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Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 03-12 | julho-dezembro de 2009

Da invenção da infância à psicologia do desenvolvimento

From the invention of infancy to developmental psychology

Arthur Arruda Leal Ferreira I


Saulo de Freitas Araujo II

RESUMO
Este trabalho tem como objetivo inicial uma discussão histórica (embasada no movimento da Nova História e
da genealogia foucaultiana) em relação ao surgimento da psicologia do desenvolvimento. Em seguida, é
proposta a hipótese de que este campo da psicologia tem como sua condição um duplo movimento: a) no
século XVI, o surgimento da escola religiosa, da família como objeto de políticas de saúde e de uma
experiência de infância como idade da inocência; b) no século XIX, a emergência de novas tecnologias de
governo liberais, da escola laica e de uma imagem da infância calcada na evolução. Finalmente, é
caracterizado o movimento de consolidação da psicologia do desenvolvimento, favorecido principalmente
pelo funcionalismo norte-americano (articulado ao movimento da Escola Nova) e pelo sucesso dos testes
mentais.

Palavras-chave: psicologia do desenvolvimento; história da psicologia; história da infância.

ABSTRACT
The aim of this paper is to present a historical discussion (based on the New History Movement and on the
foucaultian genealogical analysis) concerning the origins of Developmental Psychology. The hypothesis that
in the origin of this field of psychology there is a double movement, namely a) the appearance in the 16th
century of religious school, the family as object of health policies, and the experience of infancy as an age of
innocence; and b) the emergence in the 19th century of the new technologies of liberal government, the lay
school, and a new image of childhood based on evolutionism, is proposed. Finally, the consolidation of
developmental psychology, favored mainly by North-American functionalism (articulated with the New
School Movement) and the success of mental tests, is described.

Keywords: developmental psychology; history of psychology; history of childhood.

_____________________________
I
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro.
II
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) – Juiz de Fora.

Quando tentamos estabelecer uma constituição de um saber legítimo sobre


história de certas áreas do conhecimento ela – a psicologia (com suas
como a psicologia do desenvolvimento e especialidades: psicologia da infância e
a psicologia escolar, somos tentados a do desenvolvimento) –, até chegar ao
adotar um certo tipo de narrativa ponto em que há o seu encaminhamento
evolutiva. Nesta supõe-se um para o seu suposto lugar natural, a saber,
desvelamento lento e contínuo de uma a escola (coroada pelo saber necessário
essência própria e até então ignorada da que é a psicologia escolar). Se problemas,
infância, que vem seguido pela conflitos e obstáculos se impõem nesta

