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Florença do Carrião

Domingo, 13 de Dezembro de 1637, terá sido o dia mais agitado da história de


Quintela de Lampaças. Nesse dia, na igreja, à hora da missa paroquial, foram ali
presas e algemadas 14 pessoas, por guardas vindos de Bragança, sob as ordens do
comissário do santo ofício, Lucas Freire de Andrade. Trazia ainda mais 6 mandatos
de prisão, emanados da inquisição de Coimbra, mas os citados tinham fugido nos
dias anteriores. Eram todos acusados de ter participado na celebração de uma
missa judaica. (1)
Um dos prisioneiros chamava-se António Rodrigues, o Raba, de alcunha. Nascera
em Bragança e tinha o ofício de sapateiro. Fora casar em Quintela de Lampaças,
com Maria Pereira, também filha de um sapateiro, a qual foi levada para as
masmorras de Coimbra, na mesma ocasião, contando 36 anos. Ali permaneceram
quase um ano, saindo ambos condenados em confisco de bens, cárcere e hábito
penitencial perpétuo.
Sapateiro era também o seu pai, Francisco Rodrigues, o primeiro que encontramos
com a alcunha de Raba. Morava em Bragança e era casado com uma Florença de
Carrião. Também ela sofreu nos cárceres da inquisição de Coimbra, saindo
condenada nas mesmas penas.
E antes dela, ali penaram os pais de Florença: João Fernandes e Ana Furtado.
Aquele havia já conhecido as celas da inquisição de Valladolid, onde foi preso em
1580. Ambos se foram apresentar espontaneamente na inquisição de Coimbra,
naquele movimento de centenas de cristãos-novos brigantinos que, ao findar do
século de 500, “entupiram” e quase paralisaram o mesmo tribunal, em consequência
de uma vaga de prisões nunca antes vista e “que redundou na grande farsa dos
falsários de Bragança”. (2) Depois de apresentada (em 17.10.1595) e registadas as
suas declarações, Ana foi mandada para sua casa e nela veio a falecer em 11 de
Abril de 1599. O processo, porém continuou e ela foi sentenciada no auto de fé de 6
de Maio de 1601.
Pelas mesmas horríveis celas passaram então 5 irmãos de Ana Furtado e um deles
saiu no auto de fé com “hábito penitencial perpétuo, diferenciado com insígnias de
fogo, sem remissão, carocha com rótulo de falsário na cabeça, açoitado
publicamente e degredo para as galés”. Outro dos irmãos (Cristóvão da Paz
Furtado) faleceu no cárcere. (3) E o mesmo aconteceu também ao pai de Ana,
chamado Henrique Afonso cuja morte ocorreu em 3.4.1593, sendo a sua sentença
lida no auto público da fé celebrado em 27 de Junho daquele ano, na forma
seguinte:
- Excomunhão maior, confisco de bens, os seus ossos desenterrados e feitos em pó
e cinza, relaxada a sua estátua à justiça secular.
Florença Carrião, mulher deste e mãe de Ana, também ali hospedada, suicidou-se
em 18-07-1598. Os seus ossos foram também desenterrados, metidos em um
caixão, levados ao auto da fé, juntamente com a sua “estátua” para serem
queimados. Resulta assim que a história dos ascendentes da família Raba é um
encadear de prisões e mortes nas cadeias da inquisição. Resta acrescentar que os
patriarcas, os pais de Henrique Afonso terão sido batizados em pé recebendo os
nomes cristãos de Pedro Afonso e Catarina Gonçalves.
Voltemos a Quintela de Lampaças. Já ali não moram o António Raba e a Maria
Pereira. Depois que regressaram das cadeias de Coimbra. Foram estabelecer casa
em Bragança onde a multidão de sambenitados não os tornaria tão estranhos. E foi
em Bragança que lhe nasceram os filhos: 2 machos e 3 fêmeas. Um deles foi
batizado com o nome de Francisco Nunes. E é este ramo da família Raba que
vamos seguir. Desde logo, digamos que Francisco Nunes era sapateiro, como seu
pai e seu avô. E também ele foi preso pela inquisição de Coimbra, e também ele
acabou por ali falecer, em 24 de Julho de 1662. Não completou sequer um mês de
vida naquelas húmidas e abafadas masmorras. E agora, vejam o estranho facto,
bem significativo da metódica atuação inquisitorial: o processo de Francisco só foi
encerrado mais de 22 anos após a sua morte, sendo a sentença a lida no auto da fé
de 4 de Fevereiro de 1685! Francisco era casado com Isabel Rodrigues, filha de
Mateus da Costa e Ana Furtado. Também ela penou nos mesmos cárceres por
quase dois anos.
