação Internacional (IE)105 a mais vocal
que vinham acompanhadas de reiterados convites para a colabo-
dentre elas, postulavam a queda do poder de veto e intermedia-
ração na captação de dados de inteligência100.
ção da Equipe de Pesquisa Externa, lutando para que o acesso
98  Idem, ibidem. Vide também: memorando de F. H. Russel para Barret [secretário- às fundações não fosse limitado à demanda por informação e ao
assistante de Estado para Relações Públicas: Departamento de Estado], de 18 de abril
de 1951. In: NARA. RG 59: Department of State. Office of the Assistant Secretary
for Public Affairs. Public Services Division. (1953 - ca. 1959). Series: Records Relating Estado para Relações Públicas] para Meade [Equipe de Administração: Departamento
to Conferences and Meetings. Box 140. de Estado], de 18 de maio de 1951. In: NARA. RG 59: Department of State. Bureau
99  São vários os relatos neste sentido. Vide, por exemplo: memorando de Edward of Public Affairs. Policy Plans and Guidance Staff. (1960 - ca. 1965). Series: Subject
W. Barrett [secretário-assistente de Estado para Relações Públicas] para Hulten Files, compiled 1956-1962, documenting the period 1946-1962. Box 68.
[Escritório de Informação Internacional e Intercâmbio Educacional: Departamento 101  External Research Staff.
de Estado], de 10 de maio de 1951; memorando de Noble [Divisão de Pesquisa de 102  Office of Intelligence and Research.
História Política: Departamento de Estado] para J. Boughton [Escritório de Relações 103  Passavam pela ERS, sobretudo, pesquisas de Ciências Sociais e as dos chamados
Públicas: Departamento de Estado], de 15 de maio de 1951; e memorando de [ J.] “estudos de área”. Conforme: memorando do gabinete do diretor da CIA para o
Boughton para Robert L. Thompson [Divisão de Publicações: Departamento de secretário do Psychological Strategy Board, de 1 de abril de 1953; e memorando para
Estado], de 16 de maio de 1951. In: NARA. RG 59: Department of State. Office o Inspetor Geral da CIA [Lyman Kirkpatrick], sem dados de autoria, de 6 de agosto
of the Assistant Secretary for Public Affairs. Office of Public Affairs. Office of the de 1954. In: NARA. General CIA Records. CREST: 25-Year Program Archive.
Director. (ca. 1949 - 1953). Series: Subject Files, compiled 1944-1952. Box 3. 104  Office of Public Affairs.
100  Memorando de Jesse M. McKnight [Escritório do secretário-assistente de 105  Office of International Information and Educational Exchange.

60 Wanderson Chaves A questão negra 61


uso de veículos de divulgação. Entre 1950 e início de 1951 – ex- de Estado com a Fundação Ford109, que, por sua vez, destacou o
pressão da disputa pelo privilégio de acesso, consumo e controle publicitário e profissional de relações públicas Wilbur H. Ferry
de dados –, desenvolveu-se no Departamento de Estado nego- (1910-1995) entre os responsáveis por intermediar os interes-
ciações para definir como e quem estaria autorizado a manter ses internacionais comuns da Fundação com o Departamento
relações com organizações não-governamentais106. de Estado110. A função operacional de Ferry foi bastante de-
O papel da ERS não foi diminuído nem modificado, mandada desde o princípio. Segundo ele, Richard M. Bissell Jr.
mas coube-lhe outras funções. A Equipe de Pesquisa Externa (1909-1994), o coordenador do programa de Desenvolvimento
permaneceria sendo a ligação com fundações e universidades e o Econômico e Administração da Fundação Ford (1952-1954) –
órgão responsável pelo expediente de contratação de consultores homem muito influente no establishment de Washington – atua-
e de pesquisas. Em contrapartida, todas as seções foram liberadas va nas duas pontas, alimentando e institucionalizando esse canal
para contatar as fundações. Na divisão estabelecida, o Escritório da Fundação para a realização dos trabalhos do Departamento
de Inteligência (R) seria o destino e o consumidor prioritário da de Estado111.
informação produzida e o Escritório de Relações Públicas, o ca- A CIA considerou que o relacionamento estabelecido
nal de disseminação da informação do Departamento de Estado entre a ERS e as organizações não-governamentais era vanta-
para divulgação e consumo externo107. joso para a Agência, incentivando a melhoria e o aprofunda-
Evron M. Kirkpatrick (1911-1995), chefe da Equipe de mento do modelo de operações. Ela avaliava que a execução dos
Pesquisa Externa (1948-1952) 108, chegou a designar um oficial contatos com instituições de pesquisa através dessa seção do
especialmente para tratar do diálogo das seções do Departamento Departamento de Estado, e não com a própria Agência, era po-
sitiva por razões de segurança. Aliviava a suspeição de que ela, a
CIA, estivesse envolvida ou fosse parte interessada no financia-
106  Memorando de Brad Patterson [Escritório de Relações Públicas: Departamento
de Estado] para F. H. Russel, de 22 de junho de 1951; e memorando de Bradley mento ou na contratação dos trabalhos112.
H. Patterson, Jr., para Heitzeberg [Escritório do vice-subsecretário de Estado de
Administração], de 11 de setembro de 1951. In: NARA. RG 59: Department of State. 109  Memorando para arquivamento, de Jesse M. MacKnight, de 7 de maio de 1951,
Office of the Assistant Secretary for Public Affairs. Office of Public Affairs. Office com cópias para Sargeant e Crosby [Divisão de Ligação Pública: Departamento de
of the Director (ca. 1949 - 1953). Series: Subject Files, compiled 1944-1952. Box 3. Estado]. In: NARA. RG 59: Department of State. Bureau of Public Affairs. Policy
107  Memorando de Fischer Howe [Secretariado-Executivo: Departamento de Plans and Guidance Staff. (1960 - ca. 1965). Series: Subject Files, compiled 1956-
Estado] para os escritórios de Relações Públicas e de Inteligência, de 31 de maio 1962, documenting the period 1946-1962. Box 68.
de 1951. In: NARA. RG 59: Department of State. Subject Files of the Bureau of 110  Memorando de Southworth [Escritório de Relações Públicas: Departamento de
Intelligence and Research (INR), 1945-1960. Box 5. Conforme também: memorando Estado] para Russel, de 25 de maio de 1951; e carta de Francis H. Russel para W. H.
de F. H. Russel [Escritório de Relações Públicas: Departamento de Estado] para Ferry, de 26 de maio de 1951. In: NARA. RG 59: Department of State. Office of the
MacKnight, de 3 de maio de 1951. In: NARA. RG 59: Department of State. Bureau Assistant Secretary for Public Affairs. Office of Public Affairs. Office of the Director
of Public Affairs. Policy Plans and Guidance Staff. (1960 - ca. 1965). Series: Subject (ca. 1949 - 1953). Series: Subject Files, compiled 1944-1952. Box 3.
Files, compiled 1956-1962, documenting the period 1946-1962. Box 68. 111  Vide: RAC. Ford Foundation Records. Oral History Project. Series IV:
108  Kirkpatrick ocupou outros postos em órgãos da área de inteligência, como o Transcripts. Box 3. Folder: Wilbur H. Ferry.
Psychological Strategy Board, até se tornar o longevo (1954-1981) diretor-executivo 112  “Research of Common Concern”, relatório confidencial sem data. In: NARA.
da Associação Norte-Americana de Ciência Política (APSA). RG 59: Department of State. Subject Files of the Bureau of Intelligence and Research

62 Wanderson Chaves A questão negra 63


O recurso ao uso da ERS parecia apresentar risco menor Programas de pesquisa intensiva, desenvolvidos por
de pressão política e de restrições legais, quando as ações eram grupos representativos das diversas disciplinas das
de iniciativa de órgãos não-governamentais. A Fundação Ford, Ciências Sociais, aliados a programas de treinamen-
entre esses vários parceiros não-governamentais, era considerada to, formariam uma combinação imensamente útil às
um canal relativamente seguro e “consciente”, a quem se poderia agências de inteligência do Governo.
incumbir a realização de grandes projetos úteis às demandas da b) Uma avaliação geral, área por área, buscando deter-
Agência e da maioria dos órgãos de governo. O diretor-assis- minar até que ponto a assistência econômica tem
tente de Pesquisas e Projetos da CIA (1951-2), o economista do tido – ou poderá ter – um efeito importante em pro-
MIT (1949-1969) Max F. Millikan (1913-1969) recomendava mover a adesão aos ideais da democracia política. 
à Agência que acionasse a Fundação Ford para um empreedi- c) Estudos históricos que indiquem como alguns pa-
mento de grande envergadura: a realização de “estudos de base”, íses alcançaram seu presente estágio de desenvol-
úteis ao esclarecimento da atividade operacional e de formulação vimento, juntamente com as lições que podem ser
política do governo. Dentre as áreas de interesse e investigação derivadas da experiência histórica destes países e os
consideradas mais urgentes por Millikan estavam: limites que ela impõe sobre as nossas esperanças de
a) O estabelecimento de estudos de área, tanto para atuação econômica e política junto a eles no futuro. 
treinamento quanto para pesquisas sobre a estrutura d) Uma análise detalhada por parte das duas ou três
política, social, econômica e jurídica das regiões que pessoas nos Estados Unidos que conhecem bem
são de grande importância para as políticas atuais a natureza, a validade e o escopo das estatísticas
dos Estados Unidos, mas que ainda não foram es- e dos métodos estatísticos soviéticos, abrangendo
tudadas a fundo nas Universidades. Como principal diversos setores114.
exemplo, podemos citar toda a região do Extremo
Oriente, sobre o qual nossos conhecimentos são 114  Tradução de Laura Hafner, revista pelo autor. No original: a. The establishment
of area institutes for both training and research in the political, social, economic and
extremamente limitados. É impossível elaborar legal structure of regions of great importance to present United States policy but
programas inteligentes de assistência econômi- not as yet extensively studied in Universities. The prime example is the whole Far
Eastern region of which our knowledge is extremely limited. It is impossible to design
ca, reorientação política ou guerra psicológica sem intelligent programs of economic assistance, political re-orientation, or psychological
saber muito mais do que conhecemos hoje sobre warfare without knowing a great deal more than we now know about the basic
characteristics of such crucial districts as Indonesia, Indochina, India, Pakistan, Iraq,
as características básicas de regiões cruciais como etc. The combination of programs of intensive research by groups representing various
Indonésia, Indochina, Índia, Paquistão, Irã, etc.,113. social science disciplines and programs of training could be enormously useful to
the intelligence agencies of the Government. b. A general evaluation, area by area, of
(INR), 1945-1960. Box 5. the extent to which economic assistance has had or could have an important effect
113  Os primeiros escritórios internacionais da Fundação Ford foram abertos in promoting adherence to the ideals of political democracy. c. Historical studies
justamente na Ásia. O primeiro, na Índia, em 1952; e os demais, na Indonésia, indicating how foreign areas have reached their present stage of development, with
Paquistão, Líbano e no atual Mianmar, em 1953. any lessons that could be derived as to the limits their historical experience places on

64 Wanderson Chaves A questão negra 65


Max F. Millikan considerava os meios e fontes não-se- Capítulo 2
cretos os mais adequados para alimentar a demanda governa-
mental por “estudos históricos e outros estudos básicos sobre a
natureza e a estrutura de países estrangeiros”. A Fundação Ford,
por sua dimensão e receptividade às solicitações governamentais,
haveria de se tornar, segundo sua avaliação, uma competente mo-
bilizadora de intelectuais e instituições, além de grande realiza- As agendas culturais da Guerra Fria e o
dora de projetos para fins de informação115. “Programa Ideológico”: a CIA e a Fundação
O diretor da Fundação Ford, Paul G. Hoffman, defen-
dia, no início dos anos 1950, em chamamento às instituições
Ford na atração de elites intelectuais
ainda recalcitrantes à colaboração governamental, que era este
o foco de trabalho das fundações norte-americanas. Para ele, o
modo de ação adequado deveria ser o do engajamento na frente Se uma das principais facetas da política soviética dos úl-
de informações dos “esforços de paz” e, por suposto, o da con- timos três anos tem sido a exploração do tema da “paz” e o
solidação da agenda política norte-americana116. Seu Relatório estabelecimento do [movimento] de “paz” mundial como
Gaither, lançado há 67 anos, continua a ser a carta de princípios disfarce para suas políticas de guerra política, isto se deu
porque a questão, como eles a veem, lhes foi apresentada
da Fundação Ford117.
como que pronta pelas potências ocidentais. O fato de eles
terem sido capazes de perseguir seus preparativos militares
com completa ausência de publicidade e sem a necessida-
de de superar pressões parlamentares os colocou em uma
posição vantajosa para posar como os protagonistas da paz
em comparação ao mundo ocidental, que só poderia con-
seguir verbas militares fora dos seus corpos parlamentares
what we can hope to do with them economically and politically in the future. d. A
detailed analysis by the two or three persons in the U. S. competent in the area of the
através de uma ênfase constante dos perigos militares e da
nature, validity, and scope of Soviet statistics and statistical methods in various fields. probabilidade de guerra. Os “Congressos pela Paz” soviéti-
Memorando de Max F. Millikan, “Suggestions on kinds of projects we would like to cos de 1952 representam o preço pago pelas democracias
see the Ford Foundation Support”, de 2 de abril de 1951. In: NARA. General CIA ocidentais por sua incapacidade em colocar a necessidade
Records. CREST: 25-Year Program Archive.
115  Idem, ibidem. de rearmamento e aliança militar de seus povos em termos
116  McCARTHY, Kathleen D. From Cold War to Cultural Development: The precisos e menos primitivos e, consequentemente, com me-
International Cultural Activities of the Ford Foundation, 1950-1980. Daedalus; nos exagero sobre as perspectivas de guerra118.
Cambridge, MA; v. 116, n. 1, 1987, p. 95.
117  Cf.: <www.fordfoundation.org/about-us/history/> Acesso em: 12 jul. 2016. O
destaque a essa informação foi retirado do novo site da instituição, lançado em 2017. A 118  Tradução livre do original: “If one of main facets of Soviet policy for the past
Fundação Ford já está em seu décimo presidente, Darren Walker (2013- ). three years has been the exploitation of the “peace” theme and the building up of

66 Wanderson Chaves A questão negra 67


Os “Congressos Pela Paz Mundial” vinham sendo re- a de que o Plano Marshall era uma proposta de domínio a ser
alizados, em todo o mundo e praticamente sem interrupções, implementada com medidas de agressão que remodelariam a po-
desde agosto de 1948, quando foi realizado seu evento inaugural lítica e a economia do continente. Os preparativos para uma nova
em Wroclaw, na Polônia. Como notou o formulador da “política guerra já estariam em curso com a reativação da economia alemã,
de contenção”, o importante ideólogo da Guerra Fria George F. promovida pelos EUA, como aplicação direta de seus direitos
Kennan119 neste despacho acima, remetido de Moscou, eles eram de intervenção global, proclamados recentemente, na Doutrina
um verdadeiro sucesso. Truman122. Com formulações desse tipo, os Congressos Pela Paz
Os Congressos pela Paz Mundial faziam parte da es- Mundial davam publicidade a acusações das quais o governo
tratégia internacional de combate às ações do Plano Marshall norte-americano demonstrou dificuldade em se dissociar, prin-
na Europa Ocidental estabelecida pelo Gabinete Soviético cipalmente de que as estratégias e justificativas teóricas da sua
de Informações para os Partidos Comunistas e Operários, o política diplomática eram “fascistas” 123.
Cominform120. A principal tese levantada por esses eventos121 era O Cominform vinha tentando reafirmar entre as es-
querdas a crença de que a realização de seus ideais anticapitalis-
a worldwide “peace” moved as a cloak for its own political warfare policies, this is
because the issue, as they saw it, was presented to them ready-made by the Western tas e igualitaristas encontrava um repositório natural nas políti-
powers. The fact that they were able to pursue their own military preparations with cas soviéticas. Os Congressos pela Paz Mundial eram parte dessa
complete absence of publicity and without the necessity of overcoming parliamentary
pressure has placed them in an advantageous position to pose as the protagonists
estratégia e se firmaram como eventos abrangentes e atraentes
of peace vis-à-vis a Western world which could get military appropriations out of em todo o mundo, apesar da sua pauta primária, segundo o his-
its parliamentary bodies only by a constant emphasis on military danger and the
toriador Gilles Scott-Smith, estar centrada no combate à polí-
likelihood of war. The Soviet peace congresses of 1952 represent the price paid by
the Western democracies for their inability to put the need for rearmament and tica externa norte-americana e na ostensiva exposição da URSS
military alliance to their peoples in less primitive and accurate terms and for their
consequent overemphasizing of the prospect of war”. Despacho de George F. o Asian and Pacific Regions Peace Conference (Pequim, outubro de 1952) e o World
Kennan, da Embaixada dos Estados Unidos, em Moscou, para o Departamento de Congress of Peoples for Peace (Viena, dezembro de 1952). Ver: “Communism in the
Estado, de 8 de setembro de 1952. Disponível em: <http://www.gwu.edu/~nsarchiv/ Free World: Capabilities of the Communist Party, Guatemala”, relatório do Office of
NSAEBB/NSAEBB14/doc1.htm> Acesso em: 13 jul. 2016. Intelligence Research (OIR), do Departamento de Estado, de 1º de janeiro de 1953.
119  Primeiro diretor (1947-49) do Policy Planning Staff, do Departamento de Disponível em: <http://www.mtholyoke.edu/acad/intrel/coldwar/guatemala13.
Estado. Foi um dos articuladores do Plano Marshall. htm> Acesso em: 13 jul. 2016.
120  O Cominform foi projetado por Stalin, como sucedâneo da Terceira Internacional 122  IBER, Patrick Justus. The Imperialism of Liberty: Intellectuals and the Politics
(Comintern). Órgão de política externa, atuou na articulação do movimento comunista of Culture in Cold War Latin America. Chicago, 2011. 565 f. Tese (Doutorado) –
e de esquerda internacional. Fundado em 1947, foi extinto em 1956. Department of History, University of Chicago, cap. 3, p. 146 e ss.
121  Entre 1948 e 1949, foram realizados os congressos de Wroclaw, Paris, Praga 123  SAUNDERS, Frances Stonor. Who Paid the Piper? Op., cit., p. 25-7. Para o
e Nova Iorque, nos quais o Cominform construiu o modelo de evento que a setor do Departamento de Estado representado por George Kennan, que acreditava
organização veio a promover nos cinco anos seguintes. Eles foram realizados em que a fonte do poder internacional soviético era fundamentalmente ideológica,
todo o mundo, com edições praticamente semanais. Os principais eventos dessa essas acusações se sustentavam porque os EUA não teriam estabelecido uma frente
agenda mundial de congressos, já nos anos 1950, foram o American Continental ideológica comparável à sua frente militar para os enfrentamentos da Guerra Fria. Ver:
Congress of Peace Partisans (Montevidéu, março de 1951), o Third World Youth HARLOW, Giles D. & MAERZ, George C. Introduction. In: KENNAN, George, F.
Festival (Berlim, agosto de 1951), o World Peace Council (Viena, novembro de Measures Short of War: the George Kennan Lectures at the National War College,
1951), o Council of International Union of Students (Bucareste, setembro de 1952), 1946-1947. Washington D.C.: National Defense University Press, 1991.

68 Wanderson Chaves A questão negra 69


como “utopia global”. Essa agenda internacional de encontros Segurança Nacional com o destaque aos aspectos ideológicos do
conseguia reunir, ainda assim, integrantes de um grande arco de enfrentamento entre a agenda soviética e a norte-americana, es-
organizações de esquerda na sua realização, com stalinistas e an- tava dividido em duas partes. Na primeira, fazia-se o exame das
ti-stalinistas sempre presentes e representados124. perspectivas de enfrentamento entre Estados Unidos e União
O governo norte-americano respondeu a essa investida Soviética em caso de guerra nuclear. A avaliação era acompa-
mundial de “iniciativas de paz” e atração das esquerdas replicando nhada de planejamento para cenários em que a URSS dispuses-
a estratégia da União Soviética, intervindo, como ela, no mundo se de maior capacidade bélica. Na segunda parte, desenhava-se
intelectual e entre as elites políticas. O Departamento de Estado o estabelecimento de um modelo de operações para consolidar
buscou entender a razão do sucesso dessa intervenção soviética, e dar pleno exercício à Doutrina Truman. O texto trazia uma
a associando à capacidade de manter segredo sobre movimentos dura rejeição a qualquer proposta não-intervencionista do país,
e preparativos militares. O Kremlin incrementava seu potencial alicerçando-se na defesa da liberdade dos EUA para destruir o
bélico e atômico discretamente, expondo-se apenas em ações sistema soviético e para moldar a comunidade internacional nas
culturais e políticas, garantindo que sua divulgação internacional tradições políticas democráticas. A proposta era que o plano fos-
– como “trincheira contra o racismo”, “centro dinâmico do prole- se realizado preferencialmente pelas vias diplomáticas, mas sus-
tariado” e lugar de “progresso e justiça social” – fosse geralmente tentando-se em duas frentes. De um lado, através de medidas
bem recebida. A avaliação do Departamento de Estado era de econômicas, políticas e “psicológicas”. De outro, pelo incremento
que os EUA poderiam se livrar das acusações de truculência e do aparato militar nacional e de aliados127.
da imediata associação à direita política, atraindo assim a simpa- Os objetivos soviéticos de predominância internacional
tia das esquerdas, caso adotassem a estratégia do Cominform de deveriam ser atacados, conforme o documento NSC 68, atra-
restringir o impacto público das suas ações militares125. vés do combate à atuação do Partido Comunista (PCUS) e dos
O documento NSC 68, aprovado por Harry S. Truman serviços de inteligência da União Soviética, vistos como seus
em abril de 1950, viria a ser, segundo o cientista político bri- principais veículos de política externa. Seriam combatidas, fun-
tânico Scott Lucas126, uma das mais importantes plataformas damentalmente, as “campanhas pela paz”, a estratégia de “defesa
para essa proposta de desarticulação pública entre iniciativas mi- dos povos colonizados” e a proposta de identificação das “utopias
litares e políticas. O documento, produzido pelo Conselho de e esperanças comunistas” ao “sistema soviético”, pois se verificava
que eram centrais na receptividade das ações da URSS. Nessa
124  SCOTT-SMITH, Gilles. “A Radical Democratic Political Offensive”: Melvin J.
Lasky, Der Monat, and the Congress for Cultural Freedom. Journal of Contemporary
definição de foco, o documento NSC 68 partia da verificação de
History; Thousand Oaks, CA; v. 35, n. 2, 2000, p. 266. que muitas sociedades, em particular as asiáticas, eram receptivas
125  Relatório “The Soviet ‘Peace’ Offensive”. Anexo do memorando de Walter
K. Schwinn [Escritório de Relações Públicas: Departamento de Estado] de 22 de
novembro de 1949. Op, cit. 127  Para o texto do documento, vide: NSC 68: United States Objectives and
126  Em: LUCAS, Scott. Culture, Ideology, and History. Global Dialogue, v. 3, n. 4, Programs for National Security. Disponível em: <http://www.fas.org/irp/offdocs/nsc-
2001, passim. hst/nsc-68.htm> Acesso em: 13 jul. 2016.

70 Wanderson Chaves A questão negra 71


à perspectiva colocada pela “propaganda soviética” de que os paí- O NSC 68 confirmava o movimento do governo
ses poderiam viver a mesma rápida transição, de país “atrasado” à dos Estados Unidos em direção ao emprego generalizado de
condição de potência, experimentada pela URSS128. ações secretas e de guerra não-convencional. O processo re-
O NSC 68 definia quatro áreas básicas de intervenção. montava ao documento NSC 10/2, aprovado pelo Conselho
O projeto era impedir, principalmente por meios não-militares, a de Segurança Nacional em fevereiro de 1948, regulamentando
divulgação do regime do Kremlin particularmente em seu aspec- e ampliando o uso de várias medidas desse tipo. Entre elas, a
to mais apologético, o utópico. Sua síntese era a seguinte: sabotagem econômica, a disseminação de propaganda, a infil-
a) Na segurança doméstica: combate à penetração so- tração política, a assistência a grupos de guerrilha e o apoio à
viética, ou de organizações e indivíduos simpáticos resistência clandestina; enfim, um conjunto de práticas de sub-
ou ideologicamente comprometidos, nas institui- versão voltadas a agredir direta e preventivamente os chama-
ções sociais e políticas do país. O objetivo era tornar dos “Estados inimigos”. Estas funções assumiram uma forma
os Estados Unidos a melhor e mais importante bar- bastante especializada nos trabalhos do escritório de Paris da
reira contra os avanços soviéticos; administração do Plano Marshall e nas atividades do Office of
b) No esforço de propaganda: a realização de extensivo Special Operations (OSO), o órgão de espionagem e contraes-
pionagem da CIA130. Os serviços desses dois grupos foram de-
trabalho de esclarecimento do público norte-ameri-
pois reorganizados e institucionalizados sob o Office of Policy
cano e mundial, acerca da urgência em alinhar todos
Coordination (OPC). A nova divisão, que era ligada à Agência
os povos na oposição democrática norte-americana
Central de Inteligência e também respondia ao Departamento
contra as pretensões totalitárias soviéticas;
de Estado e ao de Defesa, foi criada para exercer as prerrogati-
c) Nos programas de modernização: o aprimoramento
vas dos órgãos antecessores com ainda maior liberdade131.
do estado político geral das áreas “atrasadas” do pla-
Dois processos que envolviam diretamente o protago-
neta. Desviá-las dos avanços soviéticos e antecipar-
nismo da CIA sedimentaram-se entre a edição desses dois do-
-se através de medidas creditícias e de assistência,
cumentos do Conselho de Segurança Nacional. O primeiro, a
como as previstas no Programa Ponto Quatro;
constituição de um setor poderoso dedicado às ações secretas.
d) Na defesa militar: a proteção das posições nacionais
britânicas e das demais potências coloniais euro- Este movimento direcionou a Agência para uma divisão opera-
peias, no sul e sudeste asiáticos principalmente, e cional que separou a área responsável pelas operações clandes-
apoio a sua permanência em posições geográficas
estratégicas de outros continentes129. 130  LILLY, Edward P. Idem, ibidem, p. 52-3. Memorando do vice-diretor da CIA,
Allen W. Dulles, para o diretor da CIA, William H. Jackson, de 24 de maio de 1951,
p. 7-8. ESDN: CIA-RDP80R01731R001100120001-0. In: NARA. General CIA
128  Idem, ibidem. Records. CREST: 25-Year Program Archive.
129  Idem, ibidem. 131  AMERINGER, Charles D. U. S. Foreign Intelligence. Op., cit., p. 205-6.

72 Wanderson Chaves A questão negra 73


tinas, de outra, responsável pela produção de informação para A CIA e o Programa Ideológico
a comunidade de inteligência132. O segundo processo tratava da
adesão da CIA ao princípio de “guerra total” na configuração do
Os bolcheviques têm se engajado, nos últimos 35 anos, em
seu modelo de operações. Seguiu-se, nesse desdobramento, a tra-
um esforço massivo e abrangente de conversão à sua in-
dição dos serviços secretos da Segunda Guerra Mundial, como terpretação da doutrina comunista internacional. Por todo
a da OSS. Isto signficava, fundamentalmente: foco em questões esse período, eles afirmaram firmemente que o avanço em
extra e paramilitares, mobilização massiva e intensa de mão de direção à dominação mundial requereria a ênfase concomi-
tante em três fatores fundamentais – o militar, o econômico
obra intelectual e construção de políticas de combate “integrais”,
e o ideológico. Essa tripla ênfase seguiu o padrão dos nos-
isto é, moldadas por razões ideológicas e pelo uso de instrumen- sos movimentos de expansão nacional passados, baseados
tos “psicológicos” 133. igualmente no rifle, no arado e na Bíblia. (...) Em nossos es-
Essa consolidação institucional orientava e galvanizava forços tardios, de resposta a este desafio, fortalecemos prin-
a resposta que o governo dos EUA desejava dar às investidas cipalmente duas de nossas armas – a militar e a econômica
–, mas falhamos em enfatizar, na mesma medida, o terceiro
soviéticas, superando, na adesão de elites e intelectuais, den-
elemento – o doutrinal ou ideológico –, o elemento que os
tre outros percalços, a experiência de derrota sofrida com os líderes soviéticos têm desenvolvido nos últimos trinta anos
“Congressos pela Paz Mundial”. Tentava-se a articulação de um através de intensa experimentação. Nos Estados Unidos,
movimento similar ao soviético, que empregasse a força de tra- dificilmente se aceitaria que o comunismo tem maior ape-
balho intelectual, como vinha sendo tentado por meio da OPC lo apenas entre as massas desprivilegiadas. Sabe-se que as
multidões de famintos representam um bom material para
e de atividades regulares da CIA, e que apelasse diretamente ao
uso da liderança comunista, mas é um fato, também, que o
“poder de influência” dos intelectuais como “ideólogos” e veículos comunismo se reproduz menos em barrigas vazias do que
de divulgação, estimulando no público em geral a identificação em mentes vazias. Os comunistas não teriam alcançado suas
com as propostas da agenda internacional norte-americana134. conquistas passadas caso não tivessem apelado aos líderes
de opinião de todos os lugares e aos filhos e filhas de mem-
bros influentes da intelligentsia135.

135  Tradução livre do original: “For thirty-five years, the Bolsheviks have been
engaged in a massive, comprehensive effort to make converts to international
communism, as Communism doctrine is interpreted by them. Throughout this
132  Idem, ibidem, cap. 17. period, they have consistently assumed that progress toward world domination
133  NOBLE, Andrew V. Bullets and Broadcasting: Methods of Subversion and required the co-equal emphasis on three basic factors – the military, the economy,
Subterfuge in the CIA War against the Iron Curtain. Reno, 2008. 150 f. Dissertação and the ideological. This tripartite emphasis follows the pattern of previous national
(Mestrado) – University of Nevada, p. 35-42. expansions – theirs as well as our own – the rifle, the plough, the bible. (…) In
134  Relatório “The Soviet ‘Peace’ Offensive”. Anexo do memorando de Walter our belated efforts to meet this challenge, we have greatly strengthened two of
K. Schwinn [Escritório de Relações Públicas: Departamento de Estado] de 22 de our weapons – the military and the economy – but we have failed to emphasize to
novembro de 1949. Op., cit., p. 3. anything like the same degree the third element – the doctrinal or ideological – which

74 Wanderson Chaves A questão negra 75


Esta avaliação, apresentada na Junta de Estratégia Uma das justificativas para esse aprofundamento era
Psicológica136, trazia a convicção, mantida por setores da di- a crescente aproximação do Kremlin com países aliados dos
plomacia e da comunidade de informações, de que a estra- EUA na Europa Ocidental, América Latina, Sudeste Asiático e
tégia de combate às organizações e à divulgação comunistas Oriente Médio. A avaliação da CIA, tendo como base relatórios
não estava surtindo o efeito desejado. O apelo à medidas mais produzidos pela comunidade de informações, era de que os laços
agressivas era uma constante e vinha sendo reajustado desde de intercâmbio cultural e as trocas comerciais com os soviéticos
23 de outubro de 1951 nos termos consagrados no NSC 10/5. davam indícios da grave fragilidade dos parceiros diplomáticos
Este documento do Conselho de Segurança Nacional deter- norte-americanos, que poderiam evoluir de demonstrações de
minava que os órgãos competentes usassem de liberdade para abertura ao regime de Moscou à reorientação política. O diag-
executar ações mais radicais e eficazes para firmar a adesão aos nóstico era que essa fragilidade era fundamentalmente ideoló-
pressupostos anticomunistas137. gica. A vulnerabilidade à propaganda comunista estaria inscrita,
como mal de origem, no próprio padrão de cultura e de civismo
the Soviet leaders have developed, through thirty years of intensive experimenting.
It is hardly assumed in the U.S. that Communism has its greatest appeal only to desses países. Para remodelá-los em posições e valores conside-
underprivileged masses. It is true that hungry mobs are good material for the uses of rados resistentes à “sedução” das ideias comunistas, a CIA solici-
the Communist leadership, but it is also a fact that Communism breeds less in empty
bellies than in empty minds. The Communists could not possibly have achieved their
tava do governo dos Estados Unidos que privilegiasse os meios
past conquest if they had not appealed to thought leaders everywhere and the sons secretos para o desenvolvimento do novo “clima de opinião” 138.
and daughters of the influential intelligentsia”. Projeto “U.S. Doctrinal Program (for
As análises produzidas pela Junta de Estratégia
Board Approval)”. Apenso do memorando de George A. Morgan [diretor interino
da Junta de Estratégia Psicológica], de 5 de maio de 1953. Anexo A, p. 4-5. ESDN: Psicológica sinalizavam que a cooperação técnica, o intercâmbio
CIA-RDP80R01731R003200050006-0. In: NARA. General CIA Records. CREST: educacional e as linhas de crédito para organizações e governos
25-Year Program Archive.
136  A Junta de Estratégia Psicológica (Psychological Strategy Board) era um comitê nacionais oferecidas pelo Programa Ponto Quatro eram limita-
interdepartamental de atividades de inteligência, vinculado ao Conselho de Segurança das pelo efeito do “antiamericanismo”. Os programas externos da
Nacional, que operou entre 1951 e 1953. Tinham assento na Junta o Departamento de
Estado, representado por um subsecretário, o Departamento de Defesa, representado União Soviética seriam o principal estímulo ao antiamericanis-
por um vice-secretário, o assistente especial ao Presidente para Guerra Psicológica, o mo, mas reconhecia-se que não eram sua única fonte. A Mutual
assistente especial ao Presidente para Assuntos de Segurança Nacional e o diretor da
CIA. O diretor do Federal Bureau of Investigation (FBI) e o diretor da Autoridade Security Agency139, principal administradora dessas iniciativas
Nacional em Energia Atômica eram membros convidados. Bastante atuante no
governo de Harry S. Truman, foi sucedida pela Coordenadoria de Operações no
governo de Dwight D. Eisenhower (1953-1961). LUCAS, Scott. Campaigns of 138  Projeto “A Strategic Concept for the Cold War Operations under NSC 10/5”,
Truth: The Psychological Strategy Board and American Ideology, 1951-1953. The de 30 de junho de 1952. ESDN: CIA-RDP80R01731R003300080011-0. In: NARA.
International History Review, Milton/UK, v. 18, n. 2 (May, 1996). General CIA Records. CREST: 25-Year Program Archive. Vide também: RUDGERS,
137  Este documento ampliou a autoridade e a liberdade da CIA para desenvolver, David F. The Origins of Covert Action. Journal of Contemporary History; Thousand
principalmente por meio de operações paramilitares,ações de espionagem,contraespionagem Oaks, CA; v. 35, n. 2 (Apr., 2000), p. 257.
e de apoio institucional e ideológico a governos e organizações anticomunistas. Ver: Note 139  A Agência, criada com recursos e atribuições políticas reduzidas, surgiu da fusão
on U.S. Covert Actions. In: UNITED STATES DEPARTMENT OF STATE. Foreign entre a Technical Cooperation Administration, órgão do Departamento de Estado que
Relations of the United States, 1964-1968, Volume XII, Western Europe. Washington administrava programas de cooperação técnica e de assistência humanitária, e alguns
D.C.: U.S. Government Printing Office, 2001. programas de assistência militar e econômica remanescentes do Plano Marshall.

76 Wanderson Chaves A questão negra 77


oriundas do Ponto Quatro, afirmava à Junta que deveria mudar da sua rede de fraternidades, partidos, sindicatos, associações bi-
a crença equivocada de uma certa ótica dos enfrentamentos da nacionais e de grandes distribuidoras de livros, particularmente
Guerra Fria, que atribuía à pobreza a motivação mais impor- a Foreign Languages Publishing House e a International Book
tante para a atração para o comunismo. A convicção da Mutual Publishers, material reputado e de melhor qualidade. Os pro-
Security Agency nessa análise era a de que o comunismo não gramas jornalísticos e musicais irradiados pelo Voice of America e
era estimulado diretamente pela penúria, mas pelo cultivo moral os filmes e publicações técnicas e publicitárias do United States
e intelectual de elites e lideranças. A adesão dos países a uma Information System (USIS) 142 estariam apelando, segundo veri-
orientação favorável aos EUA haveria de ser buscada não tanto ficado nessa pesquisa, mais ao público de gosto popular e médio
através das massas, sobretudo das massas pobres, mas, preferen- do que ao intelectual143.
cialmente, através da intelligentsia, e do uso do seu poder140. O que faltava aos programas norte-americanos, segun-
Uma estratégia de conquista da confiança e da fidelida- do a Junta, era o modelo de operações e a mesma formação de
de ideológica e política das classes intelectuais, que tomava essa quadros dos órgãos comunistas. O modelo de operações sovié-
postulação por princípio, começou a ser elaborada já no segundo tico, na atração aos intelectuais, teria como principal qualidade
semestre de 1952. A iniciativa, que envolveria todos os órgãos de a capilaridade, possibilitada especialmente pelo funcionamento
governo dos EUA com atuação no exterior, estava sendo tratada através de células. Essa estrutura básica serviria de instrumento
em grupos de trabalho da Junta de Estratégia Psicológica. O es- na formação, divulgação e expansão institucional, útil na tenta-
forço conjunto deu origem a uma nova proposta de intervenção, tiva de estabelecer diálogo com segmentos intelectuais além do
o “U.S. Doctrinal Program” 141, que traçava um diagnóstico, de universo de simpatizantes e militantes comunistas. O atrativo
particular importância para a estratégia que seria desenvolvida, da formação de quadros dos partidos e fraternidades comunis-
sobre como estavam sendo ineficazes os jornais, revistas, pro- tas seria duplo: a atribuição de funções de liderança e consul-
gramas de rádio e publicações literárias, usadas para disseminar toria e as chances que abriria para a atuação dos intelectuais
a política governamental junto ao público intelectual. As con- em bases cosmopolitas e em circuitos internacionais. Ambas as
clusões eram de que a União Soviética vinha dirigindo, através postulações, correspondendo a sentimentos de dignidade, or-

140  Memorando à Junta de Estratégia Psicológica, “Combatting (sic) Communist


Influence among Students and Intellectuals”, de 27 de julho de 1953. ESDN: CIA- 142  Fundado em 1942 e ainda em operação, o Voice of America é um órgão
RDP80-01065A000200080005-3. In: NARA. General CIA Records. CREST: 25- oficial de rádio e teledifusão do governo dos Estados Unidos. Incorporado em
Year Program Archive. 1946 ao Departamento de Estado, ele foi transferido, em 1953, juntamente com o
141  Renomeado depois para PSB D-33/2. A sua origem era uma investigação USIS, para formar a seção de uma nova agência de informações, a United States
comissionada, encomendada pelo embaixador em Teerã, Loy W. Henderson, ao então Information Agency (USIA).
vice-diretor da CIA, Allen W. Dulles. O trabalho consistia no monitoramento da 143  Projeto “U.S. Doctrinal Program (for Board Approval)”. Apenso do
interação de estudantes e intelectuais iranianos com as organizações comunistas. memorando de George A. Morgan [diretor interino da Junta de Estratégia
Projeto “U.S. Doctrinal Program (for Board Approval)”. Apenso do memorando de Psicológica], de 5 de maio de 1953. Idem, ibidem. Memorando à Junta de
George A. Morgan [diretor interino da Junta de Estratégia Psicológica], de 5 de maio Estratégia Psicológica, “Combatting (sic) Communist Influence among Students
de 1953. Op., cit., Anexo A, p. 8-13. and Intellectuals”, de 27 de julho de 1953. Op., cit., p. 1-2.

78 Wanderson Chaves A questão negra 79


gulho e vaidade de ofício, colocariam o reconhecimento dos mos fundamentalmente marxistas. O mesmo se dava em rela-
intelectuais como segmento de elite144. ção aos projetos de liberação nacional, levando a política externa
A posição do Conselho de Segurança Nacional era de norte-americana a constantes dificuldades. Segundo a Junta, isto
que se incorporasse imediatamente o modelo soviético nessas ca- se devia à influência das organizações comunistas, que atuavam
racterísticas de segmento de elite e de atuação cosmopolita, con- na vanguarda política mobilizando os movimentos independen-
solidando uma nova geração de programas externos para renovar tistas para duas posições importantes: a aposta no modelo sovié-
a obtenção de apoio e barrar a infiltração e o fácil acesso das tico como via mais rápida de reformas sociais estruturais e para o
organizações comunistas aos círculos políticos e intelectuais145. acelerado crescimento econômico; e o “racialismo”, um princípio
A Índia, o Oriente Médio e a América Latina foram nacionalista visto como “antiocidental” e “antibranco”, central
escolhidos como o principal objeto de intervenção, o que se justi- para gerar adesão ao neutralismo diplomático na Guerra Fria e
ficava pelo foco especial de pobreza e de resistência intelectual ao para distanciar esses países dos EUA e das potências europeias147.
estilo de vida norte-americano, representado pelas três regiões. Na ofensiva entre os intelectuais, conferia-se priorida-
A França era outro grande foco. O problema era o seu arraigado de ao monitoramento do nacionalismo dos “países pobres”. Não
antiamericanismo intelectual e a centralidade do marxismo na apenas pelas habituais suspeitas de infiltração comunista, mas
elaboração dessa recusa ao americanismo146. para atacar e derrotar as propostas neutralistas. A determinação
O marxismo havia se tornado concomitantemente a era tratar todo nacionalismo como doutrina “antiamericana”,
língua franca das posições incômodas e dos projetos e grupos caso advogasse pela neutralidade na Guerra Fria, e declará-lo
sobre os quais recaíam os interesses norte-americanos. A acusa- intolerável e hostil à segurança norte-americana, se o marxis-
ção corrente entre os intelectuais das regiões visadas na ofensiva, mo fosse o seu fundamento ideológico, ainda que não houvesse
de que os EUA eram defensores do colonialismo e da estagna- ligações “sino-soviéticas”, por exemplo. A estratégia definida na
ção econômica das nações recém-independentes, era construída, Junta de Estratégia Psicológica, para realização pela CIA, USIA,
como vinha verificando a comunidade de informações, em ter- FOA148 e pelo Departamento de Estado e o de Defesa, era que
o combate ao marxismo e ao neutralismo eram características
144  Projeto “PSB D-33”, de 28 de agosto de 1952. ESDN: CIA-
RDP80R0173R003200050005-1. In: NARA. General CIA Records. CREST: 25-
Year Program Archive. Memorando à Junta de Estratégia Psicológica, “Combatting 147  Relatório “The Report of the President’s Committee on International Information
(sic) Communist Influence among Students and Intellectuals”, de 27 de julho de Activities”, de 30 de junho de 1953. In: UNITED STATES DEPARTMENT OF
1953. Op. Cit., p. 1 e 3. STATE. Foreign Relations of the United States, 1952-1954, Volume 2, National
145  Projeto “PSB D-33”, de 28 de agosto de 1952. Op., cit. Memorando à Junta de Security Affairs (in two parts), Part 2. Washington DC: United States Government
Estratégia Psicológica, “Combatting (sic) Communist Influence among Students and Printing Office, 1984, p. 1805-6, 1810.
Intellectuals”, de 27 de julho de 1953. Idem, ibidem. 148  Estabelecidas em 1953, a United States Information Agency (USIA) e o Foreign
146  Projeto “United States Doctrinal Program”, cópia da USIA, de 15 de janeiro Operations Administration (FOA) surgiram da reorganização dos órgãos e programas
de 1954, p. 4. In: NARA. RG 59: Department of State. Bureau of Educational and de política externa dos EUA. A USIA passou a conduzir a maioria das atividades de
Cultural Affairs. Office of the Assistant Secretary (1961 – 03/31/1978). Series: Subject informação e divulgação, e a FOA, a maioria dos programas de cooperação técnica,
Files, compiled 1961-1962, documenting the period 1950-1962. Box 2. militar e econômica, antes sob a responsabilidade do Departamento de Estado.

80 Wanderson Chaves A questão negra 81


integrais da ofensiva. O programa internacional de “reorientação lema “Mundo Livre”, central para toda a proposta norte-america-
ideológica”, pretendido com o U.S. Doctrinal Program, visaria na, um ônus para as políticas de divulgação. Segundo Penniman, a
todo grupo e indivíduo capaz de auxiliar nessa construção do expressão não era o melhor emblema possível para aquilo que se
“americanismo” como matéria de interesse149. pretendia demonstrar: a diferença radical entre Estados Unidos e
Essas definições não vieram rapidamente. A CIA e o União Soviética. E elencou quatro razões principais. Primeiramente,
Departamento de Estado sustentaram posições divergentes sobre a ideia de “liberdade” não designaria a natureza do conflito ideoló-
a abordagem ao marxismo, só resolvidas no momento da apro- gico entre os países. Não seria possível sustentar, contra toda prova,
vação definitiva do programa. No escalão técnico, operacional e que o “comunismo” era a antítese de “Mundo Livre” e que os EUA
executivo do Departamento de Estado, era recorrente a opinião de eram a síntese democrática perfeita. Em segundo lugar, a noção de
que seria um erro tentar esvaziar o marxismo, já que a propaganda liberdade proposta estaria muito colada à tradição da democracia
democrática norte-americana defendia formulações da tradição liberal norte-americana. Sua opinião ia ao encontro daquela dos di-
do pensamento ocidental, como as presentes no racionalismo e no plomatas de carreira e da dos profissionais da USIA nas missões no
humanismo iluminista, comuns e igualmente constitutivas para o exterior151, para quem essa proposição levava a atritos com aliados
pensamento marxista. Esses profissionais consideravam o desco- potenciais, particularmente no mundo colonial. Estavam sendo pro-
nhecimento e a ignorância das teses marxistas a melhor estraté- jetados, inclusive como parte das lutas de liberação nacional, diferen-
gia, temendo que a ofensiva, originalmente de antipropaganda, se tes sentidos de liberdade. Em terceiro lugar, o lema “Mundo Livre”
transformasse involuntariamente em publicidade150. seria de difícil articulação em políticas de propaganda. Para ele, o
Howard R. Penniman (1916-1995), o cientista político que termo era abstrato, de difícil tradução e resistente à universalização.
chefiava (1953-1957) a Equipe de Pesquisa Externa (ERS), também Em quarto lugar, o “Mundo Livre” seria uma ideia inexpressiva –
levantou outras dificuldades. Ele, que assessorava a comunidade de até antipática – para quem, conscientemente, buscava referências na
informações com especialistas do mundo acadêmico, considerava o União Soviética152.
Para Howard R. Penniman, a resposta para a atração
149  Projeto “United States Doctrinal Program”, cópia da USIA, de 15 de janeiro
de 1954. Op., cit., p. 7. Cronograma de trabalho “Outline Plan of Operations for the que o ideal revolucionário comunista despertava, de melhora-
U.S. Ideological Program (D-33), da Coordenadoria de Operações, de 16 de fevereiro mento humano e de aceleração do ritmo de mudanças, era o ide-
de 1955, p. 1 e ss. In: NARA. RG 59: Department of State. Executive Secretariat
(1954-1964). Subject and Special Files, compiled 1953-1961, documenting the period
1952-1961. Box 39. 151  Conforme se verificava do monitoramento das atividades do U. S. Doctrinal
150  Carta “R Comments on PSB Proposal (PSB D-33)”, sem autor e remetente, de Program nas missões no exterior e da avaliação do programa pelos próprios
8 de setembro de 1952; memorando “Agenda Item Nº. 1 for PSB Meeting September profissionais de campo. Vide: BARNISHEL, Greg. Cold War Modernists: Art,
11 – Doctrinal (Ideological) Warfare against USSR”; e memorando de J. C. H. Literature, & American Cultural Diplomacy. New York: Columbia University Press,
Bonbright [Escritório para Questões Européias: Departamento de Estado], para 2015, p. 267, nota 60.
Howland H. Sargeant [Escritório de Relações Públicas: Departamento de Estado], 152  Memorando de Howard R. Penniman (ERS: Departamento de Estado) para
de 9 de setembro de 1952. In: NARA. RG 59: Department of State. Office of the Allan Evans (Office of Intelligence Research: Departamento de Estado), de 19 de
Secretary. Executive Secretariat (02/17/1947-1954). Series: Psychological Strategy janeiro de 1955. In: NARA: RG 59: Department of State. Intelligence Bureau, Office
Board Working Files, 1951-1953. Box 5. of the Director, 1950-1959, Box 69.

82 Wanderson Chaves A questão negra 83


al de “progresso”. O tema, como o da liberdade, também poderia ele, a derrota do “totalitarismo soviético” viria de um anticomu-
ser trabalhado a partir das tradições da civilização norte-ameri- nismo profundo e integral. Logo, sua posição de que o combate
cana, trazendo vantagens adicionais. Estaria mais próximo das ao marxismo, central entre as bases teóricas do comunismo, de-
aspirações da maioria das nações, que também pretendiam velo- veria ser um princípio fundamental da luta antitotalitária. Sua
cidade na transformação de seus países, além de espelhar melhor avaliação das propostas do segundo escalão do Departamento de
as realizações materiais e humanas dos EUA. Beneficiado por Estado era de que se mostravam perniciosas ao atacar a hipocri-
essa materialidade, o ideal de progresso permitiria que o conflito sia das políticas soviéticas. A crítica da distância entre a teoria
ideológico entre as duas potências fosse tocado diretamente, sem e a prática comunistas, segundo ele, daria espaço para que a sua
esforço metafórico153. ideologia fosse recuperada, com a transmissão da mensagem de
O destaque dado às elites na ofensiva era outro tema que poderia ser reformada ao invés de destruída155.
que levantava discordâncias. Charles Burton Marshall, membro Allen W. Dulles também defendeu a aposta nas elites
da equipe do Policy Planning Staff, do Departamento de Estado, como um princípio antitotalitário. Segundo ele, o fundamento
via a opção exclusiva pela formação e arregimentação de elites da estratégia era a reintegração política e social entre os grupos
intelectuais como um risco para o desempenho diplomático e de elite, e deles com os demais segmentos sociais. A proposta
para a propaganda democrática do país. Paul H. Nitze, seu chefe iria no sentido contrário ao da “infiltração comunista”, entendi-
de seção e principal autor do documento NSC 68, não partilha- da como politização das “massas” e exploração da desarticulação
va da mesma opinião, por suposto. Mas, para Charles Burton entre elites dirigentes. Tratava-se, como ele defendia, de uma
Marshall, era previsível que os órgãos comunistas explorariam “guerra psicológica” pelas mentes e lealdades intelectuais, desti-
esse foco com sucesso, dizendo que o investimento era expressão nada a engendrar uma liderança unificada em torno de agendas e
da orientação “fascista” e “antipopular” norte-americana para as valores. A orientação era de foco no apoio e na formação de qua-
relações internacionais, conforme já haviam feito anteriormen- dros culturais, acadêmicos e de governo nos altos círculos, com
te154. Isto é, nos Congressos pela Paz Mundial, ao associar a apro- amplo emprego, segundo recomendava, de instrumentos ainda
ximação aos intelectuais aos objetivos da Doutrina Truman. mais agressivos de dissuasão e convencimento156.
Allen W. Dulles (1893-1969), diretor da CIA nomeado Os objetivos de Allen W. Dulles foram favorecidos pe-
pelo presidente Dwight D. Eisenhower no início de 1953, pen- las mudanças de organização e operação dos órgãos de políti-
sava como os redatores do NSC 68 e como Paul H. Nitze. Para
155  Carta “R Comments on PSB Proposal (PSB D-33)”, sem autor e remetente, de
153  Idem, ibidem. 8 de setembro de 1952. Op., cit.
154  Carta, “PSB D-33/2”, de C. B. Marshall [Policy Planning Staff: Departamento 156  Memorando “Agenda Item Nº. 1 for PSB Meeting September 11 – Doctrinal
de Estado] para Walter J. Stoessel, Jr. [Escritório para Questões do Leste Europeu: (Ideological) Warfare against USSR”; e memorando de J. C. H. Bonbright [Escritório
Departamento de Estado], de 18 de maio de 1953. In: NARA. RG 59: Department para Questões Européias: Departamento de Estado], para Howland H. Sargeant
of State. Office of the Secretary. Executive Secretariat (02/17/1947-1954). Series: [Escritório de Relações Públicas: Departamento de Estado], de 9 de setembro de
Psychological Strategy Board Working Files, 1951-1953. Box 5. 1952. Op., cit.

84 Wanderson Chaves A questão negra 85


ca externa dos Estados Unidos realizadas no início do gover- Livre” e a propaganda do American way of life e à CIA, a anti-
no de Dwight D. Eisenhower. A CIA aprofundou suas funções propaganda do regime soviético. Nas duas frentes de trabalho,
de agenciamento com a implantação das sugestões do Comitê a noção de “Mundo Livre” firmou a centralidade que os seus
Jackson, que elaborou parte da reorganização do complexo di- defensores reivindicaram, sendo definida como o apoio para a
plomático e de inteligência ao definir novos poderes para a promoção dos EUA como a verdadeira vanguarda democrática
Agência. O Comitê trabalhou sob influência do próprio Dulles, internacional. A divulgação dessa ideia de mundo deveria enfa-
que buscava reforçar a importância de empregar-se mais profun- tizar certos valores fundamentais, como a defesa do Estado de
damente instituições e cidadãos norte-americanos como veículos Direito, a proteção de minorias, a promoção da igualdade social e
de atividades “psicológicas” no exterior. À CIA ficaria reservado a defesa das liberdades religiosa, civil, trabalhista, de propriedade
o controle integral dos aspectos secretos da ofensiva entre elites e de privacidade. Enquanto o Departamento de Estado se es-
e intelectuais, particularmente das funções de treinamento e da pecializava, em meio a esforços de divulgação e arregimentação,
contratação dos agentes locais157. na “propaganda democrática”, a CIA se especializava na “crítica
As diferenças táticas e teóricas entre a CIA e o antitotalitária” 158.
Departamento de Estado consolidaram uma divisão de tarefas Diferenças à parte, era consensual na CIA e no
nessa ofensiva entre intelectuais. Grosso modo, coube mais ao Departamento de Estado os fins últimos do programa ideoló-
Departamento de Estado a apresentação da proposta de “Mundo gico e das metas da ofensiva: a mobilização de intelectuais de
regiões como o Norte da África, a América Latina, a Índia, o
157  Todos os órgãos de política externa dos EUA assumiram funções de Sudeste Asiático e a Europa Ocidental, particularmente os de
agenciamento com as novas determinações do Comitê Jackson. No que diz respeito
aos U. S. Doctrinal Program, o trabalho de coordenação era secreto e cabia à CIA. esquerda e não-comunistas, para promoverem a transformação
Aos demais participantes, como a USIA, reservava-se a realização dos aspectos “não- da vida política. Desses quadros, esperavam-se iniciativa e capa-
atribuídos” do programa, ou seja, as ações que eram secretas apenas na origem e que
poderiam ser compartilhados com os outros órgãos. Para um sumário dessas alterações, cidade para alterar a forma de atuação das esquerdas, suscitando
ver: memorando “Preliminary Report on U.S. Doctrinal Program”, de Elmer B. Staats a eliminação da ameaça comunista e fortalecendo a identificação
para a Coordenadoria de Operações, de 5 de agosto de 1954, p. 1 e ss., especialmente
p. 10. In: NARA. RG 59: Department of State. Bureau of Educational and Cultural com o “bloco ocidental”. Nesse esforço, eles deveriam ser guiados
Affairs. Office of the Assistant Secretary (1961 – 03/31/1978). Series: Subject Files, pelos seguintes princípios de ação:
compiled 1961-1962, documenting the period 1950-1962. Box 2. Memorando
de Lyman B. Kirkpatrick [Inspetor Geral: CIA] para o diretor da CIA [Allen W.
Dulles], de 16 de abril de 1953, ESDN: CIA-RDP80B01676R004300070003-7; 158  Relatório “The Report of the President’s Committee on International Information
relatório “Progress Report to the National Security Council on Implementation of the Activities”, de 30 de junho de 1953. Idem, ibidem, p. 1796-7. Cronograma de
Recommendations of the Jackson Committee (NSC Action 866)”, da Coordenadoria trabalho “Outline Plan of Operations for the U.S. Ideological Program (D-33)”, da
de Operações, de 30 de setembro de 1953, anexo A, p. 3-5, ESDN: CIA-RDP80- Coordenadoria de Operações, de 16 de fevereiro de 1955, p. 1 e ss., especialmente p. 10;
01065A000600150008-8; e relatório “Report of the Department of State on relatório “2nd Meeting of the ‘Doctrinal Warfare’ Panel, 28 November, 1952, 2:10 pm”; e
Implementation of the Recommendations of the Jackson Committee Report (List o memorando para arquivamento de 2 de dezembro de 1952, sem autor. In: NARA. RG
A).”, sem data, anexo A, p. 3-7, ESDN: CIA-RDP80-01065A000600150005-1. In: 59: Department of State. Office of the Secretary. Executive Secretariat (02/17/1947-
NARA. General CIA Records. CREST: 25-Year Program Archive. 1954). Series: Psychological Strategy Board Working Files, 1951-1953. Box 5.

