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A Semântica Da Forma Franklin de Mattos
A Semântica Da Forma Franklin de Mattos
A semântica da forma
F ranklin de Mattos
S
egundo escreveu certa vez Peter Szondi antinomia entre forma dramática e conteúdo
(1929-1971), três vias se abriram às poé- épico nas obras de Ibsen, Tchékhov, Strindberg,
ticas dos gêneros literários, depois que Maeterlinck e Hauptmann, que para Szondi
Hegel transformou em categorias históri- engendra o teatro moderno.1
cas a lírica, a épica e a dramática. Para al- Pode ocorrer ainda que um enunciado
guns, como Benedetto Croce, os três gêneros oculte o outro ou só remeta a ele de modo oblí-
haviam perdido, com a essência sistemática, sua quo, como se deu no drama burguês em sua
razão de ser; para outros, como Emil Steiger (de origem, conforme mostra o livro Teoria do dra-
quem aliás Szondi foi aluno), deviam continu- ma burguês – Século XVIII, destinado às pre-
ar a ser tratados de maneira atemporal, como leções do autor e publicado alguns anos após
modos de ser do próprio homem. sua morte.2
Restava por fim “perseverar” no terreno É como se Peter Szondi estivesse empe-
da história, não se limitando à poesia, mas in- nhado em responder a uma espécie de truísmo:
cluindo outros gêneros, como fizeram “A Teo- por que é burguês o drama burguês? Mas a per-
ria do Romance”, de Georg Lukács, “A Origem gunta só é descabida se aplicada ao drama pós-
do Drama Barroco Alemão”, de Walter Ben- 1770, de Mercier, de Schiller ou do Stürm und
jamin, e “A Filosofia da Nova Música”, de Drang, em que aparece às claras o conflito de
Theodor Adorno. Desenvolveu-se assim uma classe entre burguesia e nobreza. Não é ao se
espécie de “semântica da forma”, em que a dia- tratar de três peças anteriores, que aliás servi-
lética entre a forma e o conteúdo aparece como ram de modelos para todo o gênero: “O Mer-
dialética entre o enunciado da forma e o do con- cador de Londres”, de Lillo, “O Pai de Famí-
teúdo, e em que uma proposição pode entrar lia”, de Diderot, e “Miss Sara Sampson”, de
em contradição com a outra. Este é o caso da Lessing. Na primeira, embora o protagonista
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seja um aprendiz de comerciante, seu destino pa e desespero “recomendam a virtude dos bons
aparentemente não tem nenhum conteúdo de e dos justos”.
classe e, nas demais, os heróis nem sequer per- Tanto na “Dedicatória” quanto no “Pró-
tencem à burguesia, mas à baixa aristocracia. logo”, ao defender um gênero dramático assen-
Portanto, o próprio Georg Lukács e tado na abolição da distância entre os persona-
Arnold Hauser não têm inteira razão ao afirmar gens e o público, Lillo não argumenta no plano,
que o drama foi o primeiro a desenvolver uma por assim dizer, “sociológico”, mas no poético.
oposição consciente de classe, do mesmo modo Não diz nada acerca do monopólio da nobreza
que Lothar Pikulik não tem nenhuma ao pre- e dos direitos da burguesia sobre a fábula trági-
tender que o ideal de humanidade do gênero é ca, detém-se no efeito da tragédia. Sustenta que,
estranho a qualquer classe.3 Assim, a finalidade para ter um efeito amplo, esta não pode se res-
da pergunta acima é refinar os métodos da “so- tringir a reis, príncipes e generais (tudo se pas-
ciologia da literatura”, tornando claras “as me- sa, diz Szondi, como se a tragédia precisasse do
diações [...] pelas quais as obras e suas teorias burguês e não o burguês da tragédia...). Ora, se
foram condicionadas historicamente”. assim for, a representação da ação trágica muda
A primeira mediação a discutir é teórica: completamente de sentido. Antigamente, a tra-
o drama nasce ao contestar a “cláusula dos esta- gédia cantava a ruína dos povos, para que os reis
dos”, interpretação de Aristóteles existente pelos aprendessem com seus exemplos como são ins-
menos desde a “Ars Grammatica”, de Diomedes táveis as coisas que constituem o mundo. No
(século IV d.C.), e para a qual os personagens presente, lamenta a dor de um homem simples,
da tragédia deviam ser forçosamente de condi- em cujo destino todos se reconhecem: já não
ção principesca. fala da natureza do mundo, mas da conduta de
Na “Dedicatória” do “Mercador” (1731), um indivíduo, que não é propriamente um
George Lillo afirma que a tragédia é o mais ex- exemplo, mas um contra-exemplo.