O mesmo aconteceu ao filho destes, José Henriques Nunes, tendeiro de profissão,
que foi preso aos 48 anos, em 4 de Dezembro de 1705, saindo penitenciado em
Julho do ano seguinte. Surgiram depois mais acusações contra ele e voltou a ser
preso, por ter feito confissão diminuta, sendo condenado em cárcere e hábito no
auto de fé de 21 de Junho de 1711.
José Nunes Raba era casado com uma prima direita chamada Maria Antónia, filha
de Maria da Costa e José Rodrigues, casualmente nascida em Monforte de Lemos,
Castela, por onde seus pais andariam fugidos da inquisição. Tal como o marido,
Maria Antónia foi alvo de um primeiro processo, instaurado em 1705, no qual acabou
condenada em 7 anos de degredo para Angola. Tentando certamente esquivar-se a
cumprir o degredo, foi novamente encarcerada e instaurado um segundo processo.
Saiu penitenciada em “cárcere e hábito diferenciado com insígnias de fogo,
perpétuo, sem remissão e cumprirá o degredo a que estava condenada no primeiro
processo”.
Em 6 de Outubro de 1686, em Bragança, nasceu um filho de José Henriques e
Maria Antónia que foi batizado com o nome de Francisco Henriques Nunes. Seguiu
a profissão do pai e, aos 23 anos, sendo ainda solteiro, foi preso pela inquisição. De
regresso a Bragança, casaria com Inês da Costa, da qual ficou viúvo. Andava já nos
42 anos quando, em 9 de Fevereiro de 1728, casou com Luísa Maria Bernarda, 26
anos mais nova do que ele. E estes foram os pais da ilustre geração dos Raba que,
fugidos de Portugal, perseguidos pela inquisição, construíram em França um
verdadeiro império, cuja cabeça era o famoso palácio que eles construíram em
Talence, nos arredores de Bordéus. Nele se albergaram o imperador Napoleão e
Josephine, na véspera das invasões francesas. Nele se instalou o kommandatur
nazi na segunda guerra mundial e ainda hoje funciona como Hotel Raba,
classificado com 4 estrelas.
Francisco Nunes, porém, não acompanhou a mulher e os filhos nesta epopeia.
Faleceu em Bragança em 1742 e foi sepultado na igreja de Santa Maria. (4)
NOTAS e BIBLIOGRAFIA.
1-ANDRADE e GUIMARÃES – Nas Rotas dos Marranos de Trás-os-Montes, Âncora
Editora, Lisboa, 2013.
2- MEA, Elvira Cunha de Azevedo – O Judaísmo no Século XX, A Fénix renascida
em Trás-os-Montes, in: Actas do Congresso Histórico dos 450 anos da Fundação da
Diocese de Bragança, p.715. Da mesma autora ver: A Inquisição de Coimbra no
Século XVI. A Instituição, os Homens e a Sociedade. Porto, 1997.
3-IDEM, pº 830, de Francisco Rodrigues; pº 6101, de Cristóvão da Paz Furtado.
5. Registos paroquiais de Bragança - Livro de Óbitos  da Igreja Sana Maria 1742: -
Aos 13 Agosto  de 1742 faleceu Francisco Henriques , mercador, natural e morador
em Bragança na  Rua Direita  de 56 anos,  com todos os sacramentos necessários
para a sua salvação  . Não fez testamento, está sepultado nesta Colegiada  Igreja de
Santa Maria  onde era freguês . O padre Francisco Xavier da Silva.
Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
Quando foi preso pela inquisição, em 1672,(1) juntamente com o pai e o irmão
Francisco, Diogo Henriques era já o administrador principal das empresas do grupo
Mogadouro. Tinha 36 anos e mantinha-se solteiro, estando o seu casamento
ajustado com uma filha de Gabriel Medina, seu primo direito, que em Livorno tinha
uma das maiores casas comerciais. Trabalhando em rede familiar de negócios, eram
proprietários da nau “Jerusalém” que regularmente assegurava as transações
comerciais entre Lisboa, Livorno e Tunes, no Norte de África, onde tinham um forte
entreposto comercial. Aliás, uma das acusações feitas aos Mogadouro era de serem
passadores de cristãos-novos para Itália onde se faziam judeus. Impossível aqui
descrever o inventário de seus bens, que ele fez ao longo de 13 sessões, o que bem
revela a sua complexidade. Diremos tão só que na altura tinha barcos (alguns
fretados por ele no estrangeiro)(2) carregando e descarregando mercadorias em
portos da Índia, Brasil, Angola, Inglaterra, Holanda e Itália.
