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IRANDE ANTUNES Mutto, alén acanctica POR UM ENSINO DE LINGUAS SEM PEDRAS NO CAMINHO i J . L. “@rapoo Digitalizado com CamScanner Cama & prosero ertrico: Andréia Custédio CIP-BRASIL. CATALOGAGAO NA FONTE SINDICATO NACIONAL BOS EDITORES DE LIVROS, RI ee param Antunes, kandé,1937- Muito além da gramtica: por um ensino de linguas sem pedras ‘no caminho /Irandé Antunes. S30 eaulo: Pardbola Editorial 2007. (stratégias de ensino ;5) Inclu bibliografa ISBN 978-85-88456.61-7 1. Lingua portuguesa -Estudo e ensino. 2 Lingua portuguesa ~ Gramitica-Estudo eensino.3.Linguagem elinguas.. Titulo. Série, 07-0257 cop 4698 (COU 8111343242 Direitos reservados & PARABOLA EDITORIAL Rua Dr. Mario Vicente, 394 | Ipiranga (04270-000 Sé0 Paulo, SP ‘atx 11] 5061-9262 | 5061-8075 | ra [11] 2589-9263 home page: www.parabolaeditorial.com.br e-mail: parabola@parabolaeditorial.com.br “Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzids ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer ‘meios (elerénico ou mecdnico, incluindo fotocépiae gravagdo) ‘ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissSo por escrito da Pardbola Editorial Ltda ISBN: 978-85-88456-61-7 1 edigto- 7*teimpressio:fevereito de 2015 © do texto: Irandé Antunes, 2007 oda :Parabola Editorial, So Paulo, fevereiro de 2007 Digitalizado com CamScanner A Vinicius £ ANTONIO, que vivem as primeiras surpresas e o primeiro encantamento do mundo da linguagem. Que “a poesia desse momento” lhes “inunde a vida inteira” Digitalizado com CamScanner 800 NO MEIO DO CAMINHO No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tao fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. (C. Drummond de Andrade. Poesia completa e prosa Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973, pp. 61-62) Digitalizado com CamScanner Sumario Prercro: AGUA MOLE EM PEDRA DURA..., Marcos Bagno ... 11 IxtRoDucao...... 15 Capiruto 1 GRaMATICA: UMA AREA DE MUITOS CONFLITOS... .. 19 CapiruLo 2 QUE GRAMATICAS EXISTEM? - 25 2.1. Gramatica 1: conjunto de regras que definem o funcionamento de uma lingua. ssn se sensinnnnn — 26 2.2. Gramitica 2: conjunto de normas que regulam 0 uso da norma culta...... 30 2.3. Gramatica 3: uma perspectiva de estudo dos fatos da linguagem.... 31 2.4. Gramética 4: uma diseiplina de estudo... 32 2.5. Gramatica 5: um compéndio deseritivo-normativo da lingua... 33 CapfruLo 3 A URGENCIA DE EXPLORAR A GRAMATICA SEM EQUIVOCOS ...... 35 CapiruLo 4 LINGUA F GRAMATICA NAO SAO A MESMA COISA 39 4.1. Lingua e gramatica . nl 4.2. Lingua e léxico . 42 4.3. Implicagdes para o ensino.. 4 Cariruno 5 NAO BASTA SABER GRAMATICA PARA FALAR, LER E ESCREVER COM SUCESSO 53 5.1. Os recursos a outros tipos de conhecimento, além do conhecimento gramatical... — 54 5.1.1. 0 conhecimento do real ou do mundo 55 Digitalizado com CamScanner 10 5.1.2. 0 conhecimento 5.1.3.0 conhecimento 5.2. Implicagées para o ensino... CarfruLo 6 Exel ESTUDAR REGRAS DE GRAMATICA 6.1.0 que sao regras de gramética? .. 6.2, 0 que sio nomenclaturas gramaticais.. 6.3. Implicagdes para 0 ensino. dos recursos de textualizagao das normas sociais de uso da lingua LORAR NOMENCLATURAS E- CLASSIFICAGOES NAO E CairuLo 7 A NORMA SOCIALMENTE PRESTIGIADA NAO E A UNICA NORMA LINGUISTICAMENTE VALIDA ..... 111. Norma como regularidade e norma como prescrigao .. 712. Norma culta. ' 73, Norma culta ideal e norma cul 714, Norma-padrao. 715. Implicagdes para o ensino Ita real .... Capiruto 8 NEM TODO USO DE LINGUA TEM QUE SE PAUTAR PELA ‘NORMA CULTA 8.1.0 fenémeno da variagdo linguistica. 8.2. Implicagdes para 0 ensino.... Cariruo 9 UM Novo PADRAO GRAMATICAL NAO SE JUSTIFICA PRIORITARIAMENTE PELOS MANUAIS 9.1, As normas dos manuais 9,2. As normas do Uso... 9.3. Implicagdes para 0 ensino.. CarfruLo 10 PARA MELHOR ENTENDER A TRAMA DE TANTOS EQUIVOCOS ... 10.1. De onde vém os equivocos? 10.2. Quem os mantém’ 10.3. A quem ou a que server esses equivocos? CapiruLo 11 UMA ANALISE DE GRAMATICA, MUITO AQUEM DO TEXTO .. CarrruLo 12 UMA SUGESTAO DE PROGRAMA MUITO ALEM DA GRAMATICA... CapiruLo 13 Novas CONCEPGOES DE LINGUA E SUAS REPERCUSSOES... Cariruto 14 LinGua £ GRAMATICA NAO SAO UMA RIMA... PODEM SER UMA SOLUGAO? .... Biuiocraria . Digitalizado com CamScanner 58 83 65 69 0 n 81 85 86 87 1 4 100 103 103 107 ul 12 5 16 19 19 1. 122 125 133 145 159 163 PREFACIO Agua mole em pedra dura... ‘Marcos Bacno Universidade de Brasilia ‘No caso da lingua, é bastante claro que o que se diz sobre ela no senso comum é de fato, muito pouco. Mas — temos de reconhecer — é também muito pouco o que temos realizado em termos do estudo eda compreensio dessas articulagées discursivas do senso comum, Continua pouco claro, por exemplo, o porqué de tais enunciados nunca perderem sua vitalidade (esto sempre ai, inedlumes e disponiveis para o eterno retorno). Do mesmo modo, permanecem ‘obscures os processos que, a cada vez, motivam o reemergir daqueles raros enunciados. Ha portanto, muito ainda a se fazer no destringamento dos dizeres sociais sobre a lingua, Carlos Alberto Faraco! O TELEFONE toca na tarde azul de domingo brasiliense e, ‘quando atendo, recebo a saudacao gostosa da minha amiga Irandé — antncio de mais uma conversa divertida, afetuosa e cheia de ob- servacdes perspicazes e originais. Irandé, afinal, é uma das pessoas 1: Carlos Alberto Faraco, “Norma padrdo brasileira: desembaragando alguns nés”, em M. Bagno (org), Linguistica da norma (Sao Paulo, Loyola, 2002, p. 37). Digitalizado com CamScanner MUITO ALENT DA GRAMATICA 2 nego e, para melhorat, Usa essa inteligéng, or imbativel. Ela consegue fazer riy es me lembro de uma ocasido em que, tea. tralmente de pé, arrancol lagrimas de umas we DeSSoBs cea & mesa de um restaurante, lagrimas suscitadas pelo riso intenso g quase incontrolavel que ela provocou em nds a0 faa UMA aNilise engracadissima de uma tinica frase escrita “ aves dos quartog do hotel em que estavamos todos hospedados. Tem que ser uma pes. soa profundamente intima da linguagem e de suas filigranas para fazer algo assim. mais inteligentes que conh aliada a um senso de hum’ uma facilidade invejavel — Pois nessa conversa que tivemos por telefone, em meio a um ¢ outro caso divertido que ela narrava, Trandé também me confessava uma inquietago. Tinha escrito um novo livro, mas receava que de “novo” ele nada tivesse. Afinal, ela argumentava, essas ideias sobre oque ée0 quenio é gramatica, o que deve ou nao deve ser ensinado, em que consiste a tarefa do professor de portugués ete. ja vém sendo repetidas ha pelo menos vinte e cinco anos por linguistas e educa- dores. Sera que vale a pena insistir? Tanta gente boa vem debatendo isso, tantos documentos oficiais, tantos materiais elaborados para a formagio docente, tantos livros e artigos ja se acumulam em torno dessas questées... De que pode servir mais este livro? Respondi argumentando que, sim, valia a pena publicar aquele trabalho. Antes de mais nada porque (como eu previamente ja sabia, por ser dela, e pude confirmar ao ler mais tarde os originais) se trata de um livro bom de ler, deliciosamente bem escrito, sustentado nao s6 por um conhecimento tedrico sdlido, mas também por um desejo sincero de comunicacao direta com o leitor. (Por mais paradoxal que isso possa parecer, séo poucos os linguistas que conseguem escre- ver de um modo minimamente interessante e agradavel, como se 0 trato cientifico com a linguagem nao implicasse também um bom uso dela. $6 isso justificaria a publicagdo,) Mas o livro também me- rece vir a piiblico (ou melhor, o piblico também merece este livr0) porque aborda assuntos decerto ja debatidos, mas enfrentados aqui em nova chave, na perspectiva de alguém que exerce a atividade docente ha algumas décadas e conhece de perto a situacao poten Digitalizado com CamScanner AGUA MOLE EM PEDRA DURA... cialmente catastréfica das salas de aula do Brasil em geral e, mais especificamente, da regio Nordeste, onde Irandé nasceu, se formou e vem atuando mais intensamente (privilégio de poucos, fui aluno dela na Universidade Federal de Pernambuco). & uma professora que dialoga em pé de igualdade com outras professoras e professo- Tes, e nao uma autoridade académica que vem criticar o que existe sem oferecer nada em troca. 0 que Irandé oferece aqui é a riqueza de sua vida, um tesouro de saberes e fazeres com o qual nenhuma erudigao livresca pode competir. Com Irandé, entre outras pessoas, compartilho a militancia em favor de uma educagao linguistica que transforme para melhor a vida das pessoas — discentes e docentes —, uma educagao lingufs- tica que se concentre no que é relevante para a formacao humana e intelectual dessas pessoas, uma educacdo que seja honesta no que propée, sem esconder a realidade sociocultural intrinsecamente ex- cludente que é a nossa, sem fazer a propaganda enganosa de que basta “saber gramatica” para ser capaz de ler e escrever produtiva- mente nem de que “saber portugués” é garantia de “ascensao social”. Esta educacao linguistica que opera com as nogées de relevdncia e honestidade nao pode, sob pena de contradicao, insistir no ensino (isto é, na inculcagao) de contetidos indcuos, de praticas de andlise estéreis e centradas em si mesmas, de construtos tedricos elaborados antes de Cristo e repudiados ha bom tempo pelos empreendimentos cientificos, de uma metalinguagem falha e inconsistente, quando nao francamente errénea. § um crime, em todos os sentidos da palavra, desperdigar o espago-tempo da sala de aula — rarefeito e, portanto, precioso num pais de tradigao educacional paupérrima como 0 nos- so — com “aulas de gramatica”, “andlise sintatica”, “classificacdo dos termos da oragéo”, com questées bizantinas e surrealistas como a da suposta distingao entre “adjunto adnominal” e “complemento nominal”, com a perpetuagao de um mito como o da existéncia da “passiva sintética”, com a transmissdo de nogGes nebulosas como a de uma “norma culta” rigidamente fixada pelos séculos amém... Quando, em trabalho com professoras e professores em formagao ou jd em atuagiio, apontamos os defeitos, as incongruéncias e a fran- 13 Digitalizado com CamScanner ™ MUI ALEME DA GRAMATICA ca inutilidade daquelas priticas tradicionais de ensino, 2 questig inovitdvel 6 “Entdo, se ndo é para ensinar gramdtica, é para Itzerg qué?” Bssa éa pergunta que poderia nos imobilizar, nos fazer desis. tir da profissio, pendurar as chuteiras ¢ ir cuidar do nosso jardin, Muito frequentemente (quase inexoravelmente), aquela Pergunta emerge no final de encontros que lemos com esses docentes, como se tudo 0 que dissemos antes, no Curso ou na palestra, nao tivesse encontrado eco em suas mentes, nio tivesse provocado ondas na gy. perficie de suas aguas interiores — ¢ é grande a nossa perplexida. de, a de no termos conseguido fazer germinar sequer a semente de mostarda que, fnfima embora, ja nos daria alguma boa Sensagio de dever cumprido. Onde esta o problema? O problema esta em toda parte — decerto ‘em nds