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história, estes são desvios contingentes de indícios e registros que serviriam não
uma marcha necessária e progressiva na como provas últimas, mas sim como
direção da verdade, calçada na existência “monumentos” a serem interpretados.
de um objeto natural e universal que Essas histórias nada mais teriam de
funciona como lastro desta história: a universal; dadas as diversas questões
infância. Este objeto permaneceria o passíveis de serem lançadas, inúmeros
mesmo ao longo do tempo histórico; o seriam os objetos possíveis de serem
que variaria seriam apenas os discursos e historiados (sexualidade, loucura, morte,
práticas sociais a serem resgatados pelas medo, vida cotidiana e, até mesmo, a
certezas do saber científico. Mas não infância). Cada qual com o seu ritmo, sua
haveria outra forma de se fazer esta temporalidade e seus períodos no diálogo
história? Que outros tipos de relatos interdisciplinar com os mais diversos
históricos poderíamos tentar estabelecer? saberes (demografia, medicina, geografia,
Em que pese a importação deste etc.). Tais histórias não teriam mais os
modelo histórico do campo das ciências sinais da continuidade e da evolução; no
naturais, o sentido de tal tipo de relato é, lugar dessas noções, impõem-se as de
em geral, o de legitimar os saberes e acontecimento e ruptura. Essa última,
instituições atualmente existentes. Alguns segundo Foucault (1972, p. 10), seria o
historiadores, contudo, operam o discurso próprio a priori do discurso histórico.
histórico com outras finalidades e Além disso, essa radical diferença entre o
conceitos. A busca de compreensão do presente e o passado levaria à
presente sem reificá-lo (Le Goff, 1983), problematização da própria existência dos
ou mesmo o seu estranhamento (Foucault, objetos que não teriam uma origem
1995, p. 256) são outras finalidades atemporal, mas seriam provenientes de
possíveis. De igual modo, conceitos que uma irrupção, gestada por uma
nos parecem óbvios, como o de evolução, multiplicidade de condições aleatórias
continuidade, ou mesmo o de objeto (Foucault, 1982). Esta condição
natural são alvos de problematização por forneceria aos objetos históricos uma
parte de muitas correntes históricas, como forma de existência marcada pela raridade
a atual História das Ciências (de Gaston (Veyne, 1980): assim como eles vieram a
Bachelard, Georges Canguilhem e se configurar, podem vir a se dissolver
Thomas Kuhn), a Nova História (de “como um rosto de areia à beira do mar”
Lucien Febvre, Marc Bloch, Ferdinand (Foucault, 1966, p. 502). 1
Braudel, Georges Duby e Jacques le Como seria uma história dos
Goff) e as arqueologias e genealogias saberes sobre a infância dentro desse
foucaultianas. novo quadrante histórico? Acima de tudo,
No contexto destas correntes, a uma história em que não basta apenas
história parte sempre do presente, de um descrever o surgimento da psicologia do
problema contemporâneo que lança os desenvolvimento em seus momentos
historiadores num jogo interpretativo para decisivos. É preciso ir mais longe, pensar
com os atores do passado, os quais são nas próprias condições de possibilidade
entendidos como potencialmente desse saber. Para tanto, temos que
portadores de formas de vida distintas das
1 Estas observações sobre a nova história
nossas atuais (postura que aproximaria os
historiadores dos antropólogos). Ao encontram-se desdobradas no artigo Para além da
história das ciências: as novas histórias em
contrário dos testemunhos diretos, os diálogo com a história da psicologia (Ferreira,
historiadores contariam apenas com 2006).

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recorrer tanto a fatores externos quanto oculto dos infantes), no espaço da casa
internos. De fato, é inegável que nenhum (não havia o “quarto das crianças” como
desenvolvimento científico possa ocorrer espaço preservado), no dormitório (a
em um vácuo sociocultural. Não se pode maior parte das vezes elas dormiam com
negar a influência de normas sociais e os adultos), na literatura (as fábulas não
institucionais tácitas que os cientistas eram propriamente infantis, e se podia
normalmente não questionam. No caso da alfabetizar com clássicos, como os
psicologia, por exemplo, é necessário diálogos platônicos), na pedagogia (as
considerar a influência de práticas sociais escolas livres não segregavam alunos por
sobre o estabelecimento de práticas de turmas de idades, nem favoreciam o
investigação psicológica. Logo, pensar esquema de internato ou castigos), no
numa história da psicologia do trabalho (era muito comum a alternativa
desenvolvimento renovada é antes de pedagógica de se mandar um jovem
tudo romper com os relatos heróicos em realizar o seu aprendizado servindo em
que se suporiam o desvelamento de uma casa alheias; daí a origem do termo
essência própria e, até então, ignorada da garçon), nas guerras (os exércitos não
infância através do conhecimento e o seu possuíam limite de idade, característica
encaminhamento até o seu lugar natural, a presente até o século passado, e ainda
escola. Isso porque não teríamos mais o presentes em certas milícias
lastro do objeto natural, a saber, a guerrilheiras). Ainda que muitas dessas
infância e o seu suposto descobrimento características firam a nossa sensibilidade
progressivo pelos saberes e instituições atual, elas são marcas de muitos grupos
atuais. Apenas a pura diferença entre o ainda existentes (mesmo os meninos de
presente e o passado, dado na emergência rua, como uma rede social própria no
de um objeto raro: a infância. No caso, interior da nossa) e provas da
isso nos conduziria a uma tese cuja possibilidade de um mundo sem infância,
equação histórica a ser evocada aqui é sem escola e sem uma psicologia
inversa à narrativa tradicional: da educacional e/ou do desenvolvimento.
invenção da escola e das necessidades de A infância começa a se segregar
padronização da educação, produz-se uma como personagem e sentimento (a
psicologia do desenvolvimento que cria “paparicação”) a partir do século XVI, e
uma certa infância. Nesse caso, nosso graças a um duplo acontecimento: 1) a
guia-mestre será o clássico, História diminuição da mortalidade infantil e a
Social da Criança e da Família, de possibilidade de apego, restrita até então,
Philippe Ariés (1979) que, apesar de vir devido às altas taxas de mortalidade na
sofrendo críticas, continua sendo uma Idade Média; 2) o surgimento dos padres
referência importante para esta discussão. reformadores, portadores de uma nova
moral baseada na necessidade de
A Invenção da Infância preservação da inocência e da
Esta história da infância começa no seu racionalidade supostas nesta fase da vida.
grau zero, na sua ausência, tal como Daí o surgimento da escola em forma de
ocorre na Baixa Idade Média. Pode-se internato, enquanto quarentena destinada
observar não apenas a sua ausência nas à preservação da poluição moral suscitada
representações pictóricas, como também a pelo convívio com o mundo adulto.
de qualquer esforço de segregar o seu Supondo uma razão inversa entre idade,
mundo da vida dos adultos, seja na vida por um lado, e inocência e racionalidade
sexual (esta não consistia em algo a ser moral, por outro, instituem-se classes

