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721863/NUDECRI eyal(ers unipade {UUPEL, Ne GHAMADA Le oe ARS procl c DATA © od pip-ID-3ttAOS Dados Internacionais de Catalogacio na Publicacao (CIP) Gadet, Frangoise; Pécheux, Michel A Lingua inatingivel -- Frangoise Gadet; Michel Paécheux ‘Tradugio: Bethania Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello -- Campinas -- Pontes, 2004. Bibliografia ISBN 85-7113-186-4 1. Andlise do discurso 2. Lingiiistica 3. Semantica 4. Linguagem e histéria I. Francoise Gadet Il. Michei Pécheux III. Bethania Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello(traducio) LV. Titulo CDD - 410 indices para catalogo sistematico: . Anilise do discurso : Analise semantica : Lingi 1 z 4, Linguagem e histéria 401.4 I. LINHA RETA, PENDULOS, ESPIRAIS... A reflexio sobre a linguagem nao tem, evidentemente, comego histé- rico assinalavel. Os historiadores da lingiiistica? restringem-se a buscar, no tempo e no espago das civilizagdes (a India, a Grécia, a cultura arabe, a Idade Média crista, etc.), algumas configuragdes polémicas em que, antes que se trate de “ciéncia lingilistica”, o fato da lingua ja se encontra no centro do debate. As duas controvérsias misturadas que, durante vari- os séculos, opuseram 0 aristotelismo 4 filosofia estéica, constituem um exemplo privilegiado disso: ‘com efeitos recorrentes ~ transformados ¢ deslocados ~ na histdria da lingitistica, até nos confrontos mais recentes. A primeira controvérsia ¢ constituida pelo duplo par natureza/con- vengdo. A posigio naturalista, defendida pelos estdicos, vé na linguagem uma atividade natural que reflete 0 ajuste harmonioso do homem com a natureza: as palavras sio imitagdes do mundo, reproduzem-no por ono- matopéia e simbolismo sonoros. A linguagem humana é, assim, o produ- to de uma relago natural de expressio que une 0 macrocosmo ao micro- cosmo; as “formas originais”, os “sons primitivos” da lingua aparecem, através das interpretagdes etimoldgicas livres, como tragos visiveis des- sa mesma harmonia. Os adeptos do convencionalismo, retomando a argumentagao de Aris- toteles em De interpretatione, retrucam que a relagao entre as palavras e as coisas, longe de ser um fato natural, resulta de uma convengio arbitra- ria. A lingua é um cédigo que forma sistema, um simbolismo superposto ao mundo exterior por efeito de atos humanos relacionados ora ds con- vengées tacitas do uso, ora a um exercicio legislativo explicito. A segunda controvérsia opée a tese analogista a tese anomalista. Para os defensores (aristotélicos) da analogia, os paradigmas formais (como a conjugagaio e a declinag4o) so a prova de que a lingua é, em grande parte, 0 produto de uma regularidade proporcional que traduz a existéncia de uma rede de principios arquiteturais, de uma ordem interna de construgao. Contra essa concepgao, os estdicos valorizam os casos em que a relacdo de proporgdo encontra-se rompida por uma “irregularidade”. Eles retiram dai o argumento para concluir pelo carater essencial da anomalia lingiiistica e para acusar os analogistas de serem to somen- te uma casta de gramiticos rigidos: dedicados a “corrigir” pretensos 29 defeitos de analogia, na verdade eles impdem sua ordem, insuportavel a lingua. . Assim foi formada, nos fios dessa dupla controvérsia, a trama hist6ri- ca de um jogo de palavras teérico-politico que afeta os termos da lei, da ordem, da regra e do cédigo. E sobre esse jogo com as palavras que se dividem, ainda hoje, os que pretendem teorizar sobre a lingua: — por um lado, os que, entendendo “principio” atras da palavra lei, “disposi¢io” atras da palavra ordem, “funcionamento” atras da palavra regra e “sistema” atras da palavra codigo, designam, assim, uma rede de relagoes internas, caracterizando em sua propria estrutura o real proprio de toda lingua (entre muitos outros: as