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Livros do autor publicados por esta ed itora:

Zygmunt Bauman
• Amor líquido
• Comunidade
• Em busca da política
• Europa
• Globalização: As conseqüências humanas
• Identidade
• O mal-estar da pós-modernidade
• Modernidade e ambivalência
• Modernidade e Holocausto
• Modernidade líquida
• Vidas desperdiçadas IDENTIDADE
Entrevista a Benedet to Vecchi

Tradução:
Carlos Alberto Medeiros

Jorge ZAHAR Editor


Rio d e Janeiro
Título original:
Identity (Conversatiorrs with Benedetto Veccili)

Tradução autorizada da primeira edição inglesa


publicada em 2004 por Polity Press,
de Camhridge, Inglaterra
• Sumário •
Copyright © 2004, Zygmunt Bauman and Benedctto Vecchi

Copyright da edição em língua portuguesa © 2005:


Jorge Zahar Editor Ltda.
rua México 31 sobreloja
20031-144 Rio de Janeiro, RJ
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A reprodução não-autori7ada desta publicação, no todo
ou em parte, constituí violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)
Introdução 7
Preparação de originais: Cristiane Pacanowski e Arthur Ituassu Benedetto Vecchi
Revisão tipográfica: Eduardo Faria e Henrique Tarnapolsky

Capa: Sérgio Campante Identidade 15


Foto da capa:© Rettman/CORBIS

Notas 107

CIP-Brasil.Catalogação- na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Rj.

Bauman, Zygmunt, L925-


R341 i Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi/Zygmunt
Bauman; tradução, Carlos Alberto Medeiros. - Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar Ed., 2005

Tradução de: Identity: (conversations with Benedetto


Vecchi)
ISBN 85-7110-889-7

l. Bauman, Zygmunt, I Y25- - Entrevistas. 2. Identi-


dade. I. Vecchi, Benedetto. li. Título.

CDD 302.54
05 -3014 CDU 316.454.5
• Introdução •

Benedetto Vecchi

Em todos os seus textos, Zygmunt Bauman consegue abalar as


nossas crenças fundamentais, e este livro de entrevistas sobre a
questão da identidade não é exceção. As entrevistas fogem um
pouco do padrão po r não terem sido realizadas com um gravador e
porque entrevistado e entrevistador nunca estiveram face a face. O
e-mail foi o instrumento escolhido para o nosso diálogo, o que im-
pôs um ritmo um tanto fragmentário a nossa troca de perguntas e
respostas. Na ausência da pressão do tempo e do face a face, nos-
so diálogo a longa distância foi caracterizado por muitas pausas
para reflexão, pedidos de esclarecimento e pequenos desvios para
assuntos que originalmente não pretendíamos abordar. Cad a res-
posta de Bauman servia apenas para aumentar a minha perplexi-
dade. À medida que o material por ele fornecido começou a tomar
forma, fui ficando cada vez mais consciente de ter ad entrad o um
continente muito mais amplo que o esperado, um continente
cujos mapas eram quase inúteis em se tratando de encontrar dire-
ções. Isso não deveria ser uma surpresa, pois Ba uman não é como
outros sociólogos o u "cientistas sociais". Suas reflexões são um tra-
balho em desenvolvimento, e ele nunca se contenta em definir ou
"conceitualizar" um acontecimento, em vez disso procura estabe-
8 Introdução Benedetto Vecchi 9

lecer conexões com fenômenos sociais ou manifestações do etos víduos são nela "inseridos". Qualquer tentativa de aplacar a in-
público que parecem muito distantes do objeto inicial da investi- constância e a precariedade dos planos que homens e mulheres
gação, e tecer comentários sobre eles. As páginas seguintes serão fazem para as suas vidas, e assim explicar essa sensação de deso-
mais que suficientes para demonstrar essa natureza errante de suas rientação exibindo certezas passadas e textos consagrados, seria
reflexões, o que torna impossível definir suas influências intelec- tão fútil quanto tentar esvaziar o oceano com um balde.
tuais ou seu alinhamento a determinada escola de pensamento. Temos aqui um intelectual para quem o princípio da respon-
Zygmunt Bauman tem sido freqüentemente definido como sabilidade é o primeiro ato de qualquer envolvimento na vida pú-
um sociólogo eclético, e decerto ele não ficaria ofendido com esta blica. Para um sociólogo, isso significa conceber a sociologia não
definição. No entanto, a metodologia que ele utiliza para abordar como uma disciplina "independente" de outros campos do conhe-
um assunto busca acima de tudo "revelar" a miríade de conexões cimento, mas como uma que fornece a ferramenta analítica para se
entre o objeto da investigação e outras manifestações da vida na estabelecer uma vigorosa interação com a filosofia, a psicologia so-
sociedade humana. Com efeito, esse sociólogo de origem polonesa cial e a narrativa. Desse modo, não deveríamos estranhar se os do-
considera essencial colher a "verdade" de todo sentimento, estilo cumentos com os quais ele põe à prova a sua tendência a causar
de vida e comportamento coletivo. Isso só é possível quando se "curtos-circuitos" na cultura de massa e na alta cultura incluam ar-
analisam os contextos social, cultural e político em que um fenô- tigos de grandes jornais, slogans publicitários e reflexões filosóficas
meno particular existe, assim como o próprio fenômeno. Daí a na- de S0ren Kierkegaard sobre Don Giovanni.
tureza errante dos pensamentos que aparecem em seus textos, os Embora ele não tenha grande entusiasmo em falar sobre a sua
quais analisam assuntos que vão da crise no debate público, em Em vida, deve-se dizer que Zygmunt Bauman nasceu em 1925 numa
busca da política (1999), à mudança do papel dos intelectuais família judia polonesa. Tendo escapado para a União Soviética no
numa sociedade pautada pela busca da atenção, em Legislators and início da Segunda Guerra Mundial, ele se alistou no exército polo-
Interpreters: On Modernity, Postmodernity and Intellectuals ( 1987). nês aliado ao Exército Vermelho e com ele enfrentou o nazismo.
Seu intelecto é, de fato, ao mesmo tempo rebelde e rigoroso. É fiel No seu livro Conversatíons with Bauman (200 1), ele nos conta que
ao presente, mas cuidadoso em reconhecer a sua genealogia, ou começou seus estudos e o curso de sociologia ao retornar a Varsó-
melhor, genealogias. via e que os seus primeiros professores foram Stanislaw Ossowski e
Nesta ocasião, o tema era a identidade, assunto que é, pela Julian Hochfeld, dois intelectuais poloneses pouco conhecidos
própria natureza, intangível e ambivalente. Bauman enfrentou o fora de seu país, mas fundamentais para a sua formação intelec-
desafio e realizou um duplo salto mortal: releu a história da socio- tuaL Acima de tudo, eles lhe proporcionaram a capacidade de
logia moderna à luz da obsessão e da importância com que o atual "olhar o mundo de frente': sem recorrer a ideologias preconcebi-
debate público trata a identidade e chegou à conclusão de que é das. Se você pede a Bauman, que se tornou um personagem de
melhor não buscar respostas tranqüilizadoras nos "textos consa- destaque na "escola sociológica" de Varsóvia, para descrever as di-
grados" do pensamento crítico. Modernidade líquida (2000) nos ficuldades enfrentadas nas décadas de 1950 e 1960, ele o faz sem
projeta num mundo em que tudo é ilusório, onde a angústia, a dor qualquer hostilidade em relação àqueles que se opunham ao seu
e a insegurança causadas pela "vida em sociedade" exigem uma trabalho. Na verdade, ele usa a sua ironia sutil para comparar a pe-
análise paciente e contínua da realidade e do modo como os indi- nosa liberdade acadêmica da Polônia ao conformismo acadêmico
Benedetto Vecchi 11
10 Introdução

europeu e norte-americano. É igualmente discreto quanto ao seu zação: as conseqüências humanas (1998), Comunidade (2000), The
papel no "Outubro polonês" de 1956, quando participou do influ- Jndividualized Society (200 1), Modernidade líquida (2000) e So-
ente movimento reformista que desafiou a liderança do Partido ciety under Siege (2002), que constituem o seu grande painel da
dos Trabalhadores Unidos e a subjugação de seu país às ordens de globalização como uma forma de mudança radical e irreversíveL
Moscou. Essa experiência o marcou e o preparou para o confronto Bauman a vê como uma "grande transformação" que afetou ases-
com a ideologia oficial do marxismo soviético, no que os trabalhos truturas estatais, as condições de trabalho, as relações entre os
de Antonio Gramsci desempenhariam seu papel. Começou a fazer Estados, a subjetividade coletiva, a produção cultural, a vida quo-
freqüentes viagens ao exterior. Tirou seu ano sabático na London tidiana e as relações entre o eu e o outro. Este livro de entrevistas
School ofEconomics e participou de muitas conferências em qua- sobre a identidade poderia ser considerado um pequeno acrésci-
se todas as grandes universidades européias. Então veio 1968, que mo a esse paineL Parafraseando uma de suas rt:spostas a respeito
se revelaria um momento decisivo em sua vida. Bauman, que da identidade, podemos afirmar com segurança que a globaliza-
apoiava o incipiente movimento dos estudantes poloneses, teve ção, ou melhor, a "modernidade líquida", não é um quebra-ca-
seus trabalhos proibidos pelo Partido Comunista quando o an- beça que se possa resolver com base num modelo preestabelecido.
-ti-semitismo foi usado para reprimir estudantes e professores uni- Pelo contrário, deve ser vista como um processo, tal como sua
versitários que exigiam o fim do sistema unípartidário em nome compreensão e análise- da mesma forma que a identidade que se
de "liberdade, justiça e igualdade". afirma na crise do multiculturalismo, ou no fundamentalismo is-
lâmico, ou quando a internet facilita a expressão de identidades
Impedido de lecionar, Zygmunt Bauman mudou-se para a
Inglaterra, onde ainda vive. Em quase todos os seus livros, e parti- prontas para serem usadas.
cularmente em Modernidade e Holocausto (1989), ele manifesta A questão da identidade também está ligada ao colapso do
uma enorme gratidão a ]anina, sua esposa e companheira, de Estado de bem-estar social e ao posterior crescimento da sensação
quem é muito próximo tanto emocional quanto intelectualmente. de insegurança, com a "corrosão do caráter" que a insegurança e a
Talvez ela seja uma das figuras intelectuais mais importantes nas flexibilidade no local de trabalho têm provocado na sociedade.
reflexões de Bauman, primeiro sobre a "modernidade sólida", de- Estão criadas as condições para o esvaziamento das instituições
pois sobre a "modernidade líquida': democráticas e para a privatização da esfera pública, que parece
cada vez mais um talk-show em que todo mundo vocifera as suas
Sua vida intelectual na Inglaterra, onde leciona na Universida-
próprias justificativas sem jamais conseguir produzir efeito sobre a
de de Leeds, tem sido intensamente produtiva. Já me referi a alguns
injustiça e a falta de liberdade existentes no mundo moderno.
de seus trabalhos, mas, tomando-os como um todo, fica bem claro
que, com a publicação de Postmodern Ethics (1993), Bauman co- No entanto, a "corrosão do caráter", que aparece com tanta
meçou a se concentrar na globalização, analisando-a do ponto de proeminência nos trabalhos mais recentes de Bauman, é apenas a
vista não apenas econômico, mas também, e fundamentalmente, manifestação mais marcante da profunda ansiedade que caracteri-
de seus efeitos sobre a vida quotidiana. Bauman, decano da socio- za o comportamento, a tomada de decisões e os projetos de vida de
logia européia, fez disso o ponto de partida para a sua exploração homens e mulheres na sociedade ocidental. Como intelectual que
do "novo mundo" criado pela crescente interdependência em nos- vivenciou os horrores do século XX - a guerra, a perseguição aos
so planeta. Esse período foi caracterizado por livros como Globali- judeus e o exílio de "seu" país no intuito de permanecer leal a si
12 Intr odução Benedetto Vecchi 13

mesmo -, Bauman conhece muito bem a diferença entre os fenô - atenção para o cosmopolitismo dourado e a sedutora mobilidade
menos de longo prazo e as expressões eventuais de uma "longa das elites globais, e também para o modo como ambos contrastam
transformação", como é claramente o caso da globalização. É fun- com a miséria dos que não podem escapar à dimensão local. A po-
damental compreender as características proeminentes de uma lítica de identidade, portanto, fala a linguagem dos que foram
"longa transição" a fim de identificar tendências sociais, mas é marginalizados pela globalização. Mas muitos dos envolvidos nos
igualmente necessário contextualizar manifestações da existência estudos pós-coloniais enfatizam que o recurso à identidade deve-
social dentro do longo período. Talvez seja por isso que, em diver- ria ser considerado um processo contínuo de redefinir-se e de in-
sas ocasiões, Bauman zomba educadamente dos que tentam con- ventar e reinventar a sua própria história. É quando descobrimos a
ceitualizar em definitivo a relevância política da identidade. Numa ambivalência da identidade: a nostalgia do passado conjugada à
sociedade que tornou incertas e transitórias as identidades sociais, total concordância com a "modernidade líquida". É isso que cria a
culturais e sexuais, qualquer tentativa de "solidificar" o que se possibilidade de transformar os efeitos planetários da globalização
tornou líquido por meio de uma política de identidade levaria ine- e usá-los de maneira positiva. Não estaria realmente equivocado
vitavelmente o pensamento crítico a um beco sem saída. Seu con- quem definisse esse processo como "o otimismo do pensamento e
.vite, portanto, é a exercitar um pouco de sabedoria, mas isso será o pessimismo da vontade". Pela quebra dos liames sociais da "mo-
inevitavelmente rompido por convidados inesperados, isto é, as dernidade sólida", é possível vislumbrar um cenário que conduz à
estratégias de adaptação à "modernidade líquida" que vemos em libertação social.
ação nas sociedades capitalistas tardias. O debate sobre a identida- Fiel a suas raízes fincadas na grande tradição sociológica euro-
de é, assim, uma convenção socialmente necessária que é usada péia, Bauman enfatiza o risco envolvido nesse tipo de discurso.
com extremo desinteresse no intuito de moldar e dar substância a Trata-se, não obstante, de um risco que se deve correr, justamente
biografias pouco originais. Falamos da identidade em razão do co- porque a questão da identidade precisa envolver-se mais uma vez
lapso daquelas instituições que, usando uma das famosas expres- com o que realmente é: uma convenção socialmente necessária.
sões de Georg Simmel, por muitos anos constituíram as premissas Caso contrário, é certo que a política de identidade vai dominar o
sobre as quais se construiu a sociedade moderna. cenário mundial- um perigo em relação ao qual já tivemos inú-
Em Comunidade, Zygmunt Bauman investigou a ambivalên- meros sinais de advertência. Em última instância, os vários funda-
cia exigida pelos novos laços sociais estabelecidos na sociedade ca- mentalismos religiosos nada mais são do que a transposição da
pitalista tardia. Eles podem originar exigências de proteção e o identidade para a política conduzida por cínicos aprendizes de fei-
retorno a um mundo familiar e restrito que cria fronteiras e barrei- ticeiro. A trapaça oculta por essa transposição só pode se revelar se
ras para manter à distância o "outsider", não importa quem seja. Ao você reconstruir a passagem da dimensão individual, que a identi-
mesmo tempo, porém, a comunidade representa um abrigo em re- dade sempre tem, para a sua codificação como convenção social.
lação aos efeitos da globalização em todo o planeta, como pode- Esta é, creio eu, a questão central.
mos ver claramente pela atual crise da mistura racial e cultural Qualquer que seja o campo de investigação em que se possa tes-
norte-americana. Ignorar esse fato é tão perigoso quanto sujei- tar a ambivalência da identidade, é sempre fundamental distinguir
tar-se a ele. Parece-me que o mesmo vale para a política de identi- os pólos gêmeos que esta impõe à existência social: a opressão e a li-
dade. Sabe-se bem que Bauman tem freqüentemente chamado a bertação. Esse círculo misterioso precisa ser rompido. Bauman está
14 Introdução

corretamente convencido de que a verdade só pode ser afirmada na


ágora, removendo desse modo o véu do obscurantismo que impede
essa mesma ambivalência de se tornar o lugar onde é possível ex-
perimentar o princípio de responsabilidade próprio de cada um.
Poderia parecer incoerente que esse homem conciliatório, tão zelo- • Identidade •
so com a sua privacidade, fique constantemente suplicando a todo
mundo para se manifestar, mas trata-se de um convite que deve ser
aceito mesmo que o debate público possa desencadear sérias diver-
gências. Isso seria o exato oposto da tagarelice pública dos in-
termináveis e imutáveis talk-shows televisivos a que ficamos tão
acostumados. A ágora é o espaço privilegiado em que se pode falar
abertamente sobre assuntos como a atual irrestrita privatização da
esfera pública, e essa centralidade a qual Bauman lhe atribui é que
faz dele um dos críticos mais lúcidos e céticos do zeitgeist predomi-
nante neste período de "modernidade" líquida. Segundo o antigo costume da Universidade Charles, de Praga, o
hino nacional do país da pessoa que está recebendo o título de
doutor honoris causa é tocado durante a cerimônia de outorga.
Quando chegou a minha vez de receber essa honraria, pediram-
me que escolhesse entre os hinos da Grã-Bretanha e da Polônia ...
Bem, não me foi fácil encontrar a resposta.
A Grã-Bretanha foi o país que escolhi e pelo qual fui escolhido
por meio de uma oferta para lecionar, já que eu não poderia per-
manecer na Polônia, país em que nasci, pois tinham me tirado o
direito de ensinar. Mas lá, na Grã-Bretanha, eu era um estrangeiro,
um recém-chegado- não fazia muito tempo, um refugiado de ou-
tro país, um estranho. Depois disso naturalizei-me britânico, mas,
uma vez recém -chegado, será possível abandonar essa condição al-
gum dia? Eu não tinha a intenção de que me confundissem com
um inglês, e meus alunos e colegas jamais tiveram dúvida de que
eu era um estrangeiro, mais exatamente um polonês. Esse tácito
"acordo de cavalheiros" impediu que a nossa relação viesse a se exa-
cerbar - pelo contrário, fez com que fosse uma relação honesta,
tranqüila e, no geral, transparente e amigável. Então, talvez deves-
sem tocar o hino polonês? Mas isso também significaria um ato de
15
16 Identidade Bauman 17

fingimento: trinta e tantos anos antes da cerimônia de Praga eu ti- gue não pod_em._~~~~~li ~~_g.~~-1!.~"~-r.!!.P.O r_e_é~:L .!llas que serão pre-
nha sido privado de minha cidadania polonesa. Minha exclusão sumivelmente realizadas na p~enitl;l_g.~ d().~~mpo - Q~!Eiil!i!~.Q~:
foi oficial, pro movida e confirmada pelo poder habilitado a se- É comum afirmar que as "comunidades" (às quais as identida-
parar quem está "dentro" de quem está "fora", quem faz parte de des se referem como sendo as entidades que as definem) são de
quem não faz - e assim eu não tinha mais direito ao hino nacional dois tipos. Existem comunidades de vida e de destino, cujos mem-
polonês ... bros (segundo a fórmula de Siegfried Kracauer) "vivem juntos
Janina, minha companheira por toda a vida e pessoa que já re- numa ligação absoluta", e outras que são "fundidas unicamente
fletiu muito sobre as armadilhas e privações da autodefinição (afi- por idéias ou por uma variedade de princípios". ' Dos dois tipos, o
nal, ela é autora de um livro intitulado Dream of Belongíng [O primeiro me foi negado- tal como o foi e será para um número
sonho de pertencer]), encontrou a solução: por que não o hino da cada vez maior de meus contemporâneos. Se não tivesse sido nega-
Europa? É verdade, por que não? Europeu, sem dúvida, eu era, do, dificilmente lhe ocorreria indagar-me sobre a minha identida-
nunca tinha deixado de ser- nascido na Europa, vivendo na Euro- de. E se você indagasse, eu não saberia que espécie de resposta você
pa, trabalhando na Europa, pensando e sentindo como um europeu. esperaria de mim. A questão da ide1_1_tida4e SQ_S_I,!r~c;om _a_~~P9$..t
E mais: até agora não existe um órgão europeu com a autoridade de Ê9__a "comu{!idades" da segunda ca~eg~ria- e apenas_pQ!g_ue exis-
emitir ou recusar um "passaporte europeu': e assim conceder ou ne- te mais de uma idéia para evocar e manter unida a '\:qrpyn_idade
gar o direito de nos autodenominarmos "europeus". (ll!ldi~a_ p~r._i_~éi_as'~a_gg~se é exp<;>stQ ~~_!l()SSO mun_go <Je diversi-
~o_s~a ~e~isão de pedir que tocass~lll - ~ hinc:> _europeu foi si- da~es e P.~E~~~-~al._ É porque existem tantas dessas idéias e prin-
multaneamente "includente" e "excludente': Referia-se a uma enti- cípios em torno dos quais se desenvolvem essas "comunidades de
dade que abraçava os dois pontos de referência alternativos da indivíduos que acreditam" que é preciso comparar, fazer escolhas,
minha identidade, mas ao mesmo tempo anulava, por pouco rele- fazê-las repetidamente, reconsiderar escolhas já feitas em o utras
vantes o u mesmo irrelevantes, a~ _difere.~~~s entre ambos e assim, ocasiões, tentar conciliar demandas contraditórias e freqüente-
também, uma possível "cisão identitária': Tirava da pauta uma in~nte i~c~mpatíveis. Julian Tuwim, o grande poeta polonês de as-
identidade definida em termos de nacionalidade- o tipo de iden- cendência judaica, ficou conhecido por enfatizar que odiar mais os
tidade que me foi negado e tornado inacessível. Alguns versos anti-semitas poloneses do que os de qualquer outro país era a
comoventes do hino europeu ajudaram: "alie Menschen werden maior prova do seu polonesismo (suponho que minha judaicidade
Brüder':.. A imagem da "fraternidade" ~- o símbolo de se tentar al- seja confirmada pelo fato de que as atrocidades cometidas por
cançar o impossível: diferentes, mas os mesmos; separados, mas Israel me são mais dolo rosas do que as perpetradas po r outros
inseparáveis; in ~epe~d~nt~s,_!_11~~ ..!!_Qid<?S.· países). Tornamo-nos conscientes de que o "pertencimento" e a
Eu cito o pequeno episódio porque este reúne, resumidamen- ª
'_'identidade" n-ª_Q ~ê.lll. .~o.!i9~~-q~ Ull}-ª__!9.~~_, não ~.i!Q_gª~-l}~i<!o_~
te, a maioria dos dilemas inquietantes e das escolhas obsedantes _p~ua toda a ~!<J~J2ªº· basta!l.!.~. ~~çiá_y~j~ revog<!_v~is 1_ c;: d_~_g_u~__a._~
que tendem a fazer da "identidade" um tema de graves preocupa- .deci~.Q~~_<n!~Q..P_r9pri_q_in_9.jy!dy_o to ma, Q_~ail)!.!l.b_os que percorre,
ções e agitadas controvérsias. As .P~~~Q~S em busca de identidade se a maneira COITJ.O age_.:::-_~_determinaçª-.q de se manter firme a tud_Q
vê~m invariav:e!mente di~nte_da _t~refa i~timJc!~_dQF.a sJ.e"alcanç<;lr 9 . isso -_s~~Jatore~c.t~:!ciai~ _!~~to para o "pertencimento" quanto
ime~s~í~~l": essa expressão genérica implica, como se sabe, tarefas ~ª- "id~_ntidade". Em outras palavras, a idéia de "ter_mna íd~.nti.:
18 lder111dade Bauman 19

dade" não vai ocorre r às _pessoas e_!}quanto o "pertencimento" fragilmente conecta~os. Po ucos de nós, se é que alguém, são capa-
_com~n_uar ~~.!!9() o seu destino, uma condição sem alterna_ü~ª- Só zes de evitar a passagem po r mais d e uma "comunidade de idéias e
_çom~çarão a ter essa idéia na forma d e uma - tarefa
. a ser realizada e
)
princípios", sejam genuínas ou supostas, bem-integradas o u efê-
~ealizª_q~- v:~~-~_s_e v~?~. s.em_ c~_!l ta, e não de u~a ~.Q.1i.lC5!.<!c:t..:. meras, de modo que a m aioria tem problemas em resolver (para
Não m e recordo de dar muita atenção à questão de minha usar os termos cunhados po r Paul Ricoeur) a questão da la mêmete
"identidade': pelo menos do po nto d e vista da nacionalidade, an tes (a consistência e con tinuidade da nossa identidade com o passar
do brutal despertar de março de 1968, quando o meu polonesismo do tempo). Poucos de nós, se é que alguém , são expostos a apenas
foi publicamente posto em dúvida. Imagino que até então eu espe- uma "comunidade de idéias e princípios" de cada vez, de modo
rava, prosaicamente, e sem qualquer ansiedade ou astúcia, aposen- que a m aioria tem problemas semelhantes co m a questão d a l'ip-
tar-m e por tempo de serviço na Universidade de Varsóvia e ser séite (a coerência d aquilo que nos distingue como pessoas, o que
enterrado, chegada a ho ra, num cemitério d a cidade. Mas, desd e quer que seja). Minha colega d e trabalho e am iga Agnes Heller,
março de 1968, o que todos esperavam de mim, e ainda esperam, é com quem compartilho, em grande medida, os apuros d a vida,
que eu me autodefina, e que eu tenha uma visão ponderada, cuida- uma vez se queixou de que, sendomulh~!.1 __b.~~~-a2j~<!!~.!._!l_or~
dosam ente equilibrada e ardentemente defendida da minha identi- te-americana e filósofa, e~_tava s~brecar~~g_~-~-~__QeJ~~~t!~_?d_~s__de-
dade. Por quê? Porque, uma vez tendo sido obrigado a me mudar, mais para uma só pessoa. O ra, seria fácil para ela ampliar a lista -
expulso de algum lugar que pudesse passar pelo meu "habitat natu- m as os arcabouços de referência por ela citados já são suficiente-
ral': não haveria um espaço a que pudessem considerar-me ajusta- mente numerosos para d emonstrar a impressionante complexida-
do, como dizem, cem por cento. Em todo e qualquer lugar eu estava d e da tarefa.
-algumas vezes ligeiramente, o utras ostensivamente- "deslocado': E_s!.._a_r__tQ.t<:ll.Ol!_p_arc:::!-ªh:nçnte "deslocado" em toda parte,pª-o çs~
Aconteceu que, en tre os vários problemas conhecidos como ta r t~tal_n:tenJ_e e~_lug~r alg um (ou seja, sem restrições e embargos,
" minha identidade", a naci~nalidad~ ganho-u ~~a--pro~I!lj~ê~cia sem que alg~Jns a~pectos d a p~ssoa "se sobressaiam" e sejam vistos
particular. Eu compartilho essa sorte com milhões de refugiados e P.Or outras como estranhos), pode ser uma experiência desconfor-
m igrantes q ue o nosso mundo em rápido processo de globalização tável, por vezes perturbado ra._Senwre_hAJtlguma coisa a explicar,
produz em escala bastante acelerada. Mas a descoberta de que a ge_~p.Jlpar, escQtt_ 4 ç_r_Q..u.l p_çlo _ç_qptrá_r.i<~l..s2 r'!i.Q_~!l.!TI~P._t~ ostentar,
identidade é um m o nte de problemas, e não uma campanha de _ne_goçiar. oft;r~c~r e b~rgª_n har, HAqifg_mça,~~ s~gm ateguada~
tema único, é um aspecto que compartilho co m u m número muito Q.esculp<;1d_a s ou, p~lo con~rári9, r~~~Jtadas e tornadas_m ais claras.
maior de pessoas, praticamente com tod os os ho mens e mulheres .A.-~ _)q~!_l_t id,?des" flutuam no ar, algumas de nossa próp ria escolha,
da nossa era "líquido-moderna". m~s o utr<:ls _infla_das e lanH das pelas pes_sqa§ ~_rp~!lQ~S-ª ~olta~....e_ é
As peculiaridades da minha biografia apenas dramatizaram e pJeCÍsQ ~~t_a r em ~lerta_ ÇQ!1_~tapt~_par<! defen_der <!§..PJ.ÍIT!eiras ~m re-
colocaram em pleno destaque um tipo de condição que hoje em lação às últiw_as.LJ-í_j !!.!JJ_a-ªmV..lª--P.mb..a.Qilid~çle q e_qesentendimen-
dia é bastante comum, a caminho de se tornar quase universal. Em !Q,_e Q-~esl!l~.Qq_ qa,__ ne_w~_La_ç_ão_pçrma_n_rç~ eterna mente pendente.
nossa época líq uido-mo derna, o mundo em nossa volta está re- Quanto mais praticam os e dominamos as d ifíceis habilidades ne-
partido em fragmentos mal coordenado;, ~nqu~~t~ as ~~s-~~~ ~xi~­ cessárias para enfrentar essa condição reconhecidamente am biva-
tências individuais são fatiadas numa sucessão de episódios lente, m enos agudas e dolorosas as arestas ásperas parecem, menos
20 ldent1dade Bauman 21