Acrescentamos que a Fazenda Real lhe devia quase 2 contos de réis respeitantes a
5 356 arrobas de biscoito (pão recozido) fornecido para os barcos da “carreira da
Índia” e muitos mais contos dos géneros fornecidos para alimentação dos cavalos e
dos militares estacionados em Trás-os-Montes dos anos de 1663/4 e 1666/8, para
não falar de quantidade de rendas e assentos de Cascais, Setúbal, Aldeia Galega,
Bragança e outras terras. Em garantia de tais pagamentos estavam-lhe consignadas
as décimas de Setúbal e Almada, que montavam a 32 contos de réis.
Refira-se ainda que muita gente da nobreza de Portugal se encontrava “empenhada”
na Casa Mogadouro, nomeadamente o marquês de Távora que ali devia 8 contos de
réis! A própria inquisição dele se servia nas ligações com o tribunal de Goa e
pagamento aos funcionários e ao próprio inquisidor/arcebispo das Índias. A título de
exemplo, diremos que acabava de ser contratado o transporte de um grupo de
frades dominicanos para apoio daquele tribunal e que importaria um custo de 300
mil réis. “Largas contas”, tinha também com o arcebispo de Lisboa que lhe estava
devendo uns 800 mil réis e para oferecer ao mesmo tinha encomendado a feitura de
um anel a um ourives estrangeiro que era o que trabalhava para a rainha.
A defesa de Diogo, como, aliás, a do pai e do irmão, começou por ser feita fora do
tribunal, com a entrega de uma petição assinada pelos seus primos António e Diogo
Rodrigues Marques e pelo seu irmão Pantaleão Rodrigues, na qual se identificavam
e tentava desacreditar prováveis denunciantes seus “inimigos capitais”. Estes eram,
naturalmente, homens e mulheres de ricas famílias de mercadores cristãos-novos
que então foram presos. É que o golpe desferido pela inquisição não visou apenas
os Mogadouro mas também outras empresas igualmente importantes: os Penso,
Pestana, Chaves, Pessoa, Bravo, Lopes Franco, Gomes Henriques… e eles se
relacionavam com Mogadouro, inclusivamente no que respeita a comportamentos
religiosos, nomeadamente na Quinta do Conde de Salzedas, onde aquele tinha
fábrica de preparação do tabaco.
Por seu turno, ele negava todas as acusações e confessava-se cristão exemplar,
dizendo que, depois do “abominável caso de Odivelas”, quando ninguém queria
aceitar o cargo de mordomo da confraria do Sacramento da mesma igreja, foi ele
que se aprontou e a fez reerguer e para isso comprou muitos paramentos e fez
várias obras, com dinheiro do seu bolso. Para além disso, era membro de várias
confrarias de outras freguesias, como era o caso de N.ª Sr.ª da Conceição, N.ª Sr.ª
das Mercês, S. Sacramento da Trindade, Sr.ª da Guia, Sr.ª da Atalaia, S. João
Batista da igreja de S. Domingos, Sr.ª da Penha de França, S. Catarina do Monte
Sinai e da confraria do convento de Santo Eloy.
E era “tanta a sua devoção ao SS. Sacramento” que nas festas do Corpo de Deus,
mandava armar um altar na Rua dos Escudeiros e outro na Rua da Pichelaria, onde
a própria procissão parava. E, na rua, na parede da casa de sua morada, mandou
fazer um nicho, com a imagem do Senhor crucificado.
Imagine-se: na festa de S. Pedro Mártir, que era o patrono da inquisição, ele
emprestava “muita prata” para bem decorarem a igreja de S. Domingos! E no último
auto-de-fé, antes da sua prisão, emprestou ornatos de prata ao familiar do santo
ofício Dr. João de Azevedo da Silveira”. Não imaginava que a mesma igreja seria o
palco da sentença que o condenaria à morte.
Em prova de seu comportamento de cristão exemplar, apresentou testemunhas do
maior crédito, a começar pelos arcebispos de Lisboa e Goa, pároco da sua
freguesia, quantidade de padres e frades, gente da maior nobreza, muitos familiares
do santo ofício e até solicitadores da inquisição.