86 Wanderson Chaves A questão negra 87


a) Pela defesa de táticas estritamente legalistas, antir- giava contatos com meios privados e não-governamentais, apoiada
revolucionárias e associadas aos marcos do chamado estritamente em atos de governo. A norma de inteligência nº. 7,
Estado de Direito, para acesso aos meios executivos do Conselho de Segurança Nacional, regulamentava, desde 1948,
do Estado; o direito da Agência de recrutar cidadãos e instituições privadas
b) Pela defesa de programas políticos baseados em re- norte-americanas para operações externas e para a coleta de in-
ferenciais “realistas” e não-utópicos de implantação formação162. A delegação para explorar estes canais para ativida-
das promessas de governo; des secretas e de inteligência se tornou prerrogativa exclusiva da
c) Para a universalização da ideia de liberdade, como CIA em 1953, quando Allen W. Dulles definiu que o controle da
articulada na tradição política e religiosa dos EUA; circulação dos dados entre órgãos de governo dos EUA e das fun-
d) Para a crítica às imagens negativas sobre o padrão dações, empresas e cidadãos do país, com atuação no exterior, era
da vida cultural e intelectual norte-americano159. prerrogativa da Agência. A Divisão de Contatos163 da CIA passou
Economistas e cientistas sociais eram os preferidos para a assumir a função de balcão de atendimento. Ela encaminhava
a construção desse novo pensamento político de esquerda160. os pedidos de monitoramento dos órgãos de política externa e
Nessas funções de agenciamento e de recrutamento, a CIA de- repassava as informações sobre indivíduos e organizações às suas
veria privilegiar, em especial: respectivas seções de inteligência164.
a) A promoção e distribuição de material dirigido às O controle da CIA sobre a disseminação de informações
elites; vindas do exterior não chegou a prejudicar o interesse, defendido
b) A infiltração de agentes em jornais e universidades; por todos os órgãos de política externa, de que o vínculo entre as
c) A realização de uma agenda de conferências e fó- iniciativas governamentais e as privadas fosse extremado e se trans-
runs temáticos; formasse em um mecanismo permanente. No momento em que o
d) A criação de órgãos e instituições, para efeitos dis- U.S. Doctrinal Program foi iniciado, em 10 de julho de 1953165, o
suasórios e disruptivos, entre os elementos hostis
162  Instrução do Conselho de Segurança Nacional, “National Security Intelligence
aos objetivos norte-americanos161. Directive Nº. 7. Domestic Exploitation”, de 12 de fevereiro de 1948. ESDN: CIA-
A CIA realizou o trabalho de agenciamento, que privile- RDP85S00362R000600120007-5. In: NARA. General CIA Records. CREST: 25-
Year Program Archive.
163  Contacts Division.
159  Projeto “United States Doctrinal Program”, cópia da USIA, de 15 de janeiro de 164  A normatização restringiu a prática de investigação e interrogatório de civis,
1954. Op., cit., p. 5, 11-2, 15-7. viajantes e retornados do exterior, que antes de 1953 era autorizada para outras agências.
160  Jornalistas e lideranças partidárias, estudantis e sindicais também eram visados, Também foi regulado o serviço dentro da própria CIA, que passou a ser uma atividade
mas seu agenciamento era menos massivo e abrangente, comparativamente. Projeto de especialistas, vetada para funcionários não graduados. Norma de inteligência
“United States Doctrinal Program”, cópia da USIA, de 15 de janeiro de 1954. Op., “Director of Central Intelligence Directive Nº. 7/1. Domestic Exploitation of Non-
cit., passim. Governmental Individuals Approaching Intelligence Agencies”, de 1 de outubro de
161  Projeto “PSB D-33”, de 29 de junho de 1953. Anexo “B”. In: NARA. RG 59: 1953. ESDN: CIA-RDP85S00362R000600120007-5. In: NARA. General CIA
Department of State. Office of the Secretary. Executive Secretariat (02/17/1947- Records. CREST: 25-Year Program Archive.
1954). Series: Psychological Strategy Board Working Files, 1951-1953. Box 5. 165  Nesta data, Allen W. Dulles designou Cord Meyer Jr. para administrar o U.S.

88 Wanderson Chaves A questão negra 89


uso secreto de meios não-governamentais se expandia em resposta A Fundação Ford e a proposta de atração de intelectuais
à grande demanda pelos serviços da CIA, que vinha, inclusive, de
ramos de governo não relacionados ao complexo diplomático166. A Fundação Ford desfrutava de rara credibilidade, uma
Na opinião dos órgãos envolvidos no programa ide- das razões pelas quais era considerada o canal modelo na pro-
ológico, a Fundação Ford era a instituição norte-americana posta de atração de intelectuais. A desconfiança de estudantes
e intelectuais em relação às instituições norte-americanas, par-
mais competente no trabalho de atração de intelectuais, num
ticularmente as governamentais, aparentemente não afetava a
esforço considerado de vanguarda, especialmente destacando- Fundação, já que seu trabalho de relações públicas era compe-
-se como ela ultrapassava o antiamericanismo prevalecente na tente no convencimento de que a organização era independente
Índia, Sudeste Asiático, Oriente Médio e Europa Ocidental, de governos, politicamente livre e neutra no desenvolvimento de
firmando uma agenda politicamente útil aos interesses do sua agenda de apoio a intelectuais e grupos de pesquisa168.
Conselho de Segurança Nacional e aos projetos da Junta e Certos compromissos institucionais da organização
do seu sucedâneo na estrutura de Estado, a Coordenadoria de filantrópica eram também metas do U. S. Doctrinal Program.
Operações (1953-1961) 167. Segundo a CIA e o Departamento de Estado, os beneficiários da
Fundação Ford já estariam desenvolvendo projetos importantes
Doctrinal Program. Para assumir a função, Dulles o transferiu para a International
para a realização do programa ideológico, graças ao comprome-
Organization Division (IOD), a divisão de operações secretas da CIA na qual timento de muitos deles com princípios fundamentais da inves-
seria alojado o novo programa, que estava responsável pela proposta de atração dos tida. Três, em especial:
intelectuais de esquerda. Promovido, Meyer se tornou o chefe da IOD no ano seguinte.
Ocupou esta posição até 1962. Memorando do chefe de Guerra Política e Psicológica
a) A construção de críticas sofisticadas ao marxismo;
[da Junta de Estratégia Psicológica] para o diretor da CIA, de 23 de julho de 1953, b) O desenvolvimento de projetos de reforma univer-
ESDN: CIA-RDP80R01731R003200050010-5; e memorando “Implementation sitária, visando a formação de elites intelectuais e
of PSB D-33, the U.S. Doctrinal Program”, de Allen W. Dulles para o diretor em
dirigentes, a melhor divulgação do saber acadêmico
exercício da Junta de Estratégia Psicológica, de 1 de agosto de 1953, ESDN: CIA-
RDP80-01065A000200080004-4. In: NARA. General CIA Records. CREST: 25- e a incorporação de “minorias sociais”;
Year Program Archive. c) O estabelecimento de novas instituições e re-
166  Memorando “Coordination of Economic, Psychological and Political Warfare des políticas para a consolidação da atuação de
and Foreign Information Activities (NSC Actions nº., 1183 and 1197).”, do
diretor do Departamento de Orçamento para o Presidente [Eisenhower], de 29 de aliados e beneficiários 169.
janeiro de 1955, p. 4. In: NARA. Record Group 59: Department of State. Policy
Planning Council (1961-1969). Series: Subject Files, 1954-1962. Box 95. Manual, Students and Intellectuals”, de 27 de julho de 1953. Op., cit., p. 4-6. Memorando
“Operations Coordinating Board. A descriptive statement of the organization, “Communist Influence among Students and Intellectuals”, de S. Everett Gleason
functions, and procedures of the OCB”, edição de setembro de 1955, ESDN: CIA- [vice-secretário-executivo do Conselho de Segurança Nacional] para o general Robert
RDP80B01676R002700040035-3. In: NARA. General CIA Records. CREST: 25- Cutler [assistente especial ao Presidente para Questões de Segurança Nacional], de 26
Year Program Archive. de junho de 1953; e carta de Robert Cutler para George [A. Morgan], de 29 de junho
167  Essa avaliação foi recorrente e estava bem estabelecida entre os órgãos de de 1953. ESDN: CIA-RDP80-01065A000200080005-3. In: NARA. General CIA
governo envolvidos. Vide, por exemplo: Projeto “U.S. Doctrinal Program (for Board Records. CREST: 25-Year Program Archive.
Approval)”. Apenso do memorando de George A. Morgan [diretor interino da Junta 168  Memorando à Junta de Estratégia Psicológica, “Combatting (sic) Communist
de Estratégia Psicológica], de 5 de maio de 1953. Op., cit., p. 3-5. Memorando à Influence among Students and Intellectuals”, de 27 de julho de 1953. Op., cit., p. 4-5.
Junta de Estratégia Psicológica, “Combatting (sic) Communist Influence among 169  Idem, ibidem, passim.

90 Wanderson Chaves A questão negra 91


Via-se como notável que a Fundação Ford, como pesados investimentos da Fundação Ford, voltada globalmente
instituição anticomunista, fosse um mediador político entre para a intervenção no mundo das ideias172.
órgãos governamentais e não-governamentais, uma ligação As universidades, naturalmente, eram a primeira fren-
importante entre essas duas instâncias e grupos intelectuais e te dessa proposta de intervenção. Iniciou-se, pelos EUA, com a
estudantis de esquerda, e o fizesse nas várias áreas geográficas criação de grupos interdisciplinares de pesquisa acadêmica so-
da ofensiva. Razão porque, além de bem conceituada, sua atu- bre comunismo e países comunistas – investimento pioneiro em
ação era tão valiosa170. Ciências Sociais e que seria fundamental para a fundação dos
A Fundação Ford, na promoção de órgãos editoriais e “estudos de área”. Tratava-se da criação de centros de estudos
acadêmicos, patrocínio ao intercâmbio internacional, à promo- sobre Leste Europeu, União Soviética, Oriente Médio e China
ção de eventos e à concessão de bolsas de estudo, vinha promo- – destacadamente os das universidades de Harvard, Cornell,
vendo uma intervenção profunda nas áreas de Ciências Sociais Columbia, Stanford e Michigan State – que a Fundação Ford e
e Economia, alavancando interesses temáticos, campos discipli- o Departamento de Estado mantinham financeiramente desde
nares e novas áreas de intervenção para o universo das huma- 1950 e que se tornaram muito influentes. O trabalho apoia-
nidades. O impacto foi estrutural e se apresentou na forma de do era o da realização de grandes inventários de História e de
mobilização intelectual para a formulação de teorias da moder- Ciência Política, centrados em temas de política partidária e
nização, para a construção de aplicações técnicas para as políticas política econômica comparada e em pesquisas sobre moder-
de desenvolvimento e, através do apoio ao estudos comparativos nização, desenvolvimento econômico, recepção de propaganda
e de Relações Internacionais, para a produção de saber especia- e formação de elites e classes sociais. O esforço reverteu em
lizado sobre regiões e questões do cardápio de preocupações da produção de conhecimento teórico de nível acadêmico e con-
política externa norte-americana171. solidação de um repertório e um modelo de atuação que foi
O American Council of Learned Societies (ACLS) estendido a operações em outras áreas de interesse, como a dos
e o Social Science Research Council (SSRC) investiram em estudos sobre o “subdesenvolvimento”, com subsídios que a
políticas de pesquisa acadêmica; o Institute of International Fundação Ford e o Departamento de Estado centralizaram no
Education (IIE), o American Field Service (AFS) e o American MIT e na Universidade de Chicago. A intervenção resultou
Universities Field Staff (AUFS), no intercâmbio estudantil; e a em impacto direto na reflexão e na construção das chamadas
Association of American University Presses (AAUP) focou em políticas do desenvolvimentismo173.
políticas de divulgação acadêmica. Estas instituições eram exem-
plares de uma política de forte intervenção administrativa e de 172  MAGAT, Richard. Op., cit., p. 93-161.
173  CUMINGS, Bruce. Boundary Displacement: Area Studies and International
Studies During and After the Cold War. GENDZIER, Irene L. Play It Again
170  Idem, ibidem. Sam: The Practice and Apology of Development. In: SIMPSON, Christopher (ed.).
171  BERMAN, Edward H. The Influence of Carnegie, Ford, and Rockefeller Universities and Empire: Money and Politics in the Social Sciences during the Cold
Foundations on American Foreign Policy. Op., cit., especialmente cap. 4. War. New York: New Press, 1998.

92 Wanderson Chaves A questão negra 93


Além da frente universitária, havia a frente de publi- que vinham alcançando o público intelectual. Reconhecia-se o
cações, que constituía, na ótica do governo norte-americano, impacto da atuação da Fundação Ford na competição editorial
uma fronteira política tecnicamente complexa. Dwight D. com a União Soviética175.
Eisenhower havia lançado, à mesma época da edição do pro- Esse diagnóstico positivo estava centrado principalmen-
grama ideológico, em 1953, várias medidas que pretendiam su- te na atuação da Intercultural Publications, órgão da Fundação
perar a estratégia soviética, bem sucedida editorialmente com Ford especializado na produção e distribuição de livros e revis-
variedade de traduções e tiragens, preços baixos, boas estraté- tas de natureza cultural, artística e jornalística, que agia a partir
gias de distribuição e adequação de materiais ao gosto do alto da Europa Ocidental, da Índia e do Leste Europeu. Perspectives,
público intelectual. O Presidente, ao aprovar, entre as medidas, uma revista quadrimestral de artes e de literatura norte-ame-
a redução de impostos, de custos postais, barreiras alfandegá- ricana contemporânea, era o seu maior empreendimento176.
rias e taxas cambiais, pretendeu principalmente baratear o li- Eram quatro as suas edições nacionais principais, publicadas na
vro norte-americano. Paralelamente, tomou medidas relativas à Inglaterra, França, Itália e Alemanha Ocidental. Versões adap-
distribuição. Da Casa Branca, do President’s Emergency Fund tadas também estavam sendo publicadas na Índia, Holanda,
for International Affairs, foram direcionadas verbas a Franklin Japão e EUA. A revista iniciou em 1952, sendo vendida a preços
Publications e Arlington Press, duas grandes editoras, para que módicos, esperando atrair especialmente o público de estudan-
aprimorassem a logística editorial norte-americana no exterior tes universitários. As tiragens eram consideradas boas para uma
e mantivessem, através das suas publicações subsidiadas, os pre- publicação desse tipo, com edições nacionais girando entre 40
ços em patamares competitivos174. e 50 mil exemplares em média177. A distribuição era feita para
O grande chamariz da Fundação Ford, nesse terreno 60 países, principalmente como encarte do Atlantic Monthly, um
editorial dominado pelos soviéticos, era a experiência na dis- importante mensário norte-americano de cultura e política, che-
tribuição e na escolha de publicações, particularmente as que gando, nessas edições, a tiragens de 250 mil exemplares. A nota
buscavam alcançar o público arredio e exigente, chamado de elogiosa, feita no monitoramento do governo norte-americano à
highbrow. A Junta de Estratégia Psicológica já havia notado o
esforço da Fundação, elogiando o padrão editorial e o desem- 175  Projeto “U.S. Doctrinal Program (for Board Approval)”. Apenso do memorando
de George A. Morgan [diretor interino da Junta de Estratégia Psicológica], de 5 de
penho de logística na Europa Ocidental. Os resultados desse maio de 1953. Op., cit., anexo A, p. 6-12.
trabalho, identificados pela Junta, eram a redução de preços e 176  A Intercultural também geria e subsidiava publicações de que não era proprietária.
Dentre elas, estavam a Diogene, revista da UNESCO, dirigida por Roger Caillois, e a
a promoção de uma crítica anticomunista através de materiais Confluence, revista da Universidade de Harvard, dirigida por Henry Kissinger.
177  A Fundação Ford cobria os custos totais das edições de Perspectives e definia
174  Relatório “Report on Reduction of Postal Rates on American Books Going o tamanho das tiragens pela expectativa de impacto publicitário e de divulgação no
Abroad”, da Coordenadoria de Operações, 7 de dezembro de 1955, anexo A, p. 1-2; e público-alvo, deixando em segundo plano o histórico e a projeção de vendas. Ver:
minutas de discussão de mesa-redonda, sem data. In: NARA. RG 59: Department of TOURNÈS, Ludovic. La diplomatie culturelle de la Foundation Ford. Les éditions
State. Executive Secretariat (1954-1964). Subject and Special Files, compiled 1953- Intercultural Publications (1952-1959). Vingtième Siècle. Revue d’histoire, Paris, n.
1961, documenting the period 1952-1961. Box 39. 76 (Oct. – Dec., 2002), p. 67 e ss.

94 Wanderson Chaves A questão negra 95


recepção da revista, registrava especialmente a boa acolhida entre da pela Fundação Ford, uma publicação da rede de periódicos do
o público que frequentava as bibliotecas da USIA na Europa178. Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF), era apresentada
A tiragem, entretanto, não foi tratada como indicação como a referência desse novo padrão editorial180.
de sucesso, particularmente após ter sido feita uma avaliação da O CCF181, uma organização baseada em Paris, anterior-
acolhida da publicação na França. Harold Kaplan e John Brown, mente estabelecida em Berlim, era uma frente secreta da CIA,
diretores licenciados da editora Houghton-Mifflin, e Frederick criada para fornecer respostas mais sofisticadas às “Campanhas
H. Burkhardt, presidente do American Council of Learned Pela Paz Mundial”, com a qual a Fundação mantinha um grande
Societies (ACLS), viajaram como consultores da Fundação Ford portfólio de financiamentos, além de estreitas afinidades. O CCF
por toda a Europa, em 1954, para avaliar o impacto da revista havia se tornado fundamental na estratégia da Agência. Atuava
Perspectives para a Fundação, vindo a identificar problemas de na composição de uma frente de oposição à URSS, identificada à
recepção. A grande falha do projeto era seu fracasso em alcançar renovação das tradições e da literatura de esquerda, e na abertura
o leitor highbrow francês. A informação era decisiva. Tomava-se intelectual, com suas organizações e publicações, para a política
a realização da política editorial pela aceitação desse público. A e cultura norte-americanas182. Para a Fundação Ford, essas ativi-
decisão da Fundação Ford foi redefinir estratégias, o que levou ao dades traziam uma solução de enraizamento para a produção de
encerramento do repasse de recursos à Intercultural em setembro material e o estabelecimento de vínculos locais, importante para
de 1954, tendo em vista dar fim às suas atividades. O argumento a credibilidade nacional e internacional das publicações e para o
era justamente o de que a meta de divulgar material norte-ame- combate às críticas antiamericanas183.
ricano entre o público mais ilustrado dos formadores de opinião Shepard Stone vinha do Alto Comissariado para a
não havia sido alcançada. As últimas edições das publicações de Alemanha Ocupada184 (1948-1952), onde iniciou, com o pa-
propriedade da Intercultural, ou que receberam seu subsídios, fo- trocínio oferecido à Der Monat, uma longa trajetória de agen-
ram lançadas em outubro de 1956179. ciamento de organismos e de lideranças para a CIA, para o
A decisão para o término da Perspectives, tomada na Departamento de Estado e para a Fundação Ford185. Ele bus-
Divisão de Assuntos Internacionais da Fundação Ford, elencava cava, naquele momento, um alinhamento às novas resoluções
outras razões até mais importantes. Shepard Stone, diretor dessa
180  Idem, ibidem. BERGHAHN, Volker R. America and the Intellectual Cold
Divisão desde 1953, era o articulador do projeto de uma nova Wars in Europe: Shepard Stone between Philanthropy, Academy, and Diplomacy.
política de publicações, na qual o debate de temas de cultura e Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2001, cap. 8.
181  Congress for Cultural Freedom.
política substituiria a da divulgação direta da arte norte-ameri- 182  SAUNDERS, Frances Stonor. Idem, ibidem, p. 17, 63, 98. Nos anos 1950 e 1960,
cana, então utilizada para se atingir segmentos recalcitrantes da o CCF desenvolveu extensa agenda institucional, com a realização de programas de
intercâmbio, promoção de eventos artísticos e acadêmicos internacionais, proteção de
esquerda não-comunista. Der Monat, revista alemã já patrocina-
intelectuais e artistas censurados e ameaçados e coordenando uma rede global de periódicos.
183  BARNISHEL, Greg. Op., cit., cap. 5.
178  BARNISHEL, Greg. Op., cit., cap. 5. 184  U.S. High Commissioner for Germany – Department of State.
179  Idem, ibidem. 185  SAUNDERS, Frances Stonor. Idem, ibidem, cap. 9.

96 Wanderson Chaves A questão negra 97


de 1955 do Congresso pela Liberdade da Cultura, que traziam à Conferência de Bandung, não seria mais feita pela via do an-
inúmeras novidades. O CCF, na conferência de Milão daquele ticomunismo e do antineutralismo militantes, determinantes até
ano, sinalizou que a morte de Stálin (1953) e a Conferência de então. Estes postulados, segundo o sociólogo da Universidade de
Bandung, realizada em abril186, haviam deslocado o campo de Chicago Edward Shils (1910-1995) deveriam ser substituídos. A
batalha ideológico da Guerra Fria. O nacionalismo anticolo- apologia ao desenvolvimento seria a nova orientação188.
nial, o neutralismo diplomático e os experimentos socialistas da Edward Shils era um importante organizador da agen-
periferia do mundo ocidental representariam, após os avanços da de eventos do CCF, como coordenador do comitê “Ciência
na desestalinização da União Soviética e o término da de-na- e Liberdade”. Ao lado dos sociólogos Raymond Aron e Daniel
zificação da Europa, o terreno de radicalismo onde se desen- Bell, Shils vinha reorientando os membros da organização, a par-
volveria a futura arena de disputa contra o antiamericanismo e tir da Conferência de Milão, para a discussão de como moldar o
a agenda internacional dos EUA. A Fundação Ford, alinhan- debate sobre a modernização desenvolvimentista189. Para Shils,
do-se a essa orientação, avaliou que não eram necessárias mais este debate deveria ter por foco principal propostas de como in-
revistas além das existentes para a Europa Ocidental – o fim tervir, na arena política do “Terceiro Mundo”, na definição dos
ao patrocínio da Intercultural era explicitado nesses termos –, chamados “projetos de construção nacional” (nation building).
porque a busca pelo formador de opinião, em geral, e pelo in- Segundo a historiadora Megan Engle, era ele a origem da suges-
telectual de esquerda, em particular, estava se deslocando em tão de que, nessa investida, a jovem classe média dessas regiões
direção ao mundo em “desenvolvimento” 187. fosse o alvo central de intervenção da política de reorientação190.
A Fundação Ford pretendia que o CCF compusesse sua A opção por esses jovens se explicaria por “razões estru-
frente de atração de lideranças nessas novas regiões de interesse. turais”. Segundo Shils, era típico de sociedades “tradicionais” e
Interessava a ela, particularmente, a estrutura de suporte a vozes “atrasadas” que a elite intelectual urbana, grupo social de origem
influentes e moderadas dos seus órgãos e periódicos, responsá- do objeto dessa ofensiva, tivesse um peso político desproporcio-
veis por fornecer apoio a projetos identificados com a democra- nal ao seu tamanho e que influísse muito no desencadeamento
cia política, com a representação parlamentar e com a “aliança de mudanças. A importância desse segmento na consolidação da
opinião pública nessas sociedades seria grande e sua influência
ocidental”. A guinada para a periferia do mundo ocidental, como
estaria sendo orientada para os interesses comunistas, o que se
ficou explícito na escolha em não se realizar uma oposição vocal
verificaria, segundo Shils, na “radicalização” para o nacionalismo,
186  O evento estabeleceu uma comunidade internacional de países não-alinhados observada ao longo de toda a periferia do mundo ocidental. A
e críticos aos EUA e à União Soviética, a maioria deles asiáticos e africanos, e pós-
coloniais. A expressão “Terceiro Mundo” deve à Conferência de Bandung seu sentido
e consistência fundamentais. 188  Idem, ibidem.
187  ENGLE, Megan C. The Congress for Cultural Freedom, Modernization, and 189  ARONOVA, Elena. Studies of Science before “Science Studies”: Cold War
the Cultural Cold War in Anglophone Africa, 1958-1967. Binghamton, 2014. 209 f. and the Politics of Science in the U.S.,U.K., and U.S.S.R., 1950s-1970s. San Diego,
Tese (Doutorado) – Graduate School of Binghamton University, State University of 2012. 330f. Tese (Doutorado) - University of California, p. 84-88.
New York, cap. 1. 190  ENGLE, Megan C. Op., cit.

98 Wanderson Chaves A questão negra 99


orientação dele ao CCF era a de que fossem realizados ajustes: O governo norte-americano pretendia reverter o pro-
que a organização estabelecesse estratégias de agenciamento es- cesso de descolamento desse segmento jovem, engendrando,
pecíficas para jovens entre 25 e 35 anos e para as suas potenciais para isso, políticas específicas. O documento NSC 5432/1, do
lideranças políticas e culturais; e que construísse novas mensa- Conselho de Segurança Nacional, foi o primeiro nesse sentido,
gens políticas para identificá-los com os EUA e com o “mundo estabelecendo estudantes e universidades entre suas prioridades
ocidental”, desacentuando seu radicalismo191. de investimento193. Ele foi aprovado em 1955, definindo investi-
A proposta de formação de elites de Edward Shils,
mentos em intercâmbio e cooperação técnica, metas de renovação
além de congruente com a política de recursos humanos da
Fundação Ford, estava também alinhada às metas de combate da imagem dos Estados Unidos e de reorientação da dinâmica
ao “provincianismo”, perseguidas pela CIA e pelo Departamento política regional. O objetivo da nova programação era promover
de Estado. Ambos os órgãos vinham estabelecendo, entre os a inserção dessa classe média em circuitos globais, cosmopolitas
objetivos da sua missão modernizadora para a América Latina e pró-ocidentais. A expectativa era alta. Primeiramente, espe-
e o Caribe, atenção especial à resolução desse problema entre rava-se a superação da “imaturidade” juvenil e intelectual para
jovens e intelectuais. A questão do provincianismo se apresen- problemas das relações internacionais e da Guerra Fria, do baixo
taria de forma mais grave entre as “novas classes médias”, um
nível acadêmico e da “esquerdização” pelo marxismo194. A longo
fenômeno global, mas mais aguçado nestas duas regiões. A CIA
destacava nelas seu baixo nível de conhecimento internacional, prazo, esperava-se que a experiência de formação e filiação a no-
sua ignorância da realidade norte-americana, sua independência
e sua instabilidade. Era um segmento social pouco “orgânico”, da CIA sobre a América Latina e o Caribe, elaboradas ao longo dos anos 1950. A
que vinha aparecendo na arena pública de seus países separado CIA, com ênfases menos superlativas, também aplicou essa análise às demais regiões
do mundo “em desenvolvimento”. Vide as seguintes fontes: “NIE 70 (Conditions and
política e socialmente das tradicionais elites proprietárias. Havia Trends in Latin America Affecting US Security)”, de 12 de dezembro de 1952, p. 2-3.
forte identificação com as esquerdas ou com posições de protesto ESDN: CIA-RDP79R00904A000100030006-4. In: NARA. General CIA Records.
contra o establishment. Esse descolamento em relação às “elites”, CREST: 25-Year Program Archive. “NIE 80/90-55 (Conditions and Trends in Latin
America)”, de 6 dezembro de 1955. In: UNITED STATES DEPARTMENT OF
característico dessas “novas classes médias”, teria consolidado
STATE. Foreign Relations of the United States, 1955-1957, volume VI. American
princípios de orientação e comportamento negativos, particular- Republics: multilateral; Mexico; Caribbean. Washington DC: U.S. Government
mente devido: Printing Office, 1987, p. 19-20. NIE 80/90-58 (Latin American Attitudes toward
the US), de 2 de dezembro de 1958. In: UNITED STATES DEPARTMENT OF
a) Ao marxismo;
STATE. Foreign Relations of the United States, 1958-1960, volume V. American
b) Ao ceticismo, verificado no descrédito conferido à Republics. Washington DC: U.S. Government Printing Office, 1991, p. 60, 63-71.
propaganda norte-americana, particularmente em 193  Relatório “Progress Report on NSC 5432/1 United States Objectives and
Courses of Action with Respect to Latin America”. de 19 de janeiro de 1955. In:
relação à resolução satisfatória do racismo nos EUA; UNITED STATES DEPARTMENT OF STATE. Foreign Relations of the
c) Ao “radicalismo”, afirmado na defesa do estatismo United States, 1952-1954, volume IV. Op., cit., p. 101, 106-9.
como meio de resolução das reformas sociais192. 194  Relatório “Special Report on Latin America (NSC 5613/1)”, de 26 de novembro
de 1958; e documento do Conselho de Segurança Nacional, “5902/1. Statement of
U.S. Policy toward Latin America”, de 16 de fevereiro de 1959. In: UNITED STATES
191  Idem, ibidem. DEPARTMENT OF STATE. Foreign Relations of the United States, 1958-1960,
192  Essa análise apareceu recorrentemente nas “estimativas de inteligência” (NIEs) volume V. Op., cit., p. 45-6 e 98.

100 Wanderson Chaves A questão negra 101


vas redes atraísse adesão popular para um nacionalismo identifi- medida importante desse esforço foi tomada ainda em 1955.
cado à coalizão com os Estados Unidos. O princípio, por supos- Naquele momento, a Fundação Ford designou a criação de
to, era o de que as organizações comunistas fossem deslocadas e um comitê acadêmico, formado pelo Social Science Research
alijadas das bases estudantis, sindicais, artísticas e acadêmicas195. Council (SSRC) e pelo American Council of Learned Societies
A política de formação de quadros intelectuais da (ACLS), para gerir a área de estudos africanos através dos gru-
Fundação Ford, que integrava um esforço mais amplo da ins- pos de pesquisa nas universidades de Boston, Northwestern,
tituição em projetos de reforma universitária, foi precursor na Chicago, Wisconsin, Berkeley, Stanford, Indiana, Columbia,
formação desse novo tipo humano, específico para as áreas “em Yale, Howard e Michigan State. A iniciativa influenciou deci-
desenvolvimento”. Desde a abertura dos seus primeiros escritó- sivamente o desenvolvimento da especialidade198.
rios na Ásia e no Oriente Médio, em 1952, e na África, em 1958, O mesmo mecanismo de gestão, montado pelo SSRC
seus programas se dirigiam a formar esse profissional: pessoa e a ACLS, foi empregado, em 1956, para impulsionar os centros
atualizada à teoria de ponta nas Ciências Sociais, empenhada na de pesquisa sobre América Latina. Foram adotadas as medidas
formulação de análises e ideologias autóctones que acenassem que vinham sendo aplicadas aos demais estudos de área, par-
positivamente ao princípio capitalista de desenvolvimento196. ticularmente o apoio ao intercâmbio acadêmico, o fomento a
Precursor também era o esforço da Fundação Ford em publicações, a oferta de prêmios e bolsas internacionais de pós-
relação aos estudos africanos e latino-americanos. Quando a -graduação e a consolidação dos órgãos acadêmicos. Na frente
África e a América Latina se tornaram prioritárias na política norte-americana, foram patrocinados grupos das universidades
externa dos EUA, no fim dos anos 1950, especialmente devido de Columbia, Harvard, Minnesota, Texas (Austin) e California
à Revolução Cubana e à escalada na descolonização, os melho- (Berkeley e Los Angeles), investimento numa rede de espe-
res centros de estudos eram patrocinados pela Fundação. Como cialistas que veio a desencadear, em 1965, a fundação da Latin
havia acontecido anteriormente com os estudos asiáticos e so- American Studies Association, a LASA199. Já na frente latino-
bre o comunismo, trabalhava-se a formação de mão de obra e
diretores de programas da Fundação Ford para a África e o Oriente Médio. SUTTON,
de elites dirigentes de nível superior e a elevação da qualidade Francis X. The Ford Foundation’s Development Program in Africa. African Studies
da informação disponível para os órgãos de governo197. Uma Bulletin, Cambridge/UK, v. 3, n. 4, (Dec., 1960), p. 2. KINGSLEY, J. Donald. The
Ford Foundation and Education in Africa. African Studies Bulletin, Cambridge/UK,
v. 9, n. 3, (Dec., 1966), p. 2.
195  Memorando de discussão do 369º encontro do Conselho de Segurança Nacional, 198  Trata-se do diagnóstico de 1976 sobre o impacto desses investimentos, feito
de 19 de junho de 1958. In: UNITED STATES DEPARTMENT OF STATE. por duas pessoas centrais na supervisão dessa política. Francis X. Sutton, então vice-
Idem, ibidem, p. 29. presidente da Divisão Internacional da Fundação Ford, e David R. Smock, então o
196  Esta era a avaliação da Fundação Ford sobre o seu histórico de patrocínio à área representante da Fundação para a África Meridional e Oriental. SUTTON, Francis
de Ciências Sociais no mundo “em desenvolvimento”, conforme análise de 1962. Vide: X. & SMOCK, David R. The Ford Foundation and African Studies. Issue: A Journal
súmula “Social Science Research Council: Strengthening Latin American Studies”, de of Opinion, Cambridge/UK, v. 6, n. 2/3, Africanist Studies 1955-1975 (Summer –
21-22 de junho de 1962. In: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Reel nº. Autumn, 1976), p. 68-70.
2629. Grant Number 62-359. 199  Memorando de 1 de junho de 1966, do Social Science Research Council; e
197  De acordo com Francis X. Sutton e Donald Kingsley, durante os anos 1960, memorando de 9 de junho de 1969, de Kalman H. Silvert para Harry E. Wilheim. In:

102 Wanderson Chaves A questão negra 103


-americana, destaca-se a sustentação à FLACSO (Faculdade tes órgãos de treinamento técnico eram repelentes para o público
Latino-Americana de Ciências Sociais), ao CLAPCS (Centro visado, justamente por suas conexões governamentais. As bolsas
Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais) e acadêmicas da Comissão Fulbright, do Departamento de Estado e
ao ILPES (Instituto Latino-Americano de Planejamento as bolsas de intercâmbio da Organização dos Estados Americanos
Econômico e Social). Tratava-se de órgãos de pesquisa e for- (OEA) sofreriam também, segundo ela, da mesma limitação202. O
mação ligados à CEPAL, a Comissão Econômica para a argumento da Fundação Ford era o de que o plano de renovação
América Latina e o Caribe da Organização das Nações Unidas de elites deveria estar assentado em redes acadêmicas e em com-
(ONU). A FLACSO, sediada em Santiago e o CLAPCS, no promissos intelectuais, sendo necessário o recrutamento de bons
Rio de Janeiro, foram fundados em 1957. O ILPES, com sede quadros, segundo ela, nunca disponíveis nos programas oficiais. Seu
em Santiago, foi fundado em 1962. As três organizações foram trabalho de seleção, portanto, abriria oportunidades para o governo
apoiadas com recursos da Fundação Ford desde o início200. dos EUA, que, do recrutamento de ex-beneficiários da Fundação
Havia, na concepção da estratégia de atração dos intelec- Ford, poderia obter a elevação da credibilidade de suas políticas203.
tuais da América Latina e Caribe, uma divisão de tarefas entre a Beneficiários da Fundação estavam proibidos de tra-
Fundação Ford e o governo norte-americano. Foi firmado o com- balhar para os serviços de inteligência do governo norte-ameri-
promisso, com os órgãos de política externa, de que a Fundação cano durante a vigência de bolsas, conforme decisão do conse-
Ford seria o seu principal veículo de abordagem dos contatos ne- lho de curadores, de 1952. A decisão, negociada entre o curador
cessários para firmar vínculos institucionais. Segundo a instituição, John J. McCloy204 e a CIA, definiu trocas. A CIA não assediaria
que insistiu para obter essa prioridade, a medida ajudaria a agenda ou recrutaria bolsistas até o término de seus trabalhos, mas a
norte-americana, que precisaria de operadores com imagem de Fundação manteria a Agência informada sobre as atividades de
autonomia, como a dela, algo que seria insustentável para progra- campo e de pesquisa205. Ao equilibrar esse modelo de cooperação
mas oficiais, como os da United States Agency for International institucional, virtualmente secreto, com o cultivo de uma imagem
Development (USAID) 201. A Fundação Ford frisava como es- de independência, segundo o historiador Leonard A. Gordon, a

RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Reel nº. 2629. Grant Number 62-359. 202  A OEA era uma importante área de atuação da Counterintelligence (CI), de
200  Memorando de Melvin J. Fox para Clarence H. Faust e John B. Howard, de 7 James Jesus Angleton, o principal serviço de contra-inteligência da CIA. Relatório
de dezembro de 1961. In: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Reel nº. 2629. “Progress Report to the National Security Council on Implementation of the
Grant Number 62-359. Relatório de Kalman H. Silvert, “Draft statement of policy Recommendations of the Jackson Committee (NSC Action 866)”, da Coordenadoria
guidelines for social sciences in Latin America”, de 27 de janeiro de 1969. In: RAC. de Operações, 30 de setembro de 1953. Op., cit, anexo A, p. 6.
Ford Foundation Records. Reports. N.º 008774. 203  Memorando para arquivamento “Specific Operational and Other Features of the
201  Conforme Melvin J. Fox, vice-diretor da divisão da Fundação Ford que Project”, de [Melvin J.] Fox, de junho de 1962. Op., cit.
concentrava o trabalho de intercâmbio e de bolsas internacionais, a International 204  McCloy era então também membro do conselho-diretor do Chase Manhattan
Training and Research (ITR). Memorando para arquivamento “Specific Operational Bank e da Fundação Rockefeller, tendo sido, anteriormente, presidente do Banco
and Other Features of the Project”, de [Melvin J.] Fox, de junho de 1962. In: RAC. Ford Mundial (1947-1949) e secretário-executivo do Alto Comissariado Americano para a
Foundation Records. Grant Files. Reel nº. 2629. Grant Number 62-359. A USAID Alemanha Ocupada (1949-1953).
substituiu a International Cooperation Administration (ICA), extinta em 1960. 205  Para a informação: carta de John K. Weiss [secretaria-geral: Fundação Ford] para

104 Wanderson Chaves A questão negra 105


Fundação Ford não apenas sustentou sua própria credibilidade, ment político, econômico e intelectual da “comunidade atlân-
como conseguiu transmiti-la bem a seus associados dentro e fora tica” para conclaves confidenciais. A Fundação Ford realizaria,
dos governos206. Neste sentido, era forte a convicção da Fundação nas Américas, o trabalho de curadoria que na Europa cabia ao
Ford, no início dos anos 1960, de que ela talvez fosse a única ins- príncipe Bernhardt, da Holanda. Tal como nos Encontros de
tituição ainda capaz de sustentar a proposta do programa ideo- Bilderberg, se utilizaria esse fórum para estimular as lideranças,
lógico, de “internacionalizar” as elites latino-americanas. Diante e pessoas notáveis convidadas, a estabelecerem canais informais
das desconfianças que cercavam a Aliança para o Progresso207,
extraoficiais de deliberação de políticas continentais209.
estimuladas pela euforia com a Revolução Cubana, a Fundação A franquia americana para esses encontros foi esta-
seria uma das poucas instituições que conseguiria usar instru- belecida e recebeu o nome de Encuentros Siglo XX. Durou de
mentos e recursos do governo norte-americano e ainda sustentar 1965 a 1970. Seus mentores principais eram Lincoln Gordon,
ter autonomia sem sofrer ônus públicos por isso208. o embaixador norte-americano no Brasil (1961-1966), e Arthur
A salvação de programas como a Aliança para o M. Schlesinger Jr., intelectual do partido Democrata que havia
Progresso, ela insistia, estaria na composição de novos círcu- sido um dos brain trust da administração de John F. Kennedy
los e padrões de interação regional e global. Naquele ambien- (1961-1963) 210. Eles ajudaram a definir uma nova forma de in-
te, acirrado por suspeitas de ingerência política, sabotagem e tervenção. Pretendia-se que fosse menos dependente de medidas
espionagem oficial, os programas só seriam viáveis, de acordo macropolíticas e macroeconômicas – como as que vinham nau-
com a Fundação Ford, se se estabelecessem em canais priva- fragando os esforços da Aliança para o Progresso – e que orien-
dos. Por isso, a proposta da Fundação de adaptação da experi- tasse estratégias para a disputa da hegemonia política no campo
ência europeia dos Encontros de Bilderberg. Na Europa, eles cultural. Três grandes áreas de concentração estavam previstas:
reuniam regularmente, desde 1954, lideranças do establish- a) O monitoramento das esquerdas, como temática
acadêmica;
Dean Acheson [secretário-de-Estado], de 19 de setembro de 1952. In: RAC. Ford
b) A reflexão sobre a “transição democrática”, nas con-
Foundation Records. Reel nº. 1157. General Correspondence, 1952. dições regionais de “desenvolvimento”;
206  A pesquisa do autor sobre as atividades do maior escritório regional da Fundação c) A construção de bases não-totalitárias e de proteção
Ford até 1970, o indiano, é a base para o desenvolvimento deste ponto. GORDON,
Leonard A. Wealth Equals Wisdom? The Rockefeller and Ford Foundations in India.
Annals of the American Academy of Political and Social Science; Thousand Oaks, 209  Conforme Forrest D. Murden, em proposta comissionada pela Fundação Ford.
CA; v. 554, The Role of NGOs: Charity and Empowerment, (Nov., 1997), p. 113-4. Relatório de Forrest Murden, “A Bilderberg for Latin America”, de 4 de junho de
207  O programa, lançado em março de 1961 pelo presidente John F. Kennedy, 1963. Op., cit. Forrest D. Murden (1921-1977) era sócio-fundador (1962) da firma
era um chamamento às forças nacionalistas e progressistas latino-americanas para de consultoria de negócios Allen and Murden Inc., depois de 1967, Murden and
que optassem pela proposta política norte-americana, contra a proposta “fidelista”. Company. Era um renomado consultor de relações governamentais e relações públicas
Originalmente um programa de assistência econômica, previa e exigia dos signatários internacionais, tendo trabalhado para a Standard Oil of New Jersey (1959-1961) e
compromissos com reformas econômicas e sociais. para a Ford Motor Company (1954-1959). Foi membro-fundador do Center for
208  Relatório de Forrest Murden, “A Bilderberg for Latin America”, de 4 de junho Inter-American Relations, o CIAR, em 1967, sendo seu primeiro secretário.
de 1963. In: RAC. Ford Foundation Records. Reports. Nº. 010878. 210  Schlesinger Jr. foi o assessor especial para a América Latina de Kennedy.

106 Wanderson Chaves A questão negra 107


dos direitos humanos, preferencialmente em parti- pios do “equilíbrio”, da “estabilidade” e da “funcionalidade” 214.
dos populares e cristãos, nos regimes da região211. Para Germani, as temáticas da “transição democrática”
A proposta de intervenção formulada para os Encuentros e dos “direitos humanos” deveriam adquirir centralidade porque,
Siglo XX vinha sendo construída através de eventos preparatórios. segundo ele, havia dois problemas fundamentais prejudicando a
A Conferência sobre as tensões no desenvolvimento no Hemisfério modernização de acordo com o modelo dos “países avançados”
Ocidental, realizada em Salvador, em agosto de 1962, estava entre
que precisavam ser compreendidos e enfrentados por meio delas.
os mais importantes212. O sociólogo argentino Gino Germani,
Na avaliação de Germani, eram a “marginalidade” e a “instabili-
entre os vários participantes213, foi quem apresentou a síntese
dade”, questões antigas, mas que precisavam encontrar seu lugar
mais abrangente para o pretendido projeto de disputa das es-
de investigação dentro das duas novas temáticas. Ele apresentou,
querdas. Na proposta de desenvolvimento político regional, que
apresentou em comunicação para a Conferência, estava a su- neste sentido, uma classificação das diferentes dinâmicas colo-
gestão de que a “transição democrática” e os “direitos humanos” cadas pelos problemas da marginalidade e da instabilidade na
fossem desenvolvidos, como temáticas, para se tornarem o novo América Latina, como contribuição a esse esforço intelectual e
foco de atração. Viriam, segundo ele, para renovar o debate de de intervenção política. Germani identificou, na América Latina,
como conduzir a América Latina para a forma das “sociedades dois blocos de países afetados de forma mais complexa pelos dois
industriais” dos EUA e Europa Ocidental, conforme os princí- problemas. O primeiro bloco era formado por Argentina, Chile e
Venezuela. O segundo, por México e Brasil. O grande problema
211  As informações da proposta estão na correspondência entre o ex-presidente
do primeiro bloco de países era a existência de “grupos sociais
da Colômbia (1959-1962), Alberto Llreas Camargo (1906-1990), e o vice-diretor
da Divisão Internacional da Fundação Ford, Joseph E. Slater. Vide: carta de Alberto modernos” que não estavam “integrados” e que estavam politica-
Lleras para Joseph E. Slater, de fevereiro de 1965. In: RAC. Ford Foundation Records.
Joseph. E. Slater Papers. Box 20.
mente mobilizados, constituindo, desta forma, fonte de tensão e
212  O evento foi realizado em parceria entre o Council on World Tensions e a então conflito. O grande problema do segundo era a pobreza de vín-
Universidade da Bahia (hoje UFBA).
213  O evento reuniu cerca de 80 participantes de todo o mundo, entre conferencistas, culos, o distanciamento entre a “população moderna e integrada”
palestrantes, debatedores, organizadores e observadores, desenvolvendo-se em torno desses países e sua enorme população “tradicional”. Nesta con-
de três seminários principais: o “Tensões entre nações”, o “Tensões dentro das nações”
e o “Pré-condições para o desenvolvimento”. O trabalho de Gino Germani foi dição de “atraso”, a mobilização dos “tradicionais” seria dotada,
apresentado no segundo seminário, juntamente com os de Mário Henrique Simonsen, segundo o sociólogo, de um potencial perigoso e imprevisível,
Eduardo Frei Montalva (senador, futuro presidente do Chile, 1964-1970) e Luis
Alberto Monge (deputado da Assembleia Legislativa da Costa Rica). Galo Plaza, na forma e na escala. Os jovens que ascenderam à classe média
diplomata, ex-presidente do Equador (1948-1952), presidiu as sessões desse seminário. representavam, na Argentina, no Chile e na Venezuela, conforme
Paul G. Hoffman (então, diretor-gerente do Fundo Especial da ONU) e José Mayobre
(diplomata venezuelano, diretor-executivo do FMI) foram os mediadores. Parte dos essa análise, o segmento “marginal” mais “instável” da população.
trabalhos foi publicada em livro, em inglês e português. ADAMS, Mildred (ed.). Latin
America: Evolution or Explosion? New York: Dodd, Mead and Company, 1963. 214  Gino Germani, “Cambio social y conflictos entre grupos”, documento basico 7,
ADAMS, Mildred (ed.). América Latina: evolução ou explosão? Rio de Janeiro: Conferencia sobre tensiones en el desarollo del hemisferio occidental [6-11 de agosto
Zahar, 1964. A comunicação de Gino Germani não saiu em nenhuma das duas edições. de 1962]. In: RAC. Ford Foundation Records. Joseph. E. Slater Papers. Box 26.

108 Wanderson Chaves A questão negra 109


No México e no Brasil, o problema era mais extenso. Tratava-se conquista de “corações e mentes” havia se mantido nos quadros
da vida social como um todo, da fragilidade dos laços sociais, estabelecidos pelas políticas de modernização, mais ou menos
tanto entre as elites, que estariam próximas de romperem, como estabelecidas nos anos 1950, como, por exemplo, nas seguidas
entre essas elites e as demais classes sociais, cujo relacionamento por instituições tão distintas quanto a CIAR e a CEPAL. Na
era tênue e também próximo do rompimento215. CEPAL, uma das formas mais acabadas desta investida foi a va-
Segundo Gino Germani, para assegurar a estabilidade riedade de teorizações desenvolvimentistas. Estas apontavam em
do desenvolvimento econômico e a transição da “democracia re- direção a uma atualização “nacionalista” em relação ao fluxo de
presentativa” para estágios civilizatórios mais “avançados” nesses capital em nível internacional e à atualização das elites nacionais
países seriam necessárias duas medidas: que fossem assegurados, e programas de desenvolvimento, visando o estabelecimento, na
aos grupos já “modernizados”, canais próprios de integração po- América Latina, de “vanguardas (burguesas)” capacitadas a rea-
lítico-social, e que os “marginalizados” da modernização, os “tra- lizar o progresso rumo à novas “etapas de desenvolvimento” 218.
dicionais” e os “modernos não-integrados”, fossem desmobiliza- Órgão de divulgação cultural ligado ao banqueiro David
dos enquanto sua força, vista como disruptiva, não encontrasse Rockefeller, o CIAR era considerado, pela Fundação Ford, a
formas de acomodação e estabilidade216. melhor encarnação dos objetivos institucionais traçados nos
A Fundação Ford manteve-se presa aos postulados que Encuentros Siglo XX. O CIAR era rival da influente Casa de las
deram origem ao programa ideológico, promovendo, como na Americas, de Havana, e teve, ao lado da instituição cubana, um
proposta de Gino Germani, estratégias baseadas em princípios papel destacado na promoção de um verdadeiro fenômeno dos
de segurança e em centros bem definidos de autoridade. Nos anos 1960: a “nova novela latino-americana”. Estabelecido em
anos 1980, os direitos humanos e o multiculturalismo tornaram- 1965, o CIAR sustentou uma série de programas de intercâmbio,
-se prioridades para o novo consenso liberal. Reinventaram-se tradução e divulgação que, entre outras realizações, consolidaram
as estratégias para a política de atração das esquerdas, dentro e a fundação da revista Review, em 1968. Ela estava a cargo do
fora da Fundação Ford217. Até aquele momento, a batalha pela crítico literário uruguaio Emir Rodriguez Monegal, que tam-
bém era editor-chefe da revista literária Mundo Nuevo, periódico
215  Idem, ibidem.
216  Idem, ibidem. Para Gino Germani, o Uruguai representava, entre os países da
América Latina, o caso mais bem resolvido de modernização e integração. Afora (1922-2009), especialista em direitos humanos que trabalhou na ONU de 1960 à
os dois blocos analisados, o principal problema dos demais países, ainda segundo 1986, íntimo do pessoal especializado em organismos internacionais do Departamento
Germani, não era o conflito político-social, mas, quase que exclusivamente, a condição de Estado, a virada que ocorreu no complexo de política externa do EUA também
das elites nacionais, que se mostravam, de acordo com o sociólogo, ou indispostas ou começou por volta de 1975. Neste sentido: KOREY, William. Taking on the World´s
despreparadas para gerir adequadamente uma dinâmica de modernização. Repressive Regimes. Op., cit., cap. 2 e ss.
217  A virada, segundo memórias de ex-dirigentes da Fundação Ford diretamente 218  Análise conforme: GUILHOT, Nicolas. The Democracy Makers: Human
envolvidos nessa transformação, se deu por volta de 1975, ano em que a agenda que Rights and the Politics of Global Order. New York, Columbia University Press, 2005,
ganhou corpo nos anos 1980 começou a ser construída. De acordo com William Korey especialmente cap. 3.

110 Wanderson Chaves A questão negra 111


do CCF publicado em Paris, criado em 1966. Monegal, um dos construção de soluções locais que levassem em conta os objetivos
responsáveis por criar e propagar, ao lado do escritor chileno José comuns da instituição com a agenda externa norte-americana: a
Donoso, a expressão “boom da literatura latino-americana”, era promoção do desenvolvimento como medida de “transição de-
um importante sustentáculo do esforço ao qual o CIAR esteve mocrática” e a integração das populações no sentido da busca do
integrado. Com a expressão “boom”, a frente CIAR-CCF bus- “bem-estar” e da “boa sociedade” da sua proposta de moderniza-
cava orientar em seus órgãos, como discreto contramovimento, ção, civilização, cultura e estilo de vida. Essa ação se daria segun-
a produção e a recepção da efervescente atividade literária da do o mecanismo assumido desde o início dos anos 1950 entre a
América Latina dos anos 1960, que se encontrava, no público e Fundação Ford, o Departamento de Estado e a CIA.
no programa artístico, muito orientada ao entusiasmo e à defesa
da Revolução Cubana219.
O trabalho do CIAR, através de serviços de divulgação
e de relacionamento e de sua programação de eventos, que al-
cançava acadêmicos e lideranças civis com variadas orientações
políticas e teóricas, era elevar o nível de socialização das elites
intelectuais latino-americanas entre si, e delas entre os norte-
-americanos. O resultado dessa investida, segundo a Fundação
Ford, teria sido a guinada simbólica que se desejava. Ela ajudava
a alavancar uma proposta de integração continental pró-ame-
ricana, a ser realizada por latino-americanos, e que situava um
novo horizonte de inserção dos EUA nas narrativas regionais:
menos antiamericano, ainda que mantendo o espírito crítico220.
As políticas da Fundação Ford para a questão racial,
aplicadas internacionalmente nos 1950 e 1960, pretendiam a

219  COHN, Deborah. The Latin American Literary Boom and the U.S.
Nationalism during the Cold War. Nashville, TN: Vanderbilt University Press, 2012,
especialmente “Introduction” e cap. 4.
220  Era este o diagnóstico de Joseph E. Slater em 1967, quando ele dirigiu o
programa de Relações Internacionais da Divisão Internacional da Fundação Ford.
Carta de Joseph E. Slater para Harry E. Wilheim [chefe de programas da Fundação
Ford para a América Latina e o Caribe], de 23 de outubro de 1967. In: RAC. Ford
Foundation Records. Joseph. E. Slater Papers. Box 1.