gramaticas especulativas do final da Idade Média, os modistas, Pierre Hélie, a gramatica de Port-Royal, Louis Hjelmslev e Noam Chomsky); — por outro lado, os que, traduzindo lei por “obrigagio”, ordem por “mandamento”, regra por “regulamento” e codigo por “jurisdigao”, con- cebem toda lingua como o produto social precario de um estado de fato, resultante de uma longa série de decisdes acumuladas (a maioria dos historiadores antigos, as gramaticas empiristas do Renascimento, Vauge- las, os tedricos romanticos, Edward Sapir, Antoine Meillet e a sociolin- gilistica hoje). As posicdes, seguramente, mudaram de contetido ao longo das dife- rentes conjunturas tedricas atravessadas pela reflexdo lingtiistica até a sua forma atual; elas engendraram numerosas posi¢es secundarias, sus- cetiveis de miltiplas trocas de lugares*, chegando a aliangas, as vezes, paradoxais. Entretanto, a questao de um real da lingua‘ inscreve-se nessa disjunc&o maior entre a nogao de uma ordem propria 4 lingua, imanente a estrutura de seus efeitos, e a de uma ordem exterior, que remete a uma dominagao a conservar, a reestabelecer ou a inverter. Para os que sustentam que a lingua trabalha com a existéncia de uma ordem propria, 0 real da lingua reside naquilo que nela faz Um, a assegu- ra no Mesmo € no Idéntico e a opde a tudo o que da linguagem cai para fora dela, nesse infemo ininteligivel que os Antigos designavam pelo ter- mo de “‘barbarismo”: 0 campo do interdito na linguagem é, assim, estru- turalmente produzido pela lingua, do interior dela mesma. O barbarismo constitui a designagao arcaica, ao mesmo tempo lingiiistica & politica, do exterior da lingua. Ele é 0 sintoma, pela relagao com o nada, da primeira percepgo do impossivel. E por esse viés que uma reflexdo gramatical auténoma comega a se constituir. E justamente nesse ponto do interdito que os adversdrios dessa posi- Go situam suas suspeitas: cles ndio querem ser enganados por uma obri- gagio social dissimulada em uma ordem natural, por uma coagéo politi- ca, fazendo-se passar por necessidade lingiiistica, A ordem da lingua? 30 Nada mais do que a ordem politica na lingua. Uma incessante vigilancia de tudo o que — alteridade ou diferenga interna — arrisca questionar a construgo artificial de sua unidade e inverter a rede de suas obrigacdes. Nisso, diversas posig6es politicas puderam fixar-se: em uma defesa pa- randica da lingua®, ou em um fascinio pelo “bom selvagem’*, que supos- tamente teria o privilégio de poder romper a ordem da lingua. Entre 0 interdito e o impossivel, o corpo de praticas (progressivamen- te formadas na pré-historia da lingiiistica até a sua emergéncia cientifica) encontra-se, ao mesmo tempo, profundamente dividido. Em termos atu- ais, essa divisdo apresenta-se assim: —se a questio 6, antes de tudo, apreender as variagdes que afetam as formas de inscri¢do do sentido na matéria fonica ou grafica, e interpreta- los como repercussao da “vida social” sobre a lingua, o essencial da pratica consistira em observa-los e descrevé-los como dados lingiiisti- cos, insistindo-se em coloca-los em correlagao, para reconstituir a rede social de coagdes e de obrigagdes que as produziram; —se, a0 contrario, trata-se de cernir na lingua o efeito de uma causa- lidade estruturalmente auténoma, a pratica do lingitista consistira em cons- truir a teoria dessa estrutura, em raciocinar formulando hipéteses expli- cativas em um vaivém entre dados, fatos e teoria. O empreendimento lingtiistico encontra-se, assim, constitutivamente afetado por uma dupla deriva: a do empirismo, baseando-se principal- mente em uma concepgao historicizante dos “fendmenos sociais” e de- sembocando na figura contemporanea do sociologismo; a do racionalis- mo, tentando fundar, uma pela outra, a unidade da lingua e a coeréncia sistémica do pensamento, com a figura contemporanea