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Joana Braga
Exemplo quase anedótico, o pastel de bacalhau com queijo da serra é sintoma dos efeitos da
excessiva tematização patrimonial que se abate sobre Lisboa. Não só a materialidade construída
da cidade, como os bens e práticas culturais que nela têm lugar, que a compõem e por ela são
conformados, são agora expostos enquanto património singular, recodificado e corrompido para
assegurar o seu reconhecimento imediato a uma classe média global.
2 Idem.
3 Idem
4
Para consultar a candidatura, visitar site da Câmara Municipal de Lisboa
Santa Catarina e a Madragoa, lugar do antigo Mocambo; a Oriente, a Mouraria, a Graça, São
Vicente de Fora e Santa Engrácia; e a frente ribeirinha entre o Cais do Sodré e Santa Apolónia.
Pretende patrimonializar não apenas a estrutura urbana (edificado, infra-estruturas, ruas, praças e
jardins, e suas relações de vistas) como também as dimensões ditas ‘intangíveis’ que se lhe
associam (valores e práticas sociais e culturais), sob o mote de Paisagem Urbana Histórica. O
texto que a apresenta e justifica enfatiza a singularidade do tecido urbano de Lisboa, um
palimpsesto que entrelaça diferentes camadas materiais e imateriais “das influências dos
diferentes povos e culturas que nela se cruzaram (…) testemunho excepcional da globalização
iniciada pelos navegadores portugueses no século XV”. 5 Um discurso de auto-glorificação do
passado nacional, que concebe Lisboa enquanto capital do império e cidade multicultural desde
quatrocentos, “epicentro de todo o processo de expansão marítima e comercial”6, e entende este
último, acriticamente, como o início da globalização. Ausente fica a problematização da violência
e das práticas extractivas do ambiente e da cultura dos territórios ‘descobertos’, condições
necessárias para que a cidade recebesse as “diversas influências culturais e preciosidades como
ouro, especiarias, plantas exóticas e medicinais e tecidos raros”7. E merece apenas uma alusão
de meia linha o tráfico de escravos.
5
Câmara Municipal de Lisboa, 2016, “Formulário para Submissão à Lista Indicativa de Portugal a Património
Mundial”, pág. 6.
6
Câmara Municipal de Lisboa, 2016, “Formulário para Submissão à Lista Indicativa de Portugal a Património
Mundial, anexo 10 Descrição longa e comparação com restantes bens similares”, pág. 27.
7
Idem
8
“Formulário para Submissão à Lista Indicativa de Portugal a Património Mundial”; pág. 1
2
Lisboa e a melancolia imperial
Propondo uma imagem de Lisboa entretecida com a grandeza dos ‘descobrimentos’, todos estes
gestos de patrimonialização e exposição do ambiente urbano vêm retrospectivamente definir a
cidade com base numa sacralização do passado assente na imaginação do império. A queda da
ditadura, o final das guerras coloniais, ou lutas de libertação, e as décadas de democracia que se
lhes seguiram não dissolveram esta imaginação que acabou por se manter sob a forma de
impensado.10 Mais, a patrimonialização da cidade e os discursos que a sustentam contribuem
para uma selecção da memória colectiva, da sua organização e visibilidade, pela conversão das
narrativas que veiculam em lugares-comuns do presente. São tecnologias institucionais de
produção de nostalgia, de reprodução de uma melancolia imperial que se incorpora em formas
de “nacionalismo banal”11 persistentes no quotidiano. A proposta, por parte da Câmara Municipal
de Lisboa, da criação de um ‘Museu das Descobertas’ inscreve-se neste investimento presente
da criação de cenários de rememoração para a reconstrução selectiva do passado colectivo,
sendo talvez o seu mais explícito exemplo.
9
Saint-Exupéry, 1943, “Lettre à un ottage,” na antologia De Fora para Dentro, 1973, editada por Fernando
Ribeiro de Mello, edições Afrodite.
10
Referência à ideia de impensado, como a faz ecoar o título de um livro de Eduardo Lourenço Do
colonialismo como nosso impensado, 2014, Lisboa: Gradiva.
11
Michael Billig, 1995, Banal Nationalism. Londres: Sage.
3
Lisboa como parque temático
12
Departamento de Planeamento Urbano da C.M.L. 2008, “Plano Geral de Intervenção para a Frente
Ribeirinha de Lisboa,” p. 2.