112 Wanderson Chaves A questão negra 113


Capítulo 3

Desenvolvimentismo e transição
democrática: o Institute of Race Relations
e os investimentos da Fundação Ford nas
questões de raça

O sir britânico Philip Mason (1906-1999), diretor de


estudos (1952-1969), curador (1958-1962) e conselheiro sênior
(1969-1972) do Institute of Race Relations (IRR), de Londres,
era mais conhecido por suas novelas sobre a Índia colonial, como
Call the Next Witness (1945), The Wild Sweet Witch (1947) e The
Men Who Ruled India (1954) 221, do que por sua discreta lideran-
ça no debate internacional das questões colonial e racial222. É o
que atesta o lugar que o trabalho de memória da sua experiência
de ex-governador britânico no Punjab e no Garhwal ocupa na
área de estudos da subalternidade indiana, onde sua obra literária
tem sido destacada223.

221  Com o pseudônimo de Philip Woodruff.


222  Essa foi a tônica dos principais obituários. OLIVE, Roland. Obituary: Philip
Mason. The Independent, London, 1 February 1999. Disponível em: <http://www.
independent.co.uk/arts-entertainment/obituary-philip-mason-1068169.html>
Acesso em: 01 set. 2011. TINKER, Hugh. Last Witness to the Raj: Philip Mason.
The Guardian, London, 3 February 1999. Disponível em: <http://www.theguardian.
com/news/1999/feb/03/guardianobituaries1> Acesso em: 14 mar. 2014.
223  Por exemplo, em: FISCHER-TINÉ, Harald. Low and Licentious Europeans:
Race, Caste, and “White Subalternity” in Colonial India. New Delhi: Orient
BlackSwan, 2009.

114 Wanderson Chaves A questão negra 115


Analisaremos aqui outro aspecto de sua trajetória: o da vidades de pesquisa acadêmica e para produzir material didático
condução de um grupo de assessoramento e pesquisa (think tank) e de propaganda para assessorar diplomatas, empresas e organi-
racial. O IRR, impulsionado pelo patrocínio da Fundação Ford, zações governamentais e não-governamentais com informação
desenvolveu extenso e inédito inventário da “situação racial” da técnica, qualificada e atualizada sobre os problemas regionais das
Grã-Bretanha, assim como o de todas as áreas “subdesenvolvi- áreas coloniais da Comunidade Britânica227. Até 1972, quando
das” do mundo. Sua atuação foi modelada, entre 1960 e 1972, mudou inteiramente a constituição de seus quadros dirigentes e
para assumir as funções específicas de eixo e de coordenação glo- técnicos para se tornar um pequeno grupo de pressão antirracista,
bal do campo temático e disciplinar das “relações raciais compa- o IRR foi equipado principalmente com profissionais oriundos do
radas”. Enquanto o trabalho do IRR na Grã-Bretanha tem sido Foreign Office e do Colonial Office britânicos. Sua principal fonte de
objeto de investigações recentes224, sua frente internacional tem recursos eram as doações e pagamentos por serviços prestados vin-
sido amplamente ignorada pela historiografia225. Neste capítulo, das de bancos e empresas de mineração. O IRR, por volta de 1965,
abordaremos essa frente, precisando a importância de sua inter- chegou a contar com a contribuição regular de cerca de 95 empre-
venção no debate das ideias raciais na Guerra Fria. sas228. Essa modalidade de patrocínio deu sustentação, entre 1950
O IRR foi estabelecido em 1950. Era um órgão do Royal e 1972, a atividades que incluíam o lobby e a consultoria política
Institute of International Affairs226 criado para desenvolver ati- e empresarial, remuneradas para investigar o futuro de negócios e
de investimentos diante das transformações da descolonização e
224  A maioria destes trabalhos está orientado para o debate das políticas de imigração dos conflitos raciais. Ao longo dos anos 1950 e 1960, o uso desses
na Europa contemporânea e destaca, na pesquisa do IRR, sobretudo, a fortuna crítica e
a participação do Instituto no debate de época sobre os “distúrbios raciais” de Notting
recursos foi se ampliando do seu foco mais importante, a África
Hill, em Londres, em 1958, e a aprovação da Lei de Imigração da Comunidade Britânica, Austral, para o restante do continente africano, e, daí, para as ou-
de 1962. Veja-se, por exemplo: CLAPSON, Mark. The American Countribution to tras áreas coloniais e “em desenvolvimento” 229.
the Urban Sociology of Race Relations in Britain from the 1940’s to the early 1970’s.
Urban History, Cambridge/UK; v. 33, n. 2, 2008. TAMME, Reet. “Promoting Racial O fundador do Instituto, o editor-chefe (1950-1961)
Harmony”: Race Relations-Forschung und soziale Ungleichheit in Großbritannien do jornal londrino The Sunday Times, Harry Hodson (1906-
in den 1950er bis 1960er Jahren. In: REINECKE, Christiane / MERGEL, Thomas
(Hg.), Das Soziale ordnen: Sozialwissenschaften und gessellschaftliche Ungleichheit 1999), e o diretor de estudos da instituição, Philip Mason,
im 20. Jahrhundert. Frankfurt/New York: Campus Verlag, 2012. NEWTON, Darrel
M. ‘How can we help you?’ Hugh Greene and the BBC Coloured Conferences.
Ethnicity and Race in a Changing World, Manchester/UK; v. 3, n. 2, 2012. relação a questões militares e a política econômica internacional.
225  As memórias de Phlip Mason, do diretor de estudos que o substituiu, em 1972, 227  Projeto “Draft Submission to the Ford Foundation. Research in Race Relations:
ainda no cargo, Ambavaler Sivanandan, e a história produzida pelo sociólogo Chris An International Unit”, sem data. In: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files.
Mullard a partir de entrevistas e da documentaçao pessoal de ex-funcionários do Reel nº. 2544. Grant Number 60-447.
IRR, ainda são as principais referências bibliográficas. SIVANANDAN, A. Race and 228  As empresas com o principal registro de doações e de serviços contratados
Resistance: The IRR History. London: Race Today Publications, 1974. MASON, eram os bancos e mineradoras representadas no conselho de curadores do IRR.
Philip. A Thread of Silk: Further Memories of a Varied Life. Salisbury, UK: Michael Figuravam entre os mais influentes curadores: Frederic Seebohm, do Barclays Bank
Russel Publishing Ltd., 1984. MULLARD, Chris. Race, Power & Resistance. International; Harry Oppenheimer, da Anglo American Corporation; Ronald Prain,
London: Routledge & Kegan Paul, 1985. da Roan Selection Trust; e Gordon Richardson, do Bank of England. William Pedler,
226  A instituição, fundada em 1920, também é conhecida pelo nome de Chatham da Unilever, também era um curador influente. MULLARD, Chris. Op, cit., cap. 4.
House. Exerce atividades de pesquisa e de consultoria privada, especialmente com 229  Idem, ibidem.

116 Wanderson Chaves A questão negra 117


orientaram os trabalhos do IRR no sentido de buscar o lugar da guir atrair para o seu lado a maioria dos descontentes ou
“questão racial” na arena política das relações internacionais, até das raças não-europeias, de maneira que a fronteira entre a
então em segundo plano. Hodson, que conheceu os domínios democracia e seus inimigos seja uma fronteira racial, ideo-
lógica e política –, então o perigo seria várias vezes multi-
do Império Britânico trabalhando, desde 1928, como corres-
plicado e a possibilidade de nossa eventual retirada do topo
pondente internacional de jornais e revistas, também foi, como seria inúmeras vezes pior. Se resolvermos o problema racial,
Mason, ex-aluno do Balliol College, da Universidade de Oxford, é claro que seremos capazes de impedir que a combinação
e ocupou posições-chave na Índia Colonial, onde vieram a se aconteça. Por outro lado, o fato de que enfrentamos o pro-
conhecer. Ele foi subsecretário dos ministérios da Informação e blema racial na presença da ameaça comunista dá a ele uma
da Produção (1939-1945) e da Comissão de Reformas (1945- dupla urgência231.
1947). Este último, um órgão central do esforço britânico de
transição instituicional no processo de independência indiano Philip Mason, convidado por Hodson para a direção de
(1947) 230. Hodson, ainda como editor de economia (1946-1950) estudos do IRR em 1950, assumiu o posto apenas em outubro de
do The Sunday Times, expôs, da seguinte forma, em 1949, na 1952, após sondagens preliminares no conselho de curadores do
Commonwealth Relations Conference, promovida pelo Royal IRR e na direção do Royal Institute of International Affairs. Ele
Institute of International Affairs em Bigwin Inn, no Canadá, a finalmente apresentou o programa que daria operacionalidade à
problemática que viria a ocupar Mason no IRR: proposta do diretor do Instituto em agosto de 1953232. A versão
resumida desse programa foi apresentada na forma de paper em
Há dois problemas na política mundial de hoje que trans-
cendem todos os outros: são a luta entre o comunismo e a
231  Tradução livre do original: “There are two problems in world politics today
democracia liberal e o problema das relações raciais. Entre which transcend all others. They are the struggle between Communism and liberal
os dois, estou disposto a argumentar que o problema das democracy, and the problem of race relations. Of the two, I am prepared to argue that
relações raciais é o mais importante, já que, por um lado, the problem of race relations is the more important, since, for one thing, it would
remain with us in its full complexity even if Communism were settled down to a
ele permaneceria conosco em toda a sua complexidade ain-
peaceful neighbourliness with democracy in a world partitioned between them. But
da que o comunismo se estabilizasse em uma vizinhança the comparison is really to no purpose. Both problems are of crucial importance,
pacífica com o mundo que ele divide com a democracia. for the survival of our civilisation. Much more to the point is the fact that if the
Essa comparação, entretanto, é despropositada. Ambos os two became identified – that is to say, if Communism succeeded in enlisting most
of the discontented or non-European races on its side, so that the frontier between
problemas são de crucial importância para a sobrevivência
democracy and its enemies was a racial as well as an ideological and political frontier
da nossa civilização. – then the danger would be greatly multiplied, and the chance of our eventually
coming out on top would be so much the poorer. To the extent that we solve the
Muito mais importante é o fato de que, se os dois proble- racial problem itself, we shall of course be preventing that combination from coming
mas vierem a se unificar – ou seja, se o comunismo conse- about. On the other hand, the fact that we face the problem in the presence of the
Communist menace gives it a double urgency”. In: HODSON, H. V. Race Relations
in the Commonwealth. International Affairs, London, v. 26, n. 3, July 1950. Citado
230  [ANONYMOUS]. Harry Hodson (22 May 1906-27 March 1999). Round em: SIVANANDAN, A. Op., cit., p. 2.
Table, London, n. 351, Jul. 1999. 232  MASON, Philip. Op., cit., cap. 3.

118 Wanderson Chaves A questão negra 119


março de 1954, na Conferência da Comunidade Britânica sobre planeta deveria permitir ao IRR realizar de forma rápida e fá-
o Problema Racial, em Lahore, no Paquistão, para um público de cil o trabalho de comparação internacional das “relações raciais”.
organizações governamentais e não-governamentais especializa- Segundo Mason, a pequena dimensão geográfica e demográfica
das em problemas étnicos e raciais233. O sociólogo Chris Mullard dos países escolhidos permitiria, além de facilidades operacionais
argumentou em Race, Power & Resistance (1985) que este paper na realização das pesquisas, ótimas fontes de contraste ou seme-
já apresentava os princípios analíticos e de ação que deram uni- lhança para as comparações235.
formidade à agenda de trabalho do IRR durante o período em Um dos objetivos do trabalho comparativo era classi-
que Mason foi diretor de estudos do Instituto. Para Mullard, es- ficar os diferentes padrões de “relações raciais” e aferir seus ní-
tes princípios poderiam ser resumidos a três: veis de “tensão racial”. Segundo Mason, seria equivocada uma
a) conflitos raciais, especialmente quando politica- proposta de classificação que não levasse em conta a dimensão
mente apropriados pelo comunismo, multiplicavam estruturante dos exemplos de Brasil e África do Sul. Os países,
o potencial dos conflitos da Guerra Fria; no entanto, não foram escolhidos para a realização de pesquisas
b) o sentido da investigação e o combate desses con- in loco, tanto pelas razões operacionais já levantadas, quanto por
flitos deveriam se dar pela politização das causas e razões de segurança, no que dizia respeito à África do Sul. Para
pela internacionalização das soluções; preencher essa lacuna, Mason priorizou duas regiões para preci-
c) a gravidade do problema racial exigia que normas e sar, de forma comparada, essa dimensão fundamental atribuída
princípios “democráticos e de mercado” sofressem aos dois países. No chamado “laboratório racial caribenho”, o
adaptações, quando as tensões se apresentassem234. IRR trataria das questões mais atinentes ao Brasil, também cen-
O objetivo de Hodson, de tornar as “relações raciais” trais no Caribe: o uso da gradação de cores na classificação entre
um espaço de resistência e combate ao comunismo, ganhou, no brancos e negros e o recurso ao preconceito e discriminação ra-
programa de Mason de 1953, uma agenda de trabalho que ex- ciais em um ambiente de ausência de barreiras legais a cor236. Na
pandia, gradualmente, o alcance dessa pretensão. O foco inicial África Central, o IRR trataria das questões sul-africanas, como
das investigações era inteiramente africano. Partia dos territórios as criteriosas linhas e barreiras de cor, classe e etnia, mas através
britânicos da África Austral para os da África Central, com o
235  Carta de Philip Mason para os membros da Chatam House, de 12 de outubro
planejamento da expansão, em seguida, para os demais territó- de 1953. In: RAC. Rockefeller Foundation Records. Projects RG 1.2. Series 401:
rios da Grã-Bretanha, França, Bélgica e Portugal no continen- England. Subseries 401.S.: England – Social Sciences. Box 65.
236  A pesquisa do Caribe foi programada para servir também a outra proposta de
te. A etapa posterior deveria inclur o Caribe inglês, a Malásia comparação. Segundo Mason, esperava-se que ela fosse útil, de acordo com interesses de
e as ilhas Fiji. A expansão para esses lugares em três regiões do curadores e de potenciais patrocinadores, em levantar exemplos de organização política e
comunitária negras que pudessem, na África, ser substitutas ou bases para a superação da
vida tribal. A Jamaica deveria ser o foco dessa investigação. Carta de Philip Mason para o
233  MASON, Philip. An Essay on Racial Tension. London & New York: Royal diretor da Divisão de Ciências Sociais da Fundação Rockefeller, Joseph H. Willits, de 01
Institute of International Affairs, 1954, “Introduction”. de março de 1954. In: RAC. Rockefeller Foundation Records. Projects RG 1.2. Series 401:
234  MULLARD, Chris Mullard. Op., cit. especialmente cap. 4. England. Subseries 401.S.: England – Social Sciences. Box 65.

120 Wanderson Chaves A questão negra 121


da investigação dos projetos de “parceria racial” liderados pelas 6º) se a “raça dominada” era “atrasada” em relação ao pa-
drão de civilização, técnica, cultura e organização social da
populações brancas da Rodésia do Sul (Zâmbia), da Rodésia
“raça dominante” 238.
do Norte (Zimbábue) e da Niassalândia (Malawi). Mason, que
abordou esses projetos inicialmente como uma tentativa de esta-
Quanto mais recorrentes essas características nas socie-
belecer ou ampliar a cidadania dos negros a partir dos marcos de
dades, maiores, segundo Mason, os seus níveis de “tensão racial”.
um regime de democracia liberal, via neles um objeto de compa-
A escala das tensões, elaborada por Mason a partir da avaliação
ração para propostas de estratificação social próximas da sul-a-
dessas condições, estava dividida em três pontos principais. O
fricana e também a oportunidade para vislumbrar alternativas de
transição ao apartheid237. último e pior ponto seria o representado pela África do Sul, que
Em Essay on Racial Tension (1954), a versão expandida apresentaria as seis características negativas de classificação da
do paper apresentado em Lahore, Mason já definia – segundo tensão racial: presença de população branca de origem norte-
ele, para serem testados com a realização dessas pesquisas – uma -europeia; “brancos” com condição superior à população nativa,
classificação dos padrões de “relações raciais” e uma escala para a negra e “primitiva”; “brancos” politicamente dominantes sob um
medição dos níveis de “tensão racial”. Nessa classificação, depois sistema político não-liberal sem representação democrática. O
fundamental nas visões que o IRR passou a sustentar nos anos segundo ponto, o intermediário, era representado pelo sul dos
1950, Mason identificava certos graus de dominação e subordi- EUA e pelos países da África Central Britânica (o Quênia, a
nação que seriam determinantes para dar forma às “interações Rodésia do Sul e a Rodésia do Norte). Segundo Mason, o que
grupais”, além de levar em consideração o peso das seguintes ca- definia a distância dessas regiões da África do Sul eram as ca-
racterísticas nas sociedades: racterísticas de suas instituições e a orientação ideológica, po-
1º) a presença ou não de população de origem norte-europeia;
lítica ou religiosa de suas populações “brancas”, pretensamente
mais assentadas nas práticas da “tradição humanista liberal”. O
2º) se a população de origem norte-europeia era a “raça
dominante”; terceiro ponto, o de menor tensão da escala, era representado
3º) se a “raça dominante” era residente e moradora per- pelo Brasil. Oriundo da tradição ibérica de religião, escravidão
manente; e colonização, o Brasil não era tipicamente liberal. Entretanto,
4º) se a “raça dominante” era parte do contingente de traba- assumia-se que era a referência então existente de soluções de
lhadores assalariados; “convívio inter-racial harmonioso” 239.
5º) se a “raça dominante” provinha de uma tradição política Essa avaliação sobre o Brasil estava muito alicerçada na
e filosófica não-liberal; leitura de Mason de The Masters and the Slaves (1946), de Gilberto
237  Projeto “Race Relations”, do Royal Institute of Internacional Affairs, de 01 de
março de 1954. In: RAC. Rockefeller Foundation Records. Projects RG 1.2. Series 238  MASON, Philip. An Essay on Racial Tension. Op., cit., especialmente p. 43-5.
401: England. Subseries 401.S.: England – Social Sciences. Box 65. 239  Idem, ibidem, especialmente cap. III.

122 Wanderson Chaves A questão negra 123


Freyre. A posição do IRR, mesmo após ter sido alterada nos anos Gilberto Freyre, por exemplo241 – de que a modernização liberal
1960 sob o impacto dos trabalhos de Roger Bastide e Florestan era produtora de harmonização social242.
Fernandes, ainda mantinha vínculos importantes com obras de As pesquisas do IRR na África Central Britânica pas-
inspiração similares à freyriana, destacadamente os trabalhos de saram a receber, a partir de 1955, apoio da Fundação Rockefeller.
professores da Universidade de Columbia: Frank Tannenbaum O apoio a essas pesquisas partiu de uma decisão pessoal do pre-
(Slave and Citizen: The Negro in the Americas, de 1947); e Charles sidente da fundação (1952-1961), o futuro secretário de Estado
Wagley (Race and Class in Rural Brazil, de 1952). Os dois autores dos EUA (1961-1969), Dean Rusk, que conhecia pessoalmente
Mason e a maioria dos curadores do Instituto243. Mason conside-
eram a principal referência para a caracterização de Philip Mason
rava a região um dos grandes hot spots do mundo: sobreposições e
de um grupo de países chamado por ele, em 1961 e, novamente,
clivagens políticas e nacionais, distintos arranjos e tensões raciais
em 1971, de “ilhas felizes”. Nele, estariam o Brasil, a região do
e, conforme acreditava, desigualdades civilizatórias a tornavam
Caribe, o Havaí e a Polinésia. Numa comparação internacional,
o lugar mais interessante para se investigar as dificuldades e as
seriam lugares favorecidos pela abertura dos hábitos sexuais e alternativas que poderiam ser oferecidas às jovens nações sobre
das relações sociais graças ao suporte fundamental das práticas como encaminhar o seu processo de “construção nacional” (na-
religiosas e do ambiente natural240. tion building) através de programas de modernização. Com os re-
A pergunta fundamental do IRR durante duas déca- cursos da Fundação Rockefeller, o IRR priorizou a investigação
das era se a tradição de convívio do Brasil, plástica e complexa, da “parceria racial” nas Rodésias, buscando saber se o projeto das
poderia manter-se durante o processo de modernização que populações “brancas” de recepcionarem ou dividirem o poder de
deslocava o país para “o capitalismo e a democracia liberal”. Estado com os negros africanos poderia se tornar uma alternati-
Era um teste para a convicção do Instituto – combatida por va ao apartheid e ao nacionalismo africano244.

241  A importância de Wagley na reflexão de Mason sobre as “ilhas felizes” se


aplicava justamente em relação a Gilberto Freyre. Adepto das visões de Tannenbaum
240  MASON, Philip. Common Sense about Race. London: Victor Gollancz, sobre o Brasil e a América do Sul, Wagley desenvolveu, nas duas décadas seguintes,
1961, p. 119-124. MASON, Philip. Patterns of Dominance. London: Institute of ampla etnografia sobre o potencial de resistência da civilização construída no país
Race Relations and Oxford University Press, 1971, p. 304-319. A tese de Mason à modernização. Para uma exposição dessa visão e dessa proposta de trabalho, vide:
sobre as “ilhas felizes” partia principalmente de Frank Tannenbaum, que defendeu WAGLEY, Charles (ed.). Race and Class in Rural Brazil. Paris: UNESCO, 1952,
em Slave and Citizen, como Gilberto Freyre, o potencial do catolicismo para especialmente p. 142-156.
engendrar relações sociais mais harmoniosas que o protestantismo. Tannenbaum 242  MASON, Philip. An Essay on Racial Tension. Op., cit., cap. III.
concordava com o argumento de Tocqueville de que a América do Sul e a do Norte 243  MASON, Philip. A Thread of Silk. Op., cit., p. 52-53. MULLARD, Chris
eram diferentes e desiguais entre si, e continuariam a ser, em razão de distintas e Mullard. Op., cit., p. 55-56.
inconciliáveis características humanas e naturais, mas invertendo algumas das teses 244  MASON, Philip. Prospects and Progress in the Federation of Rhodesia and
fundamentais de Democracia na América (1835). Para Tannenbaum, era a América do Nyasaland. African Affairs, London, v. 61, n. 242 (1962). Essa pesquisa deu origem a
Sul que abrigava, comparativamente, as maiores promessas de avanço civilizatório e de pelo menos três livros: The Birth of a Dilemma: The Conquest and Settlement of Rhodesia,
realização humana. Vide: TANNENBAUM, Frank. Slave and Citizen: The Negro in de 1958, e Year of Decision: Rhodesia and Nyasaland in 1960, de 1960, de Philip
the Americas. New York: Alfred A. Knopf, 1947, passim. Mason; e Two Nations: Aspects of the Development of Race Relations in the Rhodesias and

124 Wanderson Chaves A questão negra 125


O mérito da proposta de pesquisas do IRR foi reconhe- (rebatizado, em 1969, de Race Today) e a Race, sua publicação
cido também por outros patrocinadores, o que ajudou a expandir o acadêmica247. Com tiragem média de 2.500 exemplares, Race era
projeto de investigações. Empresas de mineração e a Organização distribuída em 60 países248.
das Nações Unidas entraram no portfólio do Instituto patroci- O ano de 1958 foi também o de desligamento do IRR
nando pesquisas em outras áreas do sul da África, como Angola, do Royal Institute of International Affairs. Havia, pelo menos
Congo e Moçambique. Nessa frente, aberta em 1958, privile- desde 1954, sérias discordâncias entre a maioria dos membros
giou-se a investigação dos padrões de “relações intergrupais” e as do comitê de estudos da Chatham House e o IRR. Mason e
possibilidades para a implantação de negócios e de programas de Harry Hodson também integravam o comitê e vinham obtendo
assistência técnica. O trabalho, de perspectiva acadêmica e apli- pouco apoio para o projeto do Instituto de orientar suas pesqui-
cada, produzia material instrucional que orientava a diplomacia sas sobre os “problemas do fim do Império” nas áreas coloniais
e os executivos das empresas patrocinadoras245. Nesta mesma di- e de ex-colônias da Comunidade Britânica em direção a uma
reção havia outro importante projeto financiado, apoiado pelos perspectiva mais ambiciosa, menos acadêmica e mais aplicada de
bancos Booker Brothers e Lloyds Bank, e pela petrolífera Shell formulação de políticas de grande escala. Hodson, Ronald Prain
S.A.: o Tropical Africa Project. Tratava-se de um programa de e o então editor do jornal Financial Times, Oliver Woods, cura-
pesquisas voltado para a África Ocidental, inicialmente centrado dores do IRR e também integrantes do comitê de estudos da
na Nigéria. Seu foco eram as novas elites de Estado africanas, e Chatham House, conduziram as negociações que resultaram no
pretendia documentar e prever, quando fosse o caso, qual seria rompimento. O IRR levou consigo seu conselho, equipe, proje-
seu comportamento na administração pública, em especial na tos e financiamentos, planejando realizar o plano de expansão e
condução das relações entre capital e trabalho246. sua perspectiva teórica sobre as “relações raciais”, que, segundo
Em 1958, o IRR iniciou com a Oxford University Press Mason, não vinha encontrando expressão na Chatham House249.
um programa de publicações, parceria que veio a consolidar a William Malcolm Hailey (1872-1969), autor do mo-
produção do Instituto. Até 1972, quando o contrato com a edito- numental An African Survey (1938), e o antropólogo da London
ra foi encerrado, foram lançados 120 itens, entre livros, relatórios, School of Economics Raymond Firth (1901-2002), que deixa-
manuais e monografias. O contrato também cobria edição e dis-
247  MASON, Philip. A Thread of Silk. Idem, ibidem, p. 128. MULLARD, Chris.
tribuição das revistas do Instituto: o boletim mensal, Race News Idem, ibidem, p. 18.
248  Inicialmente semestral, a revista Race tornou-se quadrimestral em 1962 e
Nyasaland, de Richard Gray, de 1960, todos publicados pela Oxford University Press. trimestral em 1965. Em 1972, a Fundação Ford fez uma avaliação positiva do
245  Projeto de 09 de julho de 1960, de Philip Mason, sem título. In: RAC. Ford retrospecto da publicação. Disse que a tiragem da revista era baixa, mas que Race tinha
Foundation Records. Grant Files. Reel nº. 2544. Grant Number 60-447. impacto e vinha se mostrando relevante no seu segmento de especialidade. Carta de
246  Segundo Chris Mullard, o comitê gestor do Tropical Africa Project recebeu Joan Lestor e Dipak Nandy para todos os membros do IRR, de 30 de março de 1972;
atribuições maiores que as pesquisas da África Ocidental. Esse comitê gestor logo e projeto “The Future, 1974-1976, The Institute of Race Relations”, de novembro de
se transformou no African Private Enterprise Group, um seminário privado de caráter 1973. In: RAC. Ford Foundation Records. Paris Field Office Papers. Box 2.
permanente que passou a definir a maioria das atividades do IRR para a África. 249  MASON, Philip. A Thread of Silk. Idem, ibidem, p. 17-8. MULLARD, Chris.
MULLARD, Chris. Idem, ibidem, p. 18, 55, 86. Idem, ibidem, p. 16-17.

126 Wanderson Chaves A questão negra 127


ram ainda em 1954 o comitê de estudos do Royal Institute of qualquer circunstância envolvendo pessoas de diferentes “tipos
International Affairs, haviam aberto na Chatham House uma físicos” era “racial” por definição; a “questão racial” tinha domínio
barreira crítica à perspectiva teórica de Mason. Na definição de e precedência sobre outras problemáticas da vida social nessas
ambos, as relações raciais eram a dimensão estritamente social do sociedades, dentre elas a das classes sociais; as “políticas raciais”
relacionamento entre populações diferentes250. Já Mason, repre- eram o meio de intervenção de natureza mais universal, uma vez
sentando a opinião do IRR, via as relações raciais como objeto que o “racialismo” representaria para essas sociedades a primeira
daquilo que o historiador Michael Yudell chamou de “ciência e principal dimensão de antagonismo social253.
racial” 251. Para Mason, o projeto de intervenção do Instituto de- A Fundação Ford foi uma patrocinadora relativamen-
pendia de que as “relações raciais” e as próprias “raças” fossem te tardia do IRR. Apenas em 1960 vinculou-se a ele, mas sua
compreendidas em duas dimensões: a “biológica” e a “especulati- entrada implicou, além dos novos recursos, uma proposta de re-
va” (notional). Interessava a ele saber o peso que a hereditariedade modelagem institucional. Com seu patrocínio, as atividades do
e a ancestralidade comum, por um lado, e a dimensão puramente Instituto foram expandidas e vinculadas, estritamente, à agen-
especulativa e simbólica da raça, de outro, teriam para determi- da da Ford de modernização, estabilização social e formação de
nar, em conjunto, desde eventos da ordem da psicologia social até elites. Joseph E. Slater, homem do círculo de John F. Kennedy
a realização do desenvolvimento econômico252. e que estava prestes a se tornar o vice-secretário assistente de
Para Mason, a saída da Chatham House representaria a Estado para Questões Culturais e Educacionais (1961-63), foi o
possibilidade de o IRR ligar seus interesses de pesquisa a psico- responsável pela concessão de financiamento na Fundação Ford.
logia, cultura, história e economia, sempre levantando e unindo Para ele, o IRR contribuiria com seus serviços para a manuten-
as dimensões social e biológica da “raça” e das “relações raciais”. ção das áreas pobres do mundo sob a influência ocidental e nor-
Para o Instituto, tratava-se de afirmar os seguintes postulados: te-americana, dedicando-se à investigação sobre como realizar a
em sociedades marcadas pela diversidade de “tipos humanos”, transferência de “instituições democráticas”. A inclusão de Ásia,
América Latina e Caribe no plano de investigações correspondia
250  MASON, Philip. A Thread of Silk. Idem, ibidem, p. 18. MULLARD, Chris. a esse objetivo. O IRR passaria a aplicar internacionalmente o
Idem, ibidem, p. 17-18. seu padrão de trabalho já utilizado na África para verificar, atra-
251  A “ciência racial” tem origens no século XIX. Nela, a biologia é a principal
referência para a definição dos sentidos da noção de “raça”, como objeto tanto quanto vés do estado da “questão racial”, a configuração estrutural dos
como disciplina. Segundo Yudell, as preocupações teóricas dessa “ciência” migraram, problemas das sociedades chamadas de “multirraciais”, amparan-
após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo para a demografia e para a etnologia. Com
o renascimento da antropologia física, nos anos 1970, a “ciência racial” se renovou
do o desenho de estratégias políticas254.
também, dando origem à “sociobiologia”. YUDELL, Michael. Making Race: Biology
and the Evolution of the Race Concept in 20th Century American Thought. New York,
2008. 409 f. Tese (Doctor of Philosophy) - Graduate School of Arts and Sciences,
Columbia University, cap. 4-5.
252  Vide, para as definições de “raça” e de “relações raciais”: MASON, Philip. Race 253  Idem, ibidem, cap. 4.
Relations. London, Oxford, and New York: Oxford University Press, 1970, cap. 2. 254  MULLARD, Chris. Idem, ibidem, p. 57, 71-2.

128 Wanderson Chaves A questão negra 129


O Programa Comparativo de Estudos Raciais: a Cingapura, grandes centros de interesse para a Fundação Ford.
formação da equipe Seriam os melhores lugares para se avaliar, comparativamente, a
dinâmica de um processo que a Fundação identificou como de-
Em agosto de 1960, a Fundação Ford aprovou uma do- licado e perigoso: o relacionamento entre grupos humanos não-
tação de 100 mil dólares255 para o Institute of Race Relations256. -homogêneos entre si, desiguais em “civilização” ou diferentes
A essa dotação se seguiram outras duas. A segunda, de 275 mil em “estágios de desenvolvimento” 261.
dólares257, concedida em 1965258, e a terceira e última, de 350 mil O Caribe acabou sendo incorporado à investigação. O
dólares259, concedida em 1969260. projeto, que se chamaria Comparative Race Studies Programme,
O acordo financeiro fortaleceu os projetos em andamen- abarcaria, assim, muitas das áreas pobres do mundo262.
to, mas através de um um novo desenho institucional e de novos A experiência de pesquisa do IRR na Inglaterra foi
objetos de interesse. A Fundação Ford desejava do Instituto o fundamental no cumprimento das metas da Fundação Ford. O
estabelecimento, em bases internacionais e multidisciplinares, do Instituto, com coordenação da antropóloga Sheila Patterson,
campo de estudo das “relações raciais comparadas”. Ela esperava professora das universidades de Edimburgo e Sussex, e apoio
que essa área se desenvolvesse particularmente nas regiões “sub- da fundação britânica Nuffield Foundation, investigava desde o
desenvolvidas”, com investigações sobre as relações das tensões início dos anos 1950 como os imigrantes caribenhos, asiáticos e
e conflitos raciais e a modernização econômica, averiguando africanos vinham se adaptando à estrutura de classes, ao mercado
quais modelos de “relações raciais” corresponderiam melhor ao de trabalho e à vida social e comunitária do país. Estes temas
“desenvolvimento” e como modificá-las para o desenvolvimento. também vinham sendo objeto dos trabalhos de Philip Mason
A exigência de foco de análise na urbanização e na industriali- sobre o sul da África, quando tratava da “competição racial” na
zação tinha essa justificativa e privilegiaria países como Brasil, força de trabalho e do colonialismo como fontes de preconceito e
Estados Unidos, Inglaterra, México, Peru, África do Sul, Japão e de discriminação263. Esse repertório de questões foi incorporado
aos trabalhos do International Race Studies Program (IRSP), a
255  O equivalente a 800 mil em dólares de 2015, segundo o índice Purchasing Power
Calculator de correção monetária. Disponível em: <http://www.measuringworth.com/ unidade do IRR criada especialmente para abrigar o projeto da
uscompare> Acesso em: 22 jul. 2015. Fundação Ford264.
256  Ata de aprovação da dotação ao Institute of Race Relations, de 05 de agosto de 1960.
In: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Reel nº. 2544. Grant Number 60-447.
257  O equivalente a 2,07 milhões em dólares de 2015, segundo o índice Purchasing 261  Projeto “Draft Submission to the Ford Foundation. Research in Race Relations:
Power Calculator de correção monetária. An International Unit”, sem data. Op. cit., p. 11-2. Projeto de 09 de junho de 1960, de
258  Súmula do encontro do conselho-executivo da Fundação Ford, de 9-10 de Philip Mason, sem título. Op. cit.
dezembro de 1965. In: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Reel nº. 2544. 262  Ata de aprovação da dotação ao Institute of Race Relations, de 05 de agosto de
Grant Number 60-447. 1960. Op. cit., p. 2-3.
259  O equivalente a 2,26 milhões em dólares de 2015, segundo o índice Purchasing 263  MASON, Philip. The Color Problem in Britain as It Affects Africa and the
Power Calculator de correção monetária. Commonwealth. African Affairs, London, v. 58, n. 231 (1959), p. 110 e ss.
260  Boletim “News from the Ford Foundation”, de 30 de abril de 1969. In: RAC. 264  Projeto “Draft Submission to the Ford Foundation. Research in Race Relations:
Ford Foundation Records. Grant Files. Reel nº. 2544. Grant Number 60-447. An International Unit”, sem data. Op. cit., passim. O IRSP era dirigido por Philip

130 Wanderson Chaves A questão negra 131


A escolha de pesquisadores para a América Latina parte relativa ao Brasil. Os demais pesquisadores escolhidos,
foi demorada. Philip Mason dominava pouco o debate regio- Guy Hunter e Guy Wint, eram consultores antigos do Instituto.
nal. O primeiro escolhido foi o antropólogo britânico, professor Hunter, um africanista professor da Universidade de Edimburgo,
da Universidade de Chicago e da Sorbonne, Julian Pitt-Rivers ficou responsável pela África; e Wint, um jornalista com forma-
(1919-2001), que vinha realizando (1960-62) um programa ção de orientalista, pela pesquisa da Malásia e de Cingapura268.
de pesquisas sobre o campesinato indígena, desde a região de
Chiapas, no México, até os Andes265. Designado para a área de
América Hispânica, o antropólogo seria o principal interlocutor O Complexo Colonial
de Philip Mason para esse segmento da pesquisa, e sua compa-
nhia e guia nas primeiras viagens pela região266. Para o Caribe, Perpassou esses estudos regionais de “relações raciais”
foi escolhido o geógrafo e historiador norte-americano David uma extensiva preocupação com o legado da colonização e da
Lowenthal, então professor do King’s College. Ele era a indi- escravidão. Era questão básica investigar seu impacto na com-
cação de um amigo de Philip Mason, o barbadiano Hugh W. preensão das formas de interação e conflito racial, tendo em vis-
Springer, reitor (1947-1963) da University of West Indians, na ta produzir respostas para a preocupação fundamental do IRR:
Jamaica267. Foram buscados também pesquisadores auxiliares. conhecer e impedir que as “tensões raciais” fossem mobilizadas
O historiador Donald Wood (1923-2002), vice-diretor contra as “democracias liberais” nas disputas da Guerra Fria269.
do IRR e editor da revista Race (1959-1961), foi chamado para Philip Mason dizia, nas suas memórias sobre as guer-
assessorar David Lowenthal. Para auxiliar Julian Pitt-Rivers, ras civis que assolaram a Índia desde a separação do Paquistão
foi contratado o antropólogo britânico David Maybury-Lewis (1947) e sobre a sangrenta luta entre os Kikuyu do Quênia e
(1929-2007), professor da Universidade de Harvard, a última o Exército colonial britânico na Revolta dos Mau Mau (1952-
e tardia indicação, para auxiliar a pesquisa latino-americana na 1960), que propostas de ordem pós-colonial alicerçadas na des-
truição ou preservação integral do legado colonial tenderiam a
Mason. Ele estava separado da Joint Unit for Minority Policy Research ( JUMPR), a repetir conflitos dessa natureza270. Para ele, a solução estava em
unidade doméstica do IRR, e não atuavam conjuntamente. Seu diretor, indicado por
Mason, era o jornalista E. J. B. Rose (1909-1999), ex-editor literário (1946-1950) do vencer a “unilateralidade política” dessas propostas, com regi-
jornal londrino The Observer e ex-diretor (1951-1962) do International Press Institute mes de “transição” que mantivessem as estruturas de Estado e
(IPI). O JUMPR, grande mobilizador de recursos, pessoal e de interesse público,
realizou durante os anos 1960 um volumoso inventário da questão racial na Inglaterra, de governo e assegurassem segurança, pacificação e estabilidade.
o Colour & Citizenship, publicado em 1969. Vide: MASON, Philip. A Thread of Silk.
Idem, ibidem, cap. 16.
265  CORBIN, John. Julian Pitt-Rivers. Scholar who opened a new chapter in social 268  Projeto de 09 de junho de 1960, de Philip Mason, sem título. Op., cit., p. 1-3.
anthropology. The Guardian, London, 14 September 2001. Disponível em: <http:// Relatório de Philip Mason, “Conference at Ditchley Park”, de 04 de janeiro de 1963, p.
www.theguardian.com/news/2001/sep/14/guardianobituaries.socialsciences> Acesso 1, 8-9. In: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Reel nº. 2544. Grant Number
em: 22 jul. 2016. 60-447.
266  MASON, Philip. A Thread of Silk. Idem, ibidem, cap. 23-24. 269  Projeto de 09 de junho de 1960, de Philip Mason, sem título. Op. cit., passim.
267  Idem, ibidem, cap. 23. 270  MASON, Philip. A Thread of Silk. Idem, ibidem, cap. 7 e 15.

132 Wanderson Chaves A questão negra 133


Mason defendia para a questão a proposta que o IRR levantou de autoridade e poder ao “fenótipo europeu”. Segundo Mason,
nos anos 1950 para o futuro da província britânica da Federação esse legado colonial trazia consigo a ameaça do “racialismo” e das
Centro-Africana: que a liderança desse futuro país evitasse lutas noções de superioridade: deslizando-se para quaisquer relações
civis e desintegração, sustentando – sobre as estruturas políti- intergrupais na era pós-colonial, esses princípios de valor sobre a
cas, o espaço territorial e as alianças inter-regionais estabeleci- diferença humana ameaçavam, verdadeiramente, as chances dos
das pela metrópole para unificar as colônias das Rodésias e da novos países de alcançarem padrões mínimos de vida grupal e de
Niassalândia – a soberania e o princípio da nova nacionalidade271. convívio democrático274.
Uma das bases dessa argumentação era a defesa do Estado de A principal referência teórica dessa análise do colonia-
Direito. Para o IRR, o Estado de Direito estava ameaçado sob o lismo endossada pelo IRR era Psychologie de la colonisation, um
nacionalismo dos pequenos grupos, que crescia em todo o mun- ambicioso ensaio metateórico sobre as estruturas psíquicas do
do na esteira da descolonização e como atestariam os casos do colonialismo do psicanalista francês Octave Mannoni (1899-
Quênia e da Federação Centro-Africana272, na África, também 1989), publicado em 1950275.
pela recuperação de novas formas de vida política tribal273. O livro era a reflexão de Mannoni, o chefe dos serviços
O aspecto positivo do legado colonial, portanto, eram as de informação de Madagascar, sobre a brutal revolta anticolonial
estruturas de Estado e a modernidade do Estado de Direito que liderada pela população Merina, sufocada após deixar cerca de
essas estruturas teriam inaugurado na vida das ex-colônias. O 100 mil mortos em 1947. A teoria fundamental de Mannoni era
aspecto negativo do legado colonial, para Mason, era comporta- de que o moderno colonialismo europeu, sua forma particular
mental e relacional. Segundo ele, o domínio colonial, nas relações de domínio sobre homens e recursos, devia sua lógica profunda
de poder e no regime de alianças construído entre colonizadores a motivações comportamentais, antes que econômicas. Na de-
e colonizados, levou à consolidação de uma série de arranjos de finição dele, esse colonialismo se estabelecia e renovava no en-
dependência e de inferioridade. Esses arranjos de dependência contro “infeliz” entre duas estruturas psíquicas de personalidade
e inferioridade, chamados por Mason de “complexo colonial”, nas circunstâncias de contato: isto é, assentava-se na relação de
teriam deixado como importante legado a noção racial de “su- acomodação, em termos psicanalíticos, na mútua “projeção” entre
perioridade europeia”, na qual se promoveu, ao longo da história o “complexo de dependência” psíquica do “nativo” e o “complexo
moderna de colonização, a atribuição de um elemento latente de inferioridade” psíquica do europeu. A definição do “complexo

271  MASON, Philip. Prospects and Progress in the Federation of Rhodesia and
Nyasaland. Op., cit. 274  Idem, ibidem, p. 328-9.
272  A Federação Centro-Africana existiu como protetorado semi-independente da 275  O livro foi publicado pela Editions du Seuil. Aqui, utilizamos a quarta reimpressão
Grã-Bretanha entre 1953 e 1963, quando foi extinta dando a origem a três países (1968) da segunda edição (1964) da tradução para o inglês publicada nos EUA.
independentes nos anos seguintes: Malawi e Zâmbia em 1964, e República da Rodésia MANNONI, Octave. Prospero and Caliban: The Psychology of Colonization. 4th
(depois Zimbábue, a partir de 1980) em 1965. printing. New York and Washington: Frederick A. Praeger, 1968. A primeira edição
273  MASON, Philip. The Revolt against Western Values. Daedalus, Cambridge, dessa tradução é de 1956 e contava com prefácio de Philip Mason, reproduzido em todas
MA; v. 96, n. 2, 1967. as edições e reimpressões em língua inglesa posteriores, exceto a mais recente, de 1991.

134 Wanderson Chaves A questão negra 135


de dependência” refletia as visões de Mannoni, etnólogo por vin- econômica encontrava no domínio colonial a satisfação de seu
te anos em Madagascar (1925-1945), sobre o que seria “carac- “complexo de inferioridade”. A do “nativo”, que veria a lógica de
terístico” em sociedades “tradicionais” ou “primitivas”. Segundo interdependência comunitária de seu mundo original – que lhe
ele, a “vida nativa” se alicerçaria em laços e rituais estritos de garantiria no “isolamento”, “segurança” e “estabilidade” – ser rom-
reciprocidade e interdependência. Essa forma de vida exerceria pida, eliminada e depois reestabelecida, tendo como seu centro o
sobre seus integrantes uma força concêntrica que reforçava ten- próprio “colonizador”. Para Mannoni, a introdução do “europeu”
dencialmente o isolamento grupal. Os ideais de estabilidade e como novo sustentáculo do “complexo de dependência” nativo
de segurança política e pessoal defendidos por essas “sociedades tornava o colonialismo, necessariamente, um tipo paternalista de
fechadas” tornariam a “dependência” uma importante recompen- domínio interpessoal277.
sa psíquica e também a estrutura para o modelo individual de Mannoni construiu essa análise a partir de analogias com
personalidade mais disseminado. O europeu, segundo Mannoni, textos literários como Robinson Crusoe (1719), de Daniel Defoe, e
teria sua constituição psíquica muito associada à questão oposta: principalmente de A Tempestade (1611), de William Shakespeare.
o pronunciado senso de individualidade. O europeu seria for- Para o psicanalista, a relação entre Próspero e Caliban, as duas
mado, principalmente, por um forte impulso para exigências de personagens principais dessa peça de Shakespeare, expressava
afirmação e satisfação pessoal, o que criaria nele um sentimento precisamente o que ele pretendia definir pela relação colonial
recorrente de “inferioridade” nunca aplacado e sempre por su- entre os complexos de inferioridade e dependência. Caliban era
perar. A principal consequência dessa formação psíquica seria a o “colonizado”, o ilhéu nativo escravizado, dominado pelas ame-
tendência para o estranhamento permanente. Para a pessoa sob aças físicas e sobrenaturais de Próspero. Este era o “colonizador”,
o “complexo de inferioridade”, a alteridade representaria um obs- o erudito ex-duque de Milão, um usurpador que governava a ilha
táculo desagradável: o sujeito se sentiria continuamente impelido insensível à condição humana de Caliban. Mannoni chamava a
a combater o “outro”, de maneira a manter continuamente a pro- atenção para o drama que se desevolve no enredo em torno do
dução da própria diferença276. retorno de Próspero a Milão. Para ele, a situação assemelhava-
O colonialismo europeu se estabeleceu, segundo -se à experimentada no momento de liberação das colônias, nos
Mannoni, através da acomodação entre estas duas estruturas psí- sentimentos desencontrados e na experiência de não-reciproci-
quicas. A do europeu, que ao realizar seu projeto de exploração dade vividas por europeus e “nativos”. Os “ex-colonizados”, assim
como Caliban, se manifestariam com fúria diante da partida da-
276  Idem, ibidem, especialmente “Introduction”; Part II, Chapter I; e Part III,
queles como Próspero, que destruíram seu mundo original, esta-
Chapter VII. Para a definição de “complexo de dependência” de Mannoni, ver também: belecendo a nova língua e a nova ordem de onde seriam obriga-
GIBSON, Nigel C. Mapping Africa’s Presences: Merleau-Ponty, Mannoni, and the
Malagasy Massacre of 1947 in Frantz Fanon’s Black Skins White Masks. In: BOND,
George Clement and GIBSON, Nigel C. Contested Terrains and Constructed 277  MANNONI, Octave. Op., cit. CHASSLER, Philip. Reading Mannoni’s Prospero
Categories: Contemporary Africa in Focus. Boulder, CO: Westview Press, 2002, and Caliban before Reading Black Skins White Masks. Human Architecture: Journal of the
especialmente p. 252. Sociology of Self-Knowledge, Belmont, MA; v. 5, n. 3, 2007, especialmente p. 79.

136 Wanderson Chaves A questão negra 137


dos a redefinir sozinhos sua humanidade e seu discurso. A fúria munitária pré-colonial. O “tradicional” seria uma herança colonial
expressaria o sentimento de que a partida de Próspero era uma e as jovens nações que não atentassem para essa filiação renova-
forma de abandono: o “colonizador” deixava o sistema que criou riam, com a nova liderança, as relações de reciprocidade e depen-
os “colonizados” sem oferecer os instrumentos necessários para dência do colonialismo279.
reorientar esse sistema ou para sair dele. A atitude dos “ex-co- O debate do texto de Mannoni de 1950, Psychologie de
lonizadores”, como a de Próspero, seria de perplexidade: teriam la colonisation, deu impulso a toda uma discussão de crítica anti-
descoberto nessa explosão de violência de Caliban que o “nativo” colonial. Em 1952, houve a publicação de Peles negras, máscaras
era alguém dotado de ação278. brancas, de Frantz Fanon. O debate, inaugurado pelo livro de
Mannoni levantava a questão de que profundos proble- Fanon, foi acompanhado por George Lamming, nos contos de
mas de relacionamento humano ganharam expressão na termino- Pleasures of Exile (1960), por Aimé Césaire, na peça Une Tempête
logia racial do racismo no mundo colonial e que esses problemas (1969), por Edward K. Brathwaite, no poema “Caliban” (1969),
seriam renovados, de formas inesperadas e potentes, se a ordem por Roberto Fernández Retamar, no ensaio Caliban (1971), por
pós-colonial não desarticulasse, nas hierarquias raciais e na do- Ngugi wa Thiong’o, em Decolonizing the Mind (1986), por Homi
minação paternalista, os seus “complexos” psicossociais estruturais. Bhabha, em Location of Culture (1994), e por vários outros au-
Caso contrário, em analogia com o texto de A Tempestade, haveria, tores fundamentais que criticaram, especialmente a partir de es-
segundo ele, apenas o “ressentimento calibanesco”: a criação de um tudos literários, a caracterização de Mannoni do nativo colonial
ambiente volátil e inseguro de busca por objetos substitutos de pelo “complexo de dependência” 280.
satisfação emocional para os sentimentos de dependência e infe- O lugar do IRR nessa tradição de crítica, entretanto, se-
rioridade, que seriam encontrados, com a saída do “colonizador”, ria outro. O Instituto, apoiado na análise de Mannoni, mas con-
em “brancos residentes” e em novas categorias das “populações tra suas projeções negativas, fazia o chamamento para um novo
nativas”. Esse fenômeno traria violência e desagregação pois os
projetos de libertação nacional, segundo Mannoni, estariam indo 279  MANNONI, Octave. Idem, ibidem, Part II, Chapter II; e Part III, Chapter
III. LANE, Christopher. Psychoanalysis: Why Mannoni’s “Prospero’s Complex” Still
ao encontro dessa dinâmica do ressentimento. Mannoni dizia não Haunts Us. Journal of Modern Literature; Philadelphia, PA; v. 25, n. 3/4 (Summer
acreditar na vertente das lutas de descolonização voltadas a (re) 2002), especialmente p. 144.
280  As premissas historiográficas e etnológicas de Psychologie de la colonisation
fundar as “formas tradicionais de vida”, proposta de “transição” que já estavam completamente descreditadas por volta do fim dos anos 1960, com o
vinha obtendo apoio também de poderes metropolitanos, como o aparecimento crescente de novas pesquisas etnográficas e de arquivo, segundo:
BLOCH, Maurice. La psychanalyse au secours du colonialisme: A propos d’un
francês. Para o psicanalista, as alterações promovidas pelo “com- ovrage d’Octave Mannoni. Terrain: anthropologie & sciences humaines, Paris, n. 28,
plexo colonial” tornavam impossível o resgate da vida tribal ou co- Mars 1997, passim. Dessa forma, foram os pressupostos de crítica literária e análise
psicanalítica – Mannoni era discípulo de Jacques Lacan e um teórico com produção
relevante – que continuaram a atrair atenção. A discussão passou a girar em torno dos
278  MANNONI, Octave. Idem, ibidem, especialmente Part I, Chapter III; e Part II, predicados da “dependência”, que, segundo Mannoni, eram latentes e anteriores ao
Chapter I. Para a reflexão de Mannoni sobre o sentimento de “abandono” como um colonialismo europeu e que, para Fanon, eram um produto integral da ação colonial.
“trauma pós-colonial”, vide também: CHASSLER, Philip. Op., cit., p. 79. Cf.: GIBSON, Nigel C. Op., cit., passim.

138 Wanderson Chaves A questão negra 139


modelo de autoridade. Esse modelo de autoridade deveria ser e sensibilidade intelectual, abertura à colaboração e alianças, e
capaz de responder ao arbítrio, à corrupção, à opressão política e menos ao rompimento; enfim, habilidades para a transição rumo
ao “conservadorismo” das ditaduras e autocracias pós-coloniais, a formas de vida que não ameaçassem, com a brutalidade, o pró-
expressões, segundo Mason, do “ressentimento calibanesco”. O prio processo civilizatório282.
IRR, para a superação dessa tendência “calibanesca”, visando o Philip Mason, na série de seis conferências que realizou
Estado de Direito e concepções liberais de democracia e de vida no final de 1962 na University of West Indians em Kingston, na
pública, propôs uma agenda para o mundo pós-colonial que fos- Jamaica, disse que o papel da nova liderança, de avançar o pro-
se extensível a toda sociedade com populações desiguais e com cesso civilizatório, moldando-se ao ideal de Ariel, era o de dar
diversidades de “tipos físicos”. Guy Hunter defendeu em The forma a um conceito de civilização e de boa sociedade que con-
New Societies of Tropical Africa (1962), trabalho encomendado e tivesse três metas fundamentais: a crítica aos preconceitos, o de-
parcialmente financiado pela Shell S.A., que os riscos de ressen- senvolvimento econômico e o estabelecimento da democracia283.
timentos políticos deveriam ser combatidos com a formação de A crítica aos preconceitos raciais era central nessa pro-
novas classes de líderes. Para Hunter e Philip Mason, os sen- posta de formação porque servia diretamente a um dos principais
timentos de exclusão e inferiorização, assentados na origem da objetivos da investida que o IRR integrava: a consolidação de
fúria do processo de liberação e de construção nacional, seriam um establishment. Segundo Philip Mason, era característico da
aplacados com a integração internacional das lideranças pós-co- dinâmica de toda grande civilização que o estamento superior,
loniais. Essa dinâmica de socialização deveria ser feita, para esses designado responsável pela ação política, fosse formado, ampla-
quadros, na Europa e nos EUA281.
O protótipo humano a ser seguido na nova formação 282  MASON, Philip. Prospero’s Magic. Op., cit., cap. 4, p. 86 e ss. A idealização
era o de Ariel, outro personagem de A Tempestade. Na peça de de Ariel feita por Mason não se inspirava na análise de Mannoni, uma vez que o
psicanalista tomava esse personagem da peça, como os demais, como um tipo clínico
Shakespeare, ele é representado como um espírito alado supe- da “patologia colonial”. Vide: MANNONI, Octave. Idem, ibidem, Part II, Chapter I,
rior, dotado do poder de metamorfose. Ariel é um servidor de especialmente p. 101-102. Essa positividade de Ariel era também estranha ao debate
de crítica anticolonial de seu tempo, que tinha em Caliban o protótipo do “rebelde
Próspero. Grato a ele por tê-lo libertado do cativeiro da bruxa anticolonial”. Na linhagem do debate que partia de Fanon, que incluía Cesaire e
Sicorax, Ariel aguarda convicto a concessão de sua alforria pelo Retamar, por exemplo, enquanto Caliban era negro, e louvado por sua fúria e atribuído
sentido de urgência e ação, Ariel era execrado por ser “mulato” e “colaboracionista”.
governador da ilha. Esse personagem, nessa leitura de Mannoni VAUGHAN, Alden T. & VAUGHAN, Virginia Mason. Shakespeare’s Caliban: A
que o IRR assumiu, designava o que se desejava de um “nativo”, Cultural History. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1993, especialmente
cap. 6. A defesa de Ariel contra Caliban ganhou lugar na crítica anticolonial apenas
em oposição ao que simbolizava Caliban: paciência, treinamento a partir dos anos 1980, quando Homi Bhabha passou a fazer o elogio de Ariel.
Para Bhabha, suas habilidades, a camuflagem e a mímesis, o tornavam o mais apto
281  MASON, Philip. Prospero’s Magic: Some Thoughts on Class and Race. para, por dentro, subverter a ordem colonial. BHATTACHARYA, Sunayani.
London: Oxford University Press, 1962, especialmente cap. 2. HUNTER, Guy. The Re(Appropriations): A Re-Reading of The Tempest, Kapalkundala, and Disgrace.
New Societies of Tropical Africa: A Selective Study. London: Institute of Race Tampa, FL; 2009. 91 f. Dissertação (Master of Arts) - Departament of English,
Relations & Oxford University Press, 1962, p. 38. Sobre a pesquisa comissionada pela College of Arts and Sciences, University of South Florida, p. 30-32.
Shell S.A., ver: MULLARD, Chris. Idem, ibidem, p. 69-70. 283  MASON, Philip. Prospero’s Magic. Idem, ibidem, cap 1.