do logicismo no horizonte. Ao longo do século XIX, assiste-se a instalago do que levara a essa configuracao atual. O formalismo do sistema prepara-se entre os partidarios da unidade, em relagaio mais ou menos clara com a constitui- io da logica moderna, enquanto que se manifesta a resisténcia dos par- tidarios da diversidade concreta (na dialetologia, por exemplo’). Essa dualidade contraditdria realiza-se materialmente na propria es- trutura das teorias lingiiisticas, e na historia de seus confrontos: em torno do par princeps dados/sistema, concepg6es diferentes entram em conflito. Uma marcha retilinea progressiva e continua, partindo dos dados para chegar a percepgio das estruturas (¢ a atitude de lingitistas como Emmon Bach, Nicolas Ruwet ou Christian Nique); um movimen- to pendular no qual a tendéncia empirista viria, em intervalos regula- res, questionar as construg6es tedricas racionalmente estabelecidas, para suscitar novas ou simplesmente moderar 0 frenesi sistémico pela recor- réncia as “realidades” lingiiisticas (o que ilustra, por exemplo, aatitude de Claude Hagége); enfim, compondo o desenvolvimento retilineo ea 31 oscilacao ciclica, a imagem sintética da espiral, bem conhecida pelos epistemélogos do “desenvolvithento cientifico” (por exemplo, as refle- xGes de R. Thom’), A série dessas metaforas (linha reta, péndulo ou espiral), que as filo- sofias espontaneas dos lingiiistas subentendem, parece condenada a repe- tir indefinidamente, sob diversas formas empiristas ou racionalistas, os atos imaginarios de “‘funda¢ao metodolégica”. Um deles, entretanto, J.-C. Milner, indiretamente designou a inutili- dade dessas metaforas cinematicas, fazendo, no seu Amour de la lan- gue*,com que 0 conjunto do debate concentre-se em um s6 € tinico ponto: ele substitui 0 falso debate metodoldgico entre o empirismo e 0 raciona- lismo por um debate sobre a questo do real da lingua, ou seja, segundo 0 nosso ponto de vista, sobre a posi¢ao materialista em lingilistica. Através de uma argumentagao da qual retomaremos alguns elementos decisivos mais adiante, Milner afirma sua tese: “tudo nao pode ser dito”; em outras palavras, toda lingua é afetada por uma divisao (figurada pela distingao entre o correto e o incorreto), que se sustenta pela existéncia de um impossivel, inscrito na propria ordem da lingu: “A lingua em si nao é nada mais do que essa divisao considerada em geral, uma lingua é uma forma particular desta divisao; um dialeto de uma lingua, uma reorganizacio especifica de uma divisao particular” (L'amour de la langue, p. 27). Assim 0 materialismo que Milner defende parece, a primeira vista, coincidir muito com a posi¢ao do racionalismo lingilistico classico, que ele, logo de saida, dispensa de toda responsabilidade politica em relacao a Ordem, separando a ordem da lingua (e a divisio que dela resulta) daquilo que ele chama “moedagens imaginarias” dessa divisao: “A mais conhecida e mais perigosa [dessas moedagens imaginarias] consiste em utilizar a linguagem da mestria, considerando 0 impossivel como uma obrigagao de um soberano — quer se trate de contrato, de ca- pricho, ou de consenso ticito. Sabe-se, no mais, que, desde sempre, os ditadores, de César a Stalin, preocuparam-se com a lingua, reconhecen- do nela a imagem mais fiel de um poder nu, que nao precisa nem mesmo dizer 0 seu nome. Por outro lado, parece que a causa da liberdade interes- sou-se pelo que se denuncia como 0 artificio das gramaticas ¢ a pretensao das suas regras — até afirmar que niio existe impossivel para a lingua” (L'Amour de la langue, p.27-28). NOTAS 1. No belissimo livro de M. Kundera, La vie est ailleurs (Kundera, M. A vida esté em outro Jugar. RJ: Nova Fronteira, 1992], um velho poeta surrealista é vaiado por um publico de jovens estudantes na Tehecoslovaquia recém-socialista de 1949, porque cle quis “acoplar 32 2 © socialismo ao surrealismo, 0 gato a0 cavalo, 0 futuro a0 passado!”