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diferenciadas por idade, instalando-se o devotado ao aumento da força interna da


castigo como correção de qualquer desvio Nação através da gestão da segurança, da
da suposta pureza infantil. Inicia-se, neste moral, da religiosidade, da circulação de
período, o firme laço entre instituições bens, etc. De um modo ou de outro, trata-
religiosas e pedagogia, ungidas pela se de uma configuração ao mesmo tempo
moral. biopolítica e disciplinar do Estado, em
Paralelo a esse movimento, a que o cuidado com cada um e com todos
família começa a se nuclearizar, a se se torna a meta fundamental do governo.
diferenciar de uma massa social Um exemplo dessas novas estratégias de
uniforme. Da instituição condutora de gestão é a campanha contra a
linhagens de parentesco, ela se transforma masturbação infantil conduzida no século
em espaço de gestação de sentimentos XVIII, tratada pelos médicos como
ternos entre seus membros; nasce o que verdadeira epidemia, apta a gerar os mais
Ariés designa por “família sentimento”. A diversos males (Foucault, 2001, aula de
divisão do espaço interno a casa passa a 05 de março de 1975).
acompanhar uma nova divisão do espaço
social. De um espaço anódino, em que os Um novo modo de governo, uma nova
cômodos não eram diferenciados e os escola, uma nova infância
móveis realmente móveis, deslocando-se Entre os séculos XVI e XVIII,
conforme a atividade do grupo, a casa surgem em conjunto uma primeira forma
começa a ganhar compartimentos bem de infância, a família burguesa e a escola,
determinados. De igual modo, a mescla mas ainda não a psicologia. Contudo,
indistinta de vida privada – lazer – novos acontecimentos despontam na
trabalho – ensino, presentes na casa, virada para o século XIX: as formas de
começa igualmente a se segregar, gestão das populações, desenvolvidas
restando somente a primeira função em notadamente pelo Estado de Polícia,
seu interior. começam a ceder a novas técnicas de
Tais transformações (na infância, governo mais flexíveis encampadas pelos
na família e na casa) ressaltadas por Ariés fisiocratas e liberais (Foucault, 2006).
(1979) apontam para o surgimento de Tais técnicas não buscam mais o controle
uma nova tecnologia de poder, cunhada disciplinar de todos os fenômenos
por Foucault (1977) de biopoder, populacionais por parte do Estado, mas o
devotado à gerência de indivíduos e seu acompanhamento em todas as suas
populações. Ele é composto de duas flutuações livres e naturais. O melhor
vertentes: a disciplina (ou anátomo- exemplo disso são as novas formas de
política) e a biopolítica. A primeira, gestão da economia, bem distintas do
surgida no século XVII em algumas antigo mercantilismo: ela passa a ser
instituições fechadas como escolas, acompanhada em sua liberdade e em sua
casernas e hospitais, atuaria ordem natural pelas livres flutuações do
individualizando e singularizando corpos mercado.
através de técnicas de exame. A segunda, Essas novas formas de gestão
surgida em meados do século XVIII, paulatinamente se implantam no domínio
atuaria numa escala maior, singularizando escolar: sob o pretexto de igualdade e de
grandes populações através de modos de cidadania, o ensino laico se instaura como
registro coletivos, como a estatística. No tarefa do Estado, substituindo
âmbito estatal, destaca-se o surgimento paulatinamente a autoridade das
do Estado de Polícia (Foucault 2006), escrituras pela das novas descobertas