mesmos, naquilo que dizemos-fazemos, no modo como dize- mos-fazemos, e sem diivida também naquilo que esta de tal modo arraigado nas mentalidades que somente por meio da repeticao in- cessante, insistente, paciente sera possivel fazer questionar para, mais tarde ainda, transformar. IS 0 que diz nosso velho provérbi “Agua mole em pedra dura, tanto bate até que fura...” E ndo é por acaso que o subtitulo deste livro fala justamente das pedras no ca- minho do ensino de linguas — as pedras em que é preciso bater até se transformarem em agua fresca e saudavel., Por isso, Irandé querida, este livro tem que ser publicado, para que ele sirva como mais uma etapa no “destrincamento dos dizeres sociais sobre a lingua”, como escreveu brilhantemente nosso colega Carlos Alberto Faraco, Assim, ¢ com enorme alegria que escrevo es- tas palavras de introdugio a ele e de agradecimento a ti. JA apren- di muito contigo quando fui teu aluno, ¢ aprendo ainda mais agora quando sou teu leitor privilegiado ¢ companheiro de luta. Digitalizado com CamScanner Introducao SU UUEIEE ESI ee / 0 QUE PRETENDO com este livro é trazer para o debate pti- blico a questéo da gramatica e de seu ensino na escola. Na verdade, isso tem sido feito na midia impressa ¢ televisiva. S6 que, em geral, nessas situages, tem-se adotado uma perspectiva baseada na corre- Gao de erros ou em questées muito pontuais, que se resolvem facil- mente, com explicagées gerais, simplistas, simplificadoras e pouco fundamentadas, Minha pretensio aqui é outra: quero que as pessoas possam ter acesso a um olhar diferente sobre a gramdtica, um olhar respaldado pela investigagiio das ciéncias da linguagem. Infelizmente, os avancos conseguidos pelos estudos linguisticos ainda néo chegaram ao grande publico, nem mesmo aquele ptibli- co que teve acesso ao estudo de linguas na escola. Pelo contrario, 0 contato com esse estudo tem repercutido de forma pouco positiva nas pessoas, no que se refere as perspectivas com que se veem a lin- guagem, a lingua, a gramatica, 0 vocabulério etc. Tudo se mistura numa imensa confusio, agravada pelas pressdes sociais em torno do ideal de um falar correto, supostamente mais perfeito e prova de superioridade intelectual e cognitiva. E 0 resultado é que, quando se sai da escola, se sai muito mais confuso, com uma visao de lingua Digitalizado com CamScanner urro ALEM Da GRAMATICA deturpada, reduzida e falseada, terreno muito propicio a gestacag a preconeits ede simplismos incabiveis. A dificuldade de se propor para 0 grande Piiblico e mesmo parao publico Jetrado) o debate sobre a gramatica reside também no fato de, em geral, as pessoas ee que as questies lin. guisticas n&o Thes dizem respeito, “nao tém nada a ver” com suas atividades profissionais, com suas relagdes familiares, com ray interagdes nos diferentes grupos sociais em que atuam. Questies linguisticas, dizem, “so questOes para professores de linguas ou para gramaticos. N&o nos pertencem”. Paradoxalmente, em muitas situagdes, essas mesmas pessoas se sentem muito @ vontade para emitir opiniGes sobre a lingua, @ muito pior, sobre seu ensino, sobretudo quando 0 assunto é ensing de gramdtica. Pretendo, portanto, desfazer aqui alguns dos equivocos que se criaram em torno da gramatica, a fim de que se possa enxergar a lin- gua com uma visio cientifica, livre de suposigdes infundadas, livre da ingenuidade dos “achismos” faceis, que, embora sedimentados histo- ricamente, nao deixam de ser individualmente irrelevantes e redu- tores e, socialmente, discriminatérios, inconsistentes e excludentes. O fato de eu me centrar nos equivocos tem uma motivacao ape- nas metodolégica. Quero partir das concepgdes do que néo é gra- médtica — ponto onde se situam os enganos, as falsas percepcdes —, para chegar a compreensao do que ela é, de fato, e, consequentemen- te, dos desdobramentos que pode ter o seu ensino. Se meu propésito €atacar os equivocos, quero comecar Por aponta-los e, a seguir apre- sentar, com fundamentos cientificos, as razoes por que podem ser considerados, exatamente, equivocos. Embala-me um sonho Parcialmente, Mais cientifica na vida das pe; a descoberta positivo de oferecer as pessoas, mesmo nogdes de acesso a uma compreensao mais ampla, € mais relevante do que sejam os usos da linguagem™ ssoas., Lamentavelmente, a escola nao tem propiciado dessa amplitude e dessa relevancia, E a linguagem, 3 Digitalizado com CamScanner INTRODUGAO questées lingufsticas despertam apenas muito poucos interesses e quase nenhum fascinio, Esta fora de meus propésitos apontar aqui os culpados. Mas me interessa (e muito) focalizar os pontos onde tém origem esses equi- Vocos, para mais facilmente podermos refazer as veredas por onde viemos construindo nossa percepgdo da linguagem e de seu ensino. Para quem falo neste livro? Para os professores de linguas? Para os professores de portugués? Para o publico em geral, ou seja, para qual- quer pessoa que se preocupa (ou se inquieta) com questdes de gramé- tica e de seu ensino na escola? &. & para esse puiblico em geral. Seja professor ou nao; seja um profissional que lida diretamente com a linguagem (como os profissionais que escrevem, que lem, que fazem da palavra seu instrumento de trabalho) ou nao; seja estudante ou nao. Nao importa. Queria que qualquer pessoa pudesse parar um Pouco para pensar, com olhos de amplidao, nessas coisas da lingua- gem, da lingua, da gramatica, Marcos Bagno, em nossas conversas sobre o tratamento que a linguagem recebe na escola e na midia, muitas vezes, me sugeriu: — Irandé, escreve um livro para os pais dos alunos! Pode ter chegado a hora: e eu estou escrevendo para os pais, para 0s filhos, para os professores, para qualquer um que queira entender um pouco mais das coisas da linguagem, da lingua e da gramatica... J é tempo de as descobertas da lingufstica deixarem de estar con- finadas a contextos especializados; jé é tempo de.., ganharem a rua. Se este trabalho tem alguma coisa de deniincia, espero que te- nha também muito de antincio. Antincio do que pode ser visto nou- tros horizontes, do que pode ser feito por outras vias... As reflexdes que fago aqui tém raizes em todos os meus encontros com professores; de muitos Estados deste Brasil. Encontros em que Digitalizado com CamScanner MUITO ALEM DA GRAMATICA tenho tido oportunidade de ouvir suas dtividas, de sentir seys rece; de avaliar suas esperancas, de confirmar suas adesées, Encontro, que tém sido, assim, para ambos os lados, terrenos de Sementeipa, Como inspiracao e forga para esses encontros, existe tambs, “presenga” de muitos colegas amigos que, de diferentes formay e em diferentes lugares, vo também realizando outros encontros noutras sementeiras, embalados pelos mesmos ideais. Entre essa presengas, merecem uma referéncia muito especial os amigos Catlos Alberto Faraco, Marcos Bagno, Marcos Marcionilo, Egon de Olive). ra Rangel, Ana Lima, Auxiliadora Lustosa, Izabel Pinheiro, Reging Pinheiro. Com eles, em momentos diferentes, troquei ideias e colpj sugestdes. Alfredo Antunes foi o leitor particular de cada dia, uma espécie de personal trainer de minha ginastica reflexiva e verbal, Como imagens de fundo, dando sentido a tudo, podem ser vistos meus alunos do mestrado na Universidade Estadual do Cearé; po. dem ser vistos os professores e as professoras que vivem a procura de “boas sementes” para novos terrenos. Talvez, algumas possam ser encontradas aqui... Acada um, meus agradecimentos e a vontade de dividir a tltima versio desse falar que eles me ajudaram a expressar. Digitalizado com CamScanner CAPITULO G Tam atica: uma area de muitos conflitos Uma das constantes universais é a estreita relagéio que as pessoas mantém com a linguagem, diante da qual alimentam crencas, fazem conjeturas, assumem posturas e atitudes. Muitas vezes, sob a inspira- Gao de mitos e suposigdes fantasiosas. Poucas vezes, certamente, sob o controle da observagao e da investigagao cientifica. Daf poder-se reconhecer uma preocupacao reincidente, de todas as comunidades linguisticas, com a preservagao da lingua, seja pelo fato de ela repre- sentar um fator de identidade cultural, seja pela condigao de ela cons- tituir o meio privilegiado de garantir a necessaria interagao social. E que, de fato, o que esté em jogo, numa situacdo de fala qual- quer, é mais que a pura e simples emissao de uns sons, mesmo de uns sons que expressam significados'. Na verdade, por tras das vo- 1. Por muitas razées, é salutar a leitura do livro Portos de passagem, do Prof. Wanderley Geraldi, Chamo a atengdo, em particular, para capitulo em que 0 autor Digitalizado com CamScanner 20 re oS MUFTO ALEM DA GRAMATICA mos e ouvimos, existe um mundo de cenarios, dg , de valores, de histérias. De agora, de ontent rs ems 20 mals remo, como dito poeta Fert ui em nossas vozes, pode-se ouvir to lo Nu ib um “alan pois somos, especialmente pela linguagem, cen elha de uma me de e ininterrupta chama, que confere sentido a tudo o que existe As atividades que implicam 0 uso da lingua representam, porte campo em que, mais especificamente, se exercita a Constituigsg mesma da espécie humana. Ganha sentido, pois, 0 empenho de todas as culturas Por ga. rantir politicas sociais de preservagao da lingua, como forma de assegurar a identidade cultural das comunidades @, até mesmo, identidade politica de certos dominios. Fazer concessées lingyjs. ticas, no sentido de se aceitar, oficialmente, a presenga de outras Tinguas em um territério demarcado, pode significar 0 comeco da perda de um dominio politico. Historicamente, ha provas de que 0s exércitos, ao lado das fron. teiras geograficas, defendem a identidade linguistica dos territérios, Ou, por outras palavras, a0 lado da conquista de novas terras se ins- tala a imposicao de uma nova lingua. Nao por acaso. zes que fala ras, de intengdes, Em seu livro Portugués ou brasileiro: um convite & pesquisa, Marcos Bagno alude a essa aproximacao e diz: A relagdo entre descobertas maritimas e elaboracao das primeiras gre- miaticas fica nftida nesta coincidéncia de datas: no mesmo ano de 1492,em que Colombo descobriu a América, foi publicada a primeira graméticada lingua espanhola, de autoria de Antonio Nebrija. Nebrija assume sem rodeios a relagdo entre gramatica e conqus- ta colonial sendo suas as famosas palavras: “A lingua sempre fa companheira do Império” (p. 46). aie “ages que se fazem com a linguagem”, A obra de José Carlos Cunha, Prag Sanguine didatea das ingua, também traz vlioss contribugées Pr 1 dimensio pragmétiea da lin i siderayao, também letra de Se nas Hing Na mesma lina de co Digitalizado com CamScanner GRAMATICA: UMA AREA DE MUITOS CONFLITOS... Como se pode concluir, o uso de determinada lingua constitui mais que um fato isolado. & mais que um fato especificamente lin- Buistico, vocal ou grafico. I mais que um exercicio pratico de emis- sao de sinais. E um ato humano, social, politico, histérico, ideolégico, que tem consequéncias, que tem repercussdes na vida de todas as pessoas. 