Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A tarde ia morrendo.
O sol declinava no horizonte e deitava-se sobre as grandes
florestas, que iluminava com seus últimos raios.
A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando pela verde alcatifa,
enrolava-se como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das
árvores. Os espinhos silvestres desatavam as flores alvas e
delicadas; o ouricuri abria as suas palmas mais novas, para receber
no seu cálice o orvalho da noite. Os animais retardados procuravam
a pousada, enquanto a juriti, chamando a companheira, soltava os
arrulhos doces e saudosos com que se despede o dia.
Um concerto de notas graves saudava o pôr do sol e confundia-se
com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua
queda e ceder à doce influência da tarde.
Era Ave-Maria.
Como é solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa
do crepúsculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para
murmurar a prece da noite!
Essas grandes sombras das árvores que se estendem pela planície;
essas gradações infinitas da luz pelas quebradas das montanhas;
esses raios perdidos que, esvazando-se pelo rendado da folhagem,
vão brincar um momento sobre a areia; tudo respira uma poesia
imensa que enche a alma.
O urutau no fundo da mata solta as suas notas graves e sonoras,
que, reboando pelas longas crastas da verdura, vão ecoar ao longe
como o toque lento e pausado do Angelus. A brisa, roçando as
grimpas da floresta, traz um débil sussurro, que parece o último eco
dos rumores do dia ou o derradeiro suspiro da tarde que morre.
Todas as pessoas reunidas na esplanada sentiam mais ou menos a
impressão poderosa desta hora solene, e cediam involuntariamente
a esse sentimento vago, que não é bem tristeza, mas respeito
misturado de um certo temor. De repente os sons melancólicos de
um clarim prolongaram-se pelo ar quebrando o concerto da tarde:
era um dos aventureiros que tocava Ave-Maria.
Todos se descobriram.
D. Antônio de Mariz, adiantando-se até à beira da esplanada, para
o lado do ocaso, tirou o chapéu e ajoelhou.
Ao redor dele vieram grupar-se sua mulher, as duas moças, Álvaro
e D. Diogo; os aventureiros, formando um grande arco de círculo,
ajoelharam-se a alguns passos de distância.
O céu com o seu último reflexo esclarecia a barba e os cabelos
brancos do velho fidalgo, e realçava a beleza daquele busto de
antigo cavaleiro.
Era uma cena ao mesmo tempo simples e majestosa a que
apresentava essa prece cristã, meio selvagem; em todos aqueles
rostos, iluminados pelos raios do sol do ocaso, respirava um certo
respeito.
(...)
Durante o momento em que o rei da luz, suspenso no horizonte,
lançava ainda um olhar sobre a terra, todos se concentravam em um
fundo recolhimento, e diziam uma oração muda, que apenas
agitava imperceptivelmente os lábios.
Por fim o sol escondeu-se; Aires Gomes estendeu o mosquete sobre
o precipício, e um tiro saudou o ocaso.
Era noite.
Glossário