grandiosos os desafios e menos irritantes os efeitos. P9.ci.~-S~-ª!~ consg~!)t-~~--dQs_r_is_çç~ g _ªL.mª-dilhas que sabi.4ª!11ente_ç~rcam tQda~
começar a S~J1.!J!:~ chez soi, "em casa", em qualquerJ.!:!gar- mas o .~~e.~~nsõ_e.§. iljroitagªs_,_
preço a ser pago é a aceitação de que em l_ug_a r algur_n se vai estar to- Sobre Georg Sim mel- com quem aprendi m ais que com qual-
tal e plenamente el!l casa. quer outro sociólogo e cuja forma de fazer sociologia tem sido para
Pode-se reclamar de todos esses desconfortos e, em desespero, mim (e, creio eu, sempre será) o derradeiro (embora, infelizmente,
buscar a redenção, ou pelo menos o descanso, num sonho de per- inatingível) ideal-, Kracauer comentou corretamente que um dos
tencimento. Mas também se pode fazer desse fato de não ter objetivos fundamentais que orientaram o trabalho de sua vida foi'
escolha uma vocação, uma missão, um destino conscientemente "livrar todo o fenômeno geistig [espiritual, intelectual] do seu falso
escolhido- ainda mais pelos benefícios que tal decisão pode trazer ser-em-si e mostrar como ele está embutido no contexto mais am-
para os que a tomam e a levam a cabo, e pelos prováveis benefícios plo da vida". No cen_tr9 da visão de Simmel, e portanto do seu,
que estes podem então oferecer a outras pessoas. mundo e da compreensão que ele tinha <!~seu próprio lu_gar_pc;;~se
Ludwig Wittgenstein fez a famosa declaração de que os melho- mundo, sempre esteve o ser humano como indivíduo - "conside- ·
res lugares para se resolver problemas filosóficos são as estações de rado portador de cultura e um ser geistig maduro, agindo e ava-
trem (lembremo-nos de que ele não teve, em primeira mão, a expe- liando no controle total dos poderes de sua alma e ligado a~~
riência dos aeroportos ... ). Um dos maiores nomes da longa relação outros seres humanos na ação e no sentimento coletivos". Se você
de refinados escritores de língua espanhola, }uan Goytisolo, que an- fica me instigando a declarar a minha identidade (ou seja, o meu·
dou por Paris e pelos Estados Unidos até se estabelecer no Marrocos, "eu postulado", o horizonte em direção ao qual eu me empenho e ·
resumiu a sua experiência de vida observando que "aj~tÍJEÍQade e a pelo qual eu avalio, censuro e corrijo os meus movimentos), esse é
dis_t~f!.~i~ criam u~a situ~çã9 _privile_gi~~~:..J\.IT!~as ~ã2_!1_e_c~s~árias." o máximo a que me pode levar. Só consigo ir até aí...
Jacques Derrida, um dos mais importantes filósofos de nossa era lí-
quido-moderna, em exílio perpétuo desde que o governo de Vichy o BENEDETIO VECCHI Na imaginação sociológica, a identidade é.
expulsou da escola de sua cidade francesa, aos 12 anos, por ser judeu, sempre algo muito evasivo e escorregadio, quase um a priori, ou
construiu o seu impressionante lar filosófico, na opinião comum, seja, uma realidade preexistente. Por exemplo, para Émile Durk-
sobre as '.'~ncruzifu_ªQa.~çult1J!~)§~~George Steiner, um crítico cultu- heim, as identidades coletivas sempre permanecem como pano
ral contundente e altamente perspicaz, apontou SaQ!_l._!el Be~kett, de fundo, mas não há dúvida de que, em seu livro mais famoso, A
Jorge Luis );3ç_r_ges e Vladimir Nabokov como os mais importantes .~visão social do trabalho, essa divisão é um elemento contraditó-
escritores contemporâneos. O que unia, a seu ver, esses três autores rio. Por um lado, ela coloca em risco os vínculos sociais, mas ao
em tudo mais distintos, colocando-os acima dos demais, era o fato mesmo tempo atua como fator de estabilização na transição para
de t_QQ.o.§ ek_s serem capazes ele ~e m ovime_J!_t<l:r com facilidade em vá- a criação de uma nova ordem social. Entretanto, em seu arcabou-
riq_s universos lingüísticos diferentes.: Essa çontínua tr.~f!Sgressão de ço analítico, a identidade deve ser considerada um objetivo, um
fmnteir:as lhes permitia espiar a inventividade e a _engenhosidade propósito, em vez de um fator predefinido. Qual a sua opinião?
b_IJ...I!lanas p9r_trás da_s sólidas _e solenes fachadas de credos (lparente-
IT!Ç_!!te ~tef!1_Q9_rais_ e_intr~nsponíveis~ dando-lhes as~i_m a c~xagem. Minha opinião é igual à sua ... Sim, de fato, a "identicia<ie~'-_s2_ nos ~
J:t_~_ç_e_ssária_ panu~ i11corporar intencionalmente à criação cultural, revelada como algo a ser inventado, e não de~c()b~rt(); como ªlvQ
22 Identidade Bauman 23

de um esforço, " um objetivo"; como_urnª_coi~~g_l.le ain<J.? ~e_pre<;!:­ ~~~ ~stav'!._~~m..Perto do centro do nosso debate, perman~ceqqQ
sa const_ruir -ª·partir do ze_ro ou escQlher entre ?lt~..!}!lt~~~ ~-el)tão uniçamente..JI.m objeto de m~di~s_ª-o (ilosºf].c_a. Atl:lalJ!lente, no
lutar por e.la .~ _prot~gHa !l:!!and9 .<l~_I)d~ . !nais-:- mesm9 que, _para .~D!al)to, a.:'identidade" é o "papo do momento", um assunto de
que essalu_ta selª vitoriosa, a verdade sob.re a condição precária e extrema importância e em evidência. Esse súbito fa_scínio pela iden-
eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, su- ti~a<:Je, ~ _não el_a mesma, é que atrairia a atenção dos clássicos da
primida e laboriosamente oculta. sociologia, caso tivessem vivido o suficiente para confrontá-lo. ~
Atualmente, é mais difícil esconder essa verdade dq_~ no provável que conseguissem uma pista com Martin Heidegger (mas
início da era moderna. As forças mais determinadas a ocultá-la per~ não es!avam mais entre nós quando ela foi oferecida): você só
deram o interesse, retiraram-se do campo de batalha e estão con- tende a perceber as coisas e colocá-las no foco do seu olhar pers-
tentes com a tarefa de encontrar ou construir uma identidade para crutador e de sua contemplação quando elas se desvanecem, fracas-
nós, homens e mulheres, individual ou separadamente, e não con- sam, começam a se comportar estranhamente ou o decepcionam de
juntamente. A fragilidade e a condição eternamente provisória da alguma outra forma.
identidade não podem mais ser ocultadas. O segredo foi revelado. Pouco antes de a última guerra mundial irromper, realizq_l:l.::§.t:
Mas esse é um fato novo, muito recente. um
..... -- .
~~-
.. s..c,-~~-111i~ha-·Polôni~
-----
- --· ...-- -----
~~i'~ntão um~ so~iedade multiétni-,
De modo que eu fico imaginando se é justo pedir aos pais es- ca. Certas partes do país eram habitadas por uma inusitada mistu-
pirituais da sociologia, sejam eles Weber ou Durkheim, ou mesmo ra de grupos étnicos, credos religiosos, línguas e costumes. Dar
Simmel, que foi mais sagaz e mais à frente do seu tempo do que to- uma nova feição a essa mistura, por meio da conversão e assimila-
dos os demais, que nos instruam sobre o que é e como refletir sobre ção forçadas, numa nação uniforme ou quase uniforme segundo,
um tema que irrompeu em nossa consciência compartilhada e lá se digamos, o modelo francês, talvez fosse um objetivo energicamen-
estabeleceu muito depois de eles terem morrido. Todos eles se en- te perseguido por uma parte da elite política polonesa, mas de
volveram numa conversa com problemas, preocupações e tribula- maneira alguma um propósito universalmente aceito e consis-
ções dos homens e mulheres do seu tempo (a profundidade, a tentemente apoiado, muito menos um projeto próximo de sua
convicção e a dedicação desse envolvimento foram a sua verdadei- conclusão.
ra grandeza e o seu mais importante legado à sociologia posterior). Como seria previsível num Estado moderno, os funcionários
A "identidade" não se destacava em meio a essas preocupações. Su- do censo foram, não obstante, treinados a esperar que para cada
ponho que, caso tivessem dirigido os seus ouvidos - finamente ser humano houvesse uma nação a que ele ou ela pertencesse. Fo-
sintonizados com os grandes problemas do seu tempo, quaisquer ram instruídos a coletar informações sobre a auto-identificação
que fossem - para o nosso tipo de sociedade, que estava para nacio nal de todos os indivíduos do Estado polonês (hoje se diria:
nascer quase um século mais tarde, teriam considerado a súbita "sua identidade étnica ou nacional"). Em cerca de um milhão de
centralidade do "problema da identidade", tanto nos debates inte- casos os funcionários falharam: os entrevistados simplesmente
lectuais quanto na consciência comum, um dilema sociológico dos não entendiam o que era uma "nação" nem o que significava "ter
mais intrigantes. uma nacionalidade". Apesar das pressões - ameaças de multa com-
É realmente um dilema e um desafio para a sociologia - se binadas com esforços verdadeiramente excepcionais no intuito de
você se lembrar de que, há.F~-ª~.aJg',!ll}_ª·~-c!é.f<!~l_<:l$.Lª-.." idel}!idadL explicar o significado de "nacionalidade" - , eles se atinham teimo-
24 Identidad e Bauman 25

samente às únicas respostas que lhes faziam sentido: "somos da- ~.itação_ _hu_J11~1_:t_<!·__De ~úbito! e~~ __pr~ciso colocar a questão da
qui", "somos deste lugar", "pertencemos a este lugar". Por fim , i~~nt_idade, já que nenhuma resposta óbvia se oferecia.
os administradores do censo tiveram de se render e acrescentaram O nascente Estado moderno, que enfrentou a necessidade de
"pessoas do lugar" à lista oficial de nacionalidades. criar uma o rdem não mais reproduzida automaticamente pelas
O caso da Polônia não é absolutamente singular, nem seria o "sociedades de familiaridade mútua", bem estabelecidas e fir-
,.
último desse tipo a ser registrado. Alguns anos depois, uma pes- memente consolidadas, incorporou essa questão e a apresentou
/ quisa realizada na França mostrou que, após dois séculos de um em seu trabalho de estabelecer os alicerces de suas novas e desco -
persistente processo de construção nacional, "le pays': para muitos nhecidas pretensões à legitimidade.
camponeses, tinha apenas 20 quilômetros de diâmetro, podendo Parecia natural supor que, em seguida à rápida expansão, o
ser cinco quilômetros maior ou meno r do que isso... Como apon- "problema da identidade" seria mais bem confrontado por uma
expansão paralela dos ofícios de monitoramento da ordem, tais
tou recentemente Phillippe Robert, "durante a maior parte da his-.
como os praticados e testados pelo maréchaussé. 9 Es_~<!9o-nação,
tória das sociedades humanas, as relações sociais têm se mantido
como observou Giorgio Agamben, ~..~m Estado que faz da "nativi-
fi~memente concentradas nos domínios da proximidade". Lem-
2

~_a_<;l~_<?Q ..Il:~sç!_~Berg~:_o "aliç_~_r_s:~çl_e_§.!:!ª-._E_!:Qrri'!__~9beran ia". "A fiç:


bre-se de que, no século XVIII, a viagem de, digamos, Paris a Mar-
~~~i irp._plícita': destaca, "é que: o nasci'!I_ento [ nascita ]vem à luz
selha durava tanto tempo quanto na época do Império Romano.
!Dl~di~tamente como nação, de _mo.d:o que não po4e hav~r 9iferen-
Para a m aioria das pessoas, ~-~:~o~i.eçl-ª-q~~~l!!~!lQ~Q~. CO!!}_Q_a_ lp.ai_<?~
~l1_m_a entre OS dois mon:!~!!_t_~s_.''J 0~ infelizes alvos do questio-
tot<llidad,~ _qª_çg~_bitªçã_Q_hl1mana_ (se é que elas pensavam nesses
nário do censo polonês simplesmente deixaram de assimilar essa
termos), erii igual à vizinhança adjacente. "Podia-se falar de uma
ficção como um "fato inquestionável" auto -evidente. Ficaram
sociedade de conhecimento mútuo", sugere Robert. No interior atônitos quando lhes disseram que todos não só deviam ter uma
dessa rede de familiaridade do berço ao túmulo, o lugar de cada "identidade nacional" como podiam ser indagados a respeito de
pe§S_9a e_!"a ev_idente _dem~is para ser avali~do, q!Je 9.-irá ~egociado. sua nacionalidade.
A falta de clareza em tais assuntos (como no caso das relativamente Não que se tratasse de pessoas particularmente obtusas e de
poucas "pesso~~ ~m senhor" que ~~gavam por estradas igualmen- imaginação limitada. Afi nal de contas, perguntar "quem você é" só
_te sel!_1_~2_!!~p()r [}âo _en~-~O..!~arell1!!!~i~s ~e _su~~s~E~ia em suas faz sentido se você acred ita que possa ser outra coisa além de você
comuni~ad~s !l(ltivas). .e~a u~ fe~?~~!lo___secun~á_!:~9. e...!!.l!!é!.Preo- mesmo; só se você tem uma escolha, e só se o que você escolhe de-
cl1p~çã() _menor, facilmente enfrentada e resolvida por medidas ad pende de você; ou seja, só se você tem de fazer alguma coisa para
hoc segundo as regras do maréchaussé, o corpo de agentes monta- que a escolha seja "real" e se sustente. Mas foi justamente isso que
dos que constituiu a primeira força po licial da história moderna. não ocorreu aos moradores das aldeias atrasadas e dos povoados
.t9rªm n~c.es.~~ri(l_Sª len_~a des~!ltegr_~ção e_'!. !._e_9u~~2der da floresta- que nunca tiveram a oportunidade de pensar em mu-
~_glutim._çlor_Q_é!_s :v.i~.i!I_haQgt_s~ complementadas pela revolução dos dar de lugar, muito m enos procurar, descobrir ou inventar algo tão
ti:?_nspQrJ~.J. 1 para limpar a área, possibilitando o nascimento da nebuloso (na verdade, tão impensável) como uma "outra iden-
identidade- como problema e, acima de tudo, como tarefa.~~-~~­ tidade''. Sua forma de estar no m undo eliminava da questão da
gens inc!laram rapidam ente, ~nvadindo as áreas Çt;l}_!!'!i.§_c!'!..~~3::- "identidade" o significado tornado óbvio por outros modos de vi-
26 ldent1dade Bauma n 27

da- modos que nossos usos lingüísticos nos estimulam a chamar A ficção da "natividade do nascimento" desempenhou o papel
de "modernos". pri ncipal entre as fórmulas empregadas pelo nascente Estado mo-
Jorge Luis Borges descreveria a difícil situação dos cidadãos derno para legitimar a exigência de subordinação incondicional de
"locais" importunados como um caso de pessoas apresentadas a seus indivíduos (de alguma forma, curiosamente, desprezada por
uma tarefa "que não é proibida para o utros homens, mas proibida Max Weber em sua tipologia das legitimações). Estado e nação
para elas"- tal como aconteceu a Averróis quando tentou traduzir precisavam um do outro. Seu casamento, alguém poderia dizer, foi
Aristóteles para o árabe. "Confinado ao círculo do Islã" e assim oficiado no céu ... QJ.,s!ii..99_buscava a o~ecli~!l.Si~A~- seus i!!Q.iví:_
"tentando imaginar o que é uma peça teatral sem jamais ter suspei- çl_~Qs_rep!f?.e~_tan_cio:s_(! ÇOI1_}9. <!SQ!lÇ~!i?:ilfª-Q 9-..2 fu!~!.Q QªDª.ç ão ~
tado do que fosse um teatro", Averróis "jamais poderia conhecer o .a _garantia de sua continuidaqe. Por outrql~do, uma nação .s~rn.
4
significado da tragédia e da comédia." J;:~.tado estaria desti~ada a_s~rJ.!l~~ZUJ~ sobre o seu pas~~do, incerta
A idéia de " identidade'~ e particularmente de "identidade ~a­ .sobre o seu prese~ te. ~ duvidosa _de seu futuro, e assim fadada a uma
cionai': não foi "naturalmente" gestada e incubada na experiência .<!"'is_!ênci~ precária. N.ªQ]Qsse Q_p_Qg~r_çiQ]§.~_ª-.<l.QQ~ 9~fi.n!r:,__çj~§ifl::
hu~;~~, não emergiu de-ssa experiência como um_"fato da vida" ~_?!., s~!eK~rLs~':l_r~r e ~e!~c!Q_nar,_o agre_g~qo ge tr<!ci_iç9es,. ~~~.~.tQ~,
~uto-evidente. Essa idéia foi forçada a entrar na Lebenswelt de ho- lei~ consuetudinárias e ~()dos de vida locais, dificilmente seria re-
mens e mulheres moderJ?.OS ~ ~ ~~~g<?~com_o_!:!_~.~ficç~.~·.Ela se so- .modelado em algo como os requisitos de unidade e coesão da co-
lidifi~~u~um '~f~to': num "dado': precisamente porque tinha sido tp~nidade nacional. Se o E~!~<lo_~rª a concretização do_ futuro da
uma ficção, e graças à brecha dolorosamente sentida que se esten- n~.~-º' era também .uma condição necessáriap_a~~ ha~~r_ ~I!_l.~__I.:ta-
deu entre aquilo que essa idéia sugeria, insinuava ou impelia, e ao _ção proda.rpan_do - em voz alta, confiante e de modo eficaz- ~f!!
status quo ante (o estado de coisas que precede a intervenção hu- d~stino coll?-partilhado. A regra cuius regia, eius natio (quem go-
mana, portanto inocente em relação a esta). A id~if!. d~ "i~úmtiqa_@.~ verna decide a nacionalidade) é de mão dupla ...
nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou
A "identidade n<:t_çional" foi desde_QiJ1ício, e_~()!!._~nuou sendo
no sentido de transpor a brecha entre o "deve" e o "é" e erguer a
por JII~!ts>__.!~Ql...P.Q,.!!mª_Il_QÇi!Q_~(Jnís_~iff.l e UQ} grito de guerra. Um~_
realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela idéia- recriar a
realidade à semelhança da idéia. -comunidade nacional
. . ..._ ----- - -- - ... coesa
~ . -
sobrepondo-se ao agregado de in<Jjví:
d~2_s do _!::.stado estava destinada a permanecer não só perp~!__l!~:
A identidade só poderia ingressar na Lebenswelt como uma ta-
mente incompleta, mas eternamente precária- um projeto a exigir
refa - uma tarefa ainda não realizada, incompleta, um estímulo, um
dever e um ímpeto à ação. E o nascente Estado moderno fez o ne- uma vigilância contínua, um esforço gigantesco e o emprego de boa
cessário para tornar esse dever obrigatório a todas as pessoas que dose de força a fim de assegurar que a exigência fosse ouvida e obe-
se encontravam no interior de sua soberania territorial. Nascida decida (Ernest Renan chamou a nação de "um plebiscito diário" -
como ficção, a identidade precisava de muita coerção e convenci- apesar de estar falando da experiência do Estado francês, conheci-
mento para se consolidar e se concretizar numa realidade (mais do desde a era napoleônica por suas ambições notavelmente cen-
corretamente: na única realidade imaginável) - e a história do nas- tralizadoras). Nenhuma dessas condições seria atendida não fosse
cimento e da maturação do Estado moderno foi permeada por pela superposição do território domiciliar com ~ sobe~ani_a in<l!-
ambos. v~sível do Estado.- qu~, como sugere Agamben (seguindo Carl
28 Identidade Bauman 29

Schmitt), ~~~s~ste antes de mai~ ~~~a ~~--P~~er _de ~c~'!são. ?_!.:!_~ A severidade das exigênc ias era um r_eftel(o da e_n,Pêmica e in-
_raiso_~_d'êt.r.e_ era traç(lr,_Ít11por -~.P.<?liciar_~fr<>.Qt_eira _et_1!~e . "nós" e -~_urável precariedade do trabalho de construir e J~l_a!lt~!:Jl: !!~ªo.
"~le(. O "pertencimento" teria perdido o seu brilho e o seu poder Permitam-me repetir: a "naturalidade" do pressuposto de que
de sedução, junto com a sua função integradora/disciplinadora, se "pertencer-por-nascimento" significava, automática e inequivo-
não fosse constantemente seletivo nem alimentado e revigorado camente, pertencer a uma nação foi uma convenção arduamente
pela ameaça e prática da exclusão. construída - a aparên cia de "naturalidade" era tudo, menos "natu -
ral': Diferentemen te das "minissociedades de familia ridade mú-
A_ i<!ez:ttiqa~e nacional, permita-me _ac~es~e~tar, nl!.~~a foi co.:
tua"- as localidades em que a maioria dos hom ens e mulheres d a
mo as outras identidades. Diferentemente delas, que não exigiam
era pré-m oderna e p ré-mobilidade passavam suas vidas do berço :
adesão inequívoca e fidelidade exclus_iva, a identidade_11acional nã_o I
ao túmulo-, a "nação" foi uma entidade imaginada que só poderia 1

re'9_!:l~ecía co~petid~res, muito menos opositores. Cuidadosamente


ingressar na Lebenswelt se fosse mediada pelo artifício de um con- ·
construída pelo Estado e suas forças (ou "governos à sombra" ou
ceito. A aparência de naturalidade, e assim também a credibilidade
"governos no exílio" no caso de nações aspirantes- "nações in spe",
do pertencimento declarado, só podia ser um produto final de an -
apenas clamando por um Estado próprio), a ide~tiQade_ nacional
tigas batalhas p ostergadas. E a sua perpetuação não podia ser ga-
objetivava o direito monopolista de traçar a fronteira entre "nós" e rantida a não ser por meio de batalhas ainda por vir.
"eles''. À falta do monopólio, os Estados tentaram assumir a incon-
Na Itália, vocês devem saber muito bem disso ... Dois séculos
testável posição de supremas cortes passando sentenças vinculan-
depois da vitória do Risorgimento, a Itália dificilmente poderia ser
tes e sem apelação sobre as reivindicações de identidades litigantes. considerada um país com uma só língua e interesses locais plena-
Tal como as leis dos Estados passaram por cima de todas as mente integrados. Em muitas ocasiões se faz um apelo a que se re-
formas de justiça consuetudinária, tornando-as nulas e inválidas conheça que os interesses locais se sobreponham aos vínculos
em casos de conflito, ~-~~~!l~ida<!~ ~-~~ ~onal só permitiria ou tolera: nacionais (acusados de serem a rtificiais). A prio ridade da identi-
rÍ.~-~-SS<!~ q_u_tras identidades se _el~?. não fosSeJl1_ ~~s_reitaS de c:olidir dade nacional ainda é, tal como antes da unificação, uma questão
(fosse em princípio ou ocasionalmente) com a ir~estrita priorida- em aberto e calorosamente contestada. Como Jonathan Matthew
d~ q~t_le~l_d(l.Q.e . n~cional. ~er indivíduo de um Estado era a única Schwar tz adequadamente observa, em vez de o todo ser maior que
çaracterística confirmada pelas autoridades n as carteiras de identi- a soma das partes (como insistia Durkheim, acreditando que o po-
dade e nos _passapo_rres.. Outras identidades, "menores", eram in- der do Estado concretizaria as ambições deste), "o todo imaginado
centivadas e/ou forçadas a buscar o endosso-seguido-de-proteção é de fato mais irreal do que a soma das partes".'
dos órgãos autorizados pelo Estado, e assim .~onfirmar indireta-
mente a ~u.r_erioridé!de__da "i_dentidade '!a~ional" c_orn base e!ll de- Quem decerto assume certa distância dessa formulação é Georg
cr~_tgs ir:n_per~~_i s_ou republicanos, diplomas estatais e ce~t_iflc<l~os 'Simmel. Nos seus ensaios sobre as formas de vida nas metrópo-
ençig_~s~9.Q.~-~.9~!~d9.: Se você fosse ou pretendesse ser outrac_o i: les e o conflito na sociedade moderna, a identidade é menciona-
~!! g1:1alquer, as "instituições adequadas" do Estado~ que t~rja!1_1 a da precisamente como uma representação de instituições como
p~avra final. Uma identidade não-certificada era uma fra ude. Seu a Faml1ia, o Estado, a Igreja, que são - numa perspectiva kantia-
portador, um impostor - um vigarista. na- os a priori da vida social. Nesse caso, o elemento da identi-
Bauman 31
30 Identidade

dade está quase desintegrado pela moderna sociedade de vivencie o pertencimento e que possam facilitar a construção da identi-
0

massa. De fato, Simmel tende a se concentrar nas formas de vida dade. Segue-se a isso um crescente sentimento de insegurança ...
que emergiram com a dissolução das ordens estabelecidas.
Entretanto, se confrontarmos as análises do sociólogo alemão Permita-me assinalar já neste estágio (esperando por uma
com as de Durkheim, a identidade é um elemento secundário na oportunidade posterior de abordar o assunto com mais detalhes,
análise da realidade. Você não concorda? como ele merece) que 9~ '_'grupos" que os indivíduos_d~~t~l1i<ig_~­
las estruturas de referência ortodoxas "tentam encontrar ou estabe-
lecer" hoje em dia tendem a ser eletronicamente mediados, frágeis
Repito o que afirmei anteriormente: há razões importantes para
~t?talidades virtuais': em que é fácil entrar e ser abandonados. Difi-
não buscar respostas a nossos "problemas de identidade" no traba- cilmente poderiam ser um substituto válido das formas sólidas -
lho dos fundadores, mesmo nos de Georg Simmel, que, devido às
com a pretensão de ser ainda mais sólidas- de convívio que, graças à
peculiaridades de sua biografia, pôde vislumbrar o tipo de condi-
solidez genuína ou suposta, podiam prometer aquele reconfortante
ção existencial que só muito mais tarde se tornaria o destino- bên- (ainda que ilusório ou fraudulento) "sentimento do nós"- que não
ção ou maldição - de todos. é oferecido quando se está "surfando na rede". Citando Clifford
A principal razão pela qual os pais fundadores da sociologia Stoll, viciado confesso em Internet, embora hoje curado e recupera-
moderna não podem responder às perguntas surgidas a partir de do: absortos em perseguir e capturar as ofertas do tipo "entre agora"
nossa difícil situação presente é que, se cem ou mais anos atrás o que piscam nas telas de computador, estamos perdendo a capacida-
7
"problema da identidade" foi moldado pela vigência de um princí- de de estabelecer interações espontâneas com pessoas reais. Ç.b<!rles
pio de cuius regio, eius na tio, os atuais "problemas de identidade" se Han4y, teórico da administração, concorda: "engraçadas podem s~r,
originam, pelo contrário, do abandono daquele princípio ou do essas comunidades virtuais, mas elas criam apenas uma ilusão de in-
pouco empenho na sua aplicação e da ineficácia de seu fomento Y_IE_idade e um simulacro de comunid~<!_(."_ N~_?_E_odem. se~ ~m
onde isso é tentado. Quando a identidade perde as âncgr~s sociais subsritt!f~ yá!i4o de :\e!ltar-se a uma mesa, olhar o rosto dasp~.s~~~s
que a faziam parecer "natural", predeterminada e inegociável, a e ter _uma conver~;:t real". Tampouco podem essas "comun~dades vir-
"identificação" se torna cada vez mais importante_para os indiví- tu<!J_~~-Aa! ~ubstância à identidade pessoal - a razão básica para
duos que buscam desesperadamente um "nós" a que possam pe- procurá-las. Pelo contrário, elas tornam mais difícil para a pessoa
dir acesso. Como afirma Lars Dencik, a partir da experiência chegar a um acordo com o próprio eu.
escandinava: Nas palavras de Andy Hargreaves, professor de educação e ob-
servador singularmente perspicaz da cena cultural contemporânea:
As afiliações sociais- mais ou menos herdadas- que são tradicionalmen-
te atribuídas aos indivíduos como definição de identidade: raça ... gênero, Em aeroportos e outros espaços públicos, pessoas com telefones celulares
país ou local de nascimento, família e classe social agora estão... se tor- equipados com fones de ouvido ficam andando para lá e para cá, falando
nando menos importantes, diluídas e alteradas nos países mais avança- sozinhas e em voz alta, como esquizofrênicos paranóicos, cegas ao am-
dos do ponto de vista tecnológico e econômico. Ao mesmo tempo, há a biente ao seu redor. A introspecção é uma atitude em extinção. Defronta-
das com momentos de solidão em seus carros, na rua ou nos caixas de
ânsia e as tentativas de encontrar ou criar novos grupos com os quais se
32 Identidade Bau man 33

supermercados, mais e mais pessoas deixam de se entregar a seus pensa- o código de Goffman. Os celulares são suficientes. Podemos com-
mentos para, em vez disso, verificarem as mensagens deixadas no celular prá-los, junto com todas as habilidades de que possamos precisar
em busca de algum fiapo de evidência de que alguém, em algum luga r, para esse fim, numa loja da principal rua do centro da cidade. Com
possa desejá-las ou precisar delas." os fones ~~ _<)l!~l~_<?__<:!_e~!9._a_~ent~~l_!s_ta<!~~-'- t:~i~_i_~9~ __no_~~-~_Í!l­
diferença em relação_~ _r:~~-ef!l__9u c:_ca~in~-~~-s, não m ais pre-
Os vagabundos de Georg Simmel, perambulando pelas ruas d as ci- cisando de uma etiqueta rebuscada. Liga~-~ no celular,
dades, eram conhecidos por sua atitude blasé. Mas não portavam desligamo-nos d a :Y._ida. _A proxim!Q-ªde físic_;1 não se choca mais
telefones celula res com fones de ouvido. Tal como nós, podiam ser com a distâl)cia espir_itual.
ávidos espectadores dos dramas urbanos que ocorrem nas ruas, Com o mundo se move ndo em alta velocidade e em constante
m as entravam nesse teatro sem se juntarem à companhia. Distan- aceleração, você não pode mais confiar na pretensa utilidade des-
ciavam-se daquilo que viam e observavam. Mas não era fácil para sas estruturas de referência com base na sua suposta durabilidade
eles distanciar-se do palco em que o drama se desenrolava: a proxi- (para não dizer atemporalidade!). Na verdade, você não confia ne-
I_!IÍqaQ_~ física po4_ia_se~ f~cilmente confundida com a _
_pro!i!l!Lc!.~de las nem precisa delas. Essas estruturas não incluem facilmente
,eSpiritual. Erving Goffman tentou reunir um inventário dos estra- novos conteúdos. Logo se mostrariam muito desconfortáveis e in-
tagemas daquilo que chamou de "desatenção civil" - a grande controláveis para acomodar todas as identidades novas, inexplora-
quantidade de pequenos, mas intrincados, gestos e movimentos das e não-experimentadas que se encontram tentadoramente ao
invisíveis aos quais todos nós trivialmente recorremos quando, de nosso alcance, cada qual oferecendo benefícios emocionantes, pois
à lguma forma, nos vemos entre desconhecidos, e que sinalizam desconhecidos e promissores, pois até agora não-depreciados. Rí-
nossa intenção de permanecermos isolados, não-envolvidos, na gidas e pegajosas, também é difícil livrar essas estruturas dos ve-
companhia de nós mesmos. Os vagabundos urbanos de Sim_~el, lhos conteúdos quando chega a sua "data de validade". -~
ÇQ~~...E2~~~r~on:n.e nte -~_ft.l!e.~rs_9.<:. .~_'!~~~~~-ir~/Fou~_al1It e g~_pra­ ad~~~~y-~1 !ll.~f1dO novo das op()rtunidad~s fl_l_g'!_Z~S ~da~- ~e_gl_l_~~-11 -
~fr_ágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegoci~.Y~is,
!~Ç~-~..!~S. . da .arte da qes(lte~çã_() çiy_\!_~~_ÇiQff.!!la~ ~~~-.Ee!'_!l_Il1bula-
y~_'!!_.E~_l(ls___r~~_:; _ da .~~~~~~ em ~usc~Ae ur~a com~nidade com a simQ!_~~IT!~_n.t~ ~~~J~!:!.02.~~-
q~al_p_~-~-e.~~<:.l!l_s_~ id~_!!~~~~- A corpo rificação comuna! da identi- A sabedoria popular foi rápida em perceber os novos requisi-
dade, contudo, os "alguéns" que "os desejavam e precisavam deles", tos, e prontamente ridicularizou a sabedoria aceita, obviamente
e aos quais retribuíam esses sentimentos, estavam esperando por incapaz d e atendê-los,_Em ]J_94, u_!TI_ çar_t~~ ~§p.allié!.Q_o__pelas ruas (;i~
eles, sedentários e de certa forma prontos para servirem e serem Bedjm rl<Hcularizava a lealdade a estruturas que não eram mai~
usados, no abrigo seguro de seus lares ou locais de trabalho. cap(!zes de conter as realidades do mundo: "Seu Cristo é judeu. Seu
É nisso que nós, habitantes do líquido m_undo moderno, so_: Qrro é j4p.Mês. Sua piz~~ é italian~. Sua democraçLaLg_!:~~: _Seu ,
mo~ diferentes. Buscamos, construímos e mantemo~ ~s referências fÊ-fél brasil~ixo,_Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas 1
10
comunais de nOSS?S identidages em_movimento -lutando para nos letra_s,_latinas. Só o seu vizin ho é estrangeirq.'' Na Polônia da era da ··
juntarmos aos grupos igualmente móveis e velozes que procura- construção nacional, as crianças costumavam ser treinadas a da r as
mos, construímos e tentamos manter vivos por um mo mento, mas seguintes respostas a pergu n tas sobre identidade: Quem ~ você?
não por muito tempo. Para isso, não precisamos estudar e dominar UIE:peqwenopolonês. Qual é o seu signo? A Águia Branca. As re~:V
34 Identidade Bauman 35

postas de hoje, sugere Monika Kostera, ilustre socióloga da cultura ~o livre mercado neoliberal plenamente desregulado, enquanto os
contemporànea, seriam diferentes: Quem__ ~ "_<]_c:_~?_ l:'m h9_mem dir~itos sociais são substituídos um a um pelo dever individual do
sitnpático na casa dos 40 com senso de humor. Qual é o seu signo? ç!-!!dado consigo mesmo e de garantir a si mesmo vantagem sob~e
Gêmeos.'' os_sl.emais.
.9 cartª?- de Berlim traz implícita a globalizaç.ão, aQ_p_aSSQ_~ E assim ambos os parceiros no casamento do Estado-nação se
_a mudança na provável resposta à pergunta "quem é você?" sinali- most_I_a~~m _cada vez mais indiferentes com relação ~ união e dei-
za o colapso da hierarquia (genuína ou postulada) das identidades. xam-se levar, de modo lento mas constante, na direção do novo
Os dois fenômenos são estreitamente corr_da_c_io_n~çlos. padrão político dos css ("casais semi-separados"), que agora está
na moda.
Globalização sigp~t}ç_a _que o Est_~Q9 _r1_ã_2. t~.rn m~j~Q poqer ou
o _desej9 de manter uma união sólida e inabalável çom a nação. Não mais monitorados e protegidos, cobertos e r~vig<?ra~Q~
Flertes extraconjugais e até casos de adultério são ao mesmo tem- por instituições em busca de monopólio- expostas, em vez di~so_,
ao li~r.~ j()go de forças concorrentes -, quaisquer hierarquias ou
po inevitáveis e toleráveis, muitas vezes ávida e entusiasticamente
grau~ _9e identidades, e particularmente os sólidos e duráveis, não
obtidos (seguindo as condições preliminares estabelecidas para a
são n~!!? pr()curad()S n~!Il fáceis de construir. As principais razões
sua admissão no "mundo livre" - primeiramente a Organização
de as identidades serem estritamente definidas e desprovidas de
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCOE), de-
ambigüidade (tão bem definidas e inequívocas quanto a soberania
pois a União Européia-, os países da Europa Centro-Oriental têm
territorial do Estado), e de manterem o mesmo formato reconhe-
aberto os ativos nacionais ao capital global e derrubado todas as
cível ao longo do tempo, desapareceram ou perderam muito do
barreiras ao livre fluxo das finanças internacionais). Ten<;io transfe-
poder constrangedor que um dia tiveram. As iden_ti~ades _g(lnha-
_r~(io .a. maior parte de suas tarefas intensivas em mão-d~~obra e
.L~m livre curso, e agora cabe a cada indivíduo, homem ou mu-
cªpjtal aos mercados_globais, os Estados têm m~ito menos_ r:te~_~ssj­ lh~!! capturá-las em pleno vôo, usando os seus próprios recursos
.dade_4~~upr!!ll~l_l-~<?S..d.e.fe~~2~_E(i_triótico. Até mesmo o patriotis- e ferramentas.
mo, o ativo mais zelosamente preservado pelos Estados-nações _Q_~p~~-i.o por identidade vem do desejo de seg_u~ança, t:l~ prÓ-
modernos, foi transferido às forças do mercado e por elas remode- .Q!io. um sentimento ambíguo. Embora possa parecer estimulante
lado para aumentar os lucros dos promotores do esporte, do show no curto prazo, cheio de promessas e premonições vagas de uma
business, de festividades comemorativas e da indústria da memora- experiência ainda não vivenciada, flutuar sem apoio num espaço
bilia. No outro extremo, as pessoas em busca de identidade en- pouco definido, num lugar teimosamente, perturbadoramente,
contram pouca segurança, para não falar em plenas garantias, dos "nem-um-nem-outro': torna-se a longo prazo uma condição ener-
poderes do Estado, o qual reteve apenas minguados remanescentes vante e produtora de ansiedade. Por outro lado, uma posição fixa '
de uma soberania territorial que um dia já foi indomável e indivi- dentro de uma infinidade de possibilidades também não é uma ·
sível. Recordando a famosa tríade de direitos de Thomas Marshall: perspectiva atraente. Em nossa época líquido-mo.derna,_~.f!l_que o
os direitos econômicos agora estão fora das mãos do Estado! os di- ind~íduo livremente fl_utuante, desimpedid(),é o herói_popular,
reitos políticos que ele pode oferecer são estritamente limitados e "e~_t(lr fixo"- ser "identificado" de modo inflexível e sem alternati-
.cjrç_l!_n~critos àquilo que Pierre Bourdieu batizou de pensée unique y~ .--:- é algo cada vez mais mal visto.
36 Identidade Bauman 37

Na coluna "Viver" de um dos mais prestigiados jornais ingle- forma como Richard Baxter, pregador puritano citado por Max
ses, podiam-se ler poucos meses atrás as palavras de um respeita- Weber, propôs que fossem usadas as riquezas mundanas: <:_O!!!~
do "especialtsta em relacionamentos" informando que "ao se com- um manto leve pronto a ser despido a qualqu~r_ ~~omt:~~o. Lugares
prometerem, ainda que sem entusiasmo, lembrem -se de que ;;;;q~~- o s~~timento de. p~;te~ci~ento era tradicionalmente in-
possivelmente estarão fechando a porta a outras possibilidades vestido (trabalho, família, vizinhança) são indisponíveis ou indig-
românticas talvez mais satisfatórias e completas': Outro especialis- nos de confiança, de modo que é improvável que façam calar a
ta mostrou-se ainda mais insensível: "A longo prazo, as promessas sede por convívio ou aplaquem o medo da solidão e do abandono.
de compromisso são irrelevantes... Como outros investimentos, Daí a crescente demanda pelo que poderíamos chamar de
elas alternam períodos de alta e baixa." E assim, se você deseja "re- "comunidades guarda-roupa" - invocadas a existirem, ainda que
lacionar-se" ou "pertencer" por motivo de segurança, mantenha apenas na aparência, por pendurarem os problemas individuais,
distância. Se espera e deseja realizar-se com o convívio, não assuma como fazem os freqüentadores de teatros, numa sala. Qualquer
nem exija compromissos. Deixe todas as portas sempre abertas. evento espetacular ou escandaloso pode se tornar um pretexto pa-
A abundância dos compromissos oferecidos, mas principal- ra fazê-lo: um novo inimigo público elevado à posição de número
mente a fragilidade de cada um deles, não inspira confiança em 1; uma empolgante partida de futebol; um crime particularmente
investimentos de longo prazo no nível das relações pessoais ou ín- "fotogênico", inteligente ou cruel; a primeira sessão de um filme
timas. Tampouco inspira confiança no local de trabalho, onde o altamente badalado; ou o casamento, divórcio ou infortúnio de
status social costumava ser definido, onde a vida continua a ser ga- uma celebridade atualmente em evidência. _As comunidades guar-
nha e os direitos de dignidade e respeito social continuam a ser ob- da-rol!_p_~ sã() reunidas_enquanto dura o e~petác_ul_o ~ pro~ta~~!!~~
tidos o u perdidos. Num artigo recente, Richard Sennett assinala deg~itas quando os esp~~t~~~-~es -~E_af!h_al!_l _~-~--~~~~ -~-~~aco_~- -~_os
que "um local de trabalho flexível provavelmente não seria o lugar cabides . .~l:las _van!a&e.11.~- ~!E._!:}_aç_~() --~---~~~~~~~nuín~:' são pre-
onde alguém desejaria construir um ninho".': Ao mesmo tempo, cisa~~!lte. a ~!:-lrta duração de seu ciclo de vida e a precariedad~ <:.!.<?
com a duração média do contrato de trabalho ("projeto") nas mais compro_~~~~.'? _!]._eces~áriC? para ingressar~e~as e (emborapor !>I~'!_e
avançadas empresas de alta tecnologia em lugares como o admira- tempo )__~!:_qyeitá-!'!.~· Mas elas diferem da sonhada comunidade
do Vale do Silício girando em torno de oito meses, a solidariedade calorosa e solidária da mesma forma que as cópias em massa ven-
de grupo que costumava fornecer o campo para o desenvolvimen- didas nas lojas de departamentos diferem dos originais produzidos
to da democracia não tem tempo para fincar raízes e amadurecer. pela alta-costura ...
Há poucos motivos para se esperar que a lealdade de uma pessoa Quando a qualidade o deixa na mão ou não está disponível,
ao grupo ou organização seja retribuída. É insensato ("irracional") você tende a procurar a redenção na quantidade. Se os compro-
oferecer tal lealdade a crédito quando é improvável que ela seja re- missos, incluindo aqueles em relação a uma identidade particular,
compensada. são "insignificantes" (como o especialista anteriormente citado
Resumindo: "identifis~r..:~~-C:.21!!···" sign_illca dar abrigo a_).!_!!! proclamou com autoridade), você tende a trocar uma identidade, es-
d_e~ti.~.<?. _9.~§Conhecido _gue
não ~e pode jnflu~nciar, muito men_()_2 colhida de uma vez para sempre, por uma "rede de conexões': Ten-
C()_~trola~. Assim, talvez seja mais prudente portar identidade~ na do feito isso, contudo, assumir um compromisso e torná-lo seguro
38 Identidade Bauma'l 39

parece muito mais difícil (e assim m ais desconcertante, até mesmo que, na esquerda marxista, a identidade se apresenta como pro-
assustado r) í)o que antes. Agora lhe faltam as habilidades que o fa- blema pela primeira vez. O que você pensa disso?
riam, ou pelo menos poderiam fazê-lo, funcionar. Estar em m ovi-
mento, antes um privilégio e uma conquista, não é mais, portanto,
A forma assumida pelo "marxismo intelectual" que arrebatou os
uma questão de escolha: agora se to rnou um "must". Manter-se
centros acadêmicos da Europa e dos EUA no final da década de
em alta velocidade, antes uma divertida aventura, transforma-se
1960 era profundamente "economicista" e, em m uitos casos, gra-
em uma tarefa exaustiva. O que é mais importante, aquela incerte-
vemente reducionista. Na década de 1970, que, como Peter Bei-
za desagradável e aquela confusão aflitiva, das quais você pensava Iharz ressaltou corretamente, foi "provavelmente o apogeu do
ter se livrado graças à velocidade, se recusam a abandoná-lo. A fa- marxismo intelectual no Ocidente", "a política, a ideologia e a cida-
cilidade do desengajamento e do rompimento não reduz os riscos, dania foram deslocadas o u vistas como efeitos do motor básico do
apenas os distribui, junto com as ansiedades que exalam, de modo desenvolvimento e colapso do capitalismo"." Não precisava ser as-
diferente. sim. Marx (mais uma vez citando Beilharz) foi, afinal de contas,
Em nosso mundo de "individualização" em excesso, as identi- "em primeiro lugar um liberal que só com o tempo acabou mu-
dades são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e dando o seu foco da pobreza e da imagem resultante do cidadão
não há como dizer quando um se transforma no outro. Na maior para o conceito mais consistente de exploração, em que a silhueta
parte do tempo, essas duas modalidades líquido-m odernas de implicitamwle masculina do proletário substitui a do cidadão".
identidade coabitam, mesmo que localizadas em diferentes níveis Assim, a redução da teoria marxista predominante à figura princi-
de consciência. Num ambiente de vida líquido-moderno, as iden- pal do determinismo econômico poderia não ter sido inevitável,
tidades talvez sejam as encarnações mais comuns, mais aguçadas, mas na sua época era, poder-se-ia dizer, "sobredeterminada". Uma
mais profundamente sentidas e perturbadoras da ambivalência. É imagem mais sutil, repleta de nuances e "m ultifato rial" da socieda-
por isso, diria eu, que estão firmemente assentadas no pró prio cer- de não estava de acordo com a perspectiva da época. Foi justamen-
ne da atenção dos indivíduos líquido-modernos e colocadas no te a abrangência de uma explicação totalizante, baseada num
topo de seus debates existenciais. único fator, para um sofrimento, uma inquietude e uma ansiedade
tão desconcertantemente diversos- que só uma ve rsão truncada,
Durante os primeiros 20 anos do século XX, a análise marxista reducio nista e unidimensional do legado de Marx poderia dar -
l'âas e/asses sociais floresceu. De Gyorgy Lukács a Walter Benja- que atraiu uma geração perplexa e confundida por ondas de des-
min, muitos intelectuais marxistas se colocam questões sobre a contentamento que não poderiam ser previstas o u explicadas pelas
relação entre congregação social e consciência social. Nesse teorias-padrão de desenvolvimento, progresso e desenvolvim ento
'CSJSO, também se pode dizer que a identidade é uma categoria progressivo. Havia um irresistível sentido de urgência, uma impa-
1
que certamente não tem o direito à cidadania no pensamento. ciência que só uma teoria capaz de ser engolida de uma só vez e
l~lvez haja uma exceção: Lukács. Em História e consciência de imediatamente digerida poderia, ao menos por algum tempo, sa-
-aasse, ele freqüentemente se refere à proliferação das formas tisfazer. Essa provavelmente não foi a única causa (e com certeza
, de vida, das maneiras de ser, como conseqüências da sociedade não seria suficiente) do grande entusiasmo por uma versão seria-
de massa.
, :. Mas é justamente por expressar uma falsa consciência mente empobrecida e simplificada (ou melhor, vulgarizada) da vi-
40 Identidade Bauman 41

são de Marx, mas podia ser vista como uma espécie de leito amplo por excesso de pessoal). Estudos reveladores de Fitoussi e Rosan-
de um rio ao qual muitas outras tendências conscientes e subcons- vallon, Boltanski e Chiapello confirmaram essa conclusão de ma-
cientes podiam convergir, tornando-se afluentes. neira ampla e vigorosa.
É improvável que qualquer modelo com base num único fator Pierre Bourdieu e Richard Sennett explicaram por que o esface-
seja capaz de dar conta da complexidade do "mundo em que se lamento de cenários e rotinas anteriormente estáveis e a fragilidade
vive" e abranger a totalidade da experiência humana. Essa regra ge- recém-revelada até mesmo por empresas grandes e aparentemente
ral também se aplica à versão truncada, reduzida e retalhada do sólidas não favorecem uma postura de união e solidariedade, além
marxismo. Não foi essa, porém, a única razão pela qual a ascen- de evitar que problemas e ansiedades individuais se intensifiquem
dência dessa versão acabou se revelando um episódio de curta du- no conflito de classes. Como nos mostram Boltanski e Chiapello,
ração que chegou a um fim abrupto ainda na década de 1980. os empregados se viram numa cité par projets, onde as perspectivas
Ainda mais importante foi a crescente brecha entre essa visão e as de emprego são confinadas a um único projeto atualmente em an-
realidades em rápida mudança da era Reagan/Thatcher. damento. E entre as pessoas que vivem de um projeto para outro,
A "silhueta masculina do proletário", que supostamente ga- pessoas cujos processos de vida são desmembrados numa sucessão
rantiria a "inevitabilidade histórica" "economicamente determi- de projetos de curta duração, não há tempo para que descontenta-
nada", procurou em vão por um original ao qual pudesse se mentos difusos se reduzam à busca por um mundo melhor... Tais
adequar. Em tempos de dcsrcgulamentação, terceirização interna- pessoas prefeririam um hoje diferente para cada um a pensarem se-
cionalizada, "subsidiariedade", desengajamento administrativo, riamente num futuro melhor para todos. Em meio ao esforço diário
defasagem das "fábricas fordistas", de uma nova "flexibilidade" dos apenas para se manter à tona, não há espaço nem tempo para uma
padrões de emprego e rotinas de trabalho, e de um desmantela- visão da "boa sociedade".
mento gradual mas implacável dos instrumentos de proteção e
Levando-se tudo em consideração, as paredes e os pátios das
autodefesa dos trabalhadores, ter a expectativa de um recondicio-
fábricas não parecem mais suficientemente seguros como ações
namento da ordem social conduzido pelo proletariado e de um
nas quais se possam investir as esperanças de uma mudança social
expurgo dos males sociais por este inspirado significa forçar a
radical. _As ~st_ru.turas das empresas capitalistas e as roti~asd~ mã<_?-
imaginação de maneira insustentável. Muitos pisos de fábricas e
corredores de escritórios se tornaram palco de uma competição ~~=obra empregada,. cada vez mais frag!lle~~éld_as -~ \'2l~_!~j~11ão

acirrada entre indivíduos lutando para que os chefes os percebam p~~~-~~-1!1 mais ofer.~c~r uma estrutura comum dentro da qu!'ll_~~a
e os contemplem com um aceno de aprovação - em vez de serem, ~~iedade de priva.ções e injustiças sociais possa (muito menos
como no passado, estufas da solidariedade proletária na luta por tenda a) f~ndi~~~~~~~~()lidar-~~--e~lidificar-se. ~um pr~~t~__c!t:
uma sociedade melhor. Como descobriu Daniel Cohen, economis- ~udança. Também não servem C()mO campos de treinam~nto em

ta da Sorbonne, agora é a vez de cada empregado mostrar, por ini- ~~ ~ej_a _p_os~Í":el formar,_ e treinar colunas de combatentes para
ciativa própria, que é melhor do que a pessoa mais próxima, que ~~~-~~t~lha iminente. Não existe um lar óbvio a ser compartilha-
está trazendo mais lucro para os acionistas da companhia, de do~!9~~~~~!~~tes sociais. Com o espectro de uma revolução
modo que valeria a pena mantê-lo quando viesse, como deveria rroletária capitulando e dissipando-se, ~s ressentimentos sociais
vir, uma nova rodada de "racionalização" (leia-se: mais demissões ~stão órfãQS. Perderam a base comum sobre a _ qu.al e~apossível ne-
42 Identidade Bauman 43

gociar e desenvolver objetivos e estrat~g_iéis comuns. Cada catego- permaneceu indiferente a outras privações e desvantagens e ficou
r_ia em desvantagem está agora por sua própria conta, abandonada muito longe de oferecer uma solução universal e abrangente para
.aos próprios recursos e à própria engenhosidade. os problemas humanos .
Muité!_~ ~e~~as -~te_g()rias
em desvantagem responderam ao Os mensageiros das novas visões pareciam, contudo, reagir
R
desafio. Os anos 1980 foram uma d écada d e inventividade frenéti-
••. <• • •
com exagero à depreciação da preocupação com a injustiça econô-
~a_. Novas bandeiras foram costuradas e erguidas, novos manifes- mica característica das visões relacionadas à classe. Sobre as raízes
tos elaborados, novos cartazes concebidos e impressos. Çg_ll}Q ~ e os aspectos econômicos da miséria humana- o crescimento gri-
~lass~ não mais oferecia um seguro para reivindicações _disc_~~pan­ tante e acelerado das desigualdades em termos de condições, opor-
tes e difusas,
. o descontentamento social dissolveu-se num número.
tunidades e perspectivas de vida, a pobreza crescente, o declínio da
_}n.~e_fini_do de ressentimentos de grupos ou categorias, cada qual proteção aos meios de subsistência humanos, as discrepâncias na~
p~ocurando a sua própria âncora social. Gênero, raça e heranças distribuição de riqueza e renda -, a maioria das novas visões se ,
_c oloniais comuns pareceram ser os mais seguros e promissores. manteve num silêncio impertinente. A_~rí~ica de Richard Rorty aos ·
Çad_a u_J'!l~eles, porém, tinha l!~~':l.!_a para rivalizar com os pode- militantes das novas "causas sociais" é tão pungente quanto preci-
res integradores da classe que um dia aspirou ao status de uma ~;; ~ie~-p~~f~rem, afir~a Ro~t};~~~to e grosso, "não falar sobre di-
"metaidentidade" em paridade com aquela proclamada pela na- nh~iro·: 14 ?~~"p~i~~Jpal ini~-ig~-Í s~p~~t~)é~~ e-s~~~-'!~en~~~ e.·
cionalidade na era do Estado-nação: o status d~ ~'!!~ ~~p~a.:_iden- não um esquema de ajuste econômico': Conseqüentemente, a "es-
. ~idade, a mais geral, volumos~ e on í':o_r~_de:_~odas, a id~nti~~~~que qu~~da cultural"·~ que todos pertencem "é incapaz de se engajar na
~,mprestaria significado a todas as outras e as reduziria ao papel se- política nacional': Para reingressar na arena política, ela "teria de
"cund.ário e dependente de "exemplos" ou "casos especiais': Todas falar mais sobre dinheiro, ainda que à custa de falar menos sobre es-
elas comportavam-se como se estivessem sozinhas em campanha, tigma".
,.tratando as concorrentes como falsas aspirantes. Todas eram cegas, Suspeito de que por trás dessa grotesca cegueira à economia
ou pelo menos desconfiadas ou francamente hostis, a reivindicações jaz a tendência descrita por Robert Reich como "a secessão do
semelhantes de exclusividade declaradas e ouvidas por outros. bem-sucedido": ~ _E~I_!.~nci~ à tarefa que_os intelectuais que eram
O "efeito iTI'!previsto'~ disso foi uma fragmentação acelerada críticos sociais consideravam ser um dever seu em relação ao res-
~a dissensão social, uma progressiva desint~gração do conflito so-\ tante de seus contemporâneos, sobretudo os que eram menos
cial numa multiplicidade de confrontos intergrupais e numa proli- privilegiados e felizes do que eles próprios. Não reconhecendo
feração de ca!T!po~ cf(: batalha. Uma casualidade colateral das novas D)ais esse dever, os seus descendentes podem agora concentrar-sE
guerras por reconhecimento foi a idéia da "boa sociedade"- uma ~a sua própria situação, frágeis, sen síveis e irritados, lutando para
idéia que só podia despertar e captar a imaginação com a credibili- .~levar o respeito e a adulação de que gozam ao nível dos elevados
dade trazida pela presença de um suposto m ensageiro, considera- g,a_]Jhos econômicos que já obtiveram. São, obstinadamente, ego-
do poderoso e determinado o bastante para incitar por meio da cêntricos e auto-referentes.
palavra. Mas naquele momento esse mensageiro não estava à vista. A guerra por justiça social f()i portanto reduzida a um excesso
A idéia de um "mundo melhor", se é que surgiu, se encolheu diante de b~!§ll~~~-por reconhecimento. " Reconhecimento" pode ser aquilo
da defesa de causas atuais relacionadas a grupos ou categorias. Ela que mais faça falta a um ou outro grupo dos bem-sucedidos - a
44 Identidade Baum an 45

única coisa que parece estar faltando no inventário rapidamente maior parte do tempo, o prazer de selecionar uma identidade
preenchido dos fatores da felicidade. Mas, para uma parcela ampla estimulante é corrompido pelo medo. Afinal, sabemos que, se os
e em rápido crescimento da humanidade, trata-se de uma idéia nossos esfo rços fracassarem por escassez de recursos ou falta de
obscura que assim continuará sendo enquanto o dinheiro for evi- determinação, uma o utra identidade, intrusa e indesejada, pode
tado como tema de conversa ... ser cravada sobre aquela que nós mesmos escolhemos e construí-
Ponderando as profecias não-cumpridas do passado e as glo- mos. Max Frisch, escrevendo na Suíça - país onde as escolhas in di-
riosas, embora mal-orientadas, esperanças do presente,_~<?rty con- vi duais (flexíveis) são costumeiramente consideradas (e tratadas)
~!_a_~_a as pessoas a rec~perare_m a ~e~sate~ e despe~~a_r~_Il!.__para as como inválidas, a menos que tenham o carimbo da aprovação po-
~~_usa~--E~~I!-~as_~~ --~i~~~!_a_ ~umana_.__ ~' Q~y~ría_~-~~ i~r~~tir':__es- pular (inflexível) -, definiu a identidade como a rejeição daquilo
_cF._e':_~-~_1~~ que nossos filhos "se preocupem com o fato de os países que os out~9s desejam que você~~..:
9~~~~!.~~ _!!_a ~~n!e em termos de industrialização p_o~~uirem um~ As guerras pelo reconhecimento, quer travadas individual ou
rj_guez~ _ce_rn vezes maior que a dos ainda não-industrializados. coletivamente, em geral se desenrolam em duas frentes, embora
~~~s.9~ ftJh_o,_s precisalll: aprender, desde cedo, a ver as desigual~a_­ tropas e armas se desloquem entre as linhas de fronteira, depen-
A~_s-~-f11!~ ~eus própr~o_s d~stin_os e o~ ~e ~~t_r~s crianças, não como dendo da posição conquistada ou atribuída segundo a hierarquia
a Vontade_~e. Deus nem como, o preço necessário pela eficácia eco- de poder. Numa das frentes, a identidade escolhida e preferida é
_n{>mica? mas como ~m~ tragédia evitável."" contraposta, principalmente, às obstinadas sobras das identidades
" Permita-me comentar que a identificação é também um fator antigas, abandonadas e abominadas, escolhidas o u impostas no .·
'poderoso na estratificação, uma de suas dimensões mais divisivas e passado. Na outra frente, as pressões de outras identidades, maqui-
fortemente diferenciadoras. Num dos pólos da hierarquia global nadas e impostas (estereótipos, estigmas, rótulos), promovidas
emergente estão aqueles que constituem e desarticulam as suas por "forças inimigas': são enfrentadas e- caso se vença a batalha -
~dentidades mais ou m enos à própria vontade, escolhendo-as no repelidas.
:.kque de ofertas extraordinariamente amplo, de abrangência pla- Mas mesmo as pessoas a quem se negou o direito de adotar a
netária. No outro pólo se abarrotam aqueles que tiveram negado o identidade de sua escolha (situação universalmente abominada e
acesso à escolha da identidade, que não têm direito de manifestar temida) ainda não pousaram nas regiões inferiores da hierarquia
as suas preferências e que no final se vêem oprimidos por identida- de poder. Há um espaço ainda mais abjeto - um espaço abaixo do
des aplicadas e impostas por outros- identidades de que eles pró- fundo. Nele caem (ou melhor, são empurradas) as pessoas que têm
prios se ressentem, mas não têm permissão de abandonar nem das negado o direito de reivindicar uma identidade distinta da classifi-
quais conseguem se livrar. Identidades que estereotipam, humi- cação atribuída e imposta. Pessoas cuja súplica não será aceita e
lham, desumanizam, estigmatizam ... cujos protestos não serão o uvidos, ainda que pleiteiem a anulação
A maioria de nós paira desconfortavelmente entre esses dois do veredicto. São as pessoas recentemente denominadas de "sub-
pólos, sem jamais ter certeza do tempo de duração de nossa liber- classe": exiladas nas profundezas além dos limites da sociedade -
dade de escolher o que desejamos e rejeitar o que nos desagrada, fora daquele conjunto no interior do qual as identidades (e assim
ou se seremos capazes de manter a posição de que atualmente também o direito a um lugar legítimo na totalidade) podem ser
desfrutamos pelo tempo que julgarmos satisfatório e desejável. Na reivindicadas e, uma vez reivindicadas, supostamente respeitadas.
46 Identidade Bauman 47