5 um fato pelo qual passa a histéria de todos, o sentido de tudo. Parece oportuno trazer aqui as palavras de Perini (2006, p. 52), quando diz: Cada lingua é um retrato do mundo, tomado de um ponto de vista di- ferente, e que revela algo nao tanto sobre o proprio mundo, mas sobre a mente do ser humano. Cada lingua ilustra uma das infinitas maneiras que o homem pode encontrar de entender a realidade. Nesse quadro téo amplo, em que a lingua aparece como um cons- titutivo da espécie humana, como recurso para o sentido que as pes- soas atribuem a si mesmas, ao mundo, As coisas todas; nesse quadro, em que circunstancias sociopoliticas da vida humana esto atrela- das as atividades da interacao verbal; nesse quadro, repito, tentamos identificar a Gtica com que a lingua tem sido vista na escola e entre © comum das pessoas. Surpreende reconhecer quanto diferem os olhares observadores dos que fazem da lingua um objeto de ciéncia, e os olhares miticos dos que cristalizaram verdades irrefutaveis, entre os quais, por ve- zes, se incluem até mesmo os olhares daqueles que assumem a tarefa pedagégica de orientar 0 ensino. Essa diferenga de olhares se perce- be, sobretudo, pelo angulo da redugao, da simplificacao que os fatos linguisticos sofrem na escola quando sao submetidos as atividades de um suposto ensino. Dessa redugao provém os muitos equivocos que fortalecem os preconceitos linguisticos, que alimentam os programas irrelevantes eas praticas inadequadas de ensino, sobretudo quando se desembar- ca na plataforma da gramitica. Pois, se so tortos os olhos com que se vé a lingua, em geral, muitos mais tortos sao eles quando se vé a gramatica, em particular. 2 Digitalizado com CamScanner oN Os equivocos logo acima referidos cobrem uma area exte : pois vao desde a crenca ingénua de que, para se garantir Cficiéneis nas atividades de falar, de ler e de escrever, basta estudar Gameéti (quase sempre nomenclatura gramatical), até a crenga, tambg in génua, de que nao é para se ensinar gramdtica. Aservico de Um ede outro extremo, encontramos politicas de ensino, programas de inter vengao ou de orientacao. Basta ver, por exemplo, a aco “Vigilante e zelosa” da midia, a qual, reforcando a crenca de que “as dificuldades verbais das pessoas sao dificuldades de gramatica’, promove uma série de flashes e de colunas (até mesmo na televisao e na internet), onde as “diividas sao inteiramente esclarecidas”, sem qualquer res. quicio de imprecisao ou de fluidez. MUITOALEM DA GRAMATICA Em um e outro caso — o da gramatica onipotente e o da gra. matica simplificada e exata — a populacao parece ficar acalmada, em paz com a lingua, embora cega perante a imensa heterogene. dade e flexibilidade dos usos. Num faz de conta tranquilizador. mas estéril e pernicioso, pois, na hora de entender ou de escrever um texto mais complexo, “o saber gramdtica” se mostra, irreme- diavelmente, insuficiente. Esta evidente, pois, o carater da gramatica como uma drea de grandes conflitos. Conflitos internos, oriundos da propria natureza dos fatos linguistics. Conflitos externos, oriundos de fatores histé- ricos que concorrem para a constituigao dos fatos sociais (a lingua é um deles; nao esquecamos), Dessa forma, a lingua nao pode ser vista tao simplistamente, como uma questao, apenas, de certo e errado, ou como um conjunto de palavras que pertencem a determinada classe e que se juntam para formar frases, a volta de um Sujeito e de um predicado. A lingua é muito mais que isso tudo. & parte de nds mesmos, de nossa identidade cultural, historica, social. & por meio dela que n° socializamos, que interagimos, que desenvolvemos nosso sentiment de pertencimento a um grupo, a uma comunidade. £ a lingua ave nos faz sentir pertencendo a um espago. E ela que confirma nos’ Digitalizado com CamScanner GRAMATICA: UMA AREA DE MUITOS CONFLITOS. declaragao: Eu sou daqui. Falar, escutar, ler, escrever reafirma, cada vez, nossa condicéo de gente, de pessoa histérica, situada em um tempo e em um espaco. Além disso, a lingua mexe com valores. Mo- biliza crencas. Institui e reforga poderes. Por isso, anima-me, nesse momento, 0 interesse por enfocar o que é preocupante, no que concerne 4 compreensao do que é a lingua, do que é a gramatica. Minha pretensao, portanto, 6, nos capitulos que se seguirao, desfazer alguns dos equivocos com que a gramatica tem sido vista, trazendo, para isso, a contraparte dos principios cientffi- Cos que podem sustentar outras vis6es, e, em consequéncia, inspirar outro tratamento escolar para os fatos gramaticais. A partir dessas novas visdes, tentarei indicar outros pontos de muito maior relevancia para a eficdcia discursiva do que o simples estudo da gramatica e de suas nomenclaturas. E preciso reprogramar a mente de professores, pais e alunos em geral, para enxergarmos na lingua muito mais elementos do que simplesmente erros e acertos de gramdtica e de sua terminologia. De fato, qualquer coisa que foge um pouco do uso mais ou menos estipulado é vista como erro. As mudangas nao sao percebidas como “mudangas”, séo percebidas como erros. A titulo de exemplo, gostaria de referir a experiéncia de uma professora que, analisando com seus alunos textos em portugués do século XVI, ficou surpresa ao ouvir deles que “aqueles textos esta- vam cheios de erros”. Mais ainda: pela internet, circulou um tex- to com uma lista de expressdes que “todos nés dizemos de forma errada”: como “Batatinha, quando nasce, se esparrama pelo chao”; segundo o comentario, o certo deveria ser “Batatinha quando nasce, espalha a rama pelo chao”. Isto ¢, tudo é imediata e sumariamente tachado como erro; de nds, uns “descuidados contumazes e incura- veis”, quando se trata das questées linguisticas. Diante desse quadro, lembro-me de uns versos de Fernando Pes- soa, que, embora de poemas diferentes, se aplicam perfeitamente ao sem sentido de como muitas vezes a linguagem é vista na escola: 23 Digitalizado com CamScanner MUITO ALEM DA: GRAMATICA “No piano andnimo da praia Tocam nenhuma melodia” eee “pobre dria fora de miisica e de voz Tio cheia de nao ser nada”. E, parafraseando Pessoa, nao podemos deixar de lamentar: Pobre lingua escolar! Tantas vezes fora de voz e tao cheia de nao ser nada! Digitalizado com CamScanner CAPITULO Que Gramaticas existem? NORMALMENTE, quando as pessoas falam em gramdtica, desconhecem que podem estar falando no de uma coisa s6, mas de coisas bem diferentes. Essa falsa impressdo é também decorrente daquela ja referida reducao que os fatos linguisticos tém sofrido, Na verdade, quando se fala em gramdtica, pode-se estar falando: a) das regras que definem o funcionamento de determinada lin- gua, como em: “a gramatica do portugués”; nessa acepcao, a gramética corresponde ao saber intuitivo que todo falante tem de sua prépria lingua, a qual tem sido chamada de “gra- miatica internalizada”; b) das regras que definem o funcionamento de determinada nor- ma, como em: “a gramética da norma culta”, por exemplo; c) de uma perspectiva de estudo, como em: “a gramatica gera- tiva”, “a gramatica estruturalista”, “a gramatica funcionalis- Digitalizado com CamScanner ~\ MUITO ALEM DA GRAMATICA 26 histérica de abordagem, como emplo; 0 em: “aulas de gramétie,», ta”,oude uma tendéncia gramatica tradicional”, por ex’ d) de uma disciplina escolar, com ©) de um livro, como em: “a Gramdtica de Celso Cunha”, em, Cada uma dessas acepgoes se refere a uma coisa diferente. n, das, na verdade, coexistem sem problemas, mas precisam ser Petee. bidas nas suas particularidades, nas suas func6es e nos seus limites ‘Vamos ver um pouquinho de cada uma, demorando-nos Naquelas que mais nos interessam neste momento. GramArica 1: CONJUNTO DE REGRAS QUE "__ DEFINEM 0 FUNCIONAMENTO DE UMA LINGUA Nesse sentido, gramdtica abarca todas as regras de uso de um, lingua. Envolve desde os padroes de formacao das silabas, passan. do por aqueles outros de formacéo de palavras e de suas flexies, até aqueles niveis mais complexos de distribuigéo e arranjo das unidades para a constituigao das frases e dos periodos. Nada nz lingua, em nenhuma lingua, escapa a essa gramatica. Por isso é que se diz que nao existe lingua sem gramatica. Nem existe gra- matica fora da lingua. Ou, ninguém aprende uma lingua para de- pois aprender a sua gramatica. Qualquer pessoa que fala uma lin- gua fala essa lingua porque sabe a sua gramatica, mesmo que nao tenha consciéncia disso. Como ilustracao, analisemos o seguinte fato. Uma crianga de? anos e quatro meses, ao ser interrogada se queria falar pelo telefore com a avé, respondeu prontamente: — Quero. Observemos que essa crianca ndo disse “queremos”, “quis’ “qe rem’, nem outra coisa qualquer que néo fizesse sentido nessa stuss? especifica. Pelo contrario, usou o verbo nas flexdes de tempo, 7°" Pessoa e mimero adequadas, omitiu o pronome sujeito, omiti ae Digitalizado com CamScanner [QUE GRAMATICAS EXISTEM? plemento do verbo, uma vez que esses elementos estavam contidos no contexto da interaciio, Certamente, se a pergunta tivesse sido: — Quem quer falar com a vove? i — 0 garoto nao teria omitido o pronome e teria respondido: — Eu quero! — ou, simplesmente: —Eu. O propésito dessa simples andlise é apenas tentar demonstrar como a gramatica da lingua, no sentido de “ da”, de conhecimento das particularidades di nativa, faz parte do conjunto de saberes que desde a mais tenra idade. ‘gramatica interioriza- la gramética da lingua as pessoas desenvolvem Se uma crianca diz “minhas colegas e meus colegos”, “um algo- dao” e “um algodinho”, é porque ja domina as regras morfossinta- ticas de indicac&o do masculino e do feminino, bem como as regras de indicaco do aumentativo e do diminutivo em portugués. Ou seja, J4 sabe esses pontos da gramatica. Da gramatica geral que regula o funcionamento da sua lingua: por exemplo, se a lingua tem artigos, se tem preposigdes, se adota flexes (de mimero, de género, de grau, de tempo ete. e para que tipos de palavras), que posigGes as palavras podem ocupar na frase, que fungdes podem ser atribuidas a essas posig6es etc. Como lembra Scherre (2005, p. 9), “com 3 anos de idade, qualquer crianca de qualquer parte do mundo se comunica com es- truturas linguisticas complexas”. Mas existe a ideia simplista e ingénua de que apenas a norma culta segue uma gramatica. As outras normas funcionam sem gra- matica. Movem-se a deriva. Ora, toda lingua — em qualquer condi- cao de uso — é regulada por uma gramatica. Quando um professor se queixa de que “os alunos chegam a oe série e nao conhecem as regras de gramatica”, evidentemente, esta se teferindo a uma outra gramitica, fora dessa primeira acep¢ao, pois esta jA se encontra consolidada. E pelo resto da vida. Quando outro professor fala na “obrigatoriedade do uso da gramatica “também 27 Digitalizado com CamScanner SN Murra ALeM DA GRAMATICA 28 : outra gramatica. B que, nesse primeiro sent og ear aaitig Anise A gramitica é constitutiva da lin, Nig quer dizer: faz a lingua ser 0 que