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científicas. Neste quadro, no seio do Universidade de Leipzig, a partir de 1879,


movimento iluminista, surgem os círculos data da fundação de seu famoso
dos assim chamados “filantropos”, um laboratório (Araujo, no prelo). De acordo
grupo de homens letrados com com esse modelo, o foco deve estar na
experiência prática como educadores. Seu busca de processos psíquicos universais,
objetivo era promover a transição para a que são encontrados na mente individual
sociedade burguesa através da melhoria adulta e normal. E, muito embora o
da educação. E o desenvolvimento de conceito de desenvolvimento
indivíduos através da educação era (Entwicklung) esteja presente em toda a
considerado uma condição necessária psicologia wundtiana, ele se refere aí ao
para o progresso social (Jaeger, 1982). desdobramento lógico dos processos
Mudanças sutis com relação à mentais (do simples ao complexo), mas
imagem da infância e às metas do ensino não à sua evolução ontogenética (da
são a partir daí engendradas: a pureza infância à velhice), como na perspectiva
como essência original da criança e alvo tradicional da psicologia do
da educação desaparecem do horizonte. desenvolvimento. A observação casual da
Surge então uma nova infância, sem o criança na vida cotidiana, embora pudesse
racionalismo moral suposto pelos fornecer dados empíricos interessantes,
reformadores, mas marcada pelo jamais poderia conquistar a importância
primitivismo e por uma evolução a se dada aos experimentos bem planejados e
concluir na idade adulta. Um bom controlados. Além disso, a criança não
exemplo desta nova configuração pode era considerada um sujeito experimental
ser encontrado nas reflexões contidas no adequado, sobretudo devido às limitações
livro “Emílio” de Jean-Jacques Rousseau de entendimento e comunicação. 2 Uma
(1712-1778). Supõe-se aqui a evolução psicologia do desenvolvimento infantil,
natural de um ser que tem que ser tratado portanto, era a última coisa que esse
de uma forma livre, e conhecido em seus modelo poderia encorajar e produzir.
movimentos naturais, com a sutil Bem menos conhecido, entretanto,
correção de seu trajeto na direção do é o fato de que a primeira idéia de uma
adulto cidadão e trabalhador. A nova psicologia científica do desenvolvimento
escola pública, no esforço dessas novas infantil surgiu nesse mesmo contexto
técnicas de gestão naturalizantes, irá alemão do século XIX, paralelamente à
provocar o nascimento de um novo consolidação dos trabalhos experimentais
interesse nas investigações psicológicas, de Wundt. Isso se deu graças à rápida
que culminará no estabelecimento de uma penetração na Alemanha da teoria da
psicologia do desenvolvimento. Mas evolução, que teve em William Preyer
como esta articulação é produzida? (1842-1897) um de seus maiores
entusiastas. Preyer foi um dos primeiros a
O Surgimento da Psicologia do se apropriar dos princípios da teoria de
Desenvolvimento Darwin, aplicando-os a amplas esferas da
Na história da Psicologia, o vida humana. Nesse sentido, estabeleceu
primeiro tipo de investigação psicológica um programa abrangente para explicar o
a se estabelecer como padrão de desenvolvimento físico e mental na
referência para a formação de novos
psicólogos foram os experimentos 2 Para uma explicação mais detalhada da
empreendidos e consolidados por concepção de objeto e método da psicologia
Wilhelm Wundt (1832-1920) na wundtiana, ver Araujo (2007).