Se você foi destinado à subclasse (porque abandonou a escola, é países capitalistas do Ocidente. E corroborava e reafirmava de for-
mãe solteira vivendo da previdência social, viciado ou ex-viciado ma retumbante a escolha, feita por Marx, da classe como o prin-
em drogas, sem-teto, mendigo ou membro de outras categorias cipal fator determinante da identidade social. A longo prazo,
arbitrariamente excluídas da lista oficial dos que são considerados contudo, tornou-se evidente que uma di01ensão mais espetacular,
adequados e admissíveis), qualquer outra identidade que você :_t~lvez ainda mais influente, da expansão do Ocidente em escala

possa ambicionar ou lutar para obter lhe é negada a priori. O signi- ~undial foi a lenta mas implacável globalizaçã() d(l_P!.<?.d~_Eo_Q_e

ficado da "identidade da subclasse" é a ausência de identidade, a lixo_?_umano, ou, para ser mais preciso, "pessoas rejeitadas"- pes-
abolição ou negação da individualidade, do "rosto" - esse objeto soas não mais necessárias ao perfeito funcionamento do ciclo eco-
do dever ético e da preocupação moral. Você é excluído do espaço nô~ico e portanto de acomodação impossível numa estrutura
social em que as identidades são buscadas, escolhidas, construídas, ~~~c?mpatível com a economia capitalista.
O "lixo humano" tem sido despejado desde o início em todos
tavaliadas, confirmadas ou refutadas.
os lugares nos quais essa economia foi praticada. Enquanto essas
A "subclasse" é um grupo heterogêneo de pessoas que- como
terras estavam confinadas a uma parte do globo, entretanto, uma
diria Giorgio Agamben- tiveram o seu "bios" (ou seja, a vida de
"indústria de remoção do lixo" efetivamente global, na forma do
um sujeito socialmente reconhecido) reduzido a "zoe" (a vida pu-
imperialismo político e militar, conseguia neutralizar o potencial
ramente animal, com todas as ramificações reconhecidamente
mais explosivo da acumulação de lixo humano. Problemas local-
humanas podadas ou anuladas). Outra categoria que está encon-
mente produzidos exigiam, e encontravam, uma solução global.
trando o mesmo destino são os refu_gi_ados - os sem_:Estado, O§ Tais soluções não estão mais disponíveis: a expansão da economia
sans-papiers -, os dest~r!itorializado~ _n~~--~~ndo .cl~_soberanja capitalista finalmente se emparelhou com a amplitude global da
territorialmente assentada. Ao mesmo tempo que compartilham dominação política e militar do Ocidente, e assim a produção de
a situação da subclasse, eles, acima de todas as privações, têm "pessoas rejeitadas" se tornou um fenômeno mundial. No presente
negado o direito à presença física dentro de um território sob lei estágio planetário, o "problema do capitalismo': a disfunção mais
soberana, exceto em "não-lugares" especialmente planejados, de- gritante e potencialmente explosiva da economia capitalista, está
nominados campos para refugiados ou pessoas em busca de asilo a mudando da exploração para a exclusão. É essa exclusão, mais do
fim de distingui-los do espaço em que os outros, as pessoas "nor- que a exploração apontada por Marx um século e meio atrás, que
mais", "perfeitas", vivem e se movimentam. hoje ~tá _n_a~base dos casos mais evidentes de polarização social, de
Os alicerces do imperialismo da sólida era moderna eram a ~rofu~damento d(l desig_ual~ad~_e 4e aumento do volume-d~--p~-
conquista do território com o propósito de ampliar o volume da breza, miséria e humilhação. . --
mão-de-obra sujeita à exploração capitalista. As terras conquista-
das eram submetidas à administração dos conquistadores, de mo- Devemos a Thomas Marsha/1 o primeiro discurso em que os di-
do que os nativos pudessem ser transformados numa força de reitos sociais da cidadania foram vistos como um arcabouço, e
trabalho vendável. Era (poderíamos parafrasear o famoso adágio dentro desse arcabouço as vestes das identidades coletivas
de Clausewitz) uma continuação, uma nova montagem sobre o eram desprezadas em favor das v~stes d-;;·-;;idadã~.--[5;;~·;;;;-~n­
palco global, de processos praticados internamente por todos os tàp>--as identkl-:;d~s -têm saído da obscuridade da grande trans-
48 Identidade Bauman 49

formação para habitar os tempos modernos. Na sua opinião, tinha de garantir a satisfação de suas necessidades básica~ de modo
como se dá essa transformação? que pudessem ser integrados ao conjunto dos cidadãos.
Em outras palavras: esperava-se - acreditava-se - que, uma
Essa história já foi contada muitas vezes, e muitas vezes o sonho de vez alcançada a segurança pessoal quanto à opressão, as pessoas se
uma república que reconhece a humanidade em todos os seus reuniriam para resolver seus interesses em comum por meio da
membros e lhes oferece todos os direitos devidos aos seres huma- ação política, e o resultado da participação sempre crescente, e por
nos apenas porque são seres humanos - uma república que, ao fim universal, seria a sobrevivência coletivamente garantida - em
mesmo tempo que aceita os seus membros apenas com o pre texto relação à pobreza, à ameaça do desemprego, à incapacidade de ga-
de sua humanidade, é também plenamente tolerante, talvez até rantir diariamente a existência dia após dia. Para resumir uma lon-
cega e desatenta, a suas extravagâncias e idiossincrasias (desde que, ga história: uma vez livres, as pessoas se tornariam politicamt:nte
evidentemente, não prejudiquem uns aos outros)- foi nutrido por interessadas e ativas, e por sua vez promoveriam efetivamente a eqüi-
cada uma das gerações modernas (o "patriotismo constitucional" dade, a justiça, a proteção mútua, a fraternidade ...
de Jürgen Habermas constitui a sua última versão). E isso não sur- Deve-se ter cuidado, contudo, em proclamar que uma suces-
preende. Tal república parece a melhor solução que se possa imagi- são histórica é a manifestação das "leis férreas da história" e uma
nar para a mais angustiante incerteza de qualquer forma de inevitabilidade histórica. E deve-se ter mais cuidado ainda em ex-
convívio humano, isto é, como viver juntos com um mínimo de ri- cluir "a lógica do desenvolvimento" antes que o "desenvolvimento"
validade e conflito, enquanto mantém inabalada a liberdade de es- tenha tido seu curso. Não há como dizer quando uma sucessão de
colha e a a uto-afirmação. Em resumo: comoalc.g_'If!!.r a_'!':EEJ.q_~e na eventos chegou ao fim, ou em que ponto termina: a história huma-
(~P~~a! da?) dif~r~nça e como preservar a difer~nfa _!}_a(apesar da?) na permanece obstinadamente incompleta e a condição humana,
unidade. subdeterminada. Na época em que Marshall escreveu, a variação bri-
A contribuição singular de Thomas Marshall foi generalizar a tânica do " Estado de bem-estar" (melhor chamá-lo, creio eu, de
seqüência de desenvolvimentos políticos da Grã-Bretanha, trans- "Estado social") de fato parecia o auge da lógica moderna- o ade-
formando-a numa "lei histórica" que conduziria inextricavelmen- quado coroamento de um impulso histórico tortuoso mas impla-
te, em toda parte, mais cedo o u mais ta rde, do habeas corpus à cável e impossível de paralisar, talvez concebido localmente, mas
ascensão do poder político, e depois social. No limiar dos "30 anos destinado a ser imitado- com modificações, é possível, mas preser-
gloriosos" da reconstrução e do "pacto social" do pós-guerra, a so- vando os seus elementos essenciais- por todas as "sociedades de-
lução britânica para a incerteza anteriormente mencionada pare- senvolvidas':
cia de fato inevitável e, mais dia menos dia, irresistível. Era, afinal Em retrospecto, essa conclusão parece no mínimo prematura.
de contas, a sucessão lógica do cerne do credo liberal que para se Há apenas 30 anos, depois de lorde Beveridge ter dado o toque fi-
tornar um cidadão pleno da república era preciso possuir os recur- nal n o projeto de seguro social coletivo contra os infortúnios indi-
sos que lib eram tempo e energia da luta pela mera sobrevivência. A viduais, e enquanto Marshall colocava no papel a sua visão
camada inferior da sociedade, os proletários, carecia desses recur- auspiciosa, otimista, da conseqüente plenitude da cidadania, Ken-
sos e era improvável que os obtivesse por meio de seu próprio es- neth Galbraith atentou para o advento de uma "m aioria satisfeita"
forço e suas economias - portanto, era a própria república que que utilizava os direitos pessoais e políticos recém-adquiridos para
50 Ident idad e Bauman 51

excluir os seus co-cidadãos menos sagazes ou astutos de um nú- No extremo final do recuo do Estado social se faz a couraça des-
mero crescente de direitos sociais. Ao contrário das previsões de secada, rachada e murcha da "república': despida de seus adornos
Beveridge e Marshall, a capacidade do Estado social de fazer amai- mais atraentes. Indivíduos enfrentando os desafios da vida e orien-
oria sentir-se confiante e satisfeita acabou minando as suas pre- tados a buscar soluções privadas para problemas socialmente pro-
missas e ambições em vez de fortalecê-las. Paradoxalmente, a duzidos não podem esperar muita ajuda do Estado, cujos poderes
autoconfiança da "maioria satisfeita" que impeliu os seus mem- restritos não prometem muito - e garantem menos ainda. Uma
bros a retirarem seu apoio ao princípio fundamental do Estado so- pessoa sensata não confiaria mais no Estado para prover tudo o
cial - o da segurança coletiva contra os infortúnios individuais - que necessita em caso de desemprego, doença ou idade aYançada,
foi uma conseqüência do estrondoso sucesso desse mesmo Estado para assegurar serviços de saúde decentes ou uma educação ade-
social. Tendo sido alçada ao nível da genuína abundância, a urna quada para as crianças. Acima de tudo, uma pessoa sensata não
posição na qual uma profusão de oportunidades acenava a qual- esperaria do Estado que protegesse os seus sujeitos dos golpes des-
quer um que dispusesse de recursos suficientes, essa maioria chu- feridos, de forma aparentemente aleatória, pelo jogo das forças
tou para longe a escada sem a qual subir a um ponto tão alto seria globais, não-controlado e mal compreendido. E assim há um sen-
perigoso ou totalmente impossível. timento novo, mas já profundamente enraizado, de que mesmo
O processo tinha impulso e aceleração próprios. A mudança que alguém soubesse como seria uma boa sociedade, não seria pos-
da opinião popular resultou num encolhimento progressivo da sível encontrar uma força capacitada e ávida por realizar tais dese-
proteção que um Estado social não mais abrangente desejava e po- jos da população.
dia oferecer. Em primeiro lugar, o princípio do seguro social coleti- Levando-se tudo isso em consideração, o significado de "cida-
vo corno direito universal de todos os cidadãos foi, pela prática do dania" tem sido esvaziado de grande parte de seus antigos con-
"teste dos recursos", substituído por urna promessa de assistência teúdos, fossem genuínos ou postulados, enquanto as instituições
dirigida apenas às pessoas que fracassassem no teste da abundân- dirigidas ou endossadas pelo Estado que sustentavam a credibili-
cia de recursos e da auto-suficiência- e, portanto, implicitamente, dade desse significado têm sido progressivamente desmanteladas.
no teste da cidadania e da "plena humanidade". Depender das dro- O Estado-nação, como já mencionamos, não é mais o depositório
gas da previdência se tornou, assim, não um direito da cidadania, natural da confiança pública. A confiança foi exilada do lar em que
mas um estigma do qual pessoas com respeito próprio devem se afas- viveu durante a maior parte da história moderna. Agora está
tar. Em segundo lugar, de acordo com a regra de que provisões para flutuando à deriva em busca de abrigos alternativos- mas nenhu-
os pobres são provisões pobres, os serviços de bem-estar social ma das alternativas oferecidas conseguiu até agora equiparar-se,
perderam muito da antiga atração que exerciam. Esses dois fatores como porto de escala, à solidez e aparente "naturalidade" do Esta-
acrescentaram animosidade, velocidade e intensidade ao processo do-nação.
de distanciamento da "maioria satisfeita" em relação à aliança ~~uve u~t~mpo em . que~.. i~~tid~de humana de um.a p~s.~
"para além da direita e da esquerda" em apoio ao Estado social. s.oa era determina~a fundamentalmente pelo papel produtivo
Isso, por sua vez, aumentou a limitação e a defasagem de sucessivas desempenhado na divisão social do trabalho, quando o Estado ga-
medidas de bem-estar social e levou a uma incapacitação geral das ~antia (se não na prática, ao menos nas intenções e promessas) a
instituições previdenciárias, vítimas da falta de verbas. ~olidez e a durabilidade desse papel, e quando os sujeitos do Estado
52 Identidade Bauman 53

E~di_<:__'!!__~xig!r q~e ~s autoridades prest~sse:n contas no caso de Sentem-se abandonados aos pró prios recursos- bastante insufi-
~e_ixarem~~-~~_!ll_pr_ir as suas promessas e desincumbir-se da res- cientes- e à própria iniciativa - muito deso rdenada.
p~~~ab_ilidade assumida de propo rcionar a plena satisfação dos ci- E o que é aquilo com que os indivíduos aba ndonadosJ dessa-
~ad~os. Essa cadeia contínua de d ependência e amparo poderia cializados, fragme ntados e solitários provavelmen te sonham e, se
compreensivelmente fo rnecer um alicerce para algo como o ·:p~~ ~.!!1- uma chance, fazem? Já que os grandes portos foram fechados
~~iot~_!!l() constitucional" de Habermas. Parece, entretanto, que o ou privados dos quebra-mares que costumavam torná-los seguros,
apelo ao "patriotismo constitucional" como solução eficaz para os os infelizes marinheiros ficarão propensos a construir e cercar os
atuais problemas segue o hábito das asas da Coruja de Minerva, pequenos refúgios onde P?~em ancorar e depositar as suas desti-
conhecidas desde os tempos de Hegel por se abrirem à noite, quan- !_l!~g<!_s~f@g~~Js!(:~!i_~~-~~-~ -~-~9. ~~!.l~.a.~9~ ~.a!s na rede de nave-
do o dia se foi ... Só se avalia plenamente o valor de alguma coisa ~~~ _p~blica, eles guardam com desconfiança o acesso a esses
quando esta some de vista - desaparece ou é dilapidada. Eefúg_i()S p~ivados C()ntra to_d o e qualquer intruso.
. !':l~_o_há muito no atual estado das coisas que inspire a esperan- Para a mente sensata, a atual ascensão espetacular dos funda_-
5~. na_~ p~~?~_bili~ades do patriotismo constitucional. Para que a ~entalismos não guarda mistério. Está longe de ser intrigante ou

_força centrípeta do Estado se sobreponha à força centrífuga dos in- inesperada. Feridos pela experiência do abandono, homens e mu-
.!~!~_s_s_e~ e preocupações regionais, locais e _particularistas, rela- lheres desta nossa época suspeitam ser peões no jogo de alguém,
d esprotegidos dos movimentos feitos pelos grandes jogadores e
_ci~na~_os a_ grupos e auto-referenciais, o Estado deve ser capaz de
facilmente renegados e destinados à pilha de lixo quando estes
.?f~~~c~~ alguma coisa que não possa ser obtida d e modo igualmen-
acharem que eles não dão mais lucro. Consciente ou subconscien-
Je eficaz nos níveis inferiores, e de atar os .fios de uma rede de segu-
temente, os homens e as mulheres de nossa época são assombrados
_rança que do contrário ficariam soltos. O tempo em que o Estado
pelo espectro da exclusão. Sabem - como Hauke Brunkhorst nos
era capaz desse feito, e em que se confiava que fizesse o que fosse
lembra de maneira pungente - que milhões já foram excluídos, e
necessário para completar a sua tarefa, de modo geral terminou.
que 'J?.'!ra_<?~9..\.!e caem fora _d~ ~is~~~~- ful!~iol:l.~~<j_<;t..E~JI\.<:fi~-~~5!
O governo do Estado é uma entidade à qual é improvável que
Br~_sj!_g_y__!!~ ~frj<;~, Ol1 mesmo como ocq_~r~atualmente em muito~
os membros de uma sociedade cada vez mais privatizada e desre-
di~~!J~2~.<J~~O~'!_ !':o_!k 9~..J?.a.~i~1 _!g~_9.S_OS_~utr_()~ ]g_g9 S~ ~g_r:_I}~!ll ina~
gulamentada dirijam as suas queixas e exigências. Eles têm sido re- cessíveis.
-·-- - Sua
.
....
voz não é .mais
~-- · ~ . ---
ouvida, com
--------- .. freqüência
···---·
- -· ·~-------
ficam literal-
.-· --~- -------- ·---~ -- .

petidamente orientados a confiarem em suas próprias sagacidade, m ente mudos." E assim têm medo de serem aband._<:>nad~~-~~f!l
16

habilidades e em seu esforço sem esperar que a salvação venha do ~~~~a um coração afetuoso o u l1.m a _m_ã()_a_1pj_ga, e s~_l:_lteiD._!llUÍta
céu: culpar a si m esmos, a sua apatia ou preguiça, se tropeçarem ou faltª--.<!<2. cªlor, conforto e ~eguransa _do col:_lvívio.
q uebrarem as pernas no caminho individual rumo à felicidade. Não surpreende que para muitas pessoas '!.Q!:9messa funda-
Pode-se desculpá-los por pensarem que os poderes constituídos se mentali~ta de " ren_ascer" num novo lar cordial e seguro, do tiQQ..fu.:
eximira m de toda a responsabilidade por seus destinos (com a milia_!L~~E_um~ent~ç~~--à· ~~A _é-~-if!~il ~-e ~-~~i~~i~. Poderiam ter
possível exceção d e tra ncafiar pedófilos, varrer das ruas os vaga- preferido outra coisa à terapia fundamentalista- uma espécie de
bundos, ociosos, mendigos e outros indesejáveis, e deter suspeitos segurança que não exija apagar a sua identidade e abdicar de sua li-
de terrorismo antes que se transformem em terroristas de fato). berdade de escolha -, mas essa segurança não está disponível. O
54 Identidade Bauman 55

"patriotismo constitucional" não é uma opção realista, ao pas- lecionado as peças certas entre as que estão sobre a mesa, de as ter
so que uma comunidade fundamentalista parece sedutoramente colocado no lugar adequado ou de que elas realmente se encaixam
simples. E assim eles vão imergir prontamente nesse calor, mesmo para formar a figura final. Podemos dizer que resolver um que-
com a expectativa de depo is terem de p agar por esse prazer. Afinal, bra-cabeça comprado numa loja é uma tarefa direcionada para o
não foram criados numa sociedade de cartões de crédito que eli- objetivo: você começa, por assim dizer, da linha de chegada, da ima-
mina a distância entre a espera e o desejo? gem fmal conhecida d e antem ão, e então apanha as peças na caixa,
uma após a outra, a fim de tenta r encaixá-las. O tempo todo você
Com a globalização, a identidade se torna um assunto acalorado. acredita que, ao final, com o devido esforço, o lugar certo de cada
Todos os marcos divisórios são cancelados, as biografias setor- peça e a peça certa para cada lugar serão encontrados. O aju stamen -
nam quebra-cabeças de soluções difíceis e mutáveis. Entretanto, to mútuo das peças e a completude do conjunto estão assegurados
Ç> problema não são as peças individuais desse mosaico, mas desde o início. _N_o_caso _d_~__i~~l)!i<:iJl.~, não funciona nem um pouco
como elas se encaixam umas nas outras. Qual é a sua opinião? assim: o trabalho total é direcio_nt:ufo_p~f!.__os ~1_1-~~o!:.. ~~<?__s_e ~~~esa
pela imagem final, mas por uma série de l?eças j~ ?b~i~_~s_gu g~e pa-
Rece io que a sua alegoria dos quebra-cabeças seja apenas p arcial- reçam valer a l?ena ter, e en!~o _se _te~t~__des~~~r!r_~~-~() ~ _p~~siY-ª
mente esclarecedora. Sim, é preciso compor a sua identidade pes- agrupá~las er~agrupá-laspara montar imagen.s (q~an_~~-~?J.~gr~~~­
soal (ou as suas identidades pessoais?) da forma como se compõe vei~. ~~~~ e~tá_experi'!!_e11.~.~ ndo com ?_
que tem. Seu problema não é o
uma figura com as peças de um quebra-cabeça, m as só se pode que você precisa para "chegar lá", ao ponto que pr~te~d~- ~~~~~Ç~r,
comparar a biografia com um quebra-cabeça incompleto, ao qual ~as qua~s são os pontos que podem ser alcançad~~ c~~-~~ -~~~~r·;~s
faltem muitas peças (e jamais se saberá quantas). O quebra-cabeça g_u~--~~êj~ _p_o.s~~~-'- ~ quais deles me~~~~m o~-~;{o~Ço~ p~ra serem al-
que se compra numa loja vem completo numa caixa, em q ue a ~?~~-d~s. Podemos dizer que a s~lução de u-~-q~el;r~-cabeça segue
imagem final está claramente impressa, e com a garantia de devo- a lógica da racionalidade instrumental (selecionar os meios adequa-
lução do dinheiro se todas as peças n ecessárias para reproduzir dos a um determinado fim). A construção da identidade, por outro
essa imagem não estiverem dentro da caixa ou se for possível mon- lado, é guiada pela lógica da racionalidade do objetivo (descobrir o
tar uma outra usando as mesmas peças. E assim você pode exami- quão atraentes são os objetivos que podem ser atingidos com os
nar a imagem na caixa após cada e ncaixe no intuito de se assegurar m eios que se possui ). A tarefa de um ··--
- · . .. -·-
construtor
-
de identidade
~
é
que de fato está no caminho certo ( único), em direção a um d esti- ~-mq ºirj'! -~yi-_$tra1:1_ss, - ~ <!e um bricoleur,_ 9t1~_.C_<?,J?.Str~i-to_~<?- t_p o
no previamente conhecido, e verificar o que resta a ser feito para ~~ coisas com o material que tem à mão ...
alcançá-lo. Nem sempre foi assim. Quando a modernidade substituiu os
Nenhum desses meios auxiliares está disponível quando você estados pré-modernos (que determinavam a identidade pelo nas-
compõe o que deve ser a sua identidade. Sim, há um monte de peci- cimento e assim proporcionavam poucas oportunidades p ara que
nhas na mesa que você espera poder juntar formando u m todo surgisse a questão do "quem sou?") pelas classes, as identidades se
significativo- m as a imagem que deverá aparecer ao fim do seu tra- tornara m tarefas q ue os indivíduos tinham de desempenhar, como
balho não é dada antecipadamente, de modo que você não pode ter você corretam ente apontou, por meio de suas biografias. Com o
certeza d e ter todas as peças necessárias para montá-la, de haver se- Jean-Paul Sartre afi rmou de modo admirável, para ser burguês não
56 Identidade Ba uman 57

basta ter n ascido na burguesia- é preciso viver a vida inteira como {em si mesmo, nos outros, na sociedad e) é necessária. É preciso
burguês! Quando se trata de pertencer a uma classe, é necessário acreditar que é adequado confiar em esco lhas feitas socialmente e
provar pelos próprios atos, pela " vida inteira"- não apenas exibin- que o futuro p arece certo. A sociedade é necessária como um árbi-
do ostensivamente uma certidão de nascimento -, que de fato se tro, não como outro jogador que mantém as cartas coladas ao pei-
faz parte da classe a que se afir ma pertencer. Deixando de fornecer to e gosta de surpreender você...
essa prova convincente, pode-se perder a qualificação de classe, O s observadores mais argutos da vida moderna notaram mui-
tornar-se déclassé. to cedo, ainda no século XIX, que a confiança em questão não tinha
Durante a maior parte da era moderna, aquilo em que essa bases tão sólidas quanto aquelas que a "versão oficial"- lutando
prova devia consistir era de uma clareza cristalina. Cada classe ti- para se tornar o credo predominante, talvez o único - insinuava.
nha, podemos dizer as suas trilhas de carreira, sua trajetória esta- Um desses observadores sagazes foi Robert Musil, que, bem no iní-
b elecida de maneira clara, sinalizada ao longo de todo o percurso e cio do século passado, percebeu que "a sociedade n ão funciona
pontuada por acontecimentos importantes que permitiam aos m ais de maneira adequada", numa época em que alguns indivídu-
viajantes monitorar o seu progresso. Havia poucas dúvidas, se é os haviam "atingido os píncaros da sofisticação".'" O deslocamento
que havia alguma, sobre a forma da vida que se deveria viver para das resp onsabilidades de escolha para os om bros do indivídu o, a
ser, digamos, um burguês - e ser reconhecido como tal. Acima de destruição dos sinalizadores e a remoção dos marcos históncos, re-
tudo, essa forma parecia m oldada de uma vez por todas. Podia-se m atadas pela crescente indiferença dos poderes superiores em re-
seguir a trajetória passo a passo, adquirindo as sucessivas insígnias lação à natureza das escolhas feitas e à sua viabilidade, foram duas
de classe em sua ordem adequada, "natural", sem a preocupação de tendências presentes desde o início no "desafio da auto-iden-
que os sinalizadores fossem deslocados ou virados na direção tificação". No decorrer do tempo, as duas tendências, for temente
oposta an tes de se completar a jornada. interligadas e mutuamente revigorantes, ganharam força- ainda
Fazer da "identidade" uma tarefa e o objetivo do trabalho de que desaprovadas, deploradas e censuradas como desenvolvimen-
toda uma vida, em comparação com a atribuição a estados da era tos preocupantes e até m esmo patológicos.
pré-moderna, foi um ato de libertação - libertação da inércia dos A principal força motora por trás desse processo tem sido des-
costumes tradicionais, das autoridades imutáveis, d as rotinas pre- de o princípio a acelerada "liquefação" das estruturas e inst ituições
estabelecidas e das verdades inquestionáveis. Mas, como Alain sociais. ~~ta?.'los -~~?-~~_pa~~-aE_?_o _d~ -~~~-~~~óli_~a~·- ~~- !:!!O~er~.i~_a_d_~
17
Peyrefitte descobriu em seu meticuloso estudo da história, essa li- .e~.~~- a f~~~ ."ºui_d a': E os ·:fl~i~~s"_ sã_() as_siJ?. chamados porque não
berdade nova, sem precedentes, representada pela auto-identi- ~?.~s~~~~~-~~~!eE. .~ fo~m,~p~~~-uit()_ te~()_()_ e,_~_:'llepo~ 9.1:1e. sejam
ficação, que se seguiu à decomposição do sistema de estados, foi derr~madC?~_!l:t.'~. ~c:~p_i~~~-~per!~-cl~co~!inu_a_g1_.~~dan_~O. de
acompanhada de uma confiança, igualmente nova e sem prece- for ma ~_()-~ ..~J~ª~-ê,~cia até_t:Jl:e~IE()_Aa~ -~~n~r~~ _f()!5~~.: Num am-
dentes, em si mesmo e nos outros, assim como nos méritos da biente fluido, não há como saber se o que nos espera é uma
companhia de outras pessoas, que recebeu o no me d e "sociedade": enchente ou uma seca- é mel hor estar preparado para as duas pos-
em sua sabedoria coletiva, na confiabilidade de suas instruções, na sibilidades. Não se deve esperar que as estruturas, quando (se) dis-
durabilidade de suas instituições. Para ousar e assumir riscos, ter a poníveis, durem muito tempo. Não serão capazes de agüentar o
coragem exigida pelo ato de fazer escolhas, essa tripla confiança vazamento, a infiltração, o gotejar, o transbordamento- m ais cedo
58 Identidade Bauman 59