140 Wanderson Chaves A questão negra 141


mente e por razões de mérito, através da captação de talentos, indiferença e o distanciamento e fundar novas formas de relacio-
oriundos, inclusive, de classes marginalizadas e inferiores. Esse namento, reduzindo as desigualdades e o potencial de conflito en-
processo, que abria canais de trânsito para os “bem-dotados”, de- tre classes, grupos sociais e raças285.
penderia de uma relação “funcional” de movimento e integração A agenda do Programa Comparativo de Estudos Raciais,
que regulasse os intercâmbios e que acomodasse as tensões do sob financiamento da Fundação Ford, era desdobrar essa série de
relacionamento entre classes sociais diferentes e desiguais entre questões nos estudos regionais. A meta era investigar experiên-
si. O racismo representaria verdadeiro impedimento à formação cias bem-sucedidas de “relações raciais”, exitosas como modelos
do establishment porque prejudicaria a seleção de quadros com de convívio e como exemplos de modernização social para as áreas
sua interferência na interrelação entre os segmentos da socieda- pobres. Esperava-se que cada bloco geográfico da pesquisa forne-
de. O combate ao racismo, nessa estratégia, se daria em nome da cesse oportunidades para a avaliação desse objeto temático286.
formação de elites, considerada a principal alavanca do processo No Programa, a África Negra era o terreno privilegia-
de modernização das instituições políticas e do desenvolvimento do para avaliar as implicações de questões étnicas e raciais para
da vida cultural e social284. os processos de construção nacional (nation building). O gran-
A proposta de crítica dos preconceitos de Philip Mason de problema, em países em que a maioria da população nativa
tinha dois predicados principais: a renúncia e a tolerância. Segundo era de origem africana, seria estabelecer novos “pactos nacionais”
ele, deveria haver no europeu a virtude demonstrada por Próspero para substituir o europeu metropolitano, que deixava de exer-
em A Tempestade: saber renunciar à relação de dominação colonial cer o papel de árbitro e avalista local da ordem política. Povos e
sobre Caliban e Ariel, curando-se, desta forma, da obsessão com grupos sociais, que haviam sustentado seu poder dividindo com
a própria “inferioridade”. A tolerância, para Mason, era a prática os europeus metropolitanos a administração colonial, estariam
que deveria se estabelecer com esse ato de renúncia: ela serviria à isolados e em perigo com o desmoronamento da ordem colo-
tentativa de controlar o estranhamento e o recalcamento projeta- nial. O desafio, posto para políticos e intelectuais, era o de evitar
dos no “outro” colonial e evitar que a força dessas projeções fosse guerras e conflitos civis de luta pelo poder, que pululavam por
retomada em novos objetos. Segundo Mason, apenas o valor reli- toda a região. Deveriam forjar urgentemente um novo desenho
gioso da tolerância, que havia sido secularizado e perdido parte de
sua profunda dimensão moral, poderia funcionar como um novo 285  Idem, ibidem, cap. 3, especialmente p. 54-57. MASON, Philip. A Thread of Silk.
marco civil para as relações entre classes e entre raças, barrando Idem, ibidem, p. 129. Vide também: FORDHAM, Frieda. The Shadow in the Jungian
Psychology and Race Prejudice. Race: The Journal of the Institute of Race Relations,
essas projeções, estabelecidas principalmente em práticas de ex- London, v. 2, n. 2, May 1961. A proposta de Mason ia contra a de Mannoni, que
clusão social. Para Mason, deveria ser prioridade da política liberal considerava a tolerância uma solução negativa e provisória para o racismo e os males
do colonialismo. Segundo Mannoni, os efeitos principais da tolerância como princípio
trabalhar a dimensão ética da tolerância, para, entre outros fins,
de ética para as “relações raciais” seriam o encobrimento e a contenção dos conflitos
desmobilizar estereótipos, diminuir a rivalidade, a competição, a reais. MANNONI, Octave. Idem, ibidem, Part III, Chapter V.
286  Projeto “Draft Submission to the Ford Foundation. Research in Race Relations:
284  Idem, ibidem, especialmente cap. 1. An International Unit”, sem data. Op. cit., passim.

142 Wanderson Chaves A questão negra 143


institucional de ocupação do Estado. Neste sentido, novos pro- como impactavam e eram impactados pela modernização eco-
jetos de nação, que facilitassem a “conciliação” dos favorecidos e nômica, e o lugar deles na construção dos projetos políticos
dos excluídos dos antigos acordos coloniais287. nacionais. A Malásia, com um contingente europeu pequeno e
Para a África Oriental e Austral, regiões com significa- transitório e uma população etnicamente conflagrada, dividida
tiva população nativa de origem europeia e asiática, a proposição entre “malaios” e “chineses”, seria o local para abordar, em cir-
era similar. A meta era preservar os direitos políticos dessas po- cunstâncias análogas à da África Ocidental, a questão dos “pac-
pulações, buscando assegurar que os negros, conquistando acesso tos nacionais” pós-coloniais. O Caribe seria uma ponte com
a instrumentos de poder e consumo, não utilizassem seu peso o sul e o leste da África, com o Quênia, a Rodésia do Sul e a
demográfico para impor às “minorias” medidas discriminatórias África do Sul, em particular. A área caribenha, com sua diver-
e violentas. Apostava-se na gradual elevação do seu status civil, sidade de “tipos físicos” e origens geográficas, serviria à inves-
medida de transição que era vista como necessária para garantir tigação de como acomodar os “brancos residentes” quando eles
a proteção e a segurança das demais populações288. ainda eram relevantes na vida local289.
O Sudeste Asiático e a América Latina serviriam como O Brasil ocupava um lugar especial nessa investigação.
base de comparação para essa pesquisa africana. Estes lugares, Esperava-se desfazer a alegação de que o país teria elimina-
oriundos de momentos mais recuados da moderna coloniza- do a discriminação racial. O objetivo levava em conta razões
ção europeia, seriam utilizados para uma investigação ampla de política internacional, já que o Brasil era, ao lado da União
do “complexo colonial”. Seriam verificados os significados das Soviética, exemplo de eliminação do racismo por uma via não
relações entre “tipo físico” e “poder”, se eram discriminatórios, liberal. Ambos os países eram usados como exemplo na con-
testação e no constrangimento nas disputas da Guerra Fria, ao
287  O Programa Comparativo de Estudos Raciais assumia nesta matéria a posição que a URSS colocava-se em posição de superioridade moral
que vinha sendo trabalhada no grupo de estudos “Tropical Africa Project” do IRR. O
simpósio internacional “Industrialização e Relações Raciais”, realizado pelo IRR com o para atacar principalmente a Inglaterra e os Estados Unidos,
patrocínio da UNESCO, em 1964, consolidou essa avaliação sobre o que cabia realizar fosse por seu apoio ao regime sul-africano, fosse por não terem
na “África Negra”. Neste sentido, vejam-se as posições fundamentais de Guy Hunter,
de A. P. Blair, ex-chefe da divisão de recursos humanos da Shell S.A., e de Sheila T. L. resolvido seus problemas raciais domésticos. A pesquisa, por-
Van der Horst, socióloga professora da Universidade da Cidade do Cabo. HUNTER, tanto, deveria redefinir a exemplaridade brasileira, para mostrar
Guy (ed.). Industrialization and Race Relations: A Symposium. London: Institute
of Race Relations & Oxford University Press, 1965. o quanto eram problemáticas as soluções não liberais. Neste
288  MASON, Philip. A Thread of Silk. Idem, ibidem, cap. 13-14. A Federação sentido, a estratégia seria a de ataque à discrepância entre dis-
Centro-Africana, com seu projeto de “parceria racial”, foi a principal aposta e o maior
fracasso desse tipo de “transição”. Com o desmembramento da Federação, a República
curso e prática nas atitudes raciais290.
da Rodésia (antiga Rodésia do Sul) suprimiu, sob a presidência de Ian Smith, a partir
de 1965, os poucos direitos civis a que os negros africanos tinham acesso, mantendo 289  Projeto de 09 de junho de 1960, de Philip Mason, sem título. Op. cit., p. 1-3.
apenas os direitos de autonomia cultural e territorial. O regime de Ian Smith tornou- 290  A posição do IRR era de que a crítica à URSS se encontrava em estado mais
se bastante semelhante ao do apartheid. A África do Sul tonou-se um aliado e foi avançado do que a crítica contra o Brasil. Segundo Mason, havia material considerável
um dos poucos a reconhecer diplomaticamente este regime, que perdurou até 1979, documentando o mau tratamento recebido por várias “minorias” soviéticas, como
deposto com a fundação do Zimbábue. mongóis e muçulmanos, enquanto o trabalho em relação ao Brasil vinha se adensando

144 Wanderson Chaves A questão negra 145


O esforço dessas pesquisas regionais do IRR serviu à mos “civilizatórios” para poder avançar para o estágio “compe-
elaboração de um novo sistema de medição em escala de qua- titivo”. Para transitar na escala da forma mais “desigual” (pater-
lidade para as “relações raciais”, que substituiu a proposta em nalista) para uma mais “isonômica” (competitiva), o país deveria
1954 na Conferência de Lahore. O Instituto estabeleceu três desenvolver as práticas de “tolerância racial”. Elas eram conside-
medições para designar os momentos distintos de evolução de radas fundamentais para solidificar, no processo de mudança, as
um regime de “relações raciais”. O estágio final era chamado de transformações materiais, técnicas e educacionais292.
“simbiose”. Designava, nessa aferição, uma situação de “inte- O IRR assumia, conforme as posições de Roger Bastide
gração racial total”, em que não haveria subordinação e seriam no simpósio internacional “Industrialização e Relações Raciais”,
oferecidas a todos oportunidades iguais de realização humana. de 1964, que a discriminação racial era causadora de perdas hu-
A posição representava a projeção de um momento utópico. manas e prejuízos econômicos ao Brasil e que a formação católica
Era também indicativo do rebaixamento do Brasil, já que não e portuguesa, ainda que não tenha levado à segregação formal, não
só esse lugar da escala permanecia vazio como sequer o país fi- prevenia os males do racismo293. Essa argumentação dava susten-
gurava na posição precedente, a “competitiva”. Esta posição era tação à defesa, feita pelo Instituto, de que a alteração desse qua-
marcada pelas condições de livre mercado, consideradas ausen- dro, no Brasil, se daria pela implantação de reformas liberais, que
tes no Brasil em razão da prevalência de relações paternalistas contivesem a pobreza e aplacassem as “hostilidades raciais”, mo-
e de dependência. Em uma completa inversão da sua reputação mento esperado quando do pleno desenvolvimento do capitalis-
passada, seria atribuída ao Brasil a posição inferior à competi- mo no país. Caberia as organizações do tipo “Movimento Negro”
tiva, chamada de “paternalista”. Tratava-se, comparativamente, um papel de vanguarda instrumental. Sua luta para posicionar os
de uma situação não democrática, na qual o poder era privilégio negros no mercado de trabalho, na vida pública e no universo das
de uma pequena elite racial291. elites modernizariam a vida social e política brasileira, facilitando a
Nessas condições, era preciso, antes de qualquer coisa, evolução para a forma “competitiva” de relações raciais294.
que o Brasil vencesse o “subdesenvolvimento” também em ter- Philip Mason, em relatório à Fundação Ford, de abril
de 1967, avaliava as consequências dessa renovada leitura do
em um ritmo mais lento. Relatório “Submission to Ford Foundation: April 1967”, de Brasil. O destaque às desigualdades sociais e ao “atraso de-
22 de abril de 1967. In: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Reel nº. 2544.
Grant Number 60-447. mocrático” na resolução da “questão negra” levavam o país ao
291  O Brasil deixava de ser, como era em 1954, a “referência então existente de desprestígio. Segundo ele, os maiores beneficiados, na reinter-
boas relações raciais”. Os países da América Hispânica também foram classificados
como “paternalistas”. Da mesma forma, praticamente todas as sociedades africanas,
pretação da escala de otimização das relações raciais, eram os
consideradas ainda mais atrasadas do que as latino-americanas em razão do pouco
progresso de muitas delas em relação à fundação do Estado de Direito. A África do
Sul também era classificada como “paternalista”, mas sua condição era considerada a 292  Idem, ibidem, p. 54-65.
mais “promissora” do continente. Devido ao desenvolvimento econômico, postulava- 293  BASTIDE, Roger. The Development of Race Relations in Brazil. In: HUNTER,
se que o país poderia crescer na escala caso o regime de apartheid sofresse mudanças. Guy (ed.). Industrialization and Race Relations. Op., cit., p. 9-29.
MASON, Philip. Patterns of Dominance. Idem, ibidem, especialmente, p. 1-20. 294  MASON, Philip. Patterns of Dominance. Idem, ibidem, p. 304-319.

146 Wanderson Chaves A questão negra 147


Estados Unidos e a Inglaterra, que ganhavam posições mais para evitar, segundo Mason, o pior cenário para quem defen-
favoráveis na comparação internacional e saíam fortalecidos dia a redução das desigualdades: a evolução dos conflitos raciais
frente aos seus críticos de “relações raciais” 295. para uma forma de “luta de classes”. Comparativamente, via-se
a transformação do conflito de classes em uma forma de “luta
racial” como menos temível. A orientação sobre a separação das
Por um conceito de raça sem racismo temáticas deveria ser observada nos três níveis da investigação da
seguinte maneira: no individual, o estudo das formas básicas de
Philip Mason, coordenando de 31 de outubro a 2 de diferenciação e identificação; no grupal, o estudo de como a “ra-
novembro de 1962 a edição de um dos seminários privados cialização” definiria o comportamento e o processo de formação
da Ditchley Foundation296, expressou à equipe do Programa das classes sociais; no nacional, o estudo da interferência dessas
Comparativo de Estudos Raciais que participava do evento a diferentes dinâmicas no jogo das relações internacionais298.
importância de se precisar nas pesquisas o termo “raça”. Mason Philip Mason estava solicitando dos pesquisadores que
falava também a pesquisadores como o antropólogo Cyril Darryl aplicassem as postulações dele de 1961, feitas em Common Sense
Forde e a historiadora Margery Perham, ao líder do Partido about Race. Mason sintetizava, nesse livro, três posições conceitu-
Trabalhista (Labour Party), Kenneth Younger, e a cerca de mais ais fundamentais sobre raça para o Programa. A primeira, era que
dez participantes, dentre eles banqueiros, diplomatas e executi- a raça tinha uma dimensão biológica aparente, a do fenótipo. A
vos de mineradoras, destacando o que pretendia por “precisão”: segunda, que a raça tinha uma dimensão biológica mais profunda
conhecer em níveis profundos como os usos, sentidos e proprie- que a aparência, sendo possivelmente psíquica e orgânica. Mason
dades mais específicos da “raça” prejudicavam ou colaboravam designava essa dimensão como a da “hipótese genética”. O argu-
para o esforço de “desenvolvimento” 297. mento era de que grupos fenotípicos poderiam ser também gru-
A admoestação dirigida aos pesquisadores do IRR era pos genéticos, uma vez que essa possibilidade ainda não havia sido
no sentido de que fizessem a mais estrita separação formal entre desmentida cientificamente. Deveria-se investigar, com base nessa
problemas “raciais” e problemas “sociais”. Para Mason, a distinção hipótese, se “atavismos raciais” existiam e qual era o seu impacto
era feita no interesse do melhor combate possível às desigualda- para determinar, desde os laços sociais mais primários, o nível de
des sociais. Era objetivo do Programa produzir conhecimento aceitação ou não do relacionamento inter-racial. Segundo Mason,
as ciências humanas e sociais deveriam investigar essa “hipótese”,
295  Relatório “Submission to Ford Foundation: April 1967”, de 22 de abril de 1967.
Op. cit., p. 1-3.
mas fazendo desdobramentos mais amplos. O trabalho das huma-
296  Harry Hodson era o diretor (1961-1971) da Ditchley Foundation, um órgão de nidades, incorporando para si o postulado ético da crítica dos este-
pesquisa e assessoramento (think tank) inglês fundado em 1958 para promover debates
reótipos e das noções de superioridade, seria desenvolver o terceiro
de questões de política internacional entre altas lideranças da Grã-Bretanha e EUA.
297  Relatório de Philip Mason, “Conference at Ditchley Park”, de 04 de janeiro de
1963. Op. cit., passim. MASON, Philip. Patterns of Dominance. Idem, ibidem, p. 298  Relatório de Philip Mason, “Conference at Ditchley Park”, de 04 de janeiro de
344. SIVANANDAN, A. Op., cit., p. 6-8. 1963. Op. cit., p. 1-3.

148 Wanderson Chaves A questão negra 149


nível de definição conceitual da raça: o dos padrões mentais de Essa aparente ambiguidade, na qual se assentavam as
ação e simbolização. O esforço nessa área seria de pesquisa histó- “Declarações” e o Programa do IRR, era constitutiva do cha-
rica e cultural, a construção de um quadro de referência totalizante mado “paradigma das relações raciais”, escola de pensamento
que permitisse estabelecer conexões materiais precisas entre “tipos que obtém sua estrutura e sustentação a partir da união de dois
físicos”, espaço geográfico e grupos sociais. Enfim, explicar a ori- pressupostos fundamentais: a raça tem uma dimensão ontológi-
gem, a natureza e o caráter das civilizações299. ca, não importa se entendida como da ordem da “biologia” ou da
Philip Mason não estava sendo original. Estava entre os “natureza humana”; e essa dimensão passa por mediações, uma
princípios de atuação da UNESCO, justamente, a ideia de que vez que a raça também é “socialmente construída” 302. O sociólo-
história e cultura eram o material para verificar a significação de go Michael Banton, membro dos conselhos consultivos do IRR e
fatores atávicos nas ações humanas. O programa conceitual pro- da revista Race, se tornou depois líder dessa tendência intelectual
posto para o IRR estava contido, em boa medida, nas “Declarações na Inglaterra. Era ele a fonte dessa orientação incorporada ao
sobre Raça”, lançadas pela organização nos anos de 1950 e 1951300. projeto de Philip Mason, destacada em Ditchley Park, de que
As Declarações, inclusive as publicadas posteriormente, existem três níveis de investigação da raça. Para Michael Banton,
em 1964 e 1967, tinham uma ambiguidade comum no tratamento havia três formas distintas e autônomas de “construção social” da
do racismo, que o Programa do IRR também acompanhava. Eram raça e cada uma designava problemáticas fenomenologicamente
duas as posições. Defendia-se que o racismo não era um “fenô- independentes. A da “raça” dizia respeito à identificação dos in-
meno universal”, carecendo, neste sentido, de fundamento natu- divíduos; a das “relações raciais”, ao comportamento dos grupos;
ral e suporte científico. Concomitantemente, tratava-se os males e a do “racismo”, às relações internacionais303.
do racismo, a indiferença, a discriminação e a exclusão, como a Banton realizava uma apropriação bem particular da
consequência ruim dos processos de identificação “natural”. Isto é, reflexão freudiana sobre o “espelho” e o “estranhamento de si”
que o “impulso gregário”, que estaria na lógica de constituição dos para explicar como funcionaria a mediação entre a dimensão on-
grupos, também poderia produzir efeitos “disfuncionais” para as tológica e a dimensão social de construção da raça. Para Michael
“relações raciais” e em outras dimensões da vida social301.
uma defesa da “diversidade biológica humana”. UNESCO: Proposals on the Biological
299  MASON, Philip. Common Sense about Race. Op., cit., p. 11 e ss. Aspects of Race. Race: The Journal of the Institute of Race Relations, London, v. 6, n.
300  Vide, para essa análise das “Declarações”: YUDELL, Michael. Op., cit., cap. 3, 1965, p. 243-7. HARRISON, G. Ainsworth. The Concept of Race: A Review. Race:
4. HAZARD JR., Anthony Quinzales. Postwar Anti-racism: The United States, The Journal of the Institute of Race Relations, London, v. 6, n. 4, 1965. Quarterly Forum.
UNESCO and “Race”, 1945-1968. Philadelphia, 2008. 360 f.Tese (Doctor of Philosophy) UNESCO Statement on Race and Racial Prejudice. Race: The Journal of the Institute
– Graduate School, Temple University, p. 98-9. PASCOE, Peggy. Miscegenation Law, of Race Relations, London, v. 9, n. 3, 1968.
Court Cases, and Ideologies of “Race” in Twentieth-Century America. The Journal of 302  MILES, Robert. Racism after “Race Relations”. London: Routledge, 1993, Part I.
American History, Bloomington, IN; v. 83, n. 1, 1996, p. 64. 303  Philip Mason, seguindo a definição de Michael Banton, utilizava a palavra
301  As “Declarações” buscaram recuperar ideologicamente a noção de “miscigenação” “racismo” com absoluto critério. Para Banton, o racismo era uma “ideologia” criada
para sustentar o esforço de crítica teórica às noções de superioridade e pureza racial. Ao como um dispositivo da diplomacia dos Estados imperiais, devendo ser analisado
mesmo tempo, endossaram a luta pela “unidade racial” quando havia o risco de extinção estritamente como um problema de política internacional. BANTON, Michael. Race
de certas populações. A questão era colocada pela UNESCO nesses casos como sendo Relations. London: Tavistock Publications, 1967, cap. 1.

150 Wanderson Chaves A questão negra 151


Banton, a percepção de qualidades físicas era um automatismo, borações de caráter “artificial”, desprovidas de conexão material
um impulso que operava como dispositivo original de reconhe- com a dimensão “física” do corpo. Segundo essa orientação, elas
cimento das “diferenças humanas”. Sob esse impulso teria iní- só poderiam ser “representações” 305.
cio todo o processo de individuação. O indivíduo passaria por O antropólogo-filósofo Ernest Gellner (1925-1995),
choques de associação visual e desindentificação (estranhamen- professor da London School of Econimics, dava a Michael
to), iniciando, desta maneira, formas de identificação primária e Banton um dos principais suportes para a sua objeção à noção de
também a sua própria formação como sujeito. A raça, conforme “raça social”: a crítica a teorias que defendiam que as categorias
essa argumentação, seria o conjunto de respostas, individuais e de parentesco poderiam ser abstrações que ignoravam, recriavam
sociais, estabelecidas para nomear o conhecimento da diversi- ou que rompiam completamente com a realidade dos processos
dade a que todos estavam obrigados, desde o nascimento, por biológicos. Para Gellner, as categorias de parentesco serviam pri-
razões psicossomáticas304. meiramente à nomeção e à organização desses processos biológi-
Michael Banton vinha combatendo com essa argumen- cos. Por isso, sua sugestão aos antropólogos para que não tratas-
tação a ideia de que a “aparência” pudesse ser definida socialmen- sem o parentesco como uma construção abstrata pura, desligada
de sexo, nascimento e reprodução. Envolvido em um persistente
te ignorando-se características físicas como o ponto de partida.
debate com a Antropologia, Gellner se perguntava sobre o trata-
Ele fazia contraponto à noção de “raça social”, expressão cunhada
mento dado à consanguinidade nos sistemas matrilineares de pa-
no início dos anos 1950 por Charles Wagley. A expressão servia
rentesco. Neles, as regras de filiação não eram definidas pelo ali-
à pretensão de Wagley de nomear definições “não corporais” de
nhamento entre descendência biológica e parentesco social como
raça e cor observadas na Bahia e na Amazônia brasileira por ele e acontecia, grosso modo, nos sistemas patrilineares. Descendentes
por outros pesquisadores, como Marvin Harris. Banton acusava não se tornavam parentes necessariamente. Em certas variedades
Wagley de ignorar aspectos não negligenciáveis da biologia e da desse parentesco, o pai biológico, além de não ser um parente, se-
percepção humana quando sustentava que as tipologias raciais quer era admitido como “progenitor”.306 Razões de ordem lógica
não eram, fundamentalmente, apenas representações de atribu- e de percepção determinariam, porém, que a consanguinidade
tos físicos. A âncora de Michael Banton era uma certa crítica nunca passasse despercebida ou ignorada: as categorias de pa-
teórica que afirmava que as categorias de pensamento, emprega- rentesco, segundo Gellner, só poderiam ser engendradas através
das para caracterizar a biologia humana, não poderiam ser ela- do conhecimento dos processos biológicos. O discurso sobre a
filiação e as regras de exclusão do progenitor deveriam ser en-
304  BANTON, Michael. Sociology and Race Relations. Race: The Journal of
the Institute of Race Relations, London, v. 1, n.1, 1959. Para uma breve história da 305  BANTON, Michael. Race Relations. Op., cit., cap. 4. Para a noção de “raça
tradução de termos freudianos pelo behaviorismo e pelo interacionismo simbólico na social”: WAGLEY, Charles. Op., cit., “Introduction”.
Sociologia, escolas de pensamento de onde partia Michael Banton, ver: BRUBAKER, 306  O argumento é de que em certas formas de parentesco seria altamente
Roger & COOPER, Frederick. Beyond “Identity”. Theory and Society: Renewal and significativo ou mesmo normativo, tendo em vista os sentidos fundamentais da cultura
Critique in Social Theory, Dordrecht, v. 29, n. 1, 2000. em que ela se constrói, ignorar ou negar socialmente essa progenitura.

152 Wanderson Chaves A questão negra 153


tendidas como um índice da relevância dada para a associação dois seriam fenômenos irmãos, segundo o IRR: dependeriam das
entre relações sexuais, matrimoniais e comunitárias. Com essa condições estruturais da modernização econômica para poder
argumentação, Gellner pretendia convencer que a “cultura”, em realmente elevar o nível das regras de convívio309.
assuntos como esse, era construída e ficava restrita à tentativa de O IRR, nesse entendimento, guiava-se mais uma vez
dar significação a processos biológicos307. por uma proposta da UNESCO. Esta, em particular, vinha sen-
Michael Banton tomava esse argumento para desen- do defendida pela organização desde 1945, por força da atuação
volver uma crítica à pretensão de “artificialidade” das categorias
do Departamento de Estado norte-americano. William Benton
raciais. Segundo ele, a raça era um discurso e um saber prático
(1900-1973) foi um dos principais responsáveis por estabele-
materialmente informado acerca do corpo. Através dele eram
cer essa orientação. Primeiramente, como coordenador da es-
caracterizados e dotados de sentido os processos biológicos da
reprodução e as “determinações” psicossomáticas ligadas ao reco- truturação da UNESCO, como secretário-assistente de Estado
nhecimento psíquico das diferenças: supondo-se essa íntima na- (1945-1947). Depois, como embaixador dos EUA na organiza-
tureza, segundo Banton, eram aspectos corporais da experiência ção, durante os anos 1960 (1963-68) 310. Essa visão sobre o nexo
humana que não poderiam ser ignorados factualmente. Michael causal entre tolerância e modernização era fundante, como ele
Banton, considerando a raça um dado não desconstrutível do resumiu em um discurso para a American Hospital Association, na
mundo natural, sugeriu aos pesquisadores que se voltassem para Filadélfia, em outubro de 1946. Segundo Benton, a universali-
o estudo da sua significação, das suas formas de representação: as zação do modelo de “modernidade” norte-americano, seu estilo
“relações raciais” seriam o seu universo de investigação e o pre- de vida e seus benefícios materiais, daria a grupos beligerantes,
conceito e a discriminação, os seus principais objetos de inter-
particularmente às “nacionalidades”, doravante, já menos limita-
venção política308.
dos por processos de competição e escassez, a abertura necessária
O IRR voltava-se para as áreas que esse tipo de orien-
para acessar finalmente formas mais civis de tratamento311. Esta
tação considerava praticável e útil: o das atitudes individuais li-
também era a aposta do IRR como via de combate às propostas
gadas ao preconceito e o da discriminação, atinente ao compor-
não capitalistas de solução para os “conflitos raciais” 312.
tamento dos grupos. A investida contra esses males, chamados
pelo Instituto de “racialismos”, se fixaria, como campo de estudos
e como propaganda democrática, na transformação da “interação
grupal” pela “mútua tolerância” e pelo “desenvolvimento”. Estes
309  Comunicação de Philip Mason, “Race Relations and Human Rights”, anexa ao
memorando de 19 de julho de 1967 de Joseph E. Slater para Frank Sutton. In: RAC.
307  Para Ernest Gellner, essa teoria da cultura não se aplicaria e não deveria ser Ford Foundation Records. Joseph E. Slater Papers. Box 25.
aplicada ao estudo da religião, dos rituais e do laço social. GELLNER, Ernest. Nature 310  HAZARD JR., Anthony Quizales. Op., cit., p. 22-3, 79, 87-8.
and Society in Social Anthropology. Philosophy of Science, Chicago, v. 30, n. 3, 1963, 311  BENTON, William. A New Instrument of U.S. Foreign Policy. Washington
passim. Vide também: BANTON, Michael. Race Relations. Idem, ibidem, p. 56-7. D.C.: U.S. Government Printing Office, 1946.
308  BANTON, Michael. Idem, ibidem, cap. 1-2, 4, passim. 312  MASON, Philip. The Revolt against Western Values. Idem, ibidem, passim.

154 Wanderson Chaves A questão negra 155


Raça e desenvolvimento cação e estrutura de status, particularmente na América Latina e
no Caribe, regiões em que a raça, segundo o IRR, não designava
Philip Mason acreditava, como o economista Gunnar apenas a aparência ou a descendência por ela ainda se encontrar
Myrdal, autor de An American Dilemma, de 1944, na existência unida à classe, como um dos elementos formadores dos chama-
de um “círculo vicioso” dos preconceitos e da discriminação. Para dos “marcadores de status” 315.
Myrdal, o preconceito racial contra os negros nos EUA tinha um Mason frisou em diversas ocasiões, como no seminário
forte componente de classe, o que criava uma dinâmica circular da Ditchley Foundation, em 1962, que as políticas raciais também
em que as duas formas de preconceito se reforçavam mutuamente. eram um contraponto às estratégias da China e da URSS, uma
Segundo Myrdal, políticas sociais e crescimento econômico seriam resposta às acusações de que os conflitos e “intolerância” raciais
a solução. Haveria nivelamento social entre os grupos e, como con- tinham origem na “exploração capitalista” 316. Mason reforçou esse
sequência, dizia ele, abertura das “relações raciais” para formas mais ponto na conferência de Kuala Lumpur, de 1964. Em particular,
igualitárias e respeitosas de tratamento e o atenuamento das duas
disse que a URSS estava pondo em ação uma renovada agenda
formas de discriminação que esses preconceitos provocavam313.
política para o chamado “Terceiro Mundo”, tendo por alvo as
Para Philip Mason, entretanto, eram a “raça” e as polí-
“forças nacionalistas” mais atraídas pelas soluções não capitalistas:
ticas raciais e não as “políticas sociais” para segmentos de classe
a intelectualidade, a liderança de “esquerda” e novos grupos não
que romperiam o “círculo vicioso”. Mason levantou esse ponto
comunistas, dentre os quais destacavam-se, segundo ele, os “ras-
na Afro-Asian Conference on Rural Reconstruction, evento de uma
tafáris” e as seitas mulçumanas negras dos EUA. Para Mason, era
organização de cooperação internacional com status de observa-
fundamental estabelecer novos parâmetros ao debate de políticas
dor na ONU, a African-Asian Rural Development Organization
raciais para disputar as pretensões dessa ofensiva soviética317.
(AARDO), realizado em fevereiro de 1964, em Kuala Lumpur,
A URSS estava renovando sua abordagem sobre a “ques-
na Malásia. Segundo Mason, a quebra do “círculo vicioso” passa-
tão racial” por ocasião do 21º Congresso do Partido Comunista da
va pela distinção conceitual e política das duas questões, quan-
do se encontrassem associadas, visando aplicar e dar destaque
315  Relatório de Philip Mason, “Conference at Ditchley Park”, de 04 de janeiro de
às políticas raciais como solução para problemas de classe314. O 1963. Op. cit., p. 4, 13, 16.
objetivo era realizar estudos sobre raça e classe e sobre estratifi- 316  Idem, ibidem.
317  Comunicação de Philip Mason para a Conferência de Kuala Lumpur, “Race as
an Obstacle to Progress”, de 17 de dezembro de 1963. Op. cit., p. 13-14. A Malásia
313  Comunicação de Philip Mason para a Conferência de Kuala Lumpur, “Race não foi mencionada diretamente na comunicação de Philip Mason para a conferência
as an Obstacle to Progress”, de 17 de dezembro de 1963, p. 2-4, 9. In: RAC. Ford em Kuala Lumpur, mas o país também era exemplar para o que Mason pretendia
Foundation Records. Grant Files. Reel nº. 2544. Grant Number 60-447. Vide demonstrar. O país, uma federação de estados, independente desde 1957, estava em
também, para a definição de “círculo vicioso”: MYRDAL, Gunnar. An American estado de emergência desde 1961 em decorrência de focos de guerra civil e da ameaça
Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy. New York and London: de guerra com países vizinhos. Os principais conflitos tinham um núcleo comum:
Harper & Brothers Publishers, 1944, especialmente p. 140 e 661. as “minorias” chinesas, a base social de um forte movimento comunista e a mais
314  Comunicação de Philip Mason para a Conferência de Kuala Lumpur, “Race as importante força em favor da secessão da província de Sarawak, no Bornéu, e de sua
an Obstacle to Progress”, de 17 de dezembro de 1963. Op. cit., p. 10. anexação pela Indonésia.

156 Wanderson Chaves A questão negra 157


União Soviética (PCUS). O evento, realizado em abril de 1959, O Departamento de Estado viu no lançamento, em
marcava, segundo o Escritório de Inteligência e Pesquisa (OIR) 1963, da doutrina da “democracia revolucionária” um ajuste da
do Departamento de Estado dos EUA, o lançamento de novas estratégia soviética de 1959, que viria com a pretensão de apro-
políticas para o “Terceiro Mundo”. Entre elas, um programa de fundar, ainda mais, a investida sobre as “forças nacionalistas”.
arregimentação dirigido especialmente a intelectuais e funcioná- O chamamento do Departamento de Estado era para que essa
rios públicos, considerados, dentro e fora do seu ambiente “classe ofensiva, que estaria sendo desenvolvida pelos soviéticos para or-
média” de origem, uma força política importante e emergente. A ganizar e direcionar o impulso gerado pela Revolução Cubana,
proposta era fazer melhor aproveitamento do processo de “radica- fosse contida e desmascarada em suas aspirações. Em particular,
lização”, concebido por esse segmento nas várias regiões “subde- atacando-se a propaganda democrática e de renovação política
senvolvidas”. Particularmente, através das questões onde sua influ- das “frentes de esquerda”. Sugeria-se um foco de contrapropa-
ência era mais profunda: na luta civil contra os governos, na cons- ganda: demonstrar que essas frentes agiam sob a influência sovi-
trução de propostas de revolução política e social e na modificação ética para inverter todas as hierarquias sociais e destruir as bases
da “situação racial”. O quadro era considerado favorável, uma vez conhecidas dos vínculos de classe, desencadeando, em consequ-
que, com ou sem estímulo oficial, tornou-se crescente a abertura ência, novos conflitos sociais e raciais320.
desse grupo para as organizações e as ideias comunistas318. Para o IRR, a intervenção contra a ofensiva soviética
Essa estratégia soviética, definida em 1959, teria conso- deveria focar em África, América Latina e Caribe, desacredi-
lidado a chamada doutrina da “democracia nacional”. Segundo o tando, nestas regiões – centros da proposta de “frente nacional”
Departamento de Estado norte-americano, o objetivo era esta- dirigida às esquerdas e forças nacionalistas – a URSS como mo-
belecer formas graduais e não violentas de transição para o so- delo para novos padrões de cidadania política e direitos sociais,
cialismo por meio da construção das “frentes democráticas de es- sobretudo no que diz respeito à solução dos “problemas raciais”.
querda”. Elas contariam com o apoio e sustentação de segmentos O objetivo era destacar que soluções capitalistas seriam mais
burgueses e de não comunistas “radicais”, que buscariam fomen- vantajosas em relação a modelos de desenvolvimento como o
tar a formação de burguesias nacionais e a progressiva estatização soviético. Frisaria-se a produção de riqueza e que a competição
da economia, entre outras metas319.
and Research (1957 - ca. 1985). Series: Intelligence Reports Concerning the Bandung
318  Relatório de Inteligência nº. 8018, do Escritório de Inteligência e Pesquisa Conferences, the Afro-Asian Solidarity Committee, and Sino-Soviet Relations,
do Departamento de Estado, de 20 de maio de 1959, p. 1-2. In: NARA. RG 59: compiled 1951-1971. Box 3.
Department of State. Bureau of Intelligence and Research (1957 - ca. 1985). Series: 320  Relatório “The USSR and Revolution in the Developing Areas”, anexo do
Intelligence Reports Concerning the Bandung Conferences, the Afro-Asian Solidarity memorando de Thomas L. Hughes, do Escritório de Inteligência e Pesquisa do
Committee, and Sino-Soviet Relations, compiled 1951-1971. Box 3. Departamento de Estado, para o secretário de Estado, Dean Rusk, de 27 de setembro
319  Memorando de Roger Hilsman, do Escritório de Inteligência e Pesquisa do de 1966, p. 2-4. In: NARA. RG 59: Department of State. Bureau of Intelligence and
Departamento de Estado, para o secretário de Estado, Dean Rusk, de 07 de junho Research (1957 - ca. 1985). Series: Intelligence Reports Concerning the Bandung
de 1962, p. 1-3; e memorando de Roger Hilsman para o secretário de Estado, 18 de Conferences, the Afro-Asian Solidarity Committee, and Sino-Soviet Relations,
outubro de 1962, p. 3. In: NARA. RG 59: Department of State. Bureau of Intelligence compiled 1951-1971. Box 2.

158 Wanderson Chaves A questão negra 159


geraria desigualdades, mas, ao mesmo tempo, alternativas. Essa organização ligada ao governo britânico, a USAID e o Banco
modalidade de vida econômica, segundo esse argumento, pro- Mundial colaboraram, interessadas em diagnósticos e sugestões
duziria, como resultado de seu próprio movimento, também a para a totalidade do mundo “subdesenvolvido” 323. A sugestão
instabilidade dos privilégios, possibilitando efeitos distributivos principal, desenvolvida por Hunter para as regiões originais de
em relação a classe e raça321.Nesse sentido, o propósito era per- investigação, era de que a disputa das soluções nacionalistas do
suadir que a “raça” e as políticas raciais poderiam ser veículos de “Terceiro Mundo” passava pela formação de lideranças e que essa
novas metas de progresso e justiça social dentro das economias disputa deveria seguir três passos fundamentais. Primeiro, a re-
de mercado. Para Mason, certas metas de trabalho intelectual orientação da “nova” liderança de inclinações antiliberais ou de
deveriam amparar o esforço de convencimento sobre o potencial esquerda. O foco dessa medida, para Hunter, deveria recair sobre
de “inclusão racial” dos mercados: primeiro, a definição de “clas- o segmento “ocidentalizado” de jovens críticos tanto do establish-
ses” e “raças” como agrupamentos distintos; segundo, a análise de ment colonial quanto dos “sistemas tradicionais de autoridade”.
que as “classes” teriam dimensão secundária em relação às “raças”, Segundo, a obtenção do suporte desse grupo “moderno” para os
sua dimensão de grupo seria posterior e menos ampla; e terceiro, projetos de modernização. Guy Hunter esperava que o grupo
a avaliação de que propostas para os problemas de “classe” não visado fosse integrado às elites, contribuindo para a construção
surtiriam efeito contra os “problemas raciais”. Segundo Mason, de um arranjo institucional politicamente estável e indutor de
esses princípios analíticos permitiriam a inversão do chamamen- transformações. Com essa composição, esperava-se a construção
to à “união de classes”, fundamental na agenda do nacionalismo de uma situação de “equilíbrio”: as fontes tradicionais de auto-
das “frentes de esquerda” 322. ridade, entre elas as religiosas, teriam assegurado o papel de fia-
Guy Hunter vinha desenvolvendo maneiras de aplicar doras da ordem social, exercendo contrapeso em relação aos “di-
essa agenda de trabalho na coordenação de algumas das inicia- vergentes”. O espaço para as modificações do “desenvolvimento”,
tivas do Programa Comparativo de Estudos Raciais. Seu ponto em especial o estabelecimento de mercados lucrativos de terras e
de partida foram as pesquisas sobre condições de melhoramento de mão de obra, estaria, assim, aberto. Terceiro, como coroamen-
da administração pública e da capacidade de planejamento eco- to, o convencimento de toda a sociedade de que essas medidas
nômico realizadas para o Programa na África e no sul e sudeste exigiam um processo de transição “não revolucionário”. Deveria
asiáticos. A International Association of Universities (IAU), ór- haver, como contrapartida das elites, necessariamente “moder-
gão da UNESCO, o United Nations Institute for Training and nas”, um forte e sustentável impulso para a criação do ambiente
Research (UNITAR), o Overseas Development Institute (ODI), institucional de transição324.

323  MULLARD, Chris. Idem, ibidem, p. 74-75. HUNTER, Guy. Modernizing


321  Comunicação de Philip Mason para a Conferência de Kuala Lumpur, “Race as Peasant Societies: A Comparative Study in Asia and Africa. 4th printing. London and
an Obstacle to Progress”, de 17 de dezembro de 1963. Op. cit., p. 13-14. New York: Oxford University Press & Institute of Race Relations, 1978 [1969], “Preface”.
322  Relatório de Philip Mason, “Conference at Ditchley Park”, de 04 de janeiro de 324  HUNTER, Guy. Op., cit., especialmente Part II. HUNTER, Guy. The Transfer
1963. Op. cit., p. 11. of Institutions from Developed to Developing Countries. African Affairs, Oxford, v.

160 Wanderson Chaves A questão negra 161


Esse movimento agudo de reorientação dos “gru- dentes ao seu momento de modernização. Ditaduras e sistemas
pos independentes” estava sendo desenvolvido, segundo Guy de partido único seriam consideradas alternativas válidas, con-
Hunter, através da agenda de formação de elites e de recursos quanto houvesse adesão ideológica ao capitalismo e a projetos de
humanos da Fundação Ford. Seu êxito vinha da capacidade de desenvolvimento que buscassem substituir o governo autocrático
formar profissionais habilitados, de perfil e competência híbri- pelo democrático327.
dos, como era esperado para essa investida. O modelo era o de As “relações raciais” poderiam ser um fator de desenvol-
formação de um sujeito “desenraizado” e cosmopolita, com ex- vimento nessa evolução dos regimes. Poderiam, também, suscitar
celência técnica para mover a modernização. Porém, tão impor- grandes custos, a depender de como as sociedades lidavam com as
tante quanto, era a formação de sujeitos aptos para o trabalho transformações sobre a ordem racial. Philip Mason falou na Afro-
de composição política com as velhas lideranças coloniais e tri- Asian Conference on Rural Reconstruction, em fevereiro de 1964,
bais325. Nas palavras de J. Donald Kingsley, chefe da divisão de para representantes de ONGs, organismos internacionais e de go-
África e Oriente Médio da Fundação Ford (1963-1967), cabia vernos asiáticos e africanos, que havia duas leituras especialmente
a esses quadros assegurar estabilidade no período de passagem problemáticas sobre a relação entre modernização e “racialismo”
pós-colonial. Eles deveriam reformar os regimes a partir de que precisavam ser neutralizadas. A primeira, a “racialista”, era a
suas capacidades políticas e intelectuais, servindo como pontes tendência a interpretar a dificuldade dos grupos de se integrarem
na composição de um arco de alianças, tão abrangente e in- aos benefícios do “progresso econômico” como um indício de “in-
clusivo quanto fosse possível. Era deles a responsabilidade por ferioridade racial”. A segunda, era a “a-racial”, tendência que in-
produzir inovações institucionais e governamentais necessárias terpreta a marginalidade dos grupos como resultado de mecanis-
à implantação de novas propostas de formação nacional326. mos de exclusão gerados pelo próprio “desenvolvimento”. A vitória
As metas dessas propostas haveriam de ser, indepen- dessas duas interpretações, como melhor julgamento sobre as mu-
dentemente do agendamento seguido por cada país, o sufrá- danças e disputas na estratificação social, representaria, segundo
gio universal e a participação popular. Nisto, deveriam seguir ele, verdadeira ameaça à política de modernização328.
o modelo histórico norte-americano da chamada “República Viria da Fundação Ford, segundo o IRR, a melhor res-
Jeffersoniana”. Segundo Guy Hunter, como os países “não desen- posta para essas duas leituras dos problema raciais. Dela, também
volvidos” não tinham condições de estabelecer plenamente essa viria a definição do melhor objeto para consolidar a estabilidade e
forma de vida republicana, deveriam se acomodar a uma agenda realizar o “amálgama” dos regimes pós-coloniais, particularmente
de transição, realizando as “adaptações institucionais” correspon- na África: a negritude. Segundo Mason, a Fundação foi pioneira

67, n. 266, 1968. 327  HUNTER, Guy. Independence and Development: Some Comparisons between
325  HUNTER, Guy. Education in the New Africa. African Affairs, Oxford, v. 66, Tropical Africa and South-East Asia. International Affairs, London, v. 40, n. 1, 1964.
n. 263, 1967. 328  Comunicação de Philip Mason para a Conferência de Kuala Lumpur, “Race as
326  KINGSLEY, J. Donald. The Ford Foundation and Education in Africa. Op., cit., p. 2. an Obstacle to Progress”, de 17 de dezembro de 1963. Op. cit., p. 7.

162 Wanderson Chaves A questão negra 163


na compreensão de que o ideal de negritude poderia inspirar um Ford, o momento era privilegiado para se abordar a promoção
novo princípio de alianças para as elites africanas e que, além dis- pública dos “excluídos”, especialmente dos negros, como os gran-
so, poderia ser uma arma para a disputa dos programas comunis- des agentes de mudanças sociais. Da mesma forma, também era
tas. Philip Mason sugeriu que se construísse em torno da negri- tempo de direcionar esse impulso popular para propostas de “in-
tude, para tanto, a tese de que só haveria justiça social, equidade tegração racial” apoiadas nos valores do “desenvolvimento”. Em
ou “progresso” com “políticas raciais” 329. Guy Hunter apontava, última instância, segundo Slater, tratava-se de refinar, no apoio
para avançar neste sentido, para a eliminação dos elementos de à negritude, o sentido da política de formação e a profundidade
“primitivismo” da noção de negritude. Ele indicou que a busca de das estratégias de arregimentação da Fundação332.
ideais de vida tradicional africana, fundamentais na definição da Joseph E. Slater propôs, na Conferência em Vail, em
noção, precisariam ser ajustados para não conflitarem nem com certa medida influenciado pelo debate com Philip Mason, que a
a modernidade do desenvolvimento nem com os valores do “hu- Fundação Ford assumisse a noção de “identidade” como o centro
manismo cristão”. A noção de negritude reformada, incorporada de uma nova geração de “políticas raciais” 333.
aos projetos de “desenvolvimento” e de “construção nacional”, A ideia era que a organização investisse na construção
passaria a representar a forma correta de apropriação do passado de uma nova terminologia teórica. A negritude seria apoiada em
e da “cultura tradicional africana” 330. sua expressão de “unidade”, “solidariedade” e de denúncia de so-
Em janeiro de 1967, a Fundação Ford lançou uma nova frimentos, e esperava-se que o trabalho intelectual, nas linhas
agenda para a “questão racial”, gerando uma programação de de patrocínio a serem abertas, passasse a sustentar e divulgar es-
pesquisas e de intervenção política de dimensão e impacto in- sas mesmas visões. A intervenção pretendia neutralizar o ape-
ternacionais331. A Fundação buscava, nessa visada, uma aborda- lo à violência, que vinha capturando o debate pelos sentidos da
gem da pobreza e do racismo que modificasse a situação racial negritude, dentro e fora dos EUA. Slater, em linhas gerais, re-
nos EUA e a estratégia diplomática, tendo em vista a defesa e forçava a perspectiva de reorientação. Para ele, tratava-se de um
divulgação da proposta democrática norte-americana. Joseph E. esforço de arregimentação, no qual seria empregada a tradicional
Slater levantou esse ponto ainda em julho daquele ano, durante formação de lideranças da Fundação Ford. A instituição dispu-
a conferência Racial Images Abroad and Making U. S. Policy, re- taria o impulso negro para a “identificação grupal”, o reconhe-
alizada na cidade de Vail, no Colorado. Para ele, então diretor cimento social e a busca por direitos, redefinindo esse impulso
do Programa Especial de Relações Internacionais da Fundação negro através de uma agenda que destacaria a valorização moral

329  Programa da “Vail Conference”, de 27-30 de julho de 1967. In: RAC. Ford 332  Notas de Joseph E. Slater para a conferência “Racial Images Abroad and Making
Foundation Records. Joseph E. Slater Papers. Box 25. U.S. Policy”. Anexo do memorando para Frank Sutton, de 19 de julho de 1967, p. 3-4.
330  HUNTER, Guy. The New Societies of Tropical Africa. Op., cit., cap. XII. In: RAC. Ford Foundation Records. Joseph E. Slater Papers. Box 25. Folder 275.
331  Vide, para a proposta da agenda: projeto “Social Science Research on Race and 333  Joseph Slater se referia à comunicação de Philip Mason ao evento: “Race
Poverty”, anexo da carta de John R. Coleman para McGeorge Bundy, de 21 de janeiro Relations and Human Rights”. Vide: memorando de Joseph E. Slater para Frank
de 1967. In: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Reel Number 2489. Grant Sutton, de 19 de julho de 1967. In: RAC. Ford Foundation Records. Joseph E. Slater
Number 68-141. Papers. Box 25. Folder 275.

164 Wanderson Chaves A questão negra 165


e estética de “diferenças raciais” e a construção de metas de “in- dos Direitos Civis estava se esgotando, e rapidamente. A queda
clusão”. A proposta de Joseph E. Slater para a Fundação era a do Movimento também levava, segundo essa análise, à perda de
de desenvolver uma proposta específica de “igualdade”. “Raça”, expressão das formas não violentas de luta política336.
“etnia” e “nação” deveriam ser os três princípios de reconstrução Em 1967, o chamamento de Joseph E. Slater para a
dos “padrões identitários”, as bases formais da nova geração de inovação das políticas raciais era coincidente com a emergência
direitos e de concepções de cidadania334. ideológica do Poder Negro (Black Power).
Para o cientista político Paul Seabury (1923-1990),
consultor do Departamento de Estado (1963-1970), o país se
A disputa das esquerdas, um epílogo
encaminhava para uma situação similar à da África do Sul quan-
Essa proposta, segundo Joseph E. Slater, colocava a do do massacre de Sharpeville, em março de 1960. Isto é, para
oportunidade de alcançar os “não brancos” que se mostravam ain- um salto da apologia de ações armadas e da autodefesa e para o
da resistentes às “promessas do desenvolvimento”. Era momento uso de estratégias de organização e mobilização “racialistas”, nas
de convencê-los, conforme argumentava, que as novas políticas versões negra e nacionalista. A analogia de Seabury, levantada na
de “inclusão racial” promoveriam a “justiça social”, o “convívio conferência Racial Images Abroad and Making U. S. Policy, frisava
tolerante” e o “respeito” 335. o risco doméstico de fragmentação política337.
A Fundação Ford vinha repensando suas políticas nes- Questão equivalente vinha sendo observada por ana-
ses termos desde a primeira metade dos anos 1960. Suas gran- listas sul-africanos, como o sociólogo Leo Kuper. Segundo seu
des preocupações eram, de um lado, as soluções que as “demo- diagnóstico de 1965, não havia mais lideranças negras nas orga-
cracias revolucionárias” do “Terceiro Mundo” vinham propondo nizações políticas sul-africanas capazes de influenciar as forças
para o “racialismo”, sendo seu projeto estabelecer alternativas a não pacifistas, sectárias e de atuação espontânea que surgiam. A
elas. De outro, a renovação cíclica de polarização e confrontos
orientação desses movimentos, para Kuper, ainda estava aberta à
raciais na África do Sul e nos EUA. Um novo momento de ten-
disputa, mas não pelos grupos que atuavam dentro dos marcos
são se apresentava no início da segunda metade dos anos 1960,
constitucionais. O impulso dessas novas forças seria insurrecio-
segundo a Fundação, que vinha monitorando o “clima de opi-
nal e, em certa medida, igualmente antiliberal338.
nião” com pesquisas realizadas nos campi universitários negros
dos Estados Unidos. Chegava-se à conclusão que o compromis-
336  Relatório “Cooperative Research on Race Relations with Tuskegee Institute”, de
so com a agenda jurídica e legislativa, levantada pelo Movimento Irwin Katz. Versão final, de março de 1974. In: RAC. Ford Foundation Records. Grant
Files. Reel nº. 1834. Grant Number 67-213.
334  Notas de Joseph E. Slater para a conferência “Racial Images Abroad and Making 337  Comunicação de Paul Seabury, “Racial Problems and American Foreign Policy”.
U.S. Policy”. Anexo do memorando para Frank Sutton, de 19 de julho de 1967. Op. In: RAC. Ford Foundation Records. Joseph E. Slater Papers. Box 25. Folder 275.
cit., passim. 338  KUPER, Leo. An African Bourgeoisie: Race, Class, and Politics in South
335  Idem, ibidem. Africa. New Haven and London: Yale University Press, 1965, Part I.