Entretanto, as culpas de Diogo Mogadouro foram acrescentadas com a denúncia de
um “crime” de maior gravidade: o de corromper o alcaide dos cárceres da inquisição,
Agostinho Nunes. Vamos explicar:
Entre os muitos mercadores retalhistas que abasteciam as suas lojas nos armazéns
Mogadouro, contava-se uma Juliana Pereira, que tinha relações muito estreitas com
o alcaide. E os Mogadouro, servindo-se de ofertas para ela e para a família do
alcaide, conseguiram abrir uma via de contacto com Juliana e Agostinho(3) a levar e
trazer correspondência de Diogo Mogadouro para o primo António Marques, que
pertencia a uma comissão de cristãos-novos que então estava negociando com a
santa sé de Roma um perdão geral e a reforma dos estatutos da inquisição.
A piorar o seu caso aconteceu que seus irmãos, Francisco, Pantaleão e Beatriz,
igualmente presos, confessaram que tinham judaizado e denunciaram também o
Diogo. E este, que sempre se manteve negativo, inclusivamente no caso de Juliana
e Agostinho, tomaria então consciência de que se arriscava a ser queimado e
decidiu fazer-se doido, começando a gritar injúrias e blasfémias de todo o género, as
mais hediondas, em termos de religiosidade cristã.
De nada adiantou. Os inquisidores juntaram depoimentos dos guardas e atestados
médicos, dizendo que tudo era fingido, que ele estava “esperto e bem vivo”.
A luta diplomática em Roma(4) entre os representantes dos cristãos-novos e da
inquisição, com a prisão dos Mogadouro e a elite da burguesia lisboeta ganhava
intensidade e, em 1676, o papa suspendeu o funcionamento da inquisição, o que
implicou também a paragem do processo de Diogo Mogadouro. Seria retomado em
1681, acabando condenado à pena máxima. Foi queimado na fogueira do auto da fé
de 6.8.1683.
O processo de Diogo Rodrigues Henriques foi considerado por alguns como um ato
de vingança dos inquisidores que estavam “irritados contra a casa de António
Rodrigues Mogadouro que foi a principal parte no negócio do Recurso” estranhando-
se que os inquisidores dissessem “abertamente que a dita casa era a sinagoga de
todo o reino”.(5)
 
Notas:
1 - Inq. Lisboa, pº 11262, de Diogo Rodrigues Henriques.
2 - Entre os barcos fretados pelos Mogadouro podemos citar uma nau holandesa
denominada “Tigre Dourado”, de que era mestre Agostinho Valente e o navio inglês
“Rainha D. Catarina” dirigido pelo piloto João Martins. Dos portugueses, para além
da nau “Jerusalém”, de que eram proprietários, podemos citar a nau “Loreto” e o
patacho “N.ª Sr.ª dos Remédios”. Para além da nau “Jerusalém” a nau “Loreto” e
uma “charrua” dirigida pelo mestre Domingos Pires Carvalho, que estava carregando
na Baía, eram propriedade dos Mogadouro.
3 - Inq. Lisboa, pº 5416, de Agostinho Nunes; pº 7668, de Juliana Pereira.
4 - Um documento que testemunha a participação dos Mogadouro nessa “luta”
encontra-se no ANTT, Armário Jesuítico, segunda caixa, n.º 87 e tem o título: —
Reparos que fez um sujeito bem-intencionado por ocasião do auto-da-fé que se
celebrou em Lisboa, em 10 de maio de 1682. O 19.º desses Reparos diz o seguinte:
— Em que o Sumo Pontífice deixasse julgar as casas e pessoas tocantes aos
procuradores deste negócio pelos inquisidores novamente restituídos; e como estes
estavam irritados contra a casa de António Rodrigues Mogadouro que foi a principal
parte no negócio do Recurso, por todos os caminhos parece a quiseram destruir,
infamando dois filhos de profitentes, aceitando-lhe confissões indignas e sugeridas,
para convencer o pai e irmão mais velho, retendo estes na prisão sem saber-se com
que direito depois de 10 anos e usando para os fazer confessar, ou desesperar, de
horrendas troças, dolos e sugestões e ainda chegando a insinuar deles coisas
indignas, como que estão ou hão-de ser profitentes e dizendo abertamente que a
dita casa era a sinagoga de todo o reino. E que se ouça isto da boca dos mesmos
que hão-de julgar as vidas, as honras e as fazendas desta casa?
5 - Idem.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães


NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E
MARRANOS- OS LEDESMA - FAMÍLIA E
MOBILIDADE: ANTÓNIO MANUEL DE
LIMA, ADVOGADO.