do que se possa pensar, estarão encharcadas, amolecidas, defor- tativas e volta atrás nas suas promessas, quer declaradas sem ro-
madas e decompostas. Autoridades hoje respeitadas amanhã serão deios ou engenhosamente insinuadas. A estratégia certa para lidar
ridicularizadas, ignoradas ou desprezadas; celebridades serão es- com um jogador tão evasivo e não confiável é derrotá-lo no seu
quecidas; ídolos formadores de tendências só serão lembrados nos próprio jogo...
quizz shows da TV; novidades consideradas preciosas serão atira- Don Juan (tal como retratado por Moliere, Mozart ou Kierke-
das nos depósitos de lixo; causas eternas serão descartadas por gaard) pode ser considerado inventor e pioneiro dessa estratégia.
outras com a m esma pretensão à eternidade (embora, tendo cha- Pelas confissões do próprio Don Juan de Moliere, o prazer da pai-
muscado os dedos repetidas vezes, as pessoas não acreditem mais); xão consistia na mudança incessante. O segredo das conquistas do
poderes indestrutíveis se enfraquecerão e se dissiparão, impor- Don Giovanni de Mozart, na opinião de Kierkegaard, era a sua ha-
tantes organizações políticas ou econô micas serão engolidas por bilidade em terminar rapidamente e partir para um novo começo.
outras ainda mais poderosas ou simplesmente desaparecerão; ca- Don Giovanni vivia num estado permanente de autocriação. Na
pitais sólidos se transformarão no capital dos tolos; carreiras vitalí- visão de Ortega y Gasset, Don Juan/Don Giovanni era a verdadeira
cias promissoras mostrarão ser becos sem saída. Tudo isso é como encarnação da vitalidade do viver espontâneo, e isso o tornava a
habitar um universo desenhado por Escher, onde ninguém, em lu- maior manifestação da inquietação fundamental, das preocupa-
gar algum, pode apontar a diferença entre um caminho ascenden- ções e ansiedades dos seres humanos modernos. Tudo isso levou
te e um declive acentuado. Michel Serres (em "A aparição de Hermes': no seu livro Hermes ) a
~-ªº ~~ . age2..!!ª--!D.a~~_@e .él..~\ociedade': -~~iél. u~ ár~j~ro das considerar Don Juan o primeiro herói da modernidade. A partir de
tentativas e erros dos seres humanos- um árbitro severo e intran - uma alusão de Camus (o qual percebeu que um sedutor ao estilo
sigente, por vezes rígido e impiedoso, mas de quem se espera ser de Don Juan não gosta de olhar retratos), Beata Frydryczak, pers-
justo e de princípios. Ela nos lembra, em vez disso, um jogador picaz filósofa da cultura, notou que esse "herói da modernidade"
_particularmente astuto, ardiloso e dissimulado, especializado no não poderia ser um colecionador, já que para ele só contava o "aqui
iogo da vida, trapaceando quando tem chance, zombando das re- e agora': a fugacidade do momento. Se de fato colecionasse alguma
gras quando possível - em suma, um perito em truques por baixo coisa, faria uma coleção de sensações, emoções, Erlebnisse.' 9 E as
_do pano que costuma apanhar todos os outros jogadores, ou a sensações são, pela própria natureza, tão frágeis e efêmeras, tão vo-
maioria deles, despreparados. Seu poder n ão se baseia mais na co- láteis quanto as situações que as desencadearam. A estratégia de
erção direta: a sociedade não dá mais as ordens sobre como se viver carpe diem é uma reação a um mundo esvaziado de valores que fin-
- _~;-~~~~o q~~ desse,· não lhe importaria muito que elas fossem ge ser duradouro.
obedecidas ou não. A "sociedade" deseja apenas que você continue O que (creio eu ) se segue é que a sua sugestão de que o proble-
no jogo e tenha fichas suficientes para permanecer jogando. ma está na "forma como eles" (os vários pedaços de que a iden tida-
A força da sociedade e o seu poder sobre os indivíduos agora de supostamente coesa se compõe) "se encaixam uns nos outros" é
se baseiam no fato de ela ser "não-localizável" em sua atitude evasi- reveladora, mas incorreta. Ajustar peças e pedaços para formar um
va, versatilidade e volatilidade, na imprevisibilidade desorientado- todo consistente e coeso chamado "identidade" não parece ser a
ra de seus movimentos, na agilidade de ilusionista com que escapa principal preocupação de nossos contemporâneos, que foram ati-
das gaiolas mais resistentes e na habilidade com que desafia expec- rados à força e de modo irredimível a uma condição don-juanesca
60 lde nt1d ade Bauman 61

e assim se vêem obrigados a adotar a estratégia correspondente. seguir ajustá-los, encontrar o melhor ajuste que possa pôr um fim ao
Talvez não seja absolutamente essa a sua preocupação. t..z.~~ i_de~:. jogo do ajustamento? Não, obrigado, é melhor viver sem isso.
tidade coesa, firmemente fixada e solidamente construída seria Próximo ao fim de uma vida de incontáveis esforços para com-
l!~ja_r~o,~~m~-rep;;~~-ã~, uma limitação d~jibe~dade ~e es.~olha. por a impecável harmonia de cores puras e formas geometrica-
_Seri~ ~~_p_r~~~~gi9 ~a incapacidade de destr~va_~-~-p~rta qua_ndo a mente perfeitas (sendo a perfeição um estado que não pode ser
..!l~~~-<2E?E!"':!.!lida~.~ ~stiver baten~o... Para resumir uma longa his- melhorado, o que impede qualquer mudança futu ra), Piet Mon-
tória: ~~~ia uma receita de inflexibilidade, o u seja, dessa condição o drian, o grande poeta da modernidade sólida, pintou " Victory boo-
_te~po todo execrada, ridicularizada ou condenada por quase to- gie-woogie": uma furiosa e tum ultuada união desarmônica de
das
. as autoridades do momento, sejam elas .
genuína~ ou supostas - formas disformes e matizes destoantes de vermelho, laranja, rosa,
os verde e azul...
. . meios de comunicacão
.. -· ______:J_____de
-· ·--· ~~ ···----······ - _ _massa,
__ ···-- os-----
doutos especialistas
___ ___ _ ,_ _ _ _em
_

J~Eo~J~JE_a~- ~UJ!lanos e os líder~s. políticos-, por se op~r à ati~ude


. <:..<2.~~!~-~-..e.rudf_;nte
e promiss()ra di_an_t~ 9a y!da, ~ assim c<:>nstituir Uma das conseqüências dessas transformações é o ressurgimen-
ÇQIJ.Qição em relação à qual a recomendação quase unânime é
_I}J.!l_<! _ to do nacionalismo. Assim, se as biografias ficaram cheias de
ter cautela e evitá-la cuidadosamente. peças de quebra-cabeça, o que temos é o paradoxo de que a pa-
Para a grande maioria dos habitantes do líquido mundo moder- lavra "comunidade" (Gemeinschaft) reingressa forçosamente na
·discussão. Será um paradoxo? Ou, de outro lado, serão esses fe-
no, atitudes como cuidar da coesão, apegar-se às regras, agir de
nômenos complementares?
acordo com os precedentes e manter-se fiel à lógica da continuida-
de, em vez de flutuar na onda das oportu nidades mutáveis e de
curta duração, não constituem opções pro missoras. Se outras pes- Uma vez mais, não tenho certeza de que o seu diagnóstico esteja
soas as adotam (raramente de bom grado, pode-se estar certo!), cem por cento correto. É verdade que os vários movimentos em
busca de comunidade/reconhecimento que afloram hoje em dia
são prontamente apontadas como sintomas da privação social e
em lugares nos quais a "questão nacional" parecia ter sido resolvi-
um estigma do fracasso na vida, da derrota, da desvalorização, da
da há uns cem anos (e por um longo tempo talvez de modo conclu-
inferioridade social. Na percepção popular, elas tendem a estar as-
sivo e eterno) tendem a ser comumente interpretados como o
sociadas à vida numa prisão ou num gueto urbano, a ser classifica-
"ressurgimento do nacionalismo': Quando o inferno explodiu nos
das como pertencentes à detestada e abominada "subdasse", ou a
Bálcãs, após o colapso do Estado federativo iugoslavo, Tom Nairn
ser confinadas nos campos de refugiados sem pátria ...
resumiu a visão predominante dos fatos como a ressurgência de
Os projetos a que se deve jurar lealdade vitalícia, uma vez esco- uma força sombria, arcaica, primitiva, irracional, até recentemente
lhidos e acalentados (apenas meio século atrás, Jean-Paul Sartre re- adormecida e que se pensava morta, mas evidentemente nunca, de
comendava a adoção dos projets de la vie), são mal acolhidos pela fato, de maneira irrevogável -e agora uma vez mais "com pelindo
crítica e perdem a atração que exerciam. Se pressionadas, as pessoas, as pessoas a colocarem o sangue antes do progresso razoável e dos
em sua maioria, os descreveriam como contraproducentes e decerto direitos individuais':!" A pergunta que esse diagnóstico e outros se-
um tipo de opção que não fariam com satisfação. Ajustar pedaços melhantes sugeriam e estimulavam a que se respondesse era: "por
infinitamente - sim, não há outra coisa que se possa fazer. Mas con- q ue os mortos-vivos acordaram?". Era o tipo de pergunta que os
62 Identidad e Bauman 63

filmes sobre vampiros e zumbis vivem fazendo, tão desorientado- Os escoceses "redescobriram" o seu sentido de nação, junto com
ra e fantasiosa como a própria idéia de "ressurgir dos mortos" ou a o fervor patriótico, quando o governo de Londres começou a em-
milagrosa preservação de antigos ódios no freezer do inconsciente bolsar os lucros pela venda de licenças para a exploração do petró-
coletivo. Embora seja fácil compreender por que se usou um anti- leo na costa da Escócia (esse nacionalismo renascido começou a
go nome para denotar fenômenos novos e não completamente en- perder muitos patriotas recém-recrutados quando o fundo come-
tendidos, recorrer a redes de pesca conceituais experimentadas e çou a se mostrar embaixo das plataformas petrolíferas do mar do
testadas sempre que aparecerem grotescas criaturas marinhas ja- Norte). Quando o domínio do governo em Roma começou a en-
mais vistas é, afinal de contas, um hábito comum e consagrado fraquecer, e havia muito pouco a ganhar com a lealdade a um Esta-
pelo tempo. Mas devíamos prestar atenção à advertência de Derri- do dividido, o povo rico do norte da Itália questionou o motivo
da e estar cientes de que só podemos usar velhos conceitos, ine- pelo qual os pobres, desafortunados e indolentes calabreses ou si-
vitavelmente repletos de significados ultrapassados, "fazendo-se cilianos deveriam ser aliviados de sua miséria, ano após ano, à
neles as emendas necessárias". custa deles, habitantes do norte- e assim se seguiu prontamente o
.~~ .du~~ ~azôes ~bvias p~~~ ess~ ~~v~.~a~~- ~e ~eivindicaçõe~ à questionamento da identidade nacional comum italiana.
~utonomi~ ou independência, erroneamente descrita como uma Aos primeiros sinais do iminente colapso do Estado iugoslavo,
"ressu.rgência do nacionalismo" ou uma ressurr.e.i.ção/reflorescimento os eslovenos, prósperos e eficientes, começaram a indagar por que
~.~~ n_a_ ç_ões. Uma delas é a tentativa séria e desesperada, ainda que sua riqueza deveria continuar escoando para as partes menos afor-
mal orientada, de encontrar um modo de proteger-se dos ventos tunadas da aliança eslava, não sem antes aportarem nas mâos dos
globalizantes, ora gelados, ora abrasadores, uma proteção que os burocratas de Belgrado. Também devemos lembrar que foi o chan-
muros carcomidos do Estado-nação não mais provêem. Outra é a celer alemão Helmut Kohl quem primeiro externou a opinião de
reavaliação do pacto tradicional _entre nação e Estado, o que não que a Eslovênia merecia ser um Estado independente porque era et-
causa nenhuma surpresa num_m_o_men_~c;> em que os Estados, em nicamente homogênea- pode ter sido essa a centelha que fez o bar-
processo de enfraquecimento, têm cada vez menos benefícios a ofe- ril de pólvora das etnias, religiões e alfabetos dos Bálcãs explodir
~ecer em trocad~ !ealdade exigida ef!-1 nc:>m.~ ~a. solidariedade nacio- no frenesi do expurgo étnico.
_nal. Como você pode ver, am~~s as razões_apof!t.~m para a erosão da A tragédia que se seguiu é bem conhecida. Mas os alegados
soberania
.
nacional
.
como o fator principal.
. .
Os movimentos em dis-
. - ·-· --·-·-----
"impulsos primitivos" não brotaram das profundezas sombrias do
~ussão manifestam o desejo de reajustar a estratégia re<:;ebida da inconsciente, onde teriam hibernado desde tempos imernoriais,
busça col~tiva de interesses, procurando ou criando novos interesses esperando que chegasse o momento de despertar. Tiveram de ser
e novos atores no jogo de poder. Podemos (e devemos) deplorar o laboriosamente construídos - jogando-se astuciosamente um vi-
zelo separatista de tais movimentos, podemo~ condenar os ódios zinho contra o outro, um membro da família contra o outro, e
tribais que eles semeiam e lamentar os seus frutos amargos, mas di-: transformando todas as pessoas dotadas da marca distintiva de
ficilmente poderíamos acusá-los de irracionalidade ou desprezá-los membros da comunidade projetada em cúmplices ativas ou enco-
.como se fossem simplesmente uma reverberação primitiva. Se o fi- bridoras do crime. O assassinato de vizinhos de porta, o estupro, a
zermos, arriscamo-nos a confundir o que precisa ser explicado pela bestialidade, a matança de indefesos - quebrando um a um os ta-
explicação em si. bus mais sagrados, fazendo-o em público e conferindo notorieda-
64 Identidade Bauman 65

de - foram na verdade atos de criação comunitária: evocar uma misturando-se facilmente na multidão. A violência é necessária
comunidade unida pela memória do malefício original; uma co- para torná-las espetacularmente, inequivocamente, gritantemente
munidade que poderia estar razoavelmente segura de sua sobrevi- diferentes. Então, ao destruí-las, podia-se ter a esperança de estar
vência graças ao fato de ter se tornado o único escudo a evitar que eliminando o agente poluidor que havia ofuscado as distinções, e
os perpetradores fossem declarados criminosos em vez de heróis, assim recriar um mundo ordenado em que todos sabem quem são
de serem levados a julgamento e punidos. Mas, em primeiro lugar, e as identidades deixaram de ser frágeis, vagas e instáveis. Desse
por que as pessoas obedeceram a esse apelo às armas? Por que vizi- modo, de acordo com o padrão moderno, toda destruição é aqui
nhos se voltaram uns contra os outros? uma destruição criativa: uma guerra santa da disciplina contra o
A mudança e o impressionante colapso do Estado que forne- caos, um ato dotado de propósito, um trabalho voltado à constru-
cia a estrutura na qual o relacionamento de vizinhança podia ser ção da ordem ...
rotineiramente conduzido foram, sem dúvida, uma experiência Que não haja engano: a crise social causada pela perda dos
traumática, uma boa razão para temer pela segurança individual. meios convencionais de proteção coletiva eficaz não é uma pe-
Entre as ruínas da estrutura fornecida pelo Estado, as ervas dani- culiaridade balcânica. Com diferentes graus de intensidade e con-
nhas da ansiedade brotaram e cresceram descontroladamente. Se- densação, tem sido vivenciada por todo este nosso planeta em
guiu-se uma genuína "crise social" propriamente dita e, como rápido processo de globalização. Suas conseqüências nos Bálcãs
explica René Girard, num estado de crise social, "as pessoas inva- podem ter sido anormalmente extremas, mas mecanismos seme-
lhantes estão em vigor em outras partes do mundo. As coisas po-
riavelmente culpam a sociedade como um todo, o que não lhes
dem não atingir o ponto a que chegaram nos Bálcãs e o drama
custa nada, ou então outras pessoas que lhes pareçam particular-
pode ser abafado, por vezes até inaudível, mas desejos e ímpetos
mente perniciosas por motivos facilmente identificáveis". Num es-
compulsivos similares incitam as pessoas em qualquer lugar em
tado de crise social, indivíduos assustados se arrebanham e se
que se apresentem os sintomas terrivelmente perturbadores da cri-
tornam uma turba- e "a turba, por definição, procura a ação, mas
se social.
não pode produzir efeito sobre as causas naturais [da crise]. Assim
sendo, busca uma causa acessível que possa aplacar o seu apetite
9 objetivo m.ais ampla e intensa!llentec()b.iS~~o é a escavação
i~trinch~iras profundas, possivelmente intransponíveis, entre o
por violência.'' O restante é muito confuso, mas fácil de imaginar e
:_qentro" _e o "fora" de uma localidade territorial ou categórica.
compreender: "No intuito de culpar as vítimas pela perda de dis-
~~ra: tempestades, furacões, ventos c~:mgel~ntes, emboscadas-~~
tinções resultante da crise, elas são acusadas de crimes que elimi- ~~trada e p_~Eigos por toda parte. Dentro: aconchego, cordialidade,
nam as distinções. Mas na verdade são identificadas como vítimas !J!.ez soi, segura_11ça, proteção. Já que, para manter o planeta inteiro
a perseguir porque portam a marca de vítimas."11 seguro {de modo que não precisemos mais separar-nos do inóspi-
Quando o mundo conhecido se despedaça, um dos efeitos to "lado de fora"), nos faltam (ou pelo menos acreditamos que nos
mais perturbadores e inquietantes é a pilha de escombros ocultan- faltem) ferramentas e matérias-primas adequadas, vam_q~ C2_n s-
do as fronteiras, enquanto o lixo e a sucata escondem os postes de tr~!' c~~~r_e_ior!_if~il_~_ u~_ es_p~ç_o indub~tavelmente nosso e de
sinalização. As vítimas em potencial não são temidas e odiadas por mai~- ninguém, um espaço em cujo interior possamos nos sentir
serem diferentes - mas porque não são suficíentemente diferentes, ~.mo se fôssemos os únicos e incontestáveis mestres. O Estado não
66 Identidade Bauman 67

pode mais afirmar que tel!l_ po_c!_e~-~ufi~~e~tep~ra pro!eger os_e_u. do ou encoberto de outras maneiras, mas nunca realisticamente
_t~r-~it_<?~io e
os seus habitantes.A~sj~,a tar~fa que foi abandonada descartado ou "desfeito"- e um conjunto que, tal como um clube
~Eese<utadapelo Estado jaz sobre o solo, esperando que alguém a ou associação voluntária, permite que a pessoa ingresse ou se de-
~ar1~e. O que se segue, ao cont~ário da opinião generalizada, é sassocie à vontade, e cujos formato, atributo e procedimento estão
~~renascimento, ou mesmo uma vingança póstuma, do naciona- constantemente abertos à deliberação e renegociação de seus
lismo -uma busca desesperada, embora vã, por alternativas de so- membros.
Juçãolocal para problemas gerad_o~ g_l~balmente, numa_s_ituação na Mas permita-me observar que a palavra "cultural", pela qual
_qual não se pode mais contar com a ajuda das forças convencio- hoje em dia comumente se descreve o primeiro desses dois mode-
nais do Estado. los, é uma denominação imprópria ditada pelos atuais padrões do
A distinção entre o artifício republicano do consenso da cida- "politicamente correto". Afinal, a palavra "cultura" entrou em nos-
dania e a noção de fazer parte/ser membro/pertencer "natural" re- so vocabulário dois séculos atrás como portadora de um significa-
monta à querelle do século XVIII e início do XIX entre os filósofos do totalmente oposto: como antônimo de "natureza", denotando
franceses do Iluminismo e os românticos alemães (Herder, Fichte), características humanas que, em clara oposição aos obstinados fa-
teóricos do Volk e do Volkgeist, que precedem e superam todas as tos da natureza, são produtos, resíduos ou efeitos colaterais das es-
identidades e distinções artificiais que possam ser legalmente im- colhas dos seres humanos. Feitas pelo homem, teoricamente podem
postas sobre o convívio humano. Esses dois conceitos de nação re- ser por ele desfeitas.
ceberam forma canônica na oposição de Friedrich Meinecke entre Permita-me observar também que o conceito romântico se ori-
Staatnation e Kulturnatíon (1907). Genevieve Zubrzycki resumiu ginou numa "nação sem Estado", a Europa central de fala alemã di-
seu levantamento das definições correntes na política e nos deba- vidida em incontáveis e em sua maioria minúsculas unidades polí-
tes de ciência social contemporâneos opondo os modelos/inter- ticas, ao passo que a noção republicano-iluminista foi concebida
pretações "cívicos" e "étnicos" do fenômeno da nacionalidade. num "Estado sem nação", um território sob uma administração
dinástica cada vez mais centralizada que lutava para introduzir
Segundo o modelo cívico da nacionalidade, a identidade nacional é pura- certo grau de coesão num conglomerado de etnias, dialetos e "cul-
mente política. Nada mais é do que a escolha do indivíduo de pertencer a turas locais" - costumes, crenças, práticas regulares, mitologias,
uma comunidade baseada na associação de indivíduos de opinião seme- calendários. As duas noções não podem ser tomadas como dois ti-
lhante. A versão étnica, ao contrário, sustenta que a identidade nacional é pos alternativos de nacionalidade, mas como duas interpretações
puramente cultural. A identidade é dada ao nascer; ela se impõe sobre o sucessivas sobre a natureza do convívio humano em vários es-
indivíduo." tágios de coabitação, engajamento, matrimônio e divórcio entre a
nação e o Estado. Cada interpretação corresponde a uma tarefa e
A oposição é, em última instância, entre pertencer por adscri- uma prática política um tanto diferentes. Uma atende melhor às
ção primordial ou por escolha. Em termos práticos, entre um fato necessidades da luta pela condição de Estado, a outra contempla os
bruto que precede os pensamentos e escolhas dos seres humanos- esforços de "construção nacional" do Estado político.
um fato que, segundo o padrão dos traços geneticamente herdados Em virtude da atual separação e do divórcio que se aproxima
e determinados do corpo humano, pode ser desvirtuado, arquiva- entre o Estado e a nação, com o Estado político abandonando as
68 Identidade Bauman 69

suas ambições assimilativas, declarando neutralidade em relação atração e apreensão, desejo e medo; locais de ambigüidade e hesi-
às opções culturais e se eximindo do caráter cada vez mais "multi- tação, inquietação, ansiedade. Como apontei em outro texto
cultural" da sociedade que administra, não surpreende que visões .(Amor líquido), depois do "Homem sem qualidades" de Robert
ditas "culturais" da identidade estejam voltando à moda entre os Musil veio o nosso "homem sem vínculos" líquido-moderno. A
grupos que buscam abrigos estáveis e seguros em meio às marés de maioria de nós, na maior parte do tempo, tem uma opinião ambí-
mudança incerta. gua sobre essa novidade que é "viver livre de vínculos"- de relaci-
Para pessoas inseguras, desorientadas, confusas e assustadas onamentos "sem compromisso". Nós os cobiçamos e os tememos
pela instabilidade e transitoriedade do mundo que habitam, a "co- ao mesmo tempo. Não voltaríamos atrás, mas nos sentimos pouco
munidade" parece uma alternativa tentadora. É um sonho agradá- à vontade onde estamos agora. Estamos inseguros quanto a como
vel, uma visão de paraíso: de tranqüilidade, segurança física e paz construir os relacionamentos que desejamos. Pior ainda, não esta-
espiritual. Para pessoas que lutam numa estreita rede de limita- mos seguros quanto ao tipo de relacionamentos que desejamos...
ções, preceitos e condenações, pelejando pela liberdade de escolha Creio que Erich Fromm captou esse dilema em sua essência
e auto-afirmação, a mesmíssima comunidade que exige lealdade quando observou que "a satisfação no amor individual não pode
absoluta e que guarda estritamente as suas entradas e saídas é, pelo ser obtida ... sem uma verdadeira humildade, coragem, fé e disci-
contrário, um pesadelo: uma visão do inferno ou da prisão. A plina", para em seguida acrescentar, com tristeza, que, "numa cul-
questão é que todos nós estamos, intermitente ou simultaneamen- tura em que essas qualidades são raras, atingir a capacidade de
te, sobrecarregados com "responsabilidades demais" e ansiosos 23
amar continua sendo uma rara realização". Amar significa estar
por "mais liberdade", o que só pode aumentar nossas responsabili- determinado a compartilhar e fundir duas biografias, cada qual
dades. Para a maioria de nós, portanto, a "comunidade" é um fenô- portando uma carga diferente de experiências e recordação, e cada
meno de duas faces, completamente ambíguo, amado ou odiado, qual seguindo o seu próprio rumo. Justamente por isso, significa
amado e odiado, atraente ou repulsivo, atraente e repulsivo. Uma um acordo sobre o futuro e, portanto, sobre um grande desconheci-
das mais apavorantes, perturbadoras e enervantes das muitas esco- do. Em outras palavras, como Lucan observou dois milênios atrás e
lhas ambivalentes com que nós, habitantes do líquido mundo mo- Francis Bacon repetiu muitos séculos depois, significa fornecer re-
derno, diariamente nos defrontamos. féns ao destino. Também significa fazer-se dependente de outra
pessoa dotada de igual liberdade de escolha e da vontade de seguir
Nesse reembara/hamento, até as formas básicas de relaciona- essa escolha- e portanto cheia de surpresas, imprevisível.
mento social estão passando por uma mutação. Das relações Meu desejo de amar e ser amado só pode se realizar se for con-
amorosas à religião, tudo se torna instável, líquido. Mas como é firmado por uma genuína disposição a entrar no jogo para o que
que estão mudando as relações amorosas? der e vier, a comprometer a minha própria liberdade, caso necessá-
rio, para que a liberdade da pessoa amada não seja violada. No
Aqui você apontou outra ambivalência formidável de nossa líqui- Simpósio de Platão, Diotima de Mantinea (ou seja, "a profetisa
da era moderna. As relações interpessoais, com tudo o que as Temeadeus da Cidade dos Profetas") enfatiza para Sócrates, com a
acompanha - amor, parcerias, compromissos, direitos e deveres plena concordância deste, que "o amor não é para o belo, como
mutuamente reconhecidos -, são simultaneamente objetos de você pensa". "É para gerar e nascer no belo." Amar é ter o desejo de
Bauman 71
70 Identidade