é pa pode ser uma questig escolha, algo que pode ser ou deixar de ser obrigatério. Simplesmen. te, é, faz parte, Nem requer ensino formal. Também quando alguém fala em “regras gramaticais complica. das” tem em mente outra gramatica. Nao existe lingua complicadg para os falantes nativos de qualquer lingua. Todos sabem dizer 4 que querem dizer, o que precisam dizer. Quando um proféssor pergunta: “O que fazer para ajudar os aly, nos a produzirem textos, quando eles nao tem conhecimento de gra. mitica?”, demonstra que ainda nao entendeu que existe uma gramg. tica jd internalizada. Certamente, a essa altura, 0 que mais os alunos sabem é a gramatica da lingua, no sentido dos seus usos reais, Acredito que valeria a pena dizer essas coisas para os alunos pelo menos, eles se sentiriam mais encorajados a empreender a ta. refa de ampliar suas habilidades comunicativas. Seria étimo se nés, professores, de vez em quando disséssemos: “Vocés sabiam que jé sabem a gramatica da nossa lingua?”, e demonstrassemos isso por meio de exemplos simples e ricos! E curioso perceber que, entre a populagiio analfabeta ou poucole- trada, nao se ouve a queixa de que a “lingua € dificil” ou a “gramitica € complicada”. $6 na escola é que vao nos convencer de que “a lingua € dificil” e, pior ainda, de que “nao sabemos empregé-la bem”, Me espanta constatar que a ideia de que “néio sabemos falar portugués, sé uns muito poucos é que sabem!” é uma das mais arraigadas, das mais inculcadas, que resiste a toda e qualquer argumentagdo em contritio. (Funciona como um dogma: é intocavel,) Por outro lado, talvez, nem me devesse espantar, reconhecendo o lugar de origem dessa cantilena aa py Valea pena lero livro O portugués sdo dois... da autoria da professora Ross Vtg nla Mattos eSilva (ver indicagées completas na bibliografia), onde, sob enfoques ive Sio tratados problemas relatives & diversidade linguistica do portugués ea seu ezst® Digitalizado com CamScanner QUE GRAMATICAS ExISTEND Vale a pena refletir: um menino, em tenra idade, aprende fa- ejlmente uma lingua. Um estudante, ao contrario, tem dificuldade em aprender “a lingua” que Ihe ensinam. Por qué? Vale a pena perguntar-se. Em sintese, a gramatica da lingua vai sendo aprendida natural- mente, quer dizer, na propria experiéncia de ir fazendo tentativas ouvindo e falando. Nao ha um momento especial nem uma pessoa especifica destinados ao ensino dessa gramatica. Ela vai sendo incor- porada ao conhecimento intuitivo, pelo simples fato de a Pessoa estar exposta 4 convivéncia com os outros, a atividades sociais de uso da lingua, das conversas familiares as atuacdes mais tensas e formais. Ouseja, essa gramatica esta inerentementeligada A exposicao da pes- soa aos usos da lingua. A escola viré depois; para ampliar. Todas essas consideracées nos fazem lembrar o poema de Drum- mond, Aula de portugués, no qual aparece expressa a perplexidade de quem, na escola, se encontra frente a frente com uma lingua que parece outra; bem diferente daquela que fala nas situagdes mais tri- viais do cotidiano. ‘Uma pausa para 0 poema: Aula de portugués A linguagem Na ponta da lingua Tao facil de falar E de entender A linguagem na superficie estrelada das letras Sabe ld o que ela quer dizer? Professor Carlos Géis, ele é quem sabe E vai desmatando O amazonas da minha ignorancia. Figuras de gramatica, esquipaticas Atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me. Digitalizado com CamScanner MUrTO ALEM DA GRAMATICA Je esqueci a lingua em que com ia Em que pedia para ir la fora, Em que levava e dava pontapé. A lingua, breve lingua entrecortada Do namoro com a prima. O portugués sto dois; 0 outro, mistério, (€ Drummond de Andrade, Exuecer para lembrar. Rio de Janeiro: Record, p79, | Sem perder de todo 0 enleio do poema, passemos & segunda ae, | cdo do termo gramatica. 2.2. GramArica 2: CONJUNTO DE NORMAS QUE REGULAM 0 USO DA NORMA CULTA Nesse segundo sentido, a gramatica é particularizada, oy Se, nao abarca toda a realidade da lingua, pois contempla apenas aque. les usos considerados aceitaveis na otica da lingua socialmente pres. tigiada. Enquadra-se, portanto, no dominio do normativo, o qual define o certo, o como deve ser da lingua e, por oposigao, aponta o errado, o como nao deve ser dito. Tais definicGes nao sao feitas por razGes propriamente linguisti- cas, quer dizer, por raz6es internas a prépria lingua. Sao feitas por razées historicas, por convencées sociais, que determinam o que re- presenta ou nao o falar social mais aceito. Daf por que nao existem usos linguisticamente melhores ou mais certos que outros; existe usos que ganharam mais aceitagdo, mais prestigio que outros, pot razOes puramente sociais, advindas, inclusive, do poder econémicoe politico da comunidade que adota esses usos. Dessa forma, nao é pat acaso que a fala errada seja exatamente a fala da classe social que nao tem prestigio nem poder politico e econémico. Esse cruzamento de dominios torna, portanto, a questao da no” ma culta um saco de muitos gatos, um ponto bastante complexo, exige estudo, andlise, reflexio e debate consistentes, dentro ¢ fo i Digitalizado com CamScanner (QUE GRAMATICAS EXISTEM? da escola, para que as intimeras incompreensées que rondam sua conceituacao possam ser ultrapassadas. No percurso deste livro, o tema da norma culta e de seu ensino sera retomado No capitulo 7 e, de certa forma, ao final de cada ca- pitulo, no tépico que intitulei de Implicagées para o ensino, com a pretensio de analisar as Tepercussdes que novas concepcdes de gra- matica podem ter nas atividades de ensino. Portanto, intencionalmente, nao me alongo aqui com a discus- sao sobre norma culta e suas relagdes com a uma vez que a esses tépicos dedico m: mentos especificos. gramatica e o ensino, ais adiante capitulos e seg- Uma terceira acepcaio para o termo gramdtica pode ser vista a seguir. |2.3. GRaMATICA 3: UMA PERSPECTIVA DE | ESTUDO DOS FATOS DA LINGUAGEM O termo gramdtica também é usado para designar uma pers- pectiva cientifica ou um método de investigagao sobre as linguas. Ao longo dos estudos sobre a linguagem, diferentes perspectivas se sucederam, umas mais centradas na lingua como sistema em po- tencial, como conjunto de signos & disposigao dos falantes, outras mais voltadas para os usos reais que os interlocutores fazem da lin- gua, nas diferentes situacGes sociais de interacdo verbal. & por es- Sas perspectivas que se fala, por exemplo, em “gramatica estrutura- lista”, “gramatica gerativa”, “gramatica funcionalista”, “gramatica tradicional” ete. Cada uma apresenta um corpo de teorias, que justificam um tipo de apreensio, observacio e andlise do fen6émeno lingu{stico. Repre- sentam, assim, visdes historicas da percepgao que se tem acerca da linguagem e da lingua, visbes que, em geral, retratam a otica comum @ outros setores da vida humana. 31 Digitalizado com CamScanner N NUITO ALEN DA GRAMATICA, 32 Ou seja, a ciéncia da linguagem também esta em sintonia aim correntes de pensamento mais significativas em cada época, de mang, ra que se pode ver, por tras de qualquer estudo da {inguagem, Um apg rato tedrico que se conjuga com as visoes de mundo a partir das gies as coisas so observadas e, consequentemente, exploradas ¢ tratadas. Numa quarta acepgio, 0 termo gramdtica diminui de aleance pois corresponde a uma especffica matéria de ensino escolar, loa, ‘Gramrica 4: UMA DISCIPLINA DE ESTUDO t ae Possivelmente, o termo gramatica tem, nessa acepgiio, o maior indice de uso, pelo menos nos meios escolares. Bele que esta por tris das famosas aulas de gramética e que constitui, em geral, a grande dor de cabega da comunidade escolar, dos professores e técnicos, da comunidade extraescolar (pais, sobretudo) e, até mesmo, dos pro- prios alunos mais adiantados, que “aprenderam muito bem as ligGes de anos anteriores”, pois sé acreditam que esto estudando a lingua sea disciplina gramatica estiver no comeco, no meio e no fim de to- dos os programas de estudo. E tal a énfase nessa disciplina que, de uns anos para ca, até me- Teceu uma carga horaria especial, separada das aulas de redagioe de literatura, como se redigir um texto ou ler literatura fossem coise que se pudesse fazer sem gramatica; ou como se saber gramatica ti- vesse alguma serventia fora das atividades de comunicacao. Essas inconsisténcias parecem pouco significativas, mas tém re- Percuss6es muiltiplas nas concepgdes sobre gramatica e nas préticas de seu ensino. Todas perniciosas, Assim, é urgente discutir os pontos cruciais que sustentam sua improcedéncia tedrica ou conceitual. Por isso, oportunamente, vamos voltar, muitas vezes, a esse nd da gr mética como disciplina escolar — é 9 tema deste livro. Interess@ # todos, acredito. Uma tiltima acepedo de gramatica pode ser vista a seguir: Digitalizado com CamScanner QUE GRAMATICAS EXISTEM? (2.5. GRAMATICA 5: UM comPEéNDIO | DESCRITIVO-NORMATIVO SOBRE A LINGUA Em principio, a descrigdo do funcionamento da lingua — da fo- nética a estilistica — toma corpo em um livro, em um compéndio que conhecemos como Gramdtica. Em geral, essa gramatica pode adotar uma perspectiva mais descritiva ou mais prescritiva. No primeiro caso, temos uma gramatica que focaliza elementos da estrutura da lingua, descrevendo-os apenas ou apresentando-os em suas especificidades. No segundo caso, temos uma gramatica que focaliza as hipéteses do uso considerado padrao, fixando-se, assim, no conjunto de regras que marcam o que se considera como uso correto da lingua. Mas um compéndio de gramatica também pode focalizar a lin- gua como sistema em potencial, descontextualizado, como pode fo- calizar a lingua nos seus usos reais, testemunhados pelas situagdes da interagiio social. Pode ainda ressaltar os aspectos de flexibili- dade, de heterogeneidade da lingua, como pode enfatizar a rigidez de algumas de suas regras ou formas. Pode concentrar-se no escri- to como pode concentrar-se no oral ou em ambas as modalidades. De maneira geral, aqui no Brasil, as gramaticas do portugués tem concedido uma énfase especial 4 modalidade escrita da lingua, so- bretudo da escrita literdria e, mais ultimamente, da escrita usada na imprensa’. De qualquer forma, as gramaticas nunca sao neutras, inocen- tes; nunca so apoliticas, portanto. Optar por uma delas 6 sempre, optar por determinada visdo de lingua. As gramaticas também (6 bom lembrar) sdo produtos intelectuais, sdo livros escritos por seres humanos, sujeitos, portanto, a falhas, imprecis6es, esquecimentos 3. Merece grande destaque a obra Gramdtica de usos do portugués, fe a Eee éncia “ ", ou, concretamente, Os us de Moura Neves, a qual tem como referéncia “a lingua viva’, ou, a atuais da lingua portuguesa no Brasil. A partir desses usos, a autora vai descrevendo e analisando as regras que regem seu funcionamento. 33 Digitalizado com CamScanner MUITO ALEM DA GRAMATICA 34 de vinculados a cren¢as € ideologias. Por isso, nig hs além, é claro, se nelas houvesse alguma sentido reverenciar as graméticas como i s espécie de verdade absoluta e eterna sobre a lingua — sio Produtos humanos, como outros quaisquer*. 