celente e o mais útil dos gêneros poéticos; que A outra mediação decorre da própria
sua utilidade consiste em excitar as paixões e cor- peça. Em duas cenas passageiras, “O Mercador”
rigir aquelas que são criminosas, por natureza ou (1731) faz o elogio dos comerciantes de Lon-
excesso; e que, a fim de aperfeiçoar-lhe a exce- dres, dos quais um ato patriótico salvara a In-
lência, deve-se ampliar sua utilidade, permitin- glaterra, e do comerciante em geral, cuja “voca-
do que se estenda à humanidade em geral, sujei- ção” estaria assentada na razão e cuja obra é uma
ta aos mesmos infortúnios dos grandes senhores. espécie de “esclarecimento prático”: a superação
No “Prólogo”, o argumento é outro, mas dos obstáculos naturais e convencionais – “Se-
a questão é a mesma: embora por tradição “a jam os mares que separam os continentes, se-
musa da tragédia” mostre aos reis, com majesta- jam a religião e os costumes que separam os po-
de e pompa, “a estranha vicissitude das coisas vos”. Mas não é isso que torna a peça um drama
cá embaixo”, o próprio teatro inglês já a viu “em burguês e sim a dupla moral que decorre de sua
trajes mais modestos” e, em vez de despertar ter- fábula e que já aparece em seu título igualmente
ror, “encher de lágrimas” os olhos do especta- duplo: “The London Merchant” ou “The His-
dor. É também o caso da presente peça, que tra- tory of George Barnwell”. Segundo Szondi, esse
ta da “desgraça privada” de um aprendiz de título “Formula desde o início o contraste entre
mercador e da mulher que o extravia, cuja cul- a norma, que qua norma permanece anônima,
3 Respectivamente em Sobre a sociologia do drama moderno (1914), História social da arte e da literatura
(1953) e Drama burguês e sentimentalidade (1966).
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uma característica do gênero, e a exceção lamen- Embora preserve a tragédia clássica, Dide-
tável que é de natureza individual e responde rot volta a atacar a cláusula dos estados, mas em
pelo nome de George Barnwell”. vez de a tomar como “obstáculo”, usa outra es-
A norma é Trorowgood, na firma do qual tratégia: considera-a “irrelevante”. Os reis nos
é aprendiz o próprio Barnwell. Trorowgood comovem não porque são reis, mas porque são
encarna as virtudes do comerciante puritano a homens, como os espectadores, humanidade
serem descritas no clássico de Max Weber, “A que, aliás, também aparece numa simples cam-
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. ponesa. A mediação que está por trás desses
Essa ética, baseada antes de mais nada no prin- exemplos é o conceito de natureza humana, ver-
cípio do dever profissional, distinge o novo dadeiro objeto do teatro, que justifica tanto a
capitalista tanto dos que desprezam os bens ter- comédia heróica, cujos personagens cômicos são
renos quanto daqueles que os perseguem a qual- de alta condição, quanto o drama, cujos prota-
quer preço. Weber chamou-a de “ascese intra- gonistas são pessoas privadas.
mundana”. Seu momento religioso, contido na Através dos modelos da mãe e da viúva,
idéia de “vocação”, de “chamamento”, é funda- vislumbram-se dois dramas de família que per-
mental: conforme as palavras de Weber, “O mitem passar para as mediações das próprias
Deus do calvinismo exigia dos seus não ‘boas peças de Diderot. O que há de burguês em “O
obras’ isoladas, mas a santidade de uma obra Pai de Família”, em que pesem seus personagens
desenvolvida em sistema”. Violar essa ética re- nobres e seu argumento, é a nova maneira de
presenta portanto uma espécie de esquecimen- tratar o tema da “ausência do filho”. Na tragé-
to do dever: é o que faz Barnwell, o aprendiz dia clássica, o filho ausente é objeto de inquie-
arruinado, que se deixa arrebatar pela fatal tação porque o pai-monarca o suspeita de jun-
Milwood e por isso torna-se ladrão, assassino e tar-se a seus inimigos e cobiçar o trono; na
acaba na forca. comédia jocosa, ele é vítima de um pai prepo-
De Lillo a Diderot parece haver um re- tente e tirânico, aliás – não por acaso –, burguês.