"gerar e procriar", e assim aquele que ama "busca e tenta encon- cães, conhecidos por serem bastante adaptáveis aos ambientes e às
trar a coisa bela em que possa gerar". Em outras palavras, não é no rotinas dos homens, deveriam "com eçar a reduzir a sua expectati-
anseio por coisas já prontas, completas e finalizadas que o amor va de vida de aproximadamente 15 anos para algo mais em sinto-
encontra o seu significado, mas no impulso a participar da trans- nia com os breves instantes de atenção modernos: d tgamos, cerca
formação dessas coisas, e contribuir para elas. O amor é semelhan- de três meses" (esse é o tempo médio que se passa antes que os cães
te à transcendência. f: apenas outro nome para o impulso criativo, alegremente recebidos sejam jogados na rua). Uma alta porcenta-
e como tal é repleto de riscos, como o são todos os processos criati- gem das pessoas que se livram dos seus cães o faz "a fim de abrir ca-
vos, que nunca têm certeza do lugar em que vão terminar. minho para outros cães, mais na moda".2<
Acabamos com um paradoxo. Começamos guiados por uma Tal como com os animais de estimação, assim também com os
esperança de solução- apenas para encontrarmos novos proble- seres humanos de estimação. Barbara Ellen, colunista do Observer
mas. Buscamos o amor para encontrarmos auxílio, confiança, Magazine, discorre sobre " largar o parceiro" como se fosse um acon-
segurança, mas os labores do amor, infinitamente longos, talvez tecimento normal. "Sempre nos dizem que a morte é uma parte
intermináveis, geram os seus próprios confrontos, as suas próprias importante da vida. Seguindo o mesmo raciocínio, o rompimento
incertezas e inseguranças. No amor, não há ajustes imediatos, solu- 21
não seria uma parte importante da relação?" O rompimento, ao
ções eternas, garantia de satisfação plena e vitalícia, ou de devolu- que parece, é visto agora como um acontecimento tão "natural"
ção do dinheiro no caso de a plena satisfação não ser instantânea e quanto a morte é para a vida- já que os rdacionamentos, um dia
genuína. Todos os recursos pagos para evitar os riscos com que a
almejados pelos mortais como a porta de passagem para a eterni-
nossa sociedade de consumo nos acostumou estão ausentes no
dade, tornaram-se eles próprios fissíparos e mortais. Relaciona-
amor. Mas, seduzidos pelas promessas dos comerciantes, perde-
mentos atormentados, na verdade, por uma expectativa de vida
mos as habilidades necessárias para enfrentar e vencer os riscos por
muitas vezes menor do que a dos indivíduos que os estabeleceram
nós mesmos. E assim tendemos a reduzir os relacionamentos amo-
apenas para rompê-los novamente. Outro espirituoso colunista
rosos ao modo "consumista", o único com que nos sentimos segu-
britânico sugeriu que casar-se é como "embarcar numa viagem
ros e à vontade.
marítima numa jangada feita de m ata-borrão".
O "modo consumista" requer que a satisfação precise ser, deva
Animais ou humanos, parceiros ou de estimação - será que
ser, seja de qualquer forma instantânea, enquanto o valor exclusi-
importa? Todos eles estão aqui pelo m esmo motivo: satisfazer (pe-
vo, a única "utilidade", dos objetos é a sua capacidade de propor-
lo menos é para isso que os mantemos). Se não o fizerem, não têm
cionar satisfação. Uma vez interrompida a satisfação (em função
do desgaste dos objetos, de sua familiaridade excessiva e cada vez finalidade alguma e portanto nenhuma razão para estarem aqui.
mais monótona ou porque substitutos menos familiares, não - Anthony Giddens declarou brilhantemente que a antiga idéia ro -
testados, e assim mais estimulantes, estejam disponíveis), não h á mântica de amor como uma parceria exclusiva "até que a morte
motivo para entulhar a casa com esses objetos inúteis. nos separe" foi substituída, no decorrer da libertação individual,
Um dos presentes de Natal eternamente favoritos das crianças pelo "amor confluente" - uma relação que só dura enquanto
inglesas é um cachorro (em geral um filhote). Sobre a condição permanece a satisfação que traz a ambos os parceiros, e nem um
atual desse hábito, Andrew Morton recentemente comentou que os minuto mais. No caso dos relacionamentos, você deseja que a "per-
72 ldentjd6de Bauman 73

missão de entrar" venha acompanhada da "permissão de sair" no Se permanecessem ou caso se tornassem comuns, seriam como o
momento em que não veja mais razão para ficar. dobre de finados da economia centrada no consumidor.
Giddens considera libertadora essa mudança na natureza dos A educação de um consumidor não é uma ação solitária ou
relacionamentos: os parceiros agora estão livres para saírem em uma realização definitiva. Começa cedo, mas dura o resto da vida.
busca de satisfação em outro lugar se não conseguem obtê-la, ou 9 desenvolvimento das habilidades de consumidor talvez ~i~-o
não a obtêm mais, com a relação atual. O que ele não mencionou, único exemplo bem-sucedido da tal "educação continuada" _que
contudo, é que, como o início de um relacionamento exige con- _teóricos da educação e aqueles que a utilizam na prática defend~J?
sentimento mútuo, ao passo que a decisão de um dos parceiros é ~tua~m~nte. As instituições respo_[)~~yei~ pela "educação vitalíci~
suficiente para encerrá-lo, toda parceria está fadada a ser perma- ~o consumidor" são incontáveis e ubíquas- a começar pelo fluxo
nentemente derrotada pela ansiedade: e se a outra pessoa se abor- diário de comerciais na TV, nos jornais, cartazes e outdoors, pas-
recer antes de mim? Outra conseqüência não percebida por Giddens S_(:l_!!_do_pelas pilhas de lustrosas revistas "temáticas" que competem
é que a disponibilidade de uma saída fácil é em si um terrível obs- para divulgar os estilos de vida das celebridades que lançam ten-
táculo à satisfação no amor. Torna o tipo de esforço de longo prazo dências, os grandes mestres das artes consumistas, at~ ch~_gar_aos
que essa satisfação exigiria muito menos provável, tendente a ser ·yo_ciferantes especialistas/conselheiros que oferecem as mais mo-
abandonado bem antes que uma conclusão gratificante possa ser dernas receitas, respaldadas por meticulosas pesquisas e testadas
alcançada, rejeitado como algo que não vale a pena ou desprezado em laboratório, com o propósito de identificar e resolver os "pro-
em função de um preço que ninguém vê razão para pagar em vir- blemas da vida".
tude dos substitutos aparentemente mais baratos disponíveis no Vamos nos deter por um momento nos peritos especializados
mercado. em escrever receitas para as relações humanas, e particularmente
Três meses é mais ou menos o tempo máximo durante o qual para as parcerias amorosas. Os "casais semi-separados" devem ser
os jovens trainees da sociedade de consumo são capazes de apro- louvados como "revolucionários em matéria de relacionamento
veitar e depois tolerar a companhia de seus animais de estimação. É que romperam a sufocante bolha do casal", escreveu um deles
provável que eles levem esse hábito adquirido tão cedo para a vida numa revista bastante respeitada e amplamente lida. Outro espe-
adulta, em que os cães são substituídos por seres humanos como cialista/conselheiro informa aos leitores que, "ao se comprometer,
objetos do amor. Morton culpa o encurtamento do "breve instante embora sem muito ânimo, lembre-se de que é provável que você
de atenção': Seria possível, porém, procurar as causas em outro lu- esteja fechando a porta para outras possibilidades românticas tal-
gar. _Se os nossos ancestrais eram moldados e treinados por suas so- vez mais satisfatórias e compensadoras". Outro especialista sugere
_ciedad~s como, acima de tudo, produtores, somos cada vez mais que os relacionamentos, tal como os carros, devem passar periodi-
moldados e treinados como, acima de tudo, consumidores, todo o camente por um teste de valor e serem retirados de circulação caso
resto vindo depois. Atributos considerados trunfos num produtor os resultados sejam negativos. Mas outro especialista consegue ser
(aquisição e retenção de hábitos, lealdade aos costumes estabeleci- ainda mais insensível: "As promessas de comprometimento são
dos, tolerância à rotina e a padrões de comportamento repetitivos, desprovidas de sentido a longo prazo ... Tal como outros investi-
boa vontade em adiar a satisfação, rigidez de necessidades) se trans- mentos, alternam períodos de alta e de baixa". E assim, se você quer
formam nos vícios mais apavorantes no caso de um consumidor. "relacionar-se", mantenha distância. Se deseja obter satisfação com
74 ldent1dade Bauman 75

o convívio, não estabeleça nem exija compromissos. Mantenha to- aos vínculos que conectam o eu a outras pessoas e ao pressuposto
das as portas abertas o tempo todo. de que tais vínculos são fidedignos e gozam de estabilidade com o
Levando-se tudo isso em consideração, o que aprenderíamos passar do tempo. Precisamos de relacionamentos, e de relaciona-
com os especialistas em relacionamentos é que o comprometi- mentos em que possamos servir para alguma coisa, relacionamen-
mento, particularmente a longo prazo, é uma armadilha a ser evi- tos aos quais possamos referir-nos no intuito de definirmos a nós
tada, mais que qualquer outro perigo, por aqueles que buscam mesmos. Mas em função dos comprometimentos de longo prazo
"relacionar-se". O breve instante da atenção humana encolheu - que eles sabidamente inspiram ou inadvertidamente geram, os
porém mais seminal ainda é o encolhimento do tempo disponível relacionamentos podem ser, num ambiente líquido moderno, car-
para prever e planejar. O futuro sempre foi incerto, mas o seu cará- regados de perigos. Mas de qualquer forma precisamos deles, pre-
ter inconstante e volátil nunca pareceu tão inextricável como no lí- cisamos muito, e não apenas pela preocupação moral com o
quido mundo moderno da força de trabalho "flexível", dos frágeis bem-estar dos outros, mas para o nosso próprio bem, pelo benefí-
vínculos entre os seres humanos, dos humores fluidos, das amea- cio da coesão e da lógica de nosso próprio ser. Quando se trata de
ças flutuantes e do incontrolável cortejo de perigos camaleônicos. iniciar e manter um relacionamento, o medo e o desejo lutam para
Ntmca se sentiu com tanta intensidade que o futuro é, como suge- obter o melhor um do outro. Lutamos veementemente pela segu-
riu Emmanuel Levinas, "o outro absoluto"- inescrutável, imper- rança que apenas um relacionamento com compromisso (e, sim,
meável, incognoscível e, por fim, além do controle humano. um compromisso de longo prazo!) pode oferecer- e no entanto
Num mundo em que o desprendimento é praticado como tememos a vitória não menos que a derrota. Nassas atitudes em
uma estratégia comum da luta pelo poder e da auto-afirmação, há relação aos vínculos humanos tendem a ser penosamente ambiva-
poucos pontos firmes da vida, se é que há algum, cuja permanên- lentes, e as chances de resolver essa ambivalência são hoje em dia
cia se possa prever com segurança. Assim, o "presente" não com- exíguas.
promete o "futuro", e não há nada nele que nos permita adivinhar, Não há um modo fácil de escapar a essa sorte, nem certamente
muito menos visualizar, a forma das coisas que estão por vir. O pen- uma cura radical viável para os tormentos da ambivalência. E, por-
samento e, mais ainda, os compromissos e as obrigações de longo tanto, há uma busca fanática e furiosa por soluções de segunda
prazo parecem, de fato, "sem sentido". Pior ainda, parecem contra- classe, meias soluções, soluções temporárias, paliativos, placebos.
producentes, realmente perigosos, um caminho tolo a se seguir, Servirá qualquer coisa que possa afastar as dúvidas corrosivas e as
um lastro que precisa ser atirado ao mar e que teria sido melhor, questões irrespondíveis, postergar o momento do ajuste de contas
afinal de contas, nem ter sido trazido a bordo. e da verdade- e assim permitir que permaneçamos em movimen-
Todas essas notícias são preocupantes, aterradoras sem dúvi- to ainda que nosso destino esteja, é o mínimo que se pode dizer,
da. Os golpes atingem diretamente no coração o modo humano de envolto na neblina.
"estar no mundo". Afinal de contas, a essência da identidade - a Se não é possível confiar na qualidade, quem sabe a salvação
resposta à pergunta "Quem sou eu?" e, m ais importante ainda, não está na quantidade? Se todo relacionamento é frágil, quem
a permanente credibilidade da resposta que lhe possa ser dada, sabe o recurso de multiplicar e acumular relacionamentos não vai
qualquer que seja- não pode ser constituída senão por referência tornar o terreno menos traiçoeiro? Graças a Deus você pode acu-
76 Identidade Bauman 77

mulá-los - justamente porque eles são, todos eles, frágeis e descar- · deando sempre novos desejos tentadores a fim sufocar e esquecer
táveis! E assfm buscamos a salvação nas "redes", cuja vantagem os desejos de outrora.
sobre os laços fortes e apertados é tornarem igualmente fácil conec- O prêmio é a liberdade de seguir adiante, mas uma opção que
tar-se e desconectar-se (como explicou recentemente um rapaz de não temos a liberdade de fazer é parar de nos movimentar. Como
26 anos de Bath, o "namoro na Internet" é preferível aos "bares de Ralph Waldo Emerson já advertia muito tempo atrás, se você está
solteiros" porque, se algo der errado, "basta 'deletar'"- num en- esquiando sobre o gelo fino, a salvação está na velocidade.
contro cara a cara, não é possível descartar-se com tanta facilidade
do parceiro indesejado). E nós usamos nossos celulares para bater E como é que muda a atitude em relação ao sagrado?
papo e enviar e receber mensagens, de modo que possamos sentir
permanentemente o conforto de "estar em contato" sem os des- Não é uma pergunta fácil de responder. Para começo de conversa,
confortos que o verdadeiro "contato" reserva. Substituímos os "o sagrado" é um conceito notoriamente vago e altamente contes-
poucos relacionamentos profundos por uma profusão de contatos tado, e é muito difícil ter certeza, e ainda mais concordar, quanto
pouco consistentes e superficiais. aquilo de que estamos falando. Alguns autores chegam até a suge-
Imagino que os inventores e propagadores dos "celulares vi- ~ir que o sagrado está confinado ao que se passa dentro de uma
suais", planejados para transmitir imagens além de vozes e mensa- igreja ou seu equivalente. Outros autores sugerem que o ato de la-
gens escritas, calcularam mal: n ão vão encontrar um mercado de var o carro ou a ida da família ao shopping no domingo é a atual en-
massa para suas engenhocas. Creio que a necessidade de olhar no carnação do sagrado ...
olho o parceiro do "contato virtual", de entrar no estado de proxi- Mas ainda que rejeitemos e esqueçamos tais sugestões extre-
midade visual (ainda que virtual), privará o papo por celular da madas e bastante tolas (elas próprias, em minha opinião, manifes-
principal vantagem pela qual ele é entusiasticamente adotado pe- tações da "crise do sagrado"), aceitando que sua pergunta é sobre
los milhões que anseiam "estar em contato" e, ao mesmo tempo, fenômenos do tipo que Rudolph Otto tentou apreender com a
manter distância ... idéia de "extraordinário" ou Immanuel Kant com o conceito de
O que esses milhões anseiam é mais bem atendido pelo "envio "sublime", a tarefa não se torna muito fácil. Será que ajuda esclare-
e recepção de mensagens", que elimina da troca a simultaneidade e cer em que consistem tais fenômenos?
a continuidade, impedindo -a de se tornar um diálogo genuíno Ao tentar resolver o mistério do poder mundano, humano,
e, portanto, arriscado. O contato auditivo vem em segundo lugar. É Mikhail Bakhtin, um dos mais importantes filósofos russos do sé-
um diálogo, mas felizmente livre do contato visual, aquela ilusão culo passado, começou pela descrição do "medo cósmico"- uma
de intimidade portadora de todos os perigos de traição involuntá- emoção humana, demasiadamente humana, provocada pela so-
ria (por gestos, mímica, expressão do olhar) que os interlocutores brenatural e inumana magnificência do universo. Em sua visão, o
prefeririam manter excluída do "relacionamento". Esse modo re- tipo de medo que serve ao poder feito pelo homem como a sua ori-
duzido d e relacionar-se, "menos importuno", se ajusta a todo ores- gem, protótipo e inspiração."' O medo cósmico é, nas palavras de
to - ao líquido mundo moderno das identidades fluidas, o mundo Bakhtin, a trepidação sentida "diante do imensuravelmente gran-
em que o aspecto mais importante é acabar depressa, seguir em de e imensuravelmente intenso: diante do céu estrelado, do volu-
frente e começar de novo, o mundo de mercadorias gerando e alar- me substancial das montanhas, do mar, e o medo de convulsões
78
Identidade Bauman 79

cósmicas e desastres naturais". No cerne do "medo cósmico" jaz, . B~~h_tLI?. i~~i!l~~_gu_(!_ ~ medo cós_IE._ico i us~do_( reprocessa_9_<.?.!
observemos, a não-entidade do ser humano amedrontado, abati- ~~ciciado l p~r~o?os _o.s.~i_:;_~e~~s.relig!g_s_~~.. ~i~~C:_rt1_ 4_e J?~~~_go:­
do e transiente, defrontado com a enormidade do universo per- _v_errl~nte su_pre_~_o do Uf!_iv~!.~? e de_seus habitante~, é moldad.a a
manente - a simples fraqueza, a incapacidade de resistir, a .P..~~!_ir_ ~a emo\ão já bem conhecida do medo da vulnerabilidade e
vulnerabilidade do frágil e delicado corpo humano revelada pela vi- ~'?.t~e.n._Jor_~iallte ~a incerteza imp~~~t_ráyel e irreparável. " Leszek
1

são do "céu estrelado" ou do "volume substancial das montanhas". Kolakowski explica a religião pela crença dos seres humanos na in-
Mas também a percepção de que não está ao alcance dos seres hu- suficiência dos seus próprios recursos.
manos apreender, entender, assimilar mentalmente o impressio-
A mente moderna não era necessariamente atéia. A guerra
nante poder que se manifesta na simples grandíosídade do
contra Deus, a busca frenética da prova de que " Deus não existe"
universo. Pascal descreveu esse sentimento, e sua fonte, de manei-
ra impecável: ou "morreu", foi deixada para os radicais. O que a m ente moderna
fez, contudo, foi tornar Deus irrelevante para os assunt~s }lumaJlO~
na .Te_!:!_~: A ciência moderna surgiu quando foi construída uma
Quando considero a breve duração de minha vida absorvida na eternida-
linguagem que permitia que aquilo que se aprendesse so~r~ 9
de que vem antes e depois ... o pequeno espaço que ocupo c que vejo ser
.mu11do, fosse o que fosse, pudesse ser narrado em termos nã<?-
engolido pela infinita imensidão dos espaços de que nada sei e que nada
teológicos, ou seja, sem referência a um "propósito" ou intenção
sabem sohre mim, fico amedrontado e surpreso por me ver aqui e não ali,
agora e não depois. 17 d~vi_!].OS. "Se a mente de Deus C: inescrutável, vamos parar de perder
tempo tentando ler o ilegível e nos concentrar naquilo que nós, se-
res humanos, podemos compreender e fazer." Tal estratégia con-
Esse universo escapa a todo entendimento. Suas intenções são des-
~uzi'-:1 .~ _espet~~ula~es_ triunfos da ciênc.ia.. e ~~.-~~a. _r~_mi~~~ç_ão
conhecidas, seus "próximos passos", imprevisíveis. Se existe plano
~~5!l.<?!ó_gj.ca. Mas também teve ~~mse_qüê~ci~- de longo alcance, e
ou lógica preconcebidos em sua ação, decerto escapa à capacidade
não necessariamente benignas ou benéficas, para a modalidade
de compreensão humana (dada a capacidade mental humana de
imaginar um estado "anterior ao universo'~ o "Big Bang" não pare- humana de "estar no mundo': A autoridade do sagr~~o ~· ~e_m_~do
ce mais compreensível do que a criação em seis dias). E assim o mais geral, nossa .PEeocupação com a eternidade. e os _valores _e!.~­
"medo cósmico" é também o horror do desconhecido: o terror da !:10~, f<?ra!11 as ~~.~s primeiras e mais proeminen!es b_a~~~~·
incerteza. A estratégia moderna consiste em fatiar os grandes temas que
É também um terror mais profundo- o do desamparo, diante transcendem o poder do homem em tarefas menores que os seres
do qual a incerteza não passa de um fator que contribui para cau- humanos podem manejar (por exemplo, a substituição da luta in-
sá-lo. O desamparo se torna evidente quando a vida mortal, risi- glória contra a morte inevitável pelo tratamento eficaz de muitas
_velmente breve, é medida em relação à eternidade - e ao minúsculo doenças evitáveis e curáveis). Os "grandes temas" não foram resolvi-
espaço ocupado pela humanidade em relação à infinitude - do dos, mas suspensos, postos de lado, removidos da ordem do dia.
universo. 9 s.agrado é, podemos dizer, um reflexo dessa experiê~Jc:iq Não bem esquecidos, mas raramente lembrados. A preocupação
de desamparo. O sagrado é o que transcende os nossos poderes de com o "agora" não deixa espaço para o eterno nem tempo para refle-
compreensão, comunicação e ação. tir sobre ele. Num ambiente fluido, em constante mudança, a idéia
BO lde nt1dade Bau man 81

de eternidade, duração perpétua ou valor permanente, imune ao auto-suficientes e onipotentes, tendo deixado de lado os senti-
fluxo do tempo, não tem fundamento na experiência humana. mentos de inadequação, desamparo e falta de recursos (não nos li-
A velocidade da mudança dá um golpe mortal no valor da vramos dos sentimentos que Kolakowski apontou como fontes da
durabilidade: "antigo" ou "de longa duração" se torna sinônimo de emoção religiosa). Em vez disso, é porque fomos treinados com a
fora de moda, ultrapassado, algo que "sobreviveu à sua utilidade" e finalidade de pararmos de nos preocupar com coisas que aparen-
portanto está destinado a acabar em breve numa pilha de lixo. temente estão muito além de nosso controle (e portanto também
Quando comparada ao tempo de vida dos objetos que servem sobre coisas que se estendem para além de nosso tempo de vida) e
à existência humana e às instituições que a estruturam, assim co- concentrarmos as nossas atenções e energias em tarefas de acordo
mo ao próprio estilo de vida, a existência humana (corpórea) pare- com o nosso alcance, a nossa competência e capacidade (indivi-
ce ter a maior expectativa de duração - na verdade, parece ser a duais) de consumo. Somos trainees aplicados e intel igentes, e as-
única entidade com uma expectativa de vida crescente, e não em sim exigimos que, para ganhar a nossa atenção, as coisas e os
processo de rápido encurtamento. Há cada vez menos coisas à nos- assuntos nos expliquem por que a merecem. E isso eles podem fa-
sa volta -tirando aquelas que são recortadas da vida quotidiana e zer por meio da convincente prova fornecida pelo seu uso. O atra-
mumificadas para o prazer dos turistas em momentos de lazer - so na satisfação não sendo mais uma opção sensata, tanto a entrega
que tenham visto o tempo anterior ao nascimento do indivíduo. quanto o uso, assim como a satisfação que os bens prometem, de-
Menos ainda que, tendo entrado em cena posteriormente, possam vem, além disso, ser instantâneos. As coisas devem estar prontas
ter a expectativa razoável de sobreviver a seus espectadores. para consumo imediato. As tarefas devem produzir resultados an-
A regra de "atrasar a satisfação" não parece mais um conselho tes que a atenção se desvie para outros esforços. Os assuntos de-
sensato como ainda era no tempo de Max Weber. As preocupações vem gerar frutos antes que o entusiasmo pelo cultivo se acabe.
registradas por Pascal assumiram um rumo diferente e inesperado: Imortalidade? Eternidade? Ótimo - onde está o parque temático
quem estiver interessado, nos dias de hoje, em coisas de longa du- em que eu posso experimentá-los imediatamente?
ração, melhor investir no prolongamento da vida corpórea in- Nós desembarcamos num país plena e verdadeiramente estra-
dividual do que em "causas eternas". Marchando nas colunas nho... Uma terra desconhecida, inexplorada, não-mapeada- nun-
avançadas do exército líquido-moderno, não entendemos mais os ca estivemos aqui, nunca ouvimos falar dela. Todas as culturas
homens-bombas que sacrificam a sua vida terrena, com todos os conhecidas, em todos os tempos, tentaram, com diferentes graus
prazeres que esta lhes pudesse reservar, por uma causa permanente de sucesso e insucesso, estabelecer a ponte entre a brevidade da
ou pela bem-aventurança eterna. Dado o seu caráter evidentemen- vida mortal e a eternidade do universo. Cada cultura ofereceu uma
te frágil e transitório, tudo que não seja a sobrevivência do indiví- fórmula para essa proeza de alquimista: transformar substâncias
duo parece um mau investimento. Sua única utilidade sensata é primárias, frágeis e transitórias em metais preciosos capazes de re-
servir à sobrevivência do indivíduo. Seu gozo e satisfação poten- sistir à erosão e de ser duradouros. Nossa geração talvez seja a pri-
ciais são mais bem saboreados e consumidos imediatamente, na meira a nascer e viver sem uma fórmula dessas.
hora, antes de começarem a esmaecer, como decerto ocorrerá. O cristianismo imbuiu a jornada humana sobre a Terra, risi-
Esse é, comprovadamente, o maior desafio que "o sagrado" já velmente curta, da importância extraordinária de ser a única opor-
enfrentou em sua longa história. Não que agora nos consideremos tunidade de determinar a qualidade da existência espiritual eterna.
82 Identidade Bauman 83