4. Varios conceitos de gramitica também podem ser vistos em Travaglia (1996), bet eee eaiie Entre tais conceitos e o ensino, o que propiciou a consideragao da varia- ae i no ambito do ensino da lingua materna. Alids, quer? i# joes de tutor atvlaaten avaglia ¢ outra publicada em 2003 oferecem valiosas indica- fim, ocuidade d {que podem ser realizadas em sala de aula, evidenciando-st, 3° 5 Pesquisadores por mostrar aos professores eomo encontrar saidas P&" reorientar o ensino da gramé ni imatia, Ou seja, js eine © que “podem fazer em sala de aula”. "8° Pode dizer que aos professores ¢ Digitalizado com CamScanner CAPITULOR A norma socialmente prestigiada ngo éa Unica norma linguisticamente valida ANTES de entrar na discussao propriamente dita proposta para este capitulo, vale a pena debrucar-nos um pouco sobre 0 conceito de norma e seus desdobramentos, 0 que, confesso, nao é muito simples, dada a pluralidade de perspectivas com que esse conceito tem sido visto no desenrolar dos estudos linguistics’. S40 corriqueiros os. termos norma culta, norma-padrdo, norma ‘ndo padrao; e, menos usuais, mas também em voga, os termos va- riedades prestigiadas e variedades estigmatizadas — estes Uiltimos Propostos por Bagno em alguns dos seus trabalhos (ver 2002, 2003, Por exemplo). 1. Vou abster-me de uma discussio muito ampla acerca das diferentes concepcoes em tomo do termo norma, pois o que me interessa, em particular, é pontuar a questo de que, na verdade, coexistem muitas normas, € aquela socialmente mais prestigiada no constitu a iniea norma linguisticamente valida. Oletorinteressado em aprofundar essa Questo, pode consultar Faraco (2008), Bagno (2000, capitulo 3), bem como varios capftu- los da obra intitulada Linguistica da norma. Digitalizado com CamScanner MUITO ALEM DA GRAMATICA 86 O que designa cada um desses termos e que implicagdes tem gy para o ensino, na perspectiva das questées que levanto aqui? Antes das especificagées, convém, ainda que muito Sumariam, abordar o conceito de norma numa perspectiva mais genérica, Vamos 1 ‘%.1, Norma coMO REGULARIDADE E NORMA como PRESCRICAO De modo geral, é preciso distinguir: a) 0 uso do termo norma linguistica, no sentido amplo, o de normalidade; b) do uso mais restrito do termo, 0 de norma linguéstica como normatividade, ou prescricdo. No primeiro sentido, énorma aquilo que corresponde ao regular, ao usual, a0 que mais frequentemente as pessoas usam. Por esse prisma, 0 termo norma linguistica implica 0 conceito de normalidade, e nao 0 carater de certo ou correto. E da norma, portanto, o que entra na preferéncia das pessoas. Dai que cada grupo ou cada regiao tém sua norma, seus usos preferenciais e so por eles identificados, Enormano portugués do Brasil, por exemplo, usar o pronome obliquo em inicio de frase. Quer dizer, isso constitui um uso regularmente atestado e pode, num contexto eventual, identificar alguém como sendo brasileiro. Jéem um sentido mais restrito, o termo norma lingutstica implica o conceito de normatividade, de Prescrigao, isto é, do uso como deve ser, segundo um parametro legitimado, em Seral, pelos grupos mais esco- larizados e com maior vivéncia em torno da comunicagao escrita. Esse viés prescritivo acaba Por entrar no corpo dos canones gramaticais. O conceito de norma culta, historicamente, esteve associado ora esse lado da norma como Tegularidade, ora a esse outro da prescrigao” 2. 0 mais aproj riado 6 falar em normas cultas ou variedades cultas, como suger® (2002), uma vez que, em cada regio, é possivel atestar diferentes preferéncias de ws0. Digitalizado com CamScanner ‘A NORMA SOCIALMENTE PRESTIGIADA NAO € A UNICA NORMA LINGUISTICAMENTE VALIOA Vejamos um pouco do sentido e das implicagdes desses conceitos. | 7.2. NorMA cULTA A norma culta, na compreensao tradicionalmente veiculada pela escola, corresponde aquele falar tido como “modelar”, como “correto”, segundo as regras estipuladas nas gramaticas normativas. Constitui, portanto, a representagao do que seria o falar exemplar — aquele “sem erros” — por isso mesmo, o mais socialmente prestigiado. Em geral, as regras da concordancia e da regéncia verbal e no- minal, da colocagdo pronominal, da sintaxe, enfim, so as que mais se salientam nesse dominio da norma culta. De fato, esses pontos da sintaxe sao os itens privilegiados quando se trata de buscar os indi- cadores do maior ou menor grau de adesao do falante as imposicdes 87 da norma culta. Existem discussées muito abrangentes em torno da questao. Pri- meiramente, vale referir que a designacao de norma culta nao é das melhores, do ponto de vista ideolégico, pois favorece a suposigao de que aqueles que a adotam é que sao os cultos, tém cultura; e aqueles que nao a adotam sao os incultos, néo tém cultura. Mesmo nao sendo explicito, esse contraste pode ser pernicioso, se nao se chama a aten- ao para seus efeitos discriminatérios, sobretudo em relagao aqueles falantes das classes sociais menos favorecidas. Na verdade, esse contraste nao é tao implicito assim, pois ha li- vros didaticos (dos mais recentes) em que ele aparece sob a forma de norma culta versus norma popular; sendo aquela a norma certa, € esta, a errada, pelo que fica evidente uma relagao de oposigao: o culto — que corresponde ao certo — nao estd do lado do popular. O Perigo dessas ideias é que elas so muito sutis. Mas, por isso mesmo, embrenham-se com mais forca. Sabemos que todos somos cultos ou temos cultura, como defen- de a antropologia, no sentido de que criamos, ao longo da histéria, Digitalizado com CamScanner MUITO ALEM DA GRAMATICA 88 nossas representagdes € manifestagies si Délicas, presentes nas mais triviais atvidades do cot ttiano, inclusisg naquelas atividades ligadas a0 uso da inguagem falada e ceria E salutar, portanto, que estejamos atentos ao risco de Pestringi ; uso do termo culto dqueles itens vinculados aos grupos sociais a favorecidos. Em segundo lugar, mesmo 0 conceito de norma cu Faraco, em um trabalho datado de 2002, na p. 40, apresenta a norma culta como: a norma linguistica praticada, em determinadas situagdes (aquelas que envolvem certo grau de formalidade), por aqueles grupos sociais mais qi. retamente relacionados com a cultura escrita, em especial aquela legiti. mada historicamente pelos grupos que controlam o poder social. nossas formas de vida, vale a pena se perguntar em que Consisty Ita, Vamos a isso! Por essa caracterizacao, podemos concluir que a norma culta: ) nao implica o uso efetivo em todas as situagdes da interacdo verbal — restringe-se a algumas delas, apenas; ) éuma exigéncia da comunicagao que envolve certo grau de for- malidade; nao é exigida, por exemplo, nas situagGes informais da coloquialidade propria da vida privada (ai, alguém pode usé-la, evidentemente, se quiser); » esta vinculada aqueles grupos sociais que mais diretamente exercem atividades no ambito da comunicacao escrita, sobre- tudo aqueles grupos ligados divulgagio das informagées € ao controle do poder politico-administrativo. Em sintese, a norma culta é um requisito linguistico-social prd- prio para as situagdes comunicativas formais, sobretudo para aque- Jas atividades ligadas a escrita. Numa anélise menos cuidadosa, se poderia admitir que 2 "0" ma culta rege apenas a modalidade escrita da Tingua. Ou sej# fala estaria fora dos ditames dessa norma. Reparemios, no entant® que Faraco fala em situagdes “que envolvem certo grau de form’ Digitalizado com CamScanner | — ALM ‘A NORMA SOCIALMENTE PRESTIGIADA NAO € A GNICA NORMA LUNGUISTICAMENTE VALIDA yidade”, 0 que significa dizer que a exigéncia social da norma culta se aplica tanto as situag6es de fala quanto as situagées de escrita, gesde que elas assumam “certo grau de formalidade”, Por exemplo, a apresentagao de uma conferéncia, seja falada ou lida, representa um contexto social formal, que Tequer, evidentemente, na texto rea- Iizado segundo os usos da norma culta. Isso faz parte das expectati- yas de quem comparece a esse tipo de evento. I bom que se saliente ainda que, em contextos de informalidade, nada impede que se use anorma culta. Geralmente, os contextos que exigem certa formalidade sfio aque- les que transcendem os limites da vida privada (isto 6, a vida que se passa entre as quatro paredes de nossa casa) e entram, naturalmente, naquilo que é da esfera piiblica (isto 6, a vida que acontece nos am- bientes de trabalho ou do convivio social nao familiar). Em suma, a norma culta é requisitada mais pelo cardter de for- 8° malidade da comunicagao do que pelo fato de ser ela falada ou es- crita. E bom prestar atengdio a esse ponto para se derrubar a ideia ingénua de que “a norma culta nao se aplica a lingua falada”, como acreditam alguns. No Brasil, essa ideia é reforcada pelo fato de que o acesso a cul- tura da produgaio escrita se converteu em privilégio de poucos, quer dizer, daqueles que podem “pagar” para serem alfabetizados e inse- ridos no mundo da comunicagdo escrita. Numa “coincidéncia” per- versa, so os pobres que nao se alfabetizam e que ficam a margem das informagées divulgadas pelos meios escritos. Vale perguntar-nos se a exclusao dos pobres do mundo da es- crita tem constituido, até mesmo para nés, professores, um proble- ma real, Seré que nos inquietam os porqués dessa situagao? Pare- ce-nos pura coincidéncia, casualidade, que os meninos pobres nao aprendam a ler e a escrever? Ou, acreditamos que, se nao conse- guem, é apenas porque “sao pouco inteligentes, nao se interessam, nao querem nada com nada?” Eo tempo vai passando... Para eles, sem muitas expectativas! Digitalizado com CamScanner MUITO ALEM DA GRAMATICA 90 ow s0, portanto, que se estabelece esse quadro uma os feos ce a eae culta é mais vineulada Aescrita forma} a fala informal; os pobres sao mais inseridos em contextos da fala infos mal do que da escrita formal. Logo, a norma culta é menos Tequisita, da e, consequentemente, menos exercitada entre essoas das ¢: amadag mais pobres do que entre pessoas das camadas mais ricas, 0 que ley, naturalmente, os menos favorecidos a outra situacao de desvanta, gem, além daquelas sociais e econémicas: a desvantagem linguistica, Nao é por acaso também que, no imaginario social, a norma cult representa uma marca de exceléncia ou, pelo menos, da boa qualida. de de uso da lingua; quer dizer, instala-se a vinculagao entre a boa linguagem e a classe social de maior prestigio. Consequentemente, essa norma culta é a norma prestigiada, e a norma estigmatizada é exatamente a norma da classe menos favorecida. Dai a vinculagao da norma culta ao poder é apenas um salto: ao po- der politico, ao poder das agéncias de informacao e de comunicacao, a0 poder exercido pela escola, inclusive. Mas também dai ao preconceito linguistico é apenas outro pulo, pois o uso da lingua que se afasta da norma culta é considerado portugués de morro, rude, inferior, tosco, estropiado, corrompido, entre