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infância, que culminou na publicação, em investigações psicológicas e propôs uma


1882, de sua obra principal – “A Mente teoria geral do desenvolvimento cognitivo
da Criança” (Die Seele des Kindes). baseada na gênese das operações lógicas,
Caminhando na direção contrária à de que teve uma influência decisiva no
Wundt, Preyer insistiu na confiabilidade pensamento de Jean Piaget (1896-1980).
científica dos estudos observacionais Mas a importância de Baldwin não se
sobre a criança. Além disso, estabeleceu restringe a isso. Sua análise das interações
as implicações práticas de sua teoria e sociais e da influência do contexto social
concebeu um ideal pedagógico, que teve na formação da personalidade – que o
muita influência na reforma educacional levou a postular uma “dialética do
alemã no final do século XIX (Jaeger, crescimento pessoal” – revelam-se
1982). surpreendentemente atuais (Cairns e
Mas foi nos EUA que a psicologia Ornstein, 1979). Infelizmente, porém, o
do desenvolvimento encontrou um solo pensamento de Baldwin permanece em
fértil para o seu florescimento e grande parte ignorado na psicologia
amadurecimento. Uma das figuras contemporânea.
fundamentais nesse contexto foi G. Um outro fator importante no
Stanley Hall (1844-1924). Tendo sido surgimento e na consolidação da
aluno de Wundt em Leipzig, Hall psicologia do desenvolvimento foi a
retornou aos EUA e fundou, em 1883, o construção dos primeiros testes mentais e
primeiro laboratório de psicologia suas aplicações. Em primeiro lugar, deve-
experimental na América. Além de ter se aqui ressaltar a influência de James
sido o primeiro a ocupar uma cátedra McKeen Cattell (1860-1944), que
americana de psicologia, ele foi também também foi aluno de Wundt em Leipzig.
fundador e editor do Pedagogical Além de ter sido o primeiro a usar o
Seminary (1891), um dos primeiros termo ‘teste mental’, Cattell estabeleceu,
periódicos dedicados à questão do em 1890, um dos primeiros programas
desenvolvimento, e autor do primeiro gerais de medidas psicológicas em seu
livro-texto sobre adolescência – célebre artigo – “Medições e Testes
Adolescence (1904). Finalmente, mas não Mentais” (Mental Tests and
menos importante, ele foi responsável Measurements). Muito embora seu
pela formação de uma geração de programa tenha fracassado em vários
influentes psicólogos, cujos interesses aspectos importantes, o movimento dos
estiveram diretamente ligados à testes mentais deve muito a Cattell, que
psicologia do desenvolvimento e da foi também um dos primeiros a ver a
educação: J. M. Cattell (1860-1944), J. utilidade dos testes e a “vender”
Dewey (1859-1952), A. Gesell (1880- tecnologia psicológica para as
1961) e L. Terman (1877-1956), entre necessidades públicas (Sokal, 1982,
outros. 1990). Mas é a Alfred Binet (1857-1911)
Se a influência de Hall foi mais no que a psicologia deve realmente o sucesso
plano organizacional e institucional que dos testes mentais. Ao contrário de
no das idéias, o mesmo não pode ser dito Cattell, que se concentrou nos processos
de James Mark Baldwin (1861-1934), que psíquicos elementares (sensação,
teve um papel central na sistematização discriminação, etc.) em situações
da psicologia do desenvolvimento nos artificiais, Binet estava preocupado
EUA. Entre outras contribuições, ele principalmente com os processos
defendeu o uso do método genético nas complexos ocorrendo em situações