Jerónima Ledesma e Fernando Fonseca tiveram uma filha que nasceu em


Bragança, por 1683 e foi batizada com o nome de Maria da Fonseca. Esta casou
com Manuel Rodrigues Lima, também nascido em Bragança, pela mesma altura. Na
sequência de mais uma investida da inquisição, Manuel Rodrigues Lima foi-se
apresentar-se em Coimbra onde foi ouvido, admoestado e mandado regressar a
casa. O mesmo caminho e idêntico procedimento foram seguidos por Maria da
Fonseca. Sobre Manuel Rodrigues Lima, diremos que era filho de José Rodrigues
Lima e Maria Henriques, família radicada em Mirandela, com fortes ligações a
Vinhais. Manuel Rodrigues e Maria da Fonseca tiveram vários filhos, mas só dois
chegaram à idade adulta. O mais velho, nascido por 1711, chamou-se José
Rodrigues Lima, como o avô paterno. Seria um homem com bastante relevância na
sociedade Brigantina, pois ocupava o posto de Capitão de Ordenanças, geralmente
disputado por gente da maior nobreza cristã-velha. No entanto, ele teria perfeita
noção dos perigos que corria, em matéria de fé, pois que em 6.8.1749, decidiu
apresentar-se na inquisição de Coimbra. Mandado de regresso a casa, foi chamado
em Abril de 1754 para ouvir sua sentença e abjurar de seus erros. Foi casado com
Isabel Perpétua Rosa, de uma família bem martirizada pelo santo ofício. Com efeito,
Jerónimo José Ramos, irmão de Isabel, seria um dos últimos, senão o último judeu
brigantino a ser queimado nas fogueiras da inquisição de Lisboa, em 1754.  António
Manuel de Lima, o outro filho, nasceu em Bragança, por 1718. Completados os
estudos preliminares, em Bragança, rumou a Coimbra a estudar Leis. Concluído o
curso, o jovem advogado, “por se achar com algum dinheiro e viver na lei de Moisés,
e lhe dizerem que, em Londres, havia liberdade de cada um viver na lei que queria”,
para ali embarcou e por lá ficou durante 6 meses frequentando a sinagoga para
aprofundamento da lei mosaica e fazendo-se circuncidar.  Este seria o objetivo
principal da viagem, como ele próprio referiu, deixando entender que a sua formação
e entrada na vida ativa e adulta impunha a circuncisão, ritualidade essencial para ser
judeu. Aliás, em Bragança esta ideia seria corrente e são conhecidos bastantes
casos de homens que foram circuncidar-se lá fora e voltaram à terra, geralmente
fazendo algum proselitismo. Foi o caso de José Rodrigues Mendes, morador na Rua
Direita que, em Bragança, foi educado por “judeu de nação” e depois se dirigiu a
Londres para ser circuncidado, tomando o nome de Moisés Mendes Pereira.
Regressado a Bragança, dava informações sobre o que lá vira e como ali se vivia.
Contou, por exemplo que ali encontrou Francisco Lopes Franco, filho bastardo de
Baltasar Lopes Franco, capitão de ordenanças de Chacim, e de uma cristã-velha e
que, por isso mesmo, por ser meio-judeu, teve de ser purificado com muitos banhos
e cerimónias, para ser admitido na sinagoga e circuncidado. Falou também de
outros Brigantinos que encontrara em Londres, nomeadamente os filhos de André
Lopes da Silva; a família Costa Vila Real, cujo líder era João da Costa Vila Real, que
foi circuncidado aos 73 anos de idade; Luís de Sá, porteiro da sinagoga da Bevis
Marks, casado com de Ester Sá e seu irmão Alexandre, aliás, Abraham de Morais,
casado com Mariana (Sara) da Costa Vila Real; António Mendes Álvares, filho de
Gabriel Álvares Lotas, casado com Maria Josefa. Mas não era só a Londres que iam
circuncidar-se. Também a Livorno, aproveitando muitas vezes a viagem a Roma
onde iam buscar um documento da Cúria Papal que lhes permitia casar-se dentro da
família, com tias ou primas. Veja-se, a propósito a seguinte declaração feita pelo
médico brigantino Francisco Furtado Mendonça: - Disse que havia 24 anos, em
Bragança, em casa de Francisco de Almeida, meirinho do assento, ausente em
Génova, e que o mesmo se circuncidara em Livorno e que tinha livros impressos na
Holanda, enviados por judeus daquela sinagoga e deles formava cadernos de
calendários para observância das festas, os quais distribuía pelos cristãos-novos de