outras qualificagdes menos edificantes. Quer dizer, a discriminacdo social torna-se discriminagao lin- Suistica. Logo, lingua de pobre é lingua feia, desagraddvel, errada, quase ininteligivel, de vocabulario rudimentar, como demonstrou & pesquisa feita por Maria Auxiliadora L. Coelho, no sertéo pernam- bucano, para sua dissertacao de mestrado, Isto 6, para grande parte das pessoas, 0 que nao corresponde ao uso culto da lingua é vist sempre, como erro ou desvio; pior: 6 vicio, (Um paréntese: me & panta como o termo vicios de linguagem ainda é tao presente, #0 arraigado! — sobretudo entre as “pessoas de bem”) O cerne da questéo é, pois, o social; muito mais que o linguist? Pensar nessas coisas é bom Porque nos leva a relativizar esse ideal & norma culta. Leva-nos ainda a deixar de vé-la como algo meramente Hinguistico e gramatical; ou seja, eomo fendmeno interno & ling Digitalizado com CamScanner i pes bem definida e bem jsa simples, Controlavel. f bom aind: ott? “ os leva a perceber que 0 uso da norma Culta, por si sé, cin? a ge boa linguagem. ' rc A NORMA SOCIAIMENTE PRESTIGIADA NRO EA UNICA NORMA UNGULSTICAMENTE vA a VAUD pelo que s° pode concluir, toda a questo linguistica vai além de ituir um simples rol de palavras e regras; 6, portanto, mais que oor vent io de erros ¢ acertos, £ algo que entra pelo terreno do jal, dO cultural, do politico, do simbélico, de suas representagées ‘lores: Nao pode, pois, engessar-se na imobilidade de um tempo, ée um grupo de uma classe. ‘ajém do mais, os falantes de uma lingua no vivem confinados aos das regides ou das classes sociais a que pertencem, Esses grupos movem-se convivem entre si, e as normas se interpenetram, se entre- , se influenciam mutuamente. Tocam-se; acentuando ainda mais : possibilidade da existéncia de variacdo. Quer dizer, nao existe uma — noma pura, nem mesmo uma tinica norma culta, nem um uso fechado ay emdeterminada comunidade ou regio. Por isso mesmo, o melhor é falar em normas cultas*. Normas que séo uma mistura de diferentes ten- déncias; normas mescladas, difusas, cujos contornos de diferenciagao sio bastante fluidos. A esse propésito, vale a pena lembrar a expressao norma oculta, que Bagno (inspirando-se em Ataliba de Castilho) usou como titulo de um de seus livros, pretendendo sublinhar exatamente o caréter pouco visivel, pouco exato dessas normas consideradas cultas. Em suma, 0 conceito de norma culta corresponde aos usos que se consideram mais adequados aos contextos (orais e escritos) de uso da Tingua formal, aceitando-se, ainda, que essa formalidade da lingua pode admitir graus e variagées diversos. 13, Norma CULTA IDEAL E NORMA CULTA REAL Existe mais uma distingao que precisa ser feita, por tocar de Perto o trabalho da escola frente & sua tarefa de promover 0 acesso 5.Vou usar o singular, norma culta, para designar 0 canceito geral em questo. Digitalizado com CamScanner MuITO ALEM DA GRAMATICA 92 dos alunos ao dominio das normas cultas. A distincdo é a seq, podemos falar, genericamente, em uma norma culta ideal ¢ em a norma culta real. Anorma ideal, como o proprio nome sugere, corresponde aque, norma concebida, pensada, prevista e proposta como a norma repre. sentativa dos usos da lingua considerados cultos. Trata-se, Portanty de uma idealizacéo, no sentido proprio do termo. Uma espécie e “hipétese” aninhada no imaginario de uma parcela da Populacéi Sendo assim, ela se situa mais no dominio da potencialidade, da & pectativa, da coisa imaginada e suposta do que no dominio da expe. riéncia efetivada. Exatamente por ser assim, essa norma culta tem muito de abs. trac&o, de fantasia, de distanciamento do que, de fato, é real e com. provavel nos usos do dia a dia. Na verdade, muito daquilo que se tem considerado como norma culta tem esse cardter de idealizagio, de algo apenas proposto como uso possivel. Por isso, 0 parametro pelo qual se julga essa norma idealizada no so os usos comprovaveis nos diferentes meios e suportes da comunicacao falada e escrita; ou seja, ndo é o que se ouve e o que se 1é. O pardmetro sao as regras dos compéndios gramaticais, organizados, desde essa dtica, como se fossem estatutos, regimentos, que instituem, a priori, 0 como deve ser da lingua, sem ter em conta as plurais e complexas condigées das atividades comunicativas realizadas no presente. Por outras palavras, esses compéndios estabelecem, definem as regras do como deve ser, sem considerar 0 que de fato é, o que de fato acontece, sobretudo entre os usuarios que mais convivem com as variagoes da lingua escrita formal e af atuam sistematicamente. Corroborando esse ponto de vista, Faraco lembra a questo dos pronomes demonstrativos esse, este, e observa que, nessa norma cul- ta idealizada, ainda constam regras de utilizacdo “correta” para? uso de uma e de outra forma. No entanto, a experiéncia est ai pa® Comprovar que a oposigao entre esse e este desapareceu na fala ¢ na escrita, até mesmo, do portugués formal escrito das pessoas CO formacao universitéria. No entanto, as gramaticas continuam insis- Digitalizado com CamScanner a A NORMA SOCTALMENTE PRESTIGIADA NAO fA UNICA NORMA LINGUISHICAMRTE vA 104 tindo nesse ponto ¢ apontando “erros” a propésito de seus usos, 0 mesmo acontece em relacao & regéncia de verbos como preferir, as- gstir, implicar, chegar e outros ¢, ainda, em relagio A colocagio dos pronomes pessoais, ao uso do verbo ter em lugar de haver, s6 para fiear nesses exemplos. Ou seja, 0 que prevalece na pretensio da escola de favorecer ao aluno 0 acesso Anorma culta — objetivo mais do que justo e relevan- te — a perspectiva dessa norma idealizada, que nao se apoia nos isos reais que as pessoas fazem da lingua, em contextos que pedem opadrao culto formal. A norma culta real, no entanto, corresponde aos usos que sao jato, ocorréncia; isto é, Aqueles que podem ser atestados como con- — cretamente realizados, em diferentes suportes em que se expressam bs cientistas, escritores, repdrteres, cronistas, editorialistas, comenta- ristas, articulistas, legistas e outros “istas” da comunidade encar- regada da informaco publica e formal. Os usos que ocorrem nesses contextos é que representam os pardmetros da norma culta real, aquela que deveria constituir a referéncia de identificagao da norma prestigiada, uma vez que corresponde aos falares mais tipicos da interacdo escrita, publica e formal. Nao é sem propésito lembrar que a parcela da populagao que usa essa norma culta real, como todas as outras, é md vel, é heterogénea, €, portanto, se manifesta em usos variados. Pode-se prever, entao, que essa norma culta real seja inexoravelmente flexivel e susceti- vel de sofrer alteragées de diferentes orde contanto que nao fique ameacado o cardter interativo da lingua — diante do que todo usua- No é extremamente zeloso. Outro conceito ainda perpassa esse dominio “meio minado” da norma. Trata-se do que se tem chamado de norma padrao. Vejamos a seguir: Digitalizado com CamScanner MUITO ALEM DA GRAMATICA 94 ‘4. " Nonma-PaDRAo O conceito de norma-padrao, em determinado Periodo da toria brasileira, esteve associado a um projeto da sociedade da de pretender garantir, para a comunidade nacional, uma uniformidade linguistica, entendida aqui como 0 cuidado Por cigp uma lingua comum, estandardizada, com énfase no Beral, e nig particularidades regionais, locais ou setoriais. Como VeMmos, trata.se também de uma espécie de projecao, difusa e ampla, que tende arg a manutencao dos padrdes que representam os usos geraig Tende, portanto, a ser conservadora e a privilegiar aquilo que nao Tepresen. ta o especifico de uma regiao ou de um setor. Idealmente, essq Nor. ma-padréo tenciona facilitar a eficiéncia da interacao publica pelo fato de propor que se fale a mesma lingua, neutralizando-se certos usos restritos a determinados grupos ou regides. letra, Em principio, como € possivel observar, essa visdo de norma-pa- drao tem subjacente um aspecto interessante quando pretende pos- sibilitar uma linguagem, digamos, igual para todas as comunidades, afastando a possibilidade de que algo dificulte ou impega algum se- tor de ter acesso as informacies gerais veiculadas. Aparentemente,o propésito nao deixa de ser bem intencionado, Na pratica, no entanto, traz as irremediaveis consequéncias de implicar elementos da vida socioeconémica e politica dos grupos. De fato, o pardimetro pelo qual aquele geral é definido correspond exatamente aquela norma culta ideal, o que faz com que essa norma- ~Padrao seja regulada pelo que a classe social de prestigio ou certos Orgios oficiais estipulam como sendo o melhor uso da lingua. E ai to- dos aqueles velhos pecados voltam a ser cometidos: os que ficam for do padrao nao sao apenas diferenciados; sao também inferiorizados, desprestigiados, eas mudancas provocadas pelo préprio fluxo natt- ral da lingua sio tidas como sinais de decadéncia. Como tudo 0 a" diz respeito a lingua e a seu uso, a norma-padrao também nao apa as artimanhas das ideologias que rondam o uso da linguage™ Digitalizado com CamScanner /AINORMA SOCIALMENTE PRESTIGIADA NAO € A UNICA NORMA LINGUISTICAMENTE VALIDA Normalmente, é muito complexo caracterizar essa norma-pa- rao, ja que, como vimos, se trata de uma projecéio que tem como re- feréncia outro “saco de gatos”, que é aquela norma culta idealizada como norma exemplar. Assim mesmo, admite-se que, tal como a norma culta, a norma- -padréo — apesar de toda a sua fluidez — deve ter como parame- tro de definicdo os usos linguisticos efetivamente realizados; isto 6 aquilo que estd acontecendo, no aqui e agora das mais diversas si- tuagées de interagao verbal. Com base no real, deixamos as nuvens de nossas projecdes — imaginadas — para pér os pés no que, de fato, acontece, oralmente e por escrito. Veremos, entao, que todos os usos linguisticos estao submetidos a intimeros e imponderdveis fatores pragmaticos, que mexem a toda hora com seus limites. Mesmo assim, o parametro para se avaliar a legitimidade de qualquer norma no pode ser outro 95 sendo 0 uso que se atesta na vida cotidiana das pessoas. Fica claro, entao, que o fenémeno da variacdo das normas lin- guisticas é, portanto, um fenémeno inerente a propria natureza das linguas. O mal foi termos atribuido a esse fendmeno da “variagaio” uma conotagao negativa. Ai, entao, mudanca linguistica, como ja re- feri, passou a significar decadéncia, degeneragao ou coisa que o valha. Nessa 6tica, 0 movimento da lingua é, entdo, inexoravelmente, um movimento que vai do melhor para 0 pior. Isto 6, a forma “melhor” da lingua é sempre aquela do passado, anterior as mudangas de agora. Acontece que, no dominio das linguas, nenhuma mudanga é aleatéria, fruto do acaso. Cada uma tem sua légica e sua motiva- G40. Facilmente se pode explicar por que um item ou um padrao sao substituidos por outros. S6 para dar um exemplo, posso lembrar 0 caso do verbo assistir, que tem passado a ser usado como transitivo direto (Bernardo assistiu 0 jogo inteiro sentado na