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práticas. Dessas suas preocupações psicológico, e foi particularmente para os


resultaram os famosos Testes Binet-Simon novos administradores escolares que a
(1905), que juntos forneciam a primeira tecnologia psicológica foi inicialmente
escala de avaliação da inteligência. A produzida. Tudo isso facilitou a inscrição
motivação básica dos autores era a do desenvolvimento infantil nas novas
necessidade prática de separar na escola técnicas de gestão liberais, aliando
as crianças normais das mentalmente conhecimento dos fenômenos naturais à
deficientes. Dessa forma, nascia a idéia sua presumível liberdade. Apesar de esse
de uma “idade mental”, que se fenômeno estar presente em alguns países
diferenciava nitidamente da idade da Europa, foi especialmente nos EUA
cronológica do indivíduo, ainda que que esses novos métodos psicológicos de
permanecesse a ela relacionada. investigação e produção tecnológica
Finalmente, foi esta iniciativa de Binet floresceram, o que explica também o
que gerou o otimismo generalizado e enorme sucesso do movimento dos testes
serviu de base para as várias adaptações mentais na psicologia americana (Sokal,
feitas por psicólogos americanos, visando 1990).
à avaliação da capacidade mental tanto de Em que pese, porém, a influência
crianças escolares quanto dos recrutas do dos fatores externos, é preciso considerar
exército americano na Primeira Guerra também a importância de aspectos
Mundial. Todo esse movimento acabou internos à atividade científica. Nesse
culminando, em 1916, na padronização caso, o evolucionismo ocupa um lugar
do teste que virou referência para todos os central no plano intelectual do século
testes posteriores de inteligência – o Teste XIX e nos interessa aqui particularmente.
Stanford-Binet de Inteligência (Cairns e Por motivos de espaço, restringiremos
Ornstein, 1979; Gardner, 1998). nossa análise à influência de três figuras
De acordo com Danziger (1987), é marcantes que, por sua vez, influenciaram
somente olhando para os fatores decisivamente o pensamento psicológico
socioeconômicos que iremos norte-americano: Charles Darwin (1809-
compreender adequadamente o 1882), Herbert Spencer (1820-1903) e
surgimento do “modelo galtoniano” de Francis Galton (1822-1911). A
prática investigativa, que se opõe ao importância de Darwin para o
modelo wundtiano descrito desenvolvimento da psicologia tem sido
anteriormente. A diferença crucial diz merecidamente reconhecida, sobretudo no
respeito ao abandono da análise dos que diz respeito às implicações de sua
processos psíquicos nas mentes teoria da evolução e de seus estudos
individuais em favor da distribuição de naturalistas para a compreensão dos
características psicológicas em grupos e fenômenos psíquicos. Já vimos
populações. Trata-se aqui de anteriormente que Preyer era um
padronização e ordenação dos fatores darwinista declarado e que sua psicologia
individuais a partir de normas grupais. do desenvolvimento depende totalmente
Foi devido à expansão e à burocratização dos princípios e métodos darwinistas.
dos sistemas educacionais nos países Mas também nos EUA a influência de
economicamente desenvolvidos que uma Darwin se fez presente logo cedo.
massa de pessoas jovens passou a ser uma Autores como William James (1842-
fonte de novos problemas psicológicos e, 1910), um dos “pais” da psicologia
consequentemente, constituiu-se em um americana e o já mencionado James
fundo potencial de conhecimento Baldwin, defenderam abertamente em