Baudelaire via a missão do artista como sendo a de retirar a semen ~ acusando~o de querer devorá~lo ou destruí~ lo, de ter a intenção vi-
te imortal do invólucro fugaz do momento. De Sêneca a Durkheim, ciosa e ignóbil de apagar a diferença de um grupo menor, forçá~ lo
os sábios viviam relembrando a todos que queriam ouvir que a ou induzi-lo a se render ao seu próprio "ego coletivo", perder
verdadeira felicidade (diferentemente dos prazeres momentâneos prestígio, dissolver-se... Em ambos os casos, porém, a "identida-
e ilusórios) só poderia ser obtida em associação com coisas dedu~ _ge" parece um grito de guerra usado numa luta defensiva: umindi-
ração maior que a vida corpórea de um ser humano. Para um lei~ yíduo contra o ataque de um grupo, um grupo menor e mais fraco
tor comum contemporâneo, tais sugestões são incompreensíveis e .(e por isso ameaçado) contra uma totalidade maior e dotada de
parecem redundantes. As pontes que ligam a vida mortal à eterni~ mais recursos (e por isso ameaçadora).
dade, laboriosamente construídas durante milênios, caíram em Ocorre, contudo, que a faca da identidade também é brandida
desuso. pelo outro lado- maior e mais forte. Esse lado deseja que não se dê
Nunca antes vivemos num mundo desprovido de tais pontes. importância às diferenças, que a presença delas seja aceita como
É muito cedo para dizer o que podemos encontrar, ou em que con~ .inevitável e permanente, embora insista que elas não são suficien-
dições poderemos nos ver envolvidos, vivendo num mundo assim. temente importantes para impedir a fidelidade a uma totalidade
mais ampla que está pronta a abraçar e abrigar todas essas diferen-
O filósofo de origem eslovena Slavoj Zizek produziu escritos arre- ças e todos os seus portadores.
batadores contra a chamada identidade ocidental. Mas devemos Pôde-se ver a faca da identidade brandida nas duas direções e
observar com amargura que as atuais tensões internacionais es- cortando dos dois lados nos períodos de "construção nacional":
tão sendo explicadas com a tese do choque de civilizações. Pare- em defesa de línguas, memórias, costumes e hábitos locais, meno-
ce que todos os diferentes significados associados ao uso do res, contra "os da capital", que promoviam a homogeneidade e
termo "identidade" contribuem para minar as bases do pensa- exigiam uniformidade- assim como na "cruzada cultural" organi-
frrênto universalista, cuidadoso como este é em manter o frágil zada pelos defensores da unidade nacional que pretendiam extir-
equil1brio entre direitos individuais e direitos coletivos. Um verda- par o "provincianismo", o paroquialismo, o esprit de clocher das
deiro paradoxo, concorda? comunidades ou etnias locais. O próprio patriotismo nacional dis-
tribuiu as suas tropas em duas frentes: contra o "particularismo
Sim, a "identidade" é uma idéia inescapavelmente ambígua, uma local': em nome do destino e dos interesses nacionais compartilha-
faca de dois gumes. Pode ser um grito de guerra de indivíduos ou dos; e contra o "cosmopolitismo sem raízes", que via e tratava os
das comunidades que desejam ser por estes imaginadas. Num mo- nacionalistas da mesma forma que os nacionalistas viam e trata-
mento o gume da identidade é utilizado contra as "pressões coleti- vam os "provincianos grosseiros de mente limitada" devido à leal-
vas" por indivíduos que se ressentem da conformidade e se apegam dade a idiossincrasias étnicas, lingüísticas ou ritualísticas.
a suas próprias crenças (que "o grupo" execraria como preconcei- A identidade - sejamos claros sobre isso- é um "conceito alta:
tos) e a seus próprios modos de vida (que "o grupo" condenaria _mente contestado': Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar
como exemplos de "desvio" ou "estupidez", mas, em todo caso de ~erto de que está havendo uma batalha_ O campo de batalha é o lar
anormalidade, necessitando ser curados ou punidos). Em outro ~aturai da identidade. Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e
momento é o grupo que volta o gume contra um grupo maior, dorme e silencia no momento em que desaparecem os ruídos da
84 Identidad e Bauman 85

ref~e_ga. Assim,_ não s~pQ~e eyit!lt_q_l;!e ~la corte dos dois lados. Tal- prática das _guerras p~rj_de_rl_!!dade, p~in_'=.~io~_ c~~_!!!litários ~~~~e:
vez possa ser çonscientemente descartada (e comumente o é, por !.~~s ~ão alistados e dispostos no camp<_>_~e_l>atalha p!_óxirnos U_!IS
filósofos em busca de elegância lógica), mas não pode ser elimina- do~_o_~tros. Extraídos da con_fusão acalorada d<? campo de batalha
çia do pensamento, muito menos afastada da experiência humana. e submetidos ao julgamento da razão fria, contudo, eles i~edi_ata­
!-- identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a frag- ~~nt~ ~eass~~em a oposição. A vida é mais rica, e meno~_elffi'!_!l_~e_,
mentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recu- _9o que quaisquer princípios que p~~~en_d.~~-~ientá-la ...
sa resoluta a ser devorado ... Isso não significa, porém, que os filósofos um dia parem de
Ao menos em sua essência pura e explicitamente admitida, tentar endireitar o torto e conciliar o incompatível. (Um exemplo
o liberalismo e o comunitarismo são duas tentativas opostas de recente é a tentativa de Will Kymlicka de, pela argumentação, afas-
transformar a faca da identidade num sabre de uma só ponta. Eles tar o caso da confusão do campo de batalha com o propósito de
assinalam os pólos imaginários de um continuum ao longo do qual conduzir não apenas a um armistício temporário, mas a uma afini-
~disputam todas as verdadeiras batalhas pela identidade e se tra- dade essencial e uma aliança permanente entre os benignos princí-
çam todas as práticas identitárias. Cada um deles só explora plena- pios liberais e as duras exigências comunitárias. É tentador levar o
mente um dos dois valores similarmente acalentados e igualmente raciocínio de Kymlicka ad absurdum e sugerir que aquilo que ele
indispensáveis para uma existência humana decente e madura: a propõe é, em última instância, que o dever de aceitar a pressão do
liberdade de escolha e a segurança oferecida pelo pertencimento. E grupo e submeter-se a suas demandas é parte indispensável
o fazem, explícita ou implicitamente, elevando um dos dois valores do projeto de lei liberal dos "direitos individuais': ) Embora enge-
e rebaixando o outro. Mas as "batalhas por identidade realmente nhosos e logicamente elegantes, os esforços filosóficos no intuito
!ravadas" _ ~ __as "práticas identitá~i~s realmente e~ecutadas" não de eliminar essa genuína contradição da existência por meio da ar-
che~~m nem perto da pureza das teorias e plataformas políticas gumentação dificilmente teriam grande impacto sobre as atuais
~e~larad_as. São, e não pode~ deixar de ser, misturas das demandas guerras de identidade (não considerando óferecerem a absolvição
"liberais" pela liberdade de autodefinição e auto-afirmação, por e a bênção). Podem, entretanto, exercer uma influência bem adver-
UJ!1lado, e dos apelos "comunitários" a uma "totalidade maior do sa sobre a clareza de nossa visão e da compreensão daquilo que
gue a soma das partes': bem como à prioridade sobre os _irnPt1lsos vemos. Caminham perigosamente próximos da "novilíngua" de
destrutivos de cada uma das partes, por outro. George Orwell.
Os dois postulados se colocam, estranhamente, um ao lado Creio que todas essas considerações confirmam a sua suspeita
-~o_ outro. Sl1ac_oll.lpan~_ia parece "fazer SeJ1tid~-;~-q~-~~d~ d~~iarada de que "~if~_r~_J!t~~-s_i_gn_!ficad.~~as~~~ia9~~a_ou_~o_-~.<? termo 'identi-
. nos _te~~<?S -~-()(1Cr~_t~s dos conflitos específicos (genuínos ou su- dade' co~!_!"_i~l1~~-Ea!.a '!lJ~a_!.~~-a-~es c!_o pe_nsamento univer~a.!is-
postos)-:-: "Você prec~sa submeter os seus interesses pessoais em be- ta': As___~_a_!_a_tha~ A~ -~~_e~t_idad_~ _n_~~ _I~_<?~e~ realizar a sua taref~ ~~-
nefício d~ solidariedade de que o seu grupo necessit~ para ~e~istir a ~-ti~caç~o_!i~_r_ll _~ivid.ir tanto quan~o_, ou mais do que, unir. Su~
_um grupo ainda maior que pretende tirar de você tudo que lhe é
-intenções
- . . includentes -·se misturam
., . ~-· --·-·· · .
com (ou melhor, são com_Ele-
-- - - ---- ..... - --- -.
-----~----~- -· ---- ---- ---

~aro e violar os seus interesses. Unidos venceremos, separados se- ~~-das p_o_r!_suas_intenções de segregar, isentar e excluir.
remos der rotados" -, mas não se expressa em termos dos prin- Há apenas uma exceção a essa regra- a allgemeine Vereinigung
cípios universais que são e continuarão sendo incompatíveis. Na der Menschheit de Kant, a verdadeira e plenamente includente
86 Identidade Bauman 87

identidade da raça humana - , a qual, em sua visão, era exatamente mais esteve na ordem do d ia. Esse desafio deve ser en frentado hoje
o que a Natureza, tendo nos colocado num planeta esférico, deve- por uma espécie humana fragmentada, profundamente dividida,
ria ter visualizado para o nosso futuro. Em nossa prática atual, no desprovida de todas as armas, exceto o entusiasmo e a dedicação
entanto, a "humanidade" é somente uma das inumeráveis identi- de seus militantes.
dades presentemente engajadas numa guerra de atrito mútuo. A
despeito da verdade ou inverdade da suposição de Kant de que a Há, entretanto, uma nação que tem tentado institucionalizar a
unidade da espécie humana havia sido predeterminada como ore- presença simultânea de identidades coletivas, mas específicas,
sultado dessa guerra, a "humanidade" não parece gozar de nenhu- e, ao fazê-lo, acabou quase que relegando o caráter universalista
.p-la vantagem evidente em termos de armas ou estratégia em do direito moderno a umas poucas normas apenas. Refiro-me,
comparação com outros lutadores menores em tamanho, mas evidentemente, aos Estados Unidos. Mesmo nesse caso, porém,
aparentemente mais versáteis e dotados de melhores recursos. Tal çlevemos observar que colocar em questão um arcabouço insti-
como outras identidades postuladas, o ideal de "humanidade" co- -tucional mutável com base no reconhecimento de identidades
mo uma identidade plenamente abrangente só pode basear-se, em parciais se fez em nome de identidades ancestrais. O que não
· última instância, na dedicação de seus adeptos postulados. funcionou na mistura de raças?
Ao lado de seus competidores menos includentes, a "humani-
Mais uma vez a sua observação vai direto ao ponto. As duas coisas
dade" parece até agora prejudicada e mais fraca, e não privilegiada
caminham em par - a debilidade do conjunto de crenças, símbolos
e mais forte. Diferentemente de muitas outras identidades concor-
e normas que une todos os membros da sociedade politicamente
rentes, ela carece de instrumentos coercivos - instituições políti-
organizad a, e a riqueza, densidade e diversidade dos símbolos
cas, códigos jurídicos, tribunais de justiça, polícia - que poderiam
identitários alternativos (étnicos, históricos, religiosos, sexuais,
dar coragem ao medroso, determinação ao hesitante e solidez às
lingüísticos etc.). Há outros exemplos semelhantes aos Estados Uni-
realizações das missões proselitistas. Como já vimos anteriormen-
dos (mesmo que a mistura de raças seja uma invenção e um sonho
te, o "espaço de fluxos" planetário é uma "área livre da política e da
especificamente norte-americanos). A situação é bem similar em
ética". Qualquer ancoragem disponível para os princípios da polí- outras "terras de colonos" (Austrália, Canadá) em que os imigran-
tica, do direito e da ética está até agora sob a administração de tes não encontraram uma cultura historicamente formada, domi-
identidades menos includentes, parciais e divisivas. nante e inconteste que pudesse servir de padrão de adaptação e
Não importa o quanto tentemos estender a nossa imaginação, assimilação para todo o recém-chegado, exigindo e obtendo a obe-
a luta da humanidade por auto-afirmação não parece fácil, muito diência universal. Um bom número de imigrantes escolheu o novo
menos uma conclusão inevitável. Sua tarefa não é apenas repetir país esperando, pelo contrário, manter, desenvolver e praticar, sem
mais uma vez um feito realizado muitas vezes ao longo da história ser perturbados, as distinções religiosas ou étnicas que estavam
da espécie humana: substituir uma identidade mais estrita por ou- ameaçadas em seus países de origem. Nos Estados Unidos, na Aus-
tra, mais inclusiva, e afastar a fronteira da exclusão. O tipo de desa- trália ou no Canadá, a única coisa exigida dos recém-chegados era
fio enfrentado pelo ideal de "humanidade" não foi confrontado que jurassem fidelidade às leis do país (algo como o "patriotismo
anteriormente, pois uma "comunidade plenamente inclusiva" ja- constitucional" de Habermas) - fora isso, era-lhes prometida (e
88 ldent1dade Bauman 89

garantida) a liberdade total em todos os assuntos sobre os quais a rais, talvez haja mais desavenças e antagonismos do que unidade_.
constituição silenciasse. Üs-~;~flit~s são nu~erosos e tendem a ser amargos e violent(}~·
O que se considerava obrigatório como condição de cidada- Essa é·u;; a~eaça const~nte à integração social- e també~ --~~
nia tinha muito pouco conteúdo para constituir uma identidade ~e~timento de. segurança e auto-afirmação individual. Isso, por
de puro sangue, e assim, num grau maior do que em outros luga- sua vez, cria e mantém um estado de alta ansiedade. Como um as-
res, a tarefa de construir uma identidade plena se tornou um tra- sunto individual conduzido com poucos pontos de orientação (e
balho do tipo "faça você mesmo". E ela foi assumida e praticada que mudam constantemente),_a tarefa de construir uma iden~i~a­
como tal. Os Estados Unidos são uma terra não apenas de muitas <:1-~...P~ópria,_ torná-la coerente e submetê-la à aprovação p~blica
etnias e seitas religiosas, mas também de ampla, contínua e ob- exige atenção vitalícia, vigilância constante, um enorme e crescen-
sessiva experimentação com todos os tipos de "matérias-primas" -te volume de recursos e um esforço incessante se~-~~p~~_a_I_l~_de
que possam ser usados para dar forma a uma identidade. Quase descanso. A ansiedade aguda resulta disso e procura ca~~is<!_e es-
todos os materiais têm sido experimentados, e o que não foi ten- ~-oam~~t~: precisa descarregar os seus excedentes. Daí a tendência
tado acabará sendo - e o mercado de consumo se rejubila, ~ procurar "apoios à unidade" _s\lbstitutos - inimig?s co~parti­
enchendo galpões e prateleiras com os novos símbolos de identi- Íh~dos sobre os quais se possam descarregar o ódio acumulado, o
dade, originais e tentadores, já que não foram provados nem tes- pÚüco moral e os acessos de paranóia coletiva. Há uma demanda
tados. Há também um outro fenômeno a observar: a expectativa constante por inimigos públicos (os "comunistas debaixo da ca-
de vida cada vez menor da maioria das identidades simuladas, ma", a "subdasse", ou simplesmente "os que nos odeiam" ou "os
conjugada à crescente velocidade da renovação dos seus estoques. que odeiam nosso modo de vida") contra os quais indivíduos frag-
As biografias individuais são, com demasiada freqüência, histó-
mentados, zelosos de sua privacidade e mutuamente desconfiados
rias de identidades descartadas ...
podem unir-se numa versão diária dos "cinco minutos de ódio" de
A julgarmos o resultado disso tudo pelo exemplo norte- George Orwell. O patriotismo, em sua forma "constitucional",
americano, tal reação aos problemas de identidade não se mostrou
pode tornar-se, ao que parece, um assunto violento, cheio de som
uma bênção absoluta. Com o Estado político planejadamente neu-
e fúria. A lealdade à lei do país exige ser suplementada pelo ódio ou
tro e indiferente à "indústria doméstica" das identidades, e absten-
pelos temores compartilhados.
do-se de uma avaliação dos valores relativos das escolhas culturais,
bem como de promover um modelo compartilhado de convívio,
há poucos valores, se é que há algum, capazes de manter a socieda- Para continuar o debate sobre a mistura de raças, gostaria de su-
de unida. O "American way of life", a que os políticos norte- ~erir-lhe um tópico que implica respostas ambivalentes. Refi-
americanos constantemente se referem se condensa, em última fo-me à crítica de algumas intelectuais e filósofas feministas ao
instância, na ausência de qualquer "modo de vida" reconhecido e conceito de identidade. Mesmo nesse caso poderíamos dizer,
universalmente praticado que não seja o consenso, assumido de parafraseando Jean-Paul Sartre, que nascer mulher não é sufici-
boa vontade ou com relutância, de deixar a escolha do "modo de ~nte para nos tornar mulher. Parece-me que isso está presente
vida" à iniciativa privada e aos recursos à disposição dos cidadãos em algumas contribuições recentes oriundas da teoria feminista.
como indivíduos. Quando se trata de_.r..r.eferêJ?:5:ias e escolhas cultu~ Ou seja, o fato de que a identidade não é vista como coisa imutá-
90 Bauman 91
Ident idad e

vel, mas como algo em progresso, como um processo. Uma boa sem fundo) em termos de credo universal. A liberdade de alterar
forma de sair da gaiola da identidade, não concorda? qualquer aspecto e aparência da identidade individual é algo que a
maioria das pessoas hoje considera prontamente acessível, ou pelo
A natureza provisória de toda e qualquer identidade e de toda e menos vê como uma perspectiva realista para o futuro próximo.
qualquer escolha entre a infinitude de modelos culturais à disposi- Selecionar os meios necessários para conseguir uma identid~­
ção não é uma descoberta das feministas, muito menos invenção de alternativa de sua escolha não é mais um problema (isto é, se
delas. ~~~ê tem dinheiro sufici~nte para adquirir a parafernália obrigató-
A idéia de que nada na condição humana é dado de uma vez ria). Está à sua espera n~s lojas um traje que vai transformá-lo ime-
por todas ou imposto sem direito de apelo ou reforma - de que -diatamente no personagem que você quer ser, quer ser visto sendo
tudo que é precisa primeiro ser "feito" e, uma vez feito, pode ser e quer ser reconhecido como tal. Só para dar um exemplo bem re-
mudado infinitamente- acompanhou a era moderna desde o iní- cente: após a introdução das "multas em decorrência dos conges-
cio. De fato, a mudança obsessiva e compulsiva (chamada de várias tionamento" para quem dirigir carros no centro de Londres, ser
maneiras: "modernização", "progresso", "aperfeiçoamento': "de- "piloto de motoneta" se tornou imediatamente algo obrigatório
senvolvimento", "atualização") é a essência do modo moderno de para os londrinos preocupados com a moda (mas não, obviamen-
ser. Você deixa de ser "moderno" quando pára de "modernizar-se': te, por muito tempo ... ). Não foi só a motoneta que se tornou "um
quando abaixa as mãos e pára de remendar o que você é e o que é o must", mas também os trajes especialmente desenhados, indispen-
mundo a sua volta. sáveis para qualquer um que deseje apresentar em público a sua
A história moderna também foi (e ainda é) um esforço contí- nova " identidade de piloto de motoneta" - como uma jaqueta de
nuo para afastar os limites do que pode ser mudado à vontade pe- couro da Dolce & Gabana, um tênis vermelho de ca no alto da Adi-
los seres humanos e "aperfeiçoado" para melhor se adequar às das, um capacete prateado da Gucci ou óculos de sol ao estilo atlé-
necessidades ou desejos destes. Foi também uma busca incessante tico com lentes amarelas da Jill Sander. ..
por ferramentas e know-how que permitissem que os derradeiros Por outro lado, o verdadeiro problema e atualmente a maior
limites fossem cancelados e abolidos completamente. Chegamos preocupação é a incerteza oposta: qual das identidades alternativas
ao ponto da esperança de manipular a composição genética dos se- escolher e, tendo-se esco lhido uma, por quanto tempo se apega r a
res humanos, que até recentemente era o exemplo perfeito da imu- ela? Se no passado a "arte da vida" consistia principalmente em en-
tabilidade, da "natureza" a que os seres humanos devem obedecer. contrar os meios adequados para atingir determinados fins, agora
Seria estranho, sem dúvida, se até m esmo as facetas consideradas se trata de testar, um após o outro, todos os ( infinitamente nume-
mais obstinadas da identidade, como o tamanho e a forma do cor- rosos) fins que se possam atingir com a ajuda dos meios que já se
po ou o seu sexo, permanecessem por muito tempo corno uma ex- possui ou que estão ao alcance. A construção da identidade.assu-
ceção resistente a essa tendência moderna totalmente abrangente. miu a forma de uma experimentação infindável. Os experimentos
Levou alguns séculos para elevar os sonhos de Pico della Mi- jamais terminam. Você assume urna identidade num m omento,
randola (de os seres humanos se tornarem como o lendário Pro- mas muitas outras, ainda não testadas, estão na esquina esperando
teu, que alterava a sua forma de um momento para o outro e extraía que você as escolha. Muitas outras identidades não sonhad as ainda
o que quisesse naquele instante de um recipiente de possibilidades estão por ser inventadas e cobiçadas durante a sua vida. Vocé nun-
Identidade Bauman 93

ca saberá ao certo se a identidade que agora exibe é a melhor que rente e hesitante no interior da congregação) deve ser identificada
pode obter e a que provavelmente lhe trará maior satisfação. a tempo e cortada pela raiz.
O equipamento sexual de seu corpo é exatamente um desses O outro desenvolvimento talvez possa ter as mesmas raízes
recursos à disposição que, como todos os outros, pode ser usado {ou seja, a nova forma líquida que a vida moderna assumiu). mas
para todo o tipo de propósito e colocado a serviço de uma ampla diz respeito basicamente aos selecionadores involuntários/com-
gama de objetivos. O desafio, ao que parece, é esticar ao máxim o o pulsivos q ue todos nós nos tornamos em nosso ambiente social
potencial de geração de prazer desse "equipamento natural" - tes- desregulamentado, fragmentado, indefinido, indeterminado, im-
tando, uma por uma, todas as fo rmas conhecidas de "identidade previsível, desconjuntado e amplamente incontrolável. Já enfatizei
sexual" e talvez inventando outras mais no caminho. algumas vezes que, com todas as suas cobiçadas vantagens, ~-~o_!_1_­
_4içã_o ~~~ida_~e- ~.!!1 selecionador-por-neces~i d~~~A!~J!l~ém urtla
Um dos fenômenos mais inquietantes que temos testemunhado é experiência totalmente desaleJ1t~dora. A sua vida é ':l.I?la yi<!_~ inse-
o Tundamentalismo religioso. Além das discussões teológicas que gura. O v·al~~ c~~~picuamente ausente é o da fé e o da confianç~~
têm acompanhado a difusão desses movimentos, o seu caráter -a~sim também·o·da auto-afir~ação. O fundamentalismo (incluin-
essencialmente político me parece auto-evidente, sejam na Índia, .do. ~ r~ligi~~~)-_~i~~~e _essi_~_a!_?r: Invalid~ndo ante~ip;damente to~
no mundo árabe ou mesmo no conservadorismo religioso nos das as proposições concorrentes e recusando o diálogo e a
Estados Unidos. Esse fenômeno já chegou até mesmo ao Estado discussão com dissidentes e "heréticos': -~~lJlStila um ~l]_ti_~ento <!t:
de Israel. O que você p·ensa do fundamentalismo religioso? certeza e elimina todas as dúvidas do cód~(). ~~-~<2.._1!.lP2.r_!~~(!ll_to
~imples, de f'áZif~~~..?~~~o~<J?i?~~~~:_~ Tr~-n~m_ite um~~onfortáve~
~e~sação ~~~-~~guranç~_ ~--s~r g~!'!~a ~ sab?r~ada_ d_e.~tr<? d9~ _l!;luros
As três grandes religiões - cristianismo~_i~~amismo e judaísm2 .- ~ltos e i_~pe11etráv_ei~ que is9_la_rn ~- caos reinante }á fora.
têm , todas elas, os seus fundamentalismos. E podemos presumir Certas variedades de igrejas fundamentalistas são particu-
que o fundamentalismo religioso contemporâneo seja um efeito larmente atraentes para a parcela destituída e empobrecida da
combinado de dois desenvolvimentos em parte relacionados, em população, aqueles que são privados da dignidade humana e hu-
parte distintos.
milhados - pessoas que praticamente só podem contemplar, com
Um deles é a erosão- e a ameaça de mais erosão - da essência, um misto de inveja e ressentimento, a festança consumista e as ma-
do rígido cânone que mantinha unida a congregação de fiéis. Esse neiras despreocupadas dos abastados (os muçulmanos negros nos
cânone está cada vez mais desgastado e borrado em suas bordas, Estados Unidos e os imigrantes sefardis reunindo-se na sinagoga
sua costura se desfazendo e até se despedaçando. As seitas, q ue oriental num Estado de Israel governado por asquenazes são
as igrejas vêem com apreensão como, comprovadamente, a m aior exemplos espetaculares, embora estejam longe de ser os únicos).
ameaça à sua unidade, se multiplicam - e as igrejas são forçadas a Para essas pessoas, as congregações fundamentalistas fornecem
assumir a posição de fortalezas sitiadas e/ou instituições em "con- um abrigo tentador e agradável que não pode ser encontrado em
tra-reforma permanente". O cânone da fé precisa ser defendido a outros lugares. Ess~~ c.;ongreg~~~~~ ~~~-u!E_~~ -?.b~~~Sõ.~~-e_ ~~y~r~~
unhas e dentes e reafirmado diariamente, distração é suicídio, vigi- abandon~dos p~rum Estad~ ~oc_i~l_ell! proce~so de encolhimento.
lância é a ordem do dia, a "quinta coluna" (qualquer coisa indife- Também oferece'!l () ~~_gredient~_ mais penosamente ausente de
94 Identidade Bauman 95

uma vida digna, e que a sociedade em geral lhes recusa: um senso ções locais para pro blemas gerad os globalmente. Os problem as
de propósito, de uma vida (ou m o rte) significativa, de um lugar globais só podem ser resolvidos, se é que podem, por ações globais.
. correto e decente no siste ma geral das coisas. Também prometem Buscar salva r-se dos efeitos perniciosos d a globalização descontro -
defender a sua fé co ntra as "identidades" vigentes, estereotipantes lada e irrefreada retira ndo-se para u m bairro acon chegante, fe-
e estigma tizantes impostas pelas forças que gove rnam o "mundo chando os portões e baixando as janelas só ajuda a perpetuar as
lá fora" inóspito e hostil - ou mesm o voltam as acusações con tra condições de ilegalidade ao estilo "faroeste" ou "terra de n in-
os acusado res, p roclamando que "o negro é lindo" e assim trans- guém", de estratégias do tipo "salve-se quem p uder", de desi-
. formando os supostos passivos em ativos. gualdade feroz e vulnerabilidade universal. As forç;;l~__g_l~bai~-
O fundamentalism o (incluindo o religioso) não é apenas um 5!_~_sc~~_!~ola_~as ~- des!~J.!~iyas_ §~ n.u~r~rn ci~ fragJ!leptação do palco
fenômeno religioso. Sua energia tem muitas fontes. Para ser plena- político e d a cisão de uma política potencialmente global num
mente en tendido, d eve ser visto contra o pano d e fu ndo da n ova ~~-nj unto ~e egoísmos locais numa d ispu ta sem fim, barganhan do
~esigualdade e d a injustiça incontrolável que reina m no espaço _po r uma fatia m aior das migalhas q ue caem da mesa festiva dos ba-
global. -~9-~~ -'l:s..sa~a.l!t_~~ _globais. Qualquer um que defenda "identidades
I_o~~is"c~~_?._ um an tídoto contra os malefícios dos globalizado res
Ao longo dos últimos anos, temos testemunhado o crescimento -~s_t ~ jogando_o j ogo deles- e está nas m ãos d eles.
cle um tipo muito diferenciado de movimento social que é contra A glo balização atingiu agora u m ponto em que não há volta.
a globalização neoliberal. Um movimento que freqüentemente Todos nós d ependem os uns dos o utros, e a única escolha que te-
fala as línguas das identidades locais, ameaçadas pelo desenvol- mos é entre garantir mutuamente a vulnerabilidade d e todos e ga-
vimento econômico. Entretanto, eu sinto que, nesse mesmo mo- rantir mutuam ente a nossa segurança comum. Curto e gr()~SC?.:_~
vimento, parece haver uma forte ambivalência. A identidade
nadam os juntos ou afundam os juntos: Çr~io g_u <:_P.~!~J~E~~e_~~~Y~.~
pode ser um caminho para a emancipação, mas também uma
na histó ria d a humanidade o auto -interesse e os princípios éticos
forma de opressão. O que você pensa disso?
de respeito c atenção mút uos de todos os seres humanos apontam
_na mesma _d i':_eção e exigem a m esma estratégia. De maldição, a
Evidentem ente, é cedo dem ais para fazer a avaliação final do signi-
globalização pod e a té transformar-se e m bênção: a " h umanidade"
ficad o histórico dos cham ados m ovimentos "antiglobalização".
nunca teve uma oportunidade m elhor! Se isso vai acontecer, se a
Penso, d iga-se d e passagem, que o term o é equivocado. Não se
chance será a proveitada a ntes que se perca, é, porém, uma questão
~ode ser "con tra a globalização': da mesma forma que não se pode
em aberto. A resposta depende de nós .
.Ser con tra um eclipse do Sol. O problem a, e o próprio tema do m o-
vi men to, não é com o "desfazer" a unificação do planeta, mas como Não vivemos o fim da história, nem mesmo o princípio do fim .
domar e cont rolar o s p rocessos, até agora selvagens, da globaliza- Est amos n o limiar de outra gra nde transformação: as forças globa-
ção- e como transformá-los de am eaça em oportunidade para a __is desc~_nt~~(lladas, ~ sel1_~. ~.fe~!os cegos e_ doloroso~, ~evem ser PC!~t~~
humanidade. sob o controle pop ular dem ocrático e fo rçad as a respeitar e obser~
Uma coisa, porém, p recisa ficar clara: "pense globalmente, aja yar os p rincípios éticos da coabitação humana e da j ustiça_ s_?~i~l.
localmen te" é um lem a mal concebido e até perigoso. Não há solu- Que formas institucio nais essa tra nsfo rmação produzirá, ainda é
96 ldent1d ad e Bauman 97

difícil conjeturar: a história não pode ser objeto de uma aposta an- isso nos são acessíveis e tendem a ser entusiasticamente adotados
tecipada. Mas podemos estar razoavelmente seguros de que_()!_~~~ por milhões.
p_elo._q~al essas formas terão de p~s~~r p~r~_ poderem cumprir opa- Você diz "falsas identidades': .. mas só pode dizer isso pressu-
pe_l_E_r~~~.'!9ido_s~rá _o_de elevar_as !10~sa_s identidades ao nível mun- pondo que exista algo como uma única "identidade verdadeira".
dial- ao nível da humanidade. Essa pressuposição, entretanto, não parece verossímil para pessoas
que vivem correndo atrás de modismos passageiros - sempre e
-Cedo---···
ou-------------
tarde teremos
----.
de tirar conclusões de nossa irreversí-
--·-··· . -··- ......... ----...------------
apenas modismos, mas sempre obrigatórios enquanto estiverem na
~~~ ~e_Ee!1_~~r.!~_a
mú!ua. A menos que se faça isso, todos os ganhos
moda ... Foi assim que Peer Gynt, o herói de Henrik Ibsen, obceca-
que os grandes e poderosos obtêm em condições de desordem glo-
do a vida toda por encontrar a sua "verdadeira identidade'~ resu-
bal (e que os fazem ofender-se e resistir diante de qualquer tentati-
miu a sua estratégia existencial: "Tentei fazer o tempo parar -
va de estabelecer instituições mundiais de controle, direito e
dançando!"
justiça democráticos) continuarão sendo obtidos a custos enor-
Peer Gynt, a peça cujo texto foi publicado em 1867, deveria ser
mes em termos da qualidade de vida e da dignidade de incontáveis
lida e sobre ela se deveria ponderar nos dias de hoje por todas as
seres humanos, aumentando ainda mais a insegurança e a fragili-
pessoas frustradas e perturbadas pelo caráter ilusório da identida-
dade, já terríveis, do mundo que habitamos conjuntamente.
de- e isso significa, com efeito, todo mundo. Todos os problem as
atuais foram, profeticamente, previstos e abordados nela.
Um dos meios, dos instrumentos de jogar com a identidade é a Aquilo que Peer Gynt temia acim a de tudo era "saber que você
Internet. De fato, na rede mundial de computadores podemos nunca consegue libertar-se", e "ficar preso" a uma identidade "pelo
nos comunicar criando falsas identidades. Você não acha que a resto de seus d ias".' 9 "Essa coisa de não se ter um plano de retirada...
questão da identidade, especificamente no ciberespaço, se de- Essa é uma condição à qual nunca vou me acomodar." Por que essa
sintegra até se tornar apenas um passatempo? perspectiva era tão aterrorizante? Porque "quem sabe o que está
depois da esquina?". O que hoje parece belo, confortável e nobre
Em nosso mundo fluido, comprometer-se com uma única identi- pode vir a ser, uma vez atravessada a esquina, feio, desajeitado e
dade para toda a vida, ou até menos do que a vida toda, mas por desprezível. Para escapar a essa eventualidade nada invejável, Peer
um longo tempo à frente, é um negócio arriscado. As identidades Gynt decide-se pelo que só podemos chamar de "golpes preven-
são para usar e exibir, não para armazenar e manter. Isso tudo já se tivos": "Toda a arte de assumir riscos, I de agir usando o poder da
segue ao que conversamos até aqui. Mas se é essa a condição em mente, I é esta: manter a sua liberdade de escolha", "saber que ou-
que todos nós temos de conduzir, a contragosto, os nossos assun- tros dias virão", "saber que atrás de você sempre há I uma ponte, se
tos do dia-a-dia, seria insensato culpar os recursos eletrônicos, precisar bater em retirada." Para fazer essa estratégia frutificar, Peer
como os grupos de bate-papo da Internet ou as "redes" de telefones Gynt resolve (equivocadamente, como se dá a perceber no fim da
celulares, pelo estado das coisas. É justamente o contrário: é por- história) "cortar os laços que te estão prendendo I em toda parte,
que somos incessantemente forçados a torcer e moldar as nossas ao lar e aos amigos - I lançar aos céus todos os teus bens terrenos-
identidades, sem ser permitido que nos fixemos a uma delas, mes- I dar um carinhoso adeus aos prazeres do amor". Mesmo ser impe-
mo querendo, que instrumentos eletrônicos para fazer exatamente rador pode ser um negócio arriscado, carregado de obrigações e
98 Identidade Bauman 99

sujeições em demasia. Gynt desejava apenas ser "o Imperador da A ambivalência contínua resulta em dissonância cognitiva,
Experiência Humana". Ele seguiu essa estratégia do princípio ao estado mental notoriamente aviltante, incapacitante e difícil de
fim, apenas para indagar ao fim de sua longa vida, confuso, triste e agüentar. Traz, por sua vez, o repertório usual de estratagemas ate-
perplexo: "onde esteve Peer Gynt todos esses anos? ... Onde estive nuantes, entre os quais o rebaixamento, o menosprezo e a deprecia-
eu mesmo, o pleno, o verdadeiro homem?" Somente Solveig, o ção de um desses dois valores inconciliáveis constituem o recurso
grande amor de sua juventude, que permaneceu fiel quando o seu mais comum. Submetidos a pressões contraditórias, muitos relacio-
amor resolveu tornar-se o Imperador da Experiência Humana, namentos, de qualquer modo destinados a durar apenas "até segun-
poderia responder a essa pergunta- e o fez. Onde estavas? "Na mi- da ordem", terminarão. Terminar é uma expectativa razoável, algo a
nha fé, na minha esperança e no meu amor." se pensar antecipadamente e para o que se deve estar preparado.
Hoje em dia, um século e meio depois, somos consumidores Quando a alta probabilidade da perda é calculada no processo
numa sociedade de consumo. A sociedade de consumo é a socieda- de atar os laços do relacionamento, a precaução e a prudência
de do mercado. Todos estamos dentro e no mercado, ao mesmo aconselham a tomar cuidado com a pilha de lixo com muita ante-
tempo clientes e mercadorias. Não admira que o uso/consumo das
cedência. Afinal, planejadores prudentes não se arriscariam (pelo
relações humanas, e assim, por procuração, também de nossas
menos nos Estados Unidos) a começar a construir um prédio sem
identidades (nós nos identificamos em referência a pessoas com as
terem obtido a permissão para demoli-lo; generais relutam em en-
quais nos relacionamos), se emparelhe, e rapidamente, com opa-
viar as suas tropas para a batalha sem que se preveja um cenário de
drão de uso/consumo de carros, imitando o ciclo que se inicia na
retirada verossímil; e empregadores de toda parte se queixam de que
aquisição e termina no depósito de supérfluos.
o custo dos direitos adquiridos pelos empregados e as restrições im-
Um número crescente de observadores tem a razoável expec-
postas no que se refere à demissão destes é que tornam pratica-
tativa de que amigos e amizades desempenhem um papel vital em
mente impossível ampliar o nível de emprego.
nossa sociedade profundamente individualizada. Com as estrutu-
As parcerias de engajamento instantâneo, consumo rápido e
ras dos tradicionais sustentáculos da coesão social em processo
descarte imediato têm seus efeitos colaterais desagradáveis. O es-
de desagregação acelerada, as relações tecidas com a amizade
pectro da pilha de lixo nunca está distante. Afinal de contas, a velo-
poderiam tornar-se nossos coletes ou botes salva-vidas. Ray Pahl,
destacando que em nossos tempos de amizades escolhidas, "a rela- cidade e os depósitos de lixo estão disponíveis a ambos os lados.
ção social arquetípica da escolha" é a nossa escolha natural, chama Você pode acabar numa situação como a descrita por OI iver James:
a amizade de "comboio social" da vida na modernidade tardia.'" A envenenado por uma "constante sensação de que faltam outras pes-
realidade, contudo, parece ser um pouco menos direta. Nesta vida soas em sua vida, com sentimentos de vazio e solidão semelhantes
"moderna tardia", ou líquido-moderna, os relacionamentos são ao de privação"." Você pode "temer eternamente ser abandonado
um assunto ambíguo e tendem a ser o foco da mais aguda e ener- por parceiros amorosos e amigos".
vante ambivalência: o preço da companhia que todos nós ar- O que todos nós parecemos temer, quer estejamos ou não so-
dentemente desejamos é invariavelmente o abandono, pelo m enos frendo de "depressão dependente", seja à luz do dia ou assom-
parcial, da independência, não importa o quanto possamos dese- brados por alucinações noturnas, é o abandono, a exclusão, ser
jar aquela sem este ... rejeitado, ser banido, ser repudiado, descartado, despido daquilo
100 ldent1dade Bauman 101

que se é, não ter permissão de ser o que se deseja ser. Temos medo deiras redes de parentesco, amizade e irmandade de destino
de nos deixarem sozinhos, indefesos e infelizes. Tememos que nos costumavam oferecer de maneira trivial, com ou sem os nossos es-
neguem companhia, corações amorosos, mãos amigas. Receamos forços. As agendas dos celulares ocupam o lugar da comunidade
ser atirados ao depósito de sucata. O que mais nos faz falta é a cer- que nos falta, e a esperança é que substituam a intimidade perdida.
teza de que isso não vai acontecer- não conosco. Sentimos falta da Espera-se que agüentem uma carga de expectativas que lhes é im-
garantia de exclusão da ameaça universal e ubíqua da exclusão ... possívellevantar, muito menos sustentar.
Os horrores da exclusão emanam de duas fontes, embora ra- Andy Hargreaves, se posso citá-lo uma vez mais, escreve sobre
ramente tenhamos clareza sobre sua natureza, muito menos nos as "séries episódicas de interações diminutas" que estão cada vez
esforcemos para distingui-las entre si. mais substituindo "as conversas familiares e os relacionamentos só-
Ocorrem as mudanças e os deslocamentos aparentemente lidos". H Expostos aos "contatos facilitados" pela tecnologia eletrô-
aleatórios, fortuitos e totalmente imprevisíveis daquilo que, por nica, perdemos a habilidade de nos engajar em interações espontâ-
falta de um nome mais preciso, chamamos de "forças da globaliza- neas com pessoas reais. Na verdade, ficamos com vergonha dos
ção". Elas transformam a ponto de tornarem irreconhecíveis, e sem contatos frente a frente. Tendemos a pegar os celulares e apertar fu-
aviso, as paisagens e perfis urbanos a nós familiares em que costu- riosamente as suas teclas e escrever mensagens a fim de escapar-
mávamos lançar as âncoras de uma segurança duradoura e confiá-
mos de ser transformados em reféns do destino- no intuito de
vel. Elas realocam as pessoas e destroem as suas identidades sociais.
escaparmos de interações complexas, confusas, imprevisíveis, difí-
Podem transformar-nos, de um dia para outro, em vagabundos
ceis de interromper e de abandonar com as "pessoas reais" que es-
sem teto, endereço fixo ou identidade. Podem retirar os nossos re-
tão fisicamente à nossa volta. Quanto mais amplas (ainda que mais
gistros de identidade ou invalidar as identidades registradas. E nos
superficiais) são as nossas comunidades fantasmas, mais atemori-
lembram, dia após dia, que podem fazer tudo isso com impunida-
de- quando jogam nas soleiras de nossa porta aquelas pessoas que zante parece a tarefa de construir e manter as verdadeiras.
já foram rejeitadas, forçadas a fugir para salvar a vida ou a se afas- Como sempre, os mercados de consumo estão ávidos para nos
tar de casa para obter meios de permanecer vivas, despojadas de livrar desse destino. Seguindo uma indicação de Stjepan Mes-
sua identidade e auto-estima. Hoje em dia, nada nos faz falar de trovic,Jj Hargreaves sugere que "as emoções são extraídas desse mun-
modo mais solene ou prazeroso do que as "redes" de "conexão" ou do faminto por tempo e de relacionamentos atrofiados e reinvesti-
"relacionamentos", só porque a "coisa concreta" - as redes firme- das em produtos de consumo. A publicidade associa os automóve-
mente entretecidas, as conexões firmes e seguras, os relacionamen- is com a paixão e o desejo, e os telefones celulares com a inspiração
tos plenamente maduros- praticamente caiu por terra. e a lascívia." Não importa, porém, por mais que tentem os comer-
Eu precisava desta versão alongada para confrontar a sua per- ciantes, a fome que prometem saciar não desaparece. Os seres hu-
gunta: explicar que, se falamos compulsivamente sobre redes e ten- manos podem ser reciclados em produtos de consumo, mas estes
tamos obsessivamente evocá-las (ou pelo menos evocar os seus não podem ser transformados em seres humanos. Não em seres
fantasmas), a partir dos "namoros rápidos" e dos encantamentos humanos do tipo que inspira a nossa busca desesperada por raízes,
mágicos dos "sistemas de mensagens" dos telefones celulares, é por- parentesco, amizade e amor- não em seres humanos com que pos-
que sentimos dolorosamente a falta das redes seguras que as verda- samos identificar-nos.
102 Identidad e Bauman 103

Deve-se admitir que os substitutos consumíveis têm uma van- Fazendo palestras pela Europa e outros lugares, tem me chocado o
tagem sobre a "coisa concreta". Prometem libertar-nos das agruras fato de as perguntas da platéia serem as mesmas em toda parte ...
da negociação interminável e do compromisso incômodo. Juram A proclamação da era multicultural é, entretanto, ao mesmo
pôr um fim à desconfortável necessidade de auto-sacrifícios, con- tempo uma declaração de intenções: uma recusa a faz.er um julga-
cessões e consentimento mútuo que todos os vínculos íntimos e mento e assumir uma posição; uma declaração de indiferença, de
amorosos cedo ou tarde exigirão. Eles vêm com a oferta de recupe- eximir-se em relação a pequenas querelas com referéncia a estilos
rar as suas perdas se você achar difícil suportar todos esses es- de vida ou valores preferidos. Ela r_evel~_()_C_aráter "cultural!J2~nte
forços. Seus vendedores também oferecem a substituição fácil e onív_()ro"da elite global: vamos tratar o mundo como uma gigan-
freqüente dos produtos no momento em que você não veja mais tesca loja de departamentos c~m p~~telei~a~ c.heia.s das mais varia-
utilidade para eles, ou quando outros produtos, novos, aper- das ofertas, e vamos ficar livres para vagar de u_I_!l andar para o
feiçoados e ainda mais sedutores, apareçam pela frente. Em suma, ~utro, experimentando e testando cada artigo ~ f!l?S1~~· t::s_~olhen­

os bens de consumo encarnam a extrema revogabilidade e falta de do-os segundo nossa vontade.
finalidade das escolhas e a extrema descartabilidade dos objetos es- Essa é uma atitude de gente que viaja - mesmo quando
colhidos. Mais importante ainda, parecem colocar-nos sob con- permanece em suas casas ou escritórios. Não é, po rém, uma atitu-
trole. Somos nós, os consumidores, que traçamos a linha entre o de fácil de adotar para a grande maioria dos habitantes do planeta,
que permanece presa ao local de nascimento e, se desejasse ir para
que é útil e o que é lixo. Tendo produtos de consumo como parcei-
outros lugares em busca de uma vida melhor ou simplesmente di-
ros, podemos parar de nos preocupar em terminarmos no depósi-
ferente, seria detido na fronteira mais próxima, confinada em
to de lixo. Podemos mesmo?
campos para "imigrantes ilegais" ou "enviada de volta para casa''.
Essa maioria é excluída do banquete mundial. Para ela não existe
Do meu ponto de vista, a última pergunta sobre a Internet pede "bazar multicultural". Seus membros freqüentemente se encontram,
que atentemos para o papel dos novos meios de comunicação na como apontou Maria Markus, num estado de "existência suspen-
formação da opinião pública e da identidade coletiva. O que eu sa"," apegando-se à imagem de um passado perdido, mas que se
tenho em mente? Para mim, o livro precisa examinar dois outros sonha restaurar, e à do presente como uma aberração resultante do
temas: a identidade e os novos meios de comunicação, assim trabalho das forças do mal. Eles "se isolam" na atordoante cacofo-
como a "política da identidade" (a crise do multiculturalismo). nia das mensagens culturais.
Em nenhum momento dos últimos dois séculos, mais ou m e-
Já discutimos antes esse tema controverso, o "multiculturalísmo". nos, as linguagens faladas respectivamente pelas elites instruídas e
Eu disse então que o que é carne para alguns pode ser veneno para abastadas e pelo resto do "povo", assim como as experiências rela-
outros. f\ proclamação da "era multícultural" refl ete, em minha tadas nessas linguagens, foram tão diferentes entre si.
opini~o, a experiência de vida da nova elite global, a qual, sempre Desde o advento do Estado moderno, a elite instruída via a si
que viaja (e ela viaja muito, seja por avião ou na rede mundial de _me~_~a___(~()~reta ou equivocadamente, pa~; ~ be;.;; ~~ p~~-a- ~-~ai)
computadores), encontra o utros membros da mesma elite global .C9m9j ! _vanguarda, as unidades avançadas da nação: estamos aqui
que falam a mesma língua e se preocupam com as mesmas coisas. para conduzir o resto do povo para o lugar a que já chegamos- ou-
104 Identidade Bauman 105

tros nos seguirão, e é nossa tarefa fazer com que se movam rapi- viar a dor da exclusão. Criam uma ilusão de liberdade de escolha
damente. Essa noção de missão coletiva está agora quase que total- como aquela de que Peer Gynt desfrutou e usufruiu, embora sus-
me~te__abaf!_donada. O "multicu~tur_<lhs!llo" é um polimento nessa tentar essa ilusão fosse uma tarefa assustadora e um esforço peno-
retirada (ou uma desculpa para isso). É como se aqueles que lou- so - gerando muita frustração e proporcionando poucos ganhos.
:ra~ ~-~plaud~m as divisões-~~lticult~rai~-estivess~m dizendo: so- Os momentos de felicidade eram entremeados por longos perío-
!!l_()_~Ii_vres para nos tornar qualquer coisa que desejemos ser, mas dos de preocupação e tristeza.
"o povo" prefere ater-se à condição em que nasceu e f~_i ensinado a Se você deseja que eu ate os muitos fios que começamos a te-
per1!1_~11ecer. Que o faça- é problema dele, não nosso.
cer, mas na maioria dos casos deixamos soltos, eu diria que a ambi-
valência que a maioria de nós experimenta a maior _rarte do tempo
Você pergunta sobre o papel dos meios de comunicação na
ao t~?tar_!TIO~ r~sponder à questão da nossa identidade é_genuína.
produção das identidades atuais. Eu preferiria dizer que a mídia
A confusão que isso causa em nossas mentes també01é genuína. Não
fornece a matéria bruta que seus leitores/espectadores usam para
há receita infalível para reso~ver os problemas _a q_l1~ essa confusão
enfrentar a ambivalência de sua posição social. A maioria do públi-
nos conduz, e não há consertos rápidos nem formas livres d e risco
co de TV está penosamente consciente de que teve recusado o in-
para lidar com tudo isso. Também diria que, apesar de tudo, tere-
gresso nas festividades mundiais "policulturais". Não vive, e não
mos de nos confrontar vezes se~ cont~ com a ta~efa da "auto-
pode sonhar viver, no espaço global extraterritorial em que habita
identificação", a qual tem pouca chance de ser concluída com su-
a elite cultural cosmopolita. À multidão de pessoas que teve nega-
~esso e de m~do-plenamente satisfatório. É provável que fiquemos
do o acesso à versão real, a mídia fornece uma "extraterritorialida-
divididos entr~ ~ desejo de uma ideritid~d~ de nosso gosto e a esco-
de virtual", "substituta" ou "imaginada".
lha e o temo~ de_que, uma vez assumida essa identidade, possamos
O efeito de "extraterritorialidade virtual" é obtido sincroni- g~sco_~ri_r, como o fez Peer Gynt, que não existe uma "ponte, se
zando-se a mudança de atenção e seus objetos para as vastas exten- você tiver de bater em retirada".
sões do planeta. Milhões e centenas de milhões assistem às mesmas E tenha cuidado ao optar por não enfrentar o desafio. Lem-
estrelas de cinema ou celebridades pop e as admiram, mudam si- bre-se das palavras de Stuart Hall:
multaneamente do heavy metal para o rap, das calças boca-de-sino
para a última moda em tênis atléticos, fulminam o mesmo inimigo Já que a diversidade cultural é, cada vez mais, o destino do mundo mo-
público (global), temem o mesmo vilão (global) ou aplaudem o derno, e o absolutismo étnico, uma característica regressiva da moderni-
mesmo salvador (global). Por algum tempo, isso os eleva espi- dade tardia, o maior perigo agora se origina das formas de identidade
ritualmente acima do chão em que não lhes é permitido mover-se nacional e cultural - novas e antigas- que tentam assegurar a sua identi"
fisicamente. dade adotando versões fechadas da cultura e da comunidade e recusando
A sincronização dos focos de atenção e dos temas de conversa o engajamento ... nos difíceis problemas que surgem quando se tenta vi-
não é, evidentemente, equivalente a uma identidade compartilha- ver com a diferença. "
da, mas os focos e temas mudam com tal rapidez que dificilmente
há tempo para se compreender essa verdade. Tendem a desapare- Tente, o máximo possível, evitar esse problema.
cer de vista e ser esquecidos antes que tenha havido tempo para
tirar sua máscara. Mas antes de desaparecerem eles conseguem ali-
• Notas •

1. Ver Siegfried Kracauer, Ornament der Masse (Suh rkamp, 1963).


2. "Une généalogie d e l'insecurité contemporaine", entrevi.~ta com Philippe Ro ·
bert, Esprit (dez. 2002 ), p.35-58.
3. Gíorgio Agamben, Means without F.nds, trad. de Vincenzo Bínetti c Cesare Ca-
sarino ( University o f Minnesota Press, 2000), p.21.
4. Jorge Luis Borges, "Averroes' search", in Collected Fictions, trad. de Andrew
Hurley (Penguin, 1998), p.24 l.
5. Jonathan Matthew Schwartz, Pieces of Mosaic (Intervention Prcss, Holjberg,
1996), p. l32.
6. Lars Dencik, "Transform ation of Identities in Rapídly Changing Societies'; in
The Transformation of Modernity: Aspects of the Past, Present and Future of em Era,
o rg. por Mikael Carleheden e Michael Hviid Jacobscn (Ashgate, 2001), p.l94.
7. Clifford Stoll, Silicon Snakeoil (Doubleday, 1995 ), p.58.
8. Charles Handy, The Elephant and the Flea (Hutchinson, 200 I), p.204.
9. Andy Hargrcaves, Teaching the Knowledge Socíety: Education in rhe Age of Inse-
curity ( Open University Press, 2003 ), p.25.
10. Citado de Han na Mamzer, Tozsamosc w podrozy (Poznan, 2002), p. l 3.
11. Mo nika Kostera, Postmodernizm w zarzadzaniu (Varsóvia, 1996 ), p.204.
12. Richard Sennctt, "Flcxibilité sur Ia ville'; Maniere de Voir, 66 (nov.-dcz. 2002 ),
p.59-62.
13. Peter Beilharz, "The Logic of Polarization: Exclusion and Exploitation·: ma-
nuscrito.
14. Richard Ro rty, Achieving our Country (Harvard University Press, 1998),
p.79, 91.
15. Richard Ro rty, Philosophy and Social Hope (Penguin Books, 1999), p.203.

107
108 ldent1dade

16. Hauke Brunkhorst, "Global Society as the Crisis o f Oemocracy'; in The Trans-
formation of Modernity, p.233.
17. Ala in Peyrefitte, La société de confiance (Odile Jacob, 1998). p.515ss.
18. Robert Musil, Diaries 1899-1941, trad. de Philip Payne (Rasic Books, 1998),
p.52.
19. Beata frydryczak, Swiat jako kolekcja (0 mundo como uma coleção) (Huma- • (ndice •
niora, 2002), p.52-S.
20. Tom Nairn, "Demonizing Nationalism':London Review of Books, 23 fev. 1993.
21. René Girard, Le bouc émissaire (1982), aqui citado segundo a tradução de Yvon-
ne Freccero, The Scapegoat ( )ohns Hopkins University Press, 1986), p.l4, 16, 21.
22. Genevicve Zubrzycki, "The Classical Opposition betwecn Civic and Ethnic
Models os Nationhood: Ideology, Empírica! Reality and Social Scientific Analy-
sis': Polish Sociologica/ Review, 3 (2002), p.275-95.
23. Erich rromm, The Art of Loving (Thorson, 1995), p.vii.
24. Observer Magazine, 15 dez. 2002, p.43.
25. Barbara Ellen, "Breaking up May be Hard, but There ls No Harm in Men
Learning the Etiquette': Observer Magazine, 5 jan. 2003, p.7.
26. Ver Mikhail Bakhtin, Rabelais and his World (MlT Press, 1968) (traduzido da
edição russa de 1965 ). Ver também o adequado resumo de Kcn Hirschkop em Agamben, Giorgio, 25, 27, 46 Comunitarianismo, 84
"Fear and Democracy: an Essay on Bakhtin's Theory of Carnival'; Associations, 1 Amor, 68-73, 76, 78, 97, 102 Consumo, 70, 72, 81 , 88, 98-9, 101-2
( 1997), p.209-34.
Ansiedade, 11. 18, 35,38-9,41, 59, 64, Dencik, Lars, 30, 107
27. Blaise Pascal, Pensées, aqui citado segundo a tradução de A.). Krailshcimer
69,72,89 Derrida, Jacques, 20, 62
(Penguin, 1966), p.48.
Bakhtin, Mikhail, 77,79 Durkheim, Émile, 21-2, 29-30, 82
28. Deixe-me apenas fazer um comentário, sem desenvolver o assunto, que a vul -
nerabilidade - a incerteza e o desamparo - é também a qualidade da condição hu- Baude laire, Charles, 32, 82 Elite global, 13, 102-4
mana a partir da qual se molda o medo oficial: o medo do poder humano, feito e Bauman, Janina, 10, 16 Elten, Barbara, 71
mantido pelo homem. Esse "medo oficial" se constrói segundo o padrão do poder Baxter, Richard, 37
inumano refletido pelo (ou melhor, emanado do) "medo cósmico': Os poderes Emerson, Ralph Waldo, 77
terrenos devem moldar-se à semelhança de Deus no intuito de colocar alguns d e Beckett, Samuel, 20
Estado social, 50-1
Seus assombrosos e atcmorizantcs poderes sobre seus pró prios ombros. Eles lu- Beilharz, Peter, 39
Exclusão, 16, 28, 47, 53, 86, 99-100, 105
tam para se transforma r na fonte da incerteza e da incompreensão (a "Giasnost", Benjamin, Walter, 38
tal como planejada por Gorbachev, soaria como um dobre de ti nados para outros Fitoussi, Jean-Paul, 41
Boa sociedade, 41 -2, 51
fora da ditadura comunista); eles extraem seu poderio e autoridade da vulnerabi- Foucault, Michael, 32
lidade de seus súditos. Boltanski, Luc, 41
Frisch, Max, 45
29. Peer Gynt, aq ui citado segundo a tradução de Christopher Fry e Johan rillin- Borges, Jorge Luis, 20, 26
Frydryczak, Beata, 59
ger (Oxford University Prcss, 1970). Bourdieu, Pierre, 34, 41
Fundamentalismo, 11 , 13, 53.92-4
30. Ver Ray Pahl, On Friertdship (Polity, 2000). Brunkhorst, Hauke, 53
31 . Ver O liver )ames, "ConstantCraving", Observcr Magazine, 19 jan. 2003, p.7 1. Galbraith, Kenneth, 49
Camus, Albert, 59
32. Hargreaves, Teaching in the Knowledge Society, p.25. Chiapello, Eva, 41 Gasset, Ortega y, 59
33. Stjepan Mestrovic, Postemotional Society (Sage, 1997 ). Cidadania, 16, 38-9, 47. 49-51 , 66, 88 Giddens, Anthony, 71 , 72
34. Maria R. Markuz, "Cultural Pluralism and the Subversíon of the T1kcn for Cohen, Daniel, 40 Girard, René, 64
Granted' World'; in Race Criticai Theories, org. por Philomcna Essed c David Globalização, 2, 10-3, 18, 34, 47, 54, 65,
Comunidade, 12, 17, 19, 24, 27,31 -2, 37,
Theo Goldberg ( Blackwell, 2002), p.401.
54, 61 , 64, 66. 68, 82-3,86, 101 , 105 94-5, 100
35. Stuart Ha!l, "Culturc, Communit y, Nation", Cultural Studies, 3 ( 1993),
Comunidades guarda-roupa, 37 Goffman, Erving, 32-3
p.349-63.
109
110 ldent1dad e

Gramsci, Antonio, 10 Musil, Robert, 57, 69


Habermas, Jürgen, 48, 52, 87 Nabokov, Vladimir, 20
Hali, Stuart, 1OS Nacionalismo, 61 -3, 66
Handy, Charles, 31 Nairn, Tom, 61
Hargreaves, Andy, 31 , 101 Orwell, George, 85. 89
Heidegger, Martin, 23 Ossowski, Stanistaw, 9
Hochfeld, Julian, 9 Otto, Rudolph. 77
Humanidade, 44, 48, 50, 78, 86, 94-6 Pahl, Ray, 98
Ibsen, Henrik, 97 Pascal, Blaise, 78, 80
Identidade (definição), 21, 26, 44 Peyrefitte, Alain, 56
Individualização, 38 Reconhecimento, 42-3, 45, 61, 87
Insegurança, 8, 11 . 31 . 70, 96 Refugiados, 18, 46, 60
James, Oliver, 99 Reich. Robert, 43
Kant, lmmanuel. 29, 77, 85, 86 Renan, Ernest, 27
Kierkegaard, Soren, 9, 59 República, 48, 51
Kolakowski, Leszek, 79, 81 Ricoeur, Paul, 19
Kostera, Monika, 34 Robert, Phillippe, 24
Kracauer, Siegfried, 17, 21 Rorty, Richard, 43-4
Kymlicka , Will, 85 Rosanvallon, Pierre, 41
Lévi-Strauss, Claude, 55 Sagrado, o, 8-9, 62-3, 77-80
Levinas, Emmanuel, 74 Sartre, Jean-Paul, 55, 60, 89
Liberalismo, 84 Schmitt, Carl, 28
Lixo humano, 47 Schwartl, Jonathan Matthew, 29
Lukács, Gyorgy, 38 Sêneca, 82
Markus, Maria, 103 Sennett, Richard, 36,41
Marshall, Thomas, 34, 47-50, 110 Simmel, Georg, 12,21 -2, 29-30, 32
Marx, Karl, 10, 38-40, 47, 110 Steiner, George, 20
Meinecke, Friedrich, 66 Stoll, Clifford, 31
Mestrovic, Stjepan, 101 Subclasse, 45-6, 60, 89
Mirandola, Pico della, 90 Tuwim, Julian, 17
Modernidade líquida, 10-13 Weber, Max, 22, 27, 37, 80
Mondrian, Piet, 61 Wittgenstein, Ludwig, 20
Morton, Andrew, 71-2 Zizek, Slavoj, 82
Multiculturalismo, 11 . 102, 104 Zubrzycki, Genevieve, 66

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