primeira fila), uma vez que, nesse contexto, é percebido pelos falantes com o senti- do de ver, um verbo também transitivo direto. Entio, ndo se trata de uma corrupcao (termo carregado de cono- tagdes pejorativas), mas de uma mudanga de percepgio, em outros Digitalizado com CamScanner Ss MUITO ALEM DA GRAMATICA 96 momentos histéricos, submetidos a outros comportamentos Socias Nao tem sentido, pois, manter, a ferro e fogo, um padrao ca a verbal que nem mesmo os mais cultos, os mais escolarizados acta até mesmo nas situagGes mais formais. Como 0 verbo assistir, ia lem. brei também os verbos preferir, implicar, visar, aspirar; verbog ue também por usuarios que convivem com a escrita, tm tido Sua i géncia alterada em relacdo ao que ditam as gramiticas Normativas, Por sinal, esses novos usos da regéncia verbal e de outros da gramatica tém tido boa serventia para alimentar o estoque de questdes das provas de concursos que precisam lancar mio Adessas picuinhas gramaticais para eliminar 0 excesso de candidatos, Se no fossem esses concursos... Pontos Por que teimar em julgar como erros usos que j sio atestados como preferenciais, como regulares, no discurso corrente das pes- soas mais escolarizadas? No minima, terfamos que aponté-los como duas formas opcionais, 4 escolha do fregués. Vale destacar que essa perspectiva mais aberta, mais critica jé é aceita explicitamente pelo Diciondrio Houaiss, 0 qual ja registra como normais muitas dessas regéncias (ver, por exemplo, os verbetes preferir, visar, assistir). Na mesma 6tica se pode considerar o Dicio- nario gramatical de verbos do Portugués contempordneo do Brasil, coordenado por Francisco da Silva Borba. Além desses, 0 Guia de uso do portugués, de Maria Helena de Moura Neves, ja incorpora explicacdes a respeito das mudangas na regéncia de alguns verbos, 0 que atenua a ideia de erro, evocada sempre como a safda para qual- quer novo padrao, Parece oportuno considerar que, no Brasil, o estabelecimento da- quela norma-padrao unificadora ja representou uma preocupasé0 maior do que representa atualmente. Foi pratica comum, sobretudo em instituigées ligadas aos meios de comunicagao de massa, unifor mizar os sotaques e outras express6es regionais tipicas, para “aP* gar” as diferencas e possibilitar um padrdo tinico de prontincia€ ae escolha lexical. Atualmente, j4 se constata alguma abertura 4 incor Digitalizado com CamScanner global do Conceito de norma, podemos Para estabelecer a norma culta? Tradicionalmente, foi a literatura, senio a tunica, pelo menos, a principal referéncia para a definicdo dessa norma, o que, mais uma vez, Vincula o julgamento da “boa linguagem” as Possibilidades de Ieitura concedidas as classes sociais privilegiadas. No momento, nao se descarta a ideia de que a literatura seja re- feréncia para a norma culta; no entanto, se postula que, além da lite- tatura, outras atividades de uso da linguagem também exergam essa funcdo. Haja vista a linguagem da imprensa, da divulgacio cientifica, das exposicdes didaticas, da administracio publica, entre outras. Retomando a dimensio perguntar: qual a referéncia De fato, a literatura nao pode ser a tinica referéncia para todos 0s usos da lingua, pois constitui um uso bem especifico ou uma ex- pressao bem peculiar da atividade linguistica (a lingua com fungao estética, ancorada no dominio da fantasia e das relagGes simbélicas). Como adiantei logo atrds, os usos, em geral, atestados em contextos de certa formalidade, como falas ptiblicas, escrita de livros, de jor- nais, de revistas, constituem, atualmente, outras referéncias para o que se pode considerar como normas cultas. Admitindo essa ampliacdo de referéncias, fariamos 0 ereurso mais acertado: aquele que vai do uso geral (nao apenas aquele pri- Vativo da literatura) para a norma. Neves (2003, pp. 21-22) propée €xatamente isso: que o percurso seja feito do uso para a norma, quer dizer, seja feito com base na “observagao da produgao linguistica életivamente operada”. Voltaremos a esse ponto ainda mais adiante, no capitulo 9. 7 Digitalizado com CamScanner MUITO ALEM DA GRAMATICA 98 Feitas algumas distingdes e chamadas de atengio, podemos al tar ao cerne da questao para nos perguntar se existe apenas uma tinica norma linguisticamente vdlida: a norma culta. O fato de a norma culta corresponder a norma socialmente pres, tigiada nao significa que ela seja a tinica a poder ser validada como legitima representante da lingua. A valoragao positiva que Tecebe 6 devida, como vimos, a fatores de ordem socioeconémica, e nig a fatores propriamente linguisticos. Dizer assistir 0 jogo ou assistir ag jogo nao implica nenhum grau maior ou menor de perfeig&o linguis. tica. Se um é considerado mais certo que outro é por mera convencao social, que se sustenta até o dia que os falantes quiserem. Na verdade, como lembra Luis Fernando Verissimo, quem man- da na lingua somos nés, seus falantes didrios. Os gramaticos vem depois. Millér — um linguista por intuig&o — diz que “quando os eruditos descobriram a lingua, ela ja estava completamente pronta pelo povo. Os eruditos tiveram apenas que proibir o povo de falar errado”. E diz ainda: “Nenhuma lingua morreu por falta de gra- maticos. Algumas estagnaram por auséncia de escritores. Nenhuma sobreviveu sem povo” (Millér, 1994, pp. 284-285). E que todas as variagdes de norma sao linguisticamente legit mas. Na verdade, insisto, o que define uma variacdo linguistica como “melhor ou pior”, como “mais certa ou mais errada”, como “mais bo- nita ou mais feia” ¢ o nfvel social das pessoas que usam essa varia- 40. Nao admira, pois, que o “portugués errado” seja exatamente 0 Portugués falado pelas classes desfavorecidas, ja estigmatizadas outros setores e excluidas de outras vantagens sociais. Mas, podemos, em algum contexto, usar a norma nao culta ou estigmatizada? Claro que sim! Pelo simples fato de querermos Ser comunicativamente eficientes, procuramos adequar os us0s condigdes da situago, o que nos leva A possibilidade de usa™™ registros da norma no culta, Para sermos eficientes, repit * nao, por negligéncia. Digitalizado com CamScanner A NORMA SOCIALMENTE pf a RESTIGIADA NAO € A UNICA NORMA LINGUISTICAMENTE VALIDA Nesse contexto, os usos fora do despreparo linguistico, ignorancia gr: dicam empenho por ser eficiente p racéio. A transgressio, esse) CaSO, Vira recurso; vira tatica para asse- gurar uma maior eficiéncia comunicativa, Nada mais apropriado do que, em um contexto de carnaval, como id disse, um grupo de escri- tores proclamar, no lema de seu bloco: “Néis sofre, mas néis goza!”. Em nenhum momento, no entanto, pretendo alimentar o simplis- mo demagégico de que qualquer jeito de falar serve para qualquer situacao, pois “tudo comunica, e isso é 0 que basta”. Nem sempre basta comunicar, refuto. Pelo contrario, quase sempre, ser eficiente vai além de apenas se fazer entender. Para qualquer situacao vale o jeito de falar que é adequado a essa situacao. Parametro culto nao indicam ‘amatical, mas, ao contrario, in- oder garantir o sucesso da inte- Um problema que ronda a linguagem é o habito de generalizar 99 indiscriminadamente, segundo o qual “tudo vale pra tudo”. E de fun- damental importancia saber discernir o que é adequado a cada si- tuagao, para se poder, com eficiéncia, escolher esta ou aquela norma, este ou aquele padrao vocabular, este ou aquele tom, esta ou aquela diregdo argumentativa. Dificilmente, ha alguma coisa no ambito da linguagem da qual se pode preconizar uma rigidez absoluta. Quase tudo depende... De muita coisa... S6 nao depende quando a gente toma essa linguagem como um objeto desencarnado, des- contextualizado, numa frase solta, que ninguém disse, em lugar ne- nhum, para sujeito algum. Ai, a gente diz e escreve (com cuidado Para ndo errar!): “Meu tio fugiu”, quando a gente nem mesmo tem um tio. Nao importa. A gente esté apenas fazendo de conta que isso — solto e desencarnado, sem referéncia alguma de espago e tempo, de parceiro e intengéio — é uma atividade de linguagem. Em sintese, parece que: Estamos longe de ver o cidadéo comum ¢ o professor reconhecendo que a variaco linguistica 6 nada mais que a manifestacao svidente a es- séncia e da natureza da linguagem, reconhecendo que ha um pa fas valorizado, sim, mas que o uso do padrdo prestigiado nao constitui, Digitalizado com CamScanner 100 MUITO ALEM DA GRAMATICA, si, eintrinsecamente, um uso de boa linguagem, ¢ ocorre pelo viés sociocultural, condicionado pelo (Neves, 2003, p. 35). AME €55a avaliags, Vi6S sociocconim 0 E dizer isso significa admitir que a norma socialm giada nao é a tinica norma linguisticamente vdlida, 0 quarto equivoco em questio. lente Prestj. que destar 4 7.5. IMPLICACOES PARA 0 ENSINO Aceitar esses principios leva a que se adote também © Conjunto de posturas que passo a discriminar. ) Mesmo aceitando que existem normas socialmente mais pres- tigiadas que outras, nao podemos alimentar a ideia de que existem normas inerentemente melhores, mais bonitas, mais ldgicas, mais puras que outras. O prestigio vem por conta de fatores sociais ape- nas, e nao em decorréncia de algum fator linguistico. Consequente- mente, devemos rejeitar a impresséio de que aqueles que falam fora da norma culta so rudes, pouco inteligentes, ignorantes e incultos. Devemos estar atentos para esclarecer a falta de fundamentacao desses e de outros mitos secularmente alimentados', Devemos ain- da rejeitar (denuncié-la, até!) qualquer atitude preconceituosa e nio perder a oportunidade de abrir a discussao sobre tais pontos, a fim de possibilitar um entendimento equilibrado da questao: existem muitos falares; todos sao legitimos; cada um 6 apropriado a uma si- tuagao particular. Competente é aquele que domina o maior niimero Ppossivel desses falares, inclusivamente, aquele falar apropriado as situagOes mais ligadas a falae a escrita formais, > E conveniente ainda ser cauteloso no julgamento de usos tio facilmente considerados como errados, e abrir mo de certo rigor no julgamento desses erros, Com efeito, a perspectiva do erro é@ 4. Sera que a gente pode absolutizar certas afirmagées miticas, como aquela de a4 “quem fala errado nio tem chance de subir na vida"? Digitalizado com CamScanner /ANORMA SOCIALMENTE PRESTIGIADA NAO f A GNICA NORMA LIMGUISTICAMENTE VALOR nica com a qual muita gente aprendeu a olhar certos usos da Iin- gua. Bem que alguns desses usos podiam ser analisados em outras perspectivas, por exemplo, se poderia dizer: “Esta forma, como esta, pode provocar ambiguidade; pode prejudicar a clareza; pode recer demasiado taxativa” (ou, conforme o caso, demasiado com- placente). Ou seja, seria muito mais proveitoso que se propusesse um novo olhar sobre a lingua, outra dtica, outro foco, menos rigido, menos montado no critério da correcdo, que tudo vé como erro gra- matical. Nao por acaso o professor de portugués é um profissional naturalmente associado a erro de gramdtica. Parece que a lingua sé apresenta um requisito para ser eficaz: estar correta. Quantos dis- cursos corretissimos nao sao falhos do ponto de vista da comuni- cacao! (Analisemos alguns em sala de aula). Ou porque sao obvios, ou porque sao inconsistentes, ou porque sdo enganosos, porque pro- metem uma salvagdo que nao podem dar; ou porque so confusos, superficiais, manipuladores etc., ete. 101 ) Vale a pena insistir numa questo central: a de providenciar para o aluno oportunidades de acesso ao padréo valorizado da lin- gua, como propéem Neves (2003, p. 18) e muitos outros linguistas atuais. Longe de qualquer teoria linguistica a orientagao de negar a todos os falantes esse acesso. O problema é discernir sobre o que faz parte desse padrao e adotar uma visao nao purista, de flexibilidade, de abertura, para incorporar as alteragdes que vao surgindo; o pro- blema é, ainda, nio julgar essas mudangas como, simplesmente, pro- vas de decadéncia da lingua e, assim, nao subestimar ou no ridicu- larizar aqueles que fogem a esse padrao socialmente prestigiado. A convivéncia amiudada (quer dizer, nao esporadica, nao eventual, no dia que der certo!) do aluno com a producio linguistica valorizada — como exemplares da literatura, da imprensa, da divulgagao cien- tifica, por exemplo — representa, sem dtivida, uma condigao para a incorporacao gradual desse falar/escrever prestigiado. > Aleitura ea andlise de textos ganham relevancia na perspec- tiva do que ora se discute. Nao so as frases soltas nem as listas de Palavras que vao promover 0 desenvolvimento de uma competéncia Digitalizado com CamScanner +} MUITO ALEM DA GRAMATICA 102 comunicativa, a qual se desdobra, naturalmente, numa Compers cia gramatical, numa competéncia lexical, numa competéncia = tual e discursiva. De tanto ver nos textos coisas bem esctitas, ~ ditas (benditos textos!) e de tanto analisa-las, discutir sobre = acabamos por incorporar — pelo menos. como pardmetros Seas padrées. Que o foco do ensino seja a reflexdo lingu{stica, 9 Pensa sobre a linguagem; centrados na dimensao discursiva e interaciong da lingua. Daf que, como se tem dito, o texto nao 6 uma Op CaO entre outras. E a opedo. ) Essa convivéncia com a produgio textual nos levaria, ainda, a estimular o interesse pela pesquisa sobre o portugués brasileiry contempordneo®. Poderia ter, entre muitas outras, a vantagem de afastar a ideia simplista de que “os portugueses falam melhor o por- tugués do que os brasileiros”, Em suma, no dominio da comunicagao e da interacdo verbal, a toleraincia a diversidade eas diferencas também representa uma con- digdo da convivéncia madura e plenamente cidada. Que cada um seja capaz de discernir quando e em que teor essa tolerncia se ajusta. ————— 5. Ointeresse pela pesquisa do portugués brasileiro contemporaneo tem: creo cursos de graduacdo, nas especializagdes, nos mestrados e doutorados. 0 livro de Ba Portugués ou brasileiro — é , jal, 200% i m convite & pesquisa (Si : Pardbola Editorial, constitui uma amostra de coy Pesquisa (Sao Paulo: Par: mn Revista Veredas, vol. 8, jan. Digitalizado com CamScanner CAPITULO Uma analise de gramatica muito aquéem do texto NO CAPITULO em que focalizamos 0 equivoco que envolve a confusdo entre regra de gramatica e nomenclatura, salientamos 0 Srande engano de pensar que vasculhar nomenclatura é estudar Sramatica; aquela gramatica que confere competéncia a quem pre- Cisa falar, ler e escrever com sucesso. Eevidente que a concentragio do ensino da gramatica em tépicos de sua nomenclatura nao pode ser vista como o unico fator Tesponsdvel pelos problemas do ensino de linguas. Mas é evidente também que esse tratamento tem tido um peso muito Stande, pois propiciou uma visio superficial do ensino da lin- Bua, além de ter tirado a oportunidade de que outras questes — Como aquelas concernentes & ampliagao do léxico e & composi¢ao © textos coesos, relevantes e coerentes — sejam devidamente “ploradas, Digitalizado com CamScanner MUITO ALEM DA GRAMATICA O tempo que ¢ investido em andlises de reconhecimento das uni. dades, de indicagao de seus nomes e das subdivisGes em que se en. caixam, bem que poderia ser preenchido com atividades de anilise, reflexdo, produgio e revisdo dos mais diferentes géneros de textos, , Como é que as pessoas ainda nao perceberam o quanto é estéril restringir-se a exercicios de dar nomes as coisas da lingua?! 600 Para que se tire a impressao de que a primazia do reconhecimen- to das unidades e de suas classes é fato de um passado longinquo, vejamos 0 caso de uma atividade, recém-proposta numa escola de ensino fundamental. A atividade foi encaminhada a partir da seguinte estrofe da co- nhecida composigao, Comunhdo, de Milton Nascimento, em parceria com Fernando Brant (Anima, Ariola, 1982): Eu quero paz, eu nao quero guerra quero fartura, eu ndo quero fome quero justiga, eu néo quero édio quero a casa de um bom tijolo quero a rua de gente boa quero a chuva na minha roga quero o sol na minha cabeca quero a vida, néo quero a morte nao. E ai vinham, para os alunos, os “desafios”: 1, Quantos versos e estrofe(s) tem esse poema? 2, Escreva 0s substantivos abstratos do terceiro e do cittimo verso 3. Destaque todos os substantivos existentes no texto € &S Creva-os ao lado de cada verso. Lembre-se que o substan- tivo @ uma palavra que dar (sic) nome aos seres, a¢0%5 sentimentos, qualidades, sensacoes. Digitalizado com CamScanner UMA ANALISE DE GRAMATICA MUITO AQUEM DO TEXTO 4, Marque X na alternativa correta. A palavra roga & () substantivo comum () substantivo composto () substantivo primitivo () substantivo derivado 5, Responda: a) Que substantivo composto podemos formar com o subs- tantivo chuva? ' b) Apresente um substantivo derivado para a palavra chuva. 6. Produza duas frases que contenham substantivos coleti- vos. Grife os coletivos utilizados. 7. Baseado no que debatemos em sala de aula sobre a guerra travada entre Estados Unidos e Iraque e o texto dessa ava- fay liag&io, desenvolva um texto em prosa com o titulo abaixo. , Escreva a vontade. Nao 4 guerra. Analisemos, mesmo sumariamente, a proposta. Cadé a andlise do texto? Cadé o entendimento do poema? Onde ficou? As perguntas que sao feitas concorrem para que se entenda melhor o poema? O poema fica mais claro depois que o aluno souber Quantos versos sao, depois que ele reconhecer os substantivos abs- tratos que aparecem em cada verso e escrevé-los ao lado? Que rela- $40 tem a atividade de formar frases usando coletivos com os sen- tidos expressos no poema? Qual a finalidade de se saber se 0 nome To¢a € um substantivo comum, composto (poderia ser, por acaso?), Primitivo ou derivado (sem chance!)? Em que isso concorre para que S¢ apreenda melhor o sentido do poema? E onde ficou a exploragao 0s elementos que fazem desse texto um texto pottico? a Nenhum leitor com:etente 1¢ poemas procurando substantivos "coisas que o valham, O leitor competente Ié procurando sentidos, emocdes ; moses, intencdes, ditos, pressupostos. Digitalizado com CamScanner MUMTO ALEM DA GRAMATICA 128 Repare-se que, na proposta, 0 texto foi fragmentado, despedaga. do. Reduzido a um conjunto de palavras, que puderam ser analisadas em si mesmas, quer dizer, descontextualizadamente, como se niio f. zessem parte do texto. Em nenhum momento, 0 poema foi visto como uma unidade, um todo tematicamente orientado, ¢ as palavras, como partes significativas desse todo. Em nenhum momento, se fez alusio ao género ow a fungo comunicativa em que 0 texto se materializa, Na verdade, niio houve andlise DO texto. B que ndo basta que as palavras questionadas sejam retiradas de um texto para que se tenha uma andlise de texto. Se as palavras em questao tivessem sido colhi- das ao acaso, 0 resultado da anilise seria o mesmo, pois nao foi preciso ir ao poema para decidir sobre a natureza de uma palavra ou outra. O que representa, de fato, ensinar gramadtica com base em textos ou a partir de textos? Retirar palavras ou expressdes para indicar a classe a que pertencem? Tirar as palavras da sequéncia em que elas estavam no texto? Conferir-lhes total autonomia; como se tivessem vida inteiramente independente? Ou para indicar a fungao sintatica que desempenham na frase? O texto é apenas 0 terreno onde a gente vai buscar as pedras que serao, isoladamente, analisadas? Mas, no terreno, as pedras nao estavam isoladas... Pode-se aprender a entender poemas, a descobrir suas particu- laridades textuais, discursivas e estéticas — (ou a “ouvir estrelas”!) — com esse tipo de andlise? Amplia-se a competéncia comunicativa de alguém com esse tipo de reflexiio? Seria muito mais significativo, por exemplo: » explorar a fungdo dos sentidos opostos nas palavras de cada verso ou a funcio da repetigdo da palavra quero no inicio de cada um; » procurar os efeitos do paralelismo sintatico e semiintico todos os versos; » explorar 0 efeito de énfase na explicitagao do pronome et em alguns versos; Digitalizado com CamScanner _ UMA ANALISE DT GRAMATICA MUITO AQUEM DO TEXTO. » explorara estratégia de criar signifieagio pelo recurso A meto- nimia ou A metéfora, Quando alguém diz: “Quero a chuya na minha roga”, evidente- mente néio sti querendo Apenas a chuva na roga, literalmente fa- Jando, Chuva e roca sao apenas imagens, figuras de tudo aquilo que desejamos para O amplo sucesso de nossos empreendimentos. O me: mo se poderia dizer do verso “quero 0 sol na minha cabega” ¢ até da relagio que se poderia encontrar na jungiio de chuva e sol, uma oposigiio que muito tem a ver com as melhores condigées de fertili- dade ¢ de produgat logo, de abastanga, de satisfagiio, de vida farta, de vida plena. Alias, todo 0 poema — como qualquer outro — teria de ser inter- pretado simbolicamente, pois os demais versos também remetem para muito além do sentido puramente literal das palavras. Na verdade, desde que inseridos no poema, os substantivos se tornaram abstra- tos, uma vez que apontam para coisas do mundo simbolizado, como, muito claramente, se pode ver em: “Quero a casa de um bom tijolo”. 129 Uma atividade como esta — proposta recentemente, repito — constitui um reflexo do que ainda nos falta saber sobre recursos de producao de sentido, sobre textualidade, sobre linguagem literari: enfim, sobre a natureza mesma da linguagem. or acha Como efeito desse desconheeimento, um ou outro profes que: “As regras gramaticais podem ser encontradas em tudo o que hos cerca, inclusive nos textos”; ou que o texto é “a forma prioritaria de uso da Ingua”, ou ainda que “a gramatica esta vinculada ao tex- to” e que, sem o texto, “as aulas fieam muito mondtonas”'. Apenas isso? Parece que a gramiatica 6 uma espécie de apénd algo que eventualmente pode estar ou nao no texto. Eo texto, algo ue pode, apenas por concessiio, ser inclufdo como objeto de estudo, —_ 1. Esse dudos foram colhidos em uma pesquisa felt Na ny conetur tabalho monogréfico de seu curso de esp ido em 2002, por Regina F, Lustosa Ro- do em Hngua portuguesa, jin Digitalizado com CamScanner

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