. Altivo e sozinho, cle grita-lhes que “a liberdade é o devér da poesia e que a metafora também merece que se lute por cla”. Que “ele acoplaria o gato 20 cavalo € a arte moderna ao socialismo ¢ que, se isso fosse donquixotismo, ele queria scr um dom Quixote, porque 0 socialism era para cle a era da liberdade ¢ do prazer ¢ que ele rejeitava qualquer outro socialismo” (p.245- 246) Atualmente existem muito poucas historias globais da lingiiistica (poderiames citar Mou- nin, Lepschy, Robbins ¢ Jacob). Mas muitos estudos parciais, até mesmo pontuais, vém justamente completé-las, transtornando freqiientemente, em pontos precisos, os esque- mas normalmente aceitos. As posigdes da analogia e da anomalia se confrontaram historicamente ¢ dialogaram sobre varias questdes: ~ devemos reformar as linguas existentes ou construir linguas artificiais? ~ devemos ser realistas ou convencionalistas? ~ devemos comparar as gramaticas existentes ou construir uma gramética universal? Progressivamente, surgiram fomagies mistas, a0 mesmo tempo racionalistas e empiri tas, tentando fazer a sintese entre as duas posigdes fundamentais. Por exemplo, Herder, W. von Humboldt, os estruturalistas europeus ou os distribucionalistas americanos A questo de um real da lingua é, para nds, subjacente a da propria existéncia da lingiistica com pretensio cientifica. Esta tese retoma a de J.-C. Milner, no uso que ele faz do termo real, tomado de emprés- timo a Jacques Lacan (distingao real/simbélico/imaginario). A realidade empirica, na sua positividade, nao poderia scr confundida com 0 real, intrin- secamente relacionado ao impossivel, e no mais tal ou qual construcao hipotética, como as estruturas profundas da Gramética Gerativo Transformacional, assim como parece supor M. Ronat (“Chomsky 78”, Ornicar, 14). © concreto com o qual a lingiiistica trabalha, de natureza negativa (ver Saussure), € 0 efeito propriamente lingiiistico desse real. Contra 0 estrangeiro, fonte impura de diferenga e invasor potencial, contra os tradutores- traidores que, por seu comércio com a alteridade, por seu jogo de enire-dois-lugares, entre 9 mesmo e 0 outro, contaminam a ordem interior, Herddoto j dizia: “A comuni- dade inteira constitui tio somente um s6 sangue e uma so lingua” O “bon schizo” é a sua figura modema, desterritorializando a lingua ao restitui-la ao seu esiado original de fluxo linguageiro. Ver, como exemplo desta posigao, os escritos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, particularmente L’Anti-Oedipe Rhizome [Delleuze, G, Guattari, F. 0 anti-Edipo: capitalismo e esquizofrenia. RJ: Imago, 1976] Mas nao se pode ainda falar de logicismo para caracterizar um Schleicher, preocupado em dofinir uma unidade genética da lingua. Mesma obscrvagio para os neogramiticos. Thom propée uma reflexéo sobre a estrutura histérica das teorias. Ele aplica-a a lingitistica, distinguindo uma fase de pura descrigao, uma fase de reducionismo, em que 0 objeto € “colonizado” por outras disciplinas mais avangadas, uma fase de ascetismo estruturalista (1974, La Linguistique, Discipline morphologique exemplaire). NT: [Milner, J.-C. O amor da lingua. Porto Alegre: Artes Médicas Ed, 1987] 33 2. A FORMACAO DAS LINGUAS NACIONAIS Assim, se considerassemos que a categoria materialista de real espe- cifica-se exclusivamente pela sua relagao com o impossivel, com que real poder-se-ia afirmar que o materialismo histérico trabalha? A questao do materialismo excede, portanto, 0 puro terreno da epistemologia: ela en- gaja uma aposta politica baseada na existéncia de um real da historia. 0 materialismo histérico pretende basear-se em uma percepcao desse real como contradi¢ao. E precisamente isso que J.