166 Wanderson Chaves A questão negra 167


Para a Fundação Ford, ainda não havia se tornado cla- por igualdade política, desenvolvimento econômico para todos e
ro como seria feita esta disputa entre os grupos emergentes. O fim do apartheid como política de Estado. Eles estavam em cam-
que era consenso era a dimensão e a influência internacionais pos opostos, mas concordavam que o impasse da situação sul-a-
do embate. O Poder Negro constituía uma dessas questões onde fricana e a inoperância dos seus programas de luta seria superado,
a dimensão propriamente doméstica do problema acabava por independentemente se dentro ou fora dos “marcos liberais”, ape-
gerar implicações diplomáticas permanentes. O embaixador nor- nas com a aglutinação das forças políticas à esquerda do centro340.
te-americano na Síria, o sociólogo Hugh H. Smythe, e o vice- A Fundação Ford passou a investir justamente nes-
-diretor de Relações Acadêmicas do Departamento de Estado, sas forças à esquerda do centro. A decisão foi tomada naque-
James A. Moss, defenderam, durante a conferência Racial Images le mesmo ano após o assassinato de Malcolm X, dos distúrbios
Abroad and Making U. S. Policy, que razões de política externa raciais de Los Angeles e da virada do Movimento dos Direitos
determinavam a urgência de uma intervenção nesse movimento. Civis para o Poder Negro. A Fundação Ford vinha trabalhando
Segundo eles, havia uma conexão imediata com a questão sul-a- desde os anos 1950, dentro e fora dos EUA, com a criação e o
fricana, sempre negativa. Para estes dois diplomatas, quanto mais agenciamento de instituições que atuassem discretamente, ser-
receptiva fosse a resposta ao Poder Negro, melhor seria a divul- vindo como mediadoras entre o establishment e as organizações
gação e maior a capacidade dos EUA de pressionar o regime do de base341. Na avaliação da Fundação, essas instituições, órgãos
apartheid sem o rompimento de relações com a África do Sul339. de elite e de orientação liberal, haviam se tornado incapazes de
Em 1965, duas jovens lideranças sul-africanas, então influenciar as forças que estavam se tornando protagonistas dos
exiladas, deram, em artigos de opinião para a revista Race, algu- acontecimentos. O Southern Regional Council (SRC), um dos
mas pistas sobre o caminho dessa disputa. Para Patrick Duncan, beneficiários dessa estratégia, era visto como exemplo. Enquanto
representante do Congresso Pan-Africano exilado na Argélia, a a Fundação Ford canalizava recursos para o registro de eleitores
saída para a África do Sul seria a da guerra de libertação argelina. negros no sul dos EUA através do SRC, que encaminhava esses
Significava, para ele, que o estabelecimento de uma “verdadeira recursos para organizações de direitos civis – como o American
parceria política” com os “brancos” deveria aguardar o proces- Friends Service Committee, o Carrie Chapman Catt Memorial
so de “africanização”, de afirmação da “vocação africana” do país. Fund, a National Urban League, a National Association for
Para Jonty Driver, ex-presidente da União de Estudantes Sul- Advancement of Colored People (NAACP) e a Southern
Africanos, exilado na Inglaterra, a saída seria a desmobilização da Christian Leadership Conference (SCLC) –, era a atuação do
agenda bélica e a construção de uma solução de conveniência con-
tra a “dominação branca” baseada em três pontos principais: luta 340  DUNCAN, Patrick. Is apartheid an Insoluble Problem? DRIVER, Jonty. Alan
Paton’s Hofmeyr. Race: The Journal of the Institute of Race Relations, London, v. 6,
nº. 4, 1965.
339  Comunicação de Hugh H. Smythe e James A. Moss, “Racial Images Abroad 341  Essa forma de atuação prevaleceu em todo o mundo até 1967. Vide o bem
and Making U.S”. In: RAC. Ford Foundation Records. Joseph E. Slater Papers. Box documentado trabalho de: REEVES, Thomas C. Freedom and Foundation: The
25. Folder 275. Fund for Republic in the Era of McCarthysm. New York: Alfred A. Knopf, 1969.

168 Wanderson Chaves A questão negra 169


Student Non-Violent Coordinating Committee (SNCC) e do des deveriam ter representação nas instituições que conferissem
Congress for Racial Iguality (CORE), até então pouco visa- poder político, status e realização econômica nas sociedades. Os
dos nos interesses da Fundação, que estavam, com o Mississippi sentidos de inclusão e de vida democrática dessa proposta passa-
Summer Project, de 1964-1965, ditando as novas tendências polí- ram muito rapidamente à condição de fundamento principal das
ticas, migradas para o debate sobre o Poder Negro342. políticas apoiadas pela organização, e não apenas das raciais345.
O chamamento, dentro e fora dos EUA, para a conquista A Doutrina Moynihan, expressão desse mesmo debate,
da “negritude”, para a prática da “tolerância racial”, para as políti- sobre como intervir na afirmação política negra, tornou-se um
cas governamentais de “inclusão social” e para o cultivo apologéti- recurso dos mais importantes para a realização da perspectiva
co da “especificidade” racial negra foi desenvolvido pela Fundação liberal do pluralismo político.
Ford e levava em conta essa novidade343. Significativo que a en-
trada da Fundação nessa arena de disputa tenha se dado em 1966
com o suporte a novas frentes como o Congress for Racial Iguality
(CORE), que deixava o Movimento dos Direitos Civis para se
transformar em uma organização nacionalista negra344.
A Fundação Ford incorporou sugestões como as feitas
por Joseph E. Slater e Philip Mason e definiu as “identidades”
como objeto privilegiado de atração. Elas se tornavam, naque-
le momento, a nova âncora do chamado “pluralismo das elites”.
A proposta, defendida pela Fundação, definia que as identida-
342  FERGUSON, Karen. Top Down: The Ford Foundation, Black Power, and
the Reinvention of Racial Liberalism. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 2013, cap 2. Para os dados sobre a estratégia de financiamento da Fundação
Ford das organizações de direitos civis no Sul dos EUA, ver a seguinte entrevista do
diretor-executivo do SRC (1961-1965), Leslie W. Dunbar: Southern Oral History
Program Collection (#4007). Interview with Leslie W. Dunbar, December 18, 1978.
Interview G-0075. Disponível em: <http://docsouth.unc.edu/sohp/G-0075/G-0075.
html> Acesso em: 21 jan. 2016.
343  Philip Mason havia sugerido na conferência Racial Images Abroad and Making
U. S. Policy que esse chamamento viesse articulado à formação de uma renovada
agenda de “direitos humanos”. Isto veio a ocorrer durante os anos 1970, quando essa
articulação foi se transformando em um princípio da atuação da Fundação Ford na
matéria. Comunicação de Philip Mason, “Race Relations and Human Rights”, anexo
do memorando de Joseph E. Slater para Frank Sutton, de 19 de julho de 1967. Op. cit.
344  FERGUSON, Karen. Organizing the Ghetto: The Ford Foundation, CORE,
and White Power in the Black Power Era, 1967-1969. Journal of Urban History,
Thousand Oaks, CA; v. 34, n. 1, November 2007. 345  FERGUSON, Karen. Top Down. Op., cit., p. 7-10, 62, 260-69.

170 Wanderson Chaves A questão negra 171


Capítulo 4

A Doutrina Moynihan: o debate sobre a


raça e o negro nas conferências de 1965 da
Fundação Ford e da Academia Americana
de Artes e Ciências

Era maio de 1965 e o Movimento dos Direitos Civis nos


EUA havia rachado. Era o que dizia Daniel Patrick Moynihan,
secretário-assistente do Departamento de Trabalho (1963-65)
em memorando a Harry C. McPherson Jr., o diretor da Divisão
de Assuntos Culturais e Educacionais do Departamento
de Estado (1964-5). Sua fonte era J. Saunders Redding, crí-
tico literário, um pioneiro negro no circuito da Ivy League.
Eles haviam se encontrado naquele mês, na Universidade de
Harvard, para um evento da Academia Americana de Artes e
Ciências346: a Conferência sobre o Negro Norte-americano347.
A notícia, no entanto, não era clara. Não informava se o rompi-
mento viera da frente estudantil do Movimento, representada
pelo Student Non-Violent Coordinating Committee (SNCC)
e pelo Congress for Racial Iguality (CORE), ou de mudan-
ças na atuação da frente legal e de lobby político, articulada na
National Urban League (NUL) e na National Association for
the Advancement of Colored People (NAACP) 348.

346  American Academy of Arts and Sciences.


347  Conference on Negro American.
348  “Memorandum for Mr. McPherson”, de 20 de maio de 1965. In: WEISMAN,

A questão negra 173


A Conferência sobre o Negro Norte-americano era a A proposta dos patrocinadores do evento, as fundações
culminação de um esforço da elite dos estudos raciais nos EUA Carnegie e Ford, era a de aproveitar a oportunidade para iniciar
que vinha se reunindo, desde 1964, para discutir propostas de “re- o planejamento do futuro pós-Lei de Direitos Civis. As duas
conciliação nacional” para a questão racial349. Talcott Parsons, en- organizações supunham que a aprovação desse marco legal, em
tão um influente sociólogo, foi um dos principais instigadores do julho de 1964, abriria um “momento de transição” para o país353.
evento350. Em certa medida, era também o responsável pela forte A aposta de Daniel Patrick Moynihan, particularmente,
presença de quadros da Universidade de Harvard no encontro351. era de que a nova prioridade política negra, depois do avanço da
Estruturada em grupos de trabalho, a equipe con- legislação civil, não seria mais a “liberdade”, mas a “igualdade”.
tava ainda com representantes do National Council of the A previsão era uma tese que ele já ventilara com o secretário
Churches of Christ, da Anti-Defamation League of B’nai do Departamento de Trabalho, W. Willard Wirtz (1962-1969),
B’rith, do Southern Regional Council, da American Sociological
quando argumentou que a meta da “igualdade de resultados” iria
Association, da National Urban League, do National Opinion
se tornar tão importante quanto já fora a da busca de “oportuni-
Research Center e da Brookings Institution; com represen-
dades iguais” 354.
tantes de órgãos de governo – como da Procuradoria-Geral da
República, do Departamento de Comércio e do Departamento A principal proposta levantada nos grupos de trabalho
de Educação do Estado de Nova Iorque – e de outros especialis- que a Academia Americana de Artes e Ciências havia organiza-
tas, alguns renomados, como o historiador C. Vann Woodward, do consistia na gestação de uma nova geração de políticas sociais.
da Universidade Yale, o sociólogo G. Franklin Edwards, da Entendia-se que o Movimento dos Direitos Civis deixava de ser
Universidade Howard, Kenneth B. Clark, da City University um foco importante e que a guinada para os “direitos sociais”,
of New York (CUNY), e, com uma contribuição decisiva para confirmadas as projeções, retiraria das organizações dessa frente
os debates, a presença do antropólogo ainda pouco conhecido seu raio de atuação, sua abrangência institucional, bem como toda
Clifford Geertz, então na Universidade de Chicago352. sua consistência programática355. Na ocasião, entretanto, não se
notou que o relato de J. Saunders Redding atentava não para o
Steven R (ed.). Daniel Patrick Moynihan, A Portrait in Letters of an American
Visionary. New York: PublicAffairs, 2010, p. 103. enfraquecimento, mas para a rápida deterioração do Movimento
349  Notes on Contributors. Daedalus, Cambridge, MA; v. 95, n. 1, The Negro
American – 2 (Winter, 1966).
350  GERHARDT, Uta. Talcott Parsons: An Intellectual Biography. Cambridge, Man (1952), professor das universidades de Yale e Princeton, também fizeram parte
UK; Cambridge University Press, 2002, cap. 4, passim. dos grupos de trabalho, mas não chegaram a a participar da Conferência. Notes on
351  Participaram do encontro os seguintes professores da Universidade de Harvard: Contributors. Op., cit.
Thomas F. Pettigrew, do Departamento de Psicologia; Oscar Handlin, do Departamento 353  GERHARDT, Uta. Op., cit., p. 187.
de História; o jurista Paul Freund, da Escola de Direito; o psiquiatra Robert Coles, da 354  “Memorandum for Secretary”, de 20 de abril de 1964. In: WEISMAN, Steven
Escola de Medicina; o sanitarista Jean Mayer, da Faculdade de Saúde Pública; o cientista R (ed.). Op., cit, p. 78-9.
político James Q. Wilson, do Centro Conjunto MIT-Harvard de Estudos Urbanos; e 355  Segundo a avaliação de Daniel Patrick Moynihan, transmitida ao presidente
Rupert Emerson e Martin Kilson, do Centro de Estudos Internacionais. Lyndon B. Johnson através do secretário do Departamento de Trabalho, W. Willard
352  John Hope Franklin, historiador da Universidade de Chicago, St. Clair Drake, Wirtz. “Memorandum for the President”, de 5 de março de 1965. In: WEISMAN,
sociólogo da Universidade Roosevelt e Ralph Ellison, escritor autor de Invisible Steven R (ed.). Idem, ibidem, p. 90-97.

174 Wanderson Chaves A questão negra 175


dos Direitos Civis e de sua perda de valor estratégico, diferen- atuação dos negros nos EUA. A revolta era contra a degradação
ça que tinha sérias consequências. Como disse o historiador da da vida urbana e o ocaso das políticas sociais e econômicas de
Universidade de Brown Stephen R. Graubard, coordenador dos governo, e explicitava, fundamentalmente, que o “nacionalismo
trabalhos da Conferência sobre o Negro Norte-Americano e negro” e suas organizações haviam sido escolhidas pelos “negros
editor-chefe (1961-2000) da publicação da Academia de Artes pobres” como o veículo predileto para a sua renovada disposi-
e Ciências, a Daedalus, só se percebeu o fim da “era dos direitos ção para a ação política359. Era a emergência do Poder Negro,
civis” quando, meses depois, “distúrbios” na Califórnia anularam um conjunto de expressões e dimensões de inconformidade e de
qualquer chance de “transição” 356. luta política que estava se tornando, como logo compreendeu a
O bairro de “Watts” estava no centro dessa rememora- Fundação Ford, um grande objeto de atração360.
ção feita por Stephen R. Graubard. Entre 11 e 18 de agosto de A terminologia, objeto de disputa dessa realidade po-
1965, os milhares de habitantes dessa zona urbana ao sul de Los lítica, começara a ser explicitada pela releitura de Os condenados
Angeles, de população majoritariamente negra, envolveram-se da Terra (1961), de Frantz Fanon. Este foi, certamente, um dos
na depredação de bens e imóveis e no enfrentamento armado acontecimentos políticos e intelectuais da década. A edição da
entre civis e forças de segurança locais, estaduais e federais. O Grove Press lançada em junho de 1965, relançada em 1968 a
assassinato de um jovem negro pela polícia de Los Angeles foi preços populares, vendeu dezenas de milhares de cópias até o
o estopim para mais de uma semana de confrontos. Em uma fim década. As grandes tiragens dessa tradução deram impulso
área maior que a ilha de Manhattan, registraram-se 34 mortos, a um debate dos temas fanonianos, restrito, anteriormente, aos
milhares de feridos e detidos, além de danos patrimoniais. Os militantes negros e membros da Nova Esquerda361 que leram
prejuízos chegaram a 200 milhões de dólares357. Malcolm X, que o original francês ou a rara versão inglesa de 1963 da revista
havia sido assassinado em fevereiro, teve seu nome associado ao Presence Africaine362.
evento, como aquele que inspirou o “levante” e foi mencionado
por indivíduos e grupos envolvidos na revolta, entre eles gangues 359  A tendência desses analistas, segundo o historiador Gerald Horne, era interpretar
“Watts” como um momento de repúdio popular a Martin Luther King Jr., à “integração”
e instituições como a Nation of Slam358. e às formas não violentas de luta. HORNE, Gerald. Idem, ibidem, cap. 1, 5-6.
Analistas especializados e a cobertura jornalística afir- 360  FERGUSON, Karen. Organizing the Ghetto: The Ford Foundation, CORE,
and White Power in the Black Power Era, 1967-1969. Op., cit., passim.
mavam que havia se inaugurado ali uma nova agenda e forma de 361  Na acepção norte-americana dos anos 1960, a Nova Esquerda designava o
agregado de liberais, grupos progressistas, segmentos de esquerda partidária e não
partidária e adeptos de movimentos de “contracultura”, envolvidos nas lutas por
356  S.R.G. [Stephen R. Graubard]. Preface to the Issue ‘Color and Race’. Daedalus, direitos civis e de oposição à Guerra do Vietnã que representava a tendência política,
Cambridge, MA; v. 96, nº. 2, Color and Race, (Spring, 1967), p. iii-iv. forte especialmente entre jovens e intelectuais, que propunha radicalizar a tradição
357  HORNE, Gerald. Fire This Time: The Watts Uprising and the 1960s. New democrática norte-americana. Vide a definição de: O’NEILL, William L. The New
York: Da Capo Press, 1997, p. 3. O equivalente a 1,5 bilhão em dólares de 2015, Left: A History. Wheeling, IL: Harlan Davidson, 2001, cap. 1.
segundo o índice Purchasing Power Calculator de correção monetária. Disponível em: 362  GIBSON, Nigel C. Relative Opacity: A New Translation of Fanon’s Wretched of
<http://www.measuringworth.com/ppowerus/> Acesso em: 12 ago. 2016. the Earth – Mission Betrayed or Fulfilled? Social Identities: Journal for the Study of
358  HORNE, Gerald. Op., cit., “Introduction”. Race, Nation and Culture, London, v. 13, n. 1, January 2007, p. 70-73.

176 Wanderson Chaves A questão negra 177


Essa popularização deu vazão à discussão, antes espe- cionalistas, muito bem reconhecidos na meta da “autodetermi-
cializada, sobre as analogias entre a “situação colonial” e a do ne- nação” 364. Além disso, apontava-se para a abertura aos recursos
gro nos EUA. Particularmente, se lutas de “libertação nacional” dissuasórios da violência, tendo em vista a organização grupal e a
como a argelina, tratada em Os condenados da terra, eram válidas autodefesa, que eram interesses fundamentais365.
como modelo de ação útil e aplicável ao país. O debate norte-a- A Fundação Ford, utilizando de instrumentos de fi-
mericano tocava dois dos pontos fundamentais da obra: de um nanciamento, passou a disputar com a agenda política do Poder
lado, a reflexão de Fanon sobre as formas e princípios de cria- Negro já em 1965, quando o foco sobre os direitos civis se reo-
ção de uma “frente anticolonial”; de outro, a aposta fanoniana no rientou para as políticas redistributivas, o controle comunitário,
“lumpemproletariado” como grande força política. Entretanto, a elevação de autoestima e a valorização cultural. A atuação da
foram três outras questões, relativamente menos importantes Fundação esteve marcada pela construção de pontes teóricas e
nesse livro, que se tornaram os principais tópicos de discussão: institucionais que visavam, como objetivo principal, renovar a
1. o uso da violência: a disposição em empregá-la de abordagem liberal à uma velha questão: a assimilação e integra-
forma organizada no trabalho de liberação política ção dos negros. “Mudança social”, “desenvolvimento econômico”,
e comportamental; “liderança” e “raça”, noções que informavam posturas e projetos
2. o “nacionalismo”: as alianças e estratégias destinadas desse debate emergente, foram a porta de entrada por onde a
a sustentar a resistência, isolar o inimigo colonial e Fundação buscou intervir, reformulando os sentidos e articula-
estruturar a nova comunidade política; ções de suas políticas366.
3. a negritude (o que é curioso, uma vez que o tema A Great Society, a agenda doméstica de Lyndon B.
nunca teve lugar no trabalho de Frantz Fanon como Johnson de combate à pobreza, e o War on Poverty, seu progra-
ideólogo da causa argelina) 363. ma de reforma urbana, centrado na população negra e pobre, fo-
Foi, grosso modo, na articulação dessas questões fano- ram para a Fundação Ford verdadeiros focos de experimentação,
nianas que veio a se elaborar a disputa de projetos de libera-
364  O Partido dos Panteras Negras foi uma das exceções a essa tendência do Poder
ção, política e pessoal, características dos movimentos do Poder Negro, uma vez que considerava a noção fanoniana de “consciência nacional” mais um
Negro. Apontava-se, predominantemente, para o refinamento e princípio tático da construção dos órgãos da “frente anticolonial” do que uma proposta
de unificação sócio-étnico-cultural. A leitura de Os condenados da Terra dos Panteras era
a reafirmação dos sentidos do pertencimento e da classificação possivelmente a mais literal e menos metafórica dentre as feitas pelas organizações do
racial, impulso que se tornaria instrumental para os objetivos na- Poder Negro. CHAVES, Wanderson. O Partido dos Panteras Negras. Topoi: Revista de
História, Rio de Janeiro, v. 16, n. 30, 2015. Resenha de: BLOOM, Joshua and MARTIN
JR., Waldo E. Black against Empire: The History and Politics of the Black Panther
363  O cientista político Nigel C. Gibson e o historiador David Macey argumentam Party. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2013.
que a negritude entrou na reflexão de Os condenados da Terra apenas por oposição, já 365  WENDT, Simon. The Roots of Black Power? Armed Resistance and the
que Fanon estaria combatendo a intrusão da etnicidade e da raça como princípios Radicalization of the Civil Rights Movement. In: JOSEPH, Peniel E. (ed.). The Black
do ideal nacionalista e de governo argelino. GIBSON, Nigel C. op., cit., passim. Power Movement: Rethinking the Civil Rights - Black Power Era. New York and
MACEY, David. Frantz Fanon: A Biography. London and New York: Verso, 2012 London: Routledge, 2006.
[2000], especialmente cap. 1 e 11. 366  FERGUSON, Karen. Top Down. Op., cit., “Introduction”.

178 Wanderson Chaves A questão negra 179


fundamentais na gestação de sua agenda temática, que, lançada a Conferência sobre o Negro Norte-Americano, uma oportu-
em direção às organizações do Poder Negro, buscava capturar e nidade para o debate teórico e a análise comparada de proble-
estabelecer afinidades políticas. O esforço era de concepção de ma raciais. A investida serviria para avaliar, fundamentalmente a
uma nova fórmula de governo, voltada à administração da vida partir da experiência de Estados Unidos e “Terceiro Mundo”, a
e problemas das diversas populações. A Fundação Ford definiu discussão internacional de soluções políticas, mostrando-se útil
essa proposta pelas noções de “pluralismo racial” e “pluralismo aos ajustes de sua própria agenda para a questão racial, promovi-
das elites”. O multiculturalismo teve aí parte de suas origens367. dos a partir de 1967370.
A Conferência sobre o Negro Norte-americano e a Stephen R. Graubard estava no comitê organiza-
Conferência sobre Raça e Cor368, evento internacional realizado dor. Também estavam Raymond W. Firth, antropólogo da
em Copenhague, na Dinamarca, em setembro de 1965, patro- London School of Economics; Georges Balandier, antropólo-
cinado pela Fundação Ford, em muito serviu à consolidação da go da Universidade de Sorbonne; e o sociólogo Daniel Bell, da
proposta de intervenção que Daniel Patrick Moynihan ajudou Universidade de Columbia e membro do conselho curador da
a elaborar e que posteriormente se transformaria no corolário
Fundação Ford371. Após reunião em Paris, em 1964, esse comi-
de disputas e convergências entre o Poder Negro e a Fundação
tê definiu seis grandes áreas de interesse e concentração para as
Ford: a Doutrina Moynihan.
conferências, comunicações e publicações:
1. Histórias das relações raciais: análise do colonialis-
A Conferência sobre Raça e Cor mo, imperialismo e usos da cor na construção de
propostas de ordem e domínio;
A Conferência sobre Raça e Cor foi um dos mais im- 2. A Cor: simbolismo e fundamentos teóricos e sociais;
portantes conclaves da agenda de eventos internacionais do 3. O conflito inter-racial: análises etnograficamente
Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF). A organização, documentadas dos usos da cor na definição de iden-
uma importante beneficiária da Fundação Ford, dirigiu a par- tidades e limites intergrupais;
tir de Paris o planejamento e a coordenação da conferência, que 4. Minorias raciais: agendas identitárias e o lugar da
se realizou entre os dias 5 e 12 de setembro de 1965. O even- cor na articulação de ideologias de afirmação grupal
to, promovido em colaboração com a Academia Americana de e nacional;
Artes e Ciências369, representava para a Fundação Ford, tal como 5. A importância da cor nas relações internacionais;

370  Ou seja, nos termos do projeto de 1967, já citado: “Social Science Research on
367  Idem, ibidem, cap. 2 e 4. Race and Poverty”, anexo da carta de John R. Coleman para McGeorge Bundy, de 21
368  Conference on Race and Color. de janeiro de 1967. Op., cit.
369  S.R.G. [Stephen R. Graubard]. Preface to the Issue ‘Color and Race. Idem, 371  Carta de Stephen R. Graubard para Florestan Fernandes, de 21 de julho de
ibidem, p. ix-x. 1965. In: FFF. Série Vida Acadêmica. Correspondências.

180 Wanderson Chaves A questão negra 181


6. O “a-racialismo”: análises e pesquisas sobre gru- Berkeley.
pos sociais e movimentos políticos que preconi- John A. Davis. Cientista Político. City University of New
zassem processos de identificação primária não York (CUNY).
raciais ou de cor372. Masataka Kosaka. Cientista Político. Centro de Estudos
Florestan Fernandes, convidado da Conferência sobre Americanos da Universidade de Kyoto, Japão.
Raça e Cor, era representativo do perfil dos escolhidos para o even- Colin Legum. Escritor e ativista sul-africano.
to. Eram cientistas sociais de regiões do mundo “não comunista”, Correspondente do Sunday Observer, de Londres.
geralmente especialistas em temas de história e psicologia em suas Philip Mason. Escritor. Diretor de estudos do Institute of
investigações da questão racial. Seu parceiro intelectual, Roger Race Relations (IRR), de Londres.
Bastide, então na Universidade de Sorbonne, também estava entre
David Lowenthal. Geógrafo e historiador. King’s College
os convidados373. Também integravam a lista de participantes: (UK).

André Béteille. Sociólogo. Universidade de Deli, Índia. Julian Pitt-Rivers. Antropólogo. Universidades de Sorbonne
e Chicago.
Leon Carl Brown. Diplomata, especialista em Oriente
Médio. Universidade Princeton. Ahmed Bouhdiba. Sociólogo. Centro de Estudos e
Pesquisas Econômicas e Sociais da Universidade de Túnis.
Robert K. A. Gardiner. Diplomata de Gana. Secretário-
executivo da Comissão Econômica para a África, da ONU. Henri Collomb. Psiquiatra. Faculdade de Medicina da
Universidade de Dakar, Senegal.
Kenneth J. Gergen. Psicólogo. Universidade de Harvard.
E. U. Essien-Udon. Cientista Político. Universidade de
C. Eric Lincoln. Sociólogo e pastor metodista.
Ibadan, Nigéria.
Universidade de Brown.
Solange Faladé. Psicanalista. Faculdade de Medicina da
Kenneth L. Little. Antropólogo. Universidade de
Universidade de Paris VII.
Edimburgo, Escócia.
Fernando Henriques. Sociólogo. Universidade de Sussex.
François H. M. Raveau. Neuropsiquiatra. Universidade
de Paris VII. Tarzie Vittachi. Jornalista. Diretor da divisão asiática do
International Press Institute.
Edward Shills. Sociólogo e membro do CCF. Universidade
de Chicago. Clarence Clyde Ferguson Jr. Diplomata. Decano da Escola
de Direito da Universidade Howard.
Hiroshi Wagatsuma. Psicólogo. Universidade da Califórnia,
Per Wästberg. Escritor e jornalista. Fundador da seção sue-
372  Carta de Stephen R. Graubard para Florestan Fernandes, de 13 de abril de 1965, ca da Anistia Internacional.
p. 2-4. In: FFF. Série Vida Acadêmica. Correspondências.
373  Notes on Contributors. Daedalus, Cambridge, MA; v. 96, n. 2, Color and Race, Franklin Williams. Advogado e ativista da NAACP.
(Spring, 1967), p. 627-8.

182 Wanderson Chaves A questão negra 183


Representante dos EUA no Conselho Econômico e Social Na abertura dos trabalhos, Stephen R. Graubard recor-
(ECOSOC) da ONU. dou o “levante de Watts”, fazendo uma exposição que dava o tom
Rajat Neogy. Editor de Transition, periódico do CCF em geral do que seria a Conferência sobre Raça e Cor. Disse que o
Uganda. ocorrido em Los Angeles orientaria para a construção de políti-
Ezekiel Mphahlele. Escritor. Diretor de programas para a cas, dali em diante, mais sintonizadas com a disposição geral de
África, do escritório do CCF de Paris. desidentificação com metas de “integração racial”. Watts era a
Ali Mazrui. Cientista Político. Universidade de Makerere, exposição do fracasso do esforço de “assimilação” tentado atra-
Quênia. vés da dessegregação e que demonstrava, como exemplo válido
Talcott Parsons.
não apenas para os EUA, motivações extrapolíticas para aquela
série de “distúrbios”. Era conflitiva, acreditava ele, a natureza das
John Hope Franklin374.
“relações inter-raciais”, razão pela qual a convivência e a própria
cidadania deveriam ter em vista, como princípio, o respeito a essa
Completavam a lista, com o mesmo perfil intelectual e
primazia do relacionamento intrarracial378.
profissional, três laureados com o Anisfield-Wolf Book Awards375:
A maioria dos trabalhos mostrou-se crítica aos projetos
por The New World of Negro Americans, de 1964, o cientista po- de “integração”, julgados já derrotados, por ignorarem, na busca
lítico, professor do MIT, Harold R. Isaacs; por The Reluctant pela “harmonização racial”, melhor entendimento sobre a natu-
African, de 1961, o jornalista negro, pioneiro na TV norte-ame- reza do convívio humano379. A meta, para esses participantes, era
ricana, Louis E. Lomax376; e por To Sir, With Love, de 1961, o gerar maior “esclarecimento”, através, particularmente, da cor-
guianês então diplomata Edward R. Braithwaite377. reta definição e instrumentalização do conceito de raça. Nesse
esforço de precisão, eles se desdobraram, em Copenhague, no
374  Idem, ibidem. Programa “Conference on Race and Color”, sem data. In: Harvard debate de três questões principais: 1) a tese do “naturalismo das
University Archives. Talcott Parsons Papers. Alphabetical Correspondence, 1959-
1966. Box 2. Agradeço a Gustavo Rodrigues Mesquita por repassar gentilmente a
cores”; 2) a “conotação pejorativa”; 3) o “contrarracialismo”. Estas
cópia deste documento. temáticas constituíam-se como tripé para um conceito de raça e
375  Prêmio criado em 1936, nos EUA, concedido a trabalhos de ficção e não-ficção
sobre raça e “relações raciais”. The Masters and the Slaves, de Gilberto Freyre, foi
davam notícia de certas divergências na problematização do que
premiado em 1957 e The Negro in Brazilian Society, de Florestan Fernandes, em 1970. se configurava como solução do “conflito racial” 380.
376  Os livros de Isaacs e Lomax tinham um tema comum: eram investigações sobre os
mútuos impactos entre a luta por direitos civis nos EUA e a descolonização na África. e sentimental. O livro inspirou o filme sucesso de bilheteria em 1967, estrelado por Sidney
Isaacs trabalhava dados de sua pesquisa sobre o “subdesenvolvimento” realizadas no Poitier, To Sir, With Love.
Center for International Studies (CENIS) do MIT e entrevistas dele com intelectuais 378  S.R.G. [Stephen R. Graubard]. Preface to the Issue ‘Color and Race. Idem,
negros norte-americanos. O livro de Lomax era uma reportagem sobre a longa viagem ibidem, p. iii-iv.
que o jornalista realizou no verão de 1960, por praticamente todos os países africanos, 379  Ver: MPHAHLELE, Ezekiel. Race and Color at Copenhagen. Transition,
cobrindo os processos de descolonização. Kampala, n. 23, 1965.
377  Novela de inspiração autobiográfica ambientada na Londres dos anos 1940, o livro 380  DAEDALUS. Color and Race. Cambridge, MA: MIT Press on behalf of
de Braithwaite trazia o racismo e a migração colonial como temas de comentário político American Academy of Arts & Sciences, v. 96, n. 2, 1967, p. 279-626. Spring Edition.

184 Wanderson Chaves A questão negra 185


Por meio da tese do “naturalismo das cores”, defen- o psicólogo Kenneth J. Gergen, esforços de divisão e exclusão
deu-se que a “cor” era o mais primário e importante traço físico, informavam sempre qualquer processo de afirmação e constitui-
como explicou Edward Shills. A percepção das cores, ao ter uma ção de grupos humanos, e a “cor” seria, naturalmente, um desses
origem pulsional, obedeceria, fundamentalmente, a um impera- instrumentos principais. Nessa dinâmica, “conteúdos subjacen-
tivo cognitivo e sensorial. Segundo Shills, a identificação e classi- tes” seriam introduzidos na sua significação, sendo graças a esses
ficação das cores tinha precedência na construção das várias for- sentidos conotativos, depois empregados na leitura da aparência
mas de “diferença”. A motivação, para tanto, seria atávica e, pos- humana, que a cor se transformava em emblema primário das
sivelmente, também racial. Esse argumento, uma pressuposição “diferenças” 382. Esse procedimento, quando depreciativo na for-
sobre como a diversidade humana era universalmente percebida, ma e na expressão, era chamado de “conotação pejorativa”. Na
definia que noções abstratas e figurativas em relação ao corpo, Conferência sobre Raça e Cor, a investida contra imagens des-
à percepção de si e à construção grupal eram desenvolvimentos te tipo se firmou como a grande aposta da crítica especializada.
secundários, que nasciam a posteriori. A tendência era para que Pautava-se na crença de que o combate aos “estereótipos” desmo-
fossem tênues os vínculos estabelecidos apenas no chamado pla- bilizaria os suportes raciais da discriminação e do preconceito.
no da “cultura”, uma vez que, segundo esse entendimento, have- Possibilitaria, também, a construção de novas modalidades de
ria uma primazia das filiações étnico-raciais. Significava, ainda “percepção”, tidas como necessárias para o estabelecimento de
conforme Edward Shills, que princípios de outra natureza, como direitos, para a elevação das formas de convívio e para o reconhe-
o de “classe”, eram, comparativamente, desprovidos de qualquer cimento social positivo das “diferenças” 383.
caráter “estruturante” 381. A “civilidade” e a “tolerância” eram os valores fundamen-
Essa postulação angariou grande aceitação. Os embates tais dessa aposta intelectual. Eram também o centro do amplo
de Copenhague, tomados pelo consenso em torno das manifes- esforço de crítica, naquele momento, dirigido contra o chama-
tações de automatismo na “identificação racial”, orientaram-se do “racialismo reverso”. O diplomata Robert K. A. Gardner, que
em direção à investigação da questão moral fundamental des- preferia o termo “contrarracialismo”, designava, pela expressão,
dobrada desta postulação: saber como evitar que a construção certas estratégias grupais de afirmação e oposição, consideradas
desse princípio biológico na esfera da “cultura” se desse por meio
da “conotação”, do processo de dissociação da “cor” de suas qua- 382  GERGEN, Kenneth J. The Significance of Skin Color in Human Relations.
lidades “descritivas”, vinculadas à “representação física”. Esta era Daedalus, Cambridge, MA; v. 96, n. 2, Color and Race, (Spring, 1967), p. 393-4.
383  Destaque às contribuições mais específicas de Roger Bastide, Hiroshi
considerada uma dificuldade fundante. Como buscou explicar Wagatsuma, André Béteille e Leon Carl Brown. Bastide, falando da associação do
mal à “cor negra” na escatologia cristã e Wagatsuma, Béteille e Brown levantando o
modo como “minorias raciais” eram tratadas, respectivamente, no Japão, na Índia e na
381  SHILLS, Edward. Color, the Universal Intellectual Community, and the Afro- Argélia. Ver: BASTIDE, Roger. Color, Racism, and Christianity. WAGATSUMA,
Asian Intellectual. Daedalus, Cambridge, MA; v. 96, n. 2, Color and Race, (Spring, Hiroshi. The Social Perception of Skin Color in Japan. BÉTEILLE, André. Race
1967), p. 282, 291-2. Florestan Fernandes, participando da mesma mesa de Shills, foi and Descent as Social Categories in India. BROWN, Leon Carl. Color in Northern
um dos debatedores desse trabalho. Africa. Daedalus, Cambridge, MA; v. 96, n. 2, Color and Race, (Spring, 1967).

186 Wanderson Chaves A questão negra 187


“antibrancas”. Estavam associadas, segundo ele, a várias das lutas Américas, através da negritude, no centro de uma grande dis-
de “liberação nacional”, especialmente as que defendiam o en- puta “terceiro-mundista”. Haveria, conforme essa análise, grande
frentamento armado, o distanciamento político e o rompimento impulso à “autoexclusão” dos países do “mundo ocidental”. Para
cultural. Gardner, o responsável, a partir de 1964, pela criação evitar essa projeção para fora do “sistema”, eles recomendavam,
do Banco Africano de Desenvolvimento384, distinguia essa ver- com vistas à preservação do “desenvolvimento internacional”,
tente da descolonização da aposta civilizatória defendida em que a negritude, em particular, fosse recuperada para os fins da
Copenhague. Para ele, o processo de independência das nações “aliança atlântica”. Opinião bem difundida, isso encaminhou o
deveria gerar participação no “sistema internacional de países”, debate para o levantamento de quais deveriam ser as estratégias
a única alternativa de integração externa que corresponderia a de reorientação386.
chances reais de progresso, inclusive, no combate à exclusão e ao A negritude, noção na qual vieram a se acomodar inú-
preconceito. Por isso, sua conclamação: doutrinas que pregassem meras propostas de consolidação da solidariedade política, so-
a quebra de contiguidade entre “Ocidente” e “Oriente” e entre cial e comunitária das populações de origem africana387, havia
antigas “colônias” e “metrópoles” deveriam ser combatidas ener- se tornado, desde o pós-guerra, um potente chamariz das lutas
gicamente, pois antentariam contra o bem-estar dos países e a anticoloniais. Suas diferentes vertentes estavam voltadas para
melhoria das relações globais385. a formação de um “novo mundo”, concomitantemente “negro”,
A resposta a essa ameaça ao “sistema internacional”, ba- cosmopolita, tradicionalmente africano e politicamente autô-
seada no “contrarracialismo”, deveria vir pela cooptação dos seus
projetos. Essa era a aposta, em Copenhague, de duas institui-
386  MASON, Philip. The Revolt against Western Values. Idem, ibidem, p. 328 e
ções especializadas nas interfaces entre “relações internacionais” ss. ISAACS, Harold R. Group Identity and Political Change: The Role of Color and
e “programas de modernização”, o IRR, de Philip Mason, e o Physical Characteristics, especialmente p. 359, 364. Daedalus, Cambridge, MA; v. 96,
n. 2, Color and Race, (Spring, 1967). As únicas notas de discordância em relação à
CENIS/MIT, de Harold R. Isaacs. A posição delas era, unifor- proposta de cooptação levantada por Mason e Isaacs vieram de conferencistas negros.
memente, de defesa da “afirmação racial dos povos de cor”. Essa Não foram integrais, no entanto, nem mesmo pelas mesmas razões. Louis E. Lomax,
por exemplo, levantou que a proposta tinha como único objetivo romper os laços de
posição de acolhimento, conferida a esse movimento com exten- solidariedade internacional do movimento pan-africano. Para Robert K. A. Gardiner,
são mundial, veio a ser, por justificativas de caráter geopolítico, o problema da proposta era que não reconhecia aos africanos o direito de decidir de
que forma pretendiam realizar sua integração ao “Ocidente”. Vide: High-Brows Bring
outro ponto praticamente unânime de toda a Conferência sobre Colour to Copenhagen. Sunday Telegraph, London, 19 Sept. 1965, p-8-9.
Raça e Cor. Para Mason e Isaacs, era preciso acolher essa deman- 387  O termo negritude foi uma criação dos anos 1930, do círculo de escritores
antilhanos e africanos de Paris do qual Aimé Césaire, Leopold Sedar Senghor e Léon-
da para modificar seus usos, uma vez que ela estava, na África e Gontran Damas foram os nomes mais importantes. O projeto da negritude formulado
nesse círculo é reivindicado como tendo origem no Movimento da Renascença do
384  Gardner, compatriota e antagonista de Kwane Nkrumah, assumiu essa posição Harlem. O escritor Langston Hughes, que está entre os que sustentam essa posição,
após liderar desde 1961, depois do assassinato de Patrice Lumumba, o processo de disse que a proposta literária do Movimento, lançada nos anos 1910, já continha o
reunificação da República do Congo realizado sob os auspícios da ONU. programa “pan-africanista” e de “união negra” que floresceu depois entre os “coloniais”
385  GARDNER, Robert K. A. Race and Color in International Relations. Daedalus, franceses. HUGHES, Langston. The Twenties: Harlem and Its Negritude. African
Cambridge, MA; v. 96, n. 2, Color and Race, (Spring, 1967), p. 302-3. Forum, New York, v. I, nº. 4, Spring, 1966.

188 Wanderson Chaves A questão negra 189


nomo. A noção de negritude devia muito da consistência de a formação do bloco racial negro unificado, proposta por esses
sua proposta a uma investida realizada nas artes. Estava ligada seguidores de Malcolm X, respondia a um desejo longamente
à promoção da “reforma humana do negro”, contra as teses da cultivado dos negros poderem finalmente declarar-se moralmen-
“inferioridade racial” e passou a adquirir com o tempo, também, te independentes dos “brancos”. Ele apoiou a legitimidade desse
aguda profundidade psicológica, além de grande apelo ao nacio- propósito liberatório. No entanto, duvidou que ele pudesse vir da
nalismo. Essas últimas características amadureceram a criação de mood ebony, da aspiração de que a consolidação da Black commu-
mitologias políticas e o impulso para a defesa de atavismos, que nity viria a assegurar, para e em nome dessa comunidade, os di-
se tornariam patentes, por exemplo, na afirmação do “orgulho reitos e benefícios negados pela sociedade norte-americana390.
racial” – em particular, o que operava a partir da recuperação de Lincoln sustentava que as características fundamentais
“essência” e “raízes” africanas388. da “condição negra” no país, a pobreza das massas e o isolamento
Era por essas várias características, precisamente, que das classes médias, não seriam alteradas pelo efeito aglutinador
os conferencistas se definiram pela disputa da negritude. Alguns da negritude, apesar desse movimento gerar, também, a impulsão
para derrotá-la, outros para apoiá-la ou para reformá-la em para a luta por direitos. A recusa a se aceitar e garantir cidadania
pontos particulares. Os sociólogos C. Eric Lincoln e Talcott plena ao negro se construiria, segundo ele, justamente pela se-
Parsons, os mais representativos dessa divergência nos embates paração do grupo da população, sob o argumento da “diferença
da Conferência, definiram-se a partir de suas posições conflitan- racial”. A nomenclatura que se designava a classificar os descen-
tes sobre como lidar com essa questão nos Estados Unidos. dentes de africanos no país, desde os já datados persons of color,
C. Eric Lincoln (1924-2000) notabilizou-se como Afro-Americans, Negro e Negro Americans, até os recentes Black
importante pesquisador das religiões com The Black Muslims in Americans e Black people, propostos pelos “malcolmistas”, seria,
America (1961), trabalho pioneiro e clássico sobre a comunidade para Lincoln, expressão de uma estratégia clássica da exclusão
e a liderança islâmica negra dos EUA. Era próximo a Malcolm norte-americana, a de designar, por uma nomenclatura racial
X e a Martin Luther King Jr.389 quando lançou, em 1964, My sempre em atualização, a posição de marginalidade permanente
Face is Black, livro de crítica, cético em relação à negritude e en- de certos grupos391.
dereçado a membros da nova geração de líderes ativistas, como Eric C. Lincoln, apoiador da proposta de “integração” via
Louis Lomax, o escritor James Baldwin e o empresário, dire- organizações cristãs do sul dos EUA, como a da Southern Christian
tor-executivo da revista Ebony, Lerone Bennet, Jr. Para Lincoln, Leadership Conference (SCLC), de Martin Luther King Jr., de-
fendia que o fortalecimento de uma “esfera pública” própria não
388  Vide: CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre el colonialismo (1950). DÉPESTRE, René.
Buenos días y adiós a la negritude (1980). In: MORALES, Laura López (org.). Literatura 390  LINCOLN, C. Eric. Mood Ebony: The Acceptance of Being Black. In: ROSE,
Francófona: II. América. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1996. Peter I. (ed.). Old Memories, New Moods: Americans from Africa, volume 2. New
389  COPAGE, Eric V. C. Eric Lincoln, Race Scholar, is Died at 75. New York Brunswick and London: Aldine Transactions, 2009 [1970].
Times, 17 May 2000. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2000/05/17/us/c- 391  LINCOLN, C. Eric. Color and Group Identity in the United States. Daedalus,
eric-lincoln-race-scholar-is-dead-at-75.html?_r=0> Acesso em 01 dez. 2016. Cambridge, MA; v. 96, nº. 2, Color and Race, (Spring, 1967), p. 533-4.

190 Wanderson Chaves A questão negra 191


daria aos negros um novo status. Era taxativo: não haveria espaço ceu a validade desse diagnóstico para outras regiões do mundo.
para as esperanças dos “nacionalistas” enquanto buscassem garan- A Fundação Ford se interessou por esses trabalhos, uma vez que
tir-se com base na separação e na “diferença racial” 392. serviam ao seu interesse em desenvolver as bases eruditas do com-
Talcott Parsons (1902-1979) defendeu posição contrá- bate à “exclusão racial”, integrada a sua agenda liberal internacio-
ria. Ainda respeitado como teórico393, deu vazão à opinião, co- nal. Destaque para Julian Pitt-Rivers e Florestan Fernandes, que
mum entre os conferencistas, de que o “negro” deveria compati- apresentaram argumentos para aplicação da fórmula de “inclusão”
bilizar-se com o modelo “pluralista” da sociedade norte-ameri- defendida por Talcott Parsons também para a América Latina.
cana. O país, formado de um mosaico de múltiplos grupos, teria
nos vínculos de nível comunitário, segundo ele, sua principal via
de inserção na vida social e política nacional. Os “negros”, para A América Latina em Copenhague
confirmarem seu próprio lugar, deveriam, aceitando-se como
grupo distinto, consolidar uma posição. Para Parsons, o compro- Julian Pitt-Rivers e Florestan Fernandes apresentaram
misso, não com a “assimilação”, mas com a “inclusão”, conforme trabalhos bastante próximos. Centrados na análise da situação das
o uso que vinham fazendo dele os “nacionalistas”, levantando a populações negras e na investigação dos padrões que estrutura-
identificação do negro com as origens e populações africanas, re- vam as tipologias raciais, ambos sustentaram o diagnóstico de que
presentava o caminho adequado para se realizar o que ele consi- a modernização levaria o Brasil e a América Hispânica, inevita-
derava ser uma experiência modelar e aceitável de “americaniza- velmente, à mesma dinâmica de politização da questão racial dos
ção”. Para os negros, isso significaria atravessar as mesmas etapas EUA395. Era a afirmação, perante a Conferência sobre Raça e Cor,
que os judeus, dentre outros grupos, já haviam experimentado. de que a América Latina, mesmo com diferenças de grau e padrão,
Haveria, primeiramente, que se construir a “elevação grupal”; de- partilhava dos problemas norte-americanos. E que o estágio des-
pois, realizar a acomodação no interior do mosaico; e, finalmente, sas lutas, nos Estados Unidos, ainda deveria inspirar o restante do
alcançar a plena aceitação social394. continente americano no desenvolvimento de soluções.
Essa proposta de “inclusão” não assimilatória, que tam- Os dois autores desafiaram teses “freyrianas” em seus
bém reivindicava o nome de “integração”, foi acompanhada, na trabalhos. Em destaque, a postulação de que a América Ibérica
Conferência sobre Raça e Cor, de exposições em que se reconhe- representaria uma via de modernidade diferente, superior à
modernidade liberal anglo-saxã396. Julian Pitt-Rivers, nessa in-
392  Idem, ibidem, p. 527 e ss.
393  Parsons dedicou sua vida acadêmica à formulação de uma abrangente teoria do 395  David Lowenthal aplicou o mesmo diagnóstico sobre toda a região caribenha.
social. Era de orientação funcionalista e seu trabalho buscava plasmar o pensamento LOWENTHAL, David. Race and Color in the West Indians. Daedalus, Cambridge,
teórico de Max Weber, Émile Durkheim e Vilfrido Pareto nesse esforço totalizante. MA; v. 96, nº. 2, Color and Race, (Spring, 1967).
Suas principais obras ainda são The Structure of Social Action, de 1937 e The Social 396  Dos temas da Conferência sobre Raça e Cor, o da “excepcionalidade racial” latino-
System, de 1951. americana, tratado nos trabalhos de Florestan e Pitt-Rivers, foi um dos que despertou
394  Ver o relato da exposição de Talcott Parsons em: MPHAHLELE, Ezekiel. mais interesse e comoção. Na avaliação de Jacques Amalric, correspondente do Le
Idem, ibidem, p. 19. Monde, os trabalhos de Florestan e Pitt-Rivers estavam decretando o fim de um “mito

192 Wanderson Chaves A questão negra 193


vestida, voltou-se particularmente contra Charles Wagley e a Julian Pitt-Rivers considerava esse diagnóstico um
previsão do antropólogo norte-americano de que diferenças de verdadeiro desafio ao que ele chamou de “cinismo” das “di-
classe, ainda expostas em vocabulário racial, seriam expressas em reitas nacionalistas” e de “suposições” da “esquerda marxista”.
vocabulário estritamente classista no futuro, acompanhando o Segundo o britânico, demonstrava-se, por suposto, que os “na-
ritmo da própria mestiçagem – segundo Wagley, haveria, com a cionalistas” não poderiam mais negar o fenômeno da discrimi-
homogeneização fenotípica das populações, um esgotamento de nação justificando-se na comparação com os EUA. Os “ma-
sentido das categorias raciais397. les do racialismo” afetariam toda a América Latina, incidindo
O momento que, para Wagley, seria de transição nas particularmente sobre os “não brancos” e sem necessitar, para
sociedades latino-americanas era visto ao contrário por Pitt- a sua maior eficácia, de análogos do Jim Crow. Com relação à
Rivers. Passava-se de uma era de rígidas hierarquias, em que as “esquerda”, Pitt-Rivers julgava ter demonstrado que eles não
categorias de cor eram marcadores sociais, culturais e econômi- conseguiriam mais elidir as evidências de discriminação racial
cos, determinando a posição de classe e o status individual, para entre os preconceitos de classe. Essa aposta, que apontava os
uma em que se tornaria impossível subsumir a “raça”, ou ainda, Estados Unidos como espelho e também modelo de futuro, era
equacioná-la com os parâmetros de “classe”. A mobilidade, a pa- a de que a emergência da “etnicidade” acompanharia o progres-
dronização e o anonimato urbano, associados à modernização e so da modernização material para se tornar, nessa evolução, um
ao desenvolvimento, estariam simplificando os critérios de estra- princípio fundamental da vida social399.
tificação, tornando a “raça” e a “etnicidade”, futuramente, os prin- Florestan Fernandes acompanhava essa argumentação
cípios mais determinantes de identificação. O conteúdo social em muitos pontos. Ele concordava que um estreito paralelo en-
ou de classe dessas categorias seria esvaziado em toda a América tre cor e status era revelador de uma condição de “atraso”, de um
Hispânica, vaticinava ele, tão logo houvesse mais abertura estru- descompasso com a modernidade capitalista que, no Brasil, se
tural às mudanças e, consequentemente, menos desigualdade398. expressava na hierarquia de seu gradiente de cores e no uso dessa
tipologia racial como um princípio extensivo de estratificação.
racial”. AMALRIC, Jacques. Le malheur de ne pas être Blanc. Le Monde, Paris, 17 Em particular, acrescentava que a discriminação de “pretos” e
sept. 1965. A revista britânica Encounter, o mais importante periódico do CCF, destacou “mulatos”, um fenômeno universal no país, ganhava forma atra-
no editorial da sua edição especial sobre a América Latina, de setembro de 1965, em
chamada para um artigo de Pitt-Rivers sobre raça, que a região não dispunha mais de vés da atualização de uma “herança escravista”, mais insidiosa,
soluções para problemas raciais que fossem melhores que as “anglo-saxãs”. Rediscovering sobretudo, na estruturação do mercado de trabalho: o racismo,
Latin America: A Foreword. Encounter, London, Sept. 1965 Issue, p. 3-4.
397  Desde os anos 1940, Wagley sustentava essa posição como um tema permanente
empregado como instrumento de “superexploração” da mão de
de sua reflexão sobre o Brasil. Ele passou a levantar perspectivas diferentes nos anos obra, criava disparidades competitivas entre os segmentos da for-
1970. Vide, para um trabalho de Wagley contemporâneo à realização da Conferência:
ça de trabalho, prejudicando o potencial da “proletarização” de
WAGLEY, Charles. An Introduction to Brazil. New York: Columbia University
Press, 1963, especialmente cap. 1. gerar a “integração social” de populações marginalizadas. Tratar-
398  PITT-RIVERS, Julian. Race, Color, and Class in Central America and the
Andes. Daedalus, Cambridge, MA; v. 96, nº. 2, Color and Race, (Spring, 1967). 399  Idem, ibidem, p. 554-7.

