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A Prece

José de Alencar – O Guarani

A tarde ia morrendo.
O sol declinava no horizonte e deitava-se sobre as grandes
florestas, que iluminava com seus últimos raios.
A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando pela verde alcatifa,
enrolava-se como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das
árvores. Os espinhos silvestres desatavam as flores alvas e
delicadas; o ouricuri abria as suas palmas mais novas, para receber
no seu cálice o orvalho da noite. Os animais retardados procuravam
a pousada, enquanto a juriti, chamando a companheira, soltava os
arrulhos doces e saudosos com que se despede o dia.
Um concerto de notas graves saudava o pôr do sol e confundia-se
com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua
queda e ceder à doce influência da tarde.
Era Ave-Maria.
Como é solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa
do crepúsculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para
murmurar a prece da noite!
Essas grandes sombras das árvores que se estendem pela planície;
essas gradações infinitas da luz pelas quebradas das montanhas;
esses raios perdidos que, esvazando-se pelo rendado da folhagem,
vão brincar um momento sobre a areia; tudo respira uma poesia
imensa que enche a alma.
O urutau no fundo da mata solta as suas notas graves e sonoras,
que, reboando pelas longas crastas da verdura, vão ecoar ao longe
como o toque lento e pausado do Angelus. A brisa, roçando as
grimpas da floresta, traz um débil sussurro, que parece o último eco
dos rumores do dia ou o derradeiro suspiro da tarde que morre.
Todas as pessoas reunidas na esplanada sentiam mais ou menos a
impressão poderosa desta hora solene, e cediam involuntariamente
a esse sentimento vago, que não é bem tristeza, mas respeito
misturado de um certo temor. De repente os sons melancólicos de
um clarim prolongaram-se pelo ar quebrando o concerto da tarde:
era um dos aventureiros que tocava Ave-Maria.
Todos se descobriram.
D. Antônio de Mariz, adiantando-se até à beira da esplanada, para
o lado do ocaso, tirou o chapéu e ajoelhou.
Ao redor dele vieram grupar-se sua mulher, as duas moças, Álvaro
e D. Diogo; os aventureiros, formando um grande arco de círculo,
ajoelharam-se a alguns passos de distância.
O céu com o seu último reflexo esclarecia a barba e os cabelos
brancos do velho fidalgo, e realçava a beleza daquele busto de
antigo cavaleiro.
Era uma cena ao mesmo tempo simples e majestosa a que
apresentava essa prece cristã, meio selvagem; em todos aqueles
rostos, iluminados pelos raios do sol do ocaso, respirava um certo
respeito.
(...)
Durante o momento em que o rei da luz, suspenso no horizonte,
lançava ainda um olhar sobre a terra, todos se concentravam em um
fundo recolhimento, e diziam uma oração muda, que apenas
agitava imperceptivelmente os lábios.
Por fim o sol escondeu-se; Aires Gomes estendeu o mosquete sobre
o precipício, e um tiro saudou o ocaso.
Era noite.
Glossário

Alcatifa: tapete grande; qualquer coisa que se estende e cobre o


chão;
Ouricuri: espécie de coqueiro;
Juriti: espécie de rola ou variedade de pomba, de peito branco;

Arrulhos: ato de arrulhar; canto ou gemido das rolas e dos


pombos;
Esvazar-se: esvaziar-se;
Urutau: ave de rapina, de hábitos noturnos, de cauda longa e cor
predominantemente pardo-amarelada (o grito dessa ave, entre
fúnebre e melancólico, é para alguns poético, mas para outros
agourento);

Reboando: retumbando; ecoando com intensidade e estrondo;


fazendo com que seja ouvido a longa distância;
Crastas: claustros; convento; clausura; mosteiro;
Roçando: tocar de leve, de raspão, por cima de;
Grimpas: lâmina que, girando em volta de um eixo pela ação do
vento, indica a direção deste;
Esplanada: terreno descoberto; planície; terreno plano, largo e
descoberto;
Mosquete: uma das primeiras armas de fogo usadas pela infantaria
entre os séculos XVI e XVIII.
A Manhã
Domingos dos Reis Quita

A rosada manhã serena desce


Sobre as asas do Zéfiro orvalhadas;
Um cristalino aljôfar resplandece
Pelas serras de flores marchetadas;
Fugindo as lentas sombras dissipadas
Vão em sutil vapor, que se converte
Em transparentes nuvens prateadas.
Saúdam com sonora melodia
As doces aves na frondosa selva
O astro que benéfico alumia
Dos altos montes a florida relva;
Uma a cantiga exprime modulada
Com suave gorjeio, outra responde
C’os brandos silvos da garganta inflada,
Como os raios, partindo do horizonte,
Ferem, brilhando com diversas cores,
As claras águas de serena fonte.
Salve, benigna luz, que os resplandores,
Qual perene corrente cristalina,
Que de viçoso prado anima as flores,
Difundes da celeste azul campina,
Vivificando a lassa natureza,
Que no seio da noite tenebrosa
O moribundo sonho tinha presa.
Como alegre desperta e radiosa!
De encantos mil ornada se levanta,
Qual do festivo leito a nova esposa!
A mesma anosa, carcomida planta
C’o matutino orvalho reverdece.
A úmida cabeça ergue viçosa
A flor, que rociada resplandece,
E risonha, perfumes vaporando,
Embalsamando vai o ar sereno.
De mil insetos um volátil bando
Errando gira pelo prado ameno,
E com brando sussurro de alegria
O astro louva do nascente dia;
Um, verdejante, voa, e reverbera
Da esmeralda o reflexo cintilante;
Em outro brilha da estrelada esfera
A bela cor azul: outro douradas
Mostra as ligeiras asas delicadas.
A formosa plumagem sacudindo,
O soberbo pavão, do bosque espesso,
Respirando alegria, vem saindo;
Da luz os novos raios vai buscando,
Do Íris representa as várias cores,
Da longa cauda, um círculo formando:
Volta a cabeça de um e de outro lado,
Por ver brilhar os trêmulos reflexos,
Que nas penas lhe acende o sol dourado.
Resplandecente Aurora, mãe do dia,
Que vens, de frescas rosas coroada,
Encher o vasto mundo de alegria!
Sol luminoso, que raiando brilhas,
Às leis do Criador obediente,
Vens fecundar da terra as maravilhas
Obras da sábia mão onipotente.
Sombra triste do sono tenebroso,
Dos olhos dos mortais foge ligeira,
Deixa que o esplendor maravilhoso
Possam vir contemplar da luz primeira,
E que à vista dos raios matutinos,
Que uma cena descobrem de portentos,
De prazer cheios, mil sagrados hinos
Mandem nas asas dos ligeiros ventos,
Porque soem por toda a redondeza
Os louvores do Autor da natureza.

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