-C. Milner recusa, considerando atualmen- te a historia como um puro efeito imaginario, eventualmente destruidor, mas nao principalmente como um real contraditorio: a historia como es- pago imaginario sé é suscetivel de conclusées praticas, por exemplo, 0 confronto entre a ditadura dos donos da lingua e a causa da liberdade. O odio da ditadura chegaria ao ponto de levar Milner a resgatar pri mente algum interesse pela posig&o sociologista, desqualificada por ra- z6es tedricas bem convincentes? A histéria viria colocar Milner em... uma contradigao? Nao seria por que a recusa de um impossivel (identificado ao proibido) nao é de maneira alguma apanigio s6 dos revoltados, mas que os mestres, também, sabem recorrer a essa mesma recusa quando necessario'? Se a politica atravessa a histéria da lingiiistica, nio 6 sob a forma de uma contradigao simples e monétona, opondo swh specie aeternitatis 0 partido da ditadura ao da liberdade, como o fixismo opée-se ao transfor- mismo vitalista, como o estado de coisas existente proibido pela classe dominante opGe-se as transformagées exigidas pelas classes dominadas. Uma vista superficial da historia teria tendéncia a identificar direta- mente o formalismo logicista com os interesses das diversas classes do- minantes que se sucederam na histdria: seu aspecto idealista favoreceria, de fato, a justificativa do “estado de fato” lingiiistico e a imposigio de normas em nome da “natureza da lingua”; a tendéncia sociologista apa- receria, desde ent&o, como porta-voz dos interesses das classes domina- das: seu aspecto materialista traduzir-se-ia por uma percepgdo critica das diferengas e das mudangas de uso que contribuem para a demiincia do estado de fato existente. 35 Permanecer nesse ponto conduziria, entretanto, a uma “politizacao” simplista do empreendimento lingiiistico. L'Amour de la langue da os meios tedricos de embelezar esse erro, a0 mesmo tempo em que eliminaa questiio politica. Mas, se (contrariamente ao ceticismo politico de Mil- ner, com o qual n&o compartilhamos) consideramos que ha um real da histéria, 6 em uma complexidade contraditéria que temos algumas possi- bilidades de encontra-lo, e ndo na oposicao simplista evocada ha pouco E essa posigdio, em apoio contraditério a de J~C. Milner, que tentare- mos considerar aqui, comegando por examinar os caminhos que o poder tomou emprestado da burguesia nas suas politicas da lingua Supor que, durante todo 0 periodo de sua “ascensao”, a luta ideoldgi- ca da burguesia capitalista em matéria de lingua teria se apoiado exclusi- vamente no elemento sociologista e quea instalagao de seu dominio teria correspondido a um retorno de suas posigées na fixagio logicista do for- malismo, seria desconhecer como, desde 0 inicio, a burguesia trabalhou para reapropriar-se dos grandes formalismos religiosos, juridicos e lin- giiisticos pré-capitalistas (universais escolasticos, direito romano, gra- matica latina). Seria também ignorar como a revolugao cultural burgue- sa (difusio conjunta da Técnica, da Instrugdo e da Democracia parla- mentar) prosseguiu no terreno das “diferengas”, da “mudanga” e da “va- riago”, para tentar absorver os efeitos delas em seu proveito. A dominacio da ideologia burguesa nao é pura repeticao da eternida- de feudal (tal como ela se inscreveu no que G. Duby? chamou de figura imaginaria da trifuncionalidade). O movimento hist6rico da sociedade feudal (que comega com 0 esfa- celamento do império romano e termina com as monarquias absolutis- tas) resulta paradoxalmente da insisténcia repetida dessa figura trifunci- onalista fixa. Ela buscou ai realizar sua estrutura, reorganizando continu- amente as relages entre suas trés “ordens”, sem jamais questioné-las. A disjuncao entre 0 Eterno e o Temporal, rapidamente abolida na festa (a de Bouvines, por exemplo, que inaugura, entretanto, a ordem tripla da monarquia moderna) ou na pessoa excepcional do Rei Santo (Luis IX), organiza-se em uma diviséo mista do universal com o histori- co, baseada nessa figura trinitaria que o periodo das revolugées burgue- sas deveria fazer explodir, historicizando o universal e universalizando a historia. Em vez do dispositivo feudal de distanciamento, destinado a manter regularmente ordens separadas, a classe dominante burguesa desenvolve procedimentos de interpenetragao com as classes dominadas. Nascimen- to politico da questo lingiiistica. As ideologias feudais supunham a existéncia material de uma barreira lingiiistica separando aqueles que, por sua condi¢ao social, eram os tini- 36 cos capazes de ouvirem claramente 0 que devia ser dito, e a massa de todos os outros, considerados ineptos para se comunicarem realmente entre si, ea quem os primeiros sé se dirigiam coma tagarelice retdrica da religidio e do poder’. Da mesma maneira, nem o feudalismo nem as monarquias absolutas implantaram uma politica da lingua qualquer: o “corpo lingiiistico” da época feudal, o mosaico dos falares e dos dialetos, permanecia tao into- cAvel quanto 0 corpo do rei, por razées paradoxalmente idénticas. A politica burguesa transforma a rigidez das ordens em terreno de confronto das diferengas. O que havia comecado com as empresas de cristianizagao da igreja medieval, e continuara com 0 inicio do colonia- lismo (particularmente, as gramaticas dos missionarios), ganhou, com a constituigdo dos Estados nacionais, a forma de um projeto politico, que colocava na ordem do dia das revolugdes burguesas a “questao lingiiisti- ca”: constituicao da lingua nacional através da alfabetizagao, aprendiza- gem e utilizagao legal dessa lingua nacional*. O feudalismo mantinha a ordem dominante “traduzindo-a” em for- mas especificas de representagdes e imagens proprias as diversas classes dominadas. A particularidade das revolucdes burguesas é de tender a absorver essas diferencas para universalizar as relacdes juridicas, no momento em que se universaliza a circulacio do dinheiro, das mercado- rias... e dos trabalhadores “livres”. Para se tornarem cidadios, os sujeitos devem portanto se liberar dos particularismos histéricos que os entravam: seus costumes locais, suas concep¢ées ancestrais, seus “preconceitos”... e sua lingua materna. O espago desse jogo com a palavra “liberdade” é medido pela distan- cia que separa os projetos escolares dos revolucionarios jacobinos (parti- cularmente, em materia lingiiistica, os de Condorcet) e a realidade do sistema escolar burgués instituido por Jules Ferry, em 1880. A impossibilidade de um compromisso com a monarquia conduziu a burguesia francesa a uma alianga popular para destruir a antiga domina- ¢40, ao mesmo tempo em que organizava progressivamente sua propria ordem, sob a mascara dessa alianga: ela podia, assim, ao mesmo tempo continuar a proclamar o ideal da igualdade diante da lingua, como uma das condi¢gGes efetivas da liberdade dos cidadaos, e organizar uma desi- gualdade real, estruturalmente reproduzida por uma divisao politica no ensino da gramatica’. A questao da lingua 6, portanto, uma questao de Estado, com uma politica de invasdo, de absorgao e de anulacao das diferengas, que supde antes de tudo que estas ultimas sejam reconhecidas: a alteridade constitui na sociedade burguesa um estado de natureza quase bioldgica, a ser trans- formado politicamente. 