Bragança e lhos deu a ele, médico, para se servir deles  Também por Livorno, a
caminho de Roma, passou e lá se demorou José Rodrigues Gabriel, que, mais
tarde. Contou aos inquisidores: - Há 34 anos, em Livorno, em casa de Gabriel de
Medina, natural deste reino, homem de negócio, entre práticas ele lhe disse que
para seguir a lei de Moisés tinha que se circuncidar, e com efeito ele se circuncidou
na casa do mesmo, dali a poucos dias, para cujo efeito veio um cirurgião que o
cortou na presença do mesmo Gabriel de Medina e outros 4 judeus, que ele não
conhecia. António de Morais, esse foi circuncidar-se a Bayonne, em França, onde
tomou o nome de Jacob de Morais. Regressou a Bragança onde era torcedor de
seda, e foi preso, em 1718, quando contava 30 anos. Veja- -se a sua confissão: -
Haverá 7 anos que se mudou para Bayonne e que o circuncidou em casa dele réu
um judeu francês chamado Samuel Talavera e lhe puseram o nome de Jacob e pelo
tal nome foi tratado e conhecido pelos judeus e ali fazia a guarda das cerimónias da
lei com Lopo de Mesquita, torcedor de seda e hoje se chama Abraham de Mesquita,
tendeiro, natural de Bragança e com Salvador Mesquita, filho deste, tratante de
chocolate, casado com uma filha de Mécia de Morais e hoje em Bayonne se chama
Isaac de Morais. Voltemos a Londres, ao encontro de António Manuel Lima que ali
terá contactado com alguns familiares fugidos da inquisição, muito em particular
Abraão Mendes Campos, aliás, Diogo de Campos Pereira, natural de Lebução.
Diogo era também formado em direito por Coimbra e, por 1720, morava em
Lebução, casado com Clara Maria de Mesquita Campos, que, em Londres se fez
judia e tomou o nome de Sarah Mendes Campos. Diogo, aliás, Abraham, tinha 5
filhas, uma das quais se chamou Teresa Maria de Campos, que casou com Baltasar
Mendes Cardoso. O casal teve vários filhos e duas filhas. Uma delas, batizada com
o nome de Rosa Maria de Campos, casou com Francisco Rodrigues Álvares, que
faleceu no terramoto de 1755. A outra, Josefa Teresa, foi casada com José Álvares
de Lima, irmão do anterior e ambos primos de António Manuel de Lima e de Baltasar
Mendes Cardoso, pai das mesmas.  Pois, é bem possível que tenha sido em casa
deste seu parente, Abraão Mendes Campos que, em 1740, o jovem advogado
António Manuel de Lima, se tenha hospedado, prolongando-se a estadia por meio
ano. Em Londres passou a Páscoa, confessando ele que a “celebrou por dois dias,
comendo neles pão asmo e um cordeiro”, como a lei de Moisés determina. Quatro
anos depois, em Agosto de 1744, vivia já em Lisboa o advogado Lima, quando, em
Londres, faleceu Abraão Mendes, tendo feito testamento no dia 20 do mês anterior.
E nesse testamento, incluiu a cláusula seguinte: - Item, deixo e lego a Branca, filha
de José Rodrigues Lima, de Mirandela, cinquenta mil réis.  Não pudemos
exatamente situar este José Rodrigues Lima na árvore genealógica dos Lima, de
Mirandela. Sabemos é que estava casado com Violante Pereira, irmã do testador,
Abraão Campos Pereira. E sabemos também que aquele José Rodrigues Lima e
Violante Pereira, sua mulher, para além da Branca da Silva contemplada no
testamento do tio, tiveram um filho chamado Alexandre Pereira que casou com Luísa
Maria Bernarda, filha de André Lopes dos Santos, da família Raba.  Em Lisboa,
regressado de Londres, António Manuel Lima empenhar-se-ia na divulgação dos
seus ideais religiosos e catequização na lei de Moisés, como se depreende da
seguinte confissão de André Lopes dos Santos (Raba): - Disse que indo a casa de
António Manuel de Lima, que mora por detrás da igreja de Santa Justa (…) e
estando ambos sós, puxou o dito António Manuel Lima de um livro que lhe disse que
era a Sagrada Escritura e que cuidasse bem em que Deus sempre era Deus
verdadeiro e que ele fora circuncidado em Londres, havia 10 anos, por isso não lhe
faltava Deus, antes o favorecia muito… 

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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