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suas teorias psicológicas idéias como a de Carr (1873-1954). Essa orientação


adaptação, entre outras. Mas é a Spencer funcionalista serviu não só como
que devemos uma boa parte do prestígio estímulo, mas principalmente como
do pensamento evolucionista na suporte teórico e metodológico para os
psicologia do século XIX. Ainda antes da estudos sistemáticos sobre o
publicação de “A Origem das Espécies” desenvolvimento psíquico humano e suas
(1859), Spencer já tinha aplicado o possíveis aplicações no contexto da
pensamento evolucionista às esferas escola (Buxton, 1985a, 1985b; Schultz e
social e mental, culminando naquilo que Schultz, 2006). Não é de modo algum
ficou posteriormente conhecido como gratuito que alguns defensores da Escola
“darwinismo social”. Em sua obra Nova (movimento em prol da Escola
psicológica clássica – Princípios de laica) fossem igualmente psicólogos
Psicologia (Principles of Psychology), funcionalistas (que tomam o modelo
publicada em 1855 – os conceitos de darwinista de adaptação do organismo ao
ajustamento individual e de luta pela meio como paradigma da psicologia).
sobrevivência ocupam um lugar central Busca-se estudar na psicologia e
na sua explicação. Na virada para o promover na escola a adaptação da
século XX, entretanto, foi Darwin quem criança a seu meio, observando-se seus
esteve quase sempre associado à interesses e instigando a sua inteligência
psicologia do desenvolvimento que através da proposição de situações-
começava a surgir. Por fim, um outro problema. Não a disciplinando, como
fator intelectual relevante nesta história é faziam as antigas formas educacionais,
o estudo sistemático das diferenças mas acompanhando seus interesses de
individuais – relacionado à idéia forma livre.
darwiniana de variabilidade –, que teve
Galton como seu primeiro defensor e
entusiasta. Sem a insistência de Galton no CONCLUSÃO
valor das diferenças individuais para a Desta breve história podem se extrair
compreensão de características duas coisas: 1) a educação escolar não é
psicológicas, o movimento dos testes efeito, mas causa da existência da
mentais seria impensável (Buxton, 1985a, infância como conhecemos; 2) as
1985b). Foi este novo padrão de prática modificações na educação escolar trazem
investigativa que Danziger chamou de mudanças na própria essência da infância
“modelo galtoniano” (Danziger, 1987). e demandam uma psicologia que promova
Diretamente ligada a todas essas esta articulação entre escola e infância.
tendências intelectuais é que se constituiu Mas não se trata de qualquer psicologia: a
a primeira “escola” de pensamento diferença entre o modelo wundtiano de
psicológico nos EUA – o funcionalismo. psicologia do século XIX e o norte-
Graças ao pragmatismo filosófico de americano, em sua orientação
James, aliado aos esforços de John funcionalista, exemplifica um espaço de
Dewey (1859-1952), os psicólogos articulação para uma psicologia do
americanos ganharam uma primeira desenvolvimento. Através desta, forma-se
orientação geral, que veio a culminar na a rede entre educação pública –
estruturação da perspectiva funcionalista evolucionismos – psicologia. De um
da “Escola de Chicago”, cujos membros modo bem claro, a psicologia pôde assim
principais eram, além de Dewey, James articular práticas sociais (oriundas da
Rowland Angell (1869-1949) e Harvey escola), modos de governo (as formas

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liberais), conceitos científicos (evolução, Cambridge: Cambridge University


adaptação e função) e novas Press.
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Endereço para correspondência:


Arthur Arruda Leal Ferreira
Rua do Riachuelo 169/ 405. Centro - Rio
de Janeiro – RJ. CEP: 20.230-014.
E-mail: arleal@superig.com.br

Recebido em Agosto de 2009


Aceito em Setembro de 2009

* Professor do Instituto de Psicologia da


Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e Pesquisador bolsista do CNPq.
** Professor do Departamento de
Psicologia da Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF). E-mail:
saulo.araujo@ufjf.edu.br

Invenção da psicologia do desenvolvimento 12

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