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Lisboa e a imaginação gourmet do Império

da cidade-património e seus efeitos

Joana Braga

Na Rua Augusta, em Lisboa, é oferecida a quem passa a possibilidade de experimentar “o sabor


de Portugal em 60 segundos”. 1 Na Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau não se comem
simplesmente pastéis e bacalhau, receita tradicional da gastronomia portuguesa, aqui
‘criativamente inovada’, pela adição de queijo da serra amanteigado. Oferecem-nos, dizem,
vindos “das raízes do nosso passado, (…) os sabores e as memórias que constroem o nosso
presente”. 2 Chegam a falar-nos da dádiva de “uma nação inteira a ser descoberta”3 através do
palato, a qual, condensada em meia dúzia de dentadas, não nos demora mais de um minuto.
Expressão concreta de um simulacro, este espaço no centro da cidade é desenhado para atrair
uma classe média cosmopolita. No interior, um pequeno expositor exibe um conjunto de folhetos
que, disponíveis em múltiplas línguas, publicitam a loja enquanto nos tentam explicar o “conceito”
que lhe subjaz: a possibilidade de saborear a retórica de uma portugalidade reinventada em
apenas sessenta segundos! A sua leitura é o momento mais repulsivo de toda a experiência com
excepção do gosto e textura do próprio pastel, difícil de engolir para lá da primeira dentada. A
falta de qualidade da suposta iguaria, na qual assenta toda a mitologia recriada, torna-se questão
menor. O passado inventado e nela incorporado torna-se objecto-mercadoria para uma burguesia
internacional que vem a Lisboa em busca de novas vivências e que não tem tempo a perder. Para
quem esta é apenas mais uma situação de entre a colecção que irá consumir, sempre numa
corrida para acompanhar o relógio que dita o emprego do tempo ao longo da estada, distribuído
pelas novas experiências a acumular.

Exemplo quase anedótico, o pastel de bacalhau com queijo da serra é sintoma dos efeitos da
excessiva tematização patrimonial que se abate sobre Lisboa. Não só a materialidade construída
da cidade, como os bens e práticas culturais que nela têm lugar, que a compõem e por ela são
conformados, são agora expostos enquanto património singular, recodificado e corrompido para
assegurar o seu reconhecimento imediato a uma classe média global.

Lisboa Histórica, Cidade Global

A recente candidatura da cidade à Lista de Património Mundial, denominada ‘Lisboa Histórica,


Cidade Global’, validada pelo Comité da UNESCO há alguns dias, é epítome deste processo de
patrimonialização.4 Abrange a área envolvida pela cerca fernandina, e ainda, a Norte, o Hospital
de São José e seu entorno; a Ocidente, o Bairro Alto, o Príncipe Real e todo o Jardim Botânico,

1 Excerto retirado do folheto promocional da Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau.

2 Idem.

3 Idem
4
Para consultar a candidatura, visitar site da Câmara Municipal de Lisboa
Santa Catarina e a Madragoa, lugar do antigo Mocambo; a Oriente, a Mouraria, a Graça, São
Vicente de Fora e Santa Engrácia; e a frente ribeirinha entre o Cais do Sodré e Santa Apolónia.
Pretende patrimonializar não apenas a estrutura urbana (edificado, infra-estruturas, ruas, praças e
jardins, e suas relações de vistas) como também as dimensões ditas ‘intangíveis’ que se lhe
associam (valores e práticas sociais e culturais), sob o mote de Paisagem Urbana Histórica. O
texto que a apresenta e justifica enfatiza a singularidade do tecido urbano de Lisboa, um
palimpsesto que entrelaça diferentes camadas materiais e imateriais “das influências dos
diferentes povos e culturas que nela se cruzaram (…) testemunho excepcional da globalização
iniciada pelos navegadores portugueses no século XV”. 5 Um discurso de auto-glorificação do
passado nacional, que concebe Lisboa enquanto capital do império e cidade multicultural desde
quatrocentos, “epicentro de todo o processo de expansão marítima e comercial”6, e entende este
último, acriticamente, como o início da globalização. Ausente fica a problematização da violência
e das práticas extractivas do ambiente e da cultura dos territórios ‘descobertos’, condições
necessárias para que a cidade recebesse as “diversas influências culturais e preciosidades como
ouro, especiarias, plantas exóticas e medicinais e tecidos raros”7. E merece apenas uma alusão
de meia linha o tráfico de escravos.

Lisboa, Tejo e tudo

Correlata da classificação patrimonial de Lisboa, a requalificação da frente ribeirinha da cidade,


associada à criação de uma marca ‘Lisboa, Tejo e Tudo’ para a tornar reconhecível no regime
neoliberal de competição entre cidades. Do Cais do Sodré ao Campo das Cebolas, toda a área
se vê já reconfigurada, numa encenação contínua de situações e lugares para a contemplação do
Tejo. “A Lisboa contemporânea valoriza a Lisboa ancestral, redescobre o rio e requalifica a frente
ribeirinha. Salvaguarda o seu património arquitectónico, arqueológico, industrial e portuário,
integrando-o em novos espaços adaptados a funções culturais e de lazer”, pode ler-se no texto
de suporte da candidatura ‘Lisboa Histórica, Cidade Global’.8
A noção de que Lisboa tinha virado as costas ao Tejo, tão difundida nas últimas décadas, ignora
por completo a actividade portuária. Lisboa manteve sempre uma relação funcional com o rio e
precisamente por causa dela se anulou essa outra, óptica, associada ao lazer. Sinal da
desmaterialização das novas fontes de crescimento económico da cidade, deslocadas das
actividades produtivas que sustentaram o crescimento em décadas anteriores e actualmente
voltadas para a exploração comercial do valor ambiental e patrimonial dos espaços e das
práticas, a relação visual com o Tejo é privilegiada, transformando toda a frente ribeirinha em
cenário para consumo cultural e de lazer.

5
Câmara Municipal de Lisboa, 2016, “Formulário para Submissão à Lista Indicativa de Portugal a Património
Mundial”, pág. 6.
6
Câmara Municipal de Lisboa, 2016, “Formulário para Submissão à Lista Indicativa de Portugal a Património
Mundial, anexo 10 Descrição longa e comparação com restantes bens similares”, pág. 27.
7
Idem
8
“Formulário para Submissão à Lista Indicativa de Portugal a Património Mundial”; pág. 1

2
Lisboa e a melancolia imperial

O momento inaugural da criação de cenários para a celebração do rio e evocação mnemónica da


grandiosidade da nação foi a Exposição do Mundo Português (1940), que implicou a destruição
do tecido urbano e industrial da zona ocidental da cidade e o desalojamento dos seus habitantes.
No contexto de uma guerra na Europa e com a iminente invasão do país, “à falta de exército e
canhões, [a exibição de] todo o passado de Portugal barrava a entrada”.9 A Exposição, corolário
da Política de Espírito lançada por António Ferro na década anterior, foi um dos acontecimentos
mais marcantes da estratégia simbólica de auto-consagração do regime e legitimação ideológica
do colonialismo, da qual sempre foi pedra de toque a celebração da expansão portuguesa.
Quase 50 anos mais tarde, o mesmo veio a acontecer na zona oriental da cidade, reinventada
enquanto cenário urbano da Expo’98, concebida e programada no mesmo espaço de disputa
simbólica e ideológica em que se integraram as Comemorações dos Quinhentos Anos dos
Descobrimentos. Na passagem para o século XXI, em torno de um conjunto de eventos que se
pretendiam cosmopolitas, a memória da expansão e do seu significado foram abordados de
modo diferente do Estado Novo, recusando a anterior visão épica. Contudo, a renovação
discursiva não impediu a emergência de novos mitos ou reformulação de velhas fantasias
imperiais. Caso exemplar as novas metáforas com que se foi descrevendo o ideal humanista e
universalista da expansão. Substituindo a ultrapassada linguagem do ‘espirito de cruzada’,
ganharam expressão as ideias de encontro de culturas e da modernidade científica.

Propondo uma imagem de Lisboa entretecida com a grandeza dos ‘descobrimentos’, todos estes
gestos de patrimonialização e exposição do ambiente urbano vêm retrospectivamente definir a
cidade com base numa sacralização do passado assente na imaginação do império. A queda da
ditadura, o final das guerras coloniais, ou lutas de libertação, e as décadas de democracia que se
lhes seguiram não dissolveram esta imaginação que acabou por se manter sob a forma de
impensado.10 Mais, a patrimonialização da cidade e os discursos que a sustentam contribuem
para uma selecção da memória colectiva, da sua organização e visibilidade, pela conversão das
narrativas que veiculam em lugares-comuns do presente. São tecnologias institucionais de
produção de nostalgia, de reprodução de uma melancolia imperial que se incorpora em formas
de “nacionalismo banal”11 persistentes no quotidiano. A proposta, por parte da Câmara Municipal
de Lisboa, da criação de um ‘Museu das Descobertas’ inscreve-se neste investimento presente
da criação de cenários de rememoração para a reconstrução selectiva do passado colectivo,
sendo talvez o seu mais explícito exemplo.

9
Saint-Exupéry, 1943, “Lettre à un ottage,” na antologia De Fora para Dentro, 1973, editada por Fernando
Ribeiro de Mello, edições Afrodite.
10
Referência à ideia de impensado, como a faz ecoar o título de um livro de Eduardo Lourenço Do
colonialismo como nosso impensado, 2014, Lisboa: Gradiva.
11
Michael Billig, 1995, Banal Nationalism. Londres: Sage.

3
Lisboa como parque temático

A patrimonialização temática de Lisboa, tornando-a um grande cenário de celebração,


monumentalização e rememoração do passado, ao mesmo tempo que reproduz uma melancolia
colonial, sujeita a própria cidade a um processo de exposição que a vai fatalmente separar dos
usos e formas de habitação quotidianos que a mantêm viva. Entra assim no universo da auto-
representação onde se exibe enquanto vestígio de um passado excepcional entretanto
recodificado para garantir o seu entendimento. A cidade apresenta-se e representa-se de modo
previsível e calculado para assegurar a sua leitura temática, deixando visíveis traços das
operações de cristalização e artificialização a que é submetida. Iniciado com o objectivo de
explorar a singularidade da urbe, o processo de ‘museificação’ de Lisboa vem transformá-la num
parque temático do mito imperial, submetendo-a a uma lógica homogeneizadora conforme a um
modelo global.

No Plano Geral de Intervenção para a Frente Ribeirinha de Lisboa a linguagem remete


directamente para o valor económico do solo urbano, ao definir como principal objectivo “a
valorização da cidade de Lisboa no sentido de aumentar a sua competitividade enquanto cidade
acolhedora de pessoas, actividades e investimento”. 12 O destino da cidade sob o efeito do
parque temático não é outro que o da sua exploração económica. A mercantilização de um
inventado passado nacionalista em forma gourmet, à volta do qual se desenham filas de gente
em busca do sabor do império português, contido na massa de batata e bacalhau misturada com
queijo amanteigado, é uma manifestação do absurdo inscrito na tematização patrimonial que
avassala Lisboa, capturando todas as suas dimensões. Combinando a estratégia de
implementação de uma narrativa mítica de exaltação do passado nacional com o projecto de a
fetichizar como mercadoria nos circuitos de consumo cultural, as lógicas entrelaçadas de
tematização patrimonial e promoção mercantil da cidade, acabam por convertê-la num
espectáculo permanente.

Lisboa torna-se objecto-mercadoria nos circuitos de consumo cultural que exploram


economicamente a nostalgia, marca-registada na competição entre cidades pela sedução de
turistas e atracção de investimento financeiro internacional. Sob a égide da organização
neoliberal, todos os espaços e tempos da cidade, assim como as relações e práticas sociais e
culturais, são reduzidas a fontes de rendimento, a uma lógica de lucro; o seu valor é agora de
exposição e troca.

Braga, Joana. 2019. «Lisboa e a imaginação gourmet do Império: da cidade-património e seus


efeitos». Vicente, Símbolo de Lisboa, Mito Contemporâneo. Lisboa: Theya Editores; 138-143. ISBN:
978-989-8916-62-4.

12
Departamento de Planeamento Urbano da C.M.L. 2008, “Plano Geral de Intervenção para a Frente
Ribeirinha de Lisboa,” p. 2.

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