trocesso, por duas razões: 1) os protagonistas de Na comédia séria de Diderot, sua ausência se
Diderot são da pequena nobreza e suas peças se torna sinal do dilaceramento da família, que o
passam longe do espaço público, na intimidade desenlace acaba por devolver à harmonia perdi-
da família; 2) ao invocar, em sua poética, os da. Diderot celebra a família como o lugar da
modelos de seus personagens, Diderot escolhe, verdade e da virtude, no qual a natureza huma-
dentre outros, uma rainha e retoma um argu- na aparece tal como é na realidade, a saber, boa,
mento de ninguém mais que Corneille. Mas por oposição ao espaço público, onde triunfam
não há retrocesso algum, apenas um refina- o vício e a perversidade.
mento das mediações. Para Diderot, quem nos Essa família, burguesa, patriarcal e re-
comove na “Ifigênia”, de Racine, quando Cli- duzida, surgida por volta do século XVII,
temnestra se aflige com o sacrifício da filha, não distingue-se das famílias aristocrática e cam-
é a rainha de Argos ou a esposa do chefe supre- ponesa devido à nítida distinção entre o “públi-
mo da armada grega, mas apenas a mãe, que co” e o “privado”. As diferenças entre Lillo e
exprime seus sentimentos “em toda sua verda- Diderot são portanto enormes. Enquanto “O
de”. Portanto, Diderot só menciona a rainha Mercador de Londres” ensina a probidade, a
para em seguida despojá-la de sua realeza. Ou- sinceridade, a pontualidade, a lealdade e a dili-
tro exemplo confirma a regra: a camponesa que gência, virtudes do protestantismo ascético que
lamenta a morte do marido, morto pelo pró- fazem parte dos domínios público e privado, e
prio irmão dela, não será menos patética que a cujo exercício conduz o burguês à riqueza e ao
mulher de alta condição, caso ela diga o que poder; na França de “O Pai de Família”, a vir-
“todo o mundo” diria naquele momento. tude é algo privado, sinal de impotência da
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agressão da burguesia impotente se voltasse Sébastien Mercier, tem algo datado que não dei-
contra si mesma e não contra aqueles que lhe xa de provocar no leitor um mal-estar incon-
negam o poder; 2) a hipótese da admiração tornável. Para Szondi, aquilo que distingue o
prefigura o idealismo alemão, que apoiou a drama cívico de Mercier do drama burguês de
Revolução Francesa e forneceu os meios de ne- Diderot e de Lessing é que o primeiro não se
gar, pela Idéia, as condições sociais, em vez de limita a mostrar a “vie domestique” em seu iso-
as aceitar em lágrimas (é o caso da tragédia lamento, representando justamente os momen-
de Schiller). tos em que as forças dominantes no Estado e
A conclusão de Szondi é clara: enquanto na sociedade nela irrompem. Nenhuma obje-
o espectador burguês quiser praticar a compai- ção. O incômodo começa quando ele afirma
xão no teatro, a tragédia terá como herói-mode- que, embora rendendo homenagem à “estética
lo a vítima impotente do arbitrário absolutista, do efeito” e à poética dos gêneros de Diderot,
cuja ação se limita à família. Ou ainda: enquan- Mercier daria “um passo decisivo” além do au-
to não se insurgir contra o absolutismo e não tor de “O Pai de Família”: enquanto Diderot
reivindicar o poder, a burguesia viverá segundo ainda fala do Homem, Mercier já trata do “ci-
sua sensibilidade e, impotente, chorará no tea- dadão”, formulando, “pela primeira vez”, aqui-
tro a miséria que lhe é imposta, nas palavras de lo “que nos anos vinte do século passado se cha-
Diderot, pelos “perversos” que a cercam. Assim, maria um teatro político, nos anos cinqüenta
a insurreição do burguês marcará para o drama um teatro engajado e hoje um teatro crítico”.
o fim da sensibilidade e da compaixão como O livro de Szondi começa valorizando as for-
objetos da tragédia. Com o Sturm und Drang e mas teatrais que, por assim dizer, sublimam a
Lenz o drama se voltará principalmente para a política, sem deixar de falar dela. Curiosamen-
sociedade em que um funcionário, a fim de per- te, a metáfora do “passo adiante” o leva a tomar
manecer honesto, precipita-se na miséria. a direção oposta e considerar como uma espé-
Notoriamente e apesar de seu caráter cie de modelo justamente o teatro que tende a
inacabado, o livro de Peter Szondi inscreve-se abolir as mediações. Entre outras razões, talvez
na melhor tradição da reflexão crítica marxista. por isso o autor nunca tenha se animado a pu-
Porém, seu epílogo, que examina “Do Teatro ou blicar a “Teoria do Drama Burguês”, em que
Novo Ensaio sobre a Arte Dramática”, de Louis- pese sua sofisticada elaboração.
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