194 Wanderson Chaves A questão negra 195


se-ia de um elemento de “irracionalidade” que desviava a evolu- “revolução burguesa”. A forma mais adequada de agir, dentro dos
ção do desenvolvimento capitalista no sentido de um requisito limites da cidadania em uma sociedade de classes, e para gerar
fundamental, a plena formação de modernas classes sociais400. o ambiente democrático conducente à ela, segundo o sociólogo,
Era a aposta de que a superação, na organização da so- seria na condição de um “grupo de interesse”, significando, para
ciedade brasileira, de um princípio hierárquico “arcaico” remi- os negros, um comportamento de minoria racial organizada402.
niscente da escravidão – a vinculação entre cor, status e direi- Julian Pitt-Rivers, Florestan Fernandes e David
tos – possibilitaria às “relações raciais”, no desenvolvimento da Lowenthal foram exemplares, durante a Conferência sobre Raça
“sociedade de classes”, assumirem uma forma menos “desigual”. e Cor, da conformidade com o programa de “inclusão racial”
Embora Florestan Fernandes aceitasse que essa transformação e suporte aos “movimentos negros” que dominou o debate na
pudesse se dar à medida em que progredisse a modernização Conferência sobre o Negro-Norte-Americano. E, neste sentido,
econômica, como Julian Pitt-Rivers, ele também defendeu, de do acordo sobre a validade internacional de premissas funda-
modo ligeiramente diferente, que essa mudança viria, ou seria mentais, depois conhecidas como Doutrina Moynihan, debati-
facilitada, apenas caso a “raça” fosse transformada em um prin- das naquele evento.
cípio de organização e ação. A superação do “passado” brasilei-
ro teria na união entre “pretos” e “mulatos” como “negros” um
dos seus primeiros momentos. Essa coalizão, além da busca por A Doutrina Moynihan
autonomia moral para a consolidação política do bloco, deve-
ria unificar um programa que tivesse como meta fundamental, Daniel Patrick Moynihan, quadro do Partido Democrata
segundo Florestan, reivindicar, com nova postura pública, uma e membro de um dos seus pilares de ativismo liberal, a Americans
efetiva integração à sociedade de classes401. for Democratic Action (ADA), chegou ao Departamento de
A convicção cara à Florestan Fernandes era a de que os Trabalho durante o governo de John F. Kennedy (1961-1963). Era
negros estavam em uma posição estratégica única: ninguém es- uma indicação de W. Averell Harriman, ex-governador do estado
taria melhor situado para atacar ao mesmo tempo, em função das de Nova Iorque, de quem ele havia sido assessor. Durante o pri-
promessas democráticas não cumpridas, a “democracia racial” e a meiro mandato de Lyndon B. Johnson (1963-1965) foi promovi-
do a secretário-assistente. Seu trabalho de formulação, voltado à
400  FERNANDES, Florestan. The Weight of the Past. Daedalus, Cambridge, MA; fundação de uma política social para a nova legislação sobre direi-
v. 96, nº. 2, Color and Race, (Spring, 1967), p. 560 e ss. Para a reflexão de Florestan, tos e assistência, visada pelo Departamento de Trabalho, está entre
de que a discriminação racial impediria a fundação de um mercado de mão de obra
institucionalizado segundo regras de “livre concorrência” e direitos, ver: MOTA,
as origens do ambicioso programa da administração de Lyndon B.
Daniele Cordeiro. Desvendando mitos: as relações entre raça e classe na obra de Johnson, o War on Poverty, lançado em março de 1964403.
Florestan Fernandes. Campinas, 2012. 146 f. Dissertação (Mestrado) – Departamento
de Sociologia, IFCH, Unicamp, passim, especialmente p. 86 e 104.
401  FERNANDES, Florestan. Op., cit., p. 577-9. Este é um dos temas do 402  Idem, ibidem.
próximo capítulo. 403  PATTERSON, James T. Freedom is not enough: The Moynihan Report and

196 Wanderson Chaves A questão negra 197


Os negros, pela sua pobreza, eram alvo dessa nova po- ciais que assolavam essa família prejudicavam a formação de seus
lítica, mas Daniel Patrick Moynihan pretendia que se tornassem membros, limitavam a busca por novos padrões de vida e status
o foco fundamental. Suas razões eram táticas, além de técnicas. e os tornavam imunes aos benefícios e exigências das políticas
Para ele, o governo precisava se antecipar às expectativas da po- sociais. O alerta de Moynihan ao Departamento de Trabalho era
pulação negra, que se reorientariam, após a conquista de direi- fundamentalmente político. Destacava que os negros, sem os re-
tos civis e as oportunidades abertas em um mercado de trabalho quisitos de formação e socialização, estavam inabilitados para as
mais dessegregado, para a busca da “igualdade social”. Tratava-se, “oportunidades” recentemente abertas. A frustração, avaliou ele,
segundo Moynihan, de uma oportunidade política: aproveitava- teria consequências inestimáveis405.
-se o descenso do Movimento de Direitos Civis, que não havia A solução para esse impasse, segundo Moynihan, vi-
avançado agenda específica nesse tema, para abrir ao governo, ria da emulação do etos das classes médias, em particular, as de
pela primeira vez em anos, a chance de ditar o debate racial. Para origem oriental. Elas representavam, nessa leitura que focava as
desenvolver essa saída, ele buscou convencer membros da admi- comunidades chinesa e japonesa dos EUA, a realização do ciclo
nistração Lyndon B. Johnson de que havia como realizar progra- perfeito de integração e nacionalização feito de ascensão social,
mas sociais que conquistassem, concomitantemente, o argumen-
derrota dos preconceitos de classe e eliminação consecutiva da
to dos elementos radicais do Poder Negro e o apoio dos mais
“questão racial” 406.
conservadores. Essas promessas, ele defendeu, seriam cumpridas
A aposta nesse modelo seguia a convicção de que a
com o advento de um novo programa, voltado para a “reforma da
“opressão racial” era um problema caracteristicamente priva-
família negra” 404.
do. O plano decorrente sustentava que a “crise urbana” e os
Esse argumento se sustentava no diagnóstico de que
males da pobreza fossem solucionados pelo estímulo às famí-
havia uma crise urbana no país, que o negro era o aspecto cen-
lias negras, que seriam auxiliadas a desempenhar as funções
tral desse problema e que a situação estaria à beira de perder o
de sustento, formação e “elevação social” da forma como se-
controle. A família negra era considerada como desproporcional-
riam realizadas pela maioria dos grupos sociais norte-ameri-
mente presente nas grandes cidades. E, em razão dos seus altos
canos, eliminando a necessidade de boa parte dos programas
índices de crescimento demográfico, abandono paterno, depen-
de assistência do governo. Essa estratégia deveria passar pelos
dência dos programas de assistência e proporção de lares che-
homens e ancorava-se na crença de que a habilitação masculi-
fiados por mulheres, seria, em si mesma, a própria expressão do
na para as funções de provedor e patriarca, considerada frágil
desmoronamento da vida urbana. Este seria, segundo essa argu-
mentação, o círculo vicioso da “cultura da pobreza”: os males so- 405  MOYNIHAN, Daniel Patrick. The Negro Family: A Case for National
Action. Washington DC: Department of Labor, March 1965, especialmente cap. 2
e 4. Disponível em: <http://www.dol.gov/oasam/programs/history/webid-meynihan.
America’s Struggle over Black Family Life from LBJ to Obama. New York: Basic htm> Acesso em: 19 dez. 2015.
Books, 2010, cap. 2-3. 406  “Memorandum for the President”, de 5 de março de 1965. In: WEISMAN,
404  Idem, ibidem. Steven R (ed.). Op., cit.

198 Wanderson Chaves A questão negra 199


no meio negro, transformaria estruturalmente a vida familiar. a formação da família negra, dialogando diretamente com os
Como frisou Daniel Patrick Moynihan, a decisão limitaria as estudos pioneiros de W.E.B. Du Bois, do início do século XX,
oportunidades da força de trabalho feminina, mas esse pre- com as pesquisas de E. Franklin Frazier, dos anos 1930, e com
juízo não chegava a ser relevante, uma vez que, segundo ele, a síntese sociológica de An American Dilemma, de Gunnar
não eram os “direitos civis” das mulheres o centro do proble- Myrdal, dos anos 1940409. Stanley Elkins empregava a teoria da
ma. Tratava-se de buscar nos homens negros os instrumentos infantilização, desenvolvida pelo psicólogo Bruno Bettelheim
considerados mais adequados para impulsionar as famílias para o estudo da personalidade de ex-internos de campos de
rumo à forte política dirigida à “reforma urbana”, ao controle concentração para reforçar, por analogia, que escravos viven-
de natalidade e à criação de vagas de emprego407. ciaram uma experiência de privação igualmente radical e que a
Essa investida viria a sanar, segundo ele, a dificuldade estrutura familiar negra representava um legado dessa experi-
das famílias negras de assumirem plena responsabilidade e de ência. Moynihan desenvolveu, a partir dessas conclusões, uma
usufruírem dos benefícios da cidadania política e das recom- conclamação ao governo norte-americano. Dizia, fundamen-
pensas da sociedade de consumo. Essas dificuldades teriam sua talmente, que a forma adequada de se atacar a “pobreza negra”
origem profunda no passado de escravidão e estariam expressas era “restituindo” a autoridade familiar e a função de provedor ao
particularmente no comportamento dos homens. O ultraje que homem negro, para que nele se fortalecesse a estabilidade, bem
persistiu na era de segregação racial teria privado toda a comu- como a autossuficiência familiar410.
nidade das âncoras do patriarcado e da liderança masculina e A proposta final apresentada por Daniel Patrick
dos canais de inserção política e comunitária dos demais grupos Moynihan ao Departamento de Trabalho em março de 1965 se
sociais norte-americanos. O principal emblema desse legado de beneficiou dos seminários de 1964 da Academia Americana de
degradação e excepcionalidade era a “matrifocalidade” da famí- Artes e Ciências, preparatórios da Conferência sobre o Negro
lia negra. Por meio dela, se renovaria o emasculamento sofrido Norte-Americano. Na Universidade de Harvard, Moynihan
pelo escravo. Ela, ao privar especialmente os homens, estenderia apresentou One-Third of a Nation. Sua versão do texto foi aprimo-
a toda a comunidade seus efeitos limitantes na confiança, suporte rada pelo debate com dois psicólogos que publicavam trabalhos
e experiência perdidos, barrando a expansão dos padrões de rea- bem documentados e afinados às suas teses: Kenneth B. Clark,
lização econômica e elevação social408. com Dark Ghetto: Dilemmas of Social Power; e Thomas Pettigrew,
Daniel Patrick Moynihan transpôs seus argumentos com A Profile of the Negro American411. A Academia Americana
diretamente de Slavery: A Problem in American Institutional and de Artes e Ciências, que apoiou essa vertente de discussão, tor-
Intellectual Life, do historiador Stanley Elkins. O livro, lança- nou a Conferência sobre o Negro Norte-Americano um palco
do em 1959, integrava-se à tradição erudita de estudos sobre
409  PATTERSON, James T. Idem, ibidem, p. 26-36.
407  Idem, ibidem. 410  MOYNIHAN, Daniel Patrick. Idem, ibidem, cap. 3 e 5.
408  MOYNIHAN, Daniel Patrick. Op., cit., especialmente cap. 3. 411  PATTERSON, James T. Idem, ibidem, cap. 3, passim.

200 Wanderson Chaves A questão negra 201


privilegiado para a acolhida do programa de “integração racial” Geertz dizia ser essa a situação entre os negros nos
e intervenção familiar formulado por Moynihan para o governo. EUA. Sua cultura seria modelada, em semelhança à boa parte
Clifford Geertz, que havia acabado de publicar das sociedades matrifocais conhecidas, pela posição marginal dos
Agricultural Involution: The Processes of Ecological Change in homens na estrutura familiar, posição que seria transposta para
Indonesia (1963), estava entre os debatedores da Conferência so- o ordenamento estrutural de classes. Neste arranjo, os homens
bre o Negro Norte-Americano que melhor contribuiu no plano ficariam socialmente imobilizados, sem opções para elevar seu
teórico para a defesa das medidas de “modernização” familiar. status. A situação das mulheres seria equivalente, segundo ele:
sem ter sua autoridade reconhecida fora da comunidade negra,
Para ele, a “matrifocalidade” representava um impedimento real
sua atuação frustraria as oportunidades de mobilidade famíliar415.
à equiparação dos negros ao padrão nacional de renda e status.
A tese do fortalecimento do provedor masculino rece-
Geertz era um pesquisador sobre a Indonésia pós-colonial que
beu o apoio de uma ampla frente de conferencistas, liderada, em
se colocava, então, como especialista em “políticas de desenvolvi-
particular, por Talcott Parsons, Oscar Handlin416, G. Franklin
mento” 412. Ele partia desse lugar e buscava sustentar, a partir de Edwards417 e pelos representantes da National Urban League,
exemplos etnográficos, que a forma matrilinear de parentesco413 John B. Turner e Whitney M. Young. Para esse grupo, tratava-se
levava à concentração do poder político na ordem familiar. Os do caminho ideal para reparar a “desumanização” e “exclusão” dos
requisitos de ação, decisivos na promoção do princípio de “pro- descendentes de escravos e para adequar esses negros à economia
gresso”, seriam incompatíveis, segundo ele, com essas manifesta- competitiva da moderna civilização norte-americana. O grupo
ções da matrifocalidade. Para Geertz, elas estagnavam a função e defendia o princípio do mosaico, levantado por Parsons, como
o desempenho econômico dos homens e o seu papel. Em socie- única via de acesso ao segmento principal da sociedade e reivin-
dades plenamente desenvolvidas, isso seria disfuncional414. dicava, conformemente, que os negros aderissem a novos padrões
de comportamento. Por isso, a aposta deles na construção de um
novo perfil de liderança masculina que possibilitasse, segundo a
412  Sobre o período pré-1973, que antecede a publicação de The Interpretation of
Cultures e a celebração internacional de Geertz como teórico da Antropologia, ver: proposta de Daniel Patrick Moynihan, o estabelecimento da co-
WHITE, Ben. Professional Blindness and Missing the Mark - The Anthropologist’s esão e da solidariedade racial, o desenvolvimento das bases eco-
Blind Spots: Clifford Geertz on Class, Killings and Communists in Indonesia.
Disponível em: <http://rozenbergquarterly.com/professional-blindness-and-missing-
nômicas negras e a consolidação de novos quadros políticos418.
the-mark-the-anthropologists-blind-spots-clifford-geertz-on-class-killings-and-
communists-in-indonesia/?print=pdf> Acesso em: 18 ago. 2016. 415  Idem, ibidem, p 304.
413  As formas matrilineares de parentesco, grosso modo, são as que seguem a 416  Reconhecido estudioso das migrações, foi laureado com o prêmio Pulitzer de
linhagem materna na definição de regras de transmissão da herança e de formação e História de 1951 com Uprooted: The Epic Story of the Great Migrations That Made the
organização da ordem familiar. O tio ou o irmão materno costumam ser transfigurados American People.
em figura paterna na maioria das modalidades conhecidas dessa forma de parentesco 417  Edwards era diretor e conselheiro de comissões ligadas a secretarias de governo
e a posição deles torna-se o princípio e o sentido da descendência. do Distrito de Columbia (Washington D.C.), dentre elas as de Transporte e de
414  Transcript of the American Academy Conference on the Negro American: Planejamento Urbano. Seu principal tema de pesquisa era a “classe média negra”,
May 14-15, 1965. Daedalus, Cambridge, MA; v. 95, nº. 1, The Negro American – 2 tendo publicado The Negro Professional Class em 1959.
(Winter, 1966), p. 296-7. 418  Transcript of the American Academy Conference on the Negro American: May

202 Wanderson Chaves A questão negra 203


A Conferência sobre o Negro Norte-Americano tam- ferida a indivíduos, em primeiro lugar, mas a pessoas, enquanto
bém consolidou, a exemplo do grupo que se formou em torno de integrantes de grupos particulares424.
Talcott Parsons, toda uma frente intelectual dedicada ao ataque A união de perspectivas dessas duas frentes conferiu
do chamado “integracionismo”. Ela firmou no debate, sobretudo, forte aceitação à opinião de que a “integração” era uma falsa
a avaliação de que a radicalização da dessegregação, pretendida questão e que as aspirações negras teriam mais propriedade com
pelo Movimento dos Direitos Civis, era inviável para o “equilí- a ideia de “inclusão”. Segundo Talcott Parsons, tratava-se de se-
brio racial”. Esse segmento de conferencistas era formado por guir um caminho contrário ao tentado pelos “integracionistas”.
Oscar Handlin, Thomas Pettigrew, Martin Kilson, Ralph Ellison, Para ele, a “tolerância racial” não seria estabelecida, conforme
C. Vann Woodward, Everett C. Hughes419, Edwin C. Berry420 e o Movimento dos Direitos Civis, a partir da fundação de uma
Philip Hauser421 e postulava que a face pública da vida social nova ética, de um novo princípio para as relações pessoais, mas
até poderia ser alterada pela experimentação com formas mais como resultado final de certas transformações materiais. Novas
abertas de relacionamento político e pessoal, mas que elas seriam posturas se apresentariam, acompanhando a “evolução” do ne-
impróprias na alteração do aspecto estrutural das desigualdades. gro, quanto mais o grupo se aproximasse da possibilidade de ser
Segundo eles, o “problema negro” persistiria enquanto não fos- incluído no cadinho nacional425. Nesse aspecto, ele concordaria
sem alcançados os requisitos de realização econômica, fortaleci- com Nathan Glazer426: seria inviável lançar-se contra os antece-
mento político grupal e elevação cultural exigidos para a adesão dentes de formação do melting pot nos EUA, sempre “étnico” e
ao chamado “cadinho nacional” (melting pot) 422. nunca “cego à cor” .
Como Daniel Patrick Moynihan e o sociólogo Nathan Para Talcott Parsons, assegurar o engajamento dos ne-
Glazer já haviam defendido em Beyond the Melting Pot: The gros a essa visão do melting pot era quase tão importante por ra-
Negroes, Puerto Ricans, Jews, Italians and Irish of New York City, zões externas quanto por razões de política doméstica. Segundo
de 1963423, a fórmula clássica da “nacionalização” norte-america- ele, a existência de um grupo negro, racialmente definido, era
na era incompatível com as perspectivas de “integração racial”. útil para expor as soluções norte-americanas para os “problemas
No país, segundo Moynihan e Glazer, a cidadania não era con- raciais”, gerando simpatia nas “populações de cor” na África e

14-15, 1965. Idem, ibidem, p. 291, 300-1, 313-4, 400-2. 424  Para Moynihan e Glazer, não se podia entender “cadinho” por “mistura”. Glazer,
419  Sociólogo, Hughes era professor da Universidade Brandeis (1961-1967) e ex- que aprofundou essa reflexão, disse que definições neste sentido eram incorretas
presidente (1963) da American Sociological Association (ASA). histórica e etimologicamente. O princípio do cadinho corresponderia à tradição norte-
420  Diretor-executivo (1956-1972) da seção de Chicago da National Urban League. americana de ser um local de “fusão” onde oportunidades para novos “ligamentos”, isto
421  Sociólogo, Hauser era professor da Universidade de Chicago, fundador e é, para novos laços sociais e alianças, estariam sempre abertas. Glazer frisava as origens
diretor (1947-1979) do Population Research Center, vinculado à universidade. Era do termo na Química, dizendo que o produto do “cadinho” não era uma diluição, mas
membro e conselheiro (1960-1972) da Comissão Técnica e Consultiva de Estatística a síntese que a Química definia como “amálgama”. GLAZER, Nathan. A New Look
Populacional do U. S. Census Bureau. at the Melting Pot. The Public Interest, New York, n. 16, Summer 1969.
422  Transcript of the American Academy Conference on the Negro American: May 425  Transcript of the American Academy Conference on the Negro American: May
14-15, 1965. Idem, ibidem, p. 321-3, 402-4, 406, 437-440. 14-15, 1965. Idem, ibidem, p. 401-4.
423  O livro foi um dos laureados, em 1964, com o Anisfield-Wolf Book Awards. 426  Cf.: GLAZER, Nathan. Op., cit., passim.

204 Wanderson Chaves A questão negra 205


América Latina, além de novos níveis de adesão política. Era, que devia a vitalidade de sua vida social e cultural à riqueza e
também, a oportunidade de apresentar, frente à descolonização consistência de suas configurações raciais429.
e ao “Terceiro Mundo”, posições atraentes e não defensivas. Ele Em 4 de junho de 1965, Lyndon B. Johnson discur-
lembrou que a estratégia aplicada a outros grupos não brancos sou para uma plateia majoritariamente negra na Universidade
dos EUA poderia render as mesmas vantagens diplomáticas427. Howard, em Washington D.C., sintetizando a proposta de
A aposta de Talcott Parsons mirava os “Movimentos agenda pública consolidada nos trabalhos da Conferência so-
Negros” para o desempenho de funções de agendamento político. bre o Negro Norte-Americano. O pronunciamento, escrito
Em primeiro lugar, trabalhando a manutenção dos negros como por Daniel Patrick Moynihan e pelo redator oficial do presi-
grupo racial. Em segundo, demonstrando, para fins domésticos dente, Richard Goodwin, e revisto por Roy Wilkins, da dire-
e externos, que o melting pot não levava à segregação, mas ao ção da NAACP, e por Whitney Young, da direção da National
sucesso econômico e cultural. O projeto era que os Movimentos Urban League430, era o anúncio de que a Casa Branca adotaria
Negros, já compromissados com a modernização social e a busca medidas especiais de política social para os negros. Lyndon
identitária, funcionassem como veículos de divulgação e espaços B. Johnson, às vésperas da última sessão de votação da Lei de
de uma forte política de formação de quadros. Essas transforma- Direitos de Voto pelo Capitólio, disse ser sua intenção asse-
ções seriam apropriadas para a propaganda democrática norte- gurar a conquista da “igualdade como fato e como resultado”
-americana, porque, segundo Parsons, frisavam o potencial dos para não permitir que os males duradouros da escravidão, o
EUA para engendrar soluções contra a “exclusão” e o “racialis- despreparo cívico e cultural dos negros e a pobreza anulassem
mo”. O propósito de Parsons era antigo e partilhado por toda a o impacto da aplicação da nova legislação civil431.
sua rede: tornar o racismo uma questão menor no debate inter- O rápido acolhimento governamental conferido à
nacional sobre o país428. Doutrina Moynihan seria transformado pela resposta presiden-
Nathan Glazer e Daniel Patrick Moynihan vislumbra- cial para os distúrbios raciais de Watts, que ocorreram menos
ram o mesmo em Beyond the Melting Pot. A criação de um cená- de uma semana após a aprovação da Lei de Direitos de Voto.
rio que permitisse aos EUA trabalhar sua imagem junto àquela Lyndon B. Johnson, ressentido e tendo considerado os distúr-
que era, para eles, a melhor definição de Nova Iorque: um lugar bios na Califórnia uma expressão de desprezo pelo seu esforço
de governo, decidiu abortar todos os programas que confeririam
427  Transcript of the American Academy Conference on the Negro American: May
14-15, 1965. Idem, ibidem, p. 411-2. 429  GLAZER, Nathan & MOYNIHAN, Daniel Patrick. Beyond the Melting Pot:
428  Idem, ibidem. Parsons defendeu essa posição na mesa de abertura da Conferência The Negroes, Puerto Ricans, Jews, Italians and Irish of New York City. Cambridge,
sobre Raça e Cor, que ele dividiu com Philip Mason, recorrendo às mesmas Massachusetts: MIT Press, 1970 [1963], passim, em particular, “Introduction”.
observações. Vide: Programa da “Conference on Race and Color”, sem data. Op., 430  Conforme: “Memorandum for the Secretary”, de Moynihan para W. Willard
cit. PARSONS, Talcott. Full Citizenship for the Negro Americans? A Sociological Wirtz, de 4 de junho de 1965. In: WEISMAN, Steven R (ed.). Idem, ibidem, p. 108.
Problem. Daedalus, Cambridge, MA; v. 94, n. 4 (Fall, 1965). PARSONS, Talcott. 431  President Lyndon B. Johnson’s Commencement Address at Howard
The Problem of Polarization on the Axis of Color. In: FRANKLIN, John Hope (ed.). University: “To Fulfill These Rights”. Disponível em: <http://www.lbjlib.utexas.edu/
Color and Race. Boston: Houghton Mifflin, 1968. johnson/archives.hom/speeches.hom/650604.asp> Acesso em: 17 jan. 2016.

206 Wanderson Chaves A questão negra 207


prioridade à população negra nas ações de combate à pobreza A reforma dos “movimentos negros”
que compunham o War on Poverty432. Isolado, Daniel Patrick
Moynihan exonerou-se do cargo logo depois433. Daniel Patrick Moynihan foi abandonado pela maioria
Lyndon B. Johnson promoveu uma guinada nas prio- dos especialistas na temática racial, muitos deles interlocutores
ridades da sua administração, entre elas, o início de uma grande de longa data, à medida em que sua reputação ia sendo ferida
escalada na Guerra do Vietnã. Daniel Patrick Moynihan retor- publicamente por acusações de racismo e sexismo437. Os órgãos
nou ao governo federal, em 1969, como assessor especial para do governo de Lyndon B. Johnson, a quem se endereçava sua
Assuntos Urbanos de Richard Nixon. Nesse entretempo, a popu- proposta de reforma da família, o desprezaram. Contaram contra
laridade de sua proposta de “reforma racial” apenas cresceu, im- ele as relações que mantinha com adversários Democratas dessa
pulsionada pela polêmica criada por apoiadores e opositores434. administração, mais amiúde, a aliança com Robert F. Kennedy438.
Na função de assessor presidencial, que exerceu até Apesar do ocaso pessoal de Moynihan, aspectos funda-
1973, Moynihan retomou seu objetivo sustado com seu afas- mentais da sua doutrina eram acolhidos, mesmo entre os mais
tamento em 1965: demonstrar, contra as pressuposições in- críticos às suas teses, entre os quais organizações que disputavam
ternacionais correntes, que os EUA haviam solucionado o a definição dos sentidos do Poder Negro. Era o que se verifica-
problema das “minorias nacionais” graças, precisamente, à ló- va do amplo monitoramento das instituições negras de ensino
gica do seu melting pot. Segundo Moynihan, a liderança negra superior dos EUA encomendado pela Fundação Ford à psicólo-
norte-americana que vinha se tornando inspiração mundial ga Patricia Gurin, da Universidade de Michigan, e ao sociólogo
era um produto desse cadinho435. Em 1965, ele e Stephen R. Edgar Epps, da Universidade Tuskegee, para avaliação das novas
Graubard defenderam as mesmas respostas para a questão: e emergentes formas de “ativismo estudantil”. O relatório final
que os negros fossem convencidos de que a qualidade dos seus dos dois especialistas, origem do livro Black Consciousness, Identity
quadros políticos e a ascensão global da sua liderança de gru- and Achievement: A Study of Students in Historically Black Colleges,
po eram méritos do processo de melting pot. Esperava-se da de 1975, remontava pesquisas iniciadas em 1967 e apresentava
mudança de opinião uma inversão de tendência: que os ne- duas descobertas: os “questionáveis” pressupostos da Doutrina
gros, até então alcançando uma audiência internacional espe- Moynihan e a verificação de que vertentes do “nacionalismo ne-
cialmente como críticos do próprio país, passassem de objetos gro” estavam se reconhecendo neles439.
a líderes da propaganda democrática norte-americana436.
[Stephen R. Graubard]. Preface to the Issue ‘The Negro American – 2’. Daedalus,
432  Cronologia e análise dos eventos conforme: HORNE, Gerald. Idem, ibidem, Cambridge, MA; v. 95, n. 1, The Negro American – 2 (Winter, 1966), p. iii.
capítulo 10. PATTERSON, James T. Idem, ibidem, cap. 4. BORSTELMANN, 437  Antigos interlocutores negros, como Kenneth B. Clark, eram maioria entre os
Thomas. The Cold War and the Color Line: American Race Relations in the Global novos desafetos. Entre os especialistas, o afastamento mais sentido foi o de Gunnar
Arena. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2001, p. 191. Myrdal, a quem Moynihan buscou convencer de que sua análise da família negra não
433  PATTERSON, James T. Idem, ibidem. merecia as acusações que recebia pois era uma aplicação de propostas presentes em
434  Idem, ibidem, cap. 5. American Dilemma. Vide corrrespondência de Moynihan de 1965-1966: WEISMAN,
435  Idem, ibidem, p. 124-127. “Memorandum for Mr. McPherson” de 12 de março Steven R (ed.). Idem, ibidem, p. 110-1, 115-6.
de 1965. In: WEISMAN, Steven R (ed.). Idem, ibidem, p. 97-102. 438  PATTERSON, James T. Idem, ibidem, p. 75.
436  “Memorandum for Mr. McPherson” de 12 de março de 1965. Op., cit. S. R. G. 439  Relatório “Cooperative Research on Race Relations with Tuskegee Institute”, de

208 Wanderson Chaves A questão negra 209


Patricia Gurin e Edgar Epps buscaram demonstrar que tradição norte-americana. Para a crítica de época, o SNCC era o
a origem e o nível de renda eram fatores mais importantes no de- responsável por imprimir maior nível de radicalidade ao esforço
sempenho escolar do que as bases familiares. Essas características de dessegregação e à luta por liberdades civis e políticas. Não
eram os fatores determinantes para definir a adesão e os níveis apenas entre as organizações que atuavam com as mesmas táti-
de engajamento estudantil. Segundo eles, os quadros estudantis cas, como o CORE442 e a SCLC, de Martin Luther King, Jr., mas
política e intelectualmente mais ambiciosos eram compostos por entre as organizações voltadas à litigância jurídica e às práticas de
negros que estavam iniciando uma trajetória de ascensão social. O lobby, como a National Urban League e a NAACP443.
tipo mais comum era o do jovem urbano com origem rural bus- O SNCC foi fundado em abril de 1960 e galvanizou
cando ingressar no escalão inferior da classe média. As mulheres o movimento de protesto estudantil contra a segregação, en-
estavam representadas nesse segmento emergente, mas não deti- volvendo-se em ações de grande impacto público. Entre elas, as
nham poder ou expectativas superiores às dos homens. Nada que “ocupações” dos freedom riders, realizadas em estabelecimentos
fosse equivalente à posição de preeminência doméstica e comuni- comerciais e no transporte de passageiros; o registro de eleitores
tária conferida a elas na hipótese da “matrifocalidade” 440. negros, através do ambicioso Mississippi Summer Project; e a par-
Essa jovem liderança dividia-se, notaram os autores ticipação, como coorganizadora, de duas importantes marchas: a
do relatório, entre a execração pública da Doutrina Moynihan, de Washington, em agosto de 1963, e a de Selma a Montgomery,
transformada em um objeto de críticas às políticas de Estado no Alabama, em março de 1965. Em conjunto, estas várias cam-
e governo, e o acolhimento da proposta de consolidação “ra- panhas invocavam a ação governamental contra o Jim Crow e
cial” e econômica da “comunidade negra”, defendida na mesma expuseram o governo à crítica nacional e internacional444.
doutrina. Segundo Patricia Gurin e Edgar Epps, esse movi- Em 1965, a organização iniciou um profundo processo
mento de convergência se deu de forma particularmente aguda de transformação. O fracasso da estratégia do coletivo de orga-
na trajetória do Student Nonviolent Coordinating Committee nizações de direitos civis, o Council of Federated Organizations
(SNCC), importante entidade estudantil sulista que passou de (COFO), para reverter as cláusulas de segregação e participar das
grupo de protesto e de direitos civis à militância partidária do prévias do colégio eleitoral do Partido Democrata no Mississippi,
nacionalismo negro441.
O SNCC era considerado a “linha de frente” do
Movimento dos Direitos Civis. Os marcos de sua atuação eram 442  O CORE (Congress for Racial Equality) era a mais antiga entre as organizações
que se destacaram pelo uso de técnicas de resistência não violenta contra a segregação.
a não violência, a desobediência civil e técnicas de “ação direta”, A organização foi fundada em 1942 em Chicago, tendo brancos e negros das cidades
recuperadas do pacifismo de Gandhi e do idealismo cristão de do norte dos EUA como base de seus quadros, destacando-se um forte contingente
de mulheres e judeus.
443  CARSON, Clayborne. In Struggle: SNCC and the Black Awakening of the
Irwin Katz. Versão final, de março 1974. Idem, ibidem, “Appendix”, cap. 1. 1960’s. Cambridge, Massachusetts and London, England: Harvard University Press,
440  Idem, ibidem. 1995 [1981], passim.
441  Idem, ibidem. 444  Idem, ibidem.

210 Wanderson Chaves A questão negra 211


em novembro de 1964445, e a violenta repressão à marcha em Segundo Patricia Gurin e Edgar Epps, após a traição
Selma consolidaram a convicção de que eram ineficazes as técni- por aliados no governo, cresceram também queixas de incompa-
cas de mobilização, as alianças políticas e a filosofia pacifista. A tibilidade com organizações do Movimento dos Direitos Civis.
escalada da violência e a indisposição das esferas de governo em O SNCC, respondendo a essas queixas que tinham origem na
ceder ou negociar sustentavam esse diagnóstico446. base estudantil das universidades negras do sul dos EUA, rom-
peu com o Movimento para promover uma ampla reorientação
O sentimento de traição em relação a Lyndon B.
da organização449. Os direitos civis e a resistência não violenta,
Johnson e aos liberais do ADA do Partido Democrata era ainda
postulados originais do autodeclarado “radicalismo humanista”
maior. Os quadros do SNCC consideravam-se vítimas de uma do SNCC, foram substituídos, juntamente com o interesse dos
armadilha, montada por esses ex-aliados. Eles conseguiram do fundadores por Albert Camus e por Karl Marx como referências
Movimento dos Direitos Civis a suspensão dos protestos pela teóricas450, pela adesão linear a metas “nacionalistas”. O investi-
dessegregação, que havia se reorientado para o registro de elei- mento identitário na noção de negritude, a recuperação ideológi-
tores. O governo federal, que prometeu diligência e boa vontade, ca da prática da violência e a aposta na criação de elites e estrutu-
respondeu com o descumprimento de acordos447 e com o lança- ras corporativas negras ganharam a organização. O SNCC se re-
mento de uma grande ofensiva policial448. tirou de duas atividades anteriormente fundamentais, o trabalho
de “educação política comunitária” e a fundação de organizações
de “auto ajuda negras” no Deep South para atuar exclusivamente
445  A COFO criou uma tendência partidária composta de brancos e negros, o
Mississippi Freedom Democratic Party (MFDP), e tentou inscrever os delegados em universidades e nas grandes cidades451.
do MFDP como eleitores e candidatos na disputa das eleições primárias do Partido Embora a relevância institucional do SNCC mal tenha
Democrata no estado.
446  Vide análise de: FINLEY, Randy. Crossing the White Line: SNCC in Three
sobrevivido aos anos 1960, essa guinada, segundo Patricia Gurin
Delta Towns, 1963-1967. The Arkansas Historical Quarterly, Fayetteville, v. 65, nº. 2 e Edgar Epps, tornou-se exemplar da ética de “liberação racial”
(Summer, 2006). JEFFRIES, Hasan Kwane. SNCC, Black Power, and the Independent
Political Party Organizing in Alabama, 1964-1966. The Journal of African American
que firmou raízes no debate do Poder Negro. A elevação da au-
History, Washington DC, v. 91, nº. 2 (Spring, 2006). STREET, Joe. Reconstructing toestima, o controle comunitário, a construção da unidade de
Education from the Bottom Up: SNCC’s 1964 Mississippi Summer Project and classe e raça e a resistência armada foram propostas como uma
African American Culture. Journal of American Studies, Cambridge, UK; v. 38, nº.
2, (Aug., 2004). JOSEPH, Peniel E. Dashikis and Democracy: Black Studies, Student nova agenda para os negros dos EUA, destacando-se, conforme
Activism, and the Black Power Movement. The Journal of African American os consultores da Fundação Ford, através da apropriação bem
History, Washington DC, v. 88, nº. 2, (Spring, 2003).
447  Ver a narrativa de eventos apresentada em: KOPKIND, Andrew. Neglect of the particular do princípio de luta anticolonial de Frantz Fanon452.
Left: Allard Lowenstein. Grand Street, New York, v. 5, nº. 3 (Spring, 1986), p. 238-9.
448  O COINTELPRO (Counter Intelligence Program), um programa secreto de 449  Relatório “Cooperative Research on Race Relations with Tuskegee Institute”, de
combate às “ameaças de segurança política interna” estabelecido em 1956 pelo FBI, Irwin Katz. Versão final, de março 1974. Idem, ibidem.
aprofundou em 1964, após autorização presidencial, os trabalhos de desestabilização 450  CARSON, Clayborne. Idem, ibidem, “Introduction”.
e rompimento do Movimento dos Direitos Civis. GOLDSTEIN, Robert Justin. 451  Relatório “Cooperative Research on Race Relations with Tuskegee Institute”,
Political Repression in Modern America: from 1870 to 1976. Urbana and Chicago: de Irwin Katz. Versão final, de março 1974. Idem, ibidem, “Appendix”, capítulo 12.
University of Illinois Press, 2001 [1978], cap 11, especialmente p. 427-460. 452  Idem, ibidem.

212 Wanderson Chaves A questão negra 213


Harold Cruse (1916-2005), ex-membro do Partido pemproletariado”. Dependeria disso o combate à grande “bur-
Comunista dos Estados Unidos, voz intelectual influente nos guesia negra”, considerada o principal inimigo do esforço de “li-
meios de esquerda, então convertido em anticomunista, foi par- beração”, tendo em vista os compromissos que a associariam ao
ticularmente influente no desenvolvimento do que se tornou co- “establishment branco” 455.
nhecido como “analogia colonial”: a ideia de que as guerras de A orientação dessa “vanguarda negra” deveria ser a da
liberação nacional forneciam um modelo de luta contra a “condi- realização de uma “revolução burguesa”, reproduzindo os efeitos
ção colonial” do negro. Cruse era autor de The Crisis of the Negro distributivos e democratizantes que a tomada do controle das
Intellectual, trabalho de 1967 que veio a lhe dar fama e reputação economias nacionais suscitava no “Terceiro Mundo”, segun-
pública definitivas. Um longo manifesto “anti-integracionista”, do Cruse, sempre que a liberação dos países seguia o projeto
o livro era desenvolvido como um libelo crítico às propostas do de descolonização das pequenas burguesias coloniais, presentes
Poder Negro e, mais ainda, contra o que ele chamava de intro- nos movimentos nacionalistas. Cruse via o “nacionalismo racial”
missão da “velha” e “nova” esquerda “brancas” na “questão ne- como o caminho para promover essa vertente de descolonização
gra”. Medida pelas obras de perspectiva concorrentes, publicadas nos EUA e apontava os passos decisivos para que a “revolução
no mesmo ano (Where Do We Go from Here?, de Martin Luther burguesa” negra lograsse sucesso. O primeiro passo seria dado
King Jr., e Black Power: The Politics of Liberation in America, de com a união do lúmpen, do “gueto”, à liderança nacionalista “li-
Stokely Carmichael e Charles V. Hamilton), pode-se dizer que beradora”; o segundo, com a união desse bloco contra a “burgue-
as visões dele sobre as funções da liderança e da cultura negras sia colonizada”, representada pelos grupos “integracionistas”; o
na autodeterminação grupal foram as que deixaram, comparati- terceiro, pelo lançamento das lutas que permitiriam aos “afro-
vamente, o legado mais duradouro453. -americanos”, assim unidos, desenvolver, com a sustentação de
Cruse vinha argumentando, desde 1962, sobre o poten- “apoiadores brancos”, uma “economia negra de livre-mercado”
cial estratégico do “separatismo” e da união de “raça” e “classe”. que os beneficiasse da mesma forma que a “política econômica
No ensaio “Revolutionary Nationalism and the Afro-American”, nacionalista” estaria beneficiando, no acesso a novas fontes de
publicado, naquele ano, na Studies on the Left454, ele fazia o cha- recursos e poder, as nações do “Terceiro Mundo” 456.
mamento para que a “massa negra” e sua “pequena burguesia” A proposta de Harold Cruse trazia consigo uma pers-
se unissem na formação da “vanguarda da luta anticolonial”. O pectiva de recuperação ideológica das metas de “elevação so-
trabalho dessa frente, segundo ele, precisava da adesão do “lum- cial”, formuladas por Booker T. Washington (1856-1915). O

453  Para este ponto de vista: JOHNSON, Cedric. Harold Cruse and Harry Haywood 455  CRUSE, Harold W. Rebellion or Revolution? Minneapolis and London:
Debate Class Struggle and the “Negro Question”, 1962-8. Historical Materialism, Minnesota University Press, 2009 [1968], p. 74-96.
London, v. 24, n. 2, 2016. 456  Para essa análise da aposta de Harold W. Cruse nas chamadas “revoluções
454  A Studies on the Left era uma revista acadêmica de discussão de temas socialistas. burguesas”, ver: HAYWOOD, Harry & HALL, Gwendolyn Midlo. Is the Black
Editada em Nova Iorque de 1959 à 1967, a publicação ajudou a sistematizar o debate Bourgeoisie the Leader of the Black Liberation Movement? Soulbook: The Quarterly
de temas daquilo o que passou a ser chamado de “Nova Esquerda”. Journal of Revolutionary Afroamerica, Berkeley, CA; n. 5, Summer 1966.

214 Wanderson Chaves A questão negra 215


fundador do Instituto Tuskegee havia proposto durante a Era A proposta que Cruse estava dirigindo às organiza-
Progressista (1890-1920) – período da história norte-americana ções do Poder Negro estava assentada na oposição à W.E.B. Du
coincidente com o chamado Renascimento Sulista (1876-1917) Bois e aos escritores Julian Mayfield, Richard Wright e Chester
e seu regime de segregação racial – que objetivos como unidade Himes, lideranças representativas daquilo que ele denominava
racial, autoajuda econômica, disciplina de trabalho, obediência de “esquerda internacionalista negra”. Harold Cruse acusava os
à lei, treinamento vocacional, puritanismo moral, separação do marxistas de dissipação e de insensibilidade por canalizarem o
“branco” e criação de uma esfera pública própria constituíssem a debate do problema das “massas negras” dos EUA para as dis-
agenda fundamental de toda a comunidade negra na resistência putas entre o país e o bloco comunista, sem que essa orientação
ao Jim Crow457. Era o que Cruse estava defendendo, em 1967, tivesse, segundo ele, quaisquer efeitos benéficos concretos nas
para a plateia da U.S. Socialist Scholars Conference, em Newark, condições de vida da população “afro-americana”. Nesse sentido,
New Jersey: que os herdeiros políticos e intelectuais de Booker T. sua posição era de ataque ao que seriam os princípios funda-
Washington assumissem de vez a renovada validade desse antigo mentais desse grupo, prejudiciais às metas “nacionalistas”, entre
programa e voltassem o Poder Negro para aquilo que, segundo eles: os pressupostos analíticos marxistas, particularmente o da
ele, deveria ser sua verdadeira aspiração, isto é, realizar o projeto sobredeterminação das questões de classe; as visões cosmopolitas
nacionalista de poder da “pequena burguesia negra” 458. e internacionais de mobilização política; a condição de “submis-
Tratava-se de um chamamento particular aos “mal- são” dos negros a “brancos de esquerda”; e o modelo de aliança
colmistas” e tinha em vista o próprio SNCC. Segundo Harold estabelecido entre esses negros e “brancos liberais” 460.
Cruse, a busca por autonomia e desenvolvimento econômico, Para Harold Cruse, esses princípios da “esquerda inter-
objetivos que a organização vinha realizando em seu trabalho nacionalista” deveriam ser substituídos pela união dos intelectu-
de base através da associação do trabalhador rural a quadros ais negros em torno da edificação da “identidade” e da “autenti-
de classe média, representava, muito em razão do modo como cidade” afro-americanas; isto é, da consolidação dos negros como
ela o vinha implantando, uma das melhores expressões dessa uma “minoria racial” segundo as metas “nacionalistas”, criando,
retomada ideológica459.
dentro dos EUA, os seus espaços de autonomia política, econô-
457  FERGUSON, Karen J. Caught in “No Man’s Land”: The Negro Cooperative mica e cultural. A legitimidade desse objetivo deveria ser susten-
Demonstration Service and the Ideology of Booker T. Washington, 1900-1918. tada no debate público principalmente através da demonstração,
Agricultural History, Winter Park, FL; v. 72, nº. 1 (Winter, 1998).
458  Segundo o historiador Manning Marable, Cruse destacou nessa conferência que pelos intelectuais negros, de que o “racismo branco” estruturava
apenas os teóricos negros mais “nacionalistas” ainda resistiam em admitir que estavam
as diversas formas de exclusão dos negros. Segundo Cruse, esse
defendendo no seu chamamento ao Poder Negro propostas que buscavam atualizar
o programa de Booker T. Washington. MARABLE, Manning. Race, Reform, and
Rebellion: The Second Reconstruction in Black America, 1946-2006. Jackson:
University of Mississippi Press, 2007, p. 96. 460  GAINES, Kevin. The Cold War and the African American Expatriate
459  CRUSE, Harold W. Op., cit, cap. 13 (“Behind the Black Power Slogan”), Community in Nkrumah’s Ghana. In: SIMPSON, Christopher (ed.). Universities
especialmente p. 201-2, 211. and Empire. Idem, ibidem, p. 135 e ss.

216 Wanderson Chaves A questão negra 217


passo não poderia ser dado sem que houvesse o rompimento e o rios negros (malgrado preferencialmente aos alunos de faculda-
desmascaramento dos marxistas norte-americanos, tanto “bran- des e universidades negras), foi um dos únicos beneficiários da
cos” quanto “negros” 461. antiga estratégia que continuou a receber apoio para realizar as
A Fundação Ford movimentou-se para acompanhar o mesmas atividades já apoiadas na década anterior465.
CORE e o SNCC tão logo se manifestou nelas a afirmação des- Essa primeira dotação, conferida a um comitê gestor
ses objetivos462. Em 1965, a Fundação encerrou seu suporte aos formado com parte da equipe reunida na Conferência sobre o
programas de dessegregação escolar e habitacional, de criação de Negro Norte-Americano466, teve como sua principal atribuição
redes e de fóruns políticos inter-raciais e o programa de registro apoiar ou contratar projetos políticos ou acadêmicos que se mos-
de eleitores, apoiados desde o início dos anos 1950463. A partir trassem promissores no processo de “evolução grupal” dos ne-
de janeiro de 1967, sua política doméstica foi sendo reorienta- gros, esperando-se deles impacto real no combate à pobreza ou
da para programas de “fortalecimento identitário”, econômico e que trouxessem moderação à atuação das organizações do Poder
educacional do negro, o que foi feito com um aporte inicial de Negro. A Fundação Ford, neste seu novo compromisso com a
1 milhão de dólares464. O United Negro College Fund (UNCF), inclusão do negro ao cadinho, transferiu a “questão racial” da es-
organização dedicada a distribuir bolsas a estudantes universitá- fera de “direitos políticos”, em que era anteriormente alojada na
instituição, para a dos programas de “desenvolvimento social” e
461  HALL, Jacquelyn Dowd. The Long Civil Rights Movement and the Political
Uses of the Past. The Journal of American History, Bloomington, IN; v. 91, nº. 4,
de“reforma urbana” 467.
(Mar., 2005), p. 1253-4. Este movimento da Fundação Ford sinalizava a con-
462  FERGUSON, Karen J. Organizing the Ghetto: The Ford Foundation,
vergência com a proposta de “revolução burguesa” de Harold W.
CORE, and White Power in the Black Power Era, 1967-1969. Idem, ibidem, p. 85.
O SNCC e o CORE definiram em 1966 o veto à filiação inter-racial e cláusulas Cruse. Nada estranho, uma vez que ela já vinha desenvolvendo
de restrição política. As mudanças levaram à expulsão dos integrantes brancos e de
vários integrantes negros. Angela Davis, filiada ao SNCC da Califórnia e membro do
Partido Comunista dos EUA, foi expulsa da organização com base nessas novas regras. 465  O UNCF é um dos mais longevos beneficiários da Fundação Ford, sendo apoiado
CARSON, Clayborne. Idem, ibidem, cap. 17. continuamente pela instituição desde 1953, quando recebeu sua primeira dotação,
463  A Fundação Ford dava fim a toda uma linha de suporte que teve sustentação num no valor de 1 milhão de dólares (o equivalente em 2015 à 8,86 milhões de dólares),
dos braços da instituição, o Fund for Republic. No sul dos EUA, o Fund for Republic para utilizar no “desenvolvimento de seus programas”. FORD FOUNDATION. The
atuou principalmente através do Southern Regional Council (SRC), responsável por Annual Report for 1953. Op., cit., p. 92.
encaminhar recursos para uma série de instituições, entre elas o American Friends 466  O Comitê Gestor era composto por Edwin Berry, Oscar Cohen, Kenneth B.
Service Committee, o Carrie Chapman Catt Memorial Fund, a National Urban Clark, Robert Coles e Thomas Pettigrew, que integraram os grupos de trabalho da
League, a NAACP e, já nos últimos anos, para as atividades da COFO, organização Academia Americana de Artes e Ciências. Também integravam o comitê James
que abrigava iniciativas conjuntas de SNCC, CORE e SCLC. Southern Oral History Coleman, da Universidade Johns Hopkins, Stuart Cook, da Universidade do Colorado,
Program Collection (#4007). Interview with Leslie W. Dunbar, December 18, 1978. Otis Dudley Duncan, da Universidade de Michigan, R. A. Gordon, da Universidade
Interview G-0075. Op., cit. da Califórnia em Berkeley, Gerald Somers, da Universidade do Wisconsin, John A.
464  Projeto “Social Science Research on Race and Poverty”, anexo da carta de John Morsell, diretor-executivo assistente da NAACP, e Christopher Jencks, pesquisador
R. Coleman para McGeorge Bundy, de 21 de janeiro de 1967. Op., cit. Esse aporte de do Institute for Policy Studies, de Washington e da John F. Kennedy School of
recursos equivale a 7,1 milhões em dólares de 2015, segundo o índice Purchasing Power Government, da Universidade de Harvard.
Calculator de correção monetária. Disponível em: <https://www.measuringworth. 467  Projeto “Social Science Research on Race and Poverty”, anexo da carta de John
com/uscompare/> Acesso em: 23 ago. 2016. R. Coleman para McGeorge Bundy, de 21 de janeiro de 1967. Op., cit.

218 Wanderson Chaves A questão negra 219


sua própria “analogia colonial” há anos. David E. Bell, ex-diretor desde o início, os mais afinados à tradicional visão do pluralis-
da USAID (1962-1966), vice-presidente executivo da Fundação mo político da Fundação. Este grupo também convergia para
Ford e diretor da sua Divisão Internacional (1967-1980), estava outra questão de interesse da instituição, a oposição à “ética da
entre os defensores da proposta de que se passasse a apoiar os violência” e às lutas antiestatais que estavam se afirmando como
negros como fração “subdesenvolvida” do país com as mesmas hegemônicas no movimento do Poder Negro, na medida em que
políticas aplicadas externamente contra o “subdesenvolvimento”. metas de pesquisa material e de valorização estética da negritude,
Bell teria convencido o presidente da instituição (1967-1979), para a transformação pessoal e cultural do meio negro, ocupavam
McGeorge Bundy, de que a “questão racial” pedia a aplicação do- boa parte da programação dos órgãos “afrocentristas” 470.
méstica dos mesmos programas de “formação nacional” empre- Embora os afrocentristas partilhassem com outros gru-
gados na agenda social de modernização no “Terceiro Mundo”. pos da herança de Malcolm X e da rejeição a Martin Luther
Tratava-se, segundo Bell, de perseguir o mesmo objetivo global King Jr., possuíam um projeto de “liberação política” que des-
do estabelecimento da “paz social”, frisando-se a mesma estraté- tacava especialmente as dimensões individual e psicológi-
gia de base: formação de recursos humanos e arregimentação de ca. Empregavam, neste particular, a terminologia que Harold
lideranças. Esta era a estratégia para estancar os distúrbios nas Cruse construiu valendo-se de Frantz Fanon471. Como disseram
degradadas e convulsionadas comunidades negras das grandes Patricia Gurin e Edgar Epps, no relatório à Fundação Ford, o
cidades dos EUA468. forte apelo à identificação com símbolos culturais africanos e a
A nova programação pretendia orientar os negros a fir- valorização estética do corpo negro haviam se tornado, no início
marem um compromisso ideológico com a noção de “pluralismo dos anos 1970, desde o fim do SNCC e do CORE como organi-
racial”, o princípio de que pode haver um governo ao mesmo tem- zações, a meta política fundamental, senão única, da comunidade
po de elites e representativo da “diversidade racial”. A Fundação estudantil negra norte-americana. Mérito dos “afrocentristas”,
Ford, ao buscar pessoas e organizações do Poder Negro iden- segundo os consultores, que teriam delineado “beneficamente” as
tificadas com essa orientação, mirou principalmente o universo “questões psicológicas da identificação racial como a razão de ser
das artes e as universidades. Os “afrocentristas” 469 mostraram-se, das atividades estudantis” 472. No meio estudantil, as tendências
afrocentristas vinham obtendo forte acolhida especialmente por
468  FERGUSON, Karen J. Organizing the Ghetto: The Ford Foundation, CORE, suas propostas de “revolução burguesa” e de defesa de formas es-
and White Power in the Black Power Era, 1967-1969. Op., cit. p. 85-87. teticamente “africanizadas” de expressão473.
469  Na definição do historiador Gerald Horne, “afrocentristas” eram os grupos
entre as organizações do Poder Negro cujo principal projeto era o da transformação
das mentalidades, objetivo perseguido através da investigação e do cultivo estético, 470  FERGUSON, Karen. Top Down. Idem, ibidem, “Introduction”, passim.
científico e espiritual da “africanidade”. A tendência “afrocentrista” era heterogênea, 471  HORNE, Gerald. “Myth’ and the Making of ‘Malcolm X’. The American
englobando de nacionalistas afro-americanos, no sentido mais estrito, aos pan- Historical Review, Washington DC, v. 98, nº. 2 (Apr., 1993), p. 440 e ss.
africanistas de perspectiva internacionalista. Havia entre eles a avaliação de que o 472  Relatório “Cooperative Research on Race Relations with Tuskegee Institute”,
enfrentamento direto ao Estado era secundário ou deveria ser uma etapa posterior de Irwin Katz. Versão final, de março 1974. Idem, ibidem, “Appendix”, capítulo 1, p. 6.
na agenda do Poder Negro. HORNE, Gerald. Fire This Time. Idem, ibidem, cap. 9. 473  HORNE, Gerald. Fire This Time. Idem, ibidem, cap. 9.

220 Wanderson Chaves A questão negra 221


Havia, entretanto, duas outras motivações para a dis- O desenvolvimento dessa alternativa viria de um esfor-
posição da Fundação Ford em colaborar não apenas com esses ço para estruturar profundamente toda a liderança negra, para
grupos mas com outros segmentos do Poder Negro. A primeira, vinculá-la à “etnicidade”, segundo Daniel Patrick Moynihan e
era o ideal masculino de liderança, que os órgãos “nacionalistas” Nathan Glazer, o princípio mais relevante para a (re)organização
valorizavam em termos semelhantes ao da Doutrina Moynihan, dos “subsistemas” da vida social e moral do país. Segundo os dois,
sinalizando o “resgate do homem negro”. A segunda, era a aposta era pouco razoável crer, acompanhando os “radicais de esquerda”
comum na formação e na política de elites, particularmente em e os “liberais” do pós-guerra, que seria possível haver a incor-
órgãos mais institucionalizados e verticais como a NAACP e a poração de “marginais” e “minoritários” à sociedade agregando
National Urban League. Essas mútuas perspectivas se acomoda- ao mesmo tempo suas características originais de grupo, isto é,
vam aos interesses da Fundação Ford na adaptação da Doutrina que seria possível a sua assimilação. A etnicidade corresponde-
Moynihan tanto no combate à pobreza, quanto na formulação de ria a um laço de identificação primário afetivamente forte em
programas de “formação nacional” 474. sociedades como a norte-americana porque suas comunidades
Para Daniel Patrick Moynihan, o impulso “antigover- constituintes se estabeleceriam e se relacionariam de acordo com
um senso apurado de diferença cultural e de descendência. A
namental” de boa parte das iniciativas do Poder Negro, da “es-
“etnia” forneceria desta forma a dimensão de estabilidade que
querda liberal de classe alta” e dos movimentos pacifistas estava
Moynihan e Glazer, acompanhando um argumento de Daniel
levando a uma abrupta crise geracional e de valores. Essa ameaça
Bell, consideravam fundamental para basear a recuperação do
poderia se alastrar pela sociedade na forma de anomia, ameaçan-
“princípio de autoridade” perdido nos embates políticos dos anos
do de destruição, segundo ele, as fontes morais de autoridade do
1960476. A sugestão era de que a etnicidade rebaixasse ou substi-
Estado e dos governos. A solução viria, conforme defendida por
tuísse o foco sobre as classes sociais, categorias ocupacionais ou
Moynihan, a partir do bloqueio aos projetos da “juventude mili-
grupos geracionais na composição das “políticas distributivas” e
tante radical”. O presidente Richard Nixon assumiu essa propos- do combate ao racismo, fornecendo um dispositivo de mobiliza-
ta, lançando uma ofensiva que pretendia a adesão dos negros e ção, negociação, cooptação e controle considerado mais condi-
de sua liderança (em particular da sua fração mais “moderada” de zente com a segurança do “tecido social” 477.
classe média) ao objetivo de tornar o grupo, fundamentalmente
476  O argumento de Daniel Bell era de que um renovado apelo à “etnicidade” poderia
aqueles mais pobres, parte de uma boa e estável classe trabalha-
bloquear a “rebelião estudantil”. Segundo ele, os movimentos de base étnica tendiam a
dora de “padrão norte-americano” 475. ser adversários dos movimentos de base geracional: a mobilização dos jovens apontaria
para a destruição das “fontes tradicionais de autoridade”, enquanto a mobilização
étnica seria “tradicional” por buscar a institucionalização e os dispositivos formais da
474  FERGUSON, Karen J. Organizing the Ghetto: The Ford Foundation, CORE, política como o foco de suas demandas e de sua organização. Ver: BELL, Daniel.
and White Power in the Black Power Era, 1967-1969. Idem, ibidem. Ethnicity and Social Change. In: GLAZER, Nathan and MOYNIHAN, Daniel P.
475  Moynihan encaminhou essas observações a Richard Nixon em uma série de (ed.). Ethnicity: Theory and Experience. 5th Printing. Cambridge, Massachusetts and
memorandos remetidos entre dezembro de 1968 e janeiro de 1969, obtendo do London, England: Harvard University Press, 1981 [1975].
presidente recém-eleito a sinalização de que concordava com o seu diagnóstico e que 477  GLAZER, Nathan and MOYNIHAN, Daniel P. Introduction. In: GLAZER,
apoiaria a sua proposta. WEISMAN, Steven R (ed.). Idem, ibidem, p. 158-198. Nathan and MOYNIHAN, Daniel P. (ed.). Ethnicity. Op., cit.

222 Wanderson Chaves A questão negra 223


Não se tratava de uma proposta apenas local. Para a Capítulo 5
Fundação Ford, este tipo de programa indicava que a confiança
na modernização e no seu projeto de “pluralismo racial” (alicer-
çado na representação política e na autonomia das elites) vi-
riam a sustentar futuramente as iniciativas globais contra pro-
blemas raciais. Estavam sendo dados os primeiros contornos da
proposta de ordem do multiculturalismo. E ela começava a se A integração do negro na sociedade de
desenhar pelos negros. classes: Florestan Fernandes em uma história
do agendamento intelectual nos anos 1960

Ideias da CEPAL e a Conferência de Copenhague: a


negritude e a convergência norte-americana

Em dezembro de 1960, Florestan Fernandes estava na


Cidade do México apresentando para um grupo de trabalho da
CEPAL sua análise dos pressupostos sociais do “subdesenvolvimen-
to” latino-americano. De encomenda para a conferência, Florestan
divulgava a síntese dos argumentos da sua coletânea de artigos re-
cém-lançada pela Difusão Europeia do Livro, Mudanças sociais no
Brasil. Sua abordagem estava em conformidade com a proposta
“cepalina” 478 porque levantava três requisitos principais para a rea-
lização do “desenvolvimento”: a primazia das atividades de planeja-
mento, privadas e de Estado; as transformações sociais estruturais,
como condição necessária para a modernização e o crescimento
econômico sustentável; e a participação dos cientistas sociais como
sua verdadeira e fundamental vanguarda intelectual479.

478  Como definida em: BLANCO, Alejandro. Ciências Sociais no Cone Sul e a
gênese de uma elite intelectual (1940-1965). Tempo Social: revista de sociologia da
USP, São Paulo, v. 19, n. 1, junho de 2007, p. 104.
479  Comunicação “Padrão e ritmo de desenvolvimento na América Latina”. CEPAL/

224 Wanderson Chaves A questão negra 225


O paper de Florestan Fernandes vinha sustentar outra Em 1964, na defesa de sua titularidade na Universidade
importante diretriz da CEPAL: apenas a produção de soluções de São Paulo, Florestan Fernandes apresentou proposta para su-
locais permitiria à América Latina realmente equiparar-se às perar o que ele diagnosticava como a insuficiência do país em
nações do “mundo desenvolvido”. Tratava-se de criar bases pró- relação aos requisitos de uma “sociedade competitiva de clas-
prias para uma ampla mudança de comportamento, formação de ses”. Para ele, qualquer programa de desenvolvimento nacional
mentalidades e construção de estruturas políticas que viriam as-
precisava dos negros. E, de forma indispensável, da formação de
segurar à variável econômica sua apropriada realização material.
uma liderança esclarecida e da implantação do seu movimento
Preocupava Florestan Fernandes, nesse processo, a disparidade
entre as várias formas e sistemas da vida social, aprofundada pela de massas. A politização da questão racial e a necessidade de sua
rápida transformação da região. Os setores que não estivessem solução para chegar à modernidade capitalista eram, segundo ele,
em sincronia com o projeto de modernização e com suas premis- a maneira pela qual o crescimento poderia assumir sua forma
sas liberais de democratização poderiam tragar, com sua força inclusiva e de massa. Se bem-sucedido, esse processo afirmaria as
estacionária ou mesmo com o seu impulso reacionário, todo esse classes como um princípio organizador da sociedade brasileira,
esforço civilizatório480. abrindo o país, finalmente, às promessas do liberalismo e para
Para barrar essa possibilidade Florestan Fernandes uma trajetória rumo ao socialismo482.
apontava a adoção de duas medidas articuladas: a formação de Essa era a tese conclusiva de A integração do negro na
quadros de elite identificados com o projeto de desenvolvimento
sociedade de classes, lançada em livro naquele mesmo ano de 1964.
e a atuação de movimentos sociais fortes para modificarem o
Era composta por uma proposta de três ações fundamentais:
perfil da vida pública. Florestan Fernandes esperava dessa dupla
reorientação um avançado padrão de representação política e so- a) Formação do bloco negro unificado. Função: mobi-
cial. Este permitiria que a formação do novo “povo”, oriundo da lizar essa população para a política de massas, con-
“desintegração” da “velha ordem” e da “reintegração social” dos solidando-a como um grande “grupo de interesse”.
grupos, se desse com o amadurecimento e o fortalecimento de Os “movimentos negros”, fundando as bases da au-
instituições de ordem democrática481. tonomia moral e da unidade grupal, modelariam esse
processo de constituição da minoria organizada483;
ONU, Cidade do México, 12-21 de dezembro de 1960. In: FFF. Série Vida Acadêmica.
480  Florestan Fernandes aplicava à questão sua reflexão sobre a chamada “demora
cultural”: o diagnóstico de que o “atraso” nacional correspondia à coexistência de 482  Florestan Fernandes sustentou em boa parte dos seus trabalhos dos anos 1960
diferentes “temporalidades históricas”, arcaicas e modernas, configurando o aspecto que a eliminação dos resquícios “pré-capitalistas” era o que poderia abrir espaço para
estrutural da sociedade. PORTELA JR., Aristeu e SOARES, Eliane Veras. Dilema que as duas grandes ideologias da modernidade encontrassem bases de afirmação no
racial, nação e “brasilidade”. In: CEPÊDA, Vera & MAZUCATO, Thiago (orgs.). desenvolvimento brasileiro. PORTELA JR., Aristeu e SOARES, Eliane Veras. Op.,
Florestan Fernandes, 20 anos depois - um exercício de memória. São Carlos: Grupo cit., p. 162-170. MARTINS, José de Souza. Florestan: sociologia e consciência social
de Pesquisa Ideias, Intelectuais e Instituições/UFSCAR, 2015, p. 159-161. no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1998, cap. 1.
481  Comunicação “Padrão e ritmo de desenvolvimento na América Latina”. CEPAL/ 483  FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: (no
ONU, Cidade do México, 12-21 de dezembro de 1960. Op., cit., passim. limiar de uma nova era), v. 2. 5ª edição. São Paulo: Editora Globo, 2008 [1964], p. 121-2.

226 Wanderson Chaves A questão negra 227


b) Eleição das “classes médias negras” como lideranças especializada do Institute of Race Relations (IRR). Para Mason,
políticas e intelectuais. Papel: desenvolver as bases experimentado em estudos globais de problemas raciais e de de-
ideológicas da “solidariedade racial”, reforçando a senvolvimento, a defesa da consolidação grupal negra levantada
identificação grupal e desmobilizando as forças di- pelo brasileiro como sustentáculo de mudanças e de “pacifica-
visivas das diferenças sociais e de classe para assegu- ção social” era fundamental e de interesse imediato porque era
rar, no apoio das “massas”, a unidade de ação484; convergente com noções de mudança da matriz de análise e de
c) Definição da “equiparação racial”, a busca por iguais ação norte-americana. Mason chamava a atenção de Joseph E.
oportunidades e plenas condições de competi- Slater, o vice-diretor da divisão de Assuntos Internacionais da
ção, como projeto prioritário. A plataforma desse Fundação Ford, pouco mais de uma semana após a Conferência,
projeto, em destaque, seria o compromisso com a para a utilidade da posição de Florestan Fernandes, que sinali-
democratização dos benefícios da modernização. zaria, segundo o diretor de estudos do IRR, para o uso das solu-
Estratégia: o combate à exclusão e à intolerância, ções da “questão racial” norte-americana pelo “Terceiro Mundo”
frisando-se as formas oblíquas e de negação do pre- e para a construção de políticas comuns486.
conceito comuns ao Brasil, e a obtenção de apoio a Rupert Emerson e Martin L. Kilson Jr., cientistas po-
medidas de inclusão e representação, frisando-se as líticos do Centro de Estudos Internacionais da Universidade de
de reparação material para vencer as desvantagens Harvard, já haviam chamado a atenção, na Conferência sobre o
comparativas em relação aos “brancos” 485. Negro Norte-Americano, para como a questão racial poderia se
tornar uma oportunidade diplomática para os EUA. Para esses
Esta síntese de programa de Florestan Fernandes con-
dois africanistas e para Talcott Parsons, era hora de tomar o lega-
vergia, exceto apenas as convicções socialistas, para a agenda de-
do recente de políticas de Estado e lutas civis nos EUA contra os
fendida pela Fundação Ford, a maior investidora global na área
problemas raciais como um repositório de medidas práticas a se-
acadêmica de estudos raciais.
Em setembro de 1965, como já frisamos, ele estava em rem incorporadas à agenda externa norte-americana. Tratava-se
Copenhague para apresentar Weight of the Past, sua comunicação de retirar desses “bons” registros na “questão racial” um modelo
à Conferência sobre Raça e Cor. Foi um evento marcante para político “afirmativo” que respondesse finalmente à propaganda
as pretensões dos patrocinadores, a Fundação Ford e o CCF, que “antiamericana” que assolava o país, ancorando as críticas de ra-
buscavam âncoras analíticas que convergissem para as propos- cismo. O modelo político afirmativo deveria servir ao desenvol-
tas norte-americanas. A apresentação de Florestan Fernandes, vimento de uma proposta internacional atraente para as relações
um resumo do programa de A integração do negro na sociedade de bilaterais e que fosse passível de aplicação especialmente pelas
classes, tinha esse mérito, avaliava Philip Mason, da consultoria nações do “Terceiro Mundo” 487.
486  Carta de Philip Mason para Joseph E. Slater, de 22 de setembro de 1965. In:
484  Idem, ibidem, especialmente cap. II. RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Reel nº. 2544. Grant Number 60-447.
485  Idem, ibidem, especialmente cap. III. 487  EMERSON, Rupert and KILSON, Martin. The American Dilemma in a Changing

228 Wanderson Chaves A questão negra 229


Rupert Emerson e Martin L. Kilson estavam em busca nização comunitária e à fundação de redes de assistência, visava,
de uma proposta de integração social que produzisse o seguinte na visão de seu principal líder, Booker T. Washington, formar
efeito: evitasse a aproximação do negro norte-americano e dos uma mentalidade de “crescimento” e “negócios” para realizar a
negros de outras nacionalidades aos regimes africanos não-ali- ascensão social do grupo na sociedade norte-americana; a dos
nhados, impedindo que houvesse, na construção de uma rede de “direitos civis”, sendo seu principal expoente W.E.B. Du Bois,
solidariedade negra internacional, constrangimento às políticas estava associada à confrontação aberta do sistema político e da
doméstica e internacional dos EUA. Emerson e Kilson reconhe- opinião pública para metas de “integração” do negro. A novidade,
ciam no legado do Movimento dos Direitos Civis um recurso segundo Meier, era que o projeto de Washington estava sendo
para influenciar a orientação do pan-africanismo, mantendo-o recuperado sem a finalidade original – disputar o Jim Crow por
sob a tradicional esfera de influência dos negros norte-ameri- dentro. Ele se tornava uma plataforma de reivindicação de “di-
canos. A busca do Movimento dos Direitos Civis pelos meca- reitos sociais” e de luta contra as desigualdades econômicas que
nismos de pressão institucional do sistema político norte-ame- organizações como o SNCC e o CORE estavam assumindo, por
ricano representava – a despeito do emprego da desobediência volta de 1965, como um prolongamento natural de suas iniciati-
civil – um recurso de propaganda e um modelo de atuação a ser vas na área de direitos civis489. Emerson e Kilson, especialistas no
incentivado. Para esses politólogos da Universidade de Harvard, chamado nation building pós-colonial, sustentavam que a agenda
o Movimento dos Direitos Civis demonstrava que o país ofe- externa dos EUA deveria apoiar perspectivas de “direitos sociais”
recia os instrumentos de ação política mais adequados para en- e “civis” desse tipo490.
caminhar disputas por desenvolvimento e direitos mesmo em Florestan Fernandes vinha amadurecendo seus estudos
circunstâncias extremas488. sobre o negro desde a realização da pesquisa sobre as “relações ra-
Emerson e Kilson identificavam-se com a perspectiva do ciais” brasileiras comissionada pela UNESCO. Datava de então,
historiador August Meier (1923-2003), um quadro da NAACP, do início dos anos 1950, a avaliação de que a liderança e as frações
autor do influente Negro Thought in America, 1880-1915: Racial negras mais intelectualizadas falhavam ao concentrar o esforço de
Ideologies in the Age of Booker T. Washington (1963), que destacava suas organizações na luta contra o “preconceito de cor”. Segundo
o valor da “nova” concepção de “justiça social” elaborada pelas Florestan Fernandes, essa perspectiva abordava o problema de um
organizações do Movimento dos Direitos Civis. Segundo Meier, ponto de vista moral: o do “desmascaramento” e da “conscienti-
duas agendas do meio social negro norte-americano, adversárias zação social”. Para ele, tendo em vista a intensa modernização da
desde o fim do século XIX, se fundiram a partir da segunda me- sociedade brasileira, seria mais correto que a crítica se concen-
tade dos anos 1950: a da “elevação negra”, associada à auto-orga- trasse na “desigualdade econômica”, comparativamente, um fenô-

World: The Rise of Africa and the Negro American. Daedalus, Cambridge, MA; v. 94, nº. 489  MEIER, August A. Negro Thought in America, 1880-1915: Racial Ideologies in
4, The Negro American (Fall, 1965), p. 1055-6; 1081, nota 2; 1084, nota 27. the Age of Booker T. Washington. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1964, passim.
488  Idem, ibidem, p. 1078 e ss. 490  EMERSON, Rupert and KILSON, Martin. Op., cit.

230 Wanderson Chaves A questão negra 231


meno de natureza mais “estrutural”. Para Florestan, a tarefa dos até certo ponto pessimista, na qual via-se o futuro do país es-
movimentos sociais deveria ser a da mobilização dos negros para pelhar o da cidade de São Paulo: uma modernizada sociedade
a integração na “ordem competitiva”; isto é, no regime de classes de classes, com uma poderosa “vanguarda econômica”, mas com
da economia de mercado que estaria se estabelecendo para, então, “negros” e “mestiços” menos habilitados para se integrar aos be-
buscar seus benefícios e alterá-la a seu favor491. Nesse sentido, a nefícios do esforço de desenvolvimento. A avaliação do grupo
sustentação de Florestan Fernandes à posição de Roger Bastide no da Universidade de São Paulo494 baseava-se em uma compara-
Projeto UNESCO: a de exortar os negros brasileiros a buscarem, ção histórica entre EUA e Brasil, na qual entendia-se que o ex-
como os negros norte-americanos, foco e organização necessárias -escravo liberto e o negro livre norte-americano desfrutaram de
para essa tarefa específica de “integração” 492. suporte e formação na ética burguesa, estando mais preparados
Nas conclusões relativas à pesquisa sobre São Paulo e para as exigências de uma sociedade capitalista que os negros
o Brasil Meridional que Roger Bastide e Florestan Fernandes brasileiros. No Brasil, segundo eles, essa falta não era suprida
coordenaram para o projeto da UNESCO493, havia uma visão por um substituto à altura, contrariando aquilo que, nos meios
acadêmicos e militantes do início dos anos 1950, eram as expec-
491  CAMPOS, Antônia Junqueira Malta. Interfaces entre Sociologia e processo tativas relativas à “democracia racial” 495: ao invés da abstenção a
social: A integração do negro na sociedade de classes e a pesquisa Unesco em São
Paulo. Campinas, 2014. 384 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Instituto de tensões e atitudes de preconceito e a livre competição do negro
Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, especialmente cap. 3 e “Conclusões”. por oportunidades sociais, havia práticas arraigadas, geralmente
492  BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan. Relações raciais entre brancos
e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre as origens, as manifestações e os de expressão paternalista e sentimental, determinando a submis-
efeitos do preconceito de cor no município de São Paulo. São Paulo: Anhembi, 1955, são dos “não brancos” na esfera das relações sociais e a limitada
especialmente p. 150-151 (cap. “Manifestações larvais do preconceito de cor) e cap.
“Efeito do preconceito de cor”. Bastide deu a primeira estrutura e a redação final a presença dos negros, por despreparo ou exclusão, em ocupações
estes textos alimentados pelos esboços de Florestan Fernandes. formais do mercado de trabalho496.
493  O “Projeto UNESCO de Relações Raciais” estava dividido em várias pesquisas
regionais, entre os quais contavam-se também grupos responsáveis por Rio de Janeiro,
Bahia, Pernambuco, Amazônia e Brasil Central. Alfred Métraux era o diretor-geral 494  Os trabalhos em São Paulo foram divididos entre a USP e a Escola Livre
da pesquisa e o antropólogo brasileiro Ruy Coelho era seu principal assistente no de Sociologia e Política (ELSP). Vinculados à ELSP estavam o sociólogo Oracy
país. Eram coordenadores de equipes regionais: o sociólogo Luiz Aguiar da Costa Nogueira, a psicóloga Aniela M. Guinsberg e a então socióloga Virgínia Leone
Pinto, para o Rio de Janeiro; o antropólogo Charles Wagley e o médico-antropólogo Bicudo. Na USP, a equipe era formada por Lucila Herrmann, principal assistente de
Thales de Azevedo, para a Bahia; o psiquiatra René Ribeiro, para Pernambuco; e os Bastide, por Renato Jardim Moreira, principal assistente de Florestan, pela psicóloga
antropólogos Darcy Ribeiro, e Eduardo Galvão, do Museu Nacional, para o trabalho Carolina Martuscelli Bori e pelos estudantes Fernando Henrique Cardoso, Octávio
de etnologia indígena inter-regional. O projeto contou ainda com os serviços de Ianni, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Marialice Mencarini Foracchi, Ruth Cardoso
assessoria de Gilberto Freyre, do antropólogo Egon Schaden, do historiador Gonçalves e José de Souza Martins. MAIO, Marcos Chor. Op., cit., passim.
Fernandes e dos sociólogos Octávio Costa Eduardo e Mário Wagner Vieira da Cunha. 495  Arthur Ramos, em 1941, Roger Bastide, em 1944, e Abdias Nascimento, em
A motivação original do Projeto UNESCO é bem conhecida: verificar o caráter 1948, inauguraram, segundo o sociólogo Antônio Sérgio Guimarães, o uso da expressão
harmonioso e integrativo das formas nacionais de convívio e integração social. MAIO, “democracia racial” que depois se alastrou. BARBOSA, Maria José Somerlate. “As aves
Marcos Chor. A História do Projeto UNESCO: estudos raciais e ciências sociais no que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá?”: as abordagens raciais no Brasil e nos EUA.
Brasil. Rio de Janeiro, 1997. 346 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) - IUPERJ, Afro-Hispanic Review, New York, v. 29, n. 2, Fall 2010, p. 239-242.
Universidade Cândido Mendes. 496  BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan. Op., cit., passim, especialmente

232 Wanderson Chaves A questão negra 233


Segundo a socióloga Antônia Malta Campos, as úl- gração começou a ser anunciada em 1958, no prefácio à segunda
timas consequências analíticas da proposta de investigação da edição revista do relatório de pesquisa da UNESCO, o Relações
UNESCO em São Paulo, redigida por Florestan Fernandes a raciais entre brancos e negros em São Paulo, em que Florestan des-
pedido de Roger Bastide, só foram obtidas com a redação de A tacou a principal função ideológica das organizações negras: es-
integração do negro na sociedade de classes, quando o autor traba- tabelecer, através do apelo à negritude, a concentração de recur-
lhou todo o material produzido pelo Projeto no Brasil, revendo, sos humanos e materiais. A negritude, segundo ele, um recurso
em especial, a questão dos movimentos sociais negros e suas for- “etnocêntrico” de afirmação política e moral, era necessária. Ela
mas de atuação, o tema que mais lhe coube investigar na divisão beneficiaria o grupo na tarefa de integrar-se ao momento de “de-
de tarefas que havia sido estabelecida com Bastide497. senvolvimento das forças produtivas”, impedindo que a ascensão
Florestan Fernandes pretendia finalizar em A integração social fosse diluída individualmente500.
uma análise e uma proposta de ação que respondesse à avaliação Em A integração, Florestan Fernandes defendeu o pon-
prevalecente entre os seus informantes de pesquisa, a maioria, to de vista de autores como Roger Bastide: deveriam ser comba-
ex-filiados da Associação dos Negros Brasileiros (1945-1948), tidas as vertentes da negritude que não levassem à “moderniza-
intelectuais e profissionais liberais de São Paulo498. Estes con- ção”, isto é, à integração à economia, à cidadania e à reeducação
sideravam o “preconceito de cor” um problema fundamental da política de toda a população501. Bastide disse em 1961, na revista
sua condição porque ele seria a manifestação, expressa em perse- de cultura e política da África francófona Présence Africaine que o
guição policial, pauperismo, miscigenação e “embranquecimen- “mulatismo” era a principal proposta de negritude a ser combati-
to” social, de uma política de Estado de “desaparecimento” dos da no Brasil. Gilberto Freyre era a referência óbvia dessa verten-
negros. Florestan argumentava, em avaliação diferente, que o te, mas a crítica de Bastide estava sendo dirigida particularmente
“preconceito de cor” não tinha a dimensão de um projeto “con- à “negrificação”, noção formulada por Alberto Guerreiro Ramos,
sociólogo do Ministério da Educação e Cultura e do seu Instituto
temporâneo”. Ele era uma expressão do descompasso entre a sua
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que Bastide considerava
origem, em comportamentos “tradicionais”, e uma ordem social
ser uma variante freyriana. Bastide admitia haver, na proposta do
que se modernizava499. A proposta de ação incluída no A inte-
isebiano, como na de Freyre, uma valorização da cultura e dos
atributos estéticos do corpo negro. Dizia que Guerreiro Ramos
o cap. “Manifestações larvais do preconceito de cor”.
497  CAMPOS, Antônia Junqueira Malta. Op., cit., “Conclusões”. pretendia, positivamente, que o negro produzisse um renovado
498  Idem, ibidem, p. 46-60. Durante sua curta existência, a Associação dos Negros
Brasileiros (ANB) agregou uma nova geração de ativistas e parte da liderança que 500  FERNANDES, Florestan. Prefácio à 2ª edição. In: BASTIDE, Roger &
esteve ativa em duas organizações fundamentais dos anos 1930: a Frente Negra FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre
Brasileira e o Clarim d’Alvorada. Parte desses quadros da ANB foi responsável pela aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade
fundação da Associação Cultural do Negro (1954-1976). Florestan Fernandes era seu paulistana. 4ª edição. São Paulo: Global Editora, 2008 [1958].
sócio e um de seus “representantes culturais”. Cf.: SILVA, Mário Augusto Medeiros 501  Florestan frisava, nesses termos, que o papel político da negritude era
da. Fazer, história, fazer sentido: Associação Cultural do Negro (1954-1964). Lua comprometer negros e não negros com as mudanças raciais e com a modernização
Nova, São Paulo, n. 85, 2012. social do país. FERNANDES, Florestan. A integração do negro à sociedade de
499  CAMPOS, Antônia Junqueira Malta. Op., cit., cap. 2-3. classes, v.2. Idem, ibidem, especialmente cap. 3.

234 Wanderson Chaves A questão negra 235


nacionalismo brasileiro que tivesse o próprio negro por centro, fundamental do combate à pobreza de massas, avaliação sinto-
mas que seu projeto pecava em conferir importância à “misci- maticamente saudada por Vicente de Paulo Barretto, o editor da
genação”. Guerreiro Ramos acreditava, segundo Bastide, que a Cadernos Brasileiros, a revista do CCF no Brasil504. Mais impor-
mestiçagem com os negros produzia os verdadeiros e “legítimos” tante, seria também saudada pela Fundação Ford com notas elo-
atributos da nacionalidade, posição que seria problemática: pre-
giosas dois meses antes da Conferência de Copenhague, em uma
judicaria o combate à discriminação, ao legitimar a interação
social e sexual “inter-racial” como uma forma suficiente de com- amostra de que havia reconhecimento e interesse na proposta
portamento não preconceituoso, além de levar à diluição das ba- de reforma racial e intervenção nos movimentos sociais negros
ses familiares, morais e sociais da comunidade negra, limitando apresentada pelo sociólogo brasileiro505. Interesse e reconheci-
a amplitude e organização que ele, Roger Bastide, considerava mento que abriram oportunidades de intercâmbio, divulgação e
necessárias aos negros para pressionar o país a integrá-los502. publicação dos trabalhos de Florestan Fernandes.
A perspectiva de Bastide sobre o combate ao “mulatis-
mo” estava incorporada às visões de Florestan Fernandes apre-
sentadas na Conferência sobre Raça e Cor em 1965, em especial,
na sua admoestação aos Movimentos Negros para que se afastas-
sem do princípio de valor e da lógica classificatória do “gradiente
de cores” aderindo e politizando a endogamia social negra. Além
disso, a exposição de Florestan destacava a meta de se atingir
uma negritude mitigada de violência e de “arcaísmo”. Esta posi-
ção contrastava com a guinada dada na época pelas organizações
negras, principalmente nos EUA, em direção à luta armada ou
para a recuperação do “tradicional” africano. Florestan defen-
dia, como prioridade da atuação dessas organizações, a defesa
de iguais condições de competição e status e o máximo acesso
republicado com alterações como “A persistência do passado” em 1972, na coletânea de
possível, dentro das “condições históricas” da sociedade de seu artigos de Florestan O negro no mundo dos brancos.
tempo, aos benefícios materiais da “inclusão” 503. 504  Carta de Vicente Barretto para Florestan Fernandes. Rio de Janeiro, 21 de
setembro de 1965. In: FFF. Série Vida Acadêmica. Correspondências. Vicente de
Essa proposta de modernização de Florestan destacava Paulo Barreto (1939- ) foi editor da revista de 1963 a 1970. Depois, tornou-se jurista,
que os EUA, após o fim do Jim Crow, seriam uma referência professor, gestor universitário e administrador público, mantendo também atividade
editorial em jornais e editoras, como na Editora da UnB (1978-1984) e no Jornal do
Brasil (1983-1985). CANCELLI, Elizabeth. O Ilari e a guerra cultural: a construção
502  BASTIDE, Roger. Variations on Negritude. Presence Africaine: Cultural de agendas intelectuais na América Latina. ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30,
Review of the Negro World, English Edition, New York, v. 8, nº. 36, 1961, p. 80 e ss. janeiro-junho de 2015, p. 207.
503  FERNANDES, Florestan. The Weight of the Past. Daedalus; Cambridge, MA; 505  Vide notícias da correspondência: cartas de 21 e 23 de julho de 1965, de Charles
v. 96, nº. 2, Color and Race, (Spring, 1967), p. 560 e ss. O texto da Conferência foi Wagley para Florestan Fernandes. In: FFF. Série Vida Acadêmica. Correspondências.

236 Wanderson Chaves A questão negra 237


Intercâmbio EUA-América Latina: os estudos latino- A maioria dos professores brasileiros convidados seguiu
americanos e a trajetória de The Negro in Brazilian Society para os EUA por volta de 1964. Seu fluxo no programa seguiu até
1968, sendo depois praticamente paralisado508. A Universidade
A Fundação Ford decidiu destinar recursos do seu pro- de Columbia concentrou parte dessa cota. Foram para lá, para
grama interamericano de intercâmbio universitário, administrado permanência de seis meses a um ano – a uma remuneração mé-
pelo SSRC, para apoiar a permanência de Florestan Fernandes dia, como a de Florestan Fernandes, de 8.300 dólares509 por se-
por um semestre letivo (set./1965 – jan./1966) na Universidade mestre –, Cândido Mendes, Afrânio Coutinho, Gilberto Freyre,
de Columbia, em Nova Iorque506. Octavio Ianni, Anísio Teixeira, o geógrafo Hilgard O’Reilly
O esforço se integrava ao investimento nas atividades Sternberg e o historiador José Antônio Gonçalves de Melo510.
do Comitê de Estudos Latino-Americanos, administrado pelo A maioria foi integrada às atividades do Instituto de Estudos
SSRC e pelo American Council of Learned Societies (ACLS). Latino-Americanos da Universidade de Columbia, que, em con-
A iniciativa, datada de 1959, visava, em uma era pós-Revolução trapartida, enviou ao Brasil o sociólogo Amitai Etzioni, o geó-
Cubana, produzir, dentro e fora dos EUA, conhecimento espe- grafo Kempton Webb e o próprio diretor do Instituto, Charles
cializado e de alto nível sobre a América Latina. O foco era o Wagley. O regime de permuta com os norte-americanos também
intercâmbio continental acadêmico e a redefinição de temáticas trouxe para o Brasil os historiadores John W.F. Dulles e Anthony
Leeds, da Universidade do Texas em Austin, E. Bradford Burns,
de pesquisa e de debate, encaminhadas através de uma agenda
da UCLA, e Thomas E. Skidmore, da Universidade de Harvard511.
extensa que incluía eventos, traduções, publicações, fomento
As verbas para professores visitantes começaram a ficar
científico e criação de novas instituições. Foram estabelecidas
mais significativas a partir de 1962, quando a Fundação Ford,
bolsas internacionais para vários níveis de formação universitá-
não mais em consórcio com a Carnegie Foundation, passou a
ria, inclusive para professores visitantes, que eram administradas,
administrar sozinha o programa de intercâmbio. Os investi-
juntamente com os demais recursos de projeto, pelo consórcio
integrado pelos centros especializados em América Latina das 508  Com a reorganização de prioridades e valores processada em 1969, os recursos
de intercâmbio administrados pelo programa foram destinados prioritariamente ao
universidades de Columbia, Harvard, Texas, Berkeley, UCLA e pagamento de bolsas de pós-graduação para estudantes dos EUA. Memorando do
Minnesota. Era delas e para elas que os professores intercam- diretor-executivo do SSRC, Bryce Wood, de 24 de setembro de 1970. In. RAC. Social
Science Research Council Records. Acession 1. Box 102.
bistas convergiam, geralmente para lecionarem e, às vezes, para 509  O equivalente a 62,3 mil dólares em valores de 2015, de acordo com o índice
realizar atividades combinadas de pesquisa507. Purchasing Power Calculator de correção monetária. Disponível em: <http://www.
measuringworth.com/uscompare> Acesso em: 08 jun. 2016.
510  Minutas do 8º encontro do Comitê de Administração do Programa de
506  Cartas de 21 e 23 de julho de 1965, de Charles Wagley para Florestan Fernandes. Intercâmbio Universitário EUA – América Latina, de 4 de junho de 1965. In: RAC.
Op., cit. Ford Foundation Records. Grant Files. Reel Number 2629. Grant Number 62-359.
507  Dados abrangentes desse investimento da Fundação Ford nos estudos latino- 511  Report on the United States - Latin American Faculty Interchange Program,
americanos e nos pesquisadores brasilianistas podem ser encontrados em: MICELI, Sérgio. July 1962 - December 1967. March 19, 1968. In: RAC. Social Science Research
A desilução americana. Brasília e São Paulo: CNPQ / IDESP & Editora Sumaré, 1990. Council Records. Acession 2. Box 171.

238 Wanderson Chaves A questão negra 239


mentos estavam integrados à proposta maior da Fundação Ford, três conclaves iniciados em 1961 na Universidade de Stanford514.
que era elevar a quantidade e o nível dos profissionais e espe- Seu objetivo era incentivar propostas de estudos e pesquisas na
cialistas norte-americanos. Até 1969, foram desembolsados 100 comunidade intelectual sobre a emergência de “novas classes so-
mil dólares, por ano, para bolsas de pós-doutorado para norte- ciais” e novas “estruturas de poder”. Pretendia-se construir uma
-americanos e canadenses; 50 mil para bolsas de intercâmbio, rede acadêmica especializada em temas como nacionalismo, mo-
entre norte-americanos e latino-americanos; 25 mil para a re- dernização, instabilidade política, conflitos sociais e formação
alização de conferências; e 300 mil para bolsas de pós-gradua- de elites. A Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais
ção no exterior, destinadas a estudantes dos EUA (cerca de 200 (FLACSO) e o CLAPCS, organizações da UNESCO, eram
beneficiários) 512. Foram 19 professores brasileiros, entre 49 lati- consideradas, desde os preparativos para a primeira conferência
no-americanos, contemplados com bolsas. Para a Universidade na Universidade de Stanford, a vanguarda desse esforço institu-
da California, em Berkeley, seguiram Luís Aguiar da Costa cional. Ao lado delas, estariam o Instituto Torcuato di Tella, na
Pinto e Paulo Ernesto Tolle; para a UCLA, David Carneiro, Argentina, o Centro de Estudios del Desarrollo (CENDES), na
Affonso Romano de Sant’Anna, Hilgard O’Reilly Sternberg e Venezuela, e a Fundação Getúlio Vargas, no Brasil, consideradas
Orlando Valverde; para a Universidade de Harvard, por 18 me- a melhor expressão da fixação local dessa agenda de trabalho,
ses, Hélio Jaguaribe; para a Universidade do Texas, em Austin, com a qual se planejava estabelecer as bases de uma rede regional
José Honório Rodrigues, Raul Mello Branco e Sugiyama Iutaka, de ciências sociais515.
além de Palmyra Monteiro, por 18 meses513. Os três encontros realizados geraram livros. Manuel
Florestan Fernandes era um importante interlocutor da Diégues Júnior, diretor do CLAPCS, e Bryce Wood, diretor-exe-
Ford nesse projeto, tendo participado, também em 1965, de um cutivo do SSRC, organizaram o material da conferência realizada
evento que foi a etapa mais importante de discussão do SSRC no Brasil516. Charles Wagley conseguiu da Columbia University
sobre a forma de construir uma nova agenda de pesquisa e trei- Press a publicação das comunicações da segunda conferência,
namento. A conferência “As Ciências Sociais na América Latina” “Social Science Research on Latin America”, lançada com esse
foi realizada sob os auspícios do Conselho Latino-Americano de título em 1964517. Wagley assessorava a Columbia University Press
Pesquisa em Ciências Sociais (CLAPCS), entre os dias 29 e 31
514  Os dois primeiros conclaves tiveram a coordenação principal do historiador
de março, no Rio de Janeiro. Este era o último de uma série de dessa mesma universidade, John J. Johnson, que realizou o trabalho de organização
das conferências como parte das suas atividades para aquele que era então o mais
importante comitê temático do SSRC: o Comitê de Política Comparada.
512  O equivalente, respectivamente, a 614 mil, 307 mil, 153 mil e 1,84 milhão de 515  Vide: RAC. Social Science Research Council Records. Acession 1. Box 101,
dólares, em valores de 2015, corrigidos segundo seus valores nominais em 1962, ano de especialmente as minutas do 1º ao 4º encontro do Comitê Conjunto SSRC/ACLS
início das concessões, de acordo com o índice Purchasing Power Calculator de correção de Estudos Latino-Americanos, de 21 de novembro de 1959 à 8 de fevereiro de 1961.
monetária. Para os dados relativos aos desembolsos: memorando do diretor-executivo 516  A edição em português do livro foi publicada pela DIFEL em 1965. A edição em
do SSRC, Bryce Wood, de 24 de setembro de 1970. Op., cit. inglês, Social Science in Latin America, saiu pela Columbia University Press em 1967.
513  Report on the United States - Latin American Faculty Interchange Program, 517  O volume foi organizado pelo próprio Wagley. O primeiro livro da série foi
July 1962 - December 1967. March 19, 1968. Op., cit. organizado por John J. Johnson e publicado como Continuity and Change in Latin

240 Wanderson Chaves A questão negra 241


com pareceres e sugestões de publicações específicas sobre o Brasil e estabelecido íntima relação de trabalho e amizade especialmente
e estava propondo a tradução de A integração do negro na sociedade com intelectuais paulistas, entre eles Sérgio Buarque de Holanda,
de classes518. Wagley defendeu, particularmente, o potencial compa- Antônio Cândido e Florestan Fernandes (os quais considerava
rativo desse trabalho para a leitura da situação racial norte-ame- “mentores”) 521, quando foi convidado pela Fundação Ford, em
ricana. Disse que haveria “grande interesse nos Estudos Negros”, 1958, a emitir parecer sobre a implantação da nova divisão regio-
sendo seu parecer que o livro, editado para um formato médio nal de América Latina e Caribe da instituição522. Morse, além de
de 150 páginas, se tornaria referência de leitura para acadêmicos consultor, ocupou o cargo de assessor de programas (1973-1974)
norte-americanos e para a bibliografia de cursos universitários519. do escritório da Fundação no Brasil e era prestigiado por Formação
O historiador e crítico literário, diretor da Cátedra de histórica de São Paulo: de comunidade à metrópole, livro incluído na
Estudos Latino-Americanos da Universidade de Yale, Richard série comemorativa do IV Centenário da cidade, em 1954, que se
M. Morse, vinha sugerindo a Florestan Fernandes algo nesses tornou um clássico instantâneo, ao ser relançado na coleção Corpo
termos: que se publicasse, pela Yale, inclusive com seus serviços e Alma do Brasil, em 1970, dirigida por Fernando Henrique
de tradução e edição, um volume entre 325 e 400 páginas, mas Cardoso para a editora DIFEL523. Morse vinha desenvolvendo
contendo material relativo a A integração do negro na sociedade uma reputação de influente divulgador da literatura e do pensa-
de classes e a Relações raciais entre brancos e negros em São Paulo. mento latino-americano nos EUA, particularmente após deixar
Segundo Morse, interessava a Yale University Press um trabalho a Universidade de Columbia (1949-1961) para dirigir a Cátedra
de síntese com profundidade e alcance teórico sobre as relações de Estudos Latino-Americanos de Yale (1962-1972), quando
raciais na América Latina, útil à comunidade internacional das passou a compor, como conselheiro ou consultor, os quadros de
ciências sociais em conclusões, dados e generalizações520. instituições fundamentais como a seção norte-americana do PEN
Richard M. Morse (1922-2001) era um consultor da International, o Inter-American Committee (IAC) e os seus su-
Fundação Ford bem familiarizado com o mundo intelectual e aca- cedâneos, a Inter-American Foundation for the Arts (IAFA) e o
dêmico brasileiro. Morse vinha regularmente ao país desde 1941. Center for Inter-American Relations (CIAR) e a The Association
Ele havia defendido na Universidade de Columbia, sob a orien- of American University Presses (AAUP) 524.
tação de Frank Tannenbaum, dissertação de mestrado (1947) e
521  [CPDOC-FGV]. Uma entrevista com Richard Morse. Estudos Históricos, Rio
tese de doutorado (1952) sobre a história da cidade de São Paulo de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. Entrevista concedida a Helena Maria Bousquet Bomeny.
522  Vide: MORSE, Richard M. Report nº. 006830. December, 1958. In: RAC. Ford
America, em 1964, pela Stanford University Press. Foundation Records. Reports.
518  Memorando do editor-executivo da Columbia University Press, Bernard Gronert, 523  CASTRO, Ana Cláudia Veiga de. Leituras e leitores de Richard Morse:
para o comitê do Programa de Traduções Latino-Americanas da The Association of a trajetória de um livro sobre a formação da metrópole paulista. Anais do Museu
American University Presses, de 29 de novembro de 1965. In: RMMG. Box 5. Paulista, São Paulo, v. 21, n. 2, jul-dez de 2013.
519  Carta de Charles Wagley para Florestan Fernandes, de 22 de maio de 1969. In: 524  COHN, Deborah. Op., cit., p. 145-150, 211-212. A base de Richard Morse no
FFF. Série Vida Acadêmica. Correspondências. Brasil era fundamentalmente São Paulo e a de Charles Wagley, também regularmente
520  Carta de Richard Morse para Florestan Fernandes, de 18 de julho de 1965. In: consultado pela Fundação Ford sobre os programas para a América Latina e o Brasil,
FFF. Série Vida Acadêmica. Correspondências. era o Rio de Janeiro. Wagley também aportou no país pela primeira vez no início dos

242 Wanderson Chaves A questão negra 243


Morse foi por toda a década de 1960 um dos seis da Fundação Ford, por cujas editoras de universidades consor-
membros do comitê gestor do Programa Latino-americano de ciadas fluía a maioria das publicações. O patrocínio da Fundação
Traduções da AAUP, uma organização federada composta, por Rockefeller ao projeto da AAUP, renovado por mais quatro anos
volta de 1965, de cerca de 67 editoras universitárias norte-ame- em janeiro de 1966, com o aporte de 240 mil dólares529, veio
ricanas 525. Esse programa de traduções havia sido estabelecido acompanhado de nova série de propostas de tradução de auto-
em 1959 com recursos da Fundação Rockefeller, inicialmente res brasileiros, muitas das quais já haviam sido aprovadas, mas
centrado em estudos clássicos e de literatura, privilegiadamente estavam estacionadas, e até outros que haviam recebido parece-
didáticos sobre o México. Após 1962, incorporou também traba- res negativos. Mesmo a Texas University Press, que se dedicou
lhos de ciências sociais sobre as demais regiões do continente526. principalmente à literatura de ficção e publicou o maior número
O Programa contava com um orçamento de 225 mil dólares527 e de títulos530, abriu espaço para temas contemporâneos, acom-
já havia realizado 32 traduções até agosto de 1965, tendo neste panhando a tendência das demais editoras universitárias. Celso
ano ainda outras 44 em andamento528. Furtado, por exemplo, teve três livros rapidamente traduzidos e
Este trabalho de traduções estava todo articulado ao do publicados. O último foi Diagnosis of Brazilian Crisis, todos eles
programa interamericano de intercâmbio EUA-América Latina pela California University Press531.
A lista também incluía títulos de Caio Prado Júnior,
anos 1940. Era casado com a brasileira Cecília Roxo, membro de importante família
Sérgio Buarque de Holanda, Roberto Simonsen, Hélio
carioca, e construiu fortes vínculos pessoais e institucionais no país através do seu Jaguaribe, Afrânio Coutinho, Vitor Nunes Leal, Cândido
trabalho para órgãos de governo do Brasil e dos EUA, entre eles a USAID e o Centro
Mendes e do historiador José Honório Rodrigues532. A apro-
Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), do Ministério da Educação e Cultura.
Wagley era considerado bastante próximo de Anísio Teixeira e de Darcy Ribeiro.
PACE, Richard. O legado de Charles Wagley: uma introdução. Boletim do Museu 529  Valor concedido em 1966 e equivalente a 1,37 milhão em dólares de 2015,
Paraense Emilio Goeldi: Ciências Humanas, Belém, v. 9, n. 3, set-dez de 2014. segundo o índice Purchasing Power Calculator de correção monetária.
525  O comitê gestor era presidido por William Sloane, da Rutgers University Press 530  Entre os livros publicados pela Texas University Press, destacavam-se títulos de
e contava ainda com os seguintes membros: Harvey L. Johnson, da Universidade de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Ariano Suassuna, Adonias
Houston, Stanley J, Stein, da Universidade Princeton, Angel Palerm, da União Pan- Filho, Gustavo Corção e Antônio Olavo Pereira. AAUP. Latin American Translation
Americana e Dana J. Pratt e Carol Franz, respectivamente, secretário-executivo e Program. Projects Approved, Oct. 7, 1960 - Feb. 26, 1965. 30 de março de 1965. In:
diretora-assistente da AAUP. Foram feitas substituições em outubro de 1965: saíram RMMP. Box 5.
Angel Palerm e Stanley J, Stein para a entrada de Albert Hirschman, da Universidade 531  Em 1963 foi publicado The Economic Growth of Brazil, tradução de Formação
de Harvard e Kalman Silvert, da Universidade Dartmouth. August Frugé, da University econômica do Brasil, de 1959. Em 1964, Development and Underdevelopment, tradução
of California Press substituiu William Sloane na direção do comitê. Carta de Dana J. de Desenvolvimento e subdesenvolvimento, de 1961. Diagnosis of Brazilian Crisis, de
Pratt para o comitê do Programa de Traduções Latino-Americanas. Nova Iorque, 21 1965, era um livro baseado na tradução de partes de Dialética do desenvolvimento, de
de outubro de 1965. In: RMMG. Box 5. 1964, que incorporava outros textos de Celso Furtado. Carta de August Frugé para
526  Carta de William Sloane para Richard M. Morse. New Brunswick, New Jersey, o comitê do Programa de Traduções Latino-Americanas. Berkeley, California, 25 de
2 de março de 1965. In: RMMG. Box 5. janeiro de 1965. In: RMMP. Box 5.
527  Valor concedido em 1959 e equivalente a 1,43 milhão em dólares de 2015, 532  Em 1964, a University of California Press publicou A History of Ideias in Brazil,
segundo o índice Purchasing Power Calculator de correção monetária. de João Cruz Costa e em 1965, Africa and Brazil, de José Honório Rodrigues. Em
528  AAUP. A Proposal to the Rockefeller Foundation for Renewal of the Latin 1966, saiu pela Stanford University Press History of Brazil, 1889-1954, de José Maria
American Translation Program . Nova Iorque, 4 de fevereiro de 1966. In: RMMP. Box 5. Bello. Em 1967, pela University of California Press, saiu The Colonial Background

244 Wanderson Chaves A questão negra 245


vaçao da edição de A integração do negro na sociedade de classes mil páginas, o livro teve sua versão em língua inglesa editada
saiu no início de 1966, em contrato firmado entre a Columbia em um único volume de 500 páginas. O livro foi inteiramente
University Press e a Random House, em acordo com Florestan traduzido antes da realização dos cortes. Houve reorganização
Fernandes e seu editor no Brasil, Thomaz Aquino de Queiroz533. de capítulos e sequências inteiras, e foi privilegiado o conteú-
Para viabilizar a publicação, foram utilizados recursos pro- do do volume que continha a proposta de Florestan Fernandes
videnciados por Richard M. Morse na AAUP e por Charles sobre reformas econômicas, políticas raciais e organização do
Wagley, via verbas da Fundação Ford que ele administrava para Movimento Negro para o combate às “desigualdades raciais” 535.
o Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade O leitor foi apresentado a um ensaio sociológico de interpre-
de Columbia. Os custos totais foram estimados em 4 mil dó- tação dos problemas de “relações raciais” no Brasil, mas que se
lares534. Publicado no Brasil em dois volumes, e com mais de remetia pertinentemente a outros países536.
A equipe de tradutores foi formada por Jacqueline
of Modern Brazil, tradução de Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio
Quayle, Ariane Brunel e Arthur Rothwell e teve o antropólogo
Prado Júnior. Em 1968, pela Harvard University Press, foi lançada a tradução de físico Phyllis Eveleth como revisor técnico. Segundo os tradu-
Desenvolvimento econômico e desenvolvimento político (1962), de Hélio Jaguaribe. Em tores, houve muita dificuldade em verter para o inglês a prosó-
1969, pela Columbia University Press, foi publicado An Introduction to Literature in
Brazil, de Afrânio Coutinho e pela University of Texas Press, The Brazilians, de José dia, o estilo e as estratégias de construção narrativas de Florestan
Honório Rodrigues. Bandeirantes and Pioneers, tradução de Bandeirantes e Pioneiros: Fernandes537. A equipe também enfrentou dificuldades com
paralelos entre duas culturas (1955), de Cláudio Vianna Moog, que a The University of questões terminológicas e semânticas, particularmente em rela-
Virginia Press lançou em 1964, não integrava esse programa de traduções. Os demais
autores citados não tiveram traduções aprovadas. Para a lista completa das traduções ção aos usos da palavra “negro”. Eram divergências que trouxe-
propostas, ver: memorando de William B. Harvey, conselheiro do comitê de traduções ram à tona uma certa questão política de fundo. Os tradutores
latino-americanas, para os diretores de editoras da AAUP. Nova Iorque, 3 de maio de
apontaram como impreciso o uso intercambiável de “preto” e
1963. In: RMMP. Box 5.
533  Thomaz Aquino de Queiroz era amigo pessoal de Florestan Fernandes e “negro” para designar, ao mesmo tempo, o escravo, características
importante nome editorial: era editor-chefe da Companhia Editora Nacional e de “raça” e a própria cor. Essa flexão, considerada por eles impos-
proprietário da Editora Dominus, a responsável pela primeira edição comercial do
livro, de 1965. Para as informações do contrato de tradução: carta do diretor-executivo
sível de reproduzir na tradução, também estaria em desacordo
da Columbia University Press, Bernard Gronert, para Thomaz Aquino de Queiroz,
de 7 de fevereiro de 1966 e carta do editor de publicações universitárias da Random 535  Conforme relato dos editores da Random House, Peter Dodge e Theodore Caris:
House, Theodore Caris, para Florestan Fernandes, de 6 de abril de 1966. In: FFF. Série carta de Theodore Caris para Florestan Fernandes, de 2 de abril de 1968. In: FFF. Série
Vida Acadêmica. Correspondências. Vida Acadêmica. Correspondências.
534  Valores concedidos em 1965 e equivalentes a 23,5 mil em dólares de 2015, 536  Avaliação feita por Antônio Sérgio Guimarães para a mais recente edição do
segundo o índice Purchasing Power Calculator de correção monetária. A AAUP ficou livro. GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Prefácio. In: FERNANDES, Florestan.
responsável pelo pagamento dos custos de tradução. Os recursos provenientes da A integração do negro na sociedade de classes: (o legado da “raça branca”), v. 1. 5ª
Fundação Ford pagaram a compra de direitos autorais e despesas comerciais de edição. edição. São Paulo: Editora Globo, 2008 [1964], p. 9 e ss.
Cf.: FERNANDES, Florestan. The Negro in Brazilian Society. New York: Columbia 537  As observações dos tradutores iam no sentido da avaliação que o próprio
University Press, 1969, p. viii. Para os valores da tradução, ver: memorando do editor- Florestan fazia do seu estilo de escrita. Segundo ele, seu texto tendia a sacrificar a boa
executivo da Columbia University Press, Bernard Gronert, para o comitê do Programa fluência e o prazer do texto, superados em nome de objetivos técnicos e analíticos.
de Traduções Latino-Americanas da The Association of American University Presses, PEIRANO, Mariza G. S. A antropologia esquecida de Florestan Fernandes: os
de 29 de novembro de 1965. Op., cit. Tupinambá. Anuário Antropológico/82, Brasília, 1984, p. 17-19.

246 Wanderson Chaves A questão negra 247


com a “Nota Explicativa” de Florestan em Integração do negro na O livro, finalmente publicado em setembro de 1969542
sociedade de classes, em que o sociólogo explicava como empregava com o título proposto por Charles Wagley, The Negro in Brazilian
essas palavras. Segundo ele, os termos “preto” e “mulato” eram Society543, devido a tantas alterações deu origem praticamente à
empregados quando utilizados na classificação feita pelos “bran- criação de um novo texto544. Laureado com o Anisfield-Wolf Book
cos”; e “negro”, quando empregada como uma autodesignação538. Awards de 1970545, a tradução despertou na crítica especializada
Essa orientação não foi seguida, especialmente nas passagens de reações positivas e negativas, mas desencontradas.
investigação histórica do primeiro volume, em que “preto”, “ne- As críticas unânimes eram em relação ao projeto edito-
gro” e “mulato” foram misturados a termos como “homens de cor”
rial: descuidado. Havia ainda objeções a omissões e repetições e
ou “população de cor”, “mestiços” e “raça negra” sem designação
até à escolha do título, tido por enganoso, por levantar um fal-
precisa de como os vocábulos eram utilizados, se como termos
so objeto. A antropóloga indigenista Evelyn Ina Montgomery,
analíticos, nativos ou de época539.
que resenhou The Negro in Brazilian Society para a The American
Charles Wagley, como supervisor da equipe, atendeu da
Sociological Review, dizia não ter sido convencida de que o esta-
seguinte forma à solicitação de normatização dos termos colo-
do e a cidade de São Paulo, focos da investigação, fossem, como
cada pelos tradutores: que “negro” e “preto” fossem traduzidos
como negro, eventualmente, como colored, mas, nunca, como bla- argumentava Florestan Fernandes, representativos do que houve
ck. Demais termos raciais ou de cor empregados por Florestan de tradicional e do que havia de moderno no Brasil546. O trabalho
foram praticamente eliminados da tradução. Em certa medida, não permitiria generalização, uma vez que a cidade de São Paulo,
essa redução se acomodava à proposta trazida pelo livro de aban- em especial, era para ela a menos típica das cidades brasileiras547.
dono do “gradiente de cores” como referência e princípio de no-
conquistando adesão por força da atuação dos órgãos “afrocentristas” do nacionalismo
meação. A normatização estabelecida por Wagley acompanhava cultural negro norte-americano, como opções de tradução para os termos de cor.
a proposta feita pelos próprios tradutores540 e indicava uma es- 542  O lançamento foi feito em capa dura. A edição em brochura saiu na primavera de
colha na batalha que estava na ordem do dia: black era o termo 1971 pela série didática “Books for Young Readers” da editora Atheneum Press. Carta
de Bernard Gronert para Florestan Fernandes, de 10 de dezembro de 1970. In: FFF.
empregado pelas organizações do emergente Poder Negro, mal- Série Vida Acadêmica. Correspondências.
colmistas de orientação; negro era a autodesignação de expressão 543  Cf.: carta de Jacqueline Quayle para Florestan Fernandes de 21 de março de
1966. Op. cit.
no Movimento dos Direitos Civis541. 544  Florestan Fernandes reescreveu grande número de trechos do texto a pedido de
editores e tradutores. Vide: carta de Florestan Fernandes para Theodore Caris, de 20
538  FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: (o de março de 1968. In: FFF. Série Vida Acadêmica. Correspondências.
legado da “raça branca”), v. 1. Op., cit., p. 25-26. 545  Carta do Comitê Julgador do Anisfield-Wolf Award in Race Relations, assinada
539  Carta de Jacqueline Quayle para Florestan Fernandes de 21 de março de 1966 e por Ashley Montagu, para a Columbia University Press, de 16 de fevereiro de 1970.
carta de Theodore Caris para Florestan Fernandes de 6 de abril de 1966. In: FFF. Série In: FFF. Série Vida Acadêmica. Correspondências.
Vida Acadêmica. Correspondências. 546  Florestan sustentava desde a realização do Projeto UNESCO que o estado, e
540  Carta de Charles Wagley para Florestan Fernandes, de 22 de janeiro de 1968. In: especialmente, a cidade de São Paulo eram um microcosmo do Brasil: representavam
FFF. Série Vida Acadêmica. Correspondências. a melhor síntese dos padrões passados e principalmente do que poderiam vir a ser os
541  De acordo com: LINCOLN, C. Eric. Color and Group Identity in the United novos padrões nacionais de “relações raciais”. FERNANDES, Florestan. O negro no
States. Op., cit. Em nenhum momento, Wagley, Florestan ou tradutores cogitaram mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972, “Introdução”.
utilizar termos de origem, como afro-american e african-american, que vinham 547  A autora era pesquisadora da tribo Yanomami e de sociedades camponesas da

248 Wanderson Chaves A questão negra 249


Outro ponto convergente da recepção era a verificação de seus próprios méritos na matéria. O “problema negro” poderia
de que o trabalho de Florestan lançava por terra o argumento passar a ser abordado sob a ótica da luta e da organização contra
da “excepcionalidade racial brasileira”, acontecimento saudado o racismo e pela possibilidade de ascensão social, como seria da
pela crítica, que entendia nisso a introdução do país, finalmente, tradição norte-americana. O “modelo” brasileiro deixava de ser
no âmbito do chamado “racismo comparado”. Para o resenhista inspirador, já que não democrático, como, segundo eles, era o
da Annals of the American Academy of Political and Social Science, que Florestan Fernandes comprovava551. A avaliação de analistas
o demógrafo William Petersen, Florestan Fernandes desenvol- europeus, como fizera o sociólogo britânico Fernando Henriques
veu um “olhar norte-americano” sobre seu próprio país quando na Chatam House, um tradicional fórum de debate de política
considerava negros e mulatos, para fins analíticos, parte de um internacional, e o cientista político norueguês Egil Fossum, no
mesmo grupo social. Esse “olhar exterior” para a questão ra- órgão de pesquisa de conflitos globais de Oslo, o Peace Research
cial brasileira, segundo ele, teve como resultado a constatação Institute, era sintética nesse sentido: como as várias outras regi-
de que esses grupos de cor, no Brasil e nos EUA, partilhavam ões do mundo em modernização, o Brasil aguadava que o “atraso
mais formas de exclusão do que vantagens relativas, avaliação político” na questão racial fosse finalmente superado552.
que demolia, nessa comparação, as imagens de “paraíso racial” Robert E. Conrad e Thomas E. Skidmore, dois histo-
associadas ao país548. Essa conclusão teria consequências inter- riadores com pesquisas mais especializadas sobre o Brasil553, fize-
nacionais e impacto imediato nas visões sobre os EUA, como ram coro a esses últimos destaques, mas centraram-se em ponto
defenderam J. Parke Renshaw549 e Roy A. Glasgow550, respecti- diferente: as dimensões da classe e da cor na construção do pre-
vamente, na Hispanic American Historical Review e na Political conceito e da discriminação racial no país. Thomas E. Skidmore
Science Quarterly. O livro, segundo eles, alterava as perspectivas sublinhou na Luso-Brazilian Review, revista que ele próprio edi-
sobre o Brasil e sobre os EUA, abrindo, para este último, melho- tava, que Florestan Fernandes trazia evidências de que o “pre-
res condições de comparação e favorecendo o reconhecimento conceito de cor”, informado também pelo preconceito de classe,

América do Sul. MONTGOMERY, Evelyn Ina. The Negro in Brazilian Society, by 551  RENSHAW, J. Park. The Negro in Brazilian Society, by Florestan Fernandes.
Florestan Fernandes. American Sociological Review, Washington DC, v. 35, n.6 Hispanic American Historical Review; Durham, NC; v. 50, n. 2 (May, 1970).
(Dec., 1970). Review. Review. GLASGOW, Roy A. The Negro in Brazilian Society, by Florestan Fernandes.
548  PETERSEN, William. The Negro in Brazilian Society, by Florestan Fernandes. Political Science Quarterly, New York, v. 87, n. 2 ( Jun., 1972). Review.
Annals of the American Academy of Political and Social Science; Philadelphia, PA; 552  HENRIQUES, Fernando. The Negro in Brazilian Society, by Florestan
v. 382 (Nov., 1970). Review. Fernandes. International Affairs, London, v. 46, n. 4 (Oct., 1970). Review. FOSSUM,
549  Renshaw era sociólogo e pastor metodista. Havia tido recente experiência Egil. The Negro in Brazilian Society, by Florestan Fernandes. Acta Sociologica, Oslo,
profissional e missionária no Brasil. Antes de vir para o Brasil, teve um discreto v. 14, n. 4 (1971). Review.
histórico de ativismo em direitos civis no sul dos EUA. 553  Em 1967, Thomas E. Skidmore publicou o clássico Politics in Brazil (1930-64):
550  Glasgow era historiador especialista no mundo português. À época, seu foco An Experiment in Democracy e em 1969 a tradução para o português, Brasil: De Getúlio
eram as relações atlânticas e a política externa brasileira para a África. Tornou-se a Castello  (1930-64). Robert E. Conrad se tornou um especialista na escravidão e
célebre em 1978 pela publicação de Queen Nzingha and the Mbundo Resistence to the na história do processo de abolição da escravatura no Brasil. Ele lançou em 1972 o
Portuguese Slave Trade. primeiro livro dessa série temática: The Destruction of Brazilian Slavery, 1850-1888.

250 Wanderson Chaves A questão negra 251


geralmente engendrava a discriminação como variável inde- vorável do Brasil: as mudanças na condição social dos negros,
pendente. Esse dado trazido em The Negro in Brazilian Society, produzidas pelo “desenvolvimento”, poderiam ser mais rápidas e
segundo Skidmore, era pouco explorado. Florestan Fernandes, amplas no Brasil do que na África do Sul e nos EUA, porque o
ao unificar a análise na categoria “negro”, teria falhado em es- valor da “tolerância racial”, que a própria modernização ajudaria
clarecer como a aceitação dos “mulatos” como um grupo social a promover, já seria mais cultivada entre os “brancos” brasileiros
distinto impedia o reconhecimento da discriminação, especial- que entre os “brancos” desses outros países555. O argumento so-
mente da racial. Skidmore avançava neste ponto o argumento de bre essa vantagem relativa do Brasil aparecia explicitamente no
sua resenha de 1971 sobre Neither Black nor White: Slavery and prefácio de Florestan à edição norte-americana556.
Race Relations in Brazil and United States, do historiador Carl N. A avaliação geral era de que The Negro in Brazilian
Degler. Para Skidmore, Degler demonstrava que EUA e Brasil Society representava uma contribuição ao estudo do “racismo
tiveram diferentes sistemas escravistas porque articularam a es- comparado”. Mesmo quando a análise internacional considera-
cravidão e a cor de maneiras distintas, dando origem a dois ti- va certas questões – o sociólogo ganês Anani Dzidzienyo frisou,
pos de sociedade: a birracial norte-americana, de discriminação e por exemplo, a ausência de reflexão sobre o peso da “etnicidade”
na construção da cor e da classe no Brasil557 – como insuficiente
conflito racial abertos; e a multirracial brasileira, de dissimulação
ou inadequadamente abordadas. Sintomático, portanto, que um
da discriminação, amortecida na assimilação criteriosa de seg-
tema fundamental, a problemática do “desenvolvimento”, tenha
mentos de raça e classe intermediários, como o dos “mulatos” 554.
chamado pouca atenção ou fosse vista, como argumentou o an-
Robert E. Conrad enfatizou algo diferente: The Negro in
tropólogo Norman E. Whitten Jr. na American Anthropologist,
Brazilian Society demonstrava que a discriminação racial estava
como o aspecto menos elaborado do livro558.
enraizada na sociedade brasileira como estava na norte-america-
No ano de lançamento de The Negro in Brazilian Society,
na, mas que persistia nesse fenômeno um substrato original de
Florestan vinha aprofundando justamente a reflexão sobre como a
classe, fundamental e muito pronunciado no Brasil. Para Conrad,
este era o ponto alto do trabalho de Florestan Fernandes. O ponto 555  CONRAD, Robert E. The Negro in Brazilian Society, by Florestan Fernandes.
baixo era a abordagem inconsistente da ideologia da “democracia The Americas, New York, v. 28, n. 3 ( Jan., 1972). Review. CONRAD, Robert E.
Neither Black nor White: Slavery and Race Relations in Brazil and United States,
racial”, também central para o argumento do livro. Segundo o by Carl N. Degler. Hispanic American Historical Review; Durham, NC; v. 52, n. 3
historiador, Florestan apontava a falta de materialidade da “de- (Aug., 1972). Review.
556  FERNANDES, Florestan. Preface to U.S. Edition. In: FERNANDES,
mocracia racial”, revelando o preconceito e a exclusão profunda Florestan. The Negro in Brazilian Society. Op., cit., p. xvii-xviii.
do negro, mas defendendo, ao mesmo tempo, o prognóstico fa- 557  DZIDZIENYO, Anani. The Negro in Brazilian Society, by Florestan Fernandes.
Race: The Journal of the Institute of Race Relations, London, v. 11, n. 4 (April 1970).
Review. Dzidzienyo (1941- ) residia em Salvador em 1970. Brasilianista interessado
554  SKIDMORE, Thomas E. The Negro in Brazilian Society, by Florestan na questão racial, ele é desde 1973 professor da Universidade de Brown nos EUA.
Fernandes. Luso-Brazilian Review; Madison, WI; v. 7, n. 1 (Summer, 1970). Review. 558  WHITTEN JR., Norman E. The Negro in Brazilian Society, by Florestan Fernandes.
SKIDMORE, Thomas E. Neither Black nor White: Slavery and Race Relations in American Anthropologist: New Series; Arlington, VA; v. 72, n. 6 (Dec., 1970). Review.
Brazil and United States, by Carl N. Degler. The Wisconsin Magazine of History; Whitten Jr. era professor da Universidade de Illinois. Raça e etnia, particularmente na
Madison, WI; v. 55, n. 1 (Autumn, 1971). Review. América do Sul, eram desde então as suas principais temáticas de pesquisa.

252 Wanderson Chaves A questão negra 253


condição social dos negros e o “atraso” e a dependência do capita- O Projeto Marginalidade
lismo brasileiro estavam relacionados, reflexões de seu livro publica-
do no Brasil em 1968, Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Para A Fundação Ford vinha organizando, em 1965, através
Florestan, o estabelecimento da democracia formal na sociedade de seus consultores para a América Latina, entre os quais Kalman
de classes (a chamada “ordem competitiva”) e a independência do H. Silvert561, um projeto de pesquisa sobre padrões regionais de
país no sistema internacional viriam com a atualização do país ao integração social. Pretendia-se realizar, na cidade e no campo,
padrão de civilização da “modernidade econômica”. A “integração” investigações sobre formas de mobilização popular e de partici-
do negro, possivelmente o evento mais radical de rompimento com pação política dos pobres, para verificar o que elas, e quais entre
o “passado” brasileiro, era, para ele, a forma mais eficaz de encami-
elas, tinham algo a oferecer aos esforços de desenvolvimento. A
nhamento dessa mudança559. A exclusão do negro representaria um
proposta, inspirada nos trabalhos sobre a superação das diferen-
fenômeno estrutural maior do desenvolvimento brasileiro e deveria
ças regionais na Itália realizados por Alessandro Pizzorno, um
ser enfrentado, segundo Florestan Fernandes, preparando os negros
para o papel, que no fim do século XIX foi do “fazendeiro paulista economista da Universidade de Milão, esperava engendrar uma
de café” e nas primeiras décadas do século XX foi do “imigrante nova compreensão da chamada “marginalidade”. Era intenção
europeu”, de nova vanguarda modernizadora nacional. A “proleta- descobrir se a marginalidade era uma expressão de ruptura, de
rização” formal dos negros seria o evento com impacto de massa rejeição ou uma forma de integração particular às “sociedades ex-
capaz de direcionar o momento de massificação dos processos de cludentes”. O projeto esperava amparar uma futura proposta de
modernização econômica do país nesse sentido de “evolução” civili- ação monitorada para voltar a “mobilização dos despossuídos”,
zatória, possibilidade de transformação na qual os negros deveriam fruto da urbanização acelerada, para os “benefícios e responsabi-
investir, organizando-se para politizar a luta contra a condição de lidades” da modernidade562.
“marginalidade” do grupo. Essa última avaliação de Florestan, feita O Projeto Marginalidade, originalmente chamado
em 1969560, já vinha sendo desenvolvida desde pelo menos 1965, “Research on Grass-Roots Leadership for Development”, era
quando foi colocada em teste em um malogrado projeto de investi- uma proposta da área de América Latina e Caribe da Divisão
gação regional da Fundação Ford: o Projeto Marginalidade. de Assuntos Internacionais da Fundação Ford. A concepção do
Projeto coube fundamentalmente às seguintes pessoas: Joseph

561  Silvert era cientista político. Foi membro-fundador e primeiro presidente (1966-
559  Acompanhamos, neste ponto, a leitura de Sociedade de classes e subdesenvolvimento 1968) da Latin American Studies Association (LASA), professor do Dartmouth College
de: OLIVEIRA, Giuliano Contento de, e VAZQUEZ, Daniel Arias. Florestan (1962-1966) e da New York University (1967-1976) e de 1967 até seu falecimento em
Fernandes e o capitalismo dependente: elementos para a interpretação do Brasil. 1976, foi consultor em ciências sociais (1967-1970, 1972) e assessor de programas (1971,
Oikos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, 2010. 1973-1975) da divisão de América Latina e Caribe da Fundação Ford.
560  Vide a comunicação de Florestan Fernandes “Além da pobreza: o negro e o 562  Vide: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº.
mulato no Brasil”, apresentada no seminário “Minorias raciais na América Latina 0726. Section 4, especialmente a correspondência de 1965. Agradeço a Júlio Cattai
e nos EUA” em 5 de dezembro de 1969, na cidade de Corning, em Nova Iorque. por ceder gentilmente a documentação de microfilme do RAC sobre o Projeto
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. Idem, ibidem, cap. 3. Marginalidade citada neste capítulo.

254 Wanderson Chaves A questão negra 255


E. Slater (vice-diretor da Divisão), Harry E. Wilhelm (chefe de princípio, ficaria em Santiago com o Centro para el Desarrollo
área), John F. Hilliard (representante para o Caribe) e Stacey H. Económico y Social de América Latina (DESAL), dirigido por
Widdicombe (diretor do escritório do Brasil, 1965-1967); aos Roger Vekemans. Florestan Fernandes passou a fazer parte do
consultores externos Alessandro Pizzorno (Instituto Lombardo comitê assessor, ao lado de Vekemans, Pizzorno, do embaixa-
Studi Economici e Sociali, de Milão) e Calvin J. Nichols dor norte-americano na Colômbia, Reynold Carlson568, e do di-
(CENIS/MIT); e ao intelectual do Partido Democrata Cristão retor do Centro de Estudios del Desarrollo (CENDES), José
do Chile, o jesuíta belga Roger Vekemans, indicado articulador Silva Michelena569. Era de Florestan a indicação de Fernando
regional da pesquisa por sugestão de John S. Nagel, o represen- Henrique Cardoso, para dirigir a pesquisa a partir do Chile570.
tante da Fundação para a Argentina e o Chile563. Até agosto de 1967, a programação esteve paralisada
Florestan Fernandes era o preferido para a direção da por conflitos sobre a conceituação e a definição das estratégias de
pesquisa . Ele também desejava a posição, mas recusou o posto
564
combate à marginalidade. Fernando Henrique Cardoso disse, na
ainda em janeiro de 1966. Argumentou, entre as razões princi- proposta à Fundação Ford, inclusive, preferir o termo “margina-
pais, não poder se licenciar da Universidade de São Paulo pelo lização”. Segundo ele, o “marginal” era produto, na região latino-
tempo de duração do projeto, já que Mário Guimarães Ferri, vi- -americana, de processos bastante dinâmicos de “exploração do
ce-reitor e diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras trabalho”, estruturados a partir da mixagem de formas capitalis-
(FFCL), lhe negava autorização para afastamento565. Florestan tas e pré-capitalistas de produção. Seria típico dessas “sociedades
Fernandes vinha viajando ao exterior com a expedição de um não modernas”, por isso, que a condição do “marginalizado” não
habeas corpus, pois estava sendo investigado em uma auditoria da fosse de estabilidade, muito embora ainda fosse “tradicional” o
Justiça Militar do Estado de São Paulo566. Alessandro Pizzorno modo de vida da maioria desses grupos. Por “marginalizados”
sugeriu a exclusão do Brasil do plano inicial, por razões de segu- designavam-se os setores pertencentes à chamada “sociedade
rança, e o planejamento definiria trabalhos apenas na Argentina,
Chile, Guatemala e República Dominicana567. A coordenação, a foram consultados pela Fundação Ford sobre o veto ao Brasil e manifestaram-se
contrariamente. Eles defenderam ser possível contornar o monitoramento dos órgãos
de segurança à pesquisa com adaptações de forma e justificativa. Vide: memorando
563  Idem, ibidem. de Reynold Carlson para John F. Hilliard de 21 de junho de 1965 e memorando de
564  Carta de Alessandro Pizzorno para Harry Wilhelm. Milão, 6 de janeiro de 1966. Peter D. Bell para John F. Hilliard de 7 de julho de 1965. In: RAC. Ford Foundation
In: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726. Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726.
565  Carta de Florestan Fernandes para Roger Vekemans. São Paulo, 16 de janeiro de 568  Carlson era economista. Foi professor da Universidade de Vanderbilt, primeiro
1966. In: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726. diretor do escritório da Fundação Ford no Brasil (1962-1964), vice-diretor de
566  Florestan estava arrolado em um Inquérito Policial Militar (IPM) instaurado no programas da Fundação para a América Latina (1965), ocupando até 1975 outras
segundo semestre de 1964 contra ele e João Cruz Costa, Mário Schenberg e Fernando posições dentro da instituição, como de representante ou assessor de programas em
Henrique Cardoso, todos professores da FFCL. Ele também havia recebido uma ordem países como Peru, Chile e Argentina.
de prisão preventiva havia pouco tempo, em setembro de 1965, revogada instantes antes 569  Memorando de Harry Wilhelm para McGeorge Bundy, de 3 de novembro de
de embarcar para a Europa, a caminho da Conferência sobre Raça e Cor. 1966. In: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726.
567  Carta de Alessandro Pizorno para Harry Wilhelm. Cambridge, Massachusetts, 570  Carta de Reynold Carlson para Roger Vekemans. Rio de Janeiro, 12 de março de
4 de junho de 1965. Manuel Diégues Júnior e Luis Aguiar da Costa Pinto 1966. In: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726.

256 Wanderson Chaves A questão negra 257


global” na condição de mão de obra disponível, que buscavam dirigidas a empresários, jovens e sindicalistas. Seu objetivo era
a plena integração à dimensão moderna dessa sociedade, mas centrar sobre eles, uma vez que os considerava os pontos ótimos
que permaneciam à margem dela por não dispor dos meios de de desarticulação das dinâmicas de marginalização, o futuro es-
inserção adequados. Nesse esforço por integrar-se, os “margina- forço de formação de lideranças previsto nas metas do Projeto
lizados” não formariam, nem buscariam ser, segundo Fernando Marginalidade573. Essa proposta contrastava com a da DESAL.
Henrique Cardoso, uma classe ou segmento social distinto e iso- Articulada à doutrina social da Igreja Católica, prevista no princí-
lado, e nisto diferenciavam-se de outras populações. Ao contrá- pio de “Promoção Popular” da encíclica Mater et Magistra (1961),
rio dos “arcaicos” e dos “tradicionais”, os “marginais” pretendiam do Papa João XXIII, a DESAL pretendia, como órgão oficioso
chegar ao “sistema”, mas representariam, com o seu fracasso, a de assessoramento à presidência de Eduardo Frei, envolver as
expressão modelar das dimensões de “atraso” que ainda impe- “bases populares” nas metas de combate à pobreza do governo do
diam a universalização das transformações da modernização571. Chile574. Eram diferenças de abordagem. De um lado, formação de
A proposta de Fernando Henrique Cardoso era in- elites e crença nas razões “infraestruturais”; de outro, formação de
vestigar as características de exclusão e inserção e a capacidade lideranças populares e crença nas razões “superestruturais”.
de resposta dos países para alterar o processo de modernização, A Fundação Ford buscou um novo diretor de estudos
imprimindo novos padrões de integração social e de comporta- para contornar a divergência, mas a chegada do sociólogo ar-
mento. A escravidão, segundo ele, constituía todo um legado de gentino José Nun, indicação de Kalman H. Silvert575, aprofun-
grandes problemas, aliás, o vértice deles, sendo o principal indu- dou ainda mais os desentendimentos, consolidando a saída da
tor de origem da marginalização, uma vez que impingia à massa DESAL e do ILPES do Projeto Marginalidade. Segundo José
de negros, indígenas e descendentes uma condição persistente de Nun, Roger Vekemans e Fernando Henrique Cardoso animaram
defasagem e de baixa competitividade572. os conflitos que antecederam o rompimento. Vekemans (1921-
Fernando Henrique Cardoso era diretor da divisão 2007), liderança importante entre os responsáveis por trans-
de estudos do Instituto Latino-Americano de Planejamento formar a Democracia Cristã em um movimento de massas no
Econômico e Social (ILPES), órgão da CEPAL, e propunha
que se voltasse o foco para as chamadas “vanguardas de desen-
573  Vide atas da 5ª e 6ª reuniões da 2ª sessão do Conselho Assessor do Projeto
volvimento”, realizando-se na cidade e no campo investigações Marginalidade na América Latina. Santiago, 27-8 de abril de 1966. In: RAC. Ford
Foundation Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726.
571  Para Fernando Henrique Cardoso, os “tradicionais” e “arcaicos” eram 574  Memorando de Barclay M. Hudson para Reynold Carlson, de 21 de abril de 1966,
caracterizados por não estarem perseguindo, como os “marginais”, uma nova condição anexos. In: RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726.
de integração. Entre os tradicionais estariam, por exemplo, certos tipos de comunidades 575  Nun (1936- ) era professor visitante e doutorando da Universidade da California
rurais isoladas e entre os arcaicos as tribos indígenas. Marginality in Latin America. em Berkeley, estando sob a orientação do sociólogo David E. Apter. Silvert buscava
Notes for a Research Project Submitted by Fernando Henrique Cardoso at Santiago firmar uma parceria entre o projeto “The Politics of Modernization”, de Apter, que
Meeting of Advisory Board, 21 de abril de 1966. In: RAC. Ford Foundation Records. havia resultado no livro homônimo, de 1965, e o Projeto Marginalidade. Memorando
Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726. para arquivamento de Reynold Carlson, de 23 de agosto de 1966. In: RAC. Ford
572  Idem, ibidem. Foundation Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726.

258 Wanderson Chaves A questão negra 259


Chile576, era influente entre o clero católico latino-americano no de recursos humanos e a necessidade de medidas de integração
combate à Teologia da Libertação577 e sustentava no Projeto um social abrangentes e velozes; isto é, um programa radical de re-
antimarxismo analítico estrito que ia de encontro a posições do formas580. Para Fernando Henrique Cardoso, os “marginais” eram
ILPES e do conselho assessor. A DESAL abandonou o con- parte dos segmentos flutuantes componentes do “exército de re-
sórcio após meses de negociações com a Fundação Ford e com serva”. Esses segmentos desfrutariam de graus particulares de
participantes da pesquisa e de tentativas de sabotagem à dire- inserção, cabendo ao esforço de planejamento dos países ajustar
ção de Nun. Vekemans teria concluído que a DESAL não seria o regime de “exploração”, de uso dos recursos de trabalho, para
determinante na execução e definição dos sentidos do projeto, criar formas mais profundas de “integração” 581. À política (fora
porque não teria como rebaixar as pretensões de coliderança da da área econômica) caberia a fundação de uma “cultura cívica”
parte do ILPES, e que mesmo em momentânea aliança tática, que superasse o “atraso” civilizatório frente às formas avançadas
não programática, com Fernando Henrique Cardoso, não con- de capitalismo que ainda resistia nas demais esferas da vida582.
seguiria impedir que Nun prejudicasse a sua atuação578. Com o Diante da decisão articulada entre DESAL e ILPES
apoio de Vekemans, Fernando Henrique tentava retomar a dire- de abandonarem juntas o Projeto Marginalidade, ficou frustrada
ção dos trabalhos solicitando a adesão dos demais pesquisadores a pretensão da Fundação Ford de manter a variedade de insti-
a suas perspectivas weberianas de leitura de Karl Marx propostas tuições e orientações de Vekemans, Fernando Henrique e Nun
para o Projeto. Segundo Nun, esta foi a maneira dele interditar sob o guarda-chuva da pesquisa. Mesmo assim, o propósito do
a definição de “marginalidade” que ele, Nun, estava propondo579. projeto foi mantido, agora, no Instituto Torcuato di Tella, em
Para Nun, o “marginal” existente na América Latina ti- Buenos Aires. Em agosto de 1967, José Nun solicitou a destitui-
nha características de lumpemproletariado, indicando que a “dis-
funcionalidade” que essa “massa” representava para o desenvolvi- 580  NUN, José. Superpoblación relativa, ejército industrial de reserva y masa marginal.
Revista Latinoamericana de Sociologia, Buenos Aires, v. 5, n. 2, Julio de 1969.
mento justificava políticas extensas e generalizantes de formação 581  CARDOSO, Fernando Henrique. Comentários sobre os conceitos de
superpopulação relativa e marginalidade. In: CARDOSO, Fernando Henrique. O
modelo político brasileiro. São Paulo: DIFEL, 1973.
576  Sobre o envolvimento de Vekemans com o Partido Democrata Cristão entre 582  CARDOSO, Fernando Henrique. Foreword. In: PERLMAN, Janice E. The
1957 e 1970, época em que ele viveu no Chile, ver: ¿Quién és Roger Vekemans? La Myth of Marginality: Urban Poverty and Politics in Rio de Janeiro. Berkeley, Los
Nación, Santiago, 10 de mayo de 2009. Disponível em: <http://www.lanacion.cl/ Angeles, and London: University of California Press, 1976. Florestan Fernandes trazia
noticias/site/artic/20090509/pags/20090509192955.html> Acesso em: 30 ago. 2016. uma terceira posição para o debate. O “exército de reserva”, segundo ele, seria típico das
577  Cf.: KOCH, Bettina. Patterns Legitimizing Political Violence in Transcultural situações em que há alta “proletarização” formal, mas ocorrem flutuações no emprego
Perspectives: Islamic and Christian Traditions and Legacies. Boston/Berlin: Walter da mão-de-obra. O Brasil, um país com insuficiente proletarização da força de trabalho,
de Gruyter, Inc., 2015, p. 145-151. teria um “excedente populacional”, isto é, uma população sempre marginal às condições
578  A este respeito, ver a intensa troca de correspondências, em junho de 1967, entre clássicas de assalariamento. O exército de reserva, portanto, não chegava a se formar no
Vekemans, Silvert, Harry E. Wilhelm, Cristóbal Lara Beautell (diretor do ILPES) e Brasil. Essa visão sobre a produção da “marginalidade”, apresentada na Universidade
o então representante da Fundação Ford no Chile, John P. Netherton. In: RAC. Ford de Münster, na então Alemanha Ocidental, em novembro de 1967, não trazia, por sua
Foundation Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726. vez, qualquer elaboração ou aberta aproximação com a noção de lumpemproletariado.
579  Carta de José Nun para Harry Wilhelm. Santiago, 16 de junho de 1967. In: Vide: FERNANDES, Florestan, Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de
RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726. Janeiro: Zahar, 1968, cap. 1, especialmente, pp. 48-49, 70-71.

260 Wanderson Chaves A questão negra 261


ção de Florestan Fernandes e do restante do comitê assessor583, Florestan Fernandes partilhava dessa perspectiva em
que passou a ser ocupado por David E. Apter, Alain Touraine e A integração do negro na sociedade de classes, reconhecendo, es-
Eric Hobsbawn584. Para a Fundação, as divergências entre Nun, pecialmente nos movimentos sociais, um papel de institucio-
Fernando Henrique e Vekemans, se, por um lado, prejudica- nalização política importante na realização dessa forma de
ram o andamento dos trabalhos e a perspectiva “pluralista” que transição. O papel desses grupos seria o de atrair mobilização
ela desejava ver associada ao empreendimento, por outro, não pública para os conflitos que prometessem, com o seu enfrenta-
eram consideradas por ela como substanciais. Além de suas di- mento – os raciais, entre eles – reais avanços na modernização.
ferenças de “marxistas moderados”, na expressão aplicada a Nun Para Florestan, esse trabalho de organização de forças sociais
e Fernando Henrique por Kalman Silvert585, todos, inclusive estabeleceria, no país, formas arraigadas e abrangentes de re-
Vekemans, estavam compromissados com uma perspectiva fun- presentação política ainda ausentes587. Sua formulação operava
damental que lhe interessava, haurida da teoria da ação social nesse marco teórico parsoniano, mas sua visão sobre integração
de Talcott Parsons: elevar as sociedades ao patamar das funções e mudança não encontrava ressonância no conflito que se ins-
regulares do processo de desenvolvimento, através das vias insti- talou. No diagnóstico do Projeto Marginalidade buscava-se a
tucionais, por intermédio da ação estabilizadora da liderança586. mobilização das elites, dentro e fora do Estado, para modificar
o perfil da liderança e da modernização, mas não, como era a
583  Carta de Kalman H. Silvert para Harry Wilhelm, de 24 de agosto de 1967. In:
perspectiva de Florestan, com o enfrentamento aberto dessas
RAC. Ford Foundation Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726. elites às políticas de Estado. Ele tinha como diagnóstico que a
584  As metas de pesquisa do Projeto Marginalidade foram reduzidas nessa nova etapa.
modernização, como definida por Parsons – uma correlação de
A Fundação Ford passava a solicitar a produção de material sobre “marginalização”
que a auxiliasse no planejamento de investimentos em políticas de urbanização e processos de diferenciação e crescimento dos subsistemas da
de desenvolvimento comunitário na América Latina. O Projeto Marginalidade foi vida social (econômico, político, comunitário, etc.), que se fazia
encerrado em julho de 1973, à revelia do diretor de estudos e do conselho assessor,
segundo a Fundação, em razão da baixa produtividade e do descumprimento de metas acompanhar da secularização de grupos e de particularismos
de trabalho. PLOTKIN, Mariano Ben. US Foundations, Cultural Imperialism and sociais – gerava no Brasil, em razão da persistente “reposição
Transnational Misunderstandings: The Case of Marginality Project. Journal of Latin
American Studies; Cambridge, UK; v. 47, n. 1, February 2015. do passado”, a “exclusão” do negro e não sua maior integração
585  Memorando de Kalman H. Silvert para o chefe da divisão de América Latina e como prevista no modelo parsoniano. Estava em curso sua in-
Caribe da Fundação Ford, William D. Carmichael, de 26 de junho de 1973. In: RAC.
Ford Foundation Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726. vestigação de como esses “bloqueios” à modernização caracteri-
586  O sociólogo argentino Gino Germani, grande divulgador de Parsons na América zavam o “capitalismo dependente” brasileiro588.
Latina, colaborou nesse assentamento do Projeto Marginalidade. Conforme Calvin J.
Nichols, ele e Alessandro Pizzorno estabeleceram uma interlocução estreita no período,
momento em que trabalhavam juntos na Universidade de Harvard. Memorando de
Stacey Widdicombe para Harry Wilhelm, de 23 de março de 1965. In: RAC. Ford 587  Vide especialmente: FERNADES, Florestan. A integração do negro na
Foundation Records. Grant Files. Grant nº. 67-85. Reel nº. 0726. Para uma definição sociedade de classes, v. 2. Idem, ibidem, cap. 3, passim.
sintética da teoria política de Parsons, ver: GOHN, Maria da Glória. Teorias dos 588  BRASIL JR., Antônio. Linhas retas ou labirintos? A tradução da sociologia
movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 2ª edição. São Paulo: da modernização nos textos de Florestan Fernandes e de Gino Germani. Revista
Edições Loyola, 2000, p. 23-42. Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 28, n. 82, junho/2013.

262 Wanderson Chaves A questão negra 263


Sujeitos e predicados de um agendamento intelectual Esse descolamento de Florestan Fernandes não prejudi-
cou os pontos fortes da agenda dele para a questão negra, avaliação
As posições de Florestan Fernandes sobre a mobi- do sociólogo Sérgio Adorno e da psicóloga Nancy Cardia, tam-
lização dos “marginais”, que se descolaram das postulações de bém da USP, presente no memorial institucional comemorativo
Talcott Parsons a partir da segunda metade dos anos 1960, não dos 40 anos da Fundação Ford no Brasil, de 2002. Segundo eles,
tiveram repercussão negativa na recepção de A integração do ne- Florestan deslocou teoricamente, com a superação do ideal de “as-
gro na sociedade de classes, publicado em 1964, e de The Negro in similação” pelo de “integração” do negro, o eixo de todo o debate
Brazilian Society, publicado em 1969. Em 1971, Florestan orga- nacional sobre a modernização e a modernidade. Para a Fundação,
nizou para o Center for Interamerican Relations (CIAR), em a série de investimentos feitos em ciências sociais no país foram
Nova Iorque, a conferência “The Intellectual and Political Power recompensados pela emergência de quadros de alto valor inte-
in the Americas” 589; de 1966 até 1971, fez palestras em várias lectual, a maioria deles formados ou informados pelo esforço de
universidades norte-americanas, entre elas, Wisconsin, Cornell, Florestan na renovação do estudo das “relações raciais” no Brasil593.
Harvard, Brown e Yale590; e produziu textos de encomenda para Esse destaque à superação do ideal de assimilação pelo
a Midgard Foundation591 e para a rede do CCF – especifica- de integração é sintomático do compromisso que a Fundação
mente para as revistas Cadernos Brasileiros, O tempo e o modo, de Ford havia estabelecido, na gestão de McGeorge Bundy (1966-
Portugal, e a Aportes, de Paris592. 1979), com as diretrizes que a presidência de Richard M. Nixon
(1969-1974) inauguraram no tratamento da questão racial. Sua
589  Florestan Fernandes, Richard M. Morse, Charles Wagley, Aldo Solari, Gino
administração, diferentemente das de John F. Kennedy (1961-
Germani e Domingo Rivarola foram os organizadores do evento, realizado de 23 a 25
de fevereiro de 1970. A Fundação Ford foi a patrocinadora. Vide a correspondência de 1963) e de Lyndon B. Johnson (1963-1969), orientou o traba-
1969 de Richard M. Morse: RMMG. Box 5. lho de cooptação para o nacionalismo cultural negro, ajudando a
590  Sobre estas palestras, ver: carta de Andrew W. Cordier, decano da Universidade
de Columbia, para Florestan Fernandes, de 7 de março de 1966; e cartas de 25 de sustentar, em lugar da dessegregação e do combate à pobreza, o
agosto de 1971 de Dwight B. Heath, da Universidade de Brown, para Florestan orgulho racial, a independência econômica grupal e a criação e
Fernandes e para Thomaz Aquino de Queiroz. In: FFF. Série Vida Acadêmica.
591  A Midgard Foundation patrocinou os honorários da conferência de 1966 “The o apoio a instituições inteiramente negras como questões prio-
Latin American University” e do livro homônimo, lançado somente em 1979. O
texto de Florestan Fernandes para essa coletânea se tornou “A universidade em uma relações raciais: o drama do negro e do mulato numa sociedade em mudança”. Estes
sociedade em desenvolvimento”, publicado em português como um dos quatros ensaios dois artigos foram republicados em O negro no mundo dos brancos, de 1972. Em 1971,
de Circuito Fechado, de 1976. Vide a correspondência de Florestan com os editores do Florestan publicou em Aportes o artigo comissionado “Universidad y desarrollo”,
livro, Joseph Maier e Richard W. Weatherhead. In: FFF. Série Vida Acadêmica. negociado após os reiterados convites do diretor do ILARI, Luis Mercier Vega. Carta
592  A Aportes era uma publicação de ciências sociais de língua espanhola do Instituto de Luis Mercier Vega para Florestan Fernandes. Assunção, 16 de abril de 1970. Cartas
Latino-Americano de Ciências Sociais (ILARI), órgão do CCF. A O Tempo e o de Luis Mercier Vega para Florestan Fernandes. Paris, 13 e 22 de maio de 1970. In:
Modo também era parte da rede do CCF e vinha incentivando através da Cadernos FFF. Série Vida Acadêmica. Correspondências.
Brasileiros as contribuições de autores brasileiros. Cf.: CANCELLI, Elizabeth. O Ilari 593  ADORNO, Sérgio e CARDIA, Nancy. Das análises sociais aos direitos
e a guerra cultural: a construção de agendas intelectuais na América Latina. Idem, humanos. In: BROOKE, Nigel e WITOSHYNSKY, Mary (orgs.). Os 40 anos da
ibidem, especialmente p. 208. Em 1966, Florestan publicou nessa revista portuguesa Fundação Ford no Brasil: uma parceria para a mudança social. São Paulo e Rio de
“Aspectos da questão racial” e em 1968, na Cadernos Brasileiros, “Mobilidade social e Janeiro: Edusp e Fundação Ford, 2002, p. 201 e ss.

264 Wanderson Chaves A questão negra 265


ritárias. O governo Nixon, em seus interesses na formação de elites negras e que o mesmo ocorresse com os demais grupos,
quadros e eleitorado negro para o Partido Republicano, lidou processo chamado por Kilson Jr., de “neo-etnocentrismo étni-
com a palavra de ordem do “Black Power” de maneira elástica: co”. A novidade dessa filosofia de governo ficava por conta da
ele uniu as metas do “separatismo racial” e das “oportunidades inclusão, nessa proposta de “etnicização”, de populações de ori-
econômicas” à renovada concepção de melting pot que Daniel gem europeia, já “integradas”. O projeto, segundo Kilson, era de
Patrick Moynihan, por exemplo, vinha propondo. A National tutela. Pretendia-se, com ele, controlar as vertentes à esquerda e
Urban League, à frente das organizações liberais negras, e os se- acomodar as demandas grupais, limitando-as à competição das
tores do “nacionalismo” que reconheciam suas próprias metas de militâncias dos grupos por frações de benefícios governamentais
autonomia econômica na promessa de apoio do governo ao “em- e de mercado. O “reformismo negro” e o “conservadorismo bran-
preendedorismo”, passaram a reivindicar que a política de Nixon, co” eram as tendências políticas das quais se pretendia obter o
apoiada na distribuição de crédito via bancos de proprietários melhor aproveitamento596.
negros, se institucionalizasse de maneira a finalmente formar O negro no mundo dos brancos, de 1972, amadurendo a
uma verdadeira classe de “capitalistas negros” 594. proposição de A integração do negro na sociedade de classes, de 1964,
Kilson Jr., participando em outubro de 1972 de uma de que o enfrentamento do preconceito e da discriminação ra-
grande conferência da Academia Norte-Americana de Artes e ciais era fundamental para destravar as forças da modernização
Ciências, promovida pela Fundação Ford para que se debatesse no Brasil, convergia para um lugar-comum do consenso libe-
o estado teórico da “questão étnica” e negra em todo o mundo, ral do imediato pós-guerra, que American Dilemma, de Myrdal,
disse que estava sendo forjado um novo alinhamento político, expressou modelarmente, e que as posturas “neo-conservadoras”
correspondente ao emergente espírito “neoconservador” 595. A dos anos 1970 vieram reenfatizar: havia inércia e atraso com-
nova política Republicana consistia em estabelecer que as de- petitivo dos negros em relação ao restante da sociedade, e era
mandas negras fossem articuladas pelo establishment através de imperativa a intervenção estatal para que fosse combatida a con-
dição de “minoria” do grupo, isto é, as limitações de formação e
594  KOTLOWSKI, Dean. Black Power-Nixon Style: The Nixon Administration
and Minority Business Enterprise. The Business History Review; Cambridge, MA; inserção dos negros, provocadas ou estimuladas pelo preconceito
v. 72, n. 3 (Autumn, 1998). e pela discriminação597. Em linhas gerais, a tese de Florestan era
595  O movimento político “neoconservador” representava uma nova coalizão
que ganhou força no final dos anos 1960 entre “liberais de centro” e “liberais o que prescrevia a Doutrina Moynihan, apoiada pela Fundação
conversadores”, que se coligaram para combater as ideias da “Nova Esquerda”. Os Ford e pelo próprio governo norte-americano598.
“liberais de centro” que haviam rompido com os Democratas, em razão do que viam
ser a guinada do partido para a “esquerda liberal”, passaram a buscar nos “liberais
conservadores” aliados para um programa de defesa contra o que supunham ser 596  KILSON, Martin. Blacks and Neo-Ethnicity in American Political Life. In:
verdadeiras ameaças às instituições e às tradições da democracia norte-americana: o GLAZER, Nathan and MOYNIHAN, Daniel P. (ed.). Ethnicity: Theory and
“radicalismo” das esquerdas e o crescimento da “direita autoritária”. EHRMAN, John. Experience. Op., cit.
Liberals, neoconservatives, and foreign policy: 1945-1985. Washington DC, 1993. 597  FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. Idem, ibidem,
357 f. Tese (Doctor of Philosophy) - Columbian College and Graduate School of Arts especialmente caps. 1-3 e 5.
and Sciences, The George Washington University, cap. 1-2. 598  Neste sentido, veja-se o seguinte panorama das transformações que

266 Wanderson Chaves A questão negra 267


A incorporação de Florestan Fernandes a uma rede de do século XX601, como o chamamento de Florestan Fernandes
ciências sociais, debates e publicações deu-se pelas razões que ao aberto conflito racial, como imperativo político democráti-
também haviam tornado notório Gilberto Freyre anteriormente. co602. As razões eram as mesmas: a busca por soluções amoldáveis
Apesar de suas divergências sobre o projeto civilizatório de uma ao credo liberal norte-americano, de realização da sua proposta
democracia social, na qual cada um deles defendia sua perspec- de democracia como plenitude do bem-estar, que servissem de
tiva sobre o padrão de relações raciais ideal, ambos convergiam guias para transformações não revolucionárias. Ainda que fos-
na aposta feita para a mudança das mentalidades e para a busca sem soluções alternativas, diante de propostas pró-americanas
por ajustes societários como via de afirmação de um projeto de- mais vocais e frontais nos enfrentamentos da Guerra Fria.
mocrático e de paz social. A anterior recepção a Gilberto Freyre Em julho de 1974, quando foi publicada a segunda edi-
– modulada durante os anos 1950 pelas expectativas que guiaram ção de Mudanças sociais no Brasil, Florestan Fernandes retificava,
o Projeto UNESCO no Brasil, o teste à hipótese da “democracia na nova introdução ao livro, sua visão de 1960 sobre o que engen-
racial” 599 – foi substituída pelas leituras de Florestan Fernandes, drava a superação do “atraso” do país. O texto era uma amostra de
nos anos 1960, e sua perspectiva de que as mentalidades have- sua recorrente elaboração de luto em relação às promessas demo-
riam de corresponder às modificações da vida política e econô- cratizantes do desenvolvimento – para ele, rompidas pelo golpe
mica, particularmente na esfera dos direitos civis. O apelo de de 1964603 –, na qual explicava que a “demora cultural”, sua visão
Gilberto Freyre às tradições e a radicalização da modernidade de que a modernização era travada principalmente pelas respostas
burguesa de Florestan Fernandes vinham disputar um terreno irracionais ao fenômeno das rápidas transformações, constituía em
comum de propostas democráticas de reforma que encontravam si mesmo um projeto: o baixo nível de integração dos vários gru-
repositório nas políticas desenvolvidas nos EUA600. pos sociais à cidadania e mesmo aos benefícios da “proletarização
Malgrado o terreno comum, na aceitação das perspec- formal” resultavam, segundo ele, da estratégia de elites que domi-
tivas de ambos, estavam excluídas tanto a crítica antiliberal de navam o Estado, para modernizar o capital e para assegurar que
Gilberto Freyre, de expressão católica, diretamente reconhecível essa modernização não alterasse a sua condição “estamental” 604.
no modernismo literário sulista dos Estados Unidos do início
601  Para essa tese original sobre as fontes norte-americanas do pensamento de
Gilberto Freyre sobre o Brasil e sobre os EUA, ver: Idem, ibidem, p. 143-150.
602  Vide, especialmente: FERNANDES, Florestan. Op, cit., caps. 7 e 13.
603  Florestan teria imergido profundamente, especialmente no período de seu exílio
modelaram as novas orientações do governo norte-americano durante os anos 1970: no Canadá, de 1969 a 1972, em estudos sobre as revoluções russa, chinesa e cubana que
BORSTELMANN, Thomas. The 1970’s: A New Global History from Civil Rights to o levaram a construir uma nova postura ética, voltada mais abertamente à ação política
Economic Inequality. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2012. e à reflexão sobre a superação do trauma da “perda de projetos” do campo democrático
599  Cf.: MAIO, Marcos Chor. UNESCO and the Study of Race Relations in e socialista. Nestes termos, ver: RODRIGUES, Lidiane Soares. Entre a academia
Brazil: Regional or National Issue? Latin America Research Review; Pittsburgh, e o partido: a obra de Florestan Fernandes (1969-1983). São Paulo, 2006. 197 f.
PA; v. 36, nº. 2 (2001). Dissertação (Mestrado em História Social) - Departamento de História, FFLCH-
600  CANCELLI, Elizabeth. Mal-estar de civilização: a democracia e o negro no USP, especialmente cap. 1, parte 3.
Brasil. In: CANCELLI, Elizabeth. O Brasil e os outros: o poder das ideias. Idem, 604  FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. 2ª edição. São Paulo:
ibidem, p. 134-160. DIFEL, 1974 [1960], p. 23-57.

268 Wanderson Chaves A questão negra 269


A visão de Florestan de 1960, de que os cientistas ca” sólida demais para não deixar abertas opções de transfor-
sociais deveriam exercer um papel de vanguarda na mudan- mação que não as geradas de fora e contra ela607.
ça, permaneceu, mas o sentido dessa atuação, para ele, mu- A Fundação Ford, nos debates de questões raciais esta-
dou. Fernando Henrique Cardoso vinha apostando desde belecidos desde os anos 1970, promoveu uma verdadeira guinada
Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional (1962) que a para o multiculturalismo. Esta nova proposta de ordem assumiu
racionalidade capitalista engendrava seu avanço capturando uma crescente relevância, na medida em que sua afirmação se
as dimensões de “atraso” do desenvolvimento a seu favor605. dava em associação à ideia de que representaria a realização da
Por outro lado, a internacionalização do capital de mercados integralidade e indivisibilidade dos direitos civis, sociais e políti-
nacionais “subdesenvolvidos” – e de suas elites, como ele fri- cos previstas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, ou
sou na sua participação no Projeto Marginalidade – levaria, seja, porque propunha-se como a meta societária fundamental a
supostamente, ao rompimento do “anacronismo” político-cul- ser alcançada com a afirmação dos direitos humanos, (re)toma-
tural das burguesias nacionais, obrigadas à ceder à uma ampla dos, desde os anos 1970, como aspiração política global. Nessa
modernização social. Essa solução, que Florestan chamou na guinada, a Fundação Ford manteve-se, particularmente em re-
segunda edição de Mudanças sociais no Brasil de “revolução lação aos negros, ativa como um dos mais importantes focos de
dentro da ordem”, era expressão da convicção na capacida- agendamento intelectual e político. Como nas décadas anteriores,
de intrínseca de superação do “atraso” do próprio desenvol- essa incidência vem sendo decisiva, entre outras formas de im-
vimento econômico da qual ele dizia estar se afastando. Para pacto, na modelagem de ideias e programas do chamado “campo
Florestan, o trabalho de intelectuais como ele passaria a ser progressista” e das esquerdas e, por suposto, em quais devem ser
o de ajudar a estabelecer a “revolução contra a ordem”, isto é, os sentidos éticos e as virtudes subjacentes às políticas raciais.
romper o ciclo de “sobre-exploração” do trabalho – causador Florestan Fernandes chegou a sinalizar, ainda nos anos
de crescente desigualdade, racismo e conservadorismo – que 1970, que estava identificado às metas do emergente multicul-
essa aposta na internacionalização não modificava, segundo turalismo608. Independentemente do compromisso moral e po-
ele, porque já seria o suplemento à “exploração do trabalho”
obtida no próprio país606. Era tocante – e equívoca – a avalia- 607  FERNANDES, Florestan. Idem, ibidem, especialmente p. 30-31. Tratava-se da
reiteração de um posicionamento dele que atravessou os anos 1960: ou a ditadura
ção dele de que a ditadura tinha uma constituição “autocráti- evoluiria rumo à realização plena de uma “revolução burguesa”, sobrevivendo através
de alguma forma de “democratização”, ou sucumbiria aos conflitos da própria
transformação capitalista, provocados desde dentro e fora do país. A ditadura, para ele,
605  Cf.: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil consistiria de forças “reacionárias” e “tradicionalistas”, incapazes de orientar a liderança
Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. São Paulo: e o planejamento dessas mudanças da própria modernização. Por isso, sua convocação
DIFEL, 1962, especialmente “Conclusões”. à que se preparassem os intelectuais para modelar a “revolução contra a ordem”, que,
606  FERNANDES, Florestan. Op., cit., p. 19-57. Vide também, para uma sucinta cedo ou tarde, possivelmente sobreviria. Cf.: FERNANDES, Florestan. Sociedade de
análise comparada dessas posições teóricas de Florestan Fernandes e Fernando Henrique classes e subdesenvolvimento. Op., cit., especialmente p. 58, 98-101 e cap. 5.
Cardoso: MARTINS, Rodrigo Constante. Dependências na Sociologia Brasileira. 608  Vide, para uma declaração deste tipo: FERNANDES, Florestan. The Negro
Crítica e Sociedade: revista de cultura política, Uberlândia, v. 1, n. 2, jul./dez. 2011. in Brazilian Society: Twenty-Five Years Later. In: MARGOLIS, Maxine L. and

270 Wanderson Chaves A questão negra 271


lítico dele com o multiculturalismo, a relevância de Florestan Apêndices609
Fernandes para esse debate, que explodiu principalmente a partir
dos anos 1980, era ser cada vez menos um recurso intelectual e
ideológico – o que ele ainda foi, em certa medida, para o Projeto
Marginalidade –, embora sua importância como orientação polí-
tica tenha sobrevivido através da atuação de muitas organizações 1. Evolução dos principais programas operacionais da
e lideranças do Movimento Negro. FF (1950-1970)
Mas este seria o tema de um próximo trabalho.
1950-1962
1. Efforts Toward Peace (1951-2)
2. International Programs (1953)
3. International Understanding (1954-7) / Overseas
Development (1954-65)
4. International Affairs (1958-1965) / International Training and
Research (1958-1965) / Overseas Development (1954-1965)

1. Strenghtening Free Institutions (1951-2)


2. Public Relations (1953-5)
3. Public Affairs (1956-1965)

1. Strenghtening the Economy (1951-2)


2. Economic Development and Administration (1953-7)
3. Economic Development and Administration (1958-1965) /
Science and Engineering (1958-1965)

1. Education in a Democratic Society (1951-2)


2. Education Programs (1953)
3. Education in a Democratic Society (1954-5) / The

609  Vide, para as informações desta seção: Relatórios anuais da Fundação Ford, 1958-
CARTER, William E. (editors). Brazil, Anthropological Perspectives: Essays in 1975. Disponíveis em: <https://www.fordfoundation.org/library/?filter=Annual%20
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272 Wanderson Chaves A questão negra 273


Advancement of Education (1954-5) Higher Education and Research
4. Education in the United States (1956-8) Public Education
5. Education (1958-1965) / Humanities and Arts (1958-1965) Special Projects in Education
Division of Humanities and Arts
1. Human Behavior (1951-2) International Division:
2. Behavioral Sciences (1953-7) South and South East Asia (após 1968, Asia and the Pacific)
Middle East and Africa
1962-1965 Latin America and the Caribbean
Domestic Programs: International Relations (após 1968, European and International
Education Affairs)
Economic Development and Administration Population
Humanities and Arts Resources for Development (1966-1968)
International Training and Research
Public Affairs
Science and Engineering 2. Equipe da International Affairs (1958-1965)
Special Programs
International Programs (Overseas Development): Diretor:
South and South East Asia
Shepard Stone (1958-1965)
Middle East and Africa
Latin America
Vice-diretores de programas:
International Affairs
Population Waldemar Nielsen (1958-1961)

1966-1970 Joseph E. Slater (1961-1965)


Division of National Affairs:
Urban and Metropolitan Development Assessores de programas:
Resources and Environment
Stanley T. Gordon (1959-1965)
Social Development
Government and Law Joseph E. Slater (1958-1960)
Office of Public Broadcasting (após 1968)
Division of Education and Research: David Heaps (1961-1962)

274 Wanderson Chaves A questão negra 275


Matthew J. Cullen Jr. (1962-1965) Vice-diretores de programas:

James R. Huntley (1965) Verne S. Atwater (1961)

Richard M. Catalano (1965) Reynold E. Carlson (1965)

Moselle Kimbler (1965) John F. Hilliard (também representante para o Caribe


[1965-1966])

Assistente: Robert S. Wickham II (1967)

John S. Nagel (1968-1972)


Moselle Kimbler (1962-1964)
Assessores de programas:

Robert S. Wickham II (1958-1961, 1966, 1968-1970)


3. Equipe da Divisão de América Latina e Caribe:
(1958-1972) Stacey A. Widdicombe Jr. (1962-1964)

Diretores de programas: A. Peter Fraenkel (1962-1965)

Alfred C. Wolf (1958-1961) Robert A. Mayer (1963-1964)

James L. Morrill (1961-1962, 1964) Harold L. Rice (1964)

Verne S. Atwater (1963) James W. Trowbridge (1965)

Harry E. Wilhelm (1965-1969) K. N. Rao (1965-1973)

William D. Carmichael (1970-1977) Lowell S. Hardin (1966-1969)

Assistente do diretor de programas: Nita R. Manitzas (1967-1971)

James A. Gardner (1971-1973) John F. Hilliard (1968-1969)

276 Wanderson Chaves A questão negra 277


Peter D. Bell (1969) Ben S. Stephansky (1968)

Bruce L. Gibb (1969-1971) Reuben Frodin (1969-1970)

James A. Gardner (1970) Norman R. Collins (1972)

Paul A. Strasburg (1971)

Norman R. Collins (1971) 4. Equipe do escritório da Fundação Ford no Brasil


(1962-1972)
Kalman H. Silvert (1971, 1973-1975)
Diretores:
Abraham F. Lowenthal (1972-1973)
Reynold E. Carlson (1962-1964)
Robert G. Myers (1972-1975)
Stacey A. Widdicombe Jr. (1965-1967)
George Sutija (1972)
Peter D. Bell (1967)
Assistentes:
William D. Carmichael (1968-1970)

David B. Blelloch (1962)


Stanley A. Nicholson (1971-1973)

Donald F. Sandberg (1963)


Vice-diretores:
Peter D. Bell (1966)
Peter D. Bell (1968)

Paul A. Strasburg (1969-1970)


James A. Gardner (1969)

Werner Kiene (1972-1973) Stanley A. Nicholson (1969-1970)

Consultores: Assistentes do diretor:

Hans Simons (1966-1967) Peter D. Bell (1965)

Kalman H. Silvert (1967-1970, 1972) James A. Gardner (1969-1970)

278 Wanderson Chaves A questão negra 279


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