37 O poder do Estado burgués reveste, portanto, ao mesmo tempo a forma logicista de um sistema juridico concentrado em um foco tinico e a forma sociologista de uma absorgio negociada da diversidade: poder que funciona simultaneamente segundo a figura juridica do Direito e se- gundo a figura biolégica da Vida. ‘Assim sc realiza a divisao do trabalho que da a configuragao dual da lingiiistica sua forma contemporanea: — do lado do Direito, a ditadura logicista instituindo a circula¢éo oficial das significagdes garantidas por uma autoridade central (como 0 Estado detém o monopélio da emissao dos simbolos mo- netarios e garante seu valor); — do lado da Vida, as multiplas praticas fragmentarias, indefinida- mente reelaboradas e aperfeigoadas pelas quais a divisio estraté- gica burguesa encontra 0 caminho de seu exercicio. A abertura social dos usos lingiiisticos representa as formas evidentes nas quais a burguesia negocia sua instalagao e seu sustento, apoiando- se nas classes dominadas para lutar contra elas, e Ihes retornar a “causa da liberdade”. A ideologia do Direito ou a da Vida pode, segundo as circunstancias, parecer avangar ou retroceder; mas tanto uma como a outra tém como fim alcancar 0 termo impossivel da luta de classes burguesas: parar a historia (fixar a sociedade por disposigao juridica), ou termind-la (abrir caminho ao que, na dominagao burguesa, ainda nao encontrou suas com- pletas condi¢des de realizagao, ao que escapa ainda ao seu reconheci- mento integrador das classes dominadas)°. NOTAS 1. Afinal de contas, é a Napoledo (¢ nao a algum defensor da liberdade) que a tradigao atribui esse enunciado gramatical parodistico: “a palavra impossivel nao é francesa”. A ordem politica apresenta aqui as aparéncias paradoxais da divisio gramatical para melhor negar fa sua existéncia: & (politicamente) impossivel que a palavra “impossivel” pertenga & lingua francesa!E Mussolini: “Impossibile non @ italiano”... 2 Cf Les Trois Ordres ow I'Imaginaire du féodalisme (N.R.F., 1978) de G. Duby [Duby, G As trés ordens ou imaginério do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1994.], que retoma ¢ prolonga as teses de Dumézil sobre @ trifuncionalidade 3. As formas do direito da época feudal exprimem essa nao comunicagdo entre 0 espago nobilidrio, em que se regula a transmissio do nome e do feudo, ¢ 0 espaco plebeu, em que se gera 0 destino de todos os que, no sendo “bem nascidos”, rio tém “nome”. Essa fronteira estrutural se complica pelo jogo de uma outra disjuncdo, opondo historicamente o direito escrito (proveniente do direito romano), estabclecido no sul da Franga, ¢ os direitos consue- tudinarios em vigor no norte, sob a influéneia germanica 4, Numerosos trabalhos voltam-se para essa questéo: R. Balibar_¢ D. Laporte, Le Francais national (Hachette, 1974); M. De Certeau, D. Julia ¢ J. Revel, Une politique de ta langue: la Révolution francaise et les patois: l'enquéte de Grégoire (Gallimard, 1975); A. Chervel, ... et il fallut apprendre @ écrire & tous les petits Francais (Payot, 1971); F. Furet ¢ J. Ozouf, Lire et Ecrire (Minuit, 1977), para s6 citar os mais completos ¢ recentes Tendo como modelo a Grammaire francaise de Lhomond, o ensino da lingua francesa constituiu-se a partir do modelo do latim, reservando a experiéncia do bilinguismo & classe dominante ¢ fornecendo as massas uma gramatica simplificada e truncada, baseada na légica da frase simples. A articulagio contraditéria da relagdo Direito/Vida constitui um objeto recorrente da teflexdo de Michel Foucault. O impressionante trabalho historico e filos6fico desse autor, que deliberadamente desenvolveu-se ao largo do pensamento marxista, traz para © interior deste tiltimo uma reaco da qual & urgente saber tirar partido. O marxismo sb terd a ganhar um pouco de clareza na sua propria crise. A relacdo entre 2s ideologizs do Direito ¢ as da Vida foi recentemente reabordada por Foucault em La Volonté de savoir (Foucault, M. Histérie da sexualidade I: a vontade de saber. RJ: Graal, 1982]. Encon- traremos em “Le Droit du sexe” de Héléne Roudier (Action poétique, 72) 0 esboco de uma perspectiva materialista reconhecendo nesse ponte a importincia de Foucault. Agradecemos aqui a H. Roudier pela releitura critica que ela aceitou